a regÊncia atual dos contratos de arrendamento …

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1 A REGÊNCIA ATUAL DOS CONTRATOS DE ARRENDAMENTO RURAL DO AGRONEGÓCIO PELO ESTATUTO DA TERRA THE CURRENT REGIME OF AGRIBUSINESS RURAL TENANCY AGREEMENTS BY THE LAND STATUTE Manoel Martins Parreira Neto 1 RESUMO: O presente artigo visa, a partir de uma leitura econômica do Estatuto da Terra, se valendo do método dedutivo, defenderque a regência atual dos contratos de arrendamento rural do agronegócio é ainda feita pelo Estatuto da Terra, mesmo que as partes gozem de condições técnicas e econômicas consolidadas. A questão central aqui tratada é a discordância da decisão no REsp nº 1.447.082/TO, que afastou direitos previstos no Estatuto das empresas do agronegócio.Defende-seque aregência do arrendamento pelo Estatuto da Terra tem termo final preciso,a aprovação do novo Código Comercial (PLS nº 487/2013), que provavelmente revogaráo Estatuto da Terra no que tange a regulamentação dos contratos agrários que façam parte do agronegócio. Porfim, são apresentadas e analisadas algumas das inovações trazidas pelo novo Código Comercial. Palavras-chave: Direito Agrário; Direito do Agronegócio; Contrato de Arrendamento; Regência atual pelo Estatuto da Terra; Novo Código Comercial. ABSTRACT: This article aims, from an economic reading of the Land Statute, using the deductive method, to defend that the current regency of agribusiness rural lease contracts is still made by the Land Statute, even if the parties enjoy technical conditionsand economic indicators.The central issue addressed here is the disagreement of the decision in REsp nº 1,447,082 / TO, which removed rights provided for in the Statute of agribusiness companies.It is defended that the lease of the Land Statute has a precise final term, the approval of the new Commercial Code (PLS nº 487/2013), which will repeal the Land Statute regarding the regulation of agrarian contracts that are part of agribusiness.Finally, some of the innovations brought by the new Commercial Code are presented and analyzed. Keywords: Agrarian Law; Agribusiness Law; Lease Agreement.Current Regency by the Land Statute; New Commercial Code. A agricultura brasileira, sobretudo, nos últimos trinta anos, vivencia um processo de contínua integração com a atividade industrial. A partir de tal ligação verifica-se o fortalecimento de uma categoria especial de natureza econômico-jurídica denominada agronegócio. 1 Advogado graduado pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP/USP), tendo também cursado a Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás (FD/UFG). Atuante na área de Direito Agrário.

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A REGÊNCIA ATUAL DOS CONTRATOS DE ARRENDAMENTO RURAL DO

AGRONEGÓCIO PELO ESTATUTO DA TERRA

THE CURRENT REGIME OF AGRIBUSINESS RURAL TENANCY

AGREEMENTS BY THE LAND STATUTE

Manoel Martins Parreira Neto1

RESUMO: O presente artigo visa, a partir de uma leitura econômica do Estatuto da

Terra, se valendo do método dedutivo, defenderque a regência atual dos contratos de

arrendamento rural do agronegócio é ainda feita pelo Estatuto da Terra, mesmo que as

partes gozem de condições técnicas e econômicas consolidadas. A questão central aqui

tratada é a discordância da decisão no REsp nº 1.447.082/TO, que afastou direitos

previstos no Estatuto das empresas do agronegócio.Defende-seque aregência do

arrendamento pelo Estatuto da Terra tem termo final preciso,a aprovação do novo

Código Comercial (PLS nº 487/2013), que provavelmente revogaráo Estatuto da Terra

no que tange a regulamentação dos contratos agrários que façam parte do agronegócio.

Porfim, são apresentadas e analisadas algumas das inovações trazidas pelo novo Código

Comercial.

Palavras-chave: Direito Agrário; Direito do Agronegócio; Contrato de Arrendamento;

Regência atual pelo Estatuto da Terra; Novo Código Comercial.

ABSTRACT: This article aims, from an economic reading of the Land Statute, using

the deductive method, to defend that the current regency of agribusiness rural lease

contracts is still made by the Land Statute, even if the parties enjoy technical

conditionsand economic indicators.The central issue addressed here is the disagreement

of the decision in REsp nº 1,447,082 / TO, which removed rights provided for in the

Statute of agribusiness companies.It is defended that the lease of the Land Statute has a

precise final term, the approval of the new Commercial Code (PLS nº 487/2013), which

will repeal the Land Statute regarding the regulation of agrarian contracts that are part

of agribusiness.Finally, some of the innovations brought by the new Commercial Code

are presented and analyzed.

Keywords: Agrarian Law; Agribusiness Law; Lease Agreement.Current Regency by

the Land Statute; New Commercial Code.

A agricultura brasileira, sobretudo, nos últimos trinta anos, vivencia um processo

de contínua integração com a atividade industrial. A partir de tal ligação verifica-se o

fortalecimento de uma categoria especial de natureza econômico-jurídica denominada

agronegócio.

1 Advogado graduado pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo

(FDRP/USP), tendo também cursado a Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás

(FD/UFG). Atuante na área de Direito Agrário.

