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5 A reconfiguração do Rio de Janeiro (uma “cidade global”) através dos caminhos de “casa”: considerações, abordagens e representações sobre o “direito à moradia”. Camilla Lobino 1 Helena Galiza 2 Melissa Fernandéz Arrigoitia 3 “Porque somos favelados? A gente não faz parte da cidade? Nós não somos cidadãos como qualquer outro cidadão do Leblon ou de Ipanema? […] A questão é a seguinte, eles pensam nessas obras todas, pensam nessas modificações todas, mas em nenhum projeto deles eles começam pelo que interessa pra gente”. A fala é parte da intervenção de Roberto Marinho, morador do Morro da Providência, um dos convidados da Sessão Livre intitulada “A reconfiguração o Rio de Janeiro (uma ‘cidade global’) através dos ca- minhos de ‘casa’: considerações, abordagens e representações sobre o ‘direito à moradia’”, realizada no dia 28 de abril 2014, primeiro dia da II Conferência Internacional Megaeventos a Cidades, no Rio de Janeiro 4 . A atividade teve como proposta promover um debate polifônico entre os diversos atores envolvidos nos conflitos fundiários, no contexto dos me- gaeventos urbanos, nos quais o “direito à moradia” possui centralidade. O crescente foco acadêmico sobre as remoções compulsórias – práticas evidenciadas pela administração municipal do Rio de Janeiro nos últimos anos – é percebido através da lente de movimentos sociais contemporâneos envolvidos nestas disputas. Estas perspectivas, en- tretanto, permanecem potencialmente circunscritas pelos limites das abordagens que acionam o “direito à moradia”. As “remoções”, categoria 1 Socióloga, doutoranda e pesquisadora do ETTERN/IPPUR/UFRJ. 2 Arquiteta e urbanista, doutora pelo PROURB/UFRJ e pesquisadora ETTERN/IPPUR/UFRJ. 3 Socióloga e pesquisadora da LSE London/ London School of Economics and Political Science. 4 O material utilizado no presente texto é transcrição dos registros de áudio da referida atividade, realizado pelo documentarista Carlos R. S. Moreira (Beto).

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A reconfiguração do Rio de Janeiro (uma “cidade global”) através dos caminhos de “casa”: considerações, abordagens e representações sobre o “direito à moradia”.

Camilla Lobino1 Helena Galiza2 Melissa Fernandéz Arrigoitia3

“Porque somos favelados? A gente não faz parte da cidade? Nós não somos cidadãos como qualquer outro cidadão do Leblon ou de Ipanema? […] A questão é a seguinte, eles pensam nessas obras todas, pensam nessas modificações todas, mas em nenhum projeto deles eles começam pelo que interessa pra gente”.

A fala é parte da intervenção de Roberto Marinho, morador do Morro da Providência, um dos convidados da Sessão Livre intitulada “A reconfiguração o Rio de Janeiro (uma ‘cidade global’) através dos ca-minhos de ‘casa’: considerações, abordagens e representações sobre o ‘direito à moradia’”, realizada no dia 28 de abril 2014, primeiro dia da II Conferência Internacional Megaeventos a Cidades, no Rio de Janeiro4. A atividade teve como proposta promover um debate polifônico entre os diversos atores envolvidos nos conflitos fundiários, no contexto dos me-gaeventos urbanos, nos quais o “direito à moradia” possui centralidade.

O crescente foco acadêmico sobre as remoções compulsórias – práticas evidenciadas pela administração municipal do Rio de Janeiro nos últimos anos – é percebido através da lente de movimentos sociais contemporâneos envolvidos nestas disputas. Estas perspectivas, en-tretanto, permanecem potencialmente circunscritas pelos limites das abordagens que acionam o “direito à moradia”. As “remoções”, categoria

1 Socióloga, doutoranda e pesquisadora do ETTERN/IPPUR/UFRJ.2 Arquiteta e urbanista, doutora pelo PROURB/UFRJ e pesquisadora ETTERN/IPPUR/UFRJ.3 Socióloga e pesquisadora da LSE London/ London School of Economics and Political Science.4 O material utilizado no presente texto é transcrição dos registros de áudio da referida atividade, realizado pelo documentarista Carlos R. S. Moreira (Beto).

