a relaÇÃo entre imagens e textos em o destino das …

12
1 A RELAÇÃO ENTRE IMAGENS E TEXTOS EM O DESTINO DAS IMAGENS, DE JACQUES RANCIÈRE MARCUS VINNICIUS CAVALCANTE LEITE * Como os textos (palavras) se relacionam com as imagens, esta é uma das questões postas pelo filósofo franco-argelino Jacques Rancière (1940), em O destino das imagens (2003). Como comentamos, falamos ou escrevemos sobre as pinturas? Olhar para elas, não nos basta! Temos de nos expressar sobre elas, e, ao fazemos, produzimos palavras, textos e livros. Poderíamos, também, produzir outras imagens sobre elas. Mas isso não é a questão que ressaltaremos aqui, deixemos isso para um outro trabalho. Basicamente, o que pretendemos apresentar neste trabalho é como as palavras se relacionam com as pinturas. O filósofo franco-argelino compreende a leitura das imagens a partir do entendimento da articulação entre o visível e o dizível. Especialmente na importância da “relação entre o que a pintura realiza e o que as palavras fazem ver em sua superfície” (RANCIÈRE, 2012 a: 85). Exporemos dois casos concretos sobre isso, apresentados pelo filósofo, no livro de 2003. O primeiro é o comentário de Dennis Diderot (1713-1784), no Salão de Paris, em 1769, sobre o caso do pintor Jean-Baptiste Greuze (1725-1806) e sua pintura Sétimo Severo censura Caracala (Figura 1). Greuze era conhecido por suas “belas” pinturas de gênero e buscava consagração junto à Academia Francesa de Belas-Artes por meio de uma representação histórica estilo mais prestigiado e de maior reputação, pois exigia adequação à norma específica. O parecer da Academia foi demolidor: “‘Senhor, a Academia recebeu você, mas é como um pintor de gênero, ela tinha em conta suas antigas produções, que são excelentes, e ela fez vista grossa para essa, que não é digna dela ou de você’” (citado em DIDEROT, 1876, v.XI: 440). Diderot (1876, v.XI: 441) complementava a severa avaliação assim: “O Sétimo Severo é desprezível em caráter, ele tem a pele nua e morena de um condenado; sua ação é equivocada. [...] O Caracala é ainda mais desprezível que o pai dele; ele é um vilão e um patife; o artista não tinha a arte de combinar maldade com nobreza”. Aqui está a centralidade, as palavras não alcançaram a manifestação pictural do quadro de Greuze, ficando presas à convenção da normatividade acadêmica na maneira de fazer vê-lo. * Marcus Vinnicius Cavalcante Leite é doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná e bolsista da CAPES.

Upload: others

Post on 23-Nov-2021

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

1

A RELAÇÃO ENTRE IMAGENS E TEXTOS EM O DESTINO DAS IMAGENS,

DE JACQUES RANCIÈRE

MARCUS VINNICIUS CAVALCANTE LEITE*

Como os textos (palavras) se relacionam com as imagens, esta é uma das questões

postas pelo filósofo franco-argelino Jacques Rancière (1940), em O destino das imagens

(2003). Como comentamos, falamos ou escrevemos sobre as pinturas? Olhar para elas, não

nos basta! Temos de nos expressar sobre elas, e, ao fazemos, produzimos palavras, textos e

livros. Poderíamos, também, produzir outras imagens sobre elas. Mas isso não é a questão que

ressaltaremos aqui, deixemos isso para um outro trabalho. Basicamente, o que pretendemos

apresentar neste trabalho é como as palavras se relacionam com as pinturas.

O filósofo franco-argelino compreende a leitura das imagens a partir do entendimento

da articulação entre o visível e o dizível. Especialmente na importância da “relação entre o

que a pintura realiza e o que as palavras fazem ver em sua superfície” (RANCIÈRE, 2012a:

85). Exporemos dois casos concretos sobre isso, apresentados pelo filósofo, no livro de 2003.