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O agronegócio, em sua essência, é fruto da coordenação das diversas fases que a

envolvem a produção, o financiamento, a industrialização e a comercialização de

produtos agropecuários. Outras atividades podem ser adicionadas ao conceito, partindo

da ideia de que o agronegócio vai desde a organização do aparato produtivo até a

entrega do produto ao consumidor final.

Segundo Buranello (2011, p. 35), pode-se dizer que a industrialização da

agricultura corresponde à fase mais "evoluída" da modernização e, por sua vez, envolve

a ideia de que a agricultura acaba se transformando num complexo de produção,

industrialização e comercialização. Dentro desse contexto de modernização, os

contratos agrários são chamados a coordenar essa integração entre diferentes setores

econômicos e fases da produção, o que é feito, em especial, pelos contratos típicos de

arrendamento e parceria rurais.

A discussão em torno do surgimento de um novo ramo do Direito, a partir do

Direito Comercial, o Direito do Agronegócio, coloca em evidência certa tensão entre o

que seria, propriamente, regido pelo já tradicional Direito Agrário e o que seria da

competência daquele novo ramo.

A questão é relevante, pois visa esclarecer as relações existentes entre o Direito

Agrário e o agronegócio, como categoria econômico-jurídica ampla que pretende

abarcar o campo da própria produção agrária.

O Direito Agrário, ao longo de sua história, vem desde 1922, buscando

alternativas metodológicas consistentes para conferir um tratamento científico que seja

ao mesmo tempo coerente, completo e orgânico. Nesse esforço, a empresa agrária

ascende como instituto primeiro e fundamental do Direito Agrário contemporâneo

(ZELEDÓN, 2015, p. 178). Na discussão sobre a consolidação do Direito do

Agronegócio não se deve perder de vista esse novo ambiente científico do Direito

Agrário, concebido, pioneiramente pelo mestre Antonio Carrozza, no seu intento, junto

com um grande conjunto de juristas, desde 1962, de se concretizar uma teoria geral para

este ramo do Direito.

O presente artigo visa, a partir das considerações já feitas, explorar qual seria a

regência atual do contrato de arrendamento no âmbito do agronegócio, partindo-se de

uma relação em tal contrato onde as partes sejam empresas que desfrutem de condição

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técnica e econômica fortalecidas. Para tal objetivo será exposto o caráter econômico do

Estatuto da Terra, sua regência tradicional do contrato de arrendamento rural,

defendendo-se uma interpretação atualizada com a realidade econômica em vigor. Em

seguida, será abordado o agronegócio e suas relações com o contrato de arrendamento

rural, defendendo-se que a regência atual deste contrato, ainda que as partes façam parte

da cadeia do agronegócio, é feita pelo Estatuto da Terra. Do mesmo modo, será

analisada, em linhas gerais, a contribuição do PLS 487/2013, para a consolidação do

Direito do Agronegócio como novo sub-ramo do Direito Comercial. Por fim, será

pontuado que a regência do Estatuto da Terra no que tange aos contratos agrários do

agronegócio tem termo final, o qual será a aprovação do referido PLS 487/2013 (projeto

do novo Código Comercial).

1 O ESTATUTO DA TERRA E SEU CARÁTER ECONÔMICO

A norma agrária fundamental do Brasil é a Lei nº 4.504, de 30 de novembro de

1964, denominada Estatuto da Terra. Sua gênese está associada à mudança ocorrida por

meio da Emenda Constitucional nº 10, de 9 de novembro de 1964, a qual procedeu à

alteração do art. 5º, XV, a, da Constituição Federal de 1946, inserindo na competência

da União legislar sobre Direito Agrário (BORGES, 1995, p. 13).

No entanto, na história constitucional brasileira, antes mesmo da referida EC,

havia previsão de competência da União, no art. 5º, XIX, c, da Constituição Federal de

1934, para legislar sobre normas fundamentais de direito rural. Neste momento, todavia,

tal matéria estava longe de ser, propriamente, o Direito Agrário tal qual conhecemos

hoje, uma vez que, segundo Buranello (2013, p. 42), tal direito rural era, em doutrina,

mero capítulo do Direito Civil.

Assim, falar em Direito Agrário é partir da EC nº 10/64 (BRASIL, 1964), que

lançou as bases para aprovação, em novembro do mesmo ano, do Estatuto da Terra.

Os objetivos fundamentais do Estatuto da Terra, tal qual como concebidos por

seu art. 1º, são a promoção da Política Agrícola e a execução da Reforma Agrária.

Como de especial interesse para o presente trabalho cabe colacionar a definição

de Política Agrícola, presente no art. 1º, § 2º, do Estatuto:

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§2º Entende-se por Política Agrícola o conjunto de providências de amparo à propriedade da terra, que se destinem a orientar, no interesse

da economia rural, as atividades agropecuárias, seja no sentido de

garantir-lhes o pleno emprego, seja no de harmonizá-las com o

processo de industrialização do país (BRASIL, 1964).

Do conceito ressalta-se que a intervenção estatal se reporta ao "interesse da

economia rural", no seu intuito de promover amparo à propriedade da terra. Do mesmo

modo, são extraídos os objetivos de "pleno emprego" e de harmonização com o

"processo de industrialização do país". Logo, uma forte carga econômica é evidenciada.

