a relevância da literatura como missão histórica

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SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 420p. ISBN 85-359-0409-3 Alexandre Maccari Ferreira * A relevância da literatura como missão histórica As questões pertinentes entre Literatura e História são objeto de discussão e tema desde Aristóteles, quando proferiu em sua Poética, elementos que distinguiram essas duas áreas. A separação e o entrecruzamento desses dois campos de estudo são elementos valiosos na busca de uma compreensão que vai além da simples constatação, permeando objetos de reflexão e análise estrutural de uma corrente teórica voltada à História Nova. Nicolau Sevcenko em sua obra Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República, apresenta com objetividade um painel nossa belle époque, especialmente no campo das idéias, centrando a sua análise crítica em duas figuras aparentemente marginalizadas tanto política como intelectualmente, apesar do êxito incontestável alcançado pelas obras que publicavam: Euclides da Cunha e Lima Barreto. A partir do marco da Proclamação da República em 1889 até 1930 temos um período republicano no Brasil, denominado Primeira República ou República Velha. Esse período é controlado pelas oligarquias agrárias de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, fortemente ligadas à agricultura cafeeira. Em variados momentos ocorreram pequenas particularidades administrativas como o governo de 1889 a 1894, dominado pelos setores militares envolvidos diretamente na proclamação da República, sendo chefe do governo provisório, o marechal Deodoro da Fonseca, que posteriormente assumiu a Presidência em fevereiro de 1891, em eleição indireta pelo * Mestrando em Integração Latino-Americana da UFSM. Graduado em História pela UFSM e Especialista em Literatura Brasileira pela UNIFRA. E-mail: [email protected]. RILA, Santa Maria, RS, v.4, n. 1, jan./jun. 2007. 149

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Resenha do "Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República" de Nicolau Sevcenko feita por Alexandre Maccari Ferreira

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SEVCENKO, Nicolau. Literatura comoMisso: tenses sociais e criao culturalna Primeira Repblica. 2ed. So Paulo:Companhia das Letras, 2003. 420p. ISBN85-359-0409-3Alexandre Maccari Ferreira*A relevncia da literatura como misso histricaAs questes pertinentes entre Literatura e Histria so objeto dediscusso e tema desde Aristteles, quando proferiu em sua Potica, elementosque distinguiram essas duas reas. A separao e o entrecruzamento dessesdois campos de estudo so elementos valiosos na busca de uma compreensoque vai alm da simples constatao, permeando objetos de reflexo e anliseestrutural de uma corrente terica voltada Histria Nova.Nicolau Sevcenko em sua obra Literatura como Misso: tenses sociais ecriao cultural na Primeira Repblica, apresenta com objetividade um painelnossa bellepoque, especialmente no campo das idias, centrando a sua anlisecrtica em duas figuras aparentemente marginalizadas tanto poltica comointelectualmente, apesar do xito incontestvel alcanado pelas obras quepublicavam: Euclides da Cunha e Lima Barreto.A partir do marco da Proclamao da Repblica em 1889 at 1930temos umperodo republicano no Brasil, denominado Primeira Repblicaou Repblica Velha. Esse perodo controlado pelas oligarquias agrrias deSo Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, fortemente ligadas agriculturacafeeira.Emvariadosmomentosocorrerampequenasparticularidadesadministrativas como o governo de 1889 a 1894, dominado pelos setoresmilitares envolvidos diretamente na proclamao da Repblica, sendo chefedo governo provisrio, o marechal Deodoro da Fonseca, que posteriormenteassumiu a Presidncia em fevereiro de 1891, em eleio indireta pelo* Mestrando em Integrao Latino-Americana da UFSM. Graduado em Histria pela UFSMe Especialista em Literatura Brasileira pela UNIFRA. E-mail: [email protected], Santa Maria, RS, v.4, n. 1, jan./ jun. 2007.149AlexandreMaccari Ferreira150RILA, Santa Maria, RS, v.4, n. 1, jan./ jun. 2007.Congresso Constituinte. Mais tarde, desfavorecido pelas crticas feitas noparlamento sua poltica econmica e sua atuao poltica em geral,Deodoro renuncia em novembro do mesmo ano, assumindo em seu lugaro vice, Floriano Peixoto, que usa o apoio popular para radicalizar a lutacontra os setores monarquistas, acusados de conspirar contra o novo regime.Posteriormente, a presidncia ficou a cargo de governantes civis, comoPrudente de Moraes, que governou entre 1894 e 1898, inaugurando a fasede sucesso de presidentes eleitos pelo Partido Republicano Paulista (PRP) Campos Salles (de 1898 a 1902) e Rodrigues Alves (1902 a 1906) e peloPartido Republicano Mineiro (PRM) Afonso Pena (1906 a 1909) e VenceslauBrs (1914 a 1918). Formado pelas oligarquias paulista, mineira e fluminense,o ncleo central do republicanismo controla as eleies, faz presidentes edomina o pas.A relevncia abordada, por Sevcenko, em sua obra est ligada sestratgias do esquecimento no Brasil que tm um de seus marcos simblicosno comeo do regime republicano, com a queima dos arquivos sobre aescravido a mando do ministro plenipotencirio das Finanas, Rui Barbosa,defensor da modernizao do pas ao estilo anglo-saxnico.Tal atitude difcil de se imaginar, ainda mais partindo de um homemde cultura da tmpera de Rui Barbosa, mesmo que possa ter tido a insanaidia de mandar queimar os papis, imaginando talvez que o fogo purificassea chaga da escravido. E que, a partir da, esse perodo fosse apagado daHistria brasileira.A verificao do Rio de Janeiro como centro do poder administrativodo Brasil, demarcou uma importante questo estratgica. Outro marco aqueima dos capitais da elite imperial com o Encilhamento, nome que assinaloua emisso de moeda e de aes que geraram enormes especulaes, disparandoa inflao, propagando a pobreza e fazendo nascer uma classe de arrivistasricos.Paralelamente a isso, deu-se o movimento da Regenerao que tevecomo marco inaugural o bota-abaixo da rea central do Rio de Janeiro, amais densamente povoada, sob a tutela do presidente da Repblica, ofazendeiro paulista Rodrigues Alves, que culminou com a derrubada em1920 do morro do Castelo, que havia assistido fundao da cidade porEstcio de S.O centro do Rio de Janeiro colonial havia se transformado em extensospardieiros ocupados por gente pobre. Essa populao foi mandada para ossubrbios ou para os morros que cercam a cidade e, no lugar daquele casario,Literatura comoMisso:tenses sociais ecriaocultural na Primeira RepblicaRILA, Santa Maria, RS, v.4, n. 1, jan./ jun. 2007.151ergueram-se prdios no puro estilo art nouveau rigorosamente copiado dasgrandes capitais europias, inaugurando-se em 1904 a Avenida Central, hojeRio Branco, para dizer ao mundo que nos trpicos havia uma civilizao.Sevcenko escreve que havia princpios bsicos que deveriam ser realizados aqualquer custo:Assistia-se transformao do espao pblico, do modo devida e da mentalidade carioca, segundo padres totalmenteoriginais; e no havia que pudesse se opor a ela. Quatro princpiosfundamentais regeram o transcurso dessa metamorfose (...): acondenaodos hbitose costumesligados sociedadetradicional; a negao de todo e qualquer elemento de culturapopular que pudesse macular a imagem civilizada da sociedadedominante; uma poltica rigorosa deexpulso dosgrupospopulares da rea central da cidade, que ser praticamente isoladapara o desfrute exclusivo das camadas aburguesadas; e umcosmopolitismo agressivo, profundamente identificado com avida parisiense.1Tal modificao tem como resultado hoje, que quase no h quaseresqucios da cidade colonial do Rio de Janeiro, assim como em So Paulo,cuja burguesia tambm fez questo de fazer desaparecer as lembranas desseperodo da Histria.Para provar que possvel ler a histria simultaneamente ao ato de lera literatura, reproduzindo como que pelo avesso o movimento de quem fezhistria fazendo literatura, Sevcenko buscou dois autores representativos doperodo da Bellepoquebrasileira: o engenheiro Euclides da Cunha (1866-1909), descendente de portugueses e sertanejos baianos, e o amanuense LimaBarreto (1881-1922), mulato, que por problemas financeiros teve de desistir,logo depois de matriculado, de estudar Engenharia.Quando se remete a trabalhar com intelectualidade, em especial a doRio de Janeiro, Sevcenko busca os anseios e frustraes de parte dos intelectuaisbrasileiros nos anos iniciais da Repblica, num perodo que se estende naverdade do incio da campanha abolicionista at a dcada de 1920, em que oRio de Janeiro exerceu papel preponderante, seno hegemnico, como capitalcultural, alm de ser o centro das decises polticas e administrativas.A importncia da interveno da ao dos intelectuais est na posturade modificao para o benefcio burgus da sociedade, o que se evidenciaquando do seu apoio seja pelas crnicas, seja por certas atitudes de vinculao1 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Misso: tenses sociais e criao cultural na PrimeiraRepblica. 