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nativa elaborada pelos moradores, são compreendidas como violações aos direitos humanos, por vezes, conceituadas de acordo com os usos e sentidos pré-determinados pelo direito internacional. O mesmo acon-tece quando os processos de remoções e deslocamentos involuntários são produzidos pelos megaeventos, ou ainda, pelos projetos da “cidade mercadoria” (VAINER, 2007)5 e trazidos à arena pública pelos movimentos sociais em suas ações coletivas6.

Por esta razão, foram convidados moradores ameaçados e remo-vidos, profissionais do campo da produção cultural, acadêmicos, jorna-listas que abordam as questões relacionadas ao “direito à moradia”, bem como os processos de remoção compulsória no Rio de Janeiro. A proposta era, a partir de uma variedade de perspectivas, disciplinas e ângulos de representação, criar um diálogo sobre os desafios e oportunidades que se colocavam diante de suas práticas, campos ou contexto de investigação. Os participantes foram: Luiz Antônio Pilar (cineasta e diretor de audiovi-sual), Alberto Goyena (antropólogo), Helena Galiza (arquiteta e urbanista), Jane Oliveira (moradora da Vila Autódromo), Inalva Brito (moradora da Vila Autódromo), Roberto Marinho (morador do Morro da Providência), Rosemary dos Santos (moradora da ocupação da Regente Feijó e presidente da Associação Moradia Digna nas Áreas Centrais do Rio de Janeiro) e Regina Bienenstein (professora titular da Escola de Arquitetura de Urbanismo, da Universidade Federal Fluminense).

A Sessão Livre elegeu como categorias centrais “moradia” e “ci-dade” com o objetivo de alargar a dimensão reflexiva buscando criticar certas compreensões fixas, na tentativa de desnaturalizar os sentidos e usos. Tais definições são de extrema relevância na elaboração de ações coletivas dos movimentos sociais urbanos - sem contar sua centrali-dade para a construção da democracia no Brasil - podem, ao mesmo tempo, limitar os reinos das atividades dos pesquisadores, profissionais no campo da habitação, ativistas e artistas. Isso acontece quando se desconsidera, por exemplo, enquadramentos que são inter-relaciona-das à experiência vivida e cotidiana da moradia como o “trabalho” ou a “cultura”.

Os convidados da atividade discutiram o uso de ferramentas, suas experiências empíricas, suas produções textuais e visuais que auxiliaram na reflexão dos processos de “deslocamento e de formação do sujeito” (DOSHI, 2013)7 no contexto dos megaeventos relacionado às políticas de desenvolvimento urbano. Isso ajudou no exercício de mover-se para além das construções habitacionais ou do “direito à moradia”, e possibilitou a construção de um diálogo de natureza construtivista e relacional sobre os impactos dinâmicos e experiências de remoção, despejo, deslocamento ou perda de casa.

5 VAINER, C. Pátria, empresa e mercadoria. A cidade do pensamento único. Petrópolis. Vozes, 2007.6 Principalmente nos últimos anos em determinadas cidades brasileiras face aos impactos das obras realizadas para a Copa do Mundo da Fifa (2014) e os Jogos Olímpicos (2016).7 DOSHI S, 2013, The Politics of the Evicted: Redevelopment, Subjectivity, and Difference in Mumbai’s Slum Frontier. Antipode.

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A sessão livre associou-se, em parte, a um desafio histórico das ciências sociais que transcende a referida temática de pesquisa. Para nós que lidamos diariamente com os dilemas (e os limites) dos percursos metodológicos, enfrentar o “caminho de casa” significou considerar outras vias analíticas, relativizando as que nos são conhecidas e, por sua vez, nos forçou abrir mão do rigor dos enquadramentos definidos pelas problemáticas das pesquisas, cujos reflexos impactam na dimen-são empírica e nos resultados. Uma das intenções da atividade era a transcendência da esfera teórica e empírica – definidas pelos limites de uma problemática pré-estabelecida – para incluir a dimensão da prática política e do ativismo social apropriada entre os interlocutores e os pesquisadores através de uma perspectiva “horizontal”.