O intento central do Estatuto da Terra, visto desde a ótica de seu tempo, era

proporcionar a modernização dos processos agrícolas, com o objetivo de racionalizar a

produção e aumentá-la. É nesse sentido a definição da empresa rural, pelo art. 4º, VI, do

Estatuto, que a define como o empreendimento de pessoa física ou jurídica, pública ou

privada, que explore econômica e racionalmente imóvel rural, dentro de condição de

rendimento econômico da região em que se situe e que explore área mínima agricultável

do imóvel segundo padrões fixados, pública e previamente, pelo Poder Executivo.

Extrai-se deste conceito que a atividade rural tem como condão explorar de modo

econômico, mas também racional, a terra, o que expressa o delineamento da função

social desta mediante o aproveitamento racional e adequado, nos termos do inciso I, do

art. 186 da CRFB/88.

A legislação agrária brasileira, se estimula a produção, protege também a matriz

de onde ela emerge, que é a terra (BORGES, 1995, p. 87).

De fato, o Estatuto volta-se fortemente à Reforma Agrária, mas também coloca

como um de seus objetivos primordiais o "aumento da produtividade", conforme art. 1º,

§ 1º, do Estatuto da Terra. Assim, a execução da própria Reforma Agrária está atrelada

à uma perspectiva econômica que orienta o Poder Público a observar a função social

maior da propriedade como fonte geradora de riquezas para toda a nação.

Desse modo, é perfeitamente possível uma leitura econômica do Estatuto da

Terra, enxergando neste uma norma que veio em momento certo para dinamizar o setor

agrário brasileiro.

Mesmo no centro da Reforma Agrária, para Opitz (2012, p. 191), o produtor

pode e deve atacar, entrando na especulação e flutuação dos mercados importantes e

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grandes consumidores. Isso porque deve-se desenvolver o espírito capitalista, para que

se forme uma mentalidade nova, um patrimônio cultural que se alicerce em uma

economia de mercado e na liberdade da iniciativa privada, isso sem que se privilegie

demasiadamente o paternalismo estatal.

Segundo Buranello (2011, p. 26), há uma íntima relação de ação e reação

recíprocas entre Direito e Economia, de modo que se interagem dialeticamente, em um

processo complexo, constante e dinâmico.

O Brasil, na década de 60 do século passado, convivia com diversos problemas

de ordem social e econômica que foram base material para sua nova legislação agrária.

Zibetti e Querubini (2016, p. 7), apontam, dentre outros fatores, a problemática de

abastecimento ocasionada pela demanda de alimentos e matérias-primas, decorrentes do

crescimento da população urbana e da expansão industrial, em um contexto marcado

pela baixa produtividade da terra. Era necessário se proceder à uma nova legislação que

endereçasse estes problemas.

Não há como ocultar o fundo político de cunho internacional no contexto da

Guerra Fria, que também teve seu papel na criação do Estatuto da Terra. Com efeito, a

Convenção de Puntadel Este no Uruguai visava coibir o avanço das ideias comunistas

na América, para o que propôs programas de reforma agrária integral. Desta

Convenção, originou-se a Carta de Puntadel Este, de agosto de 1961, a qual segundo

Roberto Campos (apud Zibetti e Querubini, 2016, p. 9), "buscava um balanceamento

entre a preocupação de produtividade e o conceito de justiça social".

Tais preocupações, de um lado, produtividade, e do outro, justiça social, formam

um quadro onde o interesse público, o caráter publicístico do Direito Agrário se

expressa. Entretanto, deve ser lembrado que no Estatuto da Terra normas de caráter

privatista convivem ao lado de normas de Direito Público, o que leva o Direito Agrário

a estar no meio do caminho entre o Direito Público e o Direito Privado (TRENTINI,

2012, p. 2).

Segundo Paulo Torminn Borges (1995, p. 159), "para que a propriedade privada

se compatibilize com a justiça social, exige-se dela que cumpra a sua função social".

Nesta equação agrária, depreende-se que o denominador comum entre justiça social e a

produtividade é, de fato, a função social da propriedade, a qual é concretizada quando se

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produz bem (GUT >= 80% e GEE >= 100%), se respeita o meio ambiente, se busca o

bem-estar dos proprietários e trabalhadores, e, por fim, quando são observadas as

normas que regem as justas relações de trabalho.

No entendimento de Opitz (2012, p. 204), função social da propriedade trata-se

mais de uma questão econômica e jurídica, isto é, do Direito regrando as leis naturais da

Economia. Tomando por base o entendimento acima expresso, da função social da

propriedade como denominador comum da justiça social e produtividade, vemos que a

leitura econômica do Estatuto da Terra se reforça, o que rende frutos para uma visão

concreta e dinâmica deste diploma, como forma de atualizá-lo ao contexto econômico-

social contemporâneo.

2 A DISCIPLINA DOS CONTRATOS AGRÁRIOS TÍPICOS

Em seu art. 92, o Estatuto da Terra (BRASIL, 1964), prevê os contratos básicos

que regerão o uso ou a posse temporária da terra: arrendamento rural ou parceria

agrícola, pecuária e agro-industrial. In verbis:

Art. 92. A posse ou uso temporário da terra serão exercidos em virtude

de contrato expresso ou tácito, estabelecido entre o proprietário e os que nela exercem atividade agrícola ou pecuária, sob forma de

arrendamento rural, de parceria agrícola, pecuária, agro-industrial e

extrativa, nos termos desta Lei (BRASIL, 1964).