O primeiro é o comentário de Dennis Diderot (1713-1784), no Salão de Paris, em

1769, sobre o caso do pintor Jean-Baptiste Greuze (1725-1806) e sua pintura Sétimo Severo

censura Caracala (Figura 1). Greuze era conhecido por suas “belas” pinturas de gênero e

buscava consagração junto à Academia Francesa de Belas-Artes por meio de uma

representação histórica — estilo mais prestigiado e de maior reputação, pois exigia adequação

à norma específica. O parecer da Academia foi demolidor: “‘Senhor, a Academia recebeu

você, mas é como um pintor de gênero, ela tinha em conta suas antigas produções, que são

excelentes, e ela fez vista grossa para essa, que não é digna dela ou de você’” (citado em

DIDEROT, 1876, v.XI: 440). Diderot (1876, v.XI: 441) complementava a severa avaliação

assim: “O Sétimo Severo é desprezível em caráter, ele tem a pele nua e morena de um

condenado; sua ação é equivocada. [...] O Caracala é ainda mais desprezível que o pai dele;

ele é um vilão e um patife; o artista não tinha a arte de combinar maldade com nobreza”. Aqui

está a centralidade, as palavras não alcançaram a manifestação pictural do quadro de Greuze,

ficando presas à convenção da normatividade acadêmica na maneira de fazer vê-lo.

* Marcus Vinnicius Cavalcante Leite é doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná e bolsista da

CAPES.

2

“Escurecer o rosto de um e acusar o outro de baixeza significa transformar o gênero nobre do

quadro histórico no gênero comum [pintura de gênero]” (RANCIÈRE, 2012a: 84).

Figura 1 Greuze, Sétimo Severo censura Caracala (1769)

(KINDERSLEY, 2012a: 12-13)

O segundo caso é o ensino do filósofo Georg W. F. Hegel (1770-1831), entre 1820 a

1829, nas lições de seu curso de estética na Universidade de Berlin, o qual só teria sua

publicação, entre 1835 a 1838 (KULTERMANN, 1996: 91). Neste curso, ele disserta sobre as

qualidades da pintura de gênero holandesa em relação à italiana. O filósofo alemão se

pergunta: “O que, pois, conduziu os holandeses a este gênero? Que conteúdo é expresso

nestas pequenas imagens que, no entanto, demonstram a mais alta força de atração?”

(HEGEL, 2001: 180). Dito de outra maneira, quais são os elementos que justificam a

manifestação de certos objetos picturais nos quadros holandeses? Encontramos no próprio

Hegel a resposta: será a liberdade conquistada pelo povo holandês que

construiu em grande parte ele próprio o terreno onde mora e vive, e é forçado a

defendê-lo e mantê-lo continuadamente contra o ataque do mar; os cidadãos das

cidades, assim como os camponeses [...] acabaram com o reinado espanhol de

Felipe II, [sobre o seu país] [...] e lutaram pela liberdade política [do mesmo modo]

como também na religião [protestante] pela liberdade religiosa [contra a igreja

católica] (HEGEL, 2001: 180).

Entendemos que é esse povo, e nenhum outro, que a partir de uma tríplice luta contra a

opressão da natureza do mar sobre suas terras, do déspota espanhol e do papado sobre suas

ideias reformistas que possibilitou chegar aos “sentimentos de uma liberdade conquistada por

eles mesmos” (HEGEL, 2000: 333). Portanto, a coragem, a dignidade e a alegria alcançadas

3

se mostram na apresentação dos mestres pintores holandeses de suas tabernas, dos seus

instrumentos do cotidiano, de sua gente em cenas de extração de dentes ou na vida doméstica

variada. Hegel cita três destes mestres: Rembrandt Van Rijn (1606-1669), David Teniers

(1610-1690) e Jan Steen (1625-1679) — veja as Figura 2 e 3. E dirá, ainda, que o que é

próprio da pintura holandesa é “a intuição do que se encontra em geral no ser humano, no

espírito e no caráter humano, o que é o homem e o que é este ser humano” (HEGEL, 2002:

276; grifos no original). Além da capacidade de expressar o “espírito nacional”, Hegel

identificava, na arte pictórica holandesa, a qualidade da técnica do uso da cor, em especial o

claro-escuro. É “apenas a pintura, mediante a utilização da cor, que leva a plenitude da alma à

sua aparição propriamente viva” (HEGEL, 2002: 232). O verdadeiro pintor de quadro de

gênero expõe os seus objetos pictóricos no registro do insignificante, na efetividade do

detalhe ou na fugaz expressão de um rosto.