O “caminho de casa”, tanto para os analistas sociais quanto para os interlocutores envolvidos nos conflitos fundiários, é experimentado, simultaneamente, em vários níveis: subjetivo e emocional, econômico e político, material, simbólico e estético8. Os desdobramentos destes conflitos, por sua vez, acionam escalas geográficas no âmbito pessoal e doméstico, do edifício, da casa, da rua, do bairro e da cidade, ampliando o número de atores, discursos e práticas envolvidas, bem como seus sensos de justiça. Estas dimensões interagem dinamicamente entre si e necessitam de formas de investigação, análise e representação que podem permitir a uma (re)crítica e (re)criação desta multiplicidade. Em decorrência, exige também relativizar a confiança nas noções fixas do “direito à moradia” ou “direito à cidade”.

Serão expostos, a seguir, alguns fragmentos das narrativas dos convidados contemplando a diversidade das exposições que o debate suscitou.

LUIZ ANTONIO PILAR é cineasta e diretor de audiovisual. Dirigiu o filme “Remoção” juntamente com Anderson Quack, lançado em 2013. Pilar foi morador de um conjunto habitacional em Padre Miguel onde sua família foi viver por opção própria. O filme registra o depoimento de pessoas removidas compulsoriamente para os conjuntos habitacio-nais pelo poder público nos anos de1960 e 1970 no Rio de Janeiro, em pleno período militar.

“[...]Enquanto minha família comprava um apartamento num conjunto habitacional, o que a gente considerou a época, um grande avanço, uma grande conquista e foi de fato, nós tivemos um upgrade. O Quack, que é meu companheiro na direção do filme, foi removido de uma favela na Zona Sul e vai para o conjunto habitacional na Cidade de Deus e teve uma sensação inversa, a família dele, uma sensação de perda. A nossa ideia primeira, era

8 Não consideraremos para fins desse trabalho as distinções, ou as ausências delas, entre as di-mensões da experiência humana acima citadas. Mais do que as dualidades e ambivalências que podem indicar - e refletir - diferenças de ordem epistemológicas no campo das ciências sociais, interessa mencionar a multiplicidade de experiência da moradia e da luta por ela.

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fazer um filme onde nós pudéssemos contar de como roubávamos cabrito para fazer churrasco, de como pescá-vamos rã depois da chuva para fazer farofa… Num primeiro momento, a nossa brincadeira de contar como a gente matava o cabrito do vizinho, a gente percebe de imediato: ‘é pouco’. A gente vai ter que ir um pouquinho mais além. Quando você faz a pergunta aqui, como você define aqui, se é moradia ou se é casa, eu acho que vou definir o meu filme como casa. O nosso filme tem essas três visões, a visão de quem foi removido, a visão de quem removeu e hoje a distância de quem estudou isso. E o que eu pude perceber é que esta (re)emoção estava muito fortemente calada [...]”.

“[...]Em 1969 tem o grande incêndio da praia do Pinto9, que tem motivação política e dizem que é um incêndio criminoso, já sobre a proteção do Estado de repressão militar. O que a gente não percebe é que essa população removida então, vai viver mais 20 anos de isolamento político, mais 20 anos de exílio, 20 anos sem a presença do Estado. Então é preciso compreender esse sentimen-to. Esse sentimento vai demorar a se resgatar. E eu faço questão de colocar isso no filme. Tem historinha de amor, como eu conheci, isso é para chamar perto o coração das pessoas. Vi homens chorando de saudade da namorada que ficou. Da namorada que ele perdeu porque na mudança se desencontrou. Isso é um depoimento, acho que também não entra no filme. Tem um que ele vai para Padre Miguel e acho que ela vai para Paciência, logo depois, que é um conjunto habitacional que tem lá também, longe pra caramba, chamado Ucrânia [...]”.