Segundo Antonino Moura Borges (2013, p. 32), o termo "posse" e "uso

temporário" tem como condão significar simplesmente que o objeto do contrato, seja

arrendamento, seja parceria, é a posse precária da gleba rural, ou seja, "o vinculum iuris

inerente ao contrato, que garante a utilização da mesma gleba rural para obter os frutos,

que são realmente o proveito ou a utilidade que evidentemente retiram da terra".

Em especial, no arrendamento, a posse é elemento integrante do contrato, pois

há, também, incidência, por força da similitude com a locação de coisa, do art. 566 do

Código Civil de 2002, o qual prescreve:

Art. 566. O locador é obrigado: I - a entregar ao locatário a coisa

alugada, com suas pertenças, em estado de servir ao uso a que se

destina, e a mantê-la nesse estado, pelo tempo do contrato, salvo

cláusula expressa em contrário (BRASIL, 2002).

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A definição de parceria rural está no Estatuto, em seu art. 96, § 1º, bem como no

Decreto nº 59.566/66, no art. 4º, falando, ambos, da cessão apenas do uso do imóvel

rural.

De especial importância para o presente trabalho, o arrendamento rural não vem

conceituado pelo Estatuto da Terra, que se limita a dar-lhe feição de contrato

fundamental na sistemática do uso ou posse temporária da terra, visto que, no texto da

lei, diversos direitos, como o de preferência na alienação do imóvel (art. 92, §§ 3º e 4º),

são conferidos ao arrendatário, e não, expressamente, ao parceiro-outorgado.

O Decreto nº 59.566, de 14 de novembro de 1966, regulando o Estatuto da Terra

no que tange aos contratos agrários, definiu arrendamento, em seu art. 3 º, prevendo que

este é o contrato pelo qual se cede o uso e gozo do imóvel rural, com o objetivo de nele

ser exercida atividade de exploração agrícola, pecuária, agro-industrial, extrativa ou

mista. Nota-se que seu objetivo é amplo, o que o aproxima da mentalidade do

agronegócio, como será abordado adiante.

A definição acima exarada fala em cessão do "uso e gozo" do imóvel rural, ao

passo que o Estatuto da Terra, no art. 92, fala em "posse ou uso". Daí surge o

questionamento, onde se situaria o conceito de posse no arrendamento?

Para Opitz (2012, p. 275), a resposta é no sentido de se compreender que o

Decreto, ao falar de gozo do imóvel, teria como intenção compreender também a figura

da posse. Nesse desiderato, o gozo deveria ser entendido como o efeito de gozar ou

desfrutar uma coisa, enquanto se tem a posse dela.

Como ressalta Torminn Borges (1995, p. 86), "não é grande o poder de

disposição das partes, a propósito de condições nos contratos agrários. Sua liberdade no

contratar é muito limitada".

Prova tal assertiva, o art. 2º do Decreto 59.566/66, que dispõe que todos os

contratos agrários reger-se-ão pelas normas do presente Regulamento, as quais serão de

obrigatória aplicação em todo o território nacional e irrenunciáveis os direitos e

vantagens nelas instituídos. Como sucedâneo lógico deste princípio publicístico,

continua o parágrafo único, do mesmo artigo, estabelecendo que qualquer estipulação

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contratual que contrarie as normas estabelecidas neste artigo, será nula de pleno direito

e de nenhum efeito.

Nota-se que a liberdade da autonomia da vontade sofre graves restrições a partir

do Regulamento.

Entretanto, segundo Opitz (2012, p. 35), nota-se, ainda, no Estatuto da Terra

grande dose de autonomia da vontade dos contratantes. Isso porque houve um fluxo

forte das doutrinas dos economistas manchesterianos, os quais foram os "gigantes" da

defesa da liberdade econômica e da não intervenção do Estado no livre jogo dos

interesses individuais.

Em substância, a regência do contrato de arrendamento rural é feita, a partir da

ótica do Estatuto da Terra, pelo art. 95, que estabelece diversos princípios como: prazos

vinculados à colheita (I); prazo mínimo de 3 anos (II); direito de preferência à

renovação (IV); retomada do imóvel (V); subarrendamento (VI); indenização por

benfeitorias (VIII); condições obrigatórias que constarão do contrato (XI); teto do

arrendamento (XII), e, por fim, preferência de acesso à terra por parte do arrendatário,

mesmo em face da Reforma Agrária (XIII).

O Decreto 59.566/66, na sua função precípua de dar fiel cumprimento à lei,

esmiuçando os princípios acima apontados, em seu capítulo II, Dos Contratos:

Essencias e Fundamentos, trata de regras mais específicas, que se dividem na seção I, a

qual aborda, em linhas gerais, tanto a parceria como o arrendamento, determinando as

cláusulas obrigatórias para ambos os contratos (art. 12), ao lado das cláusulas

ambientais e de proteção social e econômica, previstas no art. 13 e seus sete incisos. Do

mesmo modo, a seção II em questão prevê que será admitida, nos contratos agrários,

qualquer que seja seu valor e forma, a prova testemunhal (art. 14). O art. 15, por sua

vez, estabelece que a alienação do imóvel ou instituição de ônus reais não interrompe os

contratos agrários.