2ed. So Paulo: Companhia das Letras, 2003. p.43.e aproximao dessas elites econmicas. O autor capacita em tpicos asnuances de apoio dos intelectuais:Os tpicos que esses intelectuais enfatizavam como as principaisexigncias da realidade brasileira eram: a atualizao da sociedadecomo o modo de vida promanado da Europa; a modernizaodas estruturas da nao, com a sua devida integrao na grandeunidade internacional. E a elevao do nvel cultural e materialda populao.2O mascaramento dos costumes culturais em prol de uma sofisticaoarquitetnica aos moldes europeus, em especial franceses, refletia-se naproblemtica estrutural do pas, que tinha em cada 100 habitantes, em tornode 15 alfabetizados, o que restringe a funo dos escritores a uma parcelanfima, ou seja, a elite.Outros fatores contriburam para o deslocamento do ambiente dosintelectuais, como a evoluo tecnolgica e a o surgimento e divulgao dojornalismo e do cinema, mesmo que muito incipiente no comeo do sculoXX.A literatura desse perodo ganhou feies urbanizadas, passadas emgeral no Rio de Janeiro onde se concentrava a elite letrada, a tecnologia, odinheiro e a poltica. Dessa ressalta-se a importncia apontada por Sevcenkode Lima Barreto e Euclides da Cunha.Pontuar os propsitos de Euclides e Lima traar um relevanteelemento comparativo entre dois dos maiores escritores do chamado Pr-modernismo, o que de certa forma deturpa a imagem desses escritores, poiseles possuem caractersticas scio-culturais, estimuladas em suas literaturasque podemos, como faz Sevcenko, trata-los como representantes da Histrialiterria dos primrdios do sculo XX.Os dois tinham distintas maneiras de ver o mundo, mas ambos eramdesiludidos com a evoluo do regime republicano. Como estudante doColgio Militar, Euclides se empenhara pessoalmente pela chegada daRepblica, mas, pouco depois, j se mostrava contrariado com o que via, arepblica dos conselheiros, ou seja, dos fazendeiros de caf. Preferia apostarna indstria e acreditava na fora da iniciativa privada como capaz deimpulsionar o desenvolvimento do pas.ParaLimaBarreto,erajustamenteograndeempresrioquerepresentava a maior ameaa sociedade. Quer fosse ele o latifundirio, oespeculador, o proprietrio de falsas indstrias que vivia a mamar nas2 Idem, p.97.152RILA, Santa Maria, RS, v.4, n. 1, jan./ jun. 2007.AlexandreMaccari Ferreiratetas pblicas ou ainda o grande cafeicultor que fraudava as leis do mercadomediante estoques financiados, lesando toda a nao. Ele era revoltadotambmcomocomportamentodosjornaisquefaziamcampanhasfinanciadas para apoiar determinadas obras, beneficiando empreiteiros. Comose v, a prtica de favorecer empreiteiros no vem de hoje.Aquase totalidadedasgazetaseradeproprietriosdeorigemportuguesa, colnia que tambm dominava o comrcio e a indstria dacidade. O escritor achava que os portugueses ficavam tambm com osmelhoresempregosum patroportugussempreoptavaporumempregado portugus, em vez de prestigiar o trabalhador nacional e eracontra a imigrao de europeus para o trabalho na lavoura.Para Lima Barreto, a monarquia havia atingido um nvel satisfatrio epromissor de relacionamento com as diferentes etnias, processo que forabruscamente interrompido pela emergncia da burguesia republicana. ARepblica, entendia, constitua apenas um novo pacto entre as elites, comprejuzo para os menos favorecidos, uma situao que sentira na prpriapele, ao ver o pai, desempregado, enlouquecer.A produo literria, seja em romances, contos ou crnicas expressamque tais autores constituram-se em viver um mesmo momento de maneirasdistintas, enquanto Euclides valorizava a cincia, a questo da raa, dacivilizao e a atuao do baro de Rio Branco3, Lima repudiava e criticavade maneira plena todas essa questes fundamentais do perodo.Por ltimo cabe identificar que, segundo Sevcenko, mesmo tendoverificado as diferenas e proximidades dos autores, o contexto da poca, eos estilos dos escritores trabalhados, tanto Lima Barreto quanto Euclides daCunha visaram o debate, anlise e combate de questes, que para ambos,resumiram os significados mais essenciais do perodo histrico em queviviam4, discutindo a problemtica cultural do momento, a decadnciaintelectual e os limites da vida que se impunha em uma cidade que procurouapagar o seu passado.Considerando que o texto de Sevcenko fora escrito em estilo claro evaleu-se de uma extensa bibliografia, sendo originalmente sua tese dedoutoramento, creio que as impresses e as anlises utilizadas durante acomposio da obra so pertinentes no sentido da valorizao da obra deEuclides da Cunha e, em especial, de Lima Barreto, nunca perdendo de vistao entrecruzamento entre Histria e Literatura.3 Idem, p.145.4 Idem, p.150.RILA, Santa Maria, RS, v.4, n. 1, jan./ jun. 2007.153Literatura comoMisso:tenses sociais ecriaocultural na Primeira RepblicaEnfim, penso que as situaes de expresso da Literatura utilizadascomo fontes documentais da histria latino-americana so pertinentes nosentido da valorizao dos bens de utilizao da linguagem, das idias, dasmentalidades, e tambm, dos reflexos scio-polticos em que os autoresexpressam atravs de sua biografia ou mesmo intrnsecos em suas obras.154RILA, Santa Maria, RS, v.4, n. 1, jan./ jun. 2007.AlexandreMaccari Ferreira