“[...]Tem um depoimento da Sandra10, quando eu pergunto pra ela: ‘vocês separaram as pessoas tão radicalmente?’. E ela falou: ‘Não, absolutamente… Eu fiz questão de manter barraco, ela fala assim mesmo, onde tinha mãe, pai, filha com marido, sogra, genro, eu fiz questão de mantê-los uma casa do lado da outra. Era família. Mas recebi inúmeros pedidos, inúmeros pedidos, de pessoas que iam para lá e falavam assim: pelo amor de deus, do lado da minha sogra

9 Grande favela que existia no bairro do Leblon, uma das áreas atualmente mais nobres do Rio de Janeiro. Maiores informações ver Valladares (1978). VALLADARES, L.P. Passa-se uma casa: analise do Programa de Remoções de Favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.10 Sandra Cavalcanti é uma das responsáveis pelas políticas de remoções de favelas nos anos de 1960, no governo de Carlos Lacerda.

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não, não deixa isso aí. A partir desse pedido eu começo a avaliar. Talvez seja melhor separá-los’. Fui para campo e perguntei isso: ‘Não, pelo amor de deus, isso não é ver-dade”. E tem um depoimento no filme, de um senhor que diz: “Minha tia que me criou, morava num barraco do lado do meu, não tinha poder aquisitivo, meu pai e minha mãe que trabalhava e ela foi sozinha para outro conjunto[...]”.

“[...] Quando a gente chega nos conjuntos habitacionais, o primeiro movimento que se faz é tentar se reagrupar, de novo, levando em consideração suas origens. Então tem, e isso eu presenciei, uma troca muito constante de unidades de moradia. Lá em casa nós participamos disso. Nosso apartamento era no 3o andar. E no 305 morava uma moça cuja mãe dela ia ficar no 107, para onde nós fomos, eles quiseram ficar do lado, aí nós trocamos. Eu não sei se se dava de forma legal, eu sei que muita gente, depois que chegava, fazia um movimento interno, de se ajeitan-do como dava. Eu quero voltar a morar perto do fulano, sicrano. E esse foi um primeiro movimento. Aí o conjunto habitacional, a partir desse conceito vai se organizar, num primeiro momento com blocos carnavalescos, criados, e isso vai ser muito comum: O canto da Gávea [...]”.

“[...] Fomos distribuídos aleatoriamente, de novo, por uma segunda vez, num processo aprendido lá, no movimento de escravidão portuguesa, quando o português, muito sabidamente, no Brasil, joga o escravo negro de várias partes de África, para que convivam em determinado local, muito longe, fora do centro, até ele… A gente não costuma entender que a África é um continente inteiro. E aí, aqui era colocado na mesma senzala, um cara que defendia religião, fronteiras, agricultura, pensamento, tudo diferente. E se vira aí embaixo do açoite do senhor. Até que conseguissem falar a mesma linguagem, aprender a mesma linguagem, perceber que o inimigo estava fora, isso denotava tempo e já tinha uma dominação expres-sa. Aí tivemos que aprender a refazer esse processo de vizinhança[...]”.

“[...] O segundo aspecto da invisibilidade é essa questão política, o sentimento de como essas pessoas se senti-ram exiladas. Mesmo. Ao ponto delas falarem: ‘Me sinto em outro país. É como se 10 horas da noite, batesse um sino e eu estivesse em outro lugar’. Gente, era o seguinte:

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quando nós chegamos de mudança, em 1972, no conjunto habitacional, eu com 11 para 12 anos, meu irmão do meio com 9 para 10 e o caçula com 2 anos de idade, dava 7 horas da noite, nós tínhamos que nos recolher para casa. Por que era ermo, era tudo muito grande e vazio, estavam chegando, chegavam aos montes, mudanças em cima de caminhões, três, quatro, cinco mudanças em cima do ca-minhão, era um tumulto muito grande, tumulto mesmo, gritaria, não sei o que e vinha uma ordem, que a gente não sabia de onde era que 7 horas a gente tinha que parar tudo. Obedientes que éramos, eu e meus dois irmãos, 7 horas a gente entrava para casa sem entender muito bem o que aquilo significava. Hoje entendo que era um toque de recolher, sem que nós soubéssemos quem é que dava esse toque de recolher e porque esse toque de recolher era dado. Parecia o ‘Terror e Miséria no III Reich’, do Brecht. A ordem foi dada e ninguém sabe quando vem, porque que vem, o que é. Isso eu tenho muito nítido, a gente podia estar fazendo o que fosse, dava 7 horas da noite, a gente se recolhia e vinha pra casa. Minha mãe falava: ‘Vem!, ou o filho do fulano vem, o filho do fulano vai, você também tem que vir’. Ninguém ficava. Foram alguns anos para gente começar a explorar aquele espaço à noite, de uma maneira noturna. Que aí, já com 14 anos, em 74, isso eu me lembro muito bem, já com 14 anos, Copa do Mundo da Argentina, nós tínhamos, eu tinha que sair de casa já com um documento de identificação, que era minha caderneta de escola. E carimbado: compareceu. Porque foi o momento em que a polícia começa a entrar nesse conjunto habitacional e começa a prender jovens que não tinham documento, que não tinham identidade: cambu-rão! Essas duas coisas ficaram na minha cabeça: era esse camburão e carrocinha de cachorro. Era um desespero! A gente quando via a carrocinha de cachorro, a gente saía para catar toda a nossa cachorrada e pinto, porque senão levavam [...]”.