A seção II do capítulo II do Decreto nº 59.566/66 trata, detidamente, do

arrendamento e suas modalidades, reiterando vários dos princípios do art. 95 do

Estatuto da Terra. Em especial, esta seção trata do preço e do pagamento do

arrendamento (art. 19); do direito de preferência na renovação do contrato (art. 22); da

questão da partilha do imóvel arrendado por efeito de sucessão hereditária e o exercício

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do direito de preferência à renovação por parte do arrendatário (art. 23). Igualmente,

traz o Regulamento as hipóteses de extinção do arrendamento, no art. 26, dentre as

quais se situa, inciso VI, a força maior, que impossibilite a execução do contrato. Por

fim, ficam estabelecidas as causas de despejo no art. 32.

Conclui-se que a regência do arrendamento rural na legislação agrária é vasta e

específica, evidenciando diversas normas de ordem pública.

O caráter publicístico das normas cogentes deve ser encarado sob o viés da

proteção da função social da propriedade. Como já disposto linhas acima, na "equação

agrária", sob a justiça social e a produtividade está o denominador comum da função

social da propriedade.

Encerra-se este tópico, reiterando que a regência do contrato de arrendamento,

hoje, por se tratar de contrato agrário típico, está delineada pelo Estatuto da Terra e seu

Regulamento, não podendo se cogitar o afastamento destas normas, sob pena de ir

contra o fundo publicístico do Direito Agrário.

3 A DECISÃO NO RESP Nº 1.447.082/TO

De relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, o REsp nº 1.447.082/TO

consistiu em uma virada paradigmática na jurisprudência consolidada do STJ, sendo a

ementa do julgado a seguinte:

RECURSOS ESPECIAIS. CIVIL. DIREITO AGRÁRIO. LOCAÇÃO DE PASTAGEM.CARACTERIZAÇÃO COMO

ARRENDAMENTO RURAL. INVERSÃO DO JULGADO.

ÓBICEDAS SÚMULAS 5 E 7/STJ. ALIENAÇÃO DO IMÓVEL A TERCEIROS. DIREITO DEPREFERÊNCIA. APLICAÇÃO DO

ESTATUTO DA TERRA EM FAVOR DE EMPRESARURAL DE

GRANDE PORTE. DESCABIMENTO. LIMITAÇÃO PREVISTA

NO ART. 38DO DECRETO 59.566/66. HARMONIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA FUNÇÃO SOCIALDA PROPRIEDADE E DA

JUSTIÇA SOCIAL. SOBRELEVO DO PRINCÍPIO DAJUSTIÇA

SOCIAL NO MICROSSISTEMA NORMATIVO DO ESTATUTO DA TERRA.APLICABILIDADE DAS NORMAS PROTETIVAS

EXCLUSIVAMENTE AO HOMEM DOCAMPO.

INAPLICABILIDADE A GRANDES EMPRESAS RURAIS.

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INEXISTÊNCIA DEPACTO DE PREFERÊNCIA. DIREITO DE

PREFERÊNCIA INEXISTENTE2.

Passou-se a adotar uma posição de forte caráter social do Estatuto da Terra, o

que afastaria sua incidência quando as partes forem empresas de grande porte, com

capacidade técnica e econômica consolidadas. Salientou-se, no corpo do voto do

Relator, que o decreto que regulamentou o Estatuto da Terra (Decreto 59.566/66)

estabeleceu que os benefícios nele previstos seriam restritos àqueles que explorem

atividade rural direta e pessoalmente (como o típico homem do campo), fazendo uso

eficiente e correto da terra.

Essa restrição está presente no art. 38 do Decreto em questão, que estabelece

uma série de requisitos para que o arrendatário ou parceiro-outorgado goze dos

benefícios estabelecidos, em especial, no inciso II, que a exploração da terra seja "direta

e pessoal, nos termos do art. 8º deste Regulamento estendido o conceito ao parceiro-

outorgado".

A decisão teve como ponto central o entendimento do Estatuto da Terra se tratar

de microssistema normativo, mas acabou por não lograr grande êxito nessa linha pois,

na própria obra citada na fundamentação (Responsabilidade civil no Código do

Consumidor e a defesa do fornecedor. 3 ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010), defende-se uma

certa abertura dos microssistemas. Dentro dessa abertura estaria a previsão, clara e

inequívoca, da empresa rural, nos termos do art. 4º, VI do Estatuto da Terra, como

sendo um dos sujeitos de direito no famigerado microssistema do Estatuto. 2 No caso concreto, havia controvérsia acerca do exercício do direito de preferência por arrendatário que

é empresa rural de grande porte e adotou-se uma interpretação do direito de preferência em sintonia

com os princípios que estruturam o microssistema normativo do Estatuto da Terra, especialmente os

princípios da função social da propriedade e da justiça social. Assim, entendeu-se pela proeminência do

princípio da justiça social no microssistema normativo do Estatuto da Terra. Quanto à restrição do art.