Figura 2 Jan Steen, Na luxúria, tenha cuidado (1663)

(KINDERSLEY, 2012b: 76)

Figura 3 David Teniers, O dentista (1652)

(KINDERSLEY, 2012b: 59)

Para entendermos melhor esses casos, urge analisar a proposta de Rancière sobre

os vários regimes de pensamento ou de identificação da arte. O que faremos daqui a

pouco. Antes, façamos uma rápida exposição sobre a noção rancièriana, que participa da

definição daqueles regimes: “partilha do sensível” (partage du sensible). “Vamos

entender aqui partilha [partage] no duplo sentido da palavra: comunidade e separação”

— diz Rancière (2018: 40). Ela é, por um lado, “separação” porque divide o mundo e as

pessoas de acordo com as funções e as suas capacidades; além, de ser determinada pelo

espaço e pelo tempo. Por outro, ela é “comunidade”, na medida em que aquilo que é

separado é compartilhado ou tornado comum, formando modos de percepção comum,

social. Estes modos são centrais para a noção, na medida em que uma “partilha do

4

sensível é um sistema de relações entre modos de ser, modos de fazer, modos de dizer,

de pensar, de ver” (RANCIÈRE, 2015: 199).

Para melhor compreender esse termo de Rancière, devemos rastrear o seu

surgimento até a sua tese de doutorado, publicada em 1981, A noite dos proletários,

ainda que não apareça explicitamente. Dizemos isso, porque Rancière (2014: 120)

afirma:

eu não tinha a menor ideia desse conceito [partilha do sensível] quando

escrevi esse livro [...], e foi só quinze ou vinte anos mais tarde quando,

através desse termo, formalizei o terreno sobre o qual me aperfeiçoei em

conduzir a narrativa histórica, a argumentação filosófica ou a operação

literária.

Contudo, a concepção desse conceito está lá! O tema da tese é o processo de

emancipação dos trabalhadores franceses no século XIX. Nela, ele estuda a produção

literária do trabalhador de empreitada o marceneiro Louis-Gabriel Gauny (1806-89), o

qual narra, na imprensa operária ou em cartas, sua percepção em relação ao tempo, seja

ao romper com a partilha clássica entre o dia (trabalhar) e a noite (dormir), seja

construindo uma autonomia perante o controle diuturno do patrão. Esta autonomia é

expressa assim por Gauny (apud RANCIÈRE, 1988: 87):

Esse homem [marceneiro] se tranquiliza com a posse de seus braços, que

sabe melhor apreciar do que o diarista, porque nenhum olhar do patrão

precipita seus movimentos. [...] Sabe também que o empreiteiro se preocupa

muito pouco com o tempo que ele passa no trabalho, contanto que sua

execução seja perfeita.

Em relação às noites de sono, Gauny (apud RANCIÈRE, 1988: 74) as via

voltadas “para as alegrias do estudo, [nas quais] quer se desligar das preocupações

industriais [obreiras] e dedicar a noite ao prazer de aprender, ao encanto de produzir”. E

ele aprende, lendo os clássicos; e ele produz, para os seus iguais, escrevendo artigos

para jornais operários, como “O trabalho diário” para Le Tocsin des travailleurs, em

25/05/1848 (RANCIÈRE, 1988: 424). Ele busca, nessa ação de publicizar, uma nova

configuração da partilha do mundo dos trabalhadores. Como constata Rancière (2011:

7), os proletários procuravam se afirmar enquanto uma nova partilha no mundo comum

e, para tanto, eles “tiveram que reconfigurar sua vida ‘individual’, reconfigurar a

partilha do dia e da noite que, para todos os indivíduos, antecipava a partilha entre

aqueles que estavam ou não destinados a cuidar do comum”. Se a noção partilha de

5

sensível não está nesta expressão, porém sua ideia estava. Ela se encontra na prática de

Gauny de propor uma divisão do tempo e buscar estabelecer os contornos de uma nova

comunidade.

Em suma, o que podemos entender do exemplo da prática desse marceneiro é

que a partilha do sensível é uma matriz organizadora, “entre uma forma de experiência

sensível e uma interpretação que faz sentido” (RANCIÈRE, 2009d: 275), na construção

de um modo de percepção do mundo comum. Este modo, na prática artística, se

constituirá, segundo Rancière (2009a), pelos regimes das artes. Estes regimes são, ao

mesmo tempo, determinados por uma partilha do sensível e promove uma coesão que

normalizam seus preceitos para toda a comunidade que eles regem. Agora, analisemos

cada um desses regimes.

Rancière (2012a: 83) afirma que a Arte, enquanto conceito como nós a

conhecemos, só tem uns dois séculos. “Ela nasceu num longo processo de ruptura com

o sistema das belas-artes”. Aqui, o filósofo franco-argelino está pensando no conceito

de Arte enquanto um processo de mudanças “nas decisões de reinterpretação daquilo

que a arte faz ou daquilo que a faz ser arte” (RANCIÈRE, 2009a: 36). Tentemos

entender o panorama apresentado. De certo modo, Rancière (2009a) ao olhar a história

da arte se contrapõe a algumas nomenclaturas consagradas pela mesma. Ele busca uma

outra perspectiva para entendê-la sobre outros parâmetros. Ele busca identificar quais as

condições de possibilidade de inteligibilidade que ordenam a compreensão da produção

e da recepção artística na história. Para tanto, ele desenvolve as noções de regimes como

parâmetro que balizam a avaliação dos produtos artísticos. Vejamos as características

deles, começando pelo regime poético das artes.

Há um entendimento de que o sistema de belas-artes está inserido em um

ordenamento, no qual pensa as artes dentro da lógica mimética. O sentido dado ao

conceito de mímesis, não é exclusivamente de produção de cópias em relação a um

modelo ideal ou real. Rancière (2009a: 31 e 2012a: 83 et seq.) dirá que não entende esse

conceito só como produtor de semelhanças, mas dirigindo a maneira de fazer ver a

relação entre o dizível e o visível na produção artística. Detalhemos esse conceito

ordenador da percepção histórica das artes. Rancière (2009a: 32) enuncia que as

características do ordenamento das sensibilidades conduzido pela mímesis são: “o

6

primado representativo da ação sobre os caracteres, ou da narração sobre a descrição, a

hierarquia dos gêneros segundo a adequação dos seus temas, e o próprio primado da arte

da palavra, da palavra em ato”. Estes preceitos foram expostos por Aristóteles (384-322

a.C.), na Poética (323 a.C.). Porém, é na Ars Poetica (19 a.C.) de Horácio (65-8 a.C.)

que eles alcançam sua consagração e o início de sua influência no pensamento artístico.

Como nos ensina Seligmann-Silva (1998), a reflexão sobre uma teoria da arte surge de

uma dupla dependência: da poética (dos autores citados) e dos tratados de retórica

antiga, especialmente Do Orador (46 a.C.) de Cícero (106-43 a.C.), que nos conduz a

pensar a forma da arte marcadamente pela linguagem verbal. A expressão “ut pictura

poesis” (poesia é como pintura), de Horário (2005: 65), é considerada por Rancière

(2009b: 43) como um dos princípios que unifica o sistema das belas-artes, por meio do

conceito mímesis. Um dos maiores trabalhos, que expressa a articulação entre a retórica

e a poética, em referência as artes plásticas, é o livro de Leon Battista Alberti (1404-

1472), Da pintura (1435). Alberti (2014) se apodera das categorias da retórica como:

inventio (invenção), dispositio (disposição), elocutio (elocução), actio (ação) e memoria

(memória) para estruturar a compreensão da pintura (SELIGMAN-SILVA, 1998: 58,

n.7). Estes cinco preceitos da Retórica antiga são adaptados para a reflexão da artes

plástica por Alberti: circunscrição, composição e recepção de luzes se assemelham as

três primeiras partes da retórica. Segundo Rancière (2009b: 28), “a inventio faz a

eleição do tema, a dispositio organiza suas partes e a elocutio ornamenta

convenientemente o discurso”. Uma outra questão importante no trato de Alberti (2014:

128) é a pretensão de elevar as pinturas ao patamar das artes liberais (ligadas,

inicialmente, a atividade de homens livre, na antiguidade, tornou-se, no humanismo,

qualidade dos homens educados) em oposição as artes mecânicas (manuais). Esse

conjunto de características formaria o que Rancière (2009a: 30) chama de “regime

poético — ou representativo — das artes”. Este ordenamento representativo das artes se

contrapôs ao anterior “regime ético das imagens” (RANCIÈRE, 2012b: 109) e,

posteriormente, foi contestada pelo “regime estético das artes” (RANCIÈRE, 2012a:

86). Apresentemos estes outros ordenamentos de configuração da perceptibilidade das

artes.