“[...]Esses conjuntos habitacionais para onde foram essas remoções vão ser o grande exemplo do que esse Estado exerceu de política do abandono. Esses meninos come-çam não só a se organizar mas a consumir muita droga. E aí um procedimento fica tácito lá. Eu acabei de citar o Castor de Andrade, que organizava, que era o grande mentor dessas comunidades é o Jogo do Bicho. Eram os grandes organizadores, os grandes mantenedores da or-dem. Eles vão fazer uma coisa que era o seguinte: vocês garotos não se metam aqui com a gente e a gente não se

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mete com vocês. E isso vai, além de outras coisas, isso aí é o Remoção 3 que a gente tem que fazer, esse dá um filme.. O menino começa a criar a sua gangue, exatamente com aquele seu vizinho que já é filho do amigo do pai que veio de lá. Então começa a ficar muito claro os limites dentro do conjunto. Então quando eu podia fazer meu escambo, eu moro aqui na M [Rua], mas vou jogar lá na P, num de-terminado momento eu podia fazer isso, num momento que é esse pra frente, eu já não posso mais. Quem é da P, não passa mais pra rua M e a não vai mais para a rua I. E Padre Miguel vai ficar muito famoso por causa de uma rua ali que concentra, que vai concentrar a maior população vinda da favela aqui da Gávea, do Parque Proletariado da Gávea, uma boa parte da favela da Praia do Pinto. Num determinado momento essa rua era impossível de você entrar, impossível de você falar: ‘Eu sou da rua M’, eu mo-rava na rua M. As ruas não tiveram nome por muito tempo, que era outra falta de identidade também, e até hoje são chamadas assim, I, J, M. E essa facção, essa guerra vai se instaurar lá nesse momento e a gente vai poder perceber que essa divisão tem origem exatamente no momento em que chegam, que as famílias se reagrupam. Dentro do conjunto habitacional já tinha o racha. A gente nunca teve uma unidade de traficante. E aí começa um processo de violência, mas uma violência como poucas vezes é dita. E tinham falas que eram muito significativas: ‘Você lembra da Júlia?’, ‘Lembro’. ‘O filho dela, matou o filho da Helena’. ‘O filho da dona Júlia matou o filho da dona Helena?’ Eram pessoas que nós conhecíamos e a identidade era essa. Esse aspecto político e de violência, esse não encontrei nenhum tipo de anotação legal. Quando a gente bateu, quando eu bati algumas vezes nas delegacias locais, na 33ª. que é em Realengo e na 34ª. que é em Bangu, os registros são todos de “vadiagem”, de “vagabundagem”. E aí eu vi muito a expressão: ‘Preso por vadiagem na rua X’. Nesse segundo momento: ‘Vagabundo preso na rua Y’[...]”.