38, considerou-se ser de plena eficácia o enunciado normativo do Decreto 59.566/66, que restringiu a

aplicabilidade das normas protetivas do Estatuto da Terra exclusivamente a quem explore a terra

pessoal e diretamente, como típico homem do campo. Assim, haveria inaplicabilidade das normas

protetivas do Estatuto da Terra à grande empresa rural. Cabe salientar que havia previsão expressa no

contrato de que o locatário/arrendatário desocuparia o imóvel no prazo de 30 dias em caso de alienação.

Em sendo assim, haveria prevalência do princípio da autonomia privada, concretizada em seu consectário lógico consistente na força obrigatória dos contratos ("pacta sunt servanda"). Por fim,

julgou-se provido o Recurso Especial, e, por consequência, improcedente o pedido de preferência.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RECURSO ESPECIAL nº 1.447.082/TO. Relator: Ministro Paulo

de Tarso Sanseverino. Brasília, DF, j. 10.05.2016. DJe 13.05.2016. Disponível em:

<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1511186&n

um_registro=201400780431&data=20160513&formato=PDF>. Acesso em: 09 mar. 2018.

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Por fim, o voto, que culminou no provimento do Recurso Especial, pela Terceira

Turma da Corte, por unanimidade, adotou a perspectiva de que vigoraria, nos casos de

empresas rurais, a autonomia da vontade entendida com base na tríplice dimensão:

liberdade contratual, a força obrigatória dos pactos e a relatividade dos contratos. A

aplicação de direitos positivados na legislação agrária estaria, assim, relegada a previsão

nos instrumentos particulares de contratação.

4 POR UMA INTERPRETAÇÃO ATUALIZADA DO ESTATUTO DA TERRA

Se hoje se alterou o polo dos arrendatários e parceiros-outorgados, também as

grandes extensões de terra sob domínio de determinada empresa agrária deixaram,

gradativamente, de ser improdutivas. Os números da economia do agronegócio provam

a pujança do setor que embala a balança comercial do País a partir de recordes sobre

recordes.

Segundo a doutrina civilista (GAGLIANO,FILHO, 2012, p. 109), a finalidade da

interpretação normativa é a de revelar o sentido da norma e fixar o seu alcance. Nesse

propósito, o intérprete pode se valer dos métodos literal, lógico, sistemático, histórico, e

finalístico ou teleológico.

Importante registrar o que dispõe o art. 5º da LINDB: “Na aplicação da lei, o juiz

atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum” (BRASIL, 2010).

Como bem ressalta Gagliano e Pamplona (2012, p. 110), "a interpretação

judicial, sempre com fundamento no já mencionado dispositivo (art. 5º da LINDB),

busca também atualizar o entendimento da lei, dando-lhe uma interpretação atual".

É dentro desta perspectiva atualizadora que propomos uma visão sobre o

Estatuto da Terra que reconheça a atuação de novos sujeitos de direito, como as

empresas do agronegócio, na contratação agrária, em especial, do arrendamento.

A relevância fundamental do princípio da função social da propriedade, a qual é

levada a extremos por estes sujeitos de direito, não pode sofrer o revés da violação dos

direitos garantidos na legislação agrarista com relação ao arrendamento, sob pena de

termos uma legislação que não se atualize, não compreendendo a importância de novas

realidades econômicas que surgem no desenrolar de nosso sistema econômico.

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5 O AGRONEGÓCIO COMO CATEGORIA JURÍDICO-ECONÔMICA

Neste ponto, visamos tratar da essência do agronegócio, propondo uma melhor

compreensão da amplitude de seu alcance.

Fala-se em agronegócio como categoria jurídica, uma vez que está presente à

exaustão na Doutrina (BURANELLO, 2013, p. 35), bem como está em vias de ser

positivado ordenamento próprio a partir do projeto do novo Código Comercial (PLS nº

487/2013).

Como categoria econômica é uma constatação da realidade sensível a formação

de complexas cadeias de produção, industrialização e distribuição de produtos

agropecuários.

Conforme Buranello (2013, p. 45), "a complexidade dos ordenamentos atuais

resulta na igual complexidade dos fatos, relações e problemas socioeconômicos que

vêm merecendo cuidadoso e abundante tratamento científico". O ramo do agronegócio é

expressão dessas novas complexidades.

No dizer de Fábio Ulhoa Coelho (apud BURANELLO, 2013, p. 15), o

agronegócio "atravessa" os três setores (primário, secundário e terciário), unindo

atividades agrícolas, industriais e de serviços. Fala-se no antes, dentro e depois da

porteira, como modo de expressar a amplitude do agronegócio.

A obra jurídica mais sistematizada sobre o assunto é o Manual do Direito do

Agronegócio de Renato Buranello (2013), obra a qual o presente artigo tem fundamento

especial. Do exame de tal obra, extraímos que o Direito do Agronegócio é um direito de

integração: visa tutelar as atividades coordenadas de natureza empresarial que se

desenvolvem ao longo da cadeia agroindustrial.

O agronegócio brasileiro é expressão perfeita do conceito de agribusiness,

cunhado, ainda em 1957, pelos professores da Universidade de Harvard, John Davis e

Ray Goldberg, que definem o agribusiness como:

[...] a soma das operações de produção e distribuição de suprimentos,

das operações de produção nas unidades agrícolas, do armazenamento,

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processamento e distribuição dos produtos agrícolas e itens produzidos a partir deles (DAVIS et GOLDBERG,1957, p. 156).

Tomando como ponto de partida o conceito americano, Buranello (2013, p. 35)

define, no contexto brasileiro, o agronegócio como sendo:

[...] o conjunto organizado de atividades econômicas que envolve todas as etapas compreendidas entre o fornecimento dos insumos para

a produção até a distribuição para consumo final de produtos,

subprodutos e resíduos de valor econômico relativos a alimentos, fibras naturais e bioenergia, também compreendidas as bolsas de

mercadorias e futuros e as formas próprias de financiamento.

Do conceito acima delineado, conclui-se ser o agronegócio uma categoria

jurídico-econômica completa. A tutela maior nesse futuro ramo do Direito é o da cadeia

agroindustrial, que constitui em conjunto com outros sistemas ou (CAI´s) o complexo

agroindustrial que é o agronegócio propriamente dito.

Dentro da ótica do agronegócio, situa-se a empresa agrária, instituto ordenador

da teoria geral do Direito Agrário contemporâneo (TRENTINI, 2012, p. 10). É aqui que

se encontra a tensão indicada na introdução deste artigo. É evidente que os ramos do

Direito Agrário e o futuro Direito do Agronegócio deverão se harmonizar no que tange

à regência de fenômenos que lhes são comuns, como é o caso da empresa agrária.

Nesse sentido, Zibetti e Querubini (2016, p. 22), entendem que na fase "dentro

da porteira", há incidência direta das normas de Direito Agrário quanto à regulação da

atividade agrária e imóvel agrário. Por sua vez, nos momentos "antes" e "depois da

porteira" preponderam as normas de Direito Agrário que regulam a Política Agrícola e a

chamada atividade agrária conexa, que abrange a comercialização, o beneficiamento, a

transformação e a alienação dos produtos agrários.

6. O CONTRATO DE ARRENDAMENTO RURAL E O AGRONEGÓCIO

Conforme acima exposto, o agronegócio é uma categoria jurídico-econômica

completa, abrangendo desde o financiamento, passando pela produção, industrialização,

até a entrega de produtos agropecuários ao consumidor final.

Tendo em vista o interesse econômico em se evitar a imobilização de recursos

financeiros na compra de imóveis rurais (BURANELLO et al., 2011, p. 774), a empresa

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do agronegócio, em geral integrada verticalmente, busca a celebração de contratos

agrários para uso e posse temporários da terra.

Apesar da predominância de contratos de parceria rural, sobretudo no âmbito do

setor sucroalcooleiro, ainda é relevante por parte de muitas empresas do agronegócio a

celebração de contratos de arrendamento rural.

Como dito linhas acima, o objetivo do contrato de arrendamento é amplo, o que

o aproxima da mentalidade própria do agronegócio. Isso porque este contrato agrário

não se presta somente à exploração agrícola, mas também pecuária, agroindustrial,

extrativa e mista, conforme o art. 3º do Regulamento do Estatuto da Terra (Decreto nº

59.566/66).

Dessa forma, nota-se uma grande aproximação do contrato de arrendamento para

com o agronegócio, de modo que a sua eleição por determinada empresa agrária como o

adequado contrato a ser celebrado, implica na regência atual do Estatuto da Terra,

situação que só se alterará a partir da promulgação do novo Código Comercial (PLS nº

487/2013), como a seguir será exposto.

7 A APROVAÇÃO DO NOVO CÓDIGO COMERCIAL (PLS Nº 487/2013):

TERMO FINAL DA REGÊNCIA DOS CONTRATOS DE ARRENDAMENTO

DO AGRONEGÓCIO PELO ESTATUTO DA TERRA

A posição central defendida neste artigo, segundo a qual, independentemente das

partes de determinado contrato agrário serem empresas do ramo do agronegócio,

aplicar-se-á à esta relação jurídica o Estatuto da Terra e seu Regulamento, é uma

situação transitória.

O PLS nº 487/2013 tem sua origem em anteprojeto de criação do novo Código

Comercial elaborada por uma Comissão de Juristas nomeada pelo Senado, cuja

presidência coube ao Ministro do STJ João Otávio de Noronha, e a relatoria-geral

aoprofessor Fábio Ulhoa Coelho.

O referido projeto foi apresentado pelo Senador Renan Calheiros em 22 de

novembro de 2013, e, segundo o professor Rogério Castro (2017, p. 7), é o grande

evento para a constituição definitiva do Direito do Agronegócio como novo sub-ramo

do Direito Comercial.

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O novo Código Comercial é um reclamo antigo visto o grande descompasso

entre a legislação mercantil vigente e o cenário econômico atual, lembrando-se que o

Código Comercial em vigor, Lei nº 556, data de 25 de junho de 1850, em que pese sua

Parte Primeira (Do Comércio em Geral) ter sido revogada pelo Código Civil de 2002.

Entretanto, continuam em vigência grande parte de suas disposições, em especial, o que

se refere ao comércio marítimo (Parte Segunda).

As matérias que o PLS nº 487/2013 se propõe a tratar são o Direito Societário, o

Direito Contratual Empresarial, o Direito Cambial, o Direito do Agronegócio, o Direito

Comercial Marítimo e o Direito Processual Empresarial, nos termos de seu art. 1º.

O art. 4º, parágrafo único do PLS, estabelece que "nenhum princípio, expresso

ou implícito, pode ser invocado para afastar a aplicação de qualquer disposição deste

Código ou da lei, ressalvada a hipótese de inconstitucionalidade". Tal dispositivo parece

refletir um enfraquecimento do caráter normativo dos princípios. De fato, ele faz a

ressalva quanto à inconstitucionalidade da lei, mas entendemos que a análise de

princípios deve se dar no mesmo momento e ambiente do exame da regra. Apesar disso,

devemos reconhecer que a regra traz mais segurança jurídica ao empresário do que o

princípio em geral.

A autonomia da vontade também é elevada a um alto grau no PLS nº 487/2013,

se tratando até mesmo de consistente restrição à intervenção judicial neste ramo do

Direito. Nesse contexto, há um certo risco dos art. 26 combinado com arts. 28 e 29 do

PLS serem declarados, futuramente, inconstitucionais, por força do princípio da

inafastabilidade (art. 5º, XXXV, da CRFB/88).

Os arts. 26 c/c 30 do PLS ressaltam o requisito subjetivo para incidência do

Direito do Agronegócio, que se dará apenas em relações interempresariais, com

empresas com capacidade econômica, composta de profissionais.

O art. 683 exclui, expressamente, como atividade do agronegócio a exploração

da terra ou de caráter extrativista em regime de economia familiar, por agricultor

familiar ou empreendedor familiar, nas quais não ocorra a comercialização da extração

da produção (CASTRO, 2017, p. 8). Entendimento esse que entendemos não ser o

melhor, tendo em vista que o fenômeno da empresarialidade agrária está presente, com

toda sua carga, também na agricultura familiar, o que leva, consequentemente, a se

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considerar como pertencente ao agronegócio tal agricultura, nos casos em que esta não

seja voltada, estritamente, à subsistência.

Há no PLS um livro específico para o Direito do Agronegócio, o Livro III, que

está dividido em três títulos que tratam, respectivamente, da atividade empresarial no

agronegócio, os contratos do agronegócio e os títulos de crédito do agronegócio.

De especial importância para este artigo, temos os arts. 689 a 709, que abordarão

os contratos do agronegócio, que se dividem em contratos agrários (arrendamento rural

e a parceria agrícola, pecuária, agroindustrial ou extrativista), contrato de integração

agroindustrial e contrato de depósito de produtos agropecuários.

Da leitura dos artigos 689 a 692 do PLS, referentes aos Contratos Agrários,

depreende-se que, no agronegócio, o contrato de arrendamento e de parceria passarão a

não ser mais regidos pelo Estatuto da Terra. Isso quando as partes do contrato

envolverem pessoas físicas ou jurídicas que fazem parte da cadeia do agronegócio, ou

seja, que tenham condição econômica e técnica suficiente para negociar e assumir

obrigações relativas às atividades que exercem (CASTRO, 2017, p. 10).

Assim, o Estatuto da Terra continuará a reger os contratos agrários quando as

partes não comporem a cadeia do agronegócio, ou seja, quando a exploração da terra se

der em regime de economia familiar, cujo objetivo não seja voltado, em sua essência,

para a comercialização da produção.

Fica, entretanto, ressalvada posição na Doutrina (ZIBETTI,QUERUBINI, 2016,

p. 21), segundo a qual na agricultura familiar também há o agronegócio, pois havendo

"dentro da porteira", há agronegócio. Entendimento esse que, expressamente, entra em

conflito com o PLS nº 487/2013.

Diante do exposto, a regência dos contratos agrários do agronegócio pelo

Estatuto da Terra tem termo final, que será quando da aprovação integral do texto do

PLS nº 487/2013, que promulgará o novo Código Comercial, regulando, de maneira

própria, os contratos agrários relacionados à cadeia do agronegócio.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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O presente trabalho sustentou uma perspectiva econômica forte do Estatuto da

Terra, a par de seu caráter social muito acentuado por certa doutrina (ZIBETTI,

QUERUBINI, 2016, p. 15), do que é prova, sobretudo, a definição de Política Agrícola

e a inclusão, dentre os objetivos da Reforma Agrária "o aumento da produtividade".

Defendeu-se que a regência atual do contrato de arrendamento rural,

independentemente se no âmbito do agronegócio ou não, é feita pelo Estatuto da Terra,

o que demanda uma interpretação atualizada deste diploma.

O agronegócio foi trabalhado, conceitualmente, como uma categoria jurídico-

econômica em especial, que expressa uma complexidade perante a qual o Direito é

instado a adotar tratamento compatível à sua importância social e econômica.

Aproximou-se o contrato de arrendamento rural do agronegócio, visto a

amplitude que compreende este contrato e a mentalidade própria do agronegócio.

Por fim, tomando como base a leitura do professor Rogério Alessandre de

Oliveira Castro (2017), demonstrou-se que a posição central deste artigo é transitória,

pois a regência dos contratos agrários do agronegócio pelo Estatuto da Terra tem termo

final: a aprovação do novo Código Comercial (PLS nº 487/2013). Boas ou más notícias

para o produtor rural, só o tempo dirá.

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