7

No regime ético, as produções artísticas não possuem autonomia, por isso

Rancière (2012b) adjetiva este ordenamento de “ético das imagens”. Neste regime não

temos a função da arte, mas a produção imagética que se pautava pelos critérios

religiosos, sociais e políticos da comunidade, centrada na noção de éthos. Os produtos

gerados por esse ordenamento são avaliados por seu vínculo imediato entre os

indivíduos e sua comunidade. Como as estátuas sagradas de certos deuses olímpicos

(pensemos em Palas Atena do artesão grego Fídias [480-430 a.C.]). Rancière (2012b:

109) cita, como exemplo, desse regime, a crítica do naturalista romano Plínio, o Velho

(24-79 a.C.), que no Livro XXXV, da sua famosa obra História Natural (79 a.C.),

expõe com irritação a prática dos romanos de acumular imagens estrangeiras em suas

casas que não dizem respeito ao seus antepassados. Isso decorre de que, no seu

entendimento, os objetos imagéticos, além de possuírem o caráter de verdade

(semelhança), necessitavam ter a função da fruição pública. Portanto, eles deviam

evocar o passado comum dos romanos e não dos “gentilícios” (PLINIO, 1995/96: 318).

Em outras palavras, os objetos imagéticos deve ter seu sentido definido organicamente a

partir da comunidade que os criou.

Como foi dito, o regime representativo tem sua expressão no sistema de belas-

artes, porém no final do século XVIII, este regime sofreu uma “ruptura”. Esta não deve

ser explicitada em uma mudança abrupta e absoluta entre os ordenamentos artísticos,

mas em uma alteração no estatuto da maneira de fazer, de ver e de dizer o objeto

sensível da arte. Isto é, na instauração de uma nova partilha do sensível. Esse novo

regime promoveu o rompimento com a normatividade da lógica mimética e desloca o

entendimento normativo da produção artística para a compreensão a partir da

materialidade sensível em cada arte particular. Com isso, “desobriga essa arte de toda e

qualquer regra específica, de toda hierarquia de temas, gênero e artes” (RANCIÈRE,

2009a: 33-34). Neste regime, a arte se instaura a partir de uma “esfera de experiência

própria”, na medida em que “qualquer coisa pode entrar igualmente no reino da arte”

(RANCIÈRE, 2009c: 158). Entretanto, ao chamar esse regime da arte de “estético”, o

filosofo franco-argelino estava sujeito a gerar confusão de nomenclatura. Pois a palavra

estética foi nomeada por Alexander G. Baugartem (1714-162), em 1735, enquanto uma

disciplina filosófica, na qual “as coisas sensíveis são objetos da ciência estética

8

(epistemé aisthetiké), ou então, da ESTÉTICA” (BAUGARTEM, 1993: 53; destaque no

texto). Rancière (2009e: 121) apressou-se para distinguir o uso da noção estética: “Por

um lado, nomeia um regime específico de identificação da arte, determinado

historicamente. Por outro lado, nomeia uma dimensão da experiência humana em

geral”. Para a segundo distinção, chamou de “‘estética primeira’ no sentido de que

mesmo as práticas, que não são ‘artísticas’, como a política, pressupõem a configuração

sensível de um determinado mundo” (RANCIÈRE, 2009c: 157). Enquanto, para a

primeira distinção, quis usar a palavra estética para nomear um novo ordenamento

artístico, que surge como uma contraposição à expressão “modernidade artística”, a qual

é entendida pela história da arte como instauradora de uma ruptura entre o figurativo e o

abstrato, a partir da qual começaríamos um novo período artístico — o termo

“modernidade” é considerado por Rancière (2009a: 37) como “uma noção equívoca”, a

qual transmitiria uma falsa ideia de sentido progressista no campo das artes. Não

obstante a questão terminológica, Rancière (2010: 210) caracteriza a prática artística no

regime estético “por sua multitemporalidade, a ilimitação do representável e o caráter

metamórfico de seus elementos”. Dito de outro modo, este regime rompera com

qualquer normatividade, seja na relação entre forma e conteúdo, seja na regência de

uma partilha hierárquica do sensível.

As definições ou caracterizações dos regimes não são imposições taxativas em

Rancière (2009a), elas não são “camisa de forças” na apreensão das realidades artísticas

históricas, mas instrumento heurístico para a interpretação das práticas do fazer, do ver

e do dizer nas artes. Após tantas voltas conceituais, retornemos aos casos concretos

expostos acima.

Para analisarmos a relação entre as palavras e as imagens, nos casos em tela,

foquemos em um princípio enunciado por Rancière (2012a: 19): a “equivalência

reversível ente o mutismo das imagens e sua fala”. Este princípio disparatado vela uma

conversibilidade entre duas potências da imagem: “a imagem como presença sensível

bruta e a imagem como discurso cifrando uma história” (RANCIÈRE, 2012a: 20).

Pensemos estas potências na investigação da imagem da arte (o nosso foco aqui).

Portanto, ao nos propor analisar o quadro de Greuze e os quadros holandeses, citados

por Hegel, devemos problematizar “a relação entre superfície de exposição das formas e

9

[a] superfície de inscrição das palavras” (RANCIÈRE, 2012a: 89). O olhar deve “cavar”

a imagem figurativa e, por meio de palavras, fazer aparecer outro assunto. Como

operacionalizar isso? Pelo “trabalho da desfiguração” diz Rancière (2012a: 87 et seq.).

O que seja isso? Em uma resposta rápida, esse trabalho promove, na superfície da tela,

um efeito de deslocação, no qual se “desloca as figuras no texto e o texto nas figuras. A

superfície não existe sem as palavras, sem as ‘interpretações’ que a tornam pictórica”

(RANCIÈRE, 2012a: 99). Destrinchemos essa proposta.

Rancière sinaliza que um dos criadores do conteúdo desse processo de

desfiguração é Proust. Este a chamava de “denominação” (RANCIÈRE, 2012a: 87).

Investiguemos. A referência ao trabalho de Proust é encontrada no narrado de Em busca

do tempo pedido (1913-27), que nos apresenta a personagem do pintor Elstir. No ateliê

dele, o narrador passeia entre suas pinturas e enuncia para nós, leitores, a seguinte

percepção:

Mas podia distinguir que o encanto de cada uma [pintura] consistia numa

espécie de metamorfose das coisas representadas, análoga à que em poesia

se chama de metamorfose e que, se Deus Pai havia criado as coisas

nomeando-as, era tirando-lhes o nome ou dando-lhe um outro que Elstir as

recriava (PROUST, 1995: 362).

Podemos interpretar a fala do narrador como a constatação de que a renomeação

figurativa promovida pelo pintor, a partir da natureza (Deus Pai), é dada ainda na lógica

representativa. Para que possamos produzir uma nova visibilidade pictural,

precisaríamos deslocar não só os elementos sensíveis (pigmentação) da tela como,

também, as ideias inscritas nas palavras. “É a potência [das palavras] que escava a

superfície representativa para fazer aparecer a manifestação da expressividade pictural”

(RANCIÈRE, 2012a: 86).

É nesse sentido que o comentário de Diderot sobre a pintura de Greuze, no Salão

de 1769, não efetivou um deslocamento para “desfigurar” a matéria sensível da

superfície pictórica de Sétimo Severo censura Caracala. Suas palavras apenas

corroboram o que a norma da hierarquia dos gêneros, segundo a dignidade dos seus

temas já dizia. Além do que a Academia ainda avaliava o quadro ao que ele deveria ser,

adequado à norma sancionada!

10

Diferentemente do caso de Greuze, a análise de Hegel é exemplar, do ponto de

vista do “trabalho da desfiguração”. Ele promove um deslocamento ao fazer aparecer

outro assunto sob a expressividade figurativa dos quadros holandeses. Isto é, não são as

cenas cotidianas ou de expressão moral, mas o sentimento de uma liberdade que chama

a atenção do filósofo alemão. Este sentimento pode ser apreendido, seja pelos tropos de

linguagem, seja pelos traços pictóricos. Ao fazer isso, Hegel está contribuindo para a

construção do regime de estético das artes, ao focar na apreensão do tema, não

antecipadamente, mas a partir do fato pictórico. Evita, com isso, a subsunção da forma à

adequação do tema representado, característica da lógica mimética do regime

representativo identificado na análise de Diderot do quadro de Greuze.

Por fim, encerremos, retomando as perguntas inicias: como as palavras se

relacionam com as imagens? Como comentamos, falamos ou escrevemos sobre as

pinturas? Não temos respostas acabadas, mas podemos dizer, a partir dessa leitura de

Rancière que devemos olhar a tela de qualquer quadro como um espaço de conversão,

no qual ocorre a relação entre as palavras (textos) e as imagens por meio do diálogo e da

enunciação dos deslocamentos ainda por vir. É na materialidade sensível da superfície

pictórica que devemos procurar as condições de possibilidade da visibilidade realizada

pelo processo da desfiguração.

Referências

ALBERTI, Leon. Da Pintura. 4 ed. Campinas-SP: EdUnicamp, 2014.

BAUGARTEM, A. G. Estética. A lógica da arte e do poema. Petrópolis-RJ: Vozes,

1993.

DIDEROT, Denis. Oeuvres Complètes de Diderot. Paris: Garner Éditeurs, 1876, t.XI.

HEGEL, G.W.F. Cursos de Estética. São Paulo: EDUSP, 2001, v.1.

______. Cursos de Estética. São Paulo: EDUSP, 2000, v.2.

______. Cursos de Estética. São Paulo: EDUSP, 2002, v.3.

HORÁCIO. Arte Poética. In: ARISTÓTELES, Horácio e Longino. A poética clássica.

12 ed. São Paulo: Cultrix, 2005, p.55-69.

11

KULTERMANN, Udo. Historia de la Historia del Arte: El caminho de uma ciencia.

Madrid: Akal, 1996.

KINDERSLEY, Dorling (ed.) Arte: artistas, obras, detalhes, tema – 1650-1850. São

Paulo: Publifolha, 2012a.

______. Arte: artistas, obras, detalhes, tema – 1600-1700. São Paulo: Publifolha, 2012b.

PLÍNIO, o Velho. Historia Naturalis. Revista de História da Arte e Arqueologia,

Campinas-SP, n. 2, p. 317-330, 1995/96.

PROUST, M. À Sombra das Raparigas em Flor. 12 ed. Rio de Janeiro: Editora Globo,

1995.

RANCIÈRE, Jacques. O Desentendimento: politica e filosofia. 2 ed. São Paulo: Editora

34, 2018.

______. L’excès des mots: pratiques de desidentification et logiques heterogènes de la

culture. Entretien avec Jacques Rancière. Práticas da História. v.1, n. 1 p.185-214,

2015.

______. El método de la igualdad. Buenos Aires: Ediciones Nueva Vision, 2014.

______. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012a.

______. O espectador emancipado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012b.

______. The Thinking of Dissensus: Politics and Aesthetics. In: BROWMAN, P.;

STAMP, R. (eds.). Reading Rancière. London: Continuum, 2011, p. 1-17.

______. The Use of Distinctions. In: RANCIÈRE, J. Dissensus: On Politics and

Aesthetics. London: Continuum, 2010, p. 205-218.

______. A partilha do sensível: estética e política. 2 ed. São Paulo: Ed. 34, 2009a.

______. La palabra muda. Buenos Aires : Eterna Cadencia Editora, 2009b.

______. Politique de l’indetérmination esthétique. In: GAME, J; LASOWSKI, A.W.

(eds.) Jacques Rancière et la politique de l’esthétique. Paris: Editions des achives

contemporaines, 2009c, p. 157-175.

______. The Method of Equality: An Answer to Some Questions. In: ROCKHILL, G.;

WATTS, Ph. (eds.). Jacques Rancière: History, Politics, Aesthetics. Durham: Duke

University Press. 2009d, p.273-288.

______. A few remarks on the method of Jacques Rancière. Parallax, v. 15, n. 3, p.114-

23, 2009e

12

______. A noite dos proletários. São Paulo: Cia das Letras, 1988.

SELIGMANN-SILVA, Mácio. Introdução/Intradução: Mimesis, Tradução, Enárgeia e a

Tradição da ut pictura poesis. In: LESSING, G.E. Laocoonte ou sobre as fronteiras da

Pintura e da Poesia. São Paulo: Iluminuras, 1998, p. 9-73.