“[...] O terceiro caminho, esse era muito divertido, no filme eu penso em fazer, contando isso, era um carro que entrava na comunidade com o cara gritando: sacolé, pinti-nho e pipa! Sacolé, pintinho e pipa! Traga ferro de passar, panela amassada, qualquer coisa e troque por um sacolé, pintinho e pipa! Ou seja, a gente levava qualquer coisa, era o dia que a gente apanhava. O meu irmão do meio, eu lembro que era muito levado, chegou a levar um ferro de passar da minha mãe, entregou para o cara e conseguiu um pintinho. A gente dava e recebia um pintinho. Esses

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três carros, quando entravam na comunidade, faziam com que a gente corresse muito, muito. Correr da polícia, correr para guardar o cachorro, ou o pintinho que tinha recebido pra trocar por um picolé, pintinho e pipa! Era uma festa. E hoje eu lembro em retrospectiva, eu posso perceber que era um braço da repressão militar, atuando já dentro dessa comunidade trabalhadora, mas com muitos homens sem emprego, mas que não era vadiagem. Eu hoje entendo que não era vadiagem, era só falta de emprego de quem saiu de um centro, e foi para 46, 52, 56 quilômetros do marco zero da cidade do Rio de Janeiro. A Vila Kennedy fica a 52 quilômetros do centro do Rio de Janeiro, com gente hoje, da minha idade, com 53 anos de idade, que chegou lá com 8 anos e que nunca mais retornou ao centro da cidade. Esse cara está completamente exilado ali [...]”.

“[...]Então a remoção e a emoção dessas pessoas, a emoção dessas pessoas é uma coisa que vai estar gerada daí pra frente por esse processo de remoção, é uma coisa que vai estar ligada. A gente no processo de feitura de um filme, leva tempo, não sei porque eu abri mão disso. Eu tenho até umas tipografias bonitas, no primeiro momento você lê, é Emoção e aí depois vem Remoção. Aprendi hoje que acabei fazendo um estudo geográfico, acabei entrando numa seara que eu não conhecia, intelectualmente falando nunca foi meu. Hoje eu falo que fiz um filme geografica-mente afetivo, é uma geografia afetiva daquilo que vivi, daquilo que presenciei e daquilo que pude fazer com que outros falassem. Porque vai repetir, de forma muito similar, todo esse processo de remoção das décadas de 50 e 60, guardadas as pequenas diferenças. Hoje você tem, o que é pior né, a presença da milícia, já redistribuindo essas unidades de moradia dentro desses conjuntos recém entregues a população [...]”.

ALBERTO GOYENA é antropólogo e pesquisador vinculado ao Laboratório de Antropologia da Arquitetura e Espaços (LAARES/PPGSA/IFCS/UFRJ) e atua em pesquisas na área de antropologia cultural, espaços e patrimônio em contextos urbanos.

“[...] Mergulhar nessa categoria, nesse conceito, nessa palavra, demolição, e ir tentando então pensar nela fora dos contextos os quais estamos mais habituados. Dentro desses estudos de antropologia da arquitetura, tem o estu-do de uma pesquisadora chamada Suzane Blair, dizendo que entre os povos Bakamaliba, que são povos da África Subsaariana, dizendo que olhar para demolição lá é bem

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interessante, porque você começa a entender muita coisa sobre a casa, muita coisa da relação das pessoas com a sua casa, com o lugar onde habitam. Então por exemplo, para eles as casas não são apenas os lugares que nos protegem das intempéries, do sol, de coisas desse tipo, mas são pessoas, são pessoas morais, é muito mais do que apenas essa matéria, essa estrutura física, ao ponto em que as construções nessa região, você percebe que cada cômodo tem o nome de uma parte do corpo, você tem o joelho, o coração, a cabeça. E não quarto, cozinha. Então essas casas, assim como elas se aproximam de uma pessoa, elas têm também o momento de morte, existem cemitérios para as casas, existem então rituais e se elaboram rituais de despedida, de adeus, de morte para essa casa. Então quer dizer, de forma alguma essa demolição é uma questão simples é altamente ritualizada, altamente regrada. As soleiras das casas, que é esse pedaço por onde você entra, são também as lápides funerárias, então a pessoa morre, e esse pedaço pelo qual ele sempre entrou e saiu é que vai ter o nome dele nesse cemitério, o cemitério de casas. O próprio termo, casa, é interessante problematizar. Como ele é entendido em outros lugares, o que significa. Nesse contexto, casa é sinônimo de família. Você usa casa e fa-mília do mesmo jeito. E aí, ela conta que quando acontece então, essas casas têm vida, tem uma longevidade, em algum momento elas precisam morrer, então acontece esse processo de demolição, pedaços dessas casas vão para cemitérios de casas e outros pedaços são apropriados pelas gerações seguintes. Isso quer dizer que você reconhece, numa série de casas, traços que são de família, com quem diz, eu herdei o nariz, a orelha de meus antepassados. Essas casas também estão repletas disso, elas pegam um pedaço, você reconhece uma família, reconhece alguma coisa acontecendo, que continua.

Vou dar mais um exemplo, porque talvez isso nos ajude a pensar na nossa relação, no nosso contexto, como a gente habita. Na Indonésia, esse contexto foi muito es-tudado por antropólogos interessados em arquitetura, para ver como o microcosmo, ou seja, esse lugar onde as pessoas moram, se desdobra de um macrocosmo, ou seja, se desdobra de uma forma de estar no mundo. Entendo, existem uma série de mitos e histórias que nos contam a ficção da existência, de alguma maneira, e tudo isto está reproduzido dentro da casa. Então as pessoas nascem, a placenta é enterrada embaixo da casa, toda pessoa que morre se torna um espírito a fortalecer as estruturas

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dessa casa. Então se aquele encaixe daquelas vigas é forte o suficiente é porque ali está meu avô. Isso não é para ser entendido como uma metáfora, isso é levado a sério, é assim que essas relações continuam. Então foi mui-to terrível por exemplo, a chegada dos Holandeses na Indonésia no momento em que se falava, coisas que se repetem, da higiene, da necessidade da limpeza, não é possível, se esse mundo está dividido em três pedaços, que separam a casa também, onde você cozinha e dentro da casa tem a questão da fumaça, onde você se joga o lixo, os resíduos, tudo isso está ancorado num sistema, então os holandeses chegam lá e, esse sistema não pode continuar assim, casas que eram sobre palafitas e mudam esse sistema todo de casas, e como isso é agressivo porque não só desmonta a estrutura física, não só propõe uma novidade em termos de habitação mas reorganiza toda sua forma de compreender seu lugar no espaço, de uma forma muito dura. Depois é claro que essas coisas não se cortam simplesmente, depois elas vão encontrando novas formas de continuar, novos encaixes.

Entre os Bororo, por exemplo, aqui no Mato Grosso, toda morte de um chefe de família, se faz acompanhar da queima de sua casa. Isso é muito importante, porque ela não está exatamente sendo destruída, demolida, mas queimar essa casa é permitir que ela passe junto com ele para algum outro lugar, para que ela tenha com ele uma nova vida.

Então pronto, abrindo esse leque: Como se destroem as coisas? Como se dá o fim da casa em diferentes contextos? Como isso pode ser pensado? E aí eu fui seguindo algumas empresas de demolição, talvez esses sejam personagens interessantes também para trazer para o debate. O que os engenheiros e trabalhadores da indústria da demo-lição poderiam ter a dizer sobre as remoções ou sobre essa ideia de destruição, de perda de patrimônio. O que vai ficando, o que vai aparecendo um pouco é uma ideia que desde os anos 50 na antropologia tem sido bastante usado, é que a gente não constrói para depois habitar, o que a gente faz é habitar continuamente, o que torna essa ideia, que é uma ideia Hegeliana, o que torna essa ideia de que somos é quando habitamos, é porque habitamos que somos, estamos constantemente habitando é isso que nos permite estar. Então, diz ele, é importante separar essa ideia de projeto e execução, é importante separar no

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sentido de problematizar. Quais são essas arquiteturas que de fato são concebidas por arquitetos, que tem uma planta, que depois é executado, que terrina e tem de fato um momento de inauguração e tem uma entrega, senão um processo constante de habitar contínuo, de apropriar e transformar isso continuamente. O que nos faz pensar na força que o arquiteto tem ao querer projetar, ao querer impor alguma coisa. Por outro lado, essa ideia de apego aos lugares e as cosias. Esse mundo material que é parte de nós, nos integra e dá um sentido. Essas coisas que con-tam, como você estava dizendo, a nossa biografia não são só objetos como de alguma forma a modernidade quer. Não são objetos neutros, as memórias que emanam deles talvez não estejam apenas na pessoa, não sejam coisas subjetivas, mas estejam na relação com essas coisas, na importância de perceber que existe uma biografia aí, e que essas casas e esses objetos nos ensinam a estar, é graças a eles, é coloca-los na frente de alguma forma, nos ensinam a estar, nos ensinam a usa-los.

Então algumas críticas tem apontado isso, como a mo-dernidade há algum tempo vem propondo uma espécie de códigos neutros, um espaço onde você aprende que a gente faz uma tábula rasa, impõe projetos onde a gente joga sobre isso, pronto, aí você relega isso à essa ideia de liberalismo de mercado, onde tem essa lógica especulativa, o mercado vê então essas relações de troca, produz uma cidade problemática nesse sentido.

O que esses engenheiros e trabalhadores de demolição dizem, me parece, é um pouco a ideia de que é muito problemático esse momento, é muito delicado esse mo-mento de tocar na casa de alguém e destruir isso. Não por acaso isso gera uma série de revisões, parece trazer à tona a importância da forma como as coisas são demolidas, o modo como você processa isso. Uma coisa curiosa de perceber, a indústria da demolição geralmente você faz uma licitação, as vezes o governo tem secretaria, mas você faz uma licitação, precisamos demolir esse prédio, então a empresa que vai cobrar menos é a que ganha, mas geralmente nesse universo não, é a empresa que dá mais muitas vezes, como assim, você paga para demolir? Sim, porque você se torna proprietário desses escombros, isso tem muito valor, é uma matéria prima de alguma forma. O preço, você pode acompanhar a evolução das constru-ções, a variação do preço dos tijolos, a possibilidade de

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reaproveitar tudo isso, os lugares para onde as coisas vão, nada se perde, simplesmente desaparece. Tudo isso é rea-proveitado de alguma maneira. Essas empresas também participam e especulam em cima disso, também existe um problema nesse sentido. Muitas das empresas de de-molição também, todas elas têm grandes galpões, são de alguma forma colecionadores de fragmentos e pedaços da cidade, enquanto que criticam essa ideia do novo. É interessante ver como em congressos e encontros entre engenheiros de demolição, sempre existe uma carta que é mandada para a construção civil, onde eles dizem de alguma maneira, ‘eu que destruo e que quebro sei tam-bém das resistências dos materiais’. É possível contar histórias sobre conjuntos habitacionais, sobre casas ou grandes prédios, a partir do que você encontra dentro dos escombros, de alguma forma a história do registro que exija a destruição do registro, ele mesmo também.

Enfim, tudo isso para falar da importância da casa. Desde os estudos de Levis Strauss, pensar que não é só uma estrutura física, é muito mais do que isso, existe uma unidade social, existe uma língua, essas casas estão em relação com uma série de outras casas, são pessoas morais, então tem nomes, tem uma certa história tem uma for-tuna, tem título tem espólio, tem relações de parentesco, então todas essas normas e formas que se ensinam para estudar sociedades não ocidentais, olhando para suas casas, mostram a importância e o valor, tanto quanto as estruturas de parentesco, daí o tamanho da violência e o tamanho da agressão, que pode ser o processo, como você está descrevendo”[...].

ROSEMARY DOS SANTOS é moradora da Ocupação Regente Feijó e presidente da Associação Moradia Digna nas Áreas Centrais do Rio de Janeiro11.

“[...] Eles entraram dentro do prédio, eles viram que existia uma creche comunitária dentro do prédio, mas como já tinha tido a liminar, não pôde, e aí foi fechado, da Mem de Sá, um pedaço da Riachuelo, todo mundo saiu. Ou seja, pra colocar nossos pertences, eles tinham lugar, agora pra colocar a gente, não tinha, ou seja, foi uma barbaridade mesmo. E aí ficamos 12 dias, de frente do

11 Imóvel público situado no centro do Rio de Janeiro ocupado no ano 2000 por um grupo de famílias sem teto. Um trabalho voluntario de assistência técnica coordenado pelas arquitetas Helena Galiza e Lais Coelho viabilizou a recuperação do prédio e a permanência dos moradores.

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prédio, acampamos na frente do prédio e aí tivemos apoio da vizinhança, