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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA
FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
A RELAÇÃO FAMÍLIA E ESCOLA NA
PERSPECTIVA DE PROFESSORES
DE EDUCAÇÃO INFANTIL: UM
DIÁLOGO NA FORMAÇÃO
CONTINUADA
RENATA DE FÁTIMA CERIBELLI
PIRACICABA, SP 2011
A RELAÇÃO FAMÍLIA E ESCOLA NA
PERSPECTIVA DE PROFESSORES
DE EDUCAÇÃO INFANTIL: UM
DIÁLOGO NA FORMAÇÃO
CONTINUADA
RENATA DE FÁTIMA CERIBELLI
ORIENTADORA: PROFA. DRA. RENATA CRISTINA OLIVEIRA BARRICHELO CUNHA
Texto de defesa apresentado à
Banca Examinadora do Programa
de Pós-Graduação em Educação
da UNIMEP como exigência
parcial para obtenção do título de
Mestre em Educação
PIRACICABA, SP 2011
BANCA EXAMINADORA
Profa. Dra. Renata Cristina de Oliveira Barrichelo Cunha
(Orientadora)
Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP)
Prof. Dr. Guilherme do Val Toledo Prado
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
Profa. Dra. Maria Nazaré Cruz
Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP)
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho e todo o seu processo:
A minha mãe Inez, que espera o meu “livro” ficar pronto, pelo
tempo que ainda temos!
As minhas filhas: Sara, Luana e Isabela. Por nossas ligações
eternas!
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar gostaria de agradecer a força, inexplicável, que habita o
meu ser;
Aos obstáculos, pequenos e grandes, que intensamente vivi;
Aos meus pais, pela difícil vida, mas, pela expressão de continuidade e força
que sempre me passaram;
A toda a minha família, pelas raízes;
Às minhas filhas, pela troca e vida;
Aos meus sonhos guardados, ainda por se realizar;
À Patrícia Granúzzio, pelo estímulo e processo, imensuráveis;
À Renata Pucci, pela amizade;
À Branca, pela superação e amizade;
Aos companheiros: Arary (“só para contrariar”) e Adriano (“paga eu”), pelas
aulas, risos;
Às amigas: Vera e Graça, pelas trocas;
A todos/as amigos/as do PPGE, pela singularidade;
Ao professor Zé Maria, pela história, filosofia;
À professora Roseli Schnetzler, pela participação e aprendizagem;
À professora Nazaré, pelo conhecimento na área, contribuições;
Ao professor Guilherme, pelo encanto, “barquinhos” e contribuições;
professora Ana Aragão, pela participação, contribuições;
À professora Renata Cunha, minha orientadora, pela amizade, paciência,
dedicação, disciplina, orientações e incansáveis leituras;
A todos os professores do Programa de Pós Graduação da UNIMEP, pelo
intenso trabalho;
À Secretaria da Pós, em especial Elaine, Angelise, e Dulce, pelos cuidados;
A toda a escola pesquisada: famílias, crianças, professoras e funcionários;
A Secretaria Municipal de Educação, pela autorização desta pesquisa;
A minha aprendizagem, sofrível!
À vida!
“O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES – Brasil”.
De tudo ficaram três coisas:
a certeza de que estamos começando, a certeza de que é preciso continuar e,
a certeza de que podemos ser interrompidos antes de terminar.
Fazer da interrupção um novo caminho, da queda, um passo de dança,
do medo, uma escada, do sonho, uma ponte,
da procura, um encontro.
E assim terá valido a pena existir!
(Fernando Pessoa)
RESUMO
Esta pesquisa buscou compreender as perspectivas de professores de
educação infantil, de uma escola do interior do estado de São Paulo, sobre a relação
família e escola, tendo como referencial teórico, a matriz histórico-cultural. Sua
relevância se constrói em entender as perspectivas das professoras sobre a relação
família e escola, tão necessária ao desenvolvimento da educação e dos cuidados
integrais à infância. A pesquisa de campo revelou o aprofundamento e a descrição
de seu contexto a partir da pesquisadora que se insere, também, como diretora
escolar do grupo pesquisado e, o planejamento estratégico de encontros realizados
em Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC), onde foram elaborados textos
individuais pelas professoras, após leituras e reflexões que destacam a relação
família e escola e, discutidos, posteriormente, em reuniões coletivas audiogravadas
e transcritas. De acordo com Ariès (1981), o sentimento de infância desabrochado a
partir do século XVII faz nascer uma tipologia de família parecida com a nuclear e,
com isso, uma organização de escola que nos lembra a atual. Entretanto, essas
instituições educacionais foram se modificando no percorrer histórico, sendo
re/construídas socialmente através de influências político-econômicas, culturais,
questionando a ideia de naturalização das mesmas. No Brasil, preocupações com os
cuidados assistenciais ou com a educação preparatória remontam ambiguidades
históricas em torno das especificidades de educar e cuidar da infância (KRAMER,
2005). Essas ambiguidades são levadas, segundo Bonetti (2004), até mesmo, na
formulação legal de documentos que tratam da formação de professores de
educação infantil em nível superior, pós a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, de 1996. A interpretação e construção das análises de dados mostram que
as perspectivas das professoras sobre a relação família e escola revelam divisões
de papéis na complementaridade dessa relação; evidenciam julgamentos de valor;
desejo de padronização de um modelo hegemônico de família; consequentemente,
de escola, ainda que considerando as transformações sociais; conflitos; confrontos;
além de ambiguidades sobre as especificidades da docência da infância,
remontando um quadro emergente de formação continuada.
Palavras-chave: Educação Infantil – Educar e Cuidar - Relação Família e Escola –
Formação de Professores.
ABSTRACT
This research sought to understand the perspectives of teachers in
kindergarten, a school in the state of Sao Paulo, on the family and school
relationships, taking as a theoretical, historical and cultural matrix. Its relevance is
built on understanding the perspectives of the teachers on the family and school
relationships, as necessary to the development of education and comprehensive
care to children. The field survey revealed the depth and description of context from
the researcher that fits, too, as director of education and research group, strategic
planning meetings on Working Hours Teaching Collective (HTPC), which drafted
texts by individual teachers, after readings and reflections that highlight the
relationship between family and school, and discussed later in collective meetings
audio taped and transcribed. According to Ariès (1981), the childhood feeling blown
from the seventeenth century gives birth to a type of nuclear family like and,
therefore, a school organization that reminds us of today. However, these
educational institutions were changing in the travel history, and re / socially
constructed through political influence-economic, cultural, questioning the idea of
such naturalization. In Brazil, concerns about the care or assistance with preparatory
education dating ambiguities surrounding the historical specificities of educating and
caring for children (Kramer, 2005). These ambiguities are taken, according to Bonetti
(2004), even in the formulation of legal documents dealing with the training of
teachers in early childhood education at the college level, after the Law of Directives
and Bases of National Education, 1996. The interpretation and construction of the
data analysis show that teachers' perspectives on the relationship between family
and school divisions reveal complementary roles in this relationship; evident value
judgments; desire to standardize a hegemonic model of family and consequently, the
school still that considering the social changes, conflicts, confrontations, in addition to
ambiguities regarding the specifics of the teaching of children, reassembling an
emerging picture of continuing education.
Keywords: Children Education - Education and Care - Relationship and Family
School - Teacher Education.
SUMÁRIO
Introdução: EU E O OUTRO ................................................................................... 13
CAPÍTULO 1 ............................................................................................................ 28
A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FAMÍLIA, DA INFÂNCIA E DA ESCOLA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
1.1 O sentimento de Infância na construção da relação Família e Escola ............ 30
1.2 O contexto histórico da Educação Infantil no Brasil ........................................ 39
1.3 Educar e cuidar: uma relação complementar .................................................. 48
CAPÍTULO 2 ............................................................................................................ 57
O PROFESSOR DE EDUCAÇÃO INFANTIL E SEU PROCESSO DE FORMAÇÃO
2.1 Especificidades da docência na Educação Infantil e Formação Inicial ........... 58
2.2 A Formação Continuada e a reflexão sobre a prática ..................................... 64
CAPÍTULO 3 ............................................................................................................ 75
TECENDO A HISTÓRIA DA PESQUISA
3.1 A constituição do sujeito histórico-cultural e a mediação da linguagem .......... 76
3.2 O contexto da pesquisa ................................................................................... 84
3.2.1 A escola pesquisada .................................................................................... 87
3.2.2 Os sujeitos da pesquisa ............................................................................... 91
3.2.3 A pesquisa de campo ................................................................................... 93
3.2.3.1 Primeiro momento estratégico .................................................................. 95
3.2.3.2 Segundo momento estratégico .................................................................. 98
CAPÍTULO 4 .......................................................................................................... 100
A RELAÇÃO DE COMPLEMENTARIDADE ENTRE FAMÍLIA E ESCOLA: AS
PERSPECTIVAS DAS PROFESSORAS
4.1 A família imaginada pelas professoras: perspectivas sobre a relação de
complementaridade ............................................................................................. 104
4.2 Educar e cuidar: uma perspectiva de complementaridade ao ensinar .......... 122
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 131
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 143
13
EU E O OUTRO
Histórias de vida são consideradas como memória coletiva do passado, consciência crítica do presente e premissa operativa do futuro (KRAMER,
2005, p.27).
Esta pesquisa representa um processo de reflexão antigo e é fruto de minha
experiência como profissional da educação infantil e de meu interesse por
compreender melhor a relação família e escola e as dimensões do educar e cuidar
das crianças.
Como diretora escolar e pesquisadora, busco junto a meu grupo de
professores, responder a seguinte questão: Quais as perspectivas de professores de
educação infantil sobre a relação entre família e escola?
Iniciar uma pesquisa não é tarefa fácil, em sua produção nos vemos fundidas
a ela, as ideias vão dialeticamente se trans/formando, tanto na pesquisa enquanto
material intelectual, quanto ao próprio pesquisador, enquanto material humano.
A fusão que nos remete à pesquisa, dimensiona-se na importância de todo o
seu processo, do material que conseguimos produzir em campo, das aulas do curso,
das leituras direcionadas, da apuração na audição e na visão, enfim, tudo se
trans/forma em sentimentos que apreendemos e pelos quais somos apreendidos.
O processo de depuração de ideias, de direcionamento da pesquisa é, ao
mesmo tempo, tão rico e compensador quanto doído. Apegamo-nos a tudo que se
remete à pesquisa e sofremos porque temos que afunilar os horizontes, simplificá-
los, depois corremos contra o tempo, contra a vontade de querer fazer mais.
Penso que o pesquisador, como narrador que teoriza a pesquisa, também se
narra, circunstanciado pelos seus limites que o texto pode claramente evidenciar.
Consequentemente, ele deixa suas marcas, ao narrar, mostra-se, seu olhar, seus
desejos, seus sentimentos se inserem na intenção de dar voz aos sujeitos da
pesquisa, uma voz recortada pela sua voz como narrador personagem, não
onisciente, no cenário da pesquisa.
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Desta forma, a pesquisa com os sujeitos também se volta para o narrador
(pesquisador), numa dialética de construções e, porque não dizer que ela se volta a
todos que direta ou indiretamente participaram dela, leram-na ou, ainda, no desejo
implícito, da construção dos que ainda a lerão.
Nesta importante relação que a pesquisa causa e, causou, entre pesquisador
e sujeitos, passo a abordar, neste contexto, um pouco da história desta
pesquisadora, que iniciou antes da pesquisa, mas, interligou-se a ela de maneira
muito expressiva.
Assumo, então, neste presente momento, como pesquisadora (narradora), a
responsabilidade de conduzir o leitor no tempo, realizando recortes significativos
entre o passado e o presente expressos em minha vida, no intuito de apresentar-me
nas múltiplas relações sociais que me fizeram, das quais internalizei valores e me
tornei, torno-me e tornar-me-ei um ser humano, profissional.
Desta forma é que procuro desvelar o “outro”, o outro que me significou, meus
“eus” ocultos que tento, aqui, revelá-los, para, diante destas memórias,
compreender-me, revelar-me.
Tomo a palavra, em um primeiro momento e o desafio de morrer
metaforicamente, como em Memórias póstumas de Brás Cubas:
“Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na
composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas
miniamente extenso [...]. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-
me a tarefa [...]” (ASSIS, 1989, p.16).
Em um segundo momento, atento-me em percorrer o “outro”, então:
Devo identificar-me com o outro e ver o mundo através de seu sistema de valores, tal como ele vê; devo colocar-me em seu lugar, e depois, de volta ao meu lugar, contemplar seu horizonte com tudo o que se descobre do lugar que ocupo fora dele; devo emoldurá-lo, criar-lhe um ambiente que o acabe, mediante o excedente de minha visão, de meu saber, de meu desejo e de meu sentimento (BAKHTIN, 1997, p. 45).
Devo, posteriormente à morte, tornar-me à vida como narradora personagem,
nem sempre onisciente, mas, no momento, pesquisadora de meu cotidiano
profissional, formado pelos/nos múltiplos caminhos percorridos em minha vida, eis o
meu compromisso!
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Nesta viagem, voltamos todos para o túnel do tempo, olho-me criança. Aos
cinco, quase seis anos, eu ainda não ia à escola, porém, a escola vinha até mim,
brincávamos, eu e os meus amigos, as crianças da vizinhança e, como sempre, já
era professora, pois meus colegas acreditavam que eu já sabia ler, como eles
acreditavam, eu lia as histórias para eles.
Lia as imagens atentamente e, às vezes, percebia que o livro estava de
ponta-cabeça, tratava logo de arrumá-lo, inventava uma peripécia em minha
narrativa e, então, ríamos despercebidos, na continuidade contemplativa da história.
A escola já assumia um caráter importante em minha vida, pois era a caçula e
meus irmãos já estavam no primeiro e segundo ciclos do ensino fundamental, o
desejo de ir à escola já me fascinava.
Não fiz pré-escola aos seis anos na educação infantil que, naquela época,
funcionava na rede estadual, porém, ao entrar na minha primeira série do ensino
fundamental, aos sete anos completos, fugia, às vezes, para o imenso jardim da
escola, demarcado pelas grandes janelas das salas, fugia com a desculpa de ir ao
banheiro, mas, o que eu queria mesmo era espiar a sala da pré-escola.
Nela, tudo era mágico, as cores, os desenhos, as mesinhas, as cadeirinhas,
parecia um mundo encantado!
Esse foi o meu primeiro encontro, às escondidas, com a Educação Infantil, eu
a fitava de longe, chegava mais perto e a espreitava pela janela, não entendia de
metodologia, didática, prática, teoria, mas, aqueles objetos pareciam ter vida, um
ambiente onde tudo podia acontecer e acontecia em minha mente.
Estudei por longos oito anos na mesma escola pública, cada canto dela se
traduzia em experiências mil.
O banheiro, ah!, o banheiro era o ponto de encontro das meninas, um espaço
sem limites onde corríamos, dançávamos, trocávamos vivências, nossas e alheias,
avenças e desavenças, tudo nos importava e tudo tratávamos em uma liga feminina
secreta no banheiro.
A educação física, o voleibol, os campeonatos, as apresentações,
encerravam-se numa dimensão imensurável, mexiam com nossos corpos,
realmente, fisicamente, agitavam-nos e, mexiam com nossas mentes, pensávamos,
planejávamos tudo para o grande dia e todo dia era um grande dia!
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A compreensão do acontecimento escolar para o discente é completamente
diferente do que é o acontecimento para o docente, mas, talvez, uma aproximação
entre esses sujeitos possa contagiá-los, afetá-los e ampliar esses (seus)
acontecimentos, re/significá-los, re/dimensioná-los em acontecimentos singulares e
humanos.
Os grandes dias se somaram e essa soma, consequentemente, conduziu-me
à oitava série. Nela vivi conflitos e sonhos, esses, pela preparação da festa, do
vestido, do discurso de formatura, do anel, aqueles, pela perda irreparável da
separação.
As escolas eram estruturadas para atender até o término do ensino
fundamental, o ginásio; para sua continuidade, o colegial, devíamos prestar
vestibulinho com apenas três opções de escola na cidade, processo que me resultou
a separação irreparável do espaço físico e humano entre mim e minha escola.
Toda separação nos oferece duas vertentes consecutivas, ou seja, uma,
vivida pela dor profunda da perda, pela revolta, pela saudade e, outra, seguida das
possibilidades, do novo, do re/construir-se necessário, inerente e vital, pois o tempo,
“o tempo não para” (BRANDÃO e CAZUZA, 2001, p.199) e nos imprime,
obrigatoriamente, a continuidade da vida.
Conheci, então, silenciosamente, observadora do espaço que me rodeava, o
outro lado da escola, no qual Graciliano Ramos pode tão bem definir em Infância:
O lugar de estudo era isso. Os alunos se imobilizavam nos bancos: cinco horas de suplício, uma crucificação. Certo dia vi moscas na cara de um, roendo o canto do olho, entrando no olho. E o olho sem se mexer, como se o menino estivesse morto. Não há prisão pior que uma escola primária do interior. A imobilidade e a insensibilidade me aterraram. Abandonei os cadernos e as auréolas, não deixei que as moscas me comessem (RAMOS, 1994, p. 188).
Foi emoldurada por esse cenário que passei, na última carteira, a ver moscas
pousando pela sala de aula da nova escola, através de um discurso pedagógico
distante, com certa imobilidade e insensibilidade.
Como resultado, procurei, prontamente, dentro de mim, duas personagens
que compuseram a cena separadamente, uma, a indiferente e, outra, a revoltada.
A passagem por essa escola durou dois anos, o primeiro correspondia ao
básico do ensino médio, equivalente a todos os alunos, mesmo aqueles que se
embrenhavam nos diversos cursos técnicos, somente disponíveis a partir do
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segundo ano, do qual eu fiz parte, numa escolha coletiva de minha família, é sempre
bom para as meninas fazerem o magistério, diziam minha mãe e minha tia.
Assim, éramos treinadas, vespertinamente, a criar moscas, realizávamos,
também, aulas de confecção de cartaz de pregas, caderno de caligrafia, datas
comemorativas, conteúdos programáticos, além de aulas especiais sobre como
apagar a lousa, com procedimentos ordenados pela lateralidade, uma inconsciência
transmissível, a cegueira humana que acomoda o olhar e apaga as lembranças:
A cegueira, sem dúvida alguma, uma terrível desgraça, poderia, ainda assim, ser relativamente suportável se a vítima de tal infelicidade tivesse conservado uma lembrança suficiente, não só das cores, mas também das formas e dos planos, das superfícies e dos contornos, supondo, claro está, que a dita cegueira não fosse de nascença. Chegara mesmo ao ponto de pensar que a escuridão em que os cegos viviam não era, afinal, senão a simples ausência da luz, que o que chamamos cegueira era algo que se limitava a cobrir a aparência dos seres e das coisas, deixando-os intactos por trás de seu negro. Agora, pelo contrário, ei-lo que se encontrava mergulhado numa brancura tão luminosa, tão total, que devorava, mais do que absorvia, não só as cores, mas as próprias coisas e seres, tornando-os, por essa maneira, duplamente invisíveis (SARAMAGO, 1995, pp.15-16).
Tateando, fugi para outra escola, fui quase salva pela visibilidade da nova
escola que agora frequentava, sem traumas de passagem, em suas aulas, pude,
primeiramente, ouvir trocas de experiências, dúvidas, depois, sem desconfianças,
participar do grupo, isso não foi suficiente para não pensar na cegueira que
aprendera, resisti às moscas, terminei o terceiro ano e fui fazer cursinho. Dizia a mim
mesma numa convicção protetora: quero outra profissão.
Entretanto:
No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra (ANDRADE, 2000, p. 433).
Tornei-me mãe no meio do caminho, fato que me trans/formou a cada dia e
me guiou em todas as escolhas realizadas. Em todo o meu cultivo, três flores
habitaram meu ser, interno e externamente, tomaram minha vida para sempre e me
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guiaram por todos os momentos, marcando afetos, nem sempre harmoniosos,
contudo, indiscutivelmente, afetos.
A pedra que encontrei no meio do caminho era preciosa e, por isso, fez-me
voltar e terminar o magistério, ainda, no mesmo ano e, para além do tempo, tinha
agora a oportunidade de regressar, como professora, para a minha escola.
Em meu primeiro dia docente na minha escola de origem, orgulhosíssima,
corri, coração palpitante, ver o banheiro.
O inesquecível banheiro, ah!, o banheiro, agora, era apenas um banheiro,
pequeno, sem liga feminina, um lugar onde eu, adulta, o via sem novidades.
Dei-me conta do que era ser criança, a criança como eu fui naquele banheiro
não admitia a cegueira, via nas várias dimensões espaciais as possibilidades do
acontecimento que eu, agora, adulta, só me deparava, apenas, com um banheiro.
Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como acontece com o amor. Assim, as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade [...] Se a gente cavar um buraco ao pé da goiabeira do quintal, lá estará um guri ensaiando subir na goiabeira. Se a gente cavar um buraco ao pé do galinheiro, lá estará um guri tentando agarrar no rabo de uma lagartixa. Sou hoje um caçador de achadouros da infância. Vou meio dementado e enxada às costas cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos [...] (BARROS, 2003, p. 14).
Percebi, então, que a infelicidade da constatação poderia ser reparada
através de minhas lembranças, por algum tempo me refugiei nelas, cada processo é
um processo indistinguível, significativo, único e próprio, o qual, para mim,
evidentemente, marcara a busca do sentido da escola na compreensão mútua do
fazer-se professora para o outro, portanto, para mim. O crime e o castigo unidos ao
ser que “apegou-se a essa ideia, e se pôs a remexê-la, a revirá-la em todos os
sentidos com um acre de prazer” (DOSTOIÉVSKI, 2010, p. 368).
A ideia que passei a percorrê-la, a remexê-la, a revirá-la e que se uniu a mim,
descobriu-me e, eu, descobri-la, ela, a ideia da busca de um sentido maior do
espaço escola, passou, então, a percorrer-me, remexer-me, revirar-me.
Neste propósito, segui como professora de ensino fundamental ciclo I, depois
tive a oportunidade de efetivar-me, em concurso público municipal, como professora
19
pré-escola1.
Lembro-me dos dois primeiros anos iniciais como professora de educação
infantil, escolhi um lugar muito diferente, chamava-se Escola isolada2, assustei-me
ao primeiro olhar, ele foi longínquo, quando olhamos de longe, de fora, não
captamos os sentimentos mais singulares, mais simples, porém, depois, fascinei-me.
O lugar era em uma periferia ainda sem condições básicas de saneamento,
sem asfalto, transporte coletivo.
O prédio, utilizado para missas e outros eventos, era um salão comprido,
escuro, sem cor, tomava o terreno inteiro. Os vitrôs, todos do lado esquerdo, ficavam
paralelos aos muros vizinhos, na mesma altura, não havendo, assim, circulação de
ar, além da cobertura de telhas de cimento que aquecia ainda mais o espaço que
contava com apenas uma entrada, a da frente.
Tudo isso demarcado pelo pé do morro, um “buraco” onde havia um córrego
mal cheiroso e terrenos baldios.
As mulheres se acocoravam nas frentes das casas de madeiras e remexiam
as cabeças das crianças retirando bichos voadores. As crianças corriam nuas pelo
chão de terra e brincavam sem se incomodar com seus narizes a escorrer.
As casas, partes de madeira e partes de tijolos, eram estranhamente
futuristas, pois reservavam uma estrutura de cimento no chão, até mesmo as só de
madeira, que garantia a segurança de uma antena parabólica, assim, todas
possuíam aqueles discos voadores maiores que seus telhados.
Desta forma, no período da tarde, na Terra dos Meninos Pelados (RAMOS,
2002), eu realizava as atividades escolares com as crianças e, inicialmente, fazia o
lanche, servia e limpava, depois pude contar com a colaboração da comunidade, até
que, meses mais tarde, a escola recebeu uma funcionária.
Na hora marcada, quando eu aparecia lá no topo do morro, as crianças
subiam correndo me encontrar e levavam minha bolsa, livros, seguravam na minha
mão, na mão de minhas filhas (que iam para a escola comigo) e desciam felizes,
imponentes.
1 Nomenclatura referente ao concurso público municipal de professores que se destinavam a trabalhar
com crianças de 6 anos e que, atualmente, readequando-se à LDBEN/96, trabalham com a faixa etária que se refere a 4 e 5 anos. Este cargo se encontra em extinção. 2 Nome dado às classes isoladas de pré-escola que funcionavam em lugares improvisados.
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Em Tatipirun, na Terra dos Meninos Pelados, onde “todos os caminhos são
certos... As crianças dançavam e cantavam, enfeitadas de flores, agitando palmas”
(RAMOS, 2002, pp. 3 e16) e ali, na educação infantil, faltando quase tudo, eu fui
muito feliz, eu fui a professora do “prezinho” deles e isso tinha muito valor, muito
valor.
Mas, depois de dois anos, tive que partir, a Prefeitura investiu na construção
de uma creche e levou as crianças e eu deixei e levei corações que guardo até hoje
em minhas lembranças.
Fui para uma escola que se distanciava uns dois bairros dessa, uma escola
grande, onde havia crianças de 3 meses a 6 anos, em um bairro populoso, cheio de
crianças que enumeravam as listas de espera para conseguir uma vaga.
Encontrei, ali, pessoas rígidas, desconexas da educação infantil que eu vivia,
elas aplicavam sempre uma pedagogia da espera centrada em uma rotina do adulto.
As crianças praticamente não existiam no planejamento das atividades,
apenas cumpriam os horários fixos, inflexíveis.
Negava esta escola todos os dias, lembrava da Terra dos Meninos Pelados,
chorava, mas voltava para ela e, assim, permaneci, depois criei coragem e comecei
a interagir com o grupo, tentando “mudá-lo”, logo, já era chamada por todos para
opinar, dar sugestões e percebi que as pessoas não faziam melhor porque não
sabiam.
Naquele tempo, não tínhamos um horário coletivo para estudo, mas,
tentávamos, por meio da rotina, aproximar-nos de uma melhora, de um projeto.
Permaneci, ali, por três anos como professora e, depois, prestei concurso e
assumi o lugar da diretora que havia se aposentado, então, criei um grupo de
“verdade”, ao qual estive por mais dez anos enlaçada em um pertencimento que
perdura, mesmo com minha saída circunstancial para a escola atual, onde, também,
trabalho como diretora.
Minhas primeiras ações, nesta escola “inflexível”, foram na direção de uma
interação com o objetivo de formar um coletivo que considerasse a criança como o
sentido das nossas atividades na escola.
A rotina rígida foi aos poucos se moldando em prol da infância, os portões
foram se abrindo para que os familiares pudessem adentrar a escola e deixar seus
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filhos às respectivas educadoras, já que percebi que se passava todo o ano e os
pais não sabiam, nem ao menos, os nomes delas.
As bolsas deixaram de ser revistadas no portão e as necessidades delas
estarem em ordem passaram a ser conversadas com as famílias.
Muitas atividades, nesse sentido, foram sendo realizadas pelo grupo e a
escola passou a conceber outros olhares, porém, os confrontos e conflitos entre
escola e família sempre aconteciam, girando em torno das necessidades de educar
e cuidar, os quais faziam parte central da pauta de desenvolvimento das reuniões.
Ao entrar na primeira escola isolada de educação infantil, eu já tinha o curso
de Pedagogia. Um ano antes de me tornar diretora, muito ligada à literatura, resolvi
cursar Letras, um curso que me transformou, pois, entrei uma pessoa e saí outra.
A arte da expressão, da compreensão, da cultura, de ver o mundo, adentrou-
me e criou um universo de possibilidades das quais compartilho, também, como
professora efetiva de Língua Portuguesa na rede estadual.
Assim, neste encaminhamento, dos mais diversos olhares que me
constituíram, proporcionado pelos diferentes lugares ocupados na escola, o de
criança me permitiu o viver fluído, o agir imanente ao ser.
Entretanto, foi na primeira vez que retornei à escola da minha infância, adulta,
professora, que pude constatar a necessidade de compreensão do acontecimento
infantil, tão diferente, tão próprio, tão intrínseco à minha experiência de infância.
Hoje, há mais de uma década na direção da educação infantil, acumulei duas
experiências em grupos diferentes: a primeira, ainda no desabrochar, o amor à
primeira vista, flertamos, namoramos e casamos, um pertencimento de dez anos que
se fundiu no desejo da realização educacional; a segunda, há quatro anos, encontra-
se na fase adulta, funde-se a uma ideia que me percorre, o desejo da compreensão
para a realização educacional.
Todavia, ambas se produziram no trabalho intenso junto aos confrontos e
conflitos da relação família e escola envolta pelo binômio educar e cuidar.
Relação da qual se tornou o cerne da minha atividade profissional, tanto a
família quanto a escola necessitam sempre de intervenção para harmonizar uma
relação de conflitos e confrontos que permeiam o educar e cuidar da mesma criança.
Como diretora, encontrei-me com antíteses, conflitos, dualismos, a cara e a
coroa, os inevitáveis lados do processo educacional, crime e castigo inerentemente
22
vitais, dos quais, o apego à ideia da compreensão, da responsabilidade do fazer-se,
instituiu o combustível ao questionamento e à busca da pesquisa.
Inserida em um novo grupo, continuei com a responsabilidade de realizar a
formação continuada desse e, também, a minha.
Acumulando mais de vinte anos de experiência na educação infantil, percebi
que precisava compreender melhor o que fazíamos, compreender esse grupo de
professoras do qual faço parte e que, guardando sua originalidade, suas
peculiaridades, em muito, ora se repete a outros grupos.
Compreender sua formação, sua rotina nas atividades docentes e,
principalmente, compreender os inevitáveis confrontos e conflitos das relações entre
família e escola, permeadas pelo educar e cuidar (questão que foi se clareando mais
a partir da pesquisa), dos quais eu sempre tive que intermediar um desenvolvimento
mais harmônico.
Marcada por essa intermediação e pela responsabilidade da formação
continuada do coletivo escolar, busquei pesquisar o meu grupo de trabalho como
aluna da pós-graduação do Curso de Mestrado, do Núcleo de Formação de
Professores.
Acredito, também, que, neste processo, pesquisar-me, pois, “todo
conhecimento que criamos/inventamos revela, em parte, quem somos. As verdades
que produzimos são fragmentos de nossas verdades/identidades” (FERRAÇO, 2002,
p.92).
Inicialmente, essa ideia se colocou em uma turbulência, depois, em uma
neblina alva que me absorvia a visão, até ir se formando, modelando-se, clareando e
surpreendendo-me em uma compreensão mútua sobre o grupo e, sobre mim
mesma, sobre minha formação, meus conflitos e minhas possibilidades como
profissional.
O desenvolvimento da pesquisa que constitui como aluna da pós-graduação,
constituiu-me a percepção de que ocupei na escola diversos papéis, fui aluna do
ensino fundamental, magistério, cursinho, universitária, fui professora de educação
infantil, de ensino fundamental ciclo I, II, nível médio, diretora e, agora, pesquisadora
como mestranda.
23
Assim, tomei consciência de que a grande maioria das minhas relações
significativas se liga à escola de alguma forma. Minha vida foi, é e será muito
fortemente marcada pela relação com a escola.
O encaminhar da pesquisa gerou o desvelar do meu processo de constituição
profissional. Quanto mais eu tentava entender os questionamentos da investigação
da pesquisa, planejava seus encaminhamentos, mais eu me fundia a ela, anexava-
me nesse caminhar, cada passo dado, um descortinar de aproximações.
Notei que, até mesmo no lazer com os amigos, trocamos idéias a respeito da
escola, ou seja, do que aconteceu nela, de quem trabalha, estuda nela.
Descobri, então, que eu pertenço à escola em uma trajetória que se entrelaça
em diversos papéis, portanto, diversos olhares.
Entrei pela primeira vez, oficialmente, na escola, aos sete anos e estou nela
há mais de três décadas, a relação mais duradoura que estabeleci depois da minha
família.
Nela fui feliz, triste, apática, amiga, inimiga, sonhadora, realista, crítica,
permissiva, amável, amarga, menina, adolescente, mulher, mãe...
Compreendi que, ao pesquisar a escola, também me pesquiso, ao constituir a
escola, também me constituo, ao interessar-me pela escola, também me interesso
por mim mesma, ao desejar melhorar a escola, também desejo melhorar-me.
Inevitavelmente, interpretei-me, meu processo de narrativa gerou uma
pesquisa complexa de minha constituição profissional. Minha história de vida,
certamente aqui recortada, teceu-se por inúmeras relações intermediadas pela
escola, logo, descobri-la, descobrindo-me, amparada pelos fatos que conceituaram a
escola em minha vida.
Como uma tecelã na feitura de minha constituição, a escola se pôs na
direção, na escolha, no manuseio dos fios que me entrelaçaram a ela e
proporcionaram a consciência de que, na verdade, entre o “eu” e o “outro” (escola)
transcende uma relação dialética que se afirma, nega-se, mas sempre acaba me
sintetizando a ela.
E é com essa consciência que encaminho esta pesquisa nas questões
relacionadas ao entendimento das especificidades da educação infantil,
principalmente nos temas que abordam a relação família e escola, envolta pelo
educar e cuidar.
24
Assim, aceitei o imenso desafio colocado, pesquisar meu próprio grupo de
trabalho, no horário de formação continuada no/do contexto escolar, re/conhecer
cada sujeito, no que permite o contexto, estar unida ao contexto e, depois, num
esforço enorme, distanciar-me dele para melhor compreendê-lo e teorizá-lo.
Desafio que me trouxe, como pesquisadora, dois lados: a facilidade de estar a
todo tempo no campo da pesquisa e o esforço para poder compreender e
sistematizar a escola como espaço e tempo de produção de conhecimento.
Acolhi o desafio e iniciei a pesquisa com as professoras, mais tarde, também,
com as estagiárias, no Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC)3.
A relevância de se construir essa pesquisa se fez na intenção de
compreender as perspectivas das professoras sobre a relação entre família e escola,
uma relação importante para o desenvolvimento integral da infância.
Neste fazer-se, a pesquisa assume a abordagem histórico-cultural, o qual
acredita que o ser humano se constitui através das relações sociais (VYGOTSKY,
1998), permeadas pela linguagem na mediação semiótica (BAKHTIN, 2006), ou seja,
o outro significando o mundo ao eu.
No primeiro capítulo, “A Construção Social da Família, da Infância e da
Escola: algumas considerações”, rumo à compreensão da relação família e escola
contemporânea, evidencia-se um estudo histórico da formação do sentimento de
família, infância e da consequente organização escolar que se abre junto à obra de
Philippe Ariès (1981), “História Social da Criança e da Família”, depois, segue-se na
discussão das transformações dessas duas instituições educacionais.
Ainda nesse capítulo, compreendendo a construção histórica e suas marcas,
o texto aborda “O contexto histórico da educação infantil no Brasil”, composto pelas
fases higienista e assistencialista e suas influências, passadas e presentes, na
educação infantil.
Presente neste contexto, destaca-se uma reflexão sobre a indissociabilidade
do educar e cuidar como eixo do desenvolvimento da infância em “Educar e cuidar:
uma relação complementar”.
Na sequência, o capítulo dois, “O professor de Educação Infantil e seu
processo de formação”, realiza-se uma discussão sobre a profissionalização inicial e
3 O Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC) faz parte da carga horária de trabalho das
professoras municipais, sendo realizado por duas horas, às segundas ou terças-feiras, inversamente ao horário de trabalho com as crianças.
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continuada da docência da infância junto aos avanços e retrocessos históricos da
educação infantil brasileira.
Entre entendimentos e desentendimentos que constituem a formação inicial, a
especificidade dessa docência se situa em um campo de marcas históricas que
dicotomizam a prática do educar e cuidar e que se reflete em todas as suas
relações.
Todavia, a ideia de inconclusão do ser humano leva à perspectiva da
formação continuada do professor de educação infantil dentro do contexto escolar,
marcada pela reflexão crítica de sua própria prática e pelo diálogo junto a seus
pares, à teoria, às famílias, às crianças.
No capítulo três, “Tecendo a História da Pesquisa”, relata-se o referencial
metodológico da pesquisa, localizando-a na perspectiva histórico-cultural, nas
teorias de Vigotski4 (1995, 1998, 2000, 2001), Bakhtin (1981, 1997, 2006), Freitas
(2002, 2003), entre outros autores que destacam a ideia da constituição humana a
partir da interação social, um processo permeado pela linguagem como mediadora
de significação, ideologia e dialogia da língua.
Na continuidade, a escrita se remete ao contexto da pesquisa, expondo seus
objetivos e justificando sua relevância na explicitação da questão central, além de
subdividir-se na descrição da escola pesquisada, dos sujeitos e, na narração da
pesquisa de campo.
O capítulo quatro, “A relação de complementaridade entre família e escola: as
perspectivas das professoras”, segue com a apresentação dos dados interpretados
sob a ótica histórico-cultural.
A leitura das significações das professoras sobre a relação de
complementaridade das instituições educadoras família e escola se abre, para
apresentação e aprofundamento, na sistematização de duas categorias,
tematizações.
A primeira: “A família imaginada pelas professoras: perspectivas sobre a
relação de complementaridade”, as professoras, ao estabelecerem suas
perspectivas sobre a relação de complementaridade entre a família e escola,
expressam um desejo de padronização, tanto da família, quanto da escola.
4 Vigotski: segue a escrita desta forma, toda vez que a pesquisadora se referir ao autor, nas demais
citações, segue-se a forma idêntica à escrita da obra citada.
26
A visualização da família, pelas professoras, constrói-se através de um
modelo hegemônico, nuclear, ainda que considerando as transformações histórico-
culturais, revelando, consequentemente, uma concepção de criança dependente do
adulto, assim, as perspectivas se pautam no que falta à criança.
Nas perspectivas docentes, fundamentadas a partir de um modelo
hegemônico de família, mesmo diante das constantes transformações, ocorrem a
divisão dos papéis dessa relação, atribuindo-lhes juízos de valor.
Consequentemente, as professoras destacam ambiguidades nas
especificidades docentes. À escola cabe o papel de ensinar conteúdos formais da
infância e, à família, educar com valores (“pré-estabelecidos”) e dispensar cuidados
(físicos) a seus filhos.
O segundo tema: “Educar e cuidar: uma perspectiva de complementaridade
ao ensinar”, as professoras, na continuidade das ambiguidades consequentes à
divisão de papéis, atribuem, às especificidades docentes, a preocupação da
atividade de cuidar (do físico) como um conteúdo sobre “noções de higiene”,
formando, assim, o binômio ensinar e cuidar.
Este binômio atende às mesmas perspectivas da divisão de papéis, à escola
de educação infantil cabe o cuidar do aspecto físico, didaticamente, atendendo a
proposta de ensinar conteúdos, como noções de higiene. Assim, ensinar e cuidar se
complementam como especificidade junto ao papel da escola de educação infantil,
nas perspectivas das professoras.
O texto, ainda, desenvolve suas Considerações Finais, nas quais as análises
são retomadas e conectadas à pesquisa do termo complementaridade.
As significações que as professoras conferem às perspectivas sobre a relação
de complementaridade entre família e escola concedem tarefas às duas instituições,
dividem seus papéis, diferindo do significado atribuído ao termo na etimologia desta
palavra que afere a ideia de todo e não de partes na divisão dessa relação junto ao
objetivo comum de educar e cuidar integralmente da infância.
As padronizações, ainda que com referências de mudanças transcorridas no
tempo, do modelo de família, de escola e, os conflitos e ambiguidades sobre as
especificidades docentes revelam o percurso histórico-cultural das professoras e
remontam, desta forma, um quadro desafiante de emergências à formação
continuada.
27
Nesse sentido, o processo de pesquisa trouxe, a todos os envolvidos, uma
complexidade de aprendizagens, em especial, à pesquisadora, uma imensurável
formação no campo profissional e, também, humano, já, para o grupo investigado, a
imprescindível compreensão da necessidade da Formação Continuada na complexa
constituição profissional do professor de Educação Infantil contemporâneo, o que
demonstra ser a pesquisa, em Ciências Humanas, uma fonte inesgotável de
aprendizagens que pode ser compartilhada.
A finalização do processo de pesquisa se transforma, ainda, em um convite
ao leitor para que, através da Literatura, o tema da Infância, no pensar na relação
família e escola e no binômio educar e cuidar, continue sendo refletido, interpretado.
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CAPÍTULO I
A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FAMÍLIA, DA INFÂNCIA E DA
ESCOLA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Mire, veja: o mais importante e bonito do mundo é isto: que as pessoas não
estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão
sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me
ensinou. (ROSA, 1994, pp. 24-25)
A história social se desenvolve em meio a aspectos políticos, culturais e
econômicos, os quais influenciam sua construção e, também, são influenciados.
Assim, para conhecer o ser humano, é preciso estudar a sua história
individual construída através da história coletiva, o que implica recortar a macro
história para compor um entendimento da micro história, ou seja, um estudo
histórico, pois “estudar alguma coisa historicamente, significa estudá-la no processo
de mudança; esse é o requisito básico do método dialético” (VYGOTSKY, 1998, p.
74).
Nesta perspectiva, busca-se, neste capítulo, uma reflexão da história da
educação infantil, dentre um panorama histórico maior, visando à compreensão de
sentidos que abarquem e promovam significações para a questão proposta nesta
pesquisa, em especial, sobre a relação entre família e escola na perspectiva de
professores de educação infantil, visto que, a educação infantil não é tarefa
exclusiva da escola, mas reconhecida, legalmente, na ação de complementaridade
entre ambas as instituições.
A compreensão da relação família e escola só pode ser entendida através de
uma análise histórica que possibilite a percepção de que, tanto a família, quanto a
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escola se dispõem em uma organização histórica de reflexo social, político,
econômico e cultural a que estão inseridas.
Essas questões influenciaram estas instituições causando modificações no
tempo passado e, ainda, causam-nas no presente, refleti-las podem traduzir seus
confrontos e conflitos vivenciados nos dias atuais.
Tomar consciência de que a educação infantil se encontra num contexto
contemporâneo, com valores pré-estabelecidos, significa olhar para o presente como
resultado de um decurso passado, do qual sua compreensão se abre às
possibilidades de interferências nas ações futuras junto a um panorama social que
se transforma e é transformado.
Desta forma, esse capítulo se inicia com um estudo da obra de Philippe Ariès
(1981), “História Social da Criança e da Família”, do qual se depreende o percurso
histórico da construção da família, do sentimento de infância e, consequentemente,
da organização da instituição escolar.
Apontamentos, esses, que revelam a ideia de não naturalização da existência
da família, da infância e da escola, mas, de uma construção social marcada por
mútuas interferências, transformações, principalmente na contemporaneidade,
todavia, ainda guardando resquícios históricos no imaginário social.
Entre a família e a escola, mantêm-se uma relação, às vezes ubíqua, outras
mais discretas, já que, em meio a essas duas instituições sociais educadoras,
perpassa a educação e o cuidado da mesma criança.
Ao estudar a formação histórica dos laços de família e da constituição de
escola para possíveis entendimentos e reflexões de questões contemporâneas
dessa relação, vislumbra-se o surgimento do sentimento de infância e, com ele, o
nascimento da instituição escolar.
Além disso, a escrita traz uma discussão sobre as transformações sociais
destas duas instituições e a relação que as permeiam no contexto contemporâneo,
demarcando influências mútuas.
Neste encaminhamento, o texto contempla, em uma segunda parte, o
contexto histórico da educação infantil no Brasil, abordando as fases higienista e
assistencialista, além de um estudo sobre o tema educar e cuidar.
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1.1- O Sentimento de Infância na construção da relação
Família e Escola
Em História Social da Criança e da Família, Philippe Ariès (1981) afirma que o
sentimento de família, que surge no século XVII, torna-se inseparável do sentimento
de infância.
A análise iconográfica realizada pelo autor revela que o sentimento de família
era desconhecido na Idade Média, do qual os historiadores declaram que:
os laços de sangue não constituíam um único grupo, e sim dois, distintos, embora concêntricos: a família ou mesnie, que pode ser comparada à nossa família conjugal moderna e, a linhagem, que estendia sua solidariedade a todos os descendentes de um mesmo ancestral (Ibidem, p. 211).
A composição da família ou mesnie era formada pelos membros que residiam
juntos, individualmente ou em pares, casais que possuíam um patrimônio cujos
moradores se negavam a dividi-lo.
A indivisão da família, que o estudo afirma não durar mais que duas
gerações, originou as teorias tradicionalistas do século XIX sobre a grande família
patriarcal, da qual se conclui: “A família conjugal moderna seria portanto a
consequência de uma evolução que, no final da Idade Média, teria enfraquecido a
linhagem e as tendências à indivisão” (Ibidem, p. 211).
Já que, no século X, a simples célula conjugal, prolongada por pouco tempo
após a morte dos pais, separava-se, amparados pelos órgãos de paz do velho
Estado5 franco que permitia “ao homem livre viver uma vida independente e preferir,
se assim o desejasse, a companhia de seus vizinhos e amigos à de seus parentes”
(Ibidem, p. 211).
No entanto, a indissolução do velho Estado franco obrigou a um agrupamento
mais estreito, devido a necessidade de proteção, formando, também, a indivisão dos
bens dos dois cônjuges, fato em que, anteriormente, dava-se de forma separada.
5 Nomenclatura utilizada pelo autor para designar a organização política desta periodização.
31
Toda essa política de organização familiar acontecia junto à nobreza, visto
que a família camponesa substituía o vazio da dissolução do Estado franco, de
forma que:
a tutela do senhor havia substituído imediatamente a proteção dos poderes públicos, e a comunidade aldeã havia fornecido aos camponeses um quadro de organização e de defesa superior à família. A comunidade aldeã teria sido para os camponeses o que a linhagem foi para os nobres (ARRIÈS, 1981, p. 212).
Explica Ariès (1981) que, a reorganização de questões políticas e econômicas
do século XIII trouxe uma nova inversão dos laços familiares conjugais, tornando-os
novamente independentes, contudo, a nobreza não a adere e estreita seus laços,
suas indivisões patrimoniais e a autoridade patriarcal, advinda da necessidade de
manter a integridade indivisa do patrimônio.
É dessa forma que a comunhão de bens e a primogenitura (privilégios do filho
mais velho) se difundem nas famílias nobres, o que atribui autoridade paterna e
garante a continuidade perante os filhos.
Ariès cita Georges Duby ao concluir que:
Na realidade, a família é o primeiro refúgio em que o indivíduo ameaçado se protege durante os períodos de enfraquecimento do Estado. Mas assim que as instituições políticas lhes oferecem garantias suficientes, ele se esquiva da opressão da família e os laços de sangue se afrouxam. A história da linhagem é uma sucessão de contrações e distensões, cujo ritmo sofre as modificações da ordem política (Ibidem, p. 213).
A história da Idade Média é composta, então, por um sentimento de linhagem,
ao qual os historiadores de direito se ativeram e, uma comunidade familiar,
escapada aos historiadores e muito diferente do qual conhecemos, de uma ligação
de administração da casa dada ao marido, esclarecimento que Ariès atribui ao
resumo de M. Pelot:
A partir do século XIV, assistimos uma degradação progressiva e lenta da situação da mulher no lar. Ela perde o direito de substituir o marido ausente ou louco... Finalmente, no século XVI, a mulher casada torna-se uma incapaz, e todos os atos que faz sem ser autorizada pelo marido ou pela justiça tornam-se radicalmente nulos. Essa evolução reforça os poderes do marido, que acaba por estabelecer uma espécie de monarquia doméstica. A partir do século XVI, a legislação real se empenhou em reforçar o poder no que concerne ao casamento dos filhos. Enquanto se enfraquecia os laços da linhagem, a autoridade do marido dentro de casa tornava-se maior e a mulher e os filhos se submetiam a ela mais estritamente. Esse movimento
32
duplo, na medida em que foi o produto inconsciente e espontâneo do costume, manifesta-se sem dúvida uma mudança nos hábitos e nas condições sociais... Passara-se, portanto, a atribuir à família o valor que outrora se atribuía à linhagem. Ela torna-se a célula social, a base dos Estados, o fundamento do poder monárquico (ARRIÈS, 1981, p. 214).
Quanto à Igreja, Ariès (1981) ressalta que, durante muito tempo, o casamento
foi apenas um contrato, sua cerimônia não era realizada no interior da Igreja, mas na
sua entrada, já que a Igreja considerava o casamento uma questão de último caso,
“uma concessão à fraqueza da carne. Ele não livrava a sexualidade de sua impureza
essencial” (p. 215). Essa reprovação não chegava à condenação do casamento,
mas, à desconfiança.
O reconhecimento do casamento perante a Igreja só se deu, conforme Ariès
(1981), após o tempo de importantes leigos, significativos à Igreja, devotados às
atividades religiosas, teológicas, espirituais e místicas.
Assim, após passar por muitas transformações de ordem política, cultural e
econômica, o conceito de família, segundo Ariès (1981), surge na França, no final do
século XVII, compondo uma formação nuclear: um homem, uma mulher e seus filhos
vivendo em um mesmo ambiente, preservando a privacidade, a intimidade em
relação aos demais componentes do grupo social.
Anteriormente a esse período, na Inglaterra, por volta do século XV, esse
modelo era inexistente, não admitindo o sentimento de infância contemporâneo, a
criança era vista como um “adulto em miniatura”, sua aprendizagem era realizada
apartada da família, pela comunidade, em um mundo que a colocava no mesmo
plano do adulto, sem considerar suas especificidades infantis:
A falta de afeição dos ingleses manifesta-se particularmente em sua atitude com relação às suas crianças. Após conservá-las em casa até a idade de sete ou nove anos (em nossos autores antigos, sete anos era a idade em que os meninos deixavam as mulheres para ingressar na escola ou no mundo dos adultos), eles as colocam, tanto os meninos como as meninas, nas casas de outras pessoas, para aí fazerem o serviço pesado, e as crianças aí permanecem por um período de sete a nove anos (portanto, até entre cerca de 14 e 18 anos). Elas são chamadas então de aprendizes. Durante esse tempo, desencumbem-se de todas as tarefas domésticas. Há poucos que evitam esse tratamento, pois todos, qualquer que seja sua fortuna, enviam assim suas crianças para casas alheias, enquanto recebem em seu próprio lar crianças estranhas (Ibidem, p. 226).
33
Os ingleses desejavam, assim, que suas crianças aprendessem boas
maneiras, o que significava que a principal obrigação da criança, confiada a um
mestre, era servi-lo bem.
Exaltava-se, nessa época, os serviços domésticos, aos quais não eram
concebido nenhuma repugnância ou degradação. O seviço doméstico era uma
forma de educação e as crianças eram aprendizes desta prática, a participação da
vida profissional se confundia com a vida privada.
Essa aprendizagem era praticada em todas as classes sociais através de uma
ambiguidade entre a criança e o servidor: “Para parecer bem educado, não bastava
como hoje saber comportar-se à mesa: era preciso também saber servir à mesa”
(ARIÈS, 1981, p. 229).
Não havia escola que transmitisse essa aprendizagem, a escola, na educação
medieval, era uma exceção à regra. Em alguns casos, as escolas haviam perdidos
seu caráter empírico se transformando em pedagógicas, como as que ensinavam a
arte de ser um bom caçador, podendo, esta forma, ter influenciado o ensino técnico
da escrita, originando, deste modo, a aprendizagem organizada, escolarizada.
Todavia, a regra geral de aprendizagem de uma geração a outra era
garantida através da participação das crianças na vida dos adultos, sem segregação
de idades iguais, mas, uma mistura entre adulto e criança na vida prática do
cotidiano (ARIÈS, 1981).
As crianças nem sempre voltavam para suas famílias depois de adultas, a
família se constituía como: “uma realidade moral e social, mais do que sentimental”
(Ibidem, p. 231).
As famílias mais pobres se igualvam à garantia de instalação material na
aldeia, na fazenda ou na casa dos senhores, onde permaneciam mais tempo do que
em suas próprias casas, ou, às vezes, estas casas nem existiam.
Assim, o sentimento de família para o rico se convergia à prosperidade
patrimonial, já, para os pobres, era quase que inexistente.
Ariès (1981) manifesta que, a partir do século XV ao XVII, inicia-se uma
profunda e lenta transformação em relação à família, da qual nem os
contemporâneos, nem mesmo os historiadores foram capazes de perceber, um
processo que teve como fato essencial, a frequência escolar.
34
A escola passa, cada vez mais, a ser um instrumento de iniciação social, de
passagem da infância à vida adulta, de tal modo que os educadores começam a ter
uma necessidade nova, de maior rigor de preocupação em:
isolar a juventude do mundo sujo dos adultos para mantê-la na inocência primitiva, a um desejo de treiná-la para melhor resistir às tentações dos adultos. Mas ela correspondeu também a uma preocupação dos pais de vigiar seus filhos de perto, de ficar mais perto deles e de não abandoná-los mais, mesmo temporariamente, aos cuidados de outra família. A substituição da aprendizagem pela escola exprime também uma aproximação da família e das crianças, do sentimento da família e do sentimento da infância outrora separados (ARÌÈS, 1981, pp. 231-232).
Essa transformação, no século XVII, revelou deveres aos pais quanto à
escolha do colégio e do preceptor, à supervisão dos estudos, à repetição das lições,
assemelhando-se ao sentimento da família moderna, da qual a origem parece ter
ocorrido concomitantemente à origem da escola, com o objetivo de educar as
crianças (ARIÈS, 1981).
Nesse encaminhamento, cada vez mais aumentou o número de escolas
organizadas a atender as crianças de forma a não separá-las de seus pais, fato que
não se estendia a todos, como aos mais pobres que continuaram na educação
prática, podendo-se compará-la ao mundo artesanal e, ao do ofício.
As meninas continuaram a serem educadas em casa ou na casa de uma
parenta, vizinhas, ação que só se modificou no final do século XVIII, início do XIX.
A educação das crianças através da escola, de acordo com Ariès (1981),
abarca um fenômeno que comprova a concentração da família na direção da
criança, uma fusão sentimental entre pais e filhos na instituição familiar.
Na concomitante origem da família e da escola, Ariès (1981) declara que os
educadores se sentiram no dever de influenciar os costumes familiares, extinguindo
a primogenitura e instaurando o sentimento de igualdade, equidade de direito à
afeição familiar, evento que mais tarde constituiria o código civil de direitos
familiares.
Com o estabelecimento da escola, Ariès (1981) afirma que, a família e a
escola retiraram a criança da sociedade dos adultos. À escola foi permitido o
confinamento da infância num regime disciplinar, rigoroso que, junto à Igreja e, aos
moralistas, infligiram-lhe o chicote e as mais altas correções e castigos, tudo em
nome de um sentimento de amor obsessivo.
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Uma sensibilidade pela infância que causou o controle de natalidade, no qual
a família se organizou em torno da criança e ergueu, entre ela mesma e a
sociedade, o muro da vida privada.
Esse período desperta uma preocupação da família com o cuidar e educar da
criança, até mesmo de reduzir o número de filhos para oferecer-lhes uma melhor
atenção.
Assim, a criança passa, de um lugar de anonimato social, a ocupar um outro
bem diferente, um lugar de importância na família.
Percebe-se, então, que a formação da família e da escola, bem como o
sentimento de infância que vincula essas instituições foram construídos
historicamente a partir de questões políticas, econômicas e culturais que
despertaram tais necessidades.
Esta ideia afasta a condição natural de existência dessas duas instâncias,
permitindo a reflexão de algumas imposições ideológicas nas concepções
assumidas a partir da relação cotidiana dessas duas organizações históricas da
humanidade.
O sentimento de infância originou, então, a necessidade da organização de
uma escola que permitisse que a família não se apartasse de seus filhos na arte da
transmissão da bagagem cultural humana de geração a geração.
Essa organização foi se modelando de acordo com as necessidades políticas,
sociais, econômicas e culturais da sociedade, um processo que coordenou tanto a
família quanto a escola, transmitindo-lhe obrigações mútuas, disputa de poderes e
efetivações lentas e cumulativas de mudanças transcritas no tempo.
Mudanças que foram re/definindo o conceito de família, ampliando-o junto à
história, até traduzir-se em uma complexa célula que vai além dos laços de
consanguinidade, incluindo diversificadas relações interpessoais (DESSEN e
POLÔNIA, 2007) que se traduzem muito diferentemente do padrão hegemônico da
família burguesa, nuclear, que se tinha, pois:
as famílias foram conceituadas como unidades de reprodução social, incluindo a reprodução biológica, a produção de valores de uso e consumo, inseridas em determinado ponto da estrutura social, definido a partir da inserção de seus provedores na produção. Foram definidas também como unidades de relações sociais, no interior dos quais os hábitos, valores e padrões de comportamento são transmitidos a seus novos membros, configurando assim unidades de socialização e reprodução ideológica. São espaços de convivência nos quais se dá a troca de informações entre
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membros e onde decisões coletivas a respeito do consumo, do lazer e de outros itens são tomadas. Nesse sentido, são também unidades nas quais os indivíduos maduros se ressocializam a cada momento, revendo e rediscutindo seus valores e comportamentos na dinâmica do cotidiano (...) É também um grupo social composto de indivíduos diferenciados por sexo e por idade, que se relacionam cotidianamente, gerando uma complexa e dinâmica trama de emoções (...) (BRUSCHINI, 1993, p. 76).
A autora confere uma complexidade à família contemporânea desenhada pelo
contexto social e histórico que lhe amplia o sentido e a forma, negando, neste
princípio, um olhar de naturalização:
A tendência à naturalização da família, tanto no nível do senso comum quanto da própria reflexão científica, que leva à identificação do grupo conjugal como forma básica e elementar de toda família e à percepção do parentesco e da divisão de papéis como fenômenos naturais, criou, durante muito tempo, obstáculos de difícil transposição para sua análise (Ibidem p. 50).
Nesta perspectiva, a escola contemporânea, ao olhar para suas famílias,
encontra um estranhamento nas diversificadas tipologias como: as nucleares,
formadas por pai, mãe e filhos; as monoparentais, chefiadas por homens ou
mulheres, podendo ser avós, irmãos, tios; as constituídas por casais gays, com filhos
naturais de ambos ou de apenas um, ou ainda, adotivos; as reconstruídas de casais
separados que juntam seus filhos e, às vezes, geram outros; além de outras
formações que se divergem do padrão hegemônico e se apresentam numa
caracterização de sentimentos e necessidades variadas.
A escola, na formação de seu percurso histórico, declarou regras morais aos
pais, tanto no que tangia sua parte pedagógica quanto à modificação de hábitos e
costumes interpretados como não condizentes às crianças e, foi além, manteve, com
a permissão da família, o confinamento da infância, separando-a do mundo real,
procedendo-lhe, autorizada pela célula familiar e pela garantia da Igreja, castigos e
repreensões em nome da proteção de todos os males.
Fruto da sociedade, a escola vem se modificando lentamente no tempo e no
espaço e, ainda, guarda um valor de referência na vida da sociedade
contemporânea. Na procura de sua definição, podemos encontrá-la como:
uma instituição social com objetivos e metas determinadas, que emprega e reelabora os conhecimentos socialmente produzidos, com o intuito de
37
promover a aprendizagem e efetivar o desenvolvimento das funções psicológicas superiores: memória seletiva, criatividade, associação de ideias, organização e sequência de conhecimentos dentre outras (DESSEN e POLÔNIA, 2007, p. 26).
Olhando de fora, podemos conceituar a escola somente como os autores
acima, no entanto, convivendo em seu interior, percebemos que a escola se
configura em uma complexidade maior, refletida em múltiplos interesses, intra e
extra-escolares, dos quais ela não detém mais o monopólio (DUBET, 1996), pois, se
situa historicamente em um espaço de culturas que convivem e se buscam através
de afirmações, negações e questionamentos.
Desta forma, as complexas mudanças sociais apresentam:
Uma ampliação progressiva dos compromissos da escola que tem de responder a novos desafios por influência de fatores e pressões, tanto externos quanto internos. Os externos são fatores de ordem social, econômico-cultural, científica e tecnológica; os internos estão relacionados ao desenvolvimento do conhecimento sobre o processo educativo (VEIGA, 2001, p. 46).
“Logo redefinir sociologicamente educação como instituição histórica significa
rediscutir as possibilidades educacionais e abrir novos caminhos de ação. Fugindo
da sobrevalorização e da subvalorização da educação” (SILVA, 2002a, p. 89), mas,
essencialmente, encarando-a em um contexto real do complexo mundo
contemporâneo.
Na atualidade, a relação da família e da escola se encontra imersa na
influência da escolaridade obrigatória, nas políticas de democratização de acesso e
permanência, nas mudanças curriculares, ações que repercutem intensamente,
tanto na vida das famílias como na da escola, influenciando a relação destas duas
instituições.
A relação família e escola sempre existiu, porém, ela foi marcada conforme o
panorama histórico-cultural a que estava inserida. No século XX, essa relação era
pautada em questões morais e disciplinares, mas que reservavam, tanto à família,
quanto à escola, aspectos de espaços privados.
Atualmente, esses espaços se abriram de forma a interagir, uma interação
que abriu o leque dos objetivos escolares, incluindo o bem estar psicológico e o
38
desenvolvimento emocional do educando, o que proporciona certa “invasão” à vida
da família (MANTONDON, 1987, apud NOGUEIRA, 1998).
O desenvolvimento emocional traz para a pauta escolar temas a respeito de:
separações conjugais, crises, doenças, desemprego e outros que permeiam as
inquietações da escola em relação à família no cotidiano do pedagógico escolar.
Além disso, projetos como educação sexual, antidrogas constituem uma nova
redefinição do trabalho escolar, auxiliados por especialistas como psicólogos,
psicopedagogos, orientadores profissionais, fonoaudiólogos, no intuito de amparar a
família na educação de seus filhos (MANTONDON, 1987, apud NOGUEIRA, 1998).
Por outro lado, com o aumento do número de escolas, os pais passaram a
escolher, segundo sua classe social, as escolas conforme os aspectos referentes à
clientela, localização, grau de tradição, infra-estrutura, qualidade do ensino, proposta
pedagógica: “conteudistas”, "alternativas", o que supõe aproximação da família à
escola, através de observações e informações sobre o universo escolar
(NOGUEIRA, 1998a).
Neste contexto, as políticas educacionais passaram a incentivar essa relação
de forma a abrir aos pais a possibilidade de intervenção e decisões da organização
e funcionamento escolar (Conselho de Escola, Associação de Pais e Mestres), uma
ideia que nem sempre tem se desenhado como possibilidade de uma construção
democrática de educação infantil, mas, sim, de uma disputa de poderes, de conflitos
e confrontos, elevando a necessidade de estudo e reflexão desta relação como
complementaridade do projeto educacional da infância.
Se por um lado, a família “invade” cada vez mais os espaços escolares, por
outro, encontra reciprocidade na ação da escola, um processo que marca um
sistema de interdependência e influências recíprocas na relação família e escola da
sociedade contemporânea escolarizada (NOGUEIRA, 1998 b).
Este cotidiano é vivenciado com maior intensidade na escola de educação
infantil que exige a presença dos familiares, diariamente, tanto na entrada como na
saída, além da comunicação sobre os cuidados específicos, um cotidiano
diferenciado do ensino fundamental devido às faixas etárias atendidas.
Por outro lado, tanto a escola como a família se revestem de uma relação
junto à infância que envolve o educar e cuidar, relação que, muitas vezes, é envolta
39
por conflitos e confrontos entre ambas na complementaridade legal e natural do
processo deste binômio.
Toda relação da família e da escola é permeada pelo binômio educar e
cuidar, envolta por concepções de infância que atravessaram a história e se
transformaram, contudo, também guardam ambiguidades e, uma história em
construção.
A história da criança tem revelado ideias sobre infância que se remetem ao
passado, como “um ser desprotegido, que merece cuidados pois nele se depositam
as esperanças de futuro” (MICARELLO e DRAGO, 2005, p. 132).
Essas crenças, ao desconsiderar o presente e o passado da criança, limitam
as possibilidades de futuro, pois, constroem padrões, pautando-se em projetos de
visão do que falta à criança, não admitindo que essa se encontra inserida num
contexto sócio-cultural específico e real, assim, o ideal imaginado se sobrepõe ao
real (MICARELLO e DRAGO, 2005, p. 132). Todavia:
Estudos contemporâneos sobre a infância enfatizam que a criança é um sujeito social, que possui história e que, além disso, é produtora e reprodutora do meio no qual está inserida, atuando, portanto, como produtora de história e cultura. (...) a ideia de uma infância que tem subjacente a condição de protagonista na sociedade em que está inserida, e não apenas a de mera coadjuvante (Ibidem, p. 133).
É por meio dessa construção do conceito de infância que se pode reconhecer
a “capacidade de produção simbólica por parte das crianças e a constituição das
suas representações e crenças em sistemas organizados, isto é, em culturas”
(SARMENTO e PINTO, 1997, apud KRAMER, 2005, p 134).
O reconhecimento dessa concepção de criança, bem como a de escola e
família atuais, remontam a ideia de não naturalização dessas concepções, mas de
construções sociais, históricas que se modelaram à luz de um percurso de ordem
política, econômica, enfim, cultural.
1.2 - O contexto histórico da Educação Infantil no Brasil
40
Refletir sobre o contexto da educação infantil brasileira nos remete a revisitar
a história social, política, econômica, já que seu percurso não se apresenta em um
processo linear, mas, engloba idas e vindas de concepções que se misturam em um
entrecruzamento que ainda perdura.
No Brasil, segundo Kramer (1992), até o século XIX, não se constata um
número de ações governamentais significativas e favoráveis à infância, as poucas
existentes partiam de uma preocupação de proteção médica higienista.
Entretanto, foi apenas no final desse século que, no Rio de Janeiro, funda-se
o Instituto de Proteção e Assistência à Infância e inaugura-se a creche da
Companhia de Fiação de Tecidos do Corcovado, encaminhada aos filhos dos
operários.
Concomitantemente, essa época marca a distinção do privado e do público.
As escolas particulares junto à infância se utilizavam do termo pedagógico como
propaganda para atrair as famílias abastadas aos jardins de infância, distinguindo-
as, dessa forma, das creches e asilos que eram destinados aos pobres (KHULMANN
JR., 1998).
No contexto do capitalismo, da consequente urbanização e da reprodução de
força de trabalho, aparecem as primeiras creches, emolduradas por tácitos
programas que iam se adaptando, de um atendimento de combate à mortalidade
infantil a guardiãs de crianças pobres cujas mães necessitavam de aconselhamento
sobre os cuidados necessários a evitar perigos que pudessem levar seus filhos à
marginalidade e à morte.
As creches imprimiam a essas mães a visão de que seu lugar era o lar junto
aos filhos, mas, prosseguiam com a justificativa de objetivar o atendimento de
crianças de classes populares e de mães trabalhadoras, assim:
Criaram-se leis e propagaram-se instituições sociais nas áreas da saúde pública, do direito da família, das relações de trabalho, da educação. As instituições jurídicas e de educação popular substituíam a tradição hospitalar e carcerária do Antigo Regime. São iniciativas que expressam uma concepção assistencial a que denominamos „assistência científica‟ – por se sustentar na fé, no progresso e na ciência característica daquela época (KHULMANN JR., 1998, p. 60).
As instituições infantis se distinguiam simplesmente pelo público atendido e
não pela proposta pedagógica.
41
Enquanto as creches se destinavam aos pobres, os jardins de infância,
proposto pelo educador alemão Froebel, considerado como o pedagogo da infância,
eram destinados às crianças da elite (OLIVEIRA, 2002) e tinham como proposta a
evolução natural da criança, valorizando a expressão corporal, o gesto, o desenho, o
brinquedo, o canto, a linguagem e os interesses naturais da criança, seguiam o
modelo dos Kindergartens americanos, um modelo de atividades ainda presentes na
atual educação infantil.
Na análise de Kuhlmann Jr. (2001), uma educação voltada para a moral e os
bons costumes, na qual:
A preocupação com a formação dos bons hábitos, do cultivo, da docilidade, estava presente no jardim. As crianças eram alvo da constante intervenção e vigilância dos adultos; a educação moral, voltada para a disciplina, a obediência, a polidez, era o núcleo da formação, mesmo que no interior de um ambiente pedagógico bastante rico e diversificado (Ibidem, p. 159).
As mulheres pobres, ainda no início do século XX, começam a engrossar a
mão-de-obra das indústrias. É iniciada, então, a abertura de algumas instituições
infantis com o objetivo de liberar a mulher para o trabalho, contudo, “a creche não
era defendida de forma generalizada, pois trazia à tona, conflitos, tais como a defesa
da atribuição de responsabilidade primordial à mãe na educação da pequena
infância.” (KUHLMANN JR, 2001, p. 86), o que gerou a criação de:
conceitos como carência e marginalização cultural e educação compensatória foram então adotados, sem que houvesse uma reflexão crítica mais profunda sobre as raízes estruturais dos problemas sociais. Isso passou a influir também nas decisões de políticas de Educação Infantil (OLIVEIRA, 2002, p. 109).
Este período é marcado por uma ausência de legislação aos direitos da
mulher, nenhuma atenção é dada à sua formação. A mulher era destinada,
solitariamente, ao cuidado e higiene da prole, tinha por responsabilidade centralizar
toda sua vida na criança, vista como dona de casa, herdeira de todas as riquezas,
misérias e valores sociais.
Até 1930, a educação da infância se manteve sob o caráter médico-higienista,
um período de poucas iniciativas educacionais. “Esta tendência pode ser entendida
mediante a escassez extrema de verbas destinadas à educação frente à situação de
42
analfabetismo do país” (KRAMER, 1995, p.55), principalmente, a educação infantil,
que, quando assistida pelo Estado, trazia uma preocupação às crianças
desfavorecidas.
Todo esse período revela uma concepção assistencialista, higienista, de
distinção entre a educação da criança pobre e da criança da elite.
Falar em educação infantil desta época, significa olhar para a elite, já que as
crianças pobres eram marginalizadas pelas carências múltiplas e o Estado apenas
as assistia oferecendo proteção diante de sua pobreza.
É aí que se cria um estigma junto à educação infantil pública que ainda reflete
no imaginário atual, pois:
A história da assistência tem sido também a da produção de uma imagem do pobre como ameaça a ser controlada. As instituições cumpriram uma função apaziguadora. Interpreta-se a pobreza a partir da generalização de características parcializadas. Essa lógica ainda se faz presente quando se reduz a história da infância abandonada, quando a criança pobre é identificada como „menino de rua‟, que, por sua vez, torna-se sinônimo de „trombadinha‟, ou „menor infrator‟, reproduzindo a concepção de pobreza forjada nos moldes das concepções assistenciais do início do século (KHULMANN JR., 1998, p. 28).
O primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Infância aconteceu no Rio de
Janeiro em 1922, o qual tratou de discutir temas que regulamentassem o
atendimento à infância, no entanto, a pauta concebida refletiu questões existentes já
desde o início do século, ou seja, “tanto no ponto de vista social, médico,
pedagógico e higiênico, em geral, como particularmente em suas relações com a
família, a sociedade e o Estado” (KHULMANN JR, 1999, p. 90).
No decorrer da década de trinta, a infância despertou maior atenção,
entretanto, ela ainda não havia sido retirada da pauta da medicina, mas, desta vez,
destacava-se a preocupação preventiva, da qual a família pobre, vista pela
concepção da família moderna, era analisada como o foco do problema (KRAMER,
1995, p. 59), ou seja, uma família desestruturada pelas condições econômicas
paternas, tendo que ser socorrida pela mãe na ação do trabalho externo ao lar.
Desta forma, a mãe se ausentava do lar e dos cuidados dos filhos.
Assim, segundo Haddad (1991), o lugar que a creche historicamente veio
ocupando se enquadra na falta econômica e moral da família. A creche se definiu
como instituição de atendimento à criança, quando a família, de alguma forma, não
43
estivesse cumprindo devidamente com o seu papel, o que nos informa que, esta
instituição, “quase substituindo a família”, foi se modelando à sombra dela, limitando-
se a reproduzir aquilo que se imaginava que a família faria, caso não lhe faltasse
condição.
Todavia, algumas tentativas educacionais não assistencialistas marcaram
essa década. Em 1935, em São Paulo, Mário de Andrade cria, como Secretário
Municipal de Cultura da Capital, os Parques Infantis, preocupado em proporcionar
lazer, cuidados, educação e esportes às crianças que para ali viessem, sem
necessariamente marcar uma educação formal.
A realização de sua pesquisa sobre o folclore brasileiro lhe deu base para
estruturar uma educação de tradições populares através da arte e dos jogos
tradicionais infantis, possibilitando, à criança, ser criança com suas especificidades,
atividades garantidas por um espaço físico e um programa pautado na cultura da
infância.
Todavia, a predominância do assistencialismo expõe ao abandono, no mesmo
município, aos princípios educacionais do poeta, numa sequência e ampliação de
escolas infantis que nada mantinham dos Parques Infantis, nem a ludicidade, nem o
artístico, somente seus espaços físicos (FARIA, 1999).
O encaminhar do contexto histórico que compreende a segunda metade do
século XX indica modificações no contexto familiar e na forma desta educar seus
filhos, passando de um sentido moral, os bons costumes, ao sentido psicológico, ou
seja, a valorização da saúde emocional; da tradição e sabedoria, ao conhecimento
técnico-científico; do acatamento das normas coletivas, à valorização do eu
individual, da idiossincrasia (CALDANA, 1995).
Não só a família, mas também a escola começam a mudar seu foco de
interesse em relação à educação da infância. Durante os anos cinquenta, a atenção
dos professores se volta às necessidades afetivas da criança, ao papel do professor
frente a essas necessidades.
Preocupações que se deram junto às teorias de Montessori, Piaget e, mais
tarde, Vigotski, com crescente interesse pelo conhecimento do desenvolvimento
cognitivo e pela evolução da linguagem na decorrência da vida da criança
(KRAMER, 1987).
44
Entretanto, na prática, as políticas públicas de atendimento à infância
percorrem uma perspectiva assistencialista predominante, demonstrando uma
fragmentação do conceito de criança, ficando, sua educação, atribuída à
responsabilidade de diferentes órgãos, em que:
O quadro do atendimento à criança no Brasil é constituído por uma rede, cheia de meandros, que envolve três diferentes ministérios: o da Saúde, o da Previdência e Assistência Social e o da Educação, além do Ministério da Justiça, nos casos de menores infratores. Na história desse atendimento percebe-se como é constante a prática de criar e extinguir órgãos burocráticos com função de controle, o que acarreta a superposição do atendimento e redunda na existência de órgãos diversos com as mesmas funções. Essa multiplicação do atendimento não é um problema meramente organizacional ou de caráter administrativo. Ela expressa, sobretudo, a forma estratificada com que a criança é encarada: o problema da criança é fragmentado e pretensamente combatido de forma isolada, ora atacando-se as questões de saúde, ora do „bem estar‟ da família, ora da educação (KRAMER, 1992, pp. 90-91).
Maranhão (2000) declara alguns avanços da legislação interligados ao
período da fase higienista, entretanto, destaca, também, alguns equívocos aos
cuidados com a saúde, os quais criaram ambiguidades no papel da creche referente
a esse tema.
O cuidado, visto apenas como função higienista da saúde, era cobrado da
família pela escola como ato de cuidar, refletindo em impasses e conflitos na
relação creche e família.
As diferenças entre crianças pobres e ricas na educação infantil ainda
continuaram com nomenclaturas como creches e pré-escolas, em um consequente
desenvolvimento, tanto na escola quanto na família:
Enquanto que as crianças pobres eram atendidas em creches com propostas que partiam de uma idéia de carência e deficiência, as crianças mais ricas eram colocadas em ambientes estimuladores e consideradas como tendo um processo dinâmico de viver e desenvolver-se (OLIVEIRA et al, 1992, p.21).
No intuito de compensar as acentuadas diferenças, institui-se, em 1964, a
Fundação do Bem Estar do Menor (FUNABEM). O objetivo era de equalizar as
oportunidades educacionais em termos quantitativos e qualitativos entre as classes
sociais.
45
Desperta-se, assim, uma educação pré-escolar para o preparo da
escolarização, centrados no combate à “marginalização cultural” que se encontrava
a criança pobre em desvantagem ao próspero currículo oculto pertencente à criança
de classe média e alta (FERRARI, 1982).
Os anos setenta destacam a lei nº 5.692, de 11/08/71. Seu artigo 19,
parágrafo 2º reafirma que: “Os sistemas de ensino velarão para que as crianças de
idade inferior a sete anos recebam conveniente educação em escolas maternais,
jardins de infância e instituições equivalentes” e; o artigo 61: “Os sistemas de ensino
estimularão as empresas que tenham em seus serviços mães de menores de sete
anos a organizar e manter, diretamente ou em cooperação, inclusive com o Poder
Público, educação que preceda o ensino de 1º grau”.
Essa legislação recebeu inúmeras críticas por apresentar superficialidade no
tratamento infantil e dificuldade na prática de sua realização, já que não houve um
programa mais específico para estimular e fiscalizar as empresas na criação das
instituições infantis, revelando o descaso do Poder Público em estabelecer princípios
legais que tratassem desse âmbito:
Fica patente a falta de compromisso do Poder Público com a educação infantil, pois os verbos „velar‟ e „estimular‟ nada representam em termos de dever do Estado. Às vezes se fundem a legislação educacional e a trabalhista, estabelecendo-se em lei da educação obrigações das empresas em relação à educação infantil (FONSECA, 1988).
Entretanto, caracteriza, ainda na década de setenta, o aumento de pesquisas
referentes ao desenvolvimento infantil junto às propostas pedagógicas baseadas em
teorias educacionais, psicológicas e sociais, aumentando “a consciência social
sobre o significado da infância e a concepção de criança como sujeito ativo da
construção de seu conhecimento, o que reclama maior e melhor atendimento à
criança pequena” (SOUZA, 2000, p.17).
Assim, realiza-se um movimento ao atendimento da infância, o crescente
aumento do número de vagas na educação infantil ficou evidente, no entanto, não
atendia, também, a crescente demanda, da qual o poder público a refugia no
incentivo do atendimento assistencialista de baixo custo e de recursos comunitários
como „mães crecheiras‟, „lares vicinais‟, „creches domiciliares‟ ou „creches lares‟
(OLIVEIRA, 2002).
46
O atendimento à infância se explicita, então, como educação, a partir da
Constituição Federal de 1988, declarando-o como dever do Estado prover a todas as
crianças o direito às creches e pré-escola.
O direito não significava o dever e, assim, na existência menor de instituições
e maior de crianças, as matrículas eram selecionadas: “Era uma seleção da miséria
entre as misérias” (HADDAD, 1991, p. 36).
Sayão (2010), ao pesquisar o tema educar e cuidar na educação infantil,
afirma que a Constituição de 1988 trouxe a infância para o campo da educação,
esse deslocamento produziu um movimento de superação histórica da visão
assistencialista e manteve, segundo Khulmann Jr. (1998), a esperança de resolução
do problema em curto prazo, passando a educação a ser redentora dos malefícios,
estigmas e preconceitos do atendimento da infância em nossas creches.
A autora (SAYÃO, 2010) ainda reflete que esse processo histórico sujeitou as
dimensões fundamentais da educação da infância, colaborando para que os
cuidados e a assistência fossem secundarizados, simplificados em benefício à
chamada ação educativa.
Esse fato importou à educação infantil um modelo escolarizante, renovando a
baixa qualidade da educação das crianças pobres, uma polarização entre
assistência e educação que produziu oposição entre a função de guarda e proteção
e a função educativa, incompatibilizando-as.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é criado em 1990, com a
incumbência de fiscalizar e garantir o cumprimento dos direitos da criança à
educação. Em seu texto legal, o termo “guarda”, muito utilizado nos documentos das
políticas educacionais e nos textos acadêmicos da década de oitenta, foi substituído
por cuidado e associado ao educar (MONTENEGRO, 2001).
Essa modificação passa “a designar novas funções para a educadora e um
objetivo para a creche, que apresentou alguns sentidos como a proteção física da
criança, o serviço complementar à família e a atenção à individualidade"
(ROSEMBERG, 2001, p. 35).
Assim, como já assegurado o direito da criança à educação infantil na
Constituição de 1988 e reafirmado junto ao Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), sanciona-se em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
47
(LDBEN), com o objetivo de traduzir o direito em diretrizes e normas para a
educação infantil.
Esta lei veio propor, à educação infantil, objetivos, organizações flexíveis de
funcionamento e de práticas pedagógicas, além do discutível e relevante tema da
formação docente, entretanto, seu percurso revela um longo caminho a ser
percorrido, como o destacado:
Tal inclusão da creche no sistema de ensino requer investimentos em educação permanente e nas condições de trabalho de seus educadores. Requer ainda repensar o modelo internalizado pelos educadores sobre o que é uma instituição escolar para a faixa etária de 0 a 6 anos. Para muitos este deve aproximar-se de um modelo [antiquado mas em muitos lugares ainda não ultrapassado] de ensino fundamental com a presença de rituais [formaturas, suspensões, lições de casa], longos períodos de imobilidade e de atenção a uma única fonte de estímulos. Mas a creche envolve novas concepções de espaço físico, nova organização de atividades e o repensar rotinas e, especialmente, modificar a relação educador-criança e a relação creche-família (OLIVEIRA, 2002, p. 82).
A relação educador-criança destaca o binômio educar e cuidar que, marcada
pelo histórico-cultural, dicotomiza-se na conflituosa tentativa de superação do
caráter assistencialista histórico da educação infantil ao caráter pedagógico.
O cuidar na educação infantil se remete a um estigma muito maior na história
da colonização brasileira, do qual Sayão (2010) afirma que, a herança da
escravidão se refletiu em descendências de baixa escolarização, restando-lhes,
como única atividade alternativa, o cuidar das casas e dos filhos da classe
privilegiada economicamente.
Processo que se renova na desvalorização de profissões atuais como babás,
domésticas e outras profissões consideradas femininas do qual a creche tanto
conhece essa realidade na relação educar e cuidar e, família e escola que tomam o
imaginário social de que, basta gostar de criança, ter vocação, jeito, para atuar na
educação infantil.
Neste contexto conflituoso, emerge uma compreensão de um cuidar na
relação educador e criança que objetive:
uma ação cidadã, onde educadores, pessoas conscientes dos direitos das crianças, empenham em contribuir favoravelmente ao crescimento e desenvolvimento das crianças. O cuidar é visto aqui como uma prática pedagógica e como forma de mediação, que se constitui pela interação através da dialogicidade e quer possibilitar à criança leituras da realidade e apropriação de conhecimentos (WEIS, 1999, p. 108).
48
Um cuidado que “contribua para o processo de desenvolvimento de pessoas
não apenas autônomas, mas também sensíveis às necessidades do outro”
(MONTENEGRO, 2001, p. 97) e se traduza na conscientização do sentido de que:
ao afirmar-se a construção social da infância não se está apenas a declarar que a infância é um produto da história e não da natureza – (...) mas ela é um objeto (e também sujeito) da sua contínua construção. Este não é um aspecto inacabado, mas um processo contínuo de investimento de papéis sociais para as crianças, de elaboração de sistemas representacionais, crenças e imagens sobre o que é ser criança e de determinação de identidades coletivas para a geração. (SARMENTO, 2001, p. 14-15).
Este processo contínuo requer uma construção de infância desenvolvida na
dialeticidade da relação educador e criança, promovida pelo binômio, indissociável,
do educar e cuidar, bem como, também, pela relação escola e família. Relações que
possam privilegiar o planejamento de atividades produtoras de espaços e tempos
favoráveis ao desenvolvimento da infância nas escolas de educação infantil.
1.3 - Educar e cuidar: uma relação complementar
No bojo histórico da educação infantil, diversos objetivos foram, ao longo do
tempo, incorporando-se na função das escolas da infância, aliados ao contexto
social brasileiro.
Ideias como atendimento à mãe trabalhadora, prevenção de futuro fracasso
escolar das crianças mais pobres, entre outras ideias assistencialistas, reuniram
concepções de cuidado e educação que atendessem a esses objetivos destacados,
criando ambiguidades no decorrer da história do desenvolvimento infantil.
Entretanto, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Resolução
CEB no 01, de 07 de abril de 1999, artigo 3o, inciso III, estabeleceu que as propostas
pedagógicas para a educação infantil devem promover “práticas de educação e
cuidados que possibilitem a integração entre os aspectos físicos, emocionais,
49
afetivos, cognitivo-linguísticos e sociais da criança, entendendo que ela é um ser
completo, total e indivisível”.
Assim, a legislação concebe para a educação infantil a articulação
indissociável entre o educar e cuidar nas práticas pedagógicas junto à infância.
Práticas de ações que permitam unir aspectos relacionados à saúde,
segurança, afeto, alimentação, brincadeira, interação, autonomia, sensibilidade,
entre outras características que possam destacar-se nas atividades infantis como elo
entre a indissociabilidade desse binômio, como função básica da educação infantil.
Entretanto, o registro legal do binômio educar e cuidar não tem se mostrado
suficiente para resolver a polemização deste tema e, isto, tem se revelado nas
ambiguidades, nos conflitos, nos confrontos das relações profissionais da infância,
na organização escolar envolta ao tema, na relação de complementaridade entre
família e escola e, até, nas construções de políticas públicas.
É objetivando estudar esses desentendimentos que esta pesquisa se
justifica, adentrando ao tema por meio de enfoques sociais, históricos, culturais, na
intenção de compreender as dificuldades postas à prática contemporânea deste
binômio, que consiste na importância de ser a espinha dorsal da proposta da
educação da infância.
Podem-se registrar nesse objetivo, a partir de um recorte da história brasileira,
de colonização e escravidão, os resquícios de uma dicotomia entre educar e cuidar
pertencentes às marcas históricas de desvalorização de quem cuida, estabelecida
na relação de servidão, de escravidão. “Ou seja: cuida quem não aprendeu a fazer
outra coisa ou não teve escolha (quem é servo ou escravo). O ato de cuidar aparece
relacionado a uma tarefa menor, sem prestígio ou reconhecimento”. (KRAMER,
2005, pp. 56-57).
Nesse embate, pensando nas organizações cindidas que se estabeleceram
historicamente, as instituições de atendimento à infância, ora pelo cuidar higienista,
assistencialista, ora pelo educar escolarizado, hierarquizado, Kramer (2005, p. 62)
parafraseia Carlos Drummond de Andrade e pergunta: “educar/cuidar é uma rima,
mas será uma solução? Terá sido uma solução para resolver problemas de
fragmentação e da divisão social do trabalho dentro das creches e escolas?”.
Parece que a história tende em ressaltar a rima, pois, ao que se remete a
solução, ainda se confronta com organizações político-administrativas que dividem o
50
trabalho entre creche e pré-escola, entre salários e cargas horárias de trabalho
desiguais dos educadores (monitores, agentes de desenvolvimento infantil,
professores), entre confrontos relacionais de profissionais da infância, entre relações
de desentendimentos de família e escola, entre submissão de um modelo
escolarizado e hierarquizado do ensino fundamental.
A relação educar e cuidar ainda pode ser estabelecida numa cisão maior,
numa cisão humana que se resulta no mundo contemporâneo, ocidental, capitalista,
onde se destaca a questão: será mesmo o cuidar uma especificidade apenas da
educação infantil ou se relaciona ao educar numa abrangência humana? “Quando
na universidade, uma aluna está deprimida, o professor faz de conta que não vê que
a moça de 28 anos está sofrendo? Ou chama para conversar, leva para tomar um
café, orienta?” (KRAMER, 2005, p. 63).
Obviamente uma criança exige cuidados diferentes de um adolescente,
adulto, mas, a dimensão do cuidar se estende a todas as faixas etárias.
O cuidar não é específico da educação infantil e não se limita ao corpo, aos
hábitos de higiene e saúde (KRAMER, 2005).
A autora cita outros tantos exemplos de cuidado que envolvem crianças,
adultos, pais, professores, funcionários de escola, mestrandos, doutorandos..., aos
quais não se pode ser dito: “Não, deles eu não cuido, só cuido na educação infantil!
Assim, (...) educar não engloba cuidar?” (Ibidem, p. 63).
Kramer (2005, p. 65) destaca que, a relação racional do estudo da Pedagogia
contemporânea que é “voltada para o ensino e o trabalho com ideias, não sabe lidar
com a materialidade do corpo”, não engloba o cuidar como educar.
Desta forma, a relação de educar e cuidar tem marcado uma relação
dicotomizada, diferenciada através da ideia estabelecida a partir do gênero,
distribuindo tarefas entre masculino e feminino, de forma a cindir este binômio:
As dificuldades de abordar o tema do dia-a-dia das instituições decorrem de fatores sóco-históricos relacionados a questões de gênero, numa sociedade capitalista-urbana-industrial-patriarcal marcada pela dicotomia corpo/mente. A hipótese é a de que o binômio educar e cuidar, em realidade, expressa e revela essa dicotomia (...) o divórcio entre corpo e mente, do qual decorre o divórcio entre razão e emoção – que em última análise, revela a cisão básica entre cultura e natureza na sociedade ocidental (KRAMER, 2005 p. 67).
51
Atualmente, segundo a autora, encontramos esta cisão nas organizações
hierárquicas “na disputa por quem realiza a dupla função da educação infantil, as
professoras se encarregariam de educar (a mente), e as auxiliares, de cuidar (do
corpo)" (KRAMER, 2005, p. 69).
Essas dicotomizações revelam que a história contemporânea da cisão do
educar e cuidar advém de uma parte maior da História da Humanidade e podemos
localizá-la em seus primórdios na História da Civilização Ocidental:
O cuidar é o pólo do desprestígio porque está relacionado à emoção, e não à razão, e, ademais, às mulheres, que – de acordo com a tradição greco-romana e, depois, a tradição judaico-cristã – seriam inferiores aos homens. Assim, a cisão entre educar e cuidar seria a expressão, no restrito campo da educação infantil, da cisão maior entre razão e emoção, uma das marcas fundamentais da sociedade ocidental (KRAMER, 2005, pp. 71-72).
Kramer (2005) assinala a oposição entre razão e emoção desde Platão, a
emoção, tida como pouco produtiva aos processos de conhecimento, marca
oposição à razão, faculdade indispensável, valorativa à compreensão da realidade.
Consequentemente, emoção se junta ao campo do irracional, do físico, do
natural, do particular, do privado, do feminino. Já, a razão, destaca-se ao campo
mental, cultural, universal, público, masculino.
Razão e emoção ao serem colocadas no contexto capitalista, aliado à ciência,
dicotomizaram-se, marcando, segundo Kramer (2005), papéis distintos na sociedade
positivista, técnico-científica, industrial.
As mulheres, demarcando cada vez mais a entrada no mercado de trabalho,
ameaçaram a ordem patriarcal, da qual a ciência tentou harmonizá-la pelo
reconhecimento de diferenças anatômicas, fisiológicas, antropológicas e,
psicológicas das mulheres que se aproximavam dos “primitivos e das crianças”.
Assim, às mulheres, coube a ordem natural que é a biológica, da reprodução e, aos
homens, também seguindo a ordem natural, couberam a inteligência e a força física
(Ibidem, 2005).
Paralelamente a esta explicação científica, outras, no mesmo âmbito,
justificaram a hierarquização entre os colonos e colonizados. Desenhando o mundo
entre as diferenças de classe, sexo, raça, guardando valores ainda atuais, pois:
52
É nesse quadro, ainda atual, que muitas vezes são interpretados os
depoimentos em que as professoras de educação infantil falam de amor, de
afeto pelas crianças (...) Apesar de comum, esse tipo de argumentação é
frequentemente rejeitado por pesquisadores, que não admitem categorias
derivadas do subjetivismo ou da diferença entre os sexos (...) A rejeição dos
pesquisadores varia de uma associação das mulheres ao pólo de menor
valor (KRAMER, 2005, pp. 75-76).
Kramer (2005, p. 76), ao refletir sobre o cuidar na diferenciação dos sexos,
redimensiona-o para além do lócus da educação infantil, configurando-o na
“sociedade ocidental, moderna, capitalista, urbana, industrial, patriarcal”, na qual o
“cuidar é uma atividade regida pelas mulheres tanto no âmbito do mercado quanto
da vida privada” (TRONTO, 1997, apud Kramer, 2005, p. 189).
No entanto, o cuidar, mais que estabelecido como menor valor, é a divisão
que a sociedade lhe confere:
Os homens se dedicam e se preocupam com coisas mais importantes, isto é, com dinheiro, com o seu trabalho, com a carreira, com o que diz respeito ao mundo público. As mulheres se preocupam com o que teria menos importância, ou seja, que está relacionado à esfera do privado: a organização da casa, o cuidado com a alimentação e a higiene dos filhos, a saúde e o conforto da família. Podemos, em síntese, dizer que os homens cuidam das coisas, as mulheres cuidam das pessoas (KRAMER, 2005, p.
76, itálicos meus).
Couberam, desta forma, à mulher, no percurso social da história, a emoção e
a natureza, permeadas pelo biológico da condição de geradora da espécie. “E,
mesmo considerando que essa situação lhes foi imposta socialmente, não é possível
negá-la, nem desconsiderar suas implicações, negativas ou positivas” (Ibidem, p.
77). A reflexão que se estabelece no contemporâneo é que:
Hoje o feminino não é mais nem Outro nem o Mesmo do masculino, ele não é tampouco essência ligada a uma natureza imóvel, mas experiência ligada a uma Natureza histórica, em devir. O feminino ingressa assim num espaço de liberdade, onde seria mais justo falar do não–concebido que da ausência de um conceito. A liberdade do feminino para definir-se nos tempos vindouros não se referirá à natureza como essência, mas como experiência. Não negará o lugar corporal, primordial, a partir do qual ela vive e pensa o mundo. Não negará o passado, a cultura feminina que mendrou à margem do mundo dos homens, mas tampouco a aceitará como álibi à exclusão e ao confinamento (OLIVEIRA, 1992, apud, KRAMER, 2005, p. 78).
Na valorização da experiência histórica feminina, sem a ilusão do
esquecimento, da imposição, da subordinação de uma sociedade patriarcal,
53
capitalista, cabe refletir que: “desconstruindo” os elementos que remetem ao
menosprezo do cuidar, encontra-se o limiar de um “desafio para um projeto de
formação de educadoras que [visem] enfatizar a importância do cuidar” (KRAMER,
2005, p. 78).
Um projeto de cuidar que diga respeito ao ser humano enquanto existência,
um projeto ontológico6, na dimensão de que Educação é o cuidar da continuidade da
espécie, da melhoria da espécie, da vida da espécie humana.
Todavia, vale ressaltar a questão: “Como ter cuidado e aprender a cuidar
numa sociedade que não cuida da natureza, das outras espécies nem da própria
espécie, que destrói em função dos objetivos do capital?” (KRAMER, 2005, p. 81).
Estamos no tempo da lógica do capital, o tempo do ter, do ser em função do
ter, das desigualdades na distribuição dos bens planetários, onde seres humanos
passam fome, a natureza é explorada e destruída e, tudo é justificável, todas as
justificativas neoliberais se encaixam na lógica do capital.
Nessa lógica, “o cuidado foi privatizado, vinculado a circunstâncias
particulares, ofuscando a necessidade de um compromisso de cuidar de todos, do
conjunto dos seres, humanos e não-humanos – enfim, de tudo que compõe a
biosfera” (Ibidem, pp. 81-82).
Assim, segundo Tronto (1997, apud KRAMER, 2005, p. 82) “na sociedade
moderna, em que a troca mercantil permeia todas as relações sociais, os próprios
interesses são colocados em primeiro plano e dificultam a percepção e a
preocupação com as necessidades do(s) outro(s)”.
Mas de onde e como se instituiu essa relação mercantilista que impera sobre
a vida?
Segundo Paiva (2010, p. 8), até o século X, a sociedade poderia ser
classificada como relativamente homogênea, “caracterizada pelas relações
pessoais, numa formatação cristã”. Entretanto, com o surgimento do comércio, os
fundamentos dessa convivência se alteram e caminham para a experiência
mercantil, “provocando, destarte, uma mudança que lentamente transformou toda a
civilização”.
Paiva (2010) questiona sobre os objetivos do mercador ao mercar, a resposta
é óbvia, o lucro, o mercador visa o lucro para si, o que se transforma em plural, os
6 “Ontologia é a parte da filosofia que trata do ser enquanto ser, isto é, do ser concebido como tendo
uma natureza comum que é inerente a todos e a cada um dos seres”(FERREIRA, 1975, p. 1007).
54
mercadores visam o lucro para si e, assim, sucessivamente a sociedade vai
contraindo esta experiência mercantil que a desenha como apartados:
O lucro, o mercador o busca para si, não mais para a comunidade, dela se distanciando. Isto fere a forma afetiva de convivência, em que a pertença ao grupo determinava o entendimento e a reprodução da realidade. Isto induz à separação, quebrando a unidade do corpo social, instituindo o individualismo. Esta prática repercute nas relações sociais, os interesses do mercador dando nova forma à convivência. A prática de realização do seu interesse, agora distinto do interesse comum, o vai convertendo em separado, em indivíduo (PAIVA, 2010, p.8).
É por meio deste panorama que a sociedade se transforma através do
distanciamento, as pessoas se tornam indivíduos, aqueles que não se dividem, “a
pessoa humana se esvazia daquilo que caracterizava as relações, o afeto, travando
doravante com os demais membros uma relação tática, artificial, funcional,
instrumental, estratégica” (PAIVA, 2010, p. 9).
Tomando experiências com o mercantilismo, a pessoa se torna indivíduo,
perdendo suas qualidades, singularidade. “É preciso salientar que essa nova
percepção se realiza em tudo que o indivíduo toca: pessoas ou coisas. Desaparece
o laço de pertença ao mesmo uno” (Ibidem, p. 9).
Tanto as pessoas como as coisas passaram a ser visadas pela
mercantilidade, esvaziaram-se. A arte da retórica impôs àquelas a necessidade da
compra e, a essas, as qualidades, o custo, a serventia, a conservação; a redução do
significado de pertença se abre nas possibilidades da relação mercantil, de
mercadoria, compra, venda, lucro, extinguindo os laços de afeto. Assim:
O mercador aprende a calcular: joga com variáveis sem número, tentando estabelecer um caminho que lhe permita o sucesso. Seu pensar se converte em instrumento de organização das variáveis. Deixa de ser entendimento por afinidade. O mundo desassossegado da mercancia desfaz a unidade do corpo social, as partes se distanciando umas das outras, fazendo-se absolutas. A segurança urge a necessidade de combinar o que está espalhado. O pensar se transforma em cálculo, o entendimento cede lugar à razão. Razão vem de ratio, vocábulo latino que significa precisamente cálculo. A racionalidade é a conversão do entendimento por afinidade em instrumento de combinação das variáveis dissociadas umas das outras. A razão se põe como o novum organum do entendimento humano, atuando à distância e feito instrumento. A razão se tornou um transformador do real, um novo nome para designar o pensar mercantil. A razão não dá conta da participação: busca o controle, numa atitude tipicamente de distância. Inventa o sujeito e o objeto, a comunhão desfeita. O distanciamento, que a prática mercantil instalou, levou à divisão do uno, não só das coisas, mas do próprio eu (PAIVA, 2010, p. 11).
55
Uma experiência que vai se convertendo na cisão humana, no individualismo,
no racionalismo e se estende a todas as relações pessoais, pautando-se nos
princípios mercantis, “atravessando a religião e as demais instituições, criando novos
padrões de comportamento, novos valores, novos ideais, nova linguagem, novos
hábitos, nova organização social” (PAIVA, 2010, p. 11).
Fundando, desta forma, a civilização européia nos meados do século XI e,
expandindo-se, com maior aprimoramento, ao contemporâneo.
O tempo do cuidar não é o “tempo do mercado, dos negócios, cujo objetivo é
a acumulação e que imperam as lógicas da competência, da eficácia, da
competitividade. O cuidado está pautado na necessidade do outro” (Kramer, 2005, p.
82).
Assim, “para cuidar, é necessário um conhecimento daquele que necessita de
cuidados, o que exige proximidade, tempo, entrega” (KRAMER, 2005, pp.82-83).
Nessa medida:
Cuidar é uma ação/atividade que afeta tanto quem cuida como quem é cuidado. Vêm daí, provavelmente, o profundo envolvimento e a satisfação das profissionais de educação infantil com o seu trabalho: a relação estreita com as crianças e a atenção e o afeto que dedicam a elas provocam respostas infantis que funcionam como elementos realimentadores, mobilizadores, transformadores de si próprias, de sua subjetividade (Ibidem, p. 83).
A vida mercantil, na qual o objetivo se situa na acumulação de bens materiais,
comporta a base da divisão de papéis sociais pautados na diferença sexual. Fato
que admite que a mulher tenha a herança histórica da sensibilidade do saber cuidar,
o que incorre no pensar na possibilidade de uma reorganização de “instituições,
movimentos políticos e sociais que assumam o cuidar como fundamental à
totalidade das espécies e à sobrevivência do planeta” (Ibidem, p. 84), exigindo a
superação de:
uma ideologia em que “o cuidado foi difamado como feminilização das práticas humanas, como empecilho à objetividade na compreensão e como obstáculo à eficácia” e que o cuidado fosse assumido como atividade que “permite ao ser humano viver a experiência fundamental do valor, daquilo que tem importância e que definitivamente conta. Não do valor utilitarista, mas do valor intrínseco às coisas” (BOFF, 1999, apud KRAMER, 2005, p. 84).
56
De acordo com Kramer (2005, p. 86), a cisão do educar e cuidar na educação
infantil expõe o desafio que
nos levam também a investigar e questionar as bases de uma cosmovisão que nos impõe divórcios e modela as relações e os espaços educacionais. Religar o que foi historicamente divorciado, articular razão e emoção, corpo e mente, trabalho e prazer, cuidado e educação... Esses são desafios fundamentais na luta por uma nova sociedade planetária, fundada no cuidado e no amor entre os humanos, isto é, no respeito às características físicas e emocionais de cada pessoa e à diversidade cultural dos povos. E, igualmente, no cuidado e no amor à natureza, no respeito à biodiversidade, buscando superar o divórcio fundamental da modernidade – entre ser humano e natureza – e a cultura antropocêntrica que o constitui.
O desafio do contemporâneo se remete, em particular, ao desafio da
construção de um projeto de educação infantil como instância maior de educação e
cuidados inerentes à espécie humana, na qual a contramão da história da mulher
marque positivamente uma experiência secular de sensibilidade ao tema.
Um projeto que envolva uma relação de complementaridade entre família,
escola e comunidade, a partir do binômio educar e cuidar, que amplie as
possibilidades de desenvolvimento integral da infância, a criança como um todo, um
ser integrado de corpo e mente, de razão e emoção, com direito à educação e
cuidados que respeitem suas especificidades e caminhem para seu
desenvolvimento.
Ações que articulem o binômio educar e cuidar, envolvendo um projeto entre
homens, mulheres e crianças, organizados por meio da instância da educação
infantil em prol do desenvolvimento integral da infância, do cuidar da espécie
humana se estendendo a toda natureza.
57
CAPÍTULO 2
O PROFESSOR DE EDUCAÇÃO INFANTIL E SEU PROCESSO DE
FORMAÇÃO
Aprender é sempre adquirir uma força para outras vitórias, na sucessão interminável da vida (MEIRELES, 2001, p. 64).
Este capítulo se faz na intenção de refletir sobre a formação do professor de
educação infantil. Ele não traz uma linearidade histórica, mas analisa as
contradições e ambiguidades das especificidades docentes.
A formação do professor de educação infantil compõe um tema que se detém
entre entendimentos e desentendimentos de uma prática voltada à cisão do educar
e cuidar, consequentemente, da relação família e escola, em geral, de como
proceder com a finalidade do desenvolvimento integral da infância.
Para compreender as ambiguidades do processo de formação inicial do
professor de educação infantil, a discussão proposta nesse capítulo parte da
reflexão da pesquisa de Bonetti (2004) sobre documentos educacionais oficiais que
tratam das especificidades da formação deste professor após a Lei de Diretrizes e
Bases Nacional (LDBEN/1996).
Os documentos, segundo a autora, avançaram no reconhecimento da
existência de especificidades do educar e cuidar, todavia, estas especificidades se
constituíram, legalmente, na adaptação, secundarização, subordinação, enfim,
subjugação da educação infantil em relação ao ensino fundamental. O primeiro
pautado no modelo do segundo nível de ensino, ou seja, a educação infantil
modelada pela escolarização do ensino fundamental.
58
O texto discorre, também, sobre o tema da formação continuada, entendendo
que a formação do professor de educação infantil não se limita à formação inicial,
mas percorre a necessidade da reflexão contínua de sua profissão.
. A consciência da construção do saber fazer na investigação do fazer, no
diálogo coletivo, na união da prática e da teoria, remontam um conceito de formação
continuada de professores que destaca o contexto escolar e envolve um campo de
possibilidades de construções das especificidades do professor de educação infantil,
ao mesmo tempo em que destaca seus desafios.
2.1 – Especificidades da docência da Educação Infantil e
Formação Inicial
A trajetória da educação infantil brasileira se apresentou em avanços e
retrocessos advindos de um entendimento de infância que caracterizou a criança,
desde um ser dependente de cuidados, um “vir a ser”, caminhando para a
concepção de criança como sujeito da sua história, produtora e consumidora de
cultura que se apresenta como cidadã a partir de seu presente, um sujeito de
direitos.
Essas concepções foram modelando não só a forma de ver a criança, de
interpretá-la, mas, também, a forma de como agir diante dela, com ela, para ela.
Assim, a educação infantil foi sendo encaminhada, tendo como parâmetro, as
construções sociais do conceito de infância.
A formação docente também seguiu esse contexto social, admitindo, desde
profissionais sem nenhuma formação na área, a outros com exigências de cursos
específicos para a atuação junto à infância.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN/1996), em seu
artigo 29, reconhece a educação infantil como: “primeira etapa da educação básica,
tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade,
59
em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da
família e da comunidade.”
Desta forma, também o tema da formação de professores foi encaminhado
legalmente no artigo 62 da LDBEN: “A formação de docentes para atuar na
educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação
plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida, como
formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas quatro
primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade
Normal.”
Estes encaminhamentos legais marcam o reconhecimento do atendimento da
infância como educação básica, principalmente no que se diz respeito à formação de
professores, pois, anterior a esta lei, pouco se tinha constituído ao tema que o
direcionasse ao campo da educação, o que o torna uma preocupação ainda recente
e muito desafiante.
Contudo, mesmo no decorrer legal, a verba destinada à educação infantil e
repassada, através da descentralização estatal, aos municípios, continua
impactando a desvalorização dos professores por meio de baixos salários e de
subdivisões do trabalho docente, com nomenclaturas diferenciadas dos profissionais
que integram os quadros de professores (professores de educação infantil,
professores de pré-escola, monitoras, agentes do desenvolvimento infantil) que,
dividem-se no atendimento integral ou parcial ou, ainda, nas faixas etárias das
crianças de 0 a 3 anos e de 4 a 5 anos (creche e pré-escola).
As décadas de 80 e 90 marcaram um crescente número de atendimento à
infância. No final da década de 80, com a Constituição Federal de 88, reconhecendo
a educação infantil como direito à infância e, na década de 90, com o Estatuto da
Criança e do Adolescente, além da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
de 1996.
Assim, proclamou-se legalmente a educação infantil, documentando suas
especificidades, também, para a formação de seus profissionais.
Bonetti (2004), revendo esta documentação, realizou uma pesquisa de
mestrado intitulada: A Especificidade da Docência na Educação Infantil no âmbito de
Documentos Oficiais após a LDB 9394/1996, na qual analisa o tratamento da
formação do professor de Educação Infantil.
60
Os documentos se referem aos Referenciais para a Formação de Professores
(1998), a Proposta de Diretrizes para a Formação Inicial de Professores da
Educação Básica em Curso de Nível Superior (2000) e o Parecer do Conselho
Nacional de Educação nº 009/2001.
Nas análises dos documentos, Bonetti (2004) revela a existência do
reconhecimento de uma especificidade do professor de educação infantil que se
remete ao educar e cuidar, entretanto, essa se traduz em uma adaptação da
docência do ensino fundamental, ficando, desta forma, a formação inicial desse
professor, também subordinada à docência do ensino fundamental e, as
especificidades da educação infantil, secundarizada e adaptada a este nível de
ensino.
A autora revela que a adaptação das especificidades do professor de
educação infantil ao modelo do ensino fundamental parte de uma concepção de
dependência da criança em relação ao adulto e do reconhecimento de sua
capacidade de aprender “desde que seja encontrada a forma certa” (BONETTI,
2004, p. 140).
Fato que transgride e denuncia uma distância da concepção de crianças
como sujeitos que “possuem um olhar crítico e maroto que vira pelo avesso a ordem
das coisas, subvertendo essa ordem” (KRAMER, 2003, p. 91), assim, as crianças
produzem cultura ao mesmo tempo em que nelas são produzidas.
A aprendizagem infantil nesta abordagem necessita da construção de
conhecimentos significativos à infância e não de mera transmissão adaptada, como
pronunciam os documentos analisados por Bonetti (2004), um currículo que
“transporta de cima para baixo o modelo do ensino fundamental para crianças de 0 a
6 anos” (BONETTI, 2004, p. 141).
O estudo de Bonetti (2004) permite adotar como positivo, na expressão dos
documentos, o reconhecimento do professor como profissional da primeira etapa da
educação básica, contudo, estes mesmos documentos estabelecem a especificidade
docente para a educação infantil a restringindo “ao ensino de conteúdos e às formas
de ensiná-los às crianças menores de 6 anos, defendendo a necessidade de uma
formação articulada entre os professores das três etapas da educação básica”
(Ibidem, pp. 95-96).
61
Desta forma, na consideração dessa articulação, vem ocorrendo a
subjugação da educação infantil em relação ao ensino fundamental, níveis
educacionais que se diferenciam em suas especificidades.
Oliveira-Formosinho (2002) atribui alguns aspectos da singularidade da
docência da infância que permitem ampliar a visão de suas especificidades como: o
reconhecimento da necessidade da articulação escola e família, no reconhecer das
dependências das crianças às suas famílias, ao mesmo tempo em que se reconheça
as competências sociopsicológicas das crianças.
Um reconhecimento que se estenda à prática do educar e cuidar de forma
integral e possa contar com profissionais de diferentes áreas que se integram à
educação infantil, através dos saberes de suas áreas e dos afetos necessários à
educação da infância.
As especificidades da educação infantil vão além dos documentos,
comprometem-se na caracterização das instituições à infância e, também, do
trabalho do professor em estabelecer uma articulação junto à família das crianças,
cientes dos objetivos e atividades distintas entre ambas, pois, como esclarece
Bonetti (2004, p. 102) “estabelecer uma boa relação com a família está intimamente
ligado com a acolhida da criança e a necessidade de um trabalho articulado”.
Os equívocos e a falta de uma discussão mais acurada que tome como
parâmetro a voz dos profissionais da educação infantil inclui, ainda, nos documentos
analisados por Bonetti (2004), uma separação na função educar e cuidar.
Mesmo os documentos incorporando este binômio, tratam de seus aspectos
de forma separada e retrocedem a antigas práticas tão criticadas da docência da
infância, reforçando uma concepção conteudista e uma lógica de escolarização que
trata a criança como aluno:
O vínculo com a criança é compreendido como possível a partir de dois tipos de atividades: aquelas relacionadas à dimensão lúdica e aquelas relacionadas ao cuidar. Note-se que aqui o cuidar é reduzido à atividade voltada ao atendimento das necessidades de atenção e cuidados com o corpo (higiene, saúde e nutrição). Essas atividades, indicadas apenas no trabalho com crianças de 0 a 3 anos, secundarizam a ideia do cuidado como um direito da criança, uma forma de educá-las e humanizá-las em qualquer idade (BONETTI, 2004, p. 105).
62
Imersa nesta discussão, Bonetti (2004) critica os documentos ao silenciar que
o cuidar, ao se dimensionar como especificidade do trabalho docente, não considera
que sua existência se faz com e pela criança na ação do educar. O cuidar como:
uma atitude que envolve tanto aspectos afetivos/emocionais, quanto cognitivos como pensar, refletir, planejar; ou seja, quando se compreende o cuidar como uma ação racional, estamos considerando que é possível educar para o cuidado (CUNHA e CARVALHO, 2002, p. 7).
Constata-se, nestes documentos, uma ideia de hierarquização da relação
entre quem educa e quem cuida, chegando a marcar a fala dicotomizada de
professores de educação infantil, que “cuidam, mas também educam”, como uma
garantia de importância social do trabalho junto à infância, negando a tomada de
consciência de que todas as ações que envolvem o cuidar são educativas, pois
nelas a criança sempre se estabelece inteira em suas necessidades, “com
possibilidades e saberes em suas relações” (BONETTI, 2004, p. 107).
As marcas históricas que promovem essa dicotomia entre educar e cuidar, do
qual Bonetti (2004) analisa nos documentos sobre a formação de professores,
advêm de uma História maior que ainda podemos chamá-la de contemporânea,
parafraseando a ideia trazida por Croce (1941, apud CARR, 1982), de que toda
história é contemporânea, pois, remete-se ao olhar do sujeito no presente (olhar
presente) sobre o passado, olhar que Kramer (2005, p. 64) nos traz à reflexão de
que:
Só uma sociedade que teve escravos poderia imaginar que as tarefas ligadas ao corpo e a atividades básicas para a conservação da vida seriam feitas por pessoas diferentes daquelas que lidam com a cognição! Só uma sociedade que teve essa expressão máxima da desigualdade, que teve seu espaço social dividido entre a casa-grande e a senzala, poderia separar essas duas instâncias da educação e entender que cuidar se refere apenas à higiene – e não ao processo integrado, envolvendo a saúde, os afetos e valores morais.
Denota-se, através da análise dos documentos sobre a formação do professor
de educação infantil, ambiguidades em suas especificidades, já que as palavras
registradas nestes documentos caracterizam, tanto o professor de ensino
fundamental como o de educação infantil, professores de educação básica, o que
estabelece dificuldades ao:
63
explicitar o reconhecimento e o tratamento dado à especificidade da docência na educação infantil tornou-se, em muitos momentos da pesquisa, uma tarefa desafiadora. As proposições muitas vezes não incluíam essa especificidade, nem tampouco a excluíam. O fato de, na maior parte dos textos, ser utilizada uma forma única para dirigir-se ao professor da educação básica também se tornou uma indicação do tratamento dado à especificidade da docência da educação infantil (BONETTI, 2004, p. 138).
A importância deste estudo, segundo Bonetti (2004), pós a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDBEN/1996), pós uma história complexa da
educação infantil, confere ambiguidades ao declarar, paradoxalmente, referências,
diretrizes e pareceres na formação da docência da infância e isso não é pouca
coisa, um documento: “não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um
produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que detinham o
poder” (LE GOFF, 1996, apud BONETTI, 2004, p. 138).
Para a autora, o campo da educação infantil avançou com o reconhecimento
de seus profissionais como professores de educação básica, entretanto, adverte que
esse ganho não é suficiente para demarcar as especificidades destes professores,
as quais carecem de estudos e abordagens que contribuam para importantes
considerações sobre a devida formação do professor da infância.
Considerando a história da Educação, em especial, a história da educação
infantil brasileira, Sayão (2005) ressalta as ambiguidades ainda existentes para o
perfil do professor de educação infantil, suas indefinições e dúvidas.
Características, essas, que Sousa (2003) reconhece na complexidade do
tema e na dificuldade de se estabelecer um currículo que atenda a necessidade da
formação inicial deste profissional.
Ideia da qual Rocha (1999) compartilha e completa esclarecendo que esta
emergência do tema constitui um caminho importante de construção de uma
pedagogia própria da educação da infância.
Todavia, a educação infantil se contextualiza ainda cunhada por resquícios de
uma história que negou a importância da infância e que ao fazer-se,
contemporaneamente, através da ideia de sua importância, remonta-se no tempo e
recai em contradições seculares.
Mas, para além de idas e voltas, as especificidades da docência da infância é
um campo que ainda encontra-se por fazer-se, nas considerações de seus
64
professores, nas pesquisas, nas discussões que envolvam os interessados sob um
olhar atento e crítico.
Neste contexto, o professor de educação infantil ainda se depara com a
desvalorização profissional na precariedade de instalações de espaços físicos, na
falta de um quadro de apoio ao crescente número de crianças por adulto, nos baixos
salários, entre outros fatores que localizam o desestímulo e a desvalorização deste
profissional que “tem consciência clara da precariedade de sua formação profissional
e reclama o direito de capacitar-se, de aperfeiçoar-se” (BITTENCOURT, 2003, p.
76).
Torna-se importante refletir que a educação da infância embasa a
constituição de sujeito social. A docência da infância requer, segundo Campos
(1999), um aprofundamento no conhecimento das fases de desenvolvimento da
criança, de seu contexto social, cultural, de seu processo de aprendizagem.
As especificidades do professor de educação infantil solicitam o
re/conhecimento das funções de educar e cuidar indissociavelmente nas relações
adulto e criança, bem como na parceria entre família e escola, um perfil que exige
estudo e reflexão.
Diante de tantas ambiguidades sobre as especificidades do professor de
educação infantil em sua formação inicial, faz-se necessário considerar que essa
formação não se conclui na graduação, mas se estende na articulação da reflexão
da própria prática deste professor como sujeito de sua própria formação continuada,
considerando seus saberes e suas experiências na educação da infância.
É nesta perspectiva, a da formação continuada de professores como
possibilidade de desenvolvimento profissional em contexto escolar (em serviço), que
esse texto pretende continuar a discorrer, como uma perspectiva, tanto desafiante,
como transformadora que coloca o ser professor como aprendiz a partir da reflexão
de sua própria prática.
2.2 - A formação continuada do professor e a reflexão sobre a
prática
65
A formação continuada, nesta perspectiva, reconhecendo-se como um
desafio, mas, também, como transformadora, torna-se capaz de colocar o ser
professor como aprendiz através da ação da reflexão de sua própria prática.
A profissionalização do professor de educação infantil é um campo vasto que
não se restringe à sua formação inicial, contudo, comporta sua prática, sua
experiência que envolve seus saberes, sua reflexão e marca a aprendizagem
cotidiana nos diálogos junto à infância, à teoria, à família, aos colegas de profissão:
É importante destacar que se entende educação continuada como um processo complexo e multideterminado, que ganha materialidade em múltiplos espaços/atividades, não se restringindo a cursos, e/ou treinamentos, e que favorece a apropriação de conhecimentos, estimula a busca de outros saberes e introduz uma fecunda inquietação contínua com o já conhecido, motivando viver a docência em toda a sua imponderabilidade, surpresa, criação e dialética com o novo (PLACCO e SILVA, 2000, p.27).
A história da formação continuada de professores, como um tempo em que se
garantisse estudos coletivos na própria carga horária de trabalho docente, é uma
conquista, ainda, recente.
Nesta perspectiva, o Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC)
começou a ser organizado, como atividade escolar, a partir da década de 90. Com a
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN/1996), o professor teve
assegurado o direito de realizar a sua formação continuada.
Os artigos 61 e 67 desta lei previram para o docente a capacitação em
serviço, o aperfeiçoamento continuado e o tempo para estudos na própria carga
horária de trabalho.
Assim, as reivindicações dos professores conquistaram junto à lei um espaço
coletivo de estudos dentro de suas cargas horárias de trabalho, destacando o
contexto escolar.
Pautado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN/1996),
parte importante da formação continuada de professores foi organizada em HTPC,
distribuindo-se em hora atividade, conforme a carga horária de trabalho de cada
professor, com reuniões pedagógicas coletivas planejadas por um professor
coordenador em conjunto com o diretor de escola.
Entretanto, a conquista legal de uma formação continuada de professores no
contexto escolar nem sempre tem atendido à expectativa, à necessidade e ao
66
desenvolvimento profissional docente, pois, esta organização, às vezes, tem
ocorrido de forma burocrática, por profissionais que não se reconhecem
responsáveis pela formação continuada dos professores no interior da escola, ou,
através da propagação de projetos pedagógicos prontos, hierarquizados por meio da
“pirâmide” educacional que os introduz na escola, traduzindo-se em insatisfações
dos profissionais envolvidos.
Nesse embate, emerge a necessidade e o desafio de re/significar os HTPCs,
tendo-o como foco de uma importante possibilidade de desenvolvimento do
profissional professor, emerge o “repensar a formação continuada de professores e
adequá-la aos desafios de nosso momento” (CANDAU, 1996, p. 143).
O momento contemporâneo, em que o professor de educação infantil se
encontra, é marcado por um tempo histórico de busca incessante, de renovação de
práticas docentes, de reconstrução frente às novas exigências impostas pelas
complexas transformações como mudanças epistemológicas, sociais e tecnológicas
que levam ao desafio da formação continuada, ao:
conceito de formação associado à ideia de inconclusão do homem, numa “concepção sócio-construtivista: dialética, reflexiva, crítica, investigativa, organiza-se a partir dos contextos educativos e das necessidades dos sujeitos a quem se destina” (PORTO, 2000, p. 11).
Nesse contexto, olhando para os desafios que incorrem os profissionais,
Donald Schön (1997) percebeu, em suas investigações, que, as situações
conflitantes pelas quais os profissionais passavam, não lhes bastavam apenas a
utilização de teorias e técnicas apreendidas para a resolução dos problemas.
O autor desenvolveu, então, o conceito de reflexão-na-ação, na qual os
profissionais desenvolvem um processo de reflexão sobre a prática que: “às vezes
adquirem novas compreensões de situações incertas, únicas e conflituosas da
prática, nem sempre resolvidas” (SCHÖN, 2000, p. 41).
Contrariando a racionalidade técnica, a formação profissional, segundo Schön
(2000), dá-se por meio da reflexão na própria ação, ação que não dicotomiza a
teoria e prática, os meios e os fins, mas, proporciona o conhecer e o fazer de forma
inseparável.
67
Assim, o professor de educação infantil pode, então, refletir na e sobre a ação
de educar a infância, construindo caminhos coletivos para os conflitos e dúvidas de
sua profissão. No entanto, Schön (1997, p. 87) destaca que:
Nessa perspectiva o desenvolvimento de uma prática reflexiva eficaz tem que integrar o contexto institucional. O professor tem de se tornar um navegador atendo à burocracia. E os responsáveis escolares que queiram encorajar os professores a tornarem-se profissionais reflexivos devem criar espaços de liberdade tranquila onde a reflexão seja possível. Estes são os dois lados da questão – aprender a ouvir os alunos e aprender a fazer da escola um lugar no qual seja possível ouvir os alunos – devem ser olhados como inseparáveis.
Esta formação continuada, na qual o professor reflete sua ação, requer
encaminhamentos coletivos, construções de espaços e tempos adequados ao
exercício da reflexão-na-ação que tornem possível o refletir e dialogar a profissão
coletivamente.
Desta forma, o professor da infância toma as mudanças do mundo
contemporâneo e nele pode se formar constantemente, em sua prática docente, em
sua prática de vida, momentos que se interconectam na interlocução da
continuidade da prática pedagógica.
Um processo que se dá na continuidade marcada pela inconclusão, uma
formação que não se completa, “cada momento abre possibilidades para novos
momentos de formação [...] na experiência de vida do professor [...] construindo-se,
a partir desse entendimento, uma prática interativa e dialógica entre o individual e o
coletivo” (PORTO, 2000, p. 14).
A formação continuada encaminhada neste percurso objetiva tomar o próprio
fazer como foco da própria reflexão: “o fazer, entendido como uma atividade alheia à
experiência e ao conhecimento do professor, cede lugar ao saber fazer reflexivo,
percurso que ocorre na indissociabilidade teórico/prática” (Ibidem, p. 14), num círculo
contínuo do processo de construção de conhecimentos e autonomia.
A relação estabelecida na formação continuada do professor é, então, uma
relação de dialeticidade na qual Estrela (2003) afirma que:
se deveriam construir as teorias das práticas de formação e das práticas
organizativas do estabelecimento escolar, aspectos diferentes e articulados
do mesmo real, pressupondo uma interação sistêmica em que ganham
68
novos contornos palavras-chave como autonomia, diálogo [...] cooperação,
gestão de conflitos, democraticidade (Ibidem, p. 61).
Uma dialeticidade que coloca o professor como sujeito de sua história frente
ao contexto profissional. Assim, em sua profissão, o professor “não apenas sofre a
história, na condição de paciente, espectador, ouvinte. Pode interferir, ou melhor,
sua presença na realidade é tipicamente interferência, pois, sendo um dado objetivo
carregado de subjetividade, sua presença é sempre influência” (PORTO, 2000, p.
18).
A influência que o desafia a duvidar, refletir e inovar, comportamento dialético
que estabelece influências mútuas. Desta forma, “o homem se descobre e se
constrói, pois, na mediação do objeto” (PORTO, 2000, p. 17), “no e pelo objeto
impregnado de sociabilidade ou significado social, intersubjetivo” (HAGUETTE,
1990, apud MARIN, 2000, p. 17).
A formação continuada realizada junto ao diálogo que o professor estabelece
com seus pares, com os autores, possibilita, segundo Cunha (2007, p. 262), a
“formação continuada e permanente e também como possibilidade de
desenvolvimento profissional”.
Possibilidade que a pesquisa da autora revelou que, mesmo imerso por
limitações das condições de trabalho, os professores pesquisam, dialogam,
re/constróem suas práticas através deste olhar investigativo e produzem
“conhecimentos e saberes caros ao universo da escola e da academia” (CUNHA,
2007, p. 262).
É neste universo que Barbieri et al (1995, pp. 32-33) afirma que:
Independente das condições nas quais se efetuou a formação na graduação e da situação da escola, o professor precisa de continuidade nos estudos, não apenas para ficar atualizado quanto às modificações na área do conhecimento da disciplina que leciona. Há uma razão muito mais premente e mais profunda, que se refere a própria natureza do fazer pedagógico [...] histórico e inacabado.
A natureza do fazer pedagógico é instaurada por Zeichner (1992, p. 126) na
ideia de “estimular os professores a utilizarem o seu próprio ensino como forma de
investigação destinada à mudança das práticas”.
69
Ideia em que o autor a toma como responsabilidade dos formadores de
professores, na construção dessa interiorização dos futuros professores, a
“disposição e a capacidade de estudarem a maneira como ensinam e de melhorá-la
com o tempo, responsabilizando-se pelo seu próprio desenvolvimento profissional”
(Ibidem, p. 126).
Geraldi et al (1998) afirmam que, para Zeichner e Liston, os professores que
não refletem sua própria prática admitem, com naturalidade, a realidade do dia-a-dia
de suas escolas e, empreendem esforços para atingir objetivos e metas elencados
por outras pessoas.
Para estes autores, a reflexão é um dos principais componentes do contínuo
processo de aprender a ensinar na construção da profissionalização dos
professores.
Entretanto, esta reflexão suscita a necessidade de focar, além da própria
prática do professor, também as condições sociais, políticas e econômicas nas quais
se situa essa prática, incluindo-a como compromisso, como prática social
(ZEICHNER, 1993).
Neste sentido, Zeichner (1993) assume a prática reflexiva do professor como
um objeto teórico e critica a cisão estabelecida entre teoria e prática, declarando
que: “há uma separação entre teoria e prática que tem que ser ultrapassada: as
teorias existem exclusivamente nas universidades e a prática existe apenas nas
escolas” (Ibidem, p. 21).
A formação continuada, que infringe a cisão da teoria e prática, assume um
aspecto político que incorre na formação de professores sujeitos de uma história
social, cultural.
Neste sentido, ela, a formação continuada, proporciona condições de
transgredir valores pré-estabelecidos na educação infantil como: espaços
hierarquizados, práticas que dicotomizam o educar e cuidar, que envolvem sistemas
de valores que afastam as famílias como parceiras, que envolvem uma construção
de um conceito de infância estratificado, dividido entre os diversos olhares das
diferentes áreas (educação, saúde, social).
Assim, a formação continuada “liga-se indissociavelmente ao contexto e aos
actores que a produziram” (ESPINEY, 2003, apud CANÁRIO, 1994, p. 185),
“coproduzidos com os destinatários da formação” (CANÁRIO, 1994, p. 23).
70
As especificidades do professor de educação infantil sendo re/construídas na
formação em contexto, bem como, “as peculiaridades dos sujeitos, dos professores,
gerando um contexto de explicitação e reconstrução destas peculiaridades [...]
[convertem] por sua vez, as escolas em contextos de formação, aperfeiçoamento e
aprendizagem dos professores” (ESCUDERO e BOLIVAR, 1994, apud Marin, 2000,
p. 26).
Como aspecto político, a formação continuada instaura, ao sujeito professor,
uma formação a partir do social, envolvendo e influenciando o contexto escolar e,
por ele sendo influenciado.
Esta aprendizagem adquire sentido, pois, o professor encontra como cerne de
sua prática, zonas indeterminadas, nas quais ele “julga e decide, a partir da análise
de uma situação singular e com base nas suas convicções pessoais e nas suas
discussões com os colegas” (NÓVOA, 1999, p. 19), processo que se transforma em
uma dimensão central da identidade docente.
Desta forma, a formação continuada possibilita uma autoconstrução na
construção da profissionalização do professor e lhe confere contribuir com muitas
outras construções de muitos outros, principalmente “consolidar as dimensões
colectivas da profissão” (NÓVOA, 1999, p.20), pois, seu processo de
desenvolvimento interage com o meio social como:
processo contínuo de reconstrução identitária; o sujeito em formação como construtor de conhecimento e de realidade social, simultaneamente sujeito e agente de socialização; as necessidades de formação menos como lacunas do que como desejo e aspirações que assumem sentido em relação a um projecto de vida; o caráter formativo dos contextos de trabalho e, consequentemente, o princípio da centração da formação na escola e na vida organizacional do estabelecimento de ensino, concebido como centro da comunidade educativa, valorização dos métodos de formação baseados na reflexão sobre as práticas ou sobre os documentos pessoais onde se reflecte a vida dos formados e o sentido que eles conferem aos acontecimentos da sua vida pessoal e profissional (ESTRELA, 2003, p. 46).
Entretanto, a formação em contexto no lócus escolar se traduz como um
desafio, pois, “no que diz respeito à formação continuada dos professores, em
especial, a formação em serviço, que se dá na própria escola, o que se observa é a
quase ausência de políticas e programas voltados a esta finalidade” (SILVA, 2002b,
p. 9).
71
Todavia, a formação continuada tem na escola um campo fértil de reflexão da
própria prática docente, de aprofundamento teórico, de revisão de objetivos, de
tratamento de problemas emergentes, enfim, de um empenho individual e coletivo de
reflexão, criticidade e ação (SILVA, 2002b).
A formação continuada desvinculada do contexto escolar, como cursos,
seminários, tem suscitado, ao professor, mais insatisfação do que mudanças
positivas em sua prática pedagógica (SILVA, 2002b, p. 10).
A escola é o campo de atuação dos professores, é nela e sobre ela que os
professores podem refletir suas ações, pesquisarem-nas e, direcionarem-nas
através do diálogo coletivo às transformações. “Não se pode pensar a perspectiva
de uma nova escola sem colocar como meta primordial a formação continuada. Para
tanto, é necessário que a escola se constitua num espaço de crescimento do
professor” (Ibidem, p. 15).
Além de Silva (2002b) e Formosinho (2002), Candau (1998) também defende
o universo escolar como lócus destinado à formação continuada. A autora ressalta o
cotidiano do professor na escola como possibilidade de aprendizagem,
desaprendizagem, reestruturação da aprendizagem, descobertas, constituindo,
portanto, a escola, um lócus propício de aprimoramento e formação docente.
Candau (1998) ressalta que a formação continuada dos professores na escola
atua nas necessidades reais dos professores, em seu cotidiano, favorecendo os
processos de pesquisa-ação, no entanto, adverte que este processo deve ser
coletivo, reflexivo, capaz de encaminhar problemas conjuntamente.
Neste contexto:
A prática do professor deve buscar a criação de um ambiente escolar que promova o desenvolvimento das pessoas nele envolvidas. Esse tipo de prática, entretanto, não deve ser fruto de instruções, criadas em instâncias externas ao próprio contexto e aplicadas como fórmula única que resolve diferentes problemas, mas, sim, criadas num processo de emergência a partir da reflexão sobre as próprias práticas docentes e da discussão sobre a relação ensino-aprendizagem. Esta reflexão constitui-se necessariamente como prática social, realizada com seus pares, para que possa ser profícua. Essa perspectiva não exclui a participação estratégica de elementos exteriores, que pelo seu distanciamento possam oferecer outras perspectivas que naturalmente enriquecem e aprofundam o contexto de reflexão (SADALLA e SÁ-CHAVES, 2008, p.190).
Rompendo barreiras, a formação continuada de professores na escola se
torna significativa, pois, como afirma Schnetzler (2002), ela traz para o contexto do
72
professor e para o contexto escolar a motivação dos estudos e da investigação
peculiar da ação docente, composta por vínculos de relações que extinguem a
solidão profissional na possibilidade de troca de experiências em grupo,
desenvolvendo um sentimento de pertença e de comprometimento da continuidade
de construção do ser professor.
Construção de que Tardif (2002) reforça a ideia da formação continuada, visto
que, os saberes dos professores advêm de suas histórias de vida, portanto, na ação
docente, na pluralidade, na heterogeneidade compartilhada que se dá a reação do
ser professor perito estranho à escola (FORMOSINHO, 2002).
Mas, não basta a esse ser professor apenas a reflexão, ressalta-o uma
reflexão crítica, da qual a falta desse componente, adverte Contreras (2002), poderá
reduzir a autonomia docente ao limite da sala de aula, do indivíduo professor
apenas, já que, para melhorar a educação, é preciso transformar as formas
socialmente estabelecidas que condicionam a prática.
Essas formas solicitam uma criticidade de um olhar abrangente e, para esse,
a busca teórica se desenvolve de forma estratégica.
Forma que Gómez (1992) complementa com a ideia de que, além da reflexão
crítica, pesquisa, busca teórica, o professor reflexivo deve dialogar esses elementos
à realidade que o cerca, para além das regras, dos procedimentos e das teorias, só
assim, a formação do professor se dará como um profissional reflexivo.
Nesse propósito, o professor reflexivo toma a formação continuada como um
importante processo, imprescindível para que:
o professor, durante o seu desenvolvimento profissional, tenha condições de gerenciar estes dilemas, sendo um dos caminhos para este gerenciamento buscar, de modo coletivo, explicitar os confrontos presentes no cotidiano do professor, identificando as crenças e os valores que estão por trás destes dilemas, bem como nas ações realizadas, podendo alterá-los à luz de novos argumentos, caso não estejam contribuindo na resolução destas situações (SADALLA e SÁ-CHAVES, 2008, p. 191).
Todavia, a formação continuada também incorre em desafios, além de suas
possibilidades. Um dos focos do desafio da formação continuada percorre o campo
que Ponte (1998, p. 27) definiu como:
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Falar de formação é um terrível desafio. Em primeiro lugar, porque a formação é um mundo onde se inclui a formação inicial, contínua e especializada, onde é preciso considerar os modelos, teorias, e investigação empírica sobre a formação, analisar a legislação e a regulamentação e, o que não é de menor importância, estudar as práticas reais dos actores e das instituições no terreno e as suas experiências inovadoras. Em segundo lugar, porque a formação é um campo de luta ideológica e política. Não há grupo com interesses na educação que não tenha as suas posições a defender, e fá-lo com todo o à-vontade e, às vezes, com grande agressividade. E, em terceiro lugar, porque a formação é um daqueles domínios em que todos se sentem à vontade para emitir opiniões, de onde resulta a estranha impressão que nunca se avança.
É voltado para esse contexto que o desafio da formação continuada no lócus
escolar se reflete, no realizá-la junto a um coletivo de professores, estabelecendo
uma organização humana, espacial, temporal que contemple os diferentes
momentos de desenvolvimento profissional dos professores de educação infantil e
de suas necessidades.
Imprescindivelmente, é preciso re/significar o espaço e tempo dos HTPCs
para se constituírem como formação continuada. Sua organização, muitas vezes,
tem ocorrido em meio a um contexto burocrático, do qual é previsto pautas externas
à escola, cumprimento de atividades distantes, elencadas como importantes por
profissionais externos ao contexto escolar que comprometem a autonomia desta
formação, estratificando-a.
Os contextos reais dos HTPCs das escolas de educação infantil têm sido
instaurados por dificuldades que vão desde a falta de um profissional preparado e
contratado para coordená-lo, a dificuldades de organizar um tempo disponível ao
coletivo.
O coletivo das escolas de educação infantil encontra professores que
acumulam atividades profissionais diversas como alternativas de sobrevivência,
consequentemente, a união deste coletivo tem se dividido em diversos horários,
prejudicando o estudo, a reflexão e a troca.
Outro fator importante que compromete os HTPCs, como formação
continuada, desenvolvimento profissional, é a aplicação de políticas públicas a
algumas escolas, como a pesquisada, que garante o horário, mas não um
profissional que possa conduzi-lo, em parceria ao diretor (coordenador pedagógico),
ficando, assim, ao encargo dos diretores, além do acúmulo de outras diversificadas
funções burocráticas, pedagógicas e administrativas na educação infantil.
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Assim, este contexto da formação continuada, ainda marca reivindicações,
“lutas” a serem travadas para a garantia legal de estabelecer os HTPCs como
formação, desenvolvimento docente contínuo.
Contudo, o desafio se faz necessário enfrentar, para além dos obstáculos, a
formação continuada, desenvolvida nos HTPCs, ressalta-se como possibilidade de
uma atividade humana que concebe o professor como sujeito de sua continuidade
profissional, histórica.
Um ser humano incompleto, inerentemente aprendiz que pode refletir sua
prática com criticidade e produzir teorias, dialogando-as, trocando-as junto ao seu
coletivo, junto aos autores, às crianças, às famílias, enfim, à comunidade interna e
externa ao lócus escolar.
Os conflitos e confrontos da relação família e escola identificados nesta
pesquisa apontam para a possibilidade e para o desafio de assumir uma formação
continuada de professores de educação infantil que possa ser desenvolvida nos
HTPCs, com o propósito de destacar os professores como sujeitos de sua
caminhada profissional
Transgredindo o contexto real, desafiador dos HTPCs escolares, a formação
continuada poder-se-á, então, dar-se como processo de estudo, compreensão e
empreendimentos coletivos na re/construção da especificidade do professor da
educação infantil, que destaca o desenvolvimento do educar e cuidar (na
preocupação de controverter a dicotomia histórica imposta), além do
desenvolvimento da relação família e escola como possibilidade de
complementaridade e parceria na educação da infância.
75
CAPÍTULO 3
TECENDO A HISTÓRIA DA PESQUISA
Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão.
(MELO NETO, 2002, Tecendo a manhã, p. 13).
Este capítulo apresenta o referencial metodológico da pesquisa, que é
orientado pela teoria histórico-cultural, abordando a concepção da constituição
humana, mediada pela linguagem. Um estudo das teorias de Vigotski (1995, 1998,
2000, 2001), Bakhtin (1981, 1997, 2006), Freitas (2002, 2003), entre outros autores.
Texto do qual se depreende todo o percurso da pesquisa e fundamenta os
princípios da interpretação dos dados de campo, revelando o contexto histórico-
cultural a que pertencem os envolvidos e sobre o qual a questão investigada se
desenvolve.
Desta forma, apresenta-se o contexto da pesquisa, seus objetivos, sua
justificativa, além de sua questão central. Descreve-se a escola pesquisada, no
espaço e tempo de sua história, seus sujeitos e a pesquisa de campo, fornecendo
dados que compõem uma importante visão para o entendimento do
desenvolvimento desta investigação.
76
3.1 - A constituição do sujeito histórico-cultural e a mediação
da linguagem
Esta pesquisa, orientada pela abordagem histórico-cultural, assume como
ponto de partida que o ser humano se forma através das relações sociais, relações
que são marcadas pela história e pela cultura a que se inserem. Compreende que o
mundo é significado pelo outro, seu sentido é mediado pelo outro (VYGOTSKY,
1998) através da linguagem nas inúmeras relações constituídas (BAKHTIN, 2006).
A perspectiva histórico-cultural se fundamenta na interpretação da
investigação desta pesquisa, pois, permeia a compreensão de que os sujeitos que a
compõe foram constituídos nas relações sociais estabelecidas como seres humanos
e profissionais, formaram-se, portanto, no social, tendo, assim, os professores, suas
atividades concretas de vida como eixo de seu desenvolvimento pessoal e
profissional.
Neste propósito, a pesquisa realizada sob a perspectiva histórico-cultural se
encaminha, segundo Freitas et al (2003, p. 27-28), pelas seguintes características:
A fonte dos dados é o texto (contexto) no qual o acontecimento emerge,
focalizando o particular enquanto instância de uma totalidade social.
Procura-se, portanto, compreender os sujeitos envolvidos na investigação
para, através deles, compreender também seu contexto.
As questões formuladas para a pesquisa não são estabelecidas a partir da
operacionalização de variáveis, mas se orientam para a compreensão dos
fenômenos em toda a sua complexidade e em seu acontecer histórico. Isto
é, não se cria artificialmente para ser pesquisada, mas vai-se ao encontro
da situação no seu acontecer, no seu processo de desenvolvimento.
O processo de coleta de dados caracteriza-se pela ênfase na compreensão,
valendo-se da arte da descrição que deve ser complementada, porém, pela
explicação dos fenômenos em estudo, procurando as possíveis relações
dos eventos investigados numa integração do individual com o social.
A ênfase da atividade do pesquisador situa-se no processo de
transformação e mudança em que se desenrolam os fenômenos humanos,
procurando reconstruir a história de sua origem e de seu desenvolvimento.
O pesquisador é um dos principais instrumentos da pesquisa porque, sendo
parte integrante da investigação, sua compreensão se constrói a partir do
lugar sócio-histórico no qual se situa e depende das relações intersubjetivas
que estabelece com os sujeitos com quem pesquisa.
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O critério que se busca numa pesquisa não é a precisão do conhecimento,
mas a profundidade da penetração e a participação ativa tanto do
investigador quanto do investigado. Disso resulta que pesquisador e
pesquisado têm oportunidade para refletir, aprender e ressignificar-se no
processo de pesquisa.
Nesta perspectiva, esta pesquisa aborda o estudo do desenvolvimento
cultural humano mediado pela linguagem, o indivíduo marcado pelo social, como
destaca Magda Soares: “Os meus dias não são meus, são nossos” (SOARES, 2003,
p. 47).
Pois: “Não vimos ao mundo providos de espelhos, mas de pares: a
consciência de nossa própria individualidade organiza-se e desenvolve-se em
nossas relações sociais” (FONTANA, 2003, p. 61).
Assim, a pesquisa sob a perspectiva histórico-cultural investiga a partir de um
contexto particular que se conecta a um processo social, histórico, muito mais
amplo. As observações e estudos caminham de uma micro esfera para uma macro,
envolvidas pela dialeticidade (VYGOTSKY, 1998).
Compondo a pesquisa histórico-cultural, no âmbito da psicologia, Vigotski
amplia os estudos sobre o homem e:
Procura desse modo construir o que chama de uma nova psicologia que deve refletir o indivíduo em sua totalidade, articulando dialeticamente os aspectos externos com os internos, considerando a relação do sujeito com a sociedade à qual pertence. Assim, sua preocupação é encontrar métodos de estudar o homem como unidade de corpo e mente, ser biológico e ser social, membro da espécie humana e participante do processo histórico. Percebe os sujeitos como históricos, datados, concretos, marcados por uma cultura como criadores de ideias e consciência que, ao produzirem e reproduzirem a realidade social, são ao mesmo tempo produzidos e reproduzidos por ela (FREITAS, 2002, p. 22).
Considerando este percurso, Vygotsky (1998, p. 74) chama a atenção do
pesquisador de que a dialeticidade implica em transformações, “Estudar alguma
coisa historicamente significa estudá-la no processo de mudança” e, isso exige
novos métodos investigativos. “Está, nesse sentido, mostrando que a preocupação
do pesquisador deve ser maior com o processo em observação do que com o seu
produto” (FREITAS, 2002, p. 27).
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Refletindo o homem como ser social, Vigotski destaca a linguagem como
mediadora na constituição deste ser social. Nesse sentido a linguagem humana se
converte em discurso nas relações sociais e, são transformadas, de atividades
externas, em atividades internas no processo de desenvolvimento do pensamento
(VYGOTSKI, 1995).
A linguagem constituiu sua história juntamente à história do ser humano. A
necessidade de se comunicar levou o homem a criar sinais, códigos e regras que
pudessem representar o sentido do real e constituir a comunicação nas interações
sociais entre os homens.
Para Vygotsky (2001, p. 409) “o pensamento não se exprime na palavra, mas
nela se realiza”, pois revela as significações e sentidos construídos pelo sujeito no
social, um processo dialético no qual o sujeito constitui a linguagem ao mesmo
tempo em que essa o constitui.
Ressalta-se, então, no pensamento vigotskiano, a constituição histórico-
cultural dos significados construídos na/pela linguagem através da interação social.
Portanto, foi somente através da interação social que a linguagem pôde constituir-se,
uma ação que lhe conferiu significação, um campo semiótico.
Desta forma, para Vygotsky (2000, p. 130), compreender a fala do sujeito
requer entender o seu pensamento e as circunstâncias em que esses foram
produzidos:
Para compreender a fala de outrem não basta entender as suas palavras – temos que compreender o seu pensamento. Mas nem mesmo isso é suficiente – também é preciso que conheçamos a sua motivação. Nenhuma análise psicológica de um enunciado estará completa antes de ser atingido esse plano.
A ideia do autor sustenta teoricamente o campo de investigação desta
pesquisa sobre a relação entre família e escola na perspectiva dos sujeitos
professores, destacando um caminho de estudo sobre o contexto histórico-cultural
a que estes professores pertencem e expressam em seus diálogos.
Nesse sentido, é possível, então, a composição do objetivo de compreender o
“olhar” das professoras sobre essa relação.
Assim, em Vygotsky (2000), pensamento e linguagem se interagem na
materialização da palavra, expressa na vida que lhe confere a significação, o
79
sentido das palavras e que, por ser produzido histórica e culturalmente,
desenvolve-se e se transforma no percurso do diálogo social junto ao tempo.
No mesmo sentido teórico de Vigotski, Bakhtin reflete, no campo da
linguística, uma abordagem histórico-cultural. “Enquanto Vygotsky procura essa
solução no campo psicológico, Bakhtin (1895 – 1975), enfrentando as teorias do
fenômeno linguístico, critica também as posições empíricas idealistas” (FREITAS,
2002, p. 22).
Estudando a língua como um sistema vivo, utilizada em atividades concretas
de vida, Bakhtin (2006) fundamentou sua teoria sobre as concepções marxistas, ou
seja, o homem se constituindo a partir da concretude material e histórica de sua
vida. "Como um crítico do formalismo russo, opôs à sua monotonia monológica,
uma visão de mundo pluralista, polissêmica e polifônica" (Freitas, 1996, p. 118).
Bakhtin (2006) confrontou, então, o objetivismo abstrato, de Sausurre, que
determinava a língua como um sistema de normas linguísticas imutáveis, normas
gramaticais utilizadas de forma monológica e, o subjetivismo idealista, de Humboldt,
que apartava da língua seu conteúdo ideológico e a estabelecia como uma atividade
mental coordenada apenas pelo psiquismo individual “e [propôs], em sua
perspectiva dialógica, o estudo da língua em sua natureza viva e articulada com o
social pela interação verbal” (FREITAS, 2002, p. 22):
A língua, como sistema de formas que remetem a uma norma, não passa de
uma abstração, que só pode ser demonstrada no plano teórico e prático do
ponto de vista do deciframento de uma língua morta e do seu ensino. Esse
sistema não pode servir de base para a compreensão e explicação dos
fatos linguísticos enquanto fatos vivos e em evolução (BAKHTIN, 2006, p.
110).
Para o filósofo linguista, essas correntes se divergiam de suas concepções
pela impossibilidade de percepção ética, histórica, sociológica, ideológica e dialógica
do caráter da linguagem, fato que o impulsionou, junto a seu círculo, à construção de
um caminho vivo de investigação da heterogeneidade discursiva, sob um foco
antropológico, histórico-cultural da produção dos discursos humanos:
A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato
de formas linguísticas, nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo
ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da
80
interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A
interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua
(BAKHTIN, 2006, p. 125).
O pesquisador das Ciências Humanas possui, então, como matéria prima, o
discurso em suas investigações. Seu objeto é um sujeito que se constitui na
linguagem e que a constitui através de suas atividades sociais concretas.
“Considerar o homem e estudá-lo independentemente dos textos que cria significa
situá-lo fora do âmbito das ciências humanas” (FREITAS, 2002, p.24).
Para conhecer o homem, é preciso conhecer o seu discurso e emitir esse
conhecimento, também, através do discurso: “Discurso sobre discursos, as Ciências
Humanas têm, portanto, essa especificidade de ter um objeto não apenas falado,
como em todas as outras disciplinas, mas também um objeto falante” (AMORIM,
2002, p. 10), o sujeito.
Desta forma, a investigação assumida na abordagem histórico-cultural
considera “a pesquisa como uma relação entre sujeitos, portanto numa perspectiva
dialógica, Bakhtin assume a interação como essencial no estudo dos fenômenos
humanos” (FREITAS et al, 2003, p. 28).
Nas ciências humanas, reconhecendo os estudos de Bakhtin, Freitas revela o
diálogo como fonte essencial de investigação para o pesquisador, assim:
Encontra-se perante um sujeito que tem voz, e não pode apenas contemplá-lo, mas tem de falar com ele, estabelecer um diálogo com ele. Inverte-se, desta maneira, toda a situação, que passa de uma interação monológica sujeito-objeto para uma relação entre sujeitos. De uma orientação monológica passa-se a uma perspectiva dialógica. Isso muda tudo em relação à pesquisa, uma vez que investigador e investigado são dois sujeitos em interação. O homem não pode ser apenas objeto de explicação, produto de uma só consciência, de um só sujeito, mas deve ser também compreendido, processo esse que supõe suas consciências, dois sujeitos, portanto, dialógico (FEITAS, 2002, pp. 24-25).
Através do estudo do diálogo junto ao sujeito, o pesquisador pode
compreender este sujeito. As Ciências Humanas trabalha ativamente no intuito de
conhecer esse ser social, através de seu texto, também, social, no contato com o
exato ponto em que “irrompem as consciências”, ou seja, no diálogo, pois, “o homem
em sua especificidade sempre exprime a si mesmo (fala), isto é, ele cria texto (ainda
que potencial). Quando o homem é estudado fora do texto e independente deste, já
81
não se trata de ciências humanas (mas de anatomia, de fisiologia humana etc.)”
(BAKHTIN, 1997, p. 334).
Neste sentido, para esta pesquisa, compreender o professor como um sujeito
histórico-cultural é percorrer, no universo da ética, seu diálogo, exposto nas relações
sociais dialógicas e ideológicas como desenvolvimento humano.
Bakhtin, por conseguinte, não foi só para sua época um autor inovador, ele
continua vivo e atual, em seus estudos, considera a língua como uma atividade, por
excelência, social.
Consequentemente, a palavra se constitui no interior de um campo de
conflitos e confrontos sociais, de forma que “todo signo é ideológico; a ideologia é
um reflexo das estruturas sociais; assim, toda modificação da ideologia encadeia
uma modificação da língua” (BAKHTIN, 2006, p. 16).
Bakhtin (2006) destaca que, nesse processo, a transformação das
significações dos sentidos atribuídos pelo homem através da linguagem depende de
transformações sociais, culturais e históricas.
Busca, então, Bakhtin (2006), desvelar a ideologia da palavra, do signo
plurivalente, num contexto dialógico que reflete e refrata uma realidade exterior. Sua
tessitura compõe-se de fios ideológicos que ligam as relações sociais, ao mesmo
tempo em que delas se compõem.
A palavra, que é ideológica, marca um discurso constituído por inúmeras
vozes que ressoam na interação discursiva, “conflitiva junto aos diferentes
personagens sociais”, como considera Graciela Reyes, em Tiempo, Modo, Aspecto e
Intertextualidade (apud BRAIT, 2003, p. 15)7 ao qual:
Ducrot considera que todo discurso es semejante a uma representación
teatral, pues nos expresamos através de voces: las voces representan
personajes que ponemos en escena y hacemos hablar, identificandonos
com unos y non com otros. Todo discurso, según esta perspectiva, es
intensamente dialógico: incluso el locutor se representa a si mismo
escindiéndoso em voces (Ducrot, 1985). Bajtín, el más importante precursor
7 Uma possível tradução seria: Ducrot considera que todo discurso é como uma performance teatral,
tal como nos expressamos através de vozes: as vozes representam personagens que colocamos em cena e fazemos falar, identificamo-nos com uns e não com outros. Todo discurso, segue esta perspectiva, é intensamente dialógico: inclui o locutor que se representa a si mesmo em várias vozes (Ducrot, 1985). Bakhtin é o mais importante precursor destes estudos, opondo-se aos conceitos unitários da linguística saussuriana, a linguagem, enquanto manifestação da consciência na história, é plural, um espaço onde convivem e dialogam incessantemente vozes distintas representantes de pontos de vista distintos, conflitivos, em contínua interação (BAKHTIN, 1981).
82
de estos estúdios, propuuso, oponiéndose a los conceptos unitários de la
lingüística saussuriana, que el lenguage, em cuanto manifestación de la
conciencia em la historia, es plural, um espacio donde conviven y dialogan
incesantemente voces distintas representantes de puntos de vista distintos,
conflictivos, em continua interación (Bajtin, 1981).
Desta forma, Bakhtin (2006) toma a linguagem em sua essência como sendo
um acontecimento social, dialógico, portanto, histórico e ideológico, um fenômeno
vivo, imerso em enunciados concretos.
A palavra permite, assim, o descobrir da vida do homem em seu cotidiano, de
seus valores tecidos em seus discursos de múltiplas vozes, constituídos em um elo
de comunicação verbal que revela o processo de transformações sociais:
As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e
servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É
portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas
as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que
ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas
ideológicos estruturados e bem formados. A palavra constitui o meio no qual
se produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças que ainda não
tiveram tempo de engedrar uma forma ideológica nova e acabada. A palavra
é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das
mudanças sociais (BAKHTIN, 2006, p. 40).
A consciência humana se forma e existe através dos signos ideológicos
organizados nas relações sociais, ou seja, “a lógica da consciência é a lógica da
comunicação ideológica da interação semiótica de um grupo social” (BAKHTIN,
2006, p. 34).
Ao pesquisador, cabe, então, atentar-se para a palavra como um “fenômeno
ideológico por excelência” (BAKHTIN, 2006, p. 34), de forma a apresentar-se “em
todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação” (BAKHTIN,
2006, p. 36). Assim, a linguagem como objeto das ciências humanas, interessa-se
viva e se constitui no social.
O ser falante não é o primeiro no mundo a utilizar-se da língua, seu enunciado
tece-se em uma variedade de outros enunciados, já que: “O locutor não é um Adão,
e por isso o objeto de seu discurso se torna, inevitavelmente, o ponto onde se
encontram as opiniões de interlocutores” (BAKHTIN, 1997, p. 320-321).
83
Este contexto social promove, então, uma multiplicidade de relações reais e
significantes (BRAIT, 2005) que revelam ao pesquisador “o homem social que fala e
que só pode ser conhecido através dos textos”, dos quais deve considerar-se “a
forma concreta e as condições concretas de vida desses textos” (BRAIT, 2003, p.
23), que se expressam verbal, ideológica e dialogicamente.
É sobre o contexto bakhtiniano que, procurando redefinir suas contribuições
para as ciências humanas, principalmente para o pesquisador, que este estudo
aborda suas concepções, na intenção de compreender a intertextualidade, a dialogia
e ideologia que se fundiram na voz dos sujeitos (professoras), pois:
Somente quando contrai relações dialógicas essenciais com as idéias dos
outros é que a idéia começa a ter vida, isto é, a formar-se, desenvolver-se, a
encontrar e renovar sua expressão verbal, a gerar novas idéias. O
pensamento humano só se torna pensamento autêntico, isto é, sob as
condições de um contato vivo com o pensamento dos outros, materializado
na voz dos outros, ou seja, na consciência dos outros expressa na palavra.
É no ponto desse contato entre vozes-consciências que nasce e vive a Idea
(...) a ideia é interindividual e intersubjetiva, a esfera de sua existência não é
a consciência individual, mas a comunicação dialogada entre consciências.
A ideia é um acontecimento vivo, que irrompe no ponto de contato
dialogado entre duas ou várias consciências (BAKHTIN, 1981, pp. 13 e 73).
Vigotski, ao considerar que a constituição humana se dá a partir do social,
nas interrelações e, Bakhtin, que essa constituição é mediada pela linguagem,
também, a partir do social, contribuíram para a pesquisa nas Ciências Humanas,
ampliando o campo de observação e compreensão do pesquisador, ou seja, o
contexto.
Desta forma, realizar a pesquisa sob a perspectiva histórico-cultural é
trabalhar em coerência com o processo de composição dos acontecimentos, a partir
da ética junto aos sujeitos da pesquisa.
Todo o processo de pesquisa, fundamentado na perspectiva histórico-cultural,
traz para seus envolvidos um campo fértil de produção de conhecimento no qual, as
interações dos sujeitos junto ao pesquisador, junto ao campo teórico, empírico,
envolvendo a interrelação de pessoas através do diálogo, transforma-se em uma
esfera ampla de aprendizagens coletivas. Nestas circunstâncias:
Produzir um conhecimento a partir de uma pesquisa é, pois, assumir a perspectiva da aprendizagem como processo social compartilhado e
84
gerador de desenvolvimento [...] Disso também resulta que o pesquisador, durante o processo de pesquisa, é alguém que está em processo de aprendizagem, de transformações. Ele se ressignifica no campo. O mesmo acontece com o pesquisado que, não sendo um mero objeto, também tem oportunidade de refletir, aprender e ressignificar-se no processo de pesquisa. Bakhtin e Vygotsky tornam o processo de pesquisa um trabalho de educação, de desenvolvimento (Freitas, 2002, pp. 25-26).
Assim, torna-se, então, esta pesquisa, a partir da perspectiva histórico-
cultural, um fenômeno de aprendizagens coletivas, de transformações, de
dialeticidade cultural, sobre o conhecimento dela e por ela desenvolvido.
3.2 – O contexto da pesquisa
O objetivo central das investigações desta pesquisa se direcionou para
compreender as perspectivas de professoras de educação infantil sobre a relação
entre família e escola.
A pesquisa se deu em uma escola de educação infantil que faz parte da rede
pública municipal, de uma cidade do interior do estado de São Paulo que recebe
crianças de dois a cinco anos, em período integral e parcial.
A investigação se justificou, em especial, pela importância de evidenciar os
embates, as crenças, valores e ideais docentes que permeiam a relação família e
escola e revelam conflitos e confrontos histórico-culturais, informando as
significações das professoras sobre a complementaridade destas duas instituições
educacionais no educar e cuidar da infância:
Nesse sentido cabe dizer que o exercício da docência é feito
essencialmente de negociações e de estratégias de interação nas quais
com frequência ocorrem tensões e dilemas. Dilemas, que configuram algo
muito mais enraizado do que a simples alteração pelo professor dos
procedimentos didáticos, pois implicam também alterações sobre o saber
docente em relação ao seu trabalho (SADALLA e SÁ-CHAVES, 2008,
p.190).
85
Desta forma, esta pesquisa, reconhecendo as professoras como seres em
contínua trans/formação na complexa tarefa pedagógica que se abre para o mundo
contemporâneo, desenha-se na possibilidade de responder a seguinte questão:
Quais as perspectivas de professores de educação infantil sobre a relação entre
família e escola?
Cabe ressaltar que esta pesquisa foi realizada pela diretora da escola, a qual
se insere neste contexto, também, como pesquisadora e atua em uma realidade
complexa, comum a algumas escolas de educação infantil do município que exige
um acúmulo de funções às suas diretoras, principalmente ao atendimento diário às
famílias que ainda não conseguiram vagas.
Funções políticas, administrativas, burocráticas e pedagógicas advindas de
um quadro funcional que não admite profissionais de apoio (secretário, coordenador
pedagógico), devido às políticas públicas municipais não considerarem necessário
ao módulo (número) de crianças matriculadas atualmente (cento e sessenta e oito).
Atividades múltiplas que exigem tempo e busca de alternativas variadas para
um trabalho que se torna fragmentado diante dessa realidade.
Dentre as múltiplas atividades, uma das funções da direção é organizar a
formação continuada das professoras no Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo
(HTPC), uma vez que a escola está sendo considerada como um espaço de
formação e socialização profissional importante, um lugar onde os professores
aprendem a sua profissão (CANÁRIO, 1999).
Assim, as investigações, iniciadas no contexto maior, posteriormente,
fundamentaram-se neste horário de formação continuada, do qual as professoras se
reúnem semanalmente por duas horas.
Este encontro tem se tornado, a cada ano, mais difícil de ser organizado.
Instauram-se neste quadro de dificuldades vários aspectos: a dificuldade de
promover, em horário de trabalho, um tempo coletivo de estudos, já que as
professoras possuem outras atividades remuneradas como alternativa salarial,
tornando-se difícil a organização de um encontro coletivo que garanta a
disponibilidade de tempo das professoras; outro aspecto relevante é o acúmulo de
atividades que a direção tem ocupado nesses últimos anos, as políticas públicas
municipais e estaduais têm exigido um montante de atividades burocráticas como:
programas informatizados que contemplam os dados das professoras, das crianças
86
inscritas, matriculadas; planilhas de controle mensal das mesmas; uso e justificativa
de verbas públicas que envolvem reuniões junto ao conselho de escola, com
orçamentos e prestações de contas burocratizadas dos gastos; entre outras
atividades administrativo-pedagógicas que ocorrem na frequência diária, mensal,
semestral e anual e, das quais, todas são de responsabilidade do diretor escolar.
Nesta demanda de atividades, ressalta-se, também, o atendimento às famílias
das crianças que ainda não conseguiram vagas; os problemas da merenda escolar;
dos funcionários como: ausências, doenças, entre outros que exigem organizações,
alternativas do diretor, do grupo para equacionar todo esse atendimento.
O HTPC entra nesta infinita lista de atividades e dificuldades de organização,
no entanto, considerando-o como um caminho importante para promover a formação
pedagógica profissional, tenta-se destacá-lo como eixo principal de um trabalho de
qualidade junto ao atendimento à infância e, assim, priorizá-lo.
No ano de 2009, a dificuldade de garantia coletiva do encontro das
professoras no HTPC fez deslocá-lo para o final do turno da tarde, adentrando o
período noturno.
As pautas desse encontro atraíam as necessidades de formação dialogadas
nos períodos de trabalho e nos próprios encontros, entretanto, abriam-se sempre
espaço para as emergências circunstanciais, ou seja, avisos administrativos,
pedagógicos que a Secretaria Municipal de Educação repassava em documentos
diversos e, um assunto constante, presente em quase todos os HTPCs, a relação
família e escola.
A relação família e escola sempre foi tema atuante desses encontros por meio
de conflitos e confrontos a algumas famílias, ou até, por meio de exemplos que
enalteciam o comportamento de outras.
Por outro lado, a direção também exercia (exerce) a atividade de
harmonização dos comentários ou reclamações tecidas pelas famílias a esta
relação.
Presente nos vários momentos profissionais, inclusive nos HTPCs, a relação
família e escola exigia estudo de todos, mas, exigia, primeiramente, uma
investigação que desse conta de abordá-la, de oferecer caminhos para este estudo.
87
3.2.1 - A escola pesquisada
A escolha da escola pesquisada se deu por um fator muito particular da
pesquisadora (diretora) junto à pesquisa, o de trazer, para esta pesquisa, a
necessidade do seu contexto profissional, no qual toda avaliação indicava a
emergência de pesquisar e estudar a relação família e escola, tendo em vista, que
essa relação destaca um fator relevante para a construção do desenvolvimento da
educação e cuidados integrais à infância.
O desafio da escolha de investigar a própria escola revelou a facilidade de
estar a todo tempo no campo de investigação, a amplitude de conhecimento de um
lugar muito peculiar, mas, também, o esforço do distanciamento para compor a
sistematização, a “desnaturalização”, o estudo da teoria, da interpretação e análise.
Sendo assim, localizam-se neste texto, informações julgadas necessárias
para a compreensão do contexto da pesquisa, informações essas que se ligam
diretamente aos sujeitos (professoras) e às famílias (que compõem a escola), ou
seja, os lados, as extremidades da relação investigada.
A escola pesquisada localiza-se em uma cidade do interior, há 152 km de
São Paulo, caracteriza-se como pública, municipal e atende a educação infantil, nas
turmas de, creche, dois e três anos e, pré-escola, quatro e cinco anos, em período
integral e parcial. Seu funcionamento é das 7h00 às 17h30 horas, de segunda a
sexta-feira.
Foi inaugurada em setembro de 1959, compondo, em parceria com outra
escola de educação infantil da cidade, as mais antigas escolas da rede municipal,
conquistando, assim, o título de escolas pioneiras, tradicionais no atendimento à
infância.
Sua idealização se deu junto a um posto de puericultura, coordenada pela
esposa de um rico proprietário de refinaria de açúcar e álcool da cidade. Esta
senhora organizava campanhas solidárias em prol das famílias carentes e tinha o
desejo de construir uma instituição de assistência à infância.
88
Desta forma, a escola nasce no subsolo desse posto de puericultura com o
objetivo de: “prestar às crianças toda a assistência e cuidados durante o período de
trabalho de suas genitoras, erradicando a desnutrição e mortalidade infantil” 8.
Assim, antes das crianças selecionadas serem matriculadas, eram realizados
exames de fezes, radiografia dos pulmões, reação de Mantoux (teste de
tuberculose), vacinação completa, cuidados que eram repetidos anualmente e que
serviram como parâmetro para o decreto municipal nº 1946, de 7 de fevereiro de
1975, o qual estabelecia o Regimento Interno para as creches municipais, com a
exigência desses exames de saúde.
Perpassou, durante o período histórico da escola, atividades referentes ao:
“Clube das Mães” (com cursos de corte e costura e artes manuais, oferecidos em
dois dias semanais); convênio com a Campanha Nacional de Alimentação Escolar;
com a Legião Brasileira de Assistência (LBA); Projeto Casulo que, a partir de 1977,
ocupou o lugar da extinta LBA, entre outros projetos assistencias que destinavam as
verbas públicas.
Até o início da década de 80, a escola manteve a educação compensatória,
ligada à Secretaria de Bem Estar Social, com um quadro funcional de “atendentes”,
funcionárias que possuíam formação escolar, apenas, de primeiro grau incompleto,
muitas vezes chamadas de “pajens” pela comunidade interna e externa.
As divisões etárias das crianças eram organizadas em mini maternal, as
crianças de dois anos; maternal, as de três; jardim I, as de quatro; jardim II, as de
cinco e, pré-primário, as crianças de seis anos.
O planejamento das atividades às crianças até cinco anos correspondia ao
desenvolvimento físico, de boas maneiras, de higiene e, religioso. As apresentações
das crianças às famílias se organizavam em torno das datas comemorativas e
cívicas, mostrando o “desembaraço” das mesmas.
Ao pré-primário, cabiam as atividades de prontidão, alfabetização, ou seja,
preparação para o ensino fundamental.
Aos poucos a escola foi se transformando, incorporando-se à Secretaria
Municipal de Educação, alterando seu quadro funcional que, atualmente, constitui-se
em:
8 Texto retirado do Histórico da escola.
89
Monitoras (40h): funcionárias de concurso em extinção, compreendem
educadoras que tiveram sua formação em magistério e graduação em
Pedagogia através de convênios municipais e que, até o presente momento,
continuam com remuneração e carga horária diferenciadas das demais
professoras e, atuam com crianças de 0 a 3 anos, ficando, na escola, com 2
e 3 anos, já que seu espaço físico não comporta berçário.
Professoras de pré-escola (25h): professoras de concurso em extinção que
atendiam crianças de pré-escola, seis anos e, atualmente, com o ensino
fundamental de 9 anos e com as modificações legais das faixas etárias
referentes à pré-escola, atendem crianças de 4 e 5 anos. Assumiram as
atividades docentes com a exigência da formação em magistério, mas
possuem, também, graduação em Pedagogia, algumas, realizaram-na por
intermédio do convênio municipal.
Professoras de educação infantil (30h): concurso mais recente que admitiu
professoras com formação em Magistério e/ou Pedagogia para atuarem com
crianças de 0 a 5 anos, na escola, de 2 a 5 anos.
O módulo de turmas matriculadas em 20109 se dispõe da seguinte forma:
TURMA
FAIXA
ETÁRIA
PERÍODO
Nº DE
CRIANÇAS ATENDIDAS
*EDUCADORA
Ciclo I – 3ª etapa A 2 anos Integral 15 Monitora (40hs)
Ciclo I – 4ª etapa A 3 anos integral 17 Monitora (40hs)
Ciclo I – 4ª etapa B 3 anos parcial/tarde 17 PEI (30 hs)
Ciclo II – 1ª etapa A 4 anos integral 22 Manhã: PPE (25hs) Tarde: PEI (30hs)
Ciclo II – 1ª etapa B 4 anos parcial/manhã 22 PPE (25hs)
**Ciclo II – 1ª etapa C 4 anos parcial/manhã 22 professora substituta
Ciclo II – 2ª etapa A 5 anos Integral 25 Manhã: PPE (25hs) Tarde: PPE (25hs)
Ciclo II – 2ª etapa B 5 anos parcial/manhã 25 PPE (25hs)
*Nomenclatura utilizada para se referir a todo quadro docente (monitores, professores de pré-escola, professoras de educação infantil)
9 A Pesquisa de Campo foi realizada em 2009, entretanto, na continuidade, alguns dados que foram
compondo a pesquisa, seguiram o percurso temporal e se referem ao ano de 2010.
90
**Classe criada em maio de 2010, sua professora não participou da pesquisa, pois, pela data de sua entrada, as investigações de campo, realizadas no HTPC, estavam concluídas. Legenda: PPE – Professor de Pré-escola; PEI – Professor de Educação Infantil.
O espaço físico da escola, um terreno de 1097,03 m², que aguarda reformas,
veio se formando no percurso de sua história, reservando uma grande área
destinada ao parque como única área externa. O terreno de esquina, em declive,
mostra-se todo em área construída, dividida em 497,74 m² de pavimento térreo e,
441,33 m² de pavimento superior.
Um pequeno portão, ao lado da movimentada rua principal, de mão dupla,
destina-se à entrada e saída da escola. Defronte a ele, no pavilhão inferior, inicia-se
o setor administrativo: secretaria; sala da direção; sala da agente escolar de saúde;
banheiro; corredor e, uma pequena cozinha de funcionários.
No mesmo módulo, no pavimento superior: biblioteca (composta por uma sala
grande e duas saletas, referentes, ainda, à antiga construção do posto de
puericultura); sala de vídeo; uma sala de múltiplas atividades, inclusive, descanso;
um salão; dois banheiros; uma sala de funcionários e, uma de material pedagógico.
Ainda no pavilhão superior, unido a uma rampa de entrada, presenciam-se
cinco salas de “aula” e dois grandes banheiros infantis.
No pavilhão inferior, ao lado do administrativo, localiza-se o refeitório; dois
grandes banheiros infantis; a cozinha com despensa e, uma lavanderia, espaço
demarcado por uma escada de quatro degraus onde se situa, logo acima, duas
salas de “aula”, uma delas com banheiro, fazendo a divisão da extensão do parque.
O parque é o espaço que mais chama a atenção da escola, uma ampla área
onde se dispõe antigas e grandes árvores e, uma velha piscina desativada e
transformada em um tanque de areia.
Neste espaço, já brincaram muitos avôs, avós, tios, tias, primos, primas,
irmãos e irmãs das crianças matriculadas atualmente. A escola se constitui como
referência no imaginário das muitas famílias que insistem em aguardar uma vaga
para que suas crianças possam pertencer a ela, chegando a negar matrículas em
outras escolas e ficar na lista de espera dessa.
O bairro pertencente à escola é um local de muitos comércios e de pessoas
que conquistaram sua casa própria há muito tempo atrás.
91
As famílias atendidas constituem uma grande variação sócio-econômica e de
atividade de trabalho (professores, policiais, caixas, atendentes, comerciários,
domésticas, trabalhadores de empresas, autônomos entre outros).
Entretanto, das muitas escolas da rede, esta possui famílias de melhor padrão
de renda, observando-se a classificação sócio-econômica (inferior) pertencente a
outros bairros.
Atualmente, percebe-se que muito se caminhou aos quase 52 anos de
fundação da escola. Em seu Projeto Pedagógico, realizado no coletivo docente, que
se refere ao ano de 2010, encontra-se descrito uma concepção de educação
embasada na teoria histórico-cultural. Concepção de escola de educação infantil
como lugar organizado coletivamente no intuito do desenvolvimento integral da
criança, ou seja, educar e cuidar indissociavelmente.
Descreve-se, também, a concepção de criança como ser histórico, social,
cultural, produtora e consumidora de cultura; concepção de avaliação, segundo o
decreto municipal nº 8.136, de 21 de outubro de 1989, que compõe o Regimento
Comum das Escolas Municipais, parágrafo único do artigo 80: “O processo de
avaliação deve ser imediato e contínuo e ter como base a visão global do educando,
subsidiado por observações e registros obtidos no decorrer do processo”.
Além do diagnóstico da realidade escolar, destacando a necessidade de
formação continuada dos professores; metas; ações; conteúdo curricular e projetos
educacionais.
3.2.2 - Os sujeitos da pesquisa
O grupo participante foi formado por nove professoras e duas estagiárias10,
essas atuam trinta horas semanais, portanto, seis diárias, uma, auxiliando nas
atividades pedagógicas com crianças especiais e, outra, realizando atividades como
“volante”, no atendimento das demais crianças.
10
Nomenclatura que se refere às estudantes de Pedagogia que são contratadas pela Prefeitura Municipal, através de um órgão conveniado, para desempenharem funções de auxílio pedagógico ao professor, cumprindo uma carga horária de seis horas diárias.
92
As estagiárias são estudantes de Pedagogia e têm a oportunidade de
relacionar a teoria e a prática na atividade de trabalho educacional inicial. Este grupo
investigado é formado por faixas etárias variadas entre 21 a 51 anos.
O quadro abaixo localiza, com nomes fictícios (tendo como critérios a ética e,
o tema da literatura, ou seja, o primeiro nome de algumas escritoras) alguns dados
das professoras e estagiárias:
NOME IDADE FORMAÇÃO E ANO DE CONCLUSÃO
CARGO DATA DE INGRESSO
NO MUNICÍPIO
Cecília
42 Magistério (2001) e Pedagogia
(2008), realizados em serviço,
através de convênio municipal.
Monitora (40h) 06/02/1998
Florbela
27 Pedagogia (2008), realizada em
serviço, através de convênio
municipal.
Monitora (40h) 21/02/1991
Rachel 30 Pedagogia (2002) Professora de Educação
Infantil (30h)
29/10/2007
Virginia 36 Pedagogia (2009) Professora de Educação
Infantil (30h)
18/01/2009
Marina 57 Pedagogia (1983) e Economia
Doméstica (1978) (curso em extinção
da USP)
Professora de Pré-
escola (25h)
14/04/1986
Clarice 46 Pedagogia (1991) Professora de Pré-
escola (25h)
17/02/1993
Simone
42 Magistério (1986) e Pedagogia
(2006), realizada em serviço, através
de convênio municipal e, Geografia e
História (2001)
Professora de Pré-
escola (25h)
14/04/1987
Cora 51 Magistério (2001) e Pedagogia
(2007), realizada em serviço, através
de convênio municipal
Professora de Pré-
escola (25h)
*16/09/1996
Lygia 49 Magistério (1980) e Pedagogia
(2007), realizada após entrada no
cargo.
Professora de Pré-
escola (25h)
10/09/1993
Pagu 21 Estudante de Pedagogia Estagiária (30h) 08/04/2009
Rosa 23 Estudante de Pedagogia Estagiária (30h) 03/07/2009
*A professora ingressou como monitora, em 1996, depois de cursar o Magistério, em 2001, prestou
concurso e re/ingressou como Professora de Pré-escola, no ano de 2002.
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O quadro mostra que todas as professoras, inclusive as monitoras, têm
formação em Pedagogia. Das nove professoras pesquisadas (incluindo as monitoras
neste grupo), quatro realizaram graduação em Pedagogia através do convênio
municipal, atividade que se deu concomitantemente ao trabalho. As outras quatro
professoras já haviam concluído o mesmo curso antes do início da atividade
profissional na prefeitura e, uma, realizou-o em período concomitante ao trabalho,
mas, por meios particulares.
Sete professoras realizaram o curso de Pedagogia após o ano 2000 e, duas,
anteriores a esse ano, ficando, uma, na década de 80 e, outra, na de 90. Além disso,
duas professoras têm, também, outra formação, uma em Economia Doméstica e,
outra, em Licenciatura.
As informações também expõem as diferenciadas cargas horárias (inclusive
salariais) e faixas etárias atendidas conforme o concurso (monitora, atua 40 horas
semanais, com crianças de 2 e 3 anos; professora de pré-escola, atua 25 horas
semanais, com crianças de 4 e 5 anos e; professora de educação infantil, atua 30
horas semanais, com crianças de 2 a 5 anos). Diferenças que promovem conflitos,
confrontos e dilemas entre o grupo, às vezes, explícitos e, outras, implicitamente
vivenciados.
Das professoras acima, algumas acumulam atividades profissionais em
horários contrários aos exercidos na escola pesquisada.
Rachel realiza outras atividades administrativo-burocráticas. Clarice é
professora estadual, efetiva, do ensino fundamental, ciclo I. Simone atua como
professora estadual, efetiva, de Geografia. Cora atua com atividades de educação e
cuidados de duas crianças de uma família que a contrata. Lygia é professora de
educação infantil, aposentada, de outro município próximo.
Assim, os sujeitos da pesquisa compõem um grupo que se dispõe entre
diferenças e singularidades expressas no cotidiano da função de educar e cuidar da
infância na escola pesquisada.
3.2.3 - A pesquisa de campo
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Segundo Freitas (2002, p. 28), a partir da perspectiva histórico-cultural, uma
pesquisa parte da elaboração de uma questão orientadora, da qual sua
compreensão exige uma aproximação, “imersão” junto ao contexto investigado.
Assim: “o pesquisador frequenta os locais em que acontecem os fatos nos quais
está interessado, preocupando-se em observá-los, entrar em contato com pessoas,
conversando e recolhendo material produzido por elas ou a elas relacionados”.
Esta ação de familiarização aos sujeitos, a todo o conjunto que compõem a
pesquisa, abrange “a descrição pormenorizada das pessoas, locais e fatos
envolvidos. A partir daí, ligadas à questão orientadora, vão surgindo outras questões
que levarão a uma compreensão da situação estudada” (Ibidem).
Desta forma, o campo da pesquisa já era muito familiar à pesquisadora
(diretora), do qual sua presença se fez constante, numa rotina de atividades
profissionais diárias que envolvia todo o contexto pesquisado, o diálogo junto aos
sujeitos (professoras), às famílias, crianças, demais funcionários e comunidade.
Assim, a imersão junto ao contexto físico, humano, temporal, espacial lhe
eram muito próximos e faziam parte de longas e duradouras observações,
avaliações, discussões, audições, questionamentos.
O fato da pesquisadora atuar como diretora escolar junto ao grupo
pesquisado proporcionou a dimensão, a complexidade e o aprofundamento do
conhecimento do campo investigado que lhe era muito peculiar, entretanto, foi
somente a partir da pesquisa, do desenvolvimento (“em desenvolvimento”) do olhar
de pesquisadora, dos estudos, orientações que a pesquisadora iniciou a junção de
todo o material de campo, recolhendo, selecionado, compondo, descrevendo os
preciosos dados.
Neste percurso, este trabalho, apesar de contar com a positividade de uma
investigação iniciada antes da pesquisa, afunilou-se e se materializou a partir de
todo tempo de seu desenvolvimento, compartilhado com a frequência cotidiana da
pesquisadora ao lócus pesquisado em contato com os sujeitos envolvidos.
Desta forma, em meio à rotina pedagógica, o tema da relação entre família e
escola já exercia lugar, há tempo, na pauta das atividades, principalmente nos
HTPCs, com as mais variadas discussões.
Entretanto, nesta pesquisa, a investigação da relação família e escola,
mesmo já sendo “observada” anteriormente, passou a ser descrita a partir de sua
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investigação formal, ou seja, da comunicação da pesquisa e do consentimento do
grupo.
Para que o tema da relação família e escola (que constituía, no diagnóstico da
realidade da escola pesquisada, a emergente necessidade de investimentos e
estudos) fosse investigado de forma a abordá-lo através de uma organização que
garantisse o diálogo, a expressão dos sujeitos professores, foram planejadas
“atividades” estratégicas, priorizando a composição de ideias das professoras por
meio de textos elaborados individualmente sobre o tema e discutidos,
posteriormente, coletivamente, processo que revelou importantes dados.
Assim, o planejamento estratégico da investigação de campo (enriquecidos
pelos dados já revelados, anteriormente, no contexto), bem como os registros das
professoras, escritos e orais, audiogravados, fizeram-se presentes a partir de dois
momentos de três encontros de HTPC, no 2º semestre de 2009, da qual as
professoras participam por duas horas semanais, mas que, pela polemização do
tema, ultrapassaram esse tempo, principalmente nos encontros da discussão
coletiva. O tema ainda foi levado e comentado, na continuidade das demais
atividades.
3.2.3.1 - Primeiro momento estratégico
O primeiro momento estratégico da pesquisa de campo se caracterizou como
um momento coletivo de leitura e elaborações de escritas individuais da
investigação, em um encontro de HTPC.
Este momento foi planejado como uma estratégia que colocasse as
professoras em participação crítica, que as afetasse, ligasse-as, estimulasse-as a
responder uma situação textual normativo-legal e, outra, que simulava um conflito
provocativo da teoria e da prática existente no cotidiano escolar da educação infantil,
na relação família e escola.
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Foram trazidos para este momento dois fragmentos textuais, admitindo dois
olhares: o normativo legal, que cita a relação família e escola como
complementaridade de educar (expresso no fragmento 1) e a rotina pedagógica,
desenvolvida entre conflitos e confrontos cotidianos do embate dessa relação
(expresso no fragmento 2).
Esse momento foi estratégico para a abordagem das perspectivas das
professoras sobre a relação entre família e escola na ação do educar e cuidar,
revelando diversas angústias e conflitos, principiando a construção da resposta à
questão investigativa.
A atividade iniciou, então, a partir da reflexão de dois fragmentos textuais,
sendo, posteriormente, solicitado às professoras, a elaboração das considerações
sobre esses fragmentos.
O primeiro fragmento abordou a finalidade legal da educação infantil,
ressaltando o desenvolvimento integral da criança através da relação de
complementaridade entre família e escola.
Esta escolha se deu devido à fundamentação dos princípios legais se
inserirem nos aspectos educacionais vivenciados no cotidiano escolar pelas rotinas
pedagógicas das professoras.
Fragmento 1
Educação Infantil na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDBEN/1996):
Sua finalidade é o desenvolvimento integral da criança nos aspectos físicos,
psicológico, intelectual e social;
É complementar à ação da família e da comunidade no desenvolvimento da
criança, sendo, pois, necessária, a integração escola-família-comunidade.
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O segundo fragmento, um bilhete retirado do livro “O educador e a moralidade
infantil: uma visão construtivista”, de Telma Pileggi Vinha (2000), foi escolhido pelo
tom provocativo na abordagem da temática da relação família e escola, dispondo
outra ótica, uma situação desafiadora dessa relação e de seus objetivos diante da
mesma criança.
A seleção dos fragmentos se contrastou de uma relação de
complementaridade entre família e escola descrita na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDBEN/96), a uma situação de problematização, típica à
educação infantil, que confrontou teoria e prática demarcadas por tempos e espaços
distintos nas instituições educacionais escola e, família, além da integração exigida
neste fazer educacional entre essas duas instâncias.
Fragmento 2
A professora [...] enviou à mãe de um determinado aluno um bilhete em que dizia,
entre outras coisas, que a criança estava “conversando demais, não havia
terminado a lição de casa e havia brigado com o colega no recreio por causa de
um álbum de figurinhas”. A resposta da mãe veio no dia seguinte também por
meio de um bilhete em que estava escrito que a criança “não quis tomar banho,
ficou muito tempo na frente da televisão e recusou-se a dormir cedo..., o que a
professora poderia fazer para ajudá-la?” (VINHA, 2000, p. 279, os aspas internos
seguem o texto original).
Assim, após a leitura e a compreensão dos fragmentos, foi solicitado o
registro escrito das considerações das professoras.
Fundamentadas na interpretação dos fragmentos e, na experiência teórico-
prática da docência, as professoras tiveram como atividade, registrar suas críticas,
conflitos e sugestões, baseadas nas concepções teóricas construídas no percurso
de formação e, na prática pedagógica formada durante a vida profissional.
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A elaboração deste texto se deu individualmente e cumpriu com o objetivo
proposto de contagiar o grupo ao exercício da constituição da escrita, no qual as
professoras demonstraram uma participação ativa, realizada com afinco.
Considerações das professoras:
Como professora de educação infantil, com base em sua concepção de educação
e em sua experiência profissional, teórica e prática, registre suas considerações
diante dos textos 1 e 2.
3.2.3.2 – Segundo momento estratégico
O segundo momento estratégico foi marcado pela participação coletiva do
grupo na discussão dos textos elaborados, perfazendo dois encontros
audiogravados, um momento que colaborou com o re/conhecimento dos textos
produzidos individualmente pelo grupo, além da possibilidade de poder contribuir
com as idéias expressas, clareá-las ou modificá-las verbalmente, uma construção
coletiva de sentidos verbalizados a partir dos textos elaborados.
A discussão foi realizada mediante a leitura dos textos distribuídos de modo a
não serem lidos pela própria autora. Dessa forma, os textos foram refletidos e
discutidos, evitando o reconhecimento inicial da autoria, o que possibilitou maior
fluência das falas, pois, o objetivo era focar, discutir, esclarecer, compreender,
refletir as ideias elaboradas nos textos.
Esta discussão foi mediada pela pesquisadora diante de uma pré-análise
dos textos elaborados pelas professoras, fator que orientou esta atividade,
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proporcionando coordenar as falas a esclarecer, refutar, explicar melhor, enfim,
concordar ou discordar, possibilitando propostas ou convites à reflexão.
A transcrição desses encontros revelou um diálogo que evidenciou, em
alguns momentos, situações conflitantes expostas, contudo, em outros momentos,
dimensionaram-se discordâncias e/ou concordâncias, interrupções, ênfases, além de
repetições de expressões e ideias.
Algumas ideias dos textos elaborados foram mantidas na discussão, outras,
esclarecidas, refeitas, outras, ainda, serviram como ponto de partida para a
condução de novas angústias, conflitos do exercício da docência na educação
infantil.
Neste contexto, para a pesquisadora que, também, faz parte do grupo de
professoras, atuando como diretora, na atividade de coordenar a formação
continuada deste grupo:
Investigar, saber transformar uma dificuldade prática numa questão de
pesquisa, tomar distanciamento em relação à ação para estudá-la,
sistematizá-la e escrever sobre ela foi um aprendizado e uma conquista.
(GARRIDO et al, 2000, p.98).
Aprendizado e conquista que foram se fortalecendo a cada momento de
efetivação da pesquisa, desde seu ponto inicial, os encaminhamentos ao campo, a
investigação das falas, a leitura das teorias, as orientações, até a narração e
teorização da pesquisa como um todo.
Um processo dialético que trouxe riquezas imensuráveis, tanto no campo
profissional que se destaca a pesquisadora como no campo pessoal, ou seja,
humano.
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CAPÍTULO 4
A RELAÇÃO DE COMPLEMENTARIDADE ENTRE FAMÍLIA E
ESCOLA: AS PERSPECTIVAS DAS PROFESSORAS
Verdade
A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos. Era dividida em metades diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela. E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia (ANDRADE, 2002, p. 47).
Este capítulo objetiva responder a questão que delineou toda a investigação
desta pesquisa:
Quais as perspectivas de professores de educação infantil sobre a relação
entre família e escola?
Como já abordado, a pesquisa considera os sujeitos professores como seres
histórico-culturais observando suas atividades concretas, circunstanciadas.
Desta forma, a construção das análises foi orientada pela perspectiva
histórico-cultural, o que possibilitou uma leitura direcionada ao contexto investigado,
conectando-o à macro história, ou seja, partindo do contexto individual, em direção
ao coletivo, social.
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O processo de análises foi complexo, árduo e difícil, resultado de inúmeras e
incansáveis leituras dos textos individuais e coletivos, ancoradas ao panorama
contextual da pesquisa, como já revelado, muito peculiar à pesquisadora (diretora).
Nesse sentido, a construção das análises, conectada ao contexto investigado,
contou com o material desenvolvido nos HTPCs, ou seja, os textos individuais e a
discussão coletiva. Os primeiros (textos individuais) sendo base para a realização do
segundo momento (discussão coletiva) e se atentou às palavras, expressões, ideias
explícitas e implícitas, detalhes significativos das falas das professoras que:
concordaram-se, discordaram-se, repetiram-se, ocultaram ou explicitaram ideias que
se remeteram à história, propondo a compreensão do contexto de significação
profissional das professoras.
Na discussão coletiva, a entonação expressiva foi compartilhada pelas
interlocutoras que se remeteram ora a uma, ora a outra, ora à pesquisadora
(diretora), interromperam-se nas falas, complementaram-se oralmente na expressão
da ideia ou, modificaram-na no meio dessa expressão, auxiliada pela interlocutora
companheira.
A atividade de discussão coletiva propiciou que as professoras pudessem
expor, revelar suas ideias, seus conflitos, impasses, ideologia, confrontos e,
também, o idealismo que buscam na relação junto à família.
Inicialmente, os textos, as falas pareciam trazer variadas questões,
separadas, independentes que se repetiam ao longo da discussão, contudo, as
leituras foram proporcionando a interpretação de que as questões se conectavam.
Esta conexão foi construindo a compreensão de que os temas se formavam
interdependentemente pelas perspectivas das professoras a partir de um desejo11 de
padronização de família, advindo da ideia da família nuclear, ainda que admitindo as
transformações econômicas, políticas, culturais que modificaram essa família e
atribuíram-na diversificadas tipologias alternativas no mundo contemporâneo.
Da mesma forma, esse fato também despertou o desejo de padronização do
conceito de escola como um lugar onde se ensina conteúdos formais da infância.
Assim, nesta pesquisa, tomou-se a palavra significação, bem como
padronização, modelo de família no entendimento da teoria vigotskiana:
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Neste texto, chama-se de desejo, a ideia, a partir de conceitos pré-estabelecidos, que insiste em organizar o pensamento e as palavras das professoras.
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Na conversão das relações sociais em relações intrapessoais, o elemento que permanece constante é a significação. Mas a significação social das relações é convertida em significação pessoal (“quase social”) dessas relações. Estas adquirem o sentido que lhes dá o indivíduo. Por exemplo, a significação social da relação “pai <> filho”, instituída pela sociedade, converte-se na significação que tal pai tem para tal filho e vice-versa. Significações diferentes e que, por isso mesmo, são a fonte de crises e conflitos pessoais, como o mostra a experiência da vida cotidiana (ANGEL PINO, 2000, p. 68).
Nesse sentido, os dados foram abordando a necessidade de formação
continuada das professoras para a compreensão das transformações em que se
organizaram as instituições família e escola, proporcionando a profissionalização
através do estudo teórico, da reflexão da prática para a compreensão dos objetivos
da educação infantil diante do papel de ser professor de educação da infância.
Em sequência, as novas leituras de todo o material de campo foram se
re/fazendo através da ação de selecionar, organizar os diálogos relacionados a dois
grandes temas que compreendiam as questões discutidas e que também se
intercomunicavam.
À pesquisadora, em todo o encaminhamento do processo da pesquisa, coube
o desafio de observar, analisar e narrar, não se esquecendo de sua posição de
narradora, também, personagem. Todavia, na ação da construção dos dados,
“somente eu [pesquisadora], no grupo, ouvi demorada e repetidamente as fitas,
transcrevi nossos dizeres e tive a liberdade de selecionar parte de nossas palavras e
compor com elas o texto que se segue. Os recortes foram meus [...]” (FONTANA,
2003, p. 78).
Esses recortes abarcaram as questões em dois grandes temas com o objetivo
de organizar a forma de apresentação, um caminho percorrido para encontrar as
categorias necessárias para o aprofundamento da temática em respostas à questão
da pesquisa, no intuito de:
possibilitar a compreensão do objeto estudado, de oferecer uma chave para a
entrada da empiria [...] Longe de pretender classificar todas as falas, como se
fossem caixinhas ou gavetas onde os discursos seriam formatados, a categoria
(tematização) é uma das maneiras possíveis de organizar os achados da
pesquisa, favorecendo a leitura, dando ao pesquisador um dos recortes, de tal
modo que possa ver, ler, interpretar, concluir, perceber as convergências e os
afastamentos. O conjunto de categorias foi conduzido lenta e delicadamente
(KRAMER, 2005, p. 36).
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Entre os desafios e a arte da interpretação, as janelas foram se abrindo,
compondo tempos e espaços. Desta forma, os diálogos foram submetidos à
apresentação de duas unidades de discussão.
As análises perfizeram, então, duas categorias que se complementaram, um
processo de tematização realizado para sistematização e apresentação, já que os
temas se repetiam e se conectavam no total do diálogo das professoras.
Desta forma, abriu-se a primeira categoria de análise com o tema: “A família
imaginada pelas professoras: perspectivas sobre a relação de complementaridade”.
Esta discussão indicou uma significação, desejo de padronização de um modelo de
família, consequentemente, também, de escola, concebido pelas perspectivas das
professoras, destacando conflitos na relação de complementaridade junto ao
contexto real das famílias atuais.
Em decorrência às perspectivas docentes sobre os modelos familiares e
escolares padronizados, as falas apresentadas pelas professoras compuseram um
quadro de ambiguidades às especificidades do educar e cuidar da infância.
As padronizações, mesmo considerando as transformações histórico-
culturais, transcorreram-se desde os aspectos da composição da família, da
atividade profissional, ao comportamento desta instituição, ou seja, julgamentos de
valor que definiram as perspectivas das professoras em relação à educação e
cuidados fornecidos à criança.
As perspectivas docentes destacaram, ainda, a necessidade de participação
dos pais no processo de educar e cuidar da infância, porém, esta participação foi
delineada conforme o significado apreendido pelas professoras sobre a relação de
complementaridade, enfatizando o papel que cabe a cada uma das instituições
educadoras na divisão de tarefas.
À escola coube, nesta divisão, ensinar conteúdos formais e, à família, educar
para a formação de valores, principalmente, no que se remete ao comportamento
infantil e, cuidar, no aspecto físico.
Em continuidade à construção das análises, apresenta-se a segunda
categoria: “Educar e cuidar: uma perspectiva de complementaridade ao ensinar”.
A divisão de papéis significados pelas perspectivas das professoras sobre a
relação de complementaridade entre família e escola continuou revelando os
conflitos docentes sobre o não cumprimento do papel pertencente à família.
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Além do papel de ensinar conteúdos formais, as professoras destacaram o
papel do cuidar referente ao binômio que compõe as especificidades da docência da
infância.
O cuidar objetivou, nas falas das professoras, um cuidado físico que atende
noções de higiene. Neste entender, o cuidar se referiu a um aspecto didático-
pedagógico, ou seja, cuidam-se do aspecto físico através de uma didática
apropriada à infância, no intuito de conferir o ensino de conteúdos formais como
noções de higiene.
Nesta integração, tanto ensinar como educar atenderam aos objetivos formais
da escola que é, nas perspectivas das professoras, o ensino de conteúdos através
do binômio ensinar e cuidar.
4.1 – A família imaginada pelas professoras: perspectivas
sobre a relação de complementaridade
Para a composição desta categoria, no total das expressões docentes, foram
selecionadas falas que a formavam e se relacionavam com outras falas,
desenvolvendo, tanto o primeiro grande tema, como, também, o segundo. Assim,
através deste critério de seleção, apresentação e análise das falas é que se inicia
este texto.
A professora Virgínia abre a discussão com um desabafo que dá início aos
conflitos da prática das professoras na relação junto à família:
(Professora Virgínia) Então a gente acaba ficando, a gente fica perdida mesmo, você
está fazendo uma coisa, mas não se sabe por que, pra quê e da mesma forma o que
faz, pela questão histórica do assistencialismo, é...
E também não tem sentido, sei lá, eu vou colocar meu filho no Jardim I, no
Maternal porque eu acho que conviver com outras crianças é bom, porque sair um
pouco de casa vai fazer bem, não é? Às vezes não é isso. É..., eu preciso deixar
meu filho na escola porque preciso trabalhar.
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A professora Virgínia expressa conflitos e ambiguidades no papel da docência
da infância. A declaração: a gente fica perdida mesmo indica que sua formação
inicial (Pedagogia 2009) difere da realidade vivenciada.
Abordando esse contexto, Oliveira (2002, p. 178) declara que: “a formação
inicial dos professores de educação infantil tem sido apontada como fonte de
obstáculos para uma produtiva relação entre instituição educacional e família”. Fato
que a professora reforça relatando que: você está fazendo uma coisa, mas não se
sabe por que, pra quê e da mesma forma o que faz...
A resposta da professora encontrada para este dilema seria a questão
histórica do assistencialismo, principalmente, sobre o fato de que a família precisa
deixar a criança na escola porque necessita trabalhar e, isso, sobrepõe-se, para a
professora, ao objetivo do desenvolvimento integral da criança.
A escola aparece, então, neste contexto, como, primeiramente, um lugar onde
a criança fica enquanto seus pais trabalham.
Entretanto, nesse mesmo sentido, a professora Simone, que tem 23 anos de
experiência profissional na educação infantil, também concorda com a professora
Virgínia e relata seu conflito, singular, nesta relação entre as instituições família e
escola na educação da infância:
(Professora Simone) Eu vejo assim, muitos pais não pensam, vem apresentando a
criança, mas, a necessidade é dos próprios pais, terem um lugar para a criança ficar,
ainda tem... Eu vejo assim, principalmente o integral [período integral], não estão tão
preocupados, assim, com o desenvolvimento integral da criança, não vamos
generalizar, mas a grande maioria está preocupada em um lugar pra criança ficar.
Posto o conflito através das falas das professoras, junto ao objetivo primeiro
da família, ou seja, a escola como um lugar para a criança estar enquanto os
pais/responsáveis trabalham, iniciam-se outras falas similares, entretanto, destacam
o papel da mãe enquanto principal membro familiar responsável pela criança,
revelando um problema de gênero estabelecido pelas professoras, cabe à mãe,
mulher, a responsabilidade sobre a criança.
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Anuncia-se, então, a narrativa da professora Rachel que retoma o dilema e o
expressa com uma fala emocionada, colocando-se no lugar da criança (da mãe
trabalhadora) através de seu relato que relembra sua infância:
(Professora Rachel) Sabe na..., quando eu estudava, eu ia para a escola, lá, eu
chegava em casa, eu tinha... Eu chegava em casa, a minha mãe não falava nada de
escola, sabe? Ela brincava comigo, a minha mãe não trabalhava fora. Então a
criança chega a casa, não tem quem ajude ela, sabe? Ela não tem..., então, ela, na
casa, ela come com colher. A mãe chega a casa, ela tem roupa pra lavar, ela tem
comida pra fazer e diz: Eu vou por um prato de comida pra criança comer. Vai abrir a
bolsa da criança. Então, eu não acho que tem participação e o que a gente busca,
né? Que..., que..., que exista isso. Não é? Então, a LDB fala isso, isso é uma
questão, o que eles estão querendo e o que a sociedade hoje pode dar.
Para a professora Rachel, à mãe que trabalha fora é imposta uma rotina de
dupla jornada, o que a faz, quando ela chega a sua casa, continuar as atividades de
trabalho no cuidar da casa, da bolsa, da roupa da criança e, também, da
alimentação, atividade que a criança tem que realizar sozinha, pois, a mãe não
dispõe de tempo para dar-lhe atenção, ajudá-la, muito menos para brincar com ela
como sua mãe fazia.
Ainda que considerando as transformações junto à família contemporânea, o
fato da (suposta) mãe (que trabalha fora) não acompanhar de perto a alimentação
da criança, entre outras falas subsequentes, acarreta que esta criança vá para a
escola sem saber se alimentar “adequadamente” e, isso, atribui às professoras a
atividade de ensiná-la, o que Rachel chama de aprendizagem de necessidades
básicas, função que ela, entre outras professoras, confere à família, como destaca
em seu texto12 e, não à escola que deveria ensinar conteúdos próprios do espaço
formal:
(Texto, professora Rachel) A primeira educação que a criança recebe desde que
nasce é aquela oferecida pelos pais/responsáveis. Nesta fase ela aprenderá a
12
A palavra texto será demarcada toda vez que se referir à escrita das professoras, já, as falas, só serão demarcadas pelos nomes das professoras que as pronunciaram.
107
alimentar-se, higienizar-se, comunicar-se, socializar-se etc. Chamo esta primeira
educação de necessidades básicas para o desenvolvimento humano.
[...] Entramos na seguinte discussão: qual é o papel da escola: educar ou
ensinar?
Em minha opinião, educação deve vir de casa e cabe a escola o papel de
ensinar...
Concordando com Rachel, mais adiante, ocorre a leitura do texto da
professora Lygia. Seu texto contribui com o “dilema da mãe que trabalha fora”:
(Texto, professora Lygia) Na sociedade contemporânea, está acontecendo a
inversão de papéis. Mães trabalhando fora, as responsabilidades que eram das
famílias estão sendo transferidas para as escolas, não sobrando tempo e
oportunidade para trabalhar conteúdos que realmente levem o ser humano a atingir
plenamente os objetivos que são trabalhados no espaço escola formal.
Para Lygia, em conformidade às falas das outras professoras, a função da
escola é ensinar conteúdos próprios do espaço formal, aqueles que não se
aprendem em casa.
Estas reflexões implicam em rever o contexto histórico da educação infantil no
Brasil, o qual traz uma trajetória intimamente ligada à questão de gênero, à mulher
pertenciam, naturalmente, biologicamente, todos os deveres de “mãe”, a ela cabia
cuidar da criança.
Este percurso da educação da infância já se organizou para atender a mulher
trabalhadora que, marcada por fatores econômicos, pela industrialização, passou a
fazer parte do mercado de trabalho.
No caminhar desta história, a educação infantil:
liga-se às modificações do papel da mulher na sociedade e suas repercussões no âmbito da família, em especial no que diz respeito à educação dos filhos. Essas modificações inserem-se no conjunto complexo de fatores contraditórios presentes na organização social, com suas características econômicas, políticas e culturais. Em especial, a creche deve ser compreendida dentro de um contexto social que inclui expansão da industrialização do setor de serviços, ao mesmo tempo em que a urbanização se torna cada vez maior (OLIVEIRA, 1992, p. 17).
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Duarte (2000) ressalta que a saída das mulheres para o mercado de trabalho
acarretou a criação das instituições de atendimento à infância, as quais passaram a
dividir a educação das crianças com a família.
Hoje, legalmente, a educação da criança deve ser dividida entre Família,
Escola, Comunidade e Poder Público, de acordo com o artigo 4º do Estatuto da
Criança e do Adolescente, o que proporciona que:
Atualmente, a escola e outras instituições de educação, esporte e recreação preenchem atividades dos filhos que originalmente eram responsabilidade dos pais. Os ofícios não mais são transmitidos de pai para filho dentro dos lares e das corporações de ofício. A educação cabe ao Estado ou a instituições privadas por ele supervisionadas (VENOSA, 2005, p. 22).
Todavia, no cenário da educação infantil, o quadro funcional de atendimento à
infância se ligou à ação assistencialista, ressaltando os cuidados necessários à
criança na ausência da família.
Às profissionais da infância era necessário gostar de criança, comunicar-se
bem, serem simpáticas, dinâmicas (MACHADO, 2002), características do percurso
histórico da educação da infância que marcou (e ainda marca) um sentimento de
desvalorização profissional.
A ideia de cuidados abriu espaço para a ideia de educação nas instituições
infantis que passou a ser divulgada nas décadas de 60 e 70, com a chamada
“educação compensatória”, destacando a teoria da deficiência cultural da criança
“carente”, ou seja, a da classe social de baixa renda (SABBAG, 1997).
As transformações do percurso do atendimento à infância continuaram nas
décadas de 70 e, principalmente, 80, com a cobrança da educação infantil como
direito da criança:
Devem-se principalmente às iniciativas populares surgidas no final dos anos 70 a redefinição da creche como equipamento pedagógico específico e como direito – e não mais como ajuda às famílias nos centros urbanos, as creches muitas vezes funcionam como um equipamento de “mil e uma finalidades”, pois a ela chega demandas de todo tipo (de saúde, de higiene, de nutrição e de educação) (FILGUEIRAS, 1994, p. 19).
Na década de 90, encontramos o reconhecimento da educação da infância
como primeira etapa da educação básica na Lei de Diretrizes e Bases Nacionais
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(LDBEN/96) e, com isso, o objetivo do trabalho da educação infantil se redefiniu
como educar e cuidar, uma redefinição que se colocou no intuito de combater o
assistencialismo que privilegiou o cuidar e, a escolarização que privilegiou o educar,
no sentido do ensinar.
Esse dualismo marcou a construção da história da educação infantil, mantida,
ora entre práticas de cuidados, assistencialismo, ora entre práticas de educação, na
visão de escolarização, de ensino de conteúdos, “educação compensatória”,
preparatória, práticas que ainda têm confundido a real especificidade do papel da
docência da infância.
Contudo, na discussão coletiva das professoras, a ideia de que a função da
escola de educação infantil é ensinar conteúdos próprios do espaço formal é
retomada pela professora Rachel ao grupo, assim, em sua fala, o papel de ensinar a
alimentar-se, de educar, ensinando valores, cabe à família que, a seu ver,
negligencia-o, fato que é destacado verbalmente pela ênfase do uso do verbo ter (a
professora tem que ensinar a comer, tem que ensinar valores porque a família não
ensina):
(Professora Rachel) Aí, chega ao perfil de que além de passar o que a escola tem
que passar, aí tem que ensinar a criança comer, tem que ensinar a criança ser
educada, a respeitar. De onde que vem essas coisas também? É por isso que
quando chega à quarta série, ninguém sabe nada, porque antes da professora
ensinar, ela tem que educar.
Cora também concorda com Rachel, reforçando este dilema através da
palavra complicado:
(Professora Cora) A gente passa a maior parte do tempo educando, né? É
complicado, né?
Para Cora, sua concordância com Rachel não se limita à aprendizagem das
necessidades básicas. A palavra complicado vai se esclarecendo em sua fala
posterior que valoriza, como função da família, a educação de valores:
110
(Professora Cora) Posso falar? Eu achei aí que, assim, a responsabilidade da casa
ficou só no assistencialismo e os valores passaram, então, eu acho assim, o que é
certo ou o que é errado, tem que ver em casa também, não é só na escola, né? Vir
para a escola para aprender o que é certo e o que é errado? É isso que eles
querem?
Explicita-se, na fala da professora Cora, uma clara relação de embate junto à
família que descumpri sua função de transmitir uma educação de valores (“pré-
estabelecidos”): Vir para a escola para aprender o que é certo e o que é errado? É
isso que eles querem?
Assim, em toda a discussão, é destacada, nas falas das professoras, a função
de ensinar conteúdos próprios da escola formal como professoras da educação
infantil. Percebe-se, aqui, uma correlação ao ser professora do ensino fundamental.
Na perspectiva das professoras, a história da Educação Infantil tem mostrado
que, mesmo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996,
articulando o dualismo entre as práticas de assistencialismo e ensino, através da
redefinição junto ao binômio educar e cuidar, na prática atual, muito se tem
confundido no papel da docência da educação integral da infância.
As professoras, no intuito de combaterem o assistencialismo histórico, idéia
que se inicia com a fala da professora Virgínia, na abertura destas análises e,
também, reforçada pelas falas das colegas de profissão, denunciam, além do desejo
de padronização a respeito da família, da escola, confrontos, conflitos e
ambiguidades consequentes ao papel da docência, já que, segundo as professoras,
o papel da escola é ensinar conteúdos formais da educação infantil.
Assim, falar de professor da educação infantil exige explicitar algumas
especificidades que o diferenciam do professor de ensino fundamental, pois:
Enquanto a escola [de ensino fundamental] se coloca como espaço privilegiado para o domínio dos conhecimentos básicos, as instituições de educação infantil se põem, sobretudo, com fins de complementaridade à educação da família. Portanto, enquanto a escola tem como sujeito o aluno e como o objeto fundamental o ensino nas diferentes áreas através da aula; a creche e a pré-escola têm como objeto as relações educativas travadas num espaço de convívio coletivo que tem como sujeito a criança... (Rocha, 1999, p. 62) (grifos do original).
111
Todavia, para as professoras investigadas, na relação junto à família, o papel
do professor de educação infantil é o de ensinar conteúdos e, todas as ações devem
ser desenvolvidas neste objetivo (ensinar e cuidar).
Quando se deparam com a necessidade da família, com a mãe que trabalha
fora, isso as remete ao assistencialismo escolar, a realização do papel que cabe à
família e, não ao de professora no ensino dos conteúdos da infância.
Nesse sentido, mesmo as professoras possuindo formação pedagógica e
experiência profissional, algumas há pouco, outras, há muito tempo, revelam
ambiguidades às especificidades da prática pedagógica do professor de educação
infantil e, com isso, conflitos no papel da docência da infância, principalmente, no
que se remete a relação à família e, no que se destacam perspectivas de desejo de
padronizações de como deveria ser a família e a escola, além da educação que
essas deveriam oferecer à criança.
Este entendimento faz com que as professoras vejam como empecilho a
realidade da família no realizar das especificidades da docência da infância, valor
que também é ressaltado no texto de Virgínia:
(Texto, professora Virgínia) A Educação Infantil, apesar de ter sido incorporada à
legislação e considerada, teoricamente, um direito das crianças, continua com os
resquícios do pensamento assistencialista, já que os pais a veem como um lugar de
cuidados. Soma-se a essa situação, a exploração do sistema capitalista, que retira
dos pais a força e o tempo, impossibilitando uma atenção maior desses com os
filhos.
No fragmento 2, observamos que os professores estão tendo a responsabilidade de
educar e ensinar as crianças, o que sobrecarrega o trabalho, uma vez que os pais
não estão cumprindo a sua parte, como analisamos anteriormente.
Assim, na visão da professora Virgínia, que contempla as demais, ao
combater o assistencialismo, critica-se a família pela falta de tempo e de atenção à
criança, devido o fator do trabalho.
Ressalta-se o papel da escola de ter que educar no lugar da família, já que os
pais não estão cumprindo seu papel, sobrecarregando a escola que deveria ensinar
conteúdos formais.
112
A reflexão das professoras não promoveu uma visão abrangente das
transformações sociais do mundo atual, situando, apenas, parte dos contextos
envolvidos e, justificando-o, de forma conflitante na perspectiva da relação de
complementaridade que envolve a ação de educar a infância.
Para as professoras, na perspectiva de desejo de padronização de família,
consequentemente, de escola, pensar na família atual é enxergá-la como obstáculo
ao desempenho das práticas pedagógicas, além do mais, a relação de
complementaridade, nesta perspectiva, desvaloriza e angustia as professoras, pois,
estas famílias deveriam ser exceções, entretanto, tornaram-se regra na escola atual:
(Professora Clarice) Sabe o que eu percebo [...], assim, né, toda regra tem a sua
exceção, de repente, as exceções se tornaram regras, a gente vai, sabe, vai
angustiando, porque, nossa!, sabe? Não pode isso, não pode aquilo. Se a gente não
nos der o devido valor, essas coisas não vão mudar também.
À professora Clarice, as condições da família na relação de
complementaridade não atendem às necessidades da prática da educação da
infância, o que desvaloriza e angustia as professoras.
Para Bakhtin (2006, p. 21), as falas das professoras não destacam apenas
palavras, mas uma significação vivenciada que as levam ao conflito, pois:
Não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis... A palavra está sempre carregada de um conteúdo e um sentido ideológico e vivencial.
O conteúdo ideológico verbalizado pelas professoras indica desejo de
padronizações a respeito da família e da escola. A ideia de que “a mãe não deveria
trabalhar fora” remete à figura da mulher ligada à maternidade, cabe à mãe a função
de disponibilidade de tempo para cuidar e dar à criança uma educação de valores
(“pré-estabelecidos”), assim, com certeza, esta família subsistiria com o produto do
trabalho da figura do pai.
Neste contexto, encontra-se um modelo de família burguesa, nuclear
concebida, desejada pelas professoras, mesmo admitindo as transformações
sociais, econômicas do mundo contemporâneo e seus reflexos na composição das
113
tipologias de família atuais, além de uma concepção, nesse entender, de escola
como lugar em que se ensina conteúdos formais da infância.
Assim, nesta perspectiva, o texto da professora Florbela segue explicitando
julgamento de valor da falta de “competência” desta família, não nuclear, em educar
e cuidar de sua criança:
(Texto, professora Florbela) Infelizmente nesta sociedade em que vivemos é
importantíssimo a participação da escola e da comunidade no desenvolvimento de
uma criança, pois, os pais sozinhos não conseguem dar conta.
Esta ideia da professora Florbela traz a reflexão e análise da estagiária Pagu
e das professoras Rachel e Clarice sobre o porquê a família não consegue exercer o
papel de educar.
Para Pagu, as famílias formadas fora da constituição nuclear destacam um
estranhamento e a percepção de impotência no ato de educar suas crianças:
(Estagiária Pagu) Bom, a maioria das mães são jovens, muitas são mães solteiras,
então, vamos falar... não dão conta....
As famílias constituídas por mães jovens, solteiras, não perfazem o modelo
de família ideal para educar e cuidar das crianças e, isso tem sido uma característica
peculiar da sociedade atual, onde, segundo as professoras, impera a falta de
valores:
(Professora Rachel) Olha os jovens que têm hoje, não só os pobres, os de classe
média também, vejam o absurdo que cometem. Hoje a sociedade não tem mais
valores, não existem valores.
A consideração da professora Rachel se remete a julgamento de valores “pré-
estabelecidos”, uma visão de naturalização da instituição familiar e escolar, não de
construção social marcada por fatores econômicos, culturais.
Nos desejos de padronizações, as posições das professoras se distanciam do
re/conhecimento do contexto infantil e do diálogo necessário para a organização do
114
tempo e dos espaços destinados à educação e aos cuidados da infância na
instituição escolar na complementaridade à família real da criança.
A escola, historicamente, colocou-se como detentora do saber, ditou normas
e regras morais à família e, isso, parece, ter deixado resquícios:
(Professora Simone) Então, mas é como eu falei, são os valores [...] Mas é fato, eu
vejo as mudanças, mães mais jovens, mas se tivessem trabalhado com os valores,
valores não se perdem.
A discussão das professoras destaca um saudosismo, fato que impossibilita a
reflexão mais apurada da construção social dos valores, da posição hegemônica
elencada pela classe dominante de alguns conceitos pré-definidos junto às
instituições família e escola.
Não reconhecendo, amplamente, o processo de transformação social atual,
Marina se remete ao passado:
(Professora Marina) É, tem um email que fala que a nossa geração foi a última a ser
trabalhado esses valores...
Neste sentido, a ideia das professoras parece conceituar a criança como um
ser desprotegido, o qual necessita de cuidados e educação para um projeto de
futuro, já que se baseiam no que lhe falta no presente, não considerando que a
criança é sujeito da ação educativa, sendo, assim, é preciso considerar as relações
que envolvem esta criança, portanto, sua família, o contexto em que está inserida,
suas necessidades e de que forma se pode organizar o educar e cuidar nesse
contexto, ou seja, a prática pedagógica da infância deve dialogar com o contexto
real, coletivo, familiar da criança (MICARELLO e DRAGO, 2005).
Presume-se, neste sentido, a necessidade de uma formação continuada de
professores que amplie o entendimento das trans/formações sociais, levando à
compreensão do contexto familiar das crianças, re/significando, desta forma, o
conceito de infância, pluralizando-o, pois:
Falar de uma infância universal como unidade pode ser um equívoco ou um modo de encobrir uma realidade. Todavia uma certa universalização é necessária para que se possa enfrentar a questão e refletir sobre ela, sendo
115
importante ter sempre presente que a infância não é singular, nem é única. A infância é plural: infâncias (BARBOSA, 2000, p. 84).
Assim, cabe pensar a realidade contemporânea, considerando as mudanças
sociais que ocorreram ao longo da história e se refletiram na instituição família
(ÁRIES, 1981), reflexão que descarta a ideia de naturalização da família, a
padronização de um modelo único, com valores pré-determinados, já que:
A família não é um simples fenômeno natural. Ela é uma instituição social variando através da história e apresenta até formas e finalidades diversas numa mesma época e lugar, conforme o grupo social que esteja (PRADO, 1981, p. 12).
Barbosa (2007) questiona as visões conservadoras referentes à socialização
das crianças. Esclarece que a socialização do mundo infantil se ampliou com o
evento da entrada das mulheres ao mercado de trabalho, assim, a socialização das
crianças admite outras relações através de pessoas como babás, professoras da
educação infantil (entre tantos outros arranjos com: vizinhos, amigos, irmãos mais
velhos, parentes...).
Atualmente, a socialização da infância deixou de ser ancorada somente na
vida familiar, contudo, instaurou-se em uma “rede de socializações plurais”.
Nesta perspectiva, a escola de educação infantil se torna, cada vez mais, um
contexto central de desenvolvimento da infância, pois:
à medida que as famílias se nuclealizaram e se isolaram, e pais e mães passaram a trabalhar fora de casa, num movimento que reduzia suas funções reprodutivas culturais e sociais, a escolarização cresceu como um modo sistemático e especializado de educação, e tornou-se o contexto central do desenvolvimento individual das crianças e jovens, assumindo posteriormente funções sociais e emocionais adicionais (CARVALHO, 2004, p. 50).
Desta forma, na civilização urbana moderna, segundo Lenhard (1973),
destacam-se outros órgãos da sociedade assumindo funções que, outrora, cabiam
apenas às famílias.
No contexto contemporâneo, cabe à escola de educação infantil, rever sua
função social como instituição responsável pela transmissão de conteúdos formais.
116
As transformações do mundo atual requerem a re/significação da função do espaço
escola neste “novo” contexto social que reflete e refrata a instituição família.
O papel social concebido ao ser professora, tem se representado, nesta
investigação, através de uma ideologia reproduzida nos valores burgueses, deste
modo, a escola se mantém estática, detentora dos bons e velhos costumes, além de
possuir todo conhecimento formal necessário ao ser humano, fatos que implicam em
normatividades ao comportamento da família, principalmente frente à criança.
Diante das marcas desses conceitos, as professoras alimentam expectativas
em relação à família, mesmo esta instituição sofrendo modificações sociais frente à
história, especialmente no que diz respeito aos seus valores e às novas
constituições de tipologias que diferem do padrão hegemônico e trazem
necessidades e sentimentos diferenciados (MADEIRA, 1988).
A história do percurso da família, mesmo revelando transformações, de
acordo com Pratta e Santos (2007), indica que essa instituição social, educacional,
ainda marca seu papel como fundamental na constituição dos indivíduos.
Nessas novas transformações, esses autores declaram que, no início do
século XX, predominava a família nuclear, com papéis culturais estabelecidos entre
os sexos. Como chefe de família, o pai provia o sustento da família e era
responsável pela autoridade dessa. À mãe, atribuíam-se os serviços domésticos e o
zelar pelo marido e filhos. A autoridade familiar correspondia ao controle sobre os
filhos, no que diz respeito à obediência às regras sociais.
Esta história que deixou resquícios de uma família nuclear, burguesa, não
corresponde mais a maioria das famílias que necessitam trabalhar (SANTOS, 2006).
No contexto atual, assinala Pôster (1979, p. 100) que, “a história da família é
descontínua, não-linear, e não-homogênea: consiste, isto sim, em padrões familiares
distintos cada uma com sua própria história e suas explicações”.
Entretanto, a escola ainda mantém o desejo de padronização da família (e da
escola) e ainda a concebe com base na “força simbólica” (PROST e VICENTE,
1992) que seu percurso histórico demarcou.
A família ainda é considerada base da educação de valores ao indivíduo
(OSÓRIO, 1996), mas, quando a escola percebe suas transformações, destacam
diferenças entre o modelo hegemônico e, conceituam a família atual como
117
“desestruturada”, aquela que não detém mais os valores sociais, ou seja, o padrão
da família nuclear.
Refletir nas escolas, com amplitude, sobre as mudanças do contexto familiar,
faz-se necessário para que se contemple uma “real” relação de complementaridade
entre família e escola, uma reflexão que possa combater o desejo do
estabelecimento de modelos, padrões tanto em relação à família, como à escola,
pois:
Em face de todas estas mudanças, o homem ainda se mantém fiel a um conjunto de valores, que pertence a uma sociedade diferente, uma sociedade em que as fronteiras entre família e o extrafamiliar eram nitidamente delineadas (MINUCHIN, 1980, p. 53).
Entretanto, os dados que revelam conflitos nesta relação, também confirmam
que, nas perspectivas das professoras, admitem a importância da comunicação, do
envolvimento das famílias para a realização do projeto de educar a infância, como
explicita o texto de Marina:
(Texto, professora Marina) Vemos, lendo os fragmentos, a importância da Educação
Infantil no começo da vida escolar da criança. Por isso, a integração escola-família-
comunidade deve estar presente em todos os momentos. É preciso com isso
envolvermos os pais em nossos planos pedagógicos, fazendo deles parte da escola.
A falta de comunicação entre professores e pais dificulta bastante o trabalho que
pretendemos desenvolver.
O texto de Marina, bem aceito pelas professoras, ganhou até elogios, o que
indica que as professoras compartilham de sua ideia:
(Professora Lygia) Uau! Bonito não, bonito.
Nesta relação entre família e escola, foi refletido em como os pais poderiam
ser envolvidos no processo pedagógico de seus filhos:
(Professora Cecília) Ah, eu acho assim, que quando você pede para o pai trazer um
vasinho, o pai está colaborando...
118
Cecília reduz a participação da família à colaboração de materiais trazidos
pelos pais. Marina já amplia esta participação:
(Professora Marina) Acho que quando você convida o pai para fazer junto com a
criança...
Clarice exemplifica que, mesmo em seus lares, os pais podem participar:
(Professora Clarice) Ah!, uma pesquisa por exemplo que a Lygia fez não envolveu a
família? Envolveu.
Quando questionadas sobre a participação dos pais na construção do projeto
educacional, Clarice se assusta:
(Professora Clarice) Eu acho que é expor para os pais conhecerem o trabalho, mas,
não também chegarem e opinarem, é, ah..., eu acho que isso..., eu acho que isso,
conhecer, saber o que está sendo feito é uma coisa, envolver, assim, na construção
do projeto, sei lá, por turma, eu acho que não, tem que ter um limite também.
Rachel media a ideia de limites que Clarice expressa em relação à
participação dos pais na construção do projeto educacional e adapta o envolvimento
da família ao trabalho já existente:
(Professora Rachel) Eu acho que o plano de aula, o plano de curso, eu acho que já
é com base em relação à realidade. “Meu corpo minha casa” [projeto da escola],
olhe quantas coisas a gente trabalha, voltado para a comunidade, né? Noções de
higiene, noções de cuidado com o corpo... Eu acho que já é voltado, o que pode
acontecer, a gente saber sim as expectativas deles e o conhecimento não para o
filho, a gente não pode introduzir um outro tema vindo deles para começar o ano.
119
Mesmo assim, Clarice retoma sua afirmação e relembra, com ela, a
responsabilidade de trabalhar um conteúdo formalizado para as exigências da
escolarização futura:
(Professora Clarice) É e depois tem outra, quando se fala, né, em envolver a
comunidade, fazer um projeto político pedagógico baseado na clientela, aí o MEC
não quer saber, né?, quando o aluno chegar, agora a cobrança já vem desde o
Jardim I, o que que a comunidade pensa ou deixa de pensar, de repente, você vai
ter que trabalhar daquele jeito, né? Determinado, já vem pronto e aí?
Diante do cumprimento da função de ensinar os conteúdos formais, Clarice
mantém a importância da antiga experiência de uma escola tradicional, construir um
projeto educacional para a infância na escola de educação infantil não é tarefa dos
pais:
(Professora Clarice) Então, não dá para gente ficar no aí “eu vou ouvir o que os pais
querem que os filhos”..., eu acho até que, o que eles imaginam, acreditam que o
filho vá aprender na escola, é uma coisa, agora, perguntar para a partir daí você
montar o seu plano, nunca vi dar certo, nunca vi ninguém fazer isso, acho que é tudo
muito no papel, mas nunca vi.
A ideia de uma parceria mais abrangente da família na construção do projeto
educacional da infância parece assustar Clarice, mas Rachel promove a
harmonização:
(Professora Rachel) Mas tudo vai adaptando, não é?
E Cora arremata as palavras de Clarice, também contemplando a ideia de
harmonização de Rachel:
(Professora Cora) Mesmo porque, eu acho que a gente já tem um caminho traçado,
você só vai, eu acho que conhecer mais, de repente surge alguma coisa e você vai
incluir aquilo, você vai trabalhar aquilo.
120
Esta discussão envolveu grande disputa de poder para as professoras, à
escola, ainda cabe determinar a educação da infância, é papel dela, mesmo porque,
quando essa educação é administrada pela família, ela traz deficiências, como
declara Lygia:
(Professora Lygia) Uma palestra do Mário Sérgio Cortella, ele diz que uma criança
quando entra na escola vem com cinco mil horas de porcarias já assistidas, pra
começar do jogo do Corinthians, patati patatá, e aí chega na escola com uma
bagagem imensa e aí, o que o professor pode fazer? Nada. E o que tudo isso tem
haver com a criança?
Mesmo pensando nas transformações do mundo contemporâneo, essa ideia
soa, à Lygia, como desculpas a uma educação que deixa a desejar:
(Professora Lygia) Essa história de que tudo está mudando, a criança, a família, as
responsabilidades....
À professora Cora, a ideia de uma relação de complementaridade entre
família e escola, é marcada por um déficit no que concerne à função da família:
(Professora Cora) Diante da perspectiva da educação na complementação à ação
da família, sinto que os pais estão pouco estruturados para oferecer uma educação
básica e, com isso, deixam essa responsabilidade para escola [...]
Os pais já não conseguem ter controle e autoridade sobre seus filhos
colocando limites e regras [...]
Contudo, na educação da infância do mundo contemporâneo, admitir uma
ótica, junto à família atual, como importante na relação de complementaridade à
escola, traz a emergência de um trabalho integrado, que contempla a troca de
informações entre essas instituições.
Essa troca de informações, segundo Szymanski (2001, p. 36) “possibilita a
descoberta de significados comuns”, significados que podem ser traduzidos, cada
vez mais, em participações concretas da família no ato de educar suas crianças.
121
Esta participação é, para Cody e Siqueira (1997, p. 15), a parceria para o
sucesso escolar, portanto, cabe à família:
participar da vida escolar dos filhos e da escola. A contínua colaboração entre escola e os pais faz com que se tornem parceiros no processo educacional. A falta de comunicação entre a escola e os pais leva ao comprometimento do sucesso escolar.
Contudo, no processo de construção de parceria entre escola e família,
denota-se a necessidade de olhar essas duas instituições como educadoras que
objetivam uma grande singularidade, a tarefa de educar a mesma criança, com
funções “diferenciadas”, mas, com objetivos comuns. A parceria estabelecida nestes
termos considera que:
Um passo importante para a construção de uma parceria entre escola e pais é considerá-los também como educadores, que têm o que transmitir e o que aprender [...] A educação ocorre no encontro de pessoas que carregam uma cultura e se dá tanto de modo formal, na escola, como informal, na família, no trabalho, nas igrejas, sindicatos, movimentos populares e demais organizações sociais (SZYMANSKI, 2001, pp. 10-11).
A construção de uma relação de complementaridade entre família e escola
requer a consciência de que: “se trata de uma relação complexa e, por vezes,
assimétrica, no que diz respeito aos valores e objetivos entre essas duas
instituições” (NOGUEIRA, ROMANELLI e ZAGO, 2000, p. 9).
Além disso, essa relação requer considerar as condições reais que
circunstanciam as famílias, construindo:
uma relação interdependente entre as condições sociais da origem das famílias e a maneira que se relacionam com as escolas, além do fato de que as transformações visíveis pelas quais passam ultimamente, tanto as escolas quanto as famílias, naquilo que diz respeito às suas estruturas e dinâmicas internas, são reveladoras de uma tendência crescente de conexão entre os territórios: família e escola (Ibidem, p.11).
As transformações sociais que marcaram as instituições educacionais família
e escola constituem características importantes de entendimentos para uma
emergente construção de relação de complementaridade entre essas instituições,
uma relação que garanta a real participação de ambas e o enfrentamento conjunto
dos possíveis problemas que possam existir no intuito de oferecer educação e
cuidados integrais à infância.
122
A discussão coletiva das professoras revelou desejo de padronização de um
modelo de família e escola, disputas de poderes sobre a função de ensinar, além do
dilema sobre a escola de educação infantil ser um lugar para a criança ficar
enquanto a mãe trabalha, interligando-se em destacar, principalmente, os cuidados
(físicos) da infância, o que para as professoras, secundariza, desvaloriza o trabalho
como docentes.
Neste contexto, as falas também destacaram ambiguidades do papel docente,
emergindo a necessidade de estudos, de discussão sobre as especificidades da
educação infantil, principalmente, no contexto contemporâneo em que se encontram
as instituições família e escola, re/construindo as possibilidades de
complementaridade na relação entre essas instituições educacionais através do
binômio educar e cuidar integralmente da infância.
4.2 – Educar e cuidar: uma perspectiva de complementaridade
ao ensinar
Para a apresentação deste tema, a construção das análises seguiu o mesmo
critério anterior, ou seja, a seleção das falas que se interconectavam aos temas que
abrangiam as questões apresentadas ao longo da discussão.
Assim, na perspectiva de desejo de padronização de um modelo de família e
de escola, o papel elencado pelas professoras à escola de educação infantil seria o
de ensinar conteúdos formais e, o da família, educar, no que concerne à formação
de valores e cuidar (fisicamente).
Este papel, que cabe à escola, de ensinar conteúdos formais da infância
destaca uma “cultura” que abrange, também, segundo as professoras, o
pensamento de algumas famílias:
(Professora Lygia) Mas eu fiz uma observação na aula passada, eu estava cantando
a letra do bingo e aí outro ajudante, eu tenho dois ajudantes por dia, disse: “Eu
quero cantar também”. E cantou. Terminando aquele segundo bingo, um aluno olhou
123
para mim e disse: “É professora, lição que é bom nada.” Eu disse: Viu, o que que é
lição? “É lição no caderno, de letra”. E eu disse: Mas isso aqui é uma lição, nós
estamos aprendendo alguma coisa, é uma atividade, né? Ele disse: “Não, isso não é
lição, isso é brincadeira.” Entendeu? Então as coisas..., uma criança de cinco
anos....
A criança de cinco anos reproduz a expectativa de sua família, ou seja, o de
aprender conteúdos formais através da realização de lições no caderno.
Assim, a professora Lygia se assusta na “reprodução” da ideia da criança em
estar na escola de educação infantil para fazer lição, não considerando a brincadeira
como uma atividade.
Entretanto, na fala da professora, ela denomina esta criança como aluno (3ª
linha), o que destaca, também, uma singularidade ao ensino fundamental ao mesmo
tempo em que apresenta um estranhamento à fala da criança e, denomina-a como
criança (8ª linha).
A singularidade e o estranhamento, bem como os termos aluno e criança,
destacam ambiguidades, confusões nas especificidades da docência infantil, não só
para a criança e sua família, mas, também, para a professora.
Confusões refletidas, consequentemente, pelas professoras, na divisão de
papéis entre família e escola, gerando conflitos na relação de complementaridade a
partir da ideia do descumprimento do papel que cabe à família:
(Professora Rachel) Eu acho que se a gente tiver que ensinar tudo...
Além do ensinar, ao papel da escola também cabe o cuidar, o qual, para as
professoras, ressalta-se como necessidade primeira das famílias, tendo em vista o
desejo da relação de complementaridade junto à família imaginada, fato que
secundariza o ensinar no transcorrer da prática pedagógica, como declara Rosa:
(Professora Rosa) Agora é mais cuidar do que ensinar.
O cuidar, para as professoras, ao se remeter à história, aborda uma
concepção que, segundo Kuhlmann Jr. (1998), polariza essa ação, colocando de um
lado o caráter assistencial contrário ao educacional.
124
Às professoras, esta necessidade do cuidar fere o papel docente de ensinar
elencado por elas, pois, percebem a existência de um conteúdo formalizado a se
cumprir:
(Professora Simone) Então, mas tem um conteúdo para você passar.
Esta ideia de cuidar, também, como ensinar, parece valorizar o papel do
professor de educação infantil atual, pois, combate a história da educação
assistencialista da infância, ideia que toma o centro das discussões das professoras,
impossibilitando uma reflexão ampliada do contexto atual e, principalmente, do
objetivo de oferecer uma educação integral às crianças, pois:
advogar pela introdução do “pedagógico” como solução, no sentido de
superar o caráter discriminatório, pejorativo e moralizador de muitas das
iniciativas classificadas como “assistenciais”, supõe uma interpretação
limitada e unívoca do que se toma como “pedagógico”, impossibilitando
que outras vozes e outros entendimentos da questão possam vir à
discussão (BUJES, 1998: 01)
Ao discutirem, as professoras se questionam sobre o que seriam esses
conteúdos formais da infância e, a resposta da reflexão se materializa na fala de
Clarice:
(Professora Clarice) Conteúdos são os conceitos alto, baixo, pequeno... que ele [a
criança] aprende na escola, porque não?
Para as professoras, é importante que a criança aprenda esses conteúdos
formais, a educação infantil não admite só brincadeiras, como, também, lembra
Cora:
(Professora Cora) Olhe, não é só brincando, eu falo do papel, do lápis...
No entanto, esta ideia desperta a ideia de escolarização da infância e Rachel
a coloca como uma preparação para a escolarização futura:
125
(Professora Rachel) (interrompendo) Eu acho que tem que ter mesmo, sabe por
quê? Depois ele (a criança) vai prestar vestibular, olha quanta coisa que é exigida de
um adolescente.
Cora talvez quisesse readequar sua ideia anterior, não completada:
(Professora Cora) Não, eu estou falando assim...
Mas, Rachel a interrompe e a reafirma:
(Rachel) [interrompendo] Olhe quanto que é exigido no vestibular, eu acho um
absurdo o que é exigido, mas já tem que criar este hábito.
Mesmo Rachel assumindo que acha um absurdo as exigências, o “sistema
educacional do futuro” a cobra, como professora, o papel de ensinar o hábito de
estudo, já adequando a essas exigências futuras, uma ideia que ganha adeptos:
(Clarice) É necessário.
E Rachel retoma a necessidade de escolarização, pensando agora em uma
preparação mais próxima que o vestibular:
(Rachel) Então, acho que já..., tem criança que vai chegar na 8ª série, o que que vai
acontecer, vai pro Colegial sem saber nada. É tanta coisa.
Nesse dilema, as professoras apresentaram a ideia de que à família cabe a
função de cuidar, principalmente do aspecto físico da criança e, de educar, no
concerne à formação de valores e, à escola, cabe o papel de ensinar conteúdos
formais, assim, também, estabelece-se a ação do cuidar como ensinar “noções de
higiene”.
Nesta perspectiva:
ainda que possamos contestar a separação feita pelas professoras e sua
postura discriminadora com relação ao corpo da criança, é preciso destacar
que as profissionais contrapõem o cuidar ao ensinar, e não ao educar. Para
126
a maioria, um significativo avanço é o „reconhecimento da creche não só
como espaço da criança, mas um espaço onde se investe no
desenvolvimento infantil e na descoberta do mundo pela criança‟...
(KRAMER, 2005, p. 63).
Ao chegarem à resposta de que, no papel da escola de educação infantil, faz-
se necessário ensinar os conteúdos formais, preparando a criança para o hábito da
escolarização seguinte, futura, surge, então, ainda nessa questão, a
complementação sobre o binômio do papel da escola.
Assim, Florbela admite, também, o cuidar, em sua concepção, o binômio para
ela é:
(Professora Florbela) Pra mim é ensinar e cuidar.
Admitem que, como professoras de educação infantil, necessitem da
realização dos cuidados à criança, no entanto, destacam um conceito de cuidado, ao
mesmo tempo, como conteúdo formal, ou seja, um cuidar estendido ao aspecto
físico, como objeto didático, pedagógico dos conteúdos a serem trabalhados.
Realizam o cuidar para a autonomia, desta forma, ensinam a criança a se
cuidar, a se higienizar, a alimentar-se. A didática sobrepõe-se às necessidades do
cuidar integral do ser humano, principalmente nesta faixa etária das crianças.
Desta forma, ratificam este conceito refletido sobre o cuidar na resposta à
pergunta da pesquisadora sobre: O que é cuidar?
(Professora Cecília) Cuidar do físico. Faz parte do assistencialismo.
Cecília acredita que cuidar se relaciona apenas ao físico, esquece-se do
objetivo de desenvolvimento integral à criança na educação infantil e, ainda
completa, junto aos resquícios históricos, que esse cuidar, que visa o aspecto físico,
remete-se ao assistencialismo, esta ideia é logo negada pela colega Clarice:
(Professora Clarice) Cuidar... Cuidar de que maneira, cuidar como? Cuidar é uma
coisa [...]
127
Cora justifica que, mesmo sendo o atendimento ao aspecto físico da criança,
essa ação é garantida como educação na escola de educação infantil, cuida-se com
o objetivo de ensinar:
(Professora Cora) Mas no cuidar você também está educando a criança.
Ideia que Marina entende rapidamente e a verbaliza:
(Professora Marina) Principalmente na educação infantil.
E Florbela “didatiza” esta ideia, como professora, entende que o cuidar se
deve manter como pedagógico em sua ação junto à criança:
(Professora Florbela) Explicar a importância de tomar um banho, de escovar os
dentes...
Então, Clarice retoma a fala, sendo o cuidar um ato pedagógico, ele não se
torna assistencialista, ele faz parte do conteúdo formal da escola de educação
infantil:
(Professora Clarice) Não é assistencialismo, né?
- São noções de higiene...
Simone recupera a ideia de Clarice, o cuidar como conteúdo formal e,
esclarece a possibilidade da forma de se trabalhar com o cuidar infantil, ou seja, a
didática para este conteúdo:
(Professora Simone) Se a criança está lá, nos cuidados, você pode ir cantando uma
musiquinha, né?
A ideia de escolarização do cuidar, rebate a ideia de assistencialismo, o que
as conforta no dilema apresentado junto à especificidade do papel da docência da
infância.
128
Entretanto, na reflexão de ensinar e cuidar, ecoa uma voz que retoma o
cuidar e abrange seus aspectos, não só físico, mas também emocional, psicológico,
não só pelo objetivo da autonomia, mas pela sensibilidade do papel docente a se
desempenhar na infância:
(Professora Florbela) Acho que esse cuidar também vai da responsabilidade que a
gente tem pela criança. É assim, ah!, não é só eu vou deixá-lo bonitinho, não é só
isso, mas é a responsabilidade que eu tenho com a criança quando ela está comigo.
Eu é que estou cuidando dela, é ver se ela está bem, se está precisando de uma
conversa, de um banho, de remédios, é responsabilidade minha, sou eu que estou
cuidando dela.
Embora Florbela não tenha dito a palavra sensibilidade, mas
responsabilidade, ela estabelece um elo à criança. É necessário saber da
necessidade da criança, criar vínculo e entender que o cuidar se estende ao aspecto
psicológico também, isto é da responsabilidade do professor.
Interessante é citar que Florbela é concursada como monitora 40 hs, ou seja,
ela atua com crianças de 3 anos, em período integral, assumiu em 1991 e fez o
curso de Pedagogia, em serviço, formando-se em 2008.
A experiência de atuar em período integral com as crianças, como monitora,
cargo que não exigia formação específica na área, talvez a tenha dispensado de
manter-se atenta ao combate de uma suposta ideia de assistencialismo junto à ação
de cuidar.
Em toda a discussão coletiva, bem como nos textos elaborados
individualmente pelas professoras, apresentaram-se perspectivas de combate ao
assistencialismo histórico, fato que evidenciou o tema educar e cuidar.
A história da educação da infância, que passou pelo assistencialismo e pela
educação compensatória, promoveu discussões para a formulação de uma proposta
que não fragmentasse o desenvolvimento integral da criança e, nessa discussão,
abordou-se, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LEDBEN/96), o
parecer sobre a indissociabilidade do binômio educar e cuidar na educação infantil.
129
Assim, para que a criança passe pelo processo de educação infantil, é
necessário que os cuidados essenciais estejam postos junto ao educar,
indissociavelmente.
Almejar uma educação para o desenvolvimento integral da infância requer
pensar nos cuidados aos aspectos cognitivos, afetivos, emocionais, físicos, além dos
sociais da criança que se educa.
Requer ouvir as necessidades da criança, seus interesses, seu contexto
familiar, respeitando seus direitos e constituindo espaços e tempos que
proporcionem o desenvolvimento da curiosidade, do convívio social, das
brincadeiras, do respeito, da responsabilidade, da sensibilidade, da arte e da cultura.
A promoção dessa educação que se pode chamar de integral, de “qualidade”,
interliga-se, integra-se aos cuidados que envolvem tanto os aspectos biológicos,
cognitivos, como os aspectos psicológicos, afetivos, desta forma, a alimentação, a
saúde, a aprendizagem, a emoção, os vínculos afetivos são imprescindíveis e
indissociáveis no ato de educar.
Para se educar na educação infantil, é preciso comprometer-se com o cuidar.
Educar envolve situações pedagógicas intencionais, planejadas, situações que
abrangem cuidados para as brincadeiras, para as aprendizagens orientadas de
forma integrada.
Pensar o contexto profissional atual do professor de educação infantil significa
pensá-lo sobre a perspectiva de que: “Trata-se de novos tempos, que indicam outro
perfil de profissional para atuar na EI (...) (RAUPP, 2002, p.14)”.
Um perfil que requeira esforços para a construção de uma “Pedagogia para a
Infância e para a educação infantil (WIGGERUS, 2002, p. 3)”. Um compromisso
coletivo que, ao refletir sobre a educação infantil:
precisa ainda refletir, discutir, debater e produzir conhecimentos e práticas sobre como devem ser cuidadas e educadas crianças menores de 7 anos em creches e pré-escolas, compromisso de todos os que, direta ou indiretamente, se vinculam a esta modalidade educativa (WIGGERS, 2002, p. 12).
Um processo que indica a necessidade emergente da formação continuada
de professores, uma formação coletiva que contribua para a construção de
parcerias, principalmente junto à família e que tenha a dimensão de que:
130
a reflexão não é apenas um processo psicológico individual, passível de ser estudado a partir de esquemas formais, independentes do conteúdo, do contexto e das interações. A reflexão implica a imersão consciente do homem no mundo da sua experiência, um mundo carregado de conotações, valores, intercâmbios simbólicos, correspondências afectivas, interesses sociais e cenários políticos (GÓMEZ, 1992, p. 102).
É imerso sobre este “mundo carregado de conotações” que a formação
continuada de professores de educação infantil se faz necessária, tendo como
objetivo o direito da criança a uma educação integrada.
O entendimento da palavra integral na educação da infância se remete à
ampliação de uma formação de professores que objetive construir a integração entre
educação e cuidados infantis e, em especial, a integração da relação família e
escola, instituições educadoras que compartilham o mesmo objetivo da educação da
infância.
131
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo.
Não é. A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado". Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor. Essa palavra de luxo
(PRADO, 1996, Ensinamento, p. 116).
A coisa mais fina do mundo é o sentimento e há de se tê-lo para poder cuidar,
compreender a necessidade do outro (criança), atentar-se, estar sensível ao outro
(criança) e sentir-se responsável pelo cuidar do outro (criança), assim é que
educamos para “ser humano”.
Como não aprender com as crianças sobre o binômio educar e cuidar? Ouvir
as crianças, conhecer as suas famílias sobrepõem-se a qualquer teoria que
possamos divulgar.
O que dizer de um ser (criança), cuja mãe nos relata sua fala sobre sua
higiene matinal: Você tirou? Você tirou? Ah! Eu queria a ramela dos meus olhos de
volta... (criança de 3 anos da escola pesquisada).
O processo de pesquisa, realmente, aguçou-me os sentidos, fiquei como a
farejar situações, observações, das quais, em contato, “pasmava-me” e me punha a
refletir, confirmando a teoria registrada.
Ao principiar este texto de dissertação, relatei que iniciar uma pesquisa não
era uma tarefa fácil, no entanto, ao escrever as últimas considerações deste
processo, retomo as palavras iniciais e relato, agora, que, terminar uma pesquisa é
muito difícil, pois sempre temos algo, ainda, a registrar, acreditamos que a pesquisa
continua, entretanto, necessitamos colocar um ponto final, contudo, ele não significa
o fim da investigação e estudo.
132
Espero que, pelas muitas pesquisas lidas, pela teoria absorvida, pela história
passada e, ainda presente na educação infantil, pelas análises desta investigação
que, tudo isso possa significar a necessidade de atentarmos mais para a infância, de
aprendermos mais sobre como educar e cuidar de nossas crianças e, que novas
pesquisas, estudos possam continuar esse objetivo.
Pesquisar o meu próprio grupo de trabalho foi um processo desafiador, uma
tarefa difícil, árdua, pois, ao mesmo tempo em que eu possuía uma complexidade e
o aprofundamento dos dados sobre os sujeitos e toda a escola pesquisada, eu
também necessitava de apurar muito meu olhar de pesquisadora, estudar muito para
“desnaturalizar” o contexto e, ao mesmo tempo, centrar-me ao objetivo da pesquisa,
ou seja, buscar uma forma de trazer à tona as perspectivas das professoras sobre a
relação família e escola.
Além do mais, quando pensamos sobre uma diretora escolar pesquisando
seu grupo de professores, isto nos remete ao imaginário social sobre a “função” da
direção e a divisão dos lados entre diretora e professores, isto me colocava em uma
situação difícil, além de pesquisar o meu grupo, eu era (sou) diretora dele.
Ao longo da escrita do texto da pesquisa eu fui construindo pontes para
expressar que o fato de ser diretora/pesquisadora do grupo de professores
investigados me daria o aprofundamento para tomar esta posição, como a tomo em
meu cotidiano profissional, para contribuir com os objetivos de educar e cuidar das
crianças (este é o objetivo maior da pesquisa).
Assim, muitas leituras foram realizadas neste intuito (como: Por uma filosofia
do ato, na qual Bakhtin (1993) revela a ética e a responsabilidade, ação responsiva,
do pesquisador), entretanto, acredito que características muito particulares, a minha
constituição crítica de ser humano, o meu trabalho como professora de Língua
Portuguesa (a diretora que também é professora) e o desenvolvimento de “ser
pesquisadora” (que inclui o olhar, leituras, estudos, trocas, orientações, dialeticidade)
encaminharam todo o percurso desta pesquisa, destacando, com ênfase, a
“desmistificação” do pesquisador que investiga seu próprio grupo de trabalho, sendo
ele, principalmente, diretor escolar desse grupo.
A tarefa difícil se fez como uma contribuição importante à pesquisa e por meio
do desenvolvimento de estar munida de ética e do objetivo maior que é desenvolver,
da melhor forma, a educação e os cuidados à infância. Objetivo que nos
133
apaixonamos quando vemos a “magia misteriosa” que se pode revelar em ser
criança e quanto podemos aprender com elas, a sermos humanos.
O desenvolvimento deste trabalho possibilitou perceber, em seu processo,
que a pesquisa desenvolvida não se referia apenas ao estudo da relação família e
escola, mas, a um eixo maior que a compreendia: o estudo das especificidades da
docência da infância junto às duas instituições educadoras. A relação da família e da
escola desenvolvendo e sendo desenvolvia pelo/no binômio educar e cuidar da
infância, ou seja, este binômio como elo desta relação.
As perspectivas das professoras se remeteram ao percurso histórico-cultural
da educação infantil, a partir desta interpretação, compreendeu-se, também, que
esta construção é (pode ser) trans/formada, nesse sentido, a formação continuada
que compõe a reflexão, o estudo, o diálogo entre os pares se fundamenta como um
campo fértil para esta compreensão e profissionalização da docência da infância.
A pesquisa demonstrou, então, a necessidade de estudo e reflexão sobre as
transformações das instituições educadoras, redimensionando o entendimento das
esferas de influências das construções sociais, ou seja, os fatores econômicos,
políticos, enfim, culturais que demarcaram e demarcam a construção social das
instituições educacionais família e escola e, o educar e cuidar como cerne do
trabalho junto à infância.
Assim, a pesquisa, que focou na relação família e escola envolta pelo educar
e cuidar, destacando confrontos, conflitos e ambiguidades, revelou caminhos,
obviamente desafiantes, sobre a construção da profissionalização dos professores
da infância e suas especificidades: o educar e cuidar das crianças de forma integral.
Destacou-se, dentre esses caminhos, a percepção sobre a necessidade de
se criar um projeto de formação continuada no contexto da escola que incluísse e
valorizasse a família como parte essencial do processo de educar e cuidar da
infância.
Nesse sentido, o processo de pesquisa trouxe, a todos os envolvidos, uma
complexidade de aprendizagens, em especial, à pesquisadora, uma imensurável
formação no campo profissional e, também, humano, já, para o grupo investigado, a
imprescindível compreensão da necessidade da formação continuada na complexa
constituição profissional do professor de educação infantil contemporâneo, o que
134
demonstra ser a pesquisa, em Ciências Humanas, uma fonte inesgotável de
aprendizagens a ser compartilhada.
Ao ler as transcrições, inúmeras vezes, fiquei imaginando por onde começaria
a escrever as análises, muitos assuntos estavam explícitos nos diálogos, os valores
da família, a função da escola, da família, as diferenças entre o período integral e
parcial, entre escola pública e particular, contudo, fui compreendendo que,
implicitamente, todos esses temas estavam interligados ao desejo de padronização
de família e de escola, no intuito de cumprir um papel na divisão de tarefas que as
professoras anunciavam, ainda que considerassem, conflituosamente, as
transformações sofridas, tanto pela família, quanto pela escola.
Nesta divisão, surgiram, demasiadamente, ambiguidades sobre as
especificidades da educação da infância, ou seja, sobre o educar e cuidar das
crianças.
Os conflitos das professoras junto às famílias aumentavam,
proporcionalmente, às suas justificativas sobre o porquê da família não cumprir o
seu papel.
Fui percebendo, então, a correlação que as professoras traziam de suas
funções ao ensino fundamental. Perseguindo a compreensão, retomei a história da
educação infantil, tanto anterior como atual, constatei, que os conflitos das
professoras se interligavam ao esforço da valorização profissional, assim, às
avessas, perseguiam um padrão, já consagrado, do ensino fundamental.
Interessante, também, foi notar que, contrariando a desvalorização social, ou,
buscando essa valorização, as análises não explicitaram características referentes
ao salário, mas, aos valores sociais, culturais que tanto a “velha” como a “nova”
história da educação da infância reservam grande importância às professoras, de
outra forma, o reconhecimento social da importância de serem “professoras de
educação infantil”.
Nesse sentido, destacaram, nas perspectivas das professoras, desejos de
padrões de valores e comportamentos de uma tipologia de família nuclear,
burguesa, contudo, ao se depararem com as famílias “reais” que se transformaram,
há muito, no percurso histórico, social, as professoras evidenciaram angústias e,
como decorrência, conflitos sobre as especificidades da docência da infância junto a
essa relação.
135
As professoras revelaram, consequentemente ao desejo de padronização da
família, funções à escola como o papel de ensinar conteúdos formais e, de cuidar,
relacionando-se ao aspecto físico, um conteúdo sobre noções de higiene. Funções
que incluem um processo didático-pedagógico que forma, na reflexão das
professoras, o binômio ensinar e cuidar.
Estas perspectivas enfatizaram uma relação de complementaridade que
dividiu as funções da família e da escola na ação de educar a infância.
Na divisão de tarefas que constituíram as funções da família e da escola na
relação de complementaridade, as professoras, consequentemente, dividiram a
educação integral da criança e, assim, também, a própria criança.
À escola coube a “cabeça” na tarefa de ensinar e cuidar do intelecto infantil e,
à família, coube o “corpo”, na tarefa de educar o comportamento e cuidar do físico.
A relação de complementaridade, na perspectiva docente, foi posta na
atribuição do significado de divisão de tarefas às partes família e escola.
Neste encaminhamento, pesquisei o estudo da palavra, do termo
complementaridade.
No dicionário etimológico da língua portuguesa, de Antônio Geraldo da Cunha
(2010, p. 166), encontrei a palavra Complementar, como verbo, significando
completar, seu uso apareceu pela primeira vez em 1844.
Já, completar, como adjetivo, servindo a dois gêneros (masculino e feminino),
apareceu em 1873. Complemento, substantivo masculino, significando „aquilo que
complementa ou completa‟, destaca-se como termo que surge no século XVI, essa
palavra teve sua origem no latim, complementum.
Assim, tomei a frase: “A relação de complementaridade entre família e escola”
e, o termo complementaridade, destacado como adjetivo, definiu o termo
(substantivo) relação, uma relação complementar, palavra que se remeteu a
completo no dicionário, trazendo seu significado como „total, cabal‟, „perfeito,
acabado, inteiro‟.
Transferindo esse conceito à discussão da pesquisa, esta relação de
complementaridade deveria se colocar, pois, como uma relação inteira, ou seja, a
união das partes, família e escola, tornando-se um todo no intuito de atingir o
objetivo do desenvolvimento integral da criança.
136
Esse significado de complementaridade como um todo, que deveria se
colocar na relação família e escola, não correspondeu às perspectivas das
professoras que vivem, na experiência docente, uma das partes que complementa
esta relação e que dividem, entre ambiguidades e conflitos, junto à família, a tarefa
de educar e cuidar da infância.
As perspectivas das professoras a respeito da relação de complementaridade
entre família e escola destacaram significados apreendidos por elas em suas
atividades docentes, das quais revelaram o ser histórico-cultural que re/produz, num
processo complexo, os valores, os signos sociais hegemônicos determinados
socialmente, historicamente como padrão (ou desejo), pois, “cada pessoa é em
maior ou em menor grau o modelo de sociedade, ou melhor, da classe a que
pertence, já que nela se reflete a totalidade das relações sociais” (VIGOTSKI, 1996,
p. 368).
Desta forma, sobretudo, nesta pesquisa, pesquisar meu próprio grupo de
trabalho me trouxe um panorama, muito particular, das atividades concretas,
circunstanciadas, em que desempenhamos a função de educar e cuidar da infância.
Algumas características deste panorama eu já conhecia, porém, outras, como
(talvez, no intuito de se valorizarem) o imaginário das professoras sobre a função da
escola de educação infantil na forma de re/produção do ensino fundamental, ou seja,
no ensino formal de conteúdos, com tanta ênfase, surpreendeu-me.
Vivemos, na Secretaria Municipal de Educação, um embate histórico entre a
Educação infantil e o Ensino Fundamental. Estes segmentos educacionais não
tomavam conhecimento um do outro, apesar da educação infantil possuir mais de
cinquenta anos de experiência no município e o ensino fundamental, pouco mais de
dez anos.
Com a troca da administração municipal, em 2006, iniciou-se, no município, o
ensino fundamental de nove anos e, algumas escolas de educação infantil
receberam-no; depois, o contrário também ocorreu, sem contar que as escolas
infantis que não receberam o ensino fundamental tiveram suas turmas da antiga
“pré-escola” de seis anos como “classes vinculadas”, um sistema no qual a escola
“empresta” as salas, mas, o professor e todo o trabalho administrativo-pedagógico
vêm da escola de ensino fundamental.
137
Neste novo modelo de administração, algumas consequências emergiram,
dentro da mesma escola, como: diferenças salariais; de cursos para a formação
continuada; de horário; calendário; entre outros, uma “guerra” que gerou conflitos e
confrontos.
Este fator provocou confusões, embates e, assim, as mudanças continuaram
com a implantação do Departamento de Educação Básica, onde a educação infantil
teve seus direcionamentos advindos do ensino fundamental, o que agravou os
desentendimentos, as ambiguidades das especificidades de cada segmento.
Desta forma, deparar-se com os conflitos, angústias, ambiguidades do
professor de educação infantil, incorre em refletir sobre um panorama abrangente,
pois:
A multiplicidade e o conflito, que vivemos nas relações sociais em que nos
constituímos, também se produzem dentro de nós. Somos uma
multiplicidade de papéis e de lugares sociais internalizados que também se
harmonizam e entram em choque. Cada um de nós não é apenas professor
ou professora. Somos também homens e mulheres, negros, mulatos,
brancos, brasileiros, estrangeiros em nosso próprio chão, velhos e moços,
pais e filhos, irmãos, esposos, a professora mais antiga da escola, aquela
que está iniciando seu primeiro ano de trabalho, a professora militante, a
professora não sindicalizada, a professora que dobra período, aquela que
não depende de seu salário para sobreviver etc... Muitos em um
(FONTANA, 2003, p. 64).
Atualmente, dentro do Departamento de Educação Básica, pode-se contar
com um Setor de educação infantil e com outro de ensino fundamental,
“recuperando”, um pouco, as especificidades de cada segmento.
Todo esse contexto de mudanças contribuiu para a desvalorização da
educação infantil, tanto na prática das atividades, como no fortalecimento de
padrões do ensino fundamental a serem seguidos, tema que reforça as análises
desta pesquisa.
Lutando contra a desvalorização, as professoras absorveram, com a velha e
com a atual história da educação infantil do município, ambiguidades sobre a função
docente da infância, dividindo, cada vez mais, os papéis entre família e escola, entre
educar e cuidar e, dividindo a própria criança.
Lembrando que, nas perspectivas das professoras, o destaque do papel
docente de ensinar conteúdos formais vai ao encontro das análises dos documentos
138
pós a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional/1996 para a formação do
professor de educação infantil (BONETTI, 2004).
As análises desta pesquisa e também da pesquisa de Bonetti (2004) revelam
ambiguidades no papel da docência da infância, fato que se remete à necessidade
de mais estudos e pesquisas na área, pois, assim como o professor de ensino
fundamental, o professor de educação infantil também é professor de Educação
Básica, mas, com certeza, guardam diferenças nas especificidades de cada
segmento.
Além disso, o quadro docente da escola pesquisada é composto por cinco
professoras de pré-escola, nomenclatura dada ao antigo concurso, o qual não existe
mais. As professoras de pré-escola assumiram o cargo com a função de trabalhar
com crianças de seis anos (antiga pré-escola), por quatro horas.
Com este concurso, as turmas de crianças que funcionavam em horário
integral, recebiam, em uma parte do dia, atividades classificadas como recreativas e
de cuidados físicos ministradas pelas monitoras e, na outra parte do dia, as
chamadas atividades pedagógicas, o ensino de conteúdos formais da infância,
realizados pelas professoras.
Assim, desde o início deste concurso, as professoras dividiam as tarefas junto
às monitoras, ou seja, dividiam a educação integral das crianças e, as próprias
crianças. Às professoras cabiam as “cabeças” e, as monitoras, os “corpos”.
Esta divisão também coincide com a relação de complementaridade entre a
família e a escola, como depreendido das falas das professoras.
A relação família e escola sempre compôs um tema, em particular, muito
ligado a minha experiência profissional. Como gestora na educação infantil, é
estreito o vínculo que meu trabalho estabelece, tanto com as professoras, como com
os pais, familiares, fato que me permite ter acesso aos dois lados, ouvir os conflitos
e trabalhar para que eles sejam harmonizados, minimizados.
Estas duas instituições educacionais, histórico-culturais, refletiram e
refrataram modificações no tempo, porém, ainda sustentam um desejo de modelo de
valores, costumes, ações, objetivos.
O modelo social da família e da escola, que traz desejos de padronizações
“externas”, ou seja, o que se espera da família e da escola socialmente, também
sustenta desejos de padrões “internos”, em outras palavras, qual a imagem que,
139
enquanto família, enquanto escola, deve-se preservar socialmente, na própria
preocupação de cada uma.
O conflito se manifesta em desejos de padrões que esperam socialmente que
essas instituições tenham e, também, os quais elas próprias esperam, desejam ter,
adequando-se às imagens.
Esses fatos compõem pressões dos dois lados no intuito de se adequarem às
imagens estabelecidas, o que gera diversas ambiguidades na educação e cuidados
da infância.
Para a família, em algumas vezes, a escola de educação infantil deveria ser
um “mini fundamental”, principalmente para as crianças de cinco anos e, nesta
relação junto à escola, realizam pressões que, muitas vezes, são concedidas pelas
professoras no intuito de atender ao objetivo de escolarização de conteúdos formais.
Desta forma, quando pensamos em formação continuada para os
professores, precisamos abranger um vínculo entre essas instituições para que tanto
o papel da escola de educação infantil, como o papel da família na relação de
complementaridade, seja re/significado, um trabalho que exige esforços conjuntos.
Estar no curso de mestrado, pesquisando meu grupo de trabalho a respeito
das perspectivas das professoras sobre a relação família e escola significou ir além
da investigação pesquisada, pois, constou como projeto de formação continuada,
próprio e de meu grupo, na proposta educacional da escola.
As investigações aqui realizadas fazem parte de um projeto de trabalho de
formação continuada que deverá ter início a partir do ano letivo de 2011 na escola
pesquisada, uma vez que espero poder contribuir com esta pesquisa na formação
do grupo de professores.
Uma formação continuada que possa partir do que significou a
complementaridade da relação família e escola nas perspectivas das professoras,
para a construção de um novo significado, a partir da visão real do contexto familiar
infantil e, assim, da necessidade da re/organização da escola junto à relação família
e escola contemporânea, ou melhor, do contexto particular da escola pesquisada.
Pois, educar e cuidar da infância exige uma relação de complementaridade
que contribua para a formação integral da criança. Dividir tarefas, nesta relação, que
se remete ao binômio indissociável do educar e cuidar, só trará perdas na formação
140
integral da infância, perdas que poderão ser irreparáveis, já que a criança sempre se
colocará inteiramente nesta relação, como um todo.
A especificidade do trabalho da educação da infância está ligada,
indissociavelmente, ao binômio educar e cuidar. O professor de educação infantil
não pode preocupar-se em desenvolver apenas o intelecto infantil, as crianças são
seres humanos com sentimentos e necessidades diversas.
A tarefa de educar e cuidar da infância é árdua, complexa e, a relação de
complementaridade entre família e escola deve unir os esforços, tendo como
singularidade o objetivo de construir uma educação integral às crianças, o que
significa dizer que:
Nossas crianças têm direito à brincadeira. Nossas crianças têm direito à atenção individual. Nossas crianças têm direito a um ambiente aconchegante e seguro. Nossas crianças têm direito ao contato com a natureza. Nossas crianças têm direito à higiene e à saúde. Nossas crianças têm direito a uma alimentação sadia. Nossas crianças têm direito a desenvolver sua curiosidade e imaginação. Nossas crianças têm direito ao movimento em espaços amplos. Nossas crianças têm direito à proteção, ao afeto e à amizade. Nossas crianças têm direito a expressar seus sentimentos. Nossas crianças têm direito a uma especial atenção durante seu período de adaptação à creche. Nossas crianças têm direito a desenvolver sua identidade cultural, racial e
religiosa (CAMPOS e ROSEMBERG, 2009, p. 13).
Para finalizar, acreditando que a Literatura nos faz compreender o Mundo
(social), o Mundo (individual), ou seja, o Nosso Mundo, de forma lúdica, sensível e
apaixonante, deste modo, ela nos Educa e Cuida das nossas Almas e, nos deixa um
“sabor” de quero mais (desejo implícito da pesquisadora), gostaria de trazer alguns
trechos de uma história de Bartolomeu Campos de Queirós (2006), “Antes do
Depois”, propiciando, com ela, a reflexão sobre a Complementaridade entre: a
Relação Família e Escola, o binômio Educar e Cuidar e, a Criança neste percurso.
E assim, incluir Você, Leitor, através da construção de sua reflexão e
interpretação, na continuidade desta pesquisa:
141
No meio daquela conversa eu me vi dividido em dois: um do sol e outro da lua, um doce e outro azedo. Um do meu pai e outro da minha mãe. Um feito de açúcar e outro de sal. E a água derretia os dois. Tomava banho com medo de derreter e sumir pelo ralo do chuveiro. Todos iriam me procurar mas não encontrariam. Eu tinha virado “nada”. Fiquei como lata redonda de doce. Aquela que a gente ganhava quando pagava a conta da caderneta no armazém. Metade marmelada, metade goiabada. Melhor ser duplo. Um faz companhia ao outro, concordei. Nunca vou estar só. Desde o meu nascimento aprendi a conversar comigo. Eu me falo e me respondo. Acabo sempre brigando. Quero e não quero. Inventaram, depois, uma lata que guardava quatro doces em uma. Imagina, além de ser marmelada e goiabada, ser também pessegada e bananada. Bom mesmo era ser dois. Se eu fosse quatro, cada um teria que morar num ponto cardeal: leste, oeste, norte e sul. Juntos, eu viveria em guerra e perdendo a batalha. Sempre três contra um. Gostaria de morar no oeste e ser cowboy. Ter um cavalo e lutar feito um mocinho e bandido. Meu pai guardava uma espingarda para matar um ladrão que nunca apareceu. Também, naquele tempo, não existia nem bala Chita. [...] Sal é também tempero. Tempera arroz, feijão, macarrão, carne e até dor. Se bem que minha mãe sempre fazia arroz-doce com casquinha de laranja. Arroz é muito humano, democrático, flexível. Arroz-doce é bom frio ou quente, duro ou molinho. Aceita o açúcar e o sal. Arroz é bom com ovo frito ou canela, soltinho ou empapado, para comer com garfo ou colher. Quando a saudade de minha mãe incomoda, eu como arroz-doce no bar da esquina. Nunca me enfarei de arroz-doce. Se a saudade é imensa, devoro duas tigelas. Mas sal traz sede. Lá em casa tinha sempre um pedaço de bacalhau dependurado na cozinha, aberto com meia asa de anjo. A diferença é que anjo deve ter gosto de algodão-doce. Nunca comi anjo. Só de olhar para o bacalhau a gente pensa num copo cheinho de água friinha. Em toda a comida se põe sal e no bacalhau se tira o sal. Cozinhar é obedecer à exigência das coisas. Viver é cozinhar. Há coisas que a gente precisa salgar, outras refogar, outras cozinhar, outras deixar em fogo brando, outras em banho-maria. Eu bebia água e ela saía salgada. Acreditava ser um milagre de Deus mas a professora disse que a ciência explicava tudo. O mundo é melhor quando adivinhado. Tudo que a ciência explica perde o encanto, descobri mais tarde. O mundo é melhor quando adivinhado. O mais feliz dos incômodos é o mistério. Ao estudar que a água é a soma de hidrogênio e oxigênio passei a ter menos sede. Se a água fosse um cristal derretido ela ficaria ainda mais preciosa. No alpendre lá de casa tinha uma pedra de cristal muito grande e sem valor. Eu me assentava sobre ela e imaginava a Terra por dentro. Sempre gostei de imaginar o dentro das coisas. O dentro é um lugar que a gente só chega imaginando. Lágrima é feita de água e sal. Isso mostra que existe um mar morando dentro da gente. Chorar é deixar o mar transbordar, eu fantasiava. Chorar é não morrer afogado. Chorar ajuda o mercuricromo a curar mais depressa a ferida. Nunca perguntei à professora sobre as lágrimas. Tinha medo de escutar que a “ciência explicava”. Sendo de açúcar e sal, quem gosta de açúcar vai gostar de mim. E quem gosta de sal vai gostar ainda mais. E para quem gosta de açúcar e sal eu viro arroz-doce. Vim ao mundo com necessidade de ser amado. Eles diziam: “Durma cedo que eu vou gostar de você”, e eu dormia; “Coma com a boca fechada que eu vou gostar de você”, e eu comia; “Escreva com a letra bonita que eu vou gostar de você”, e eu escrevia; “Deixa de chupar o dedo que eu vou gostar de você”, e eu deixava. Tudo o que eu mais queria era ser amado. Até hoje adoro comida agridoce. Sou mesmo um dois. Existe um rolinho chamado primavera. Ele é servido com um molho agridoce nos restaurantes chineses. É um molho feito de suco de tomate e abacaxi. Gostaria de
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inventar o rolinho inverno para servir no meu aniversário de 119 anos. Meus convidados se serviriam escolhendo o melhor: mel ou limão, e chorariam de tanto rir. Tem uma música que diz: “O que dá para rir dá para chorar. É uma questão de peso e medida” (QUEIRÓS, 2006, pp. 17-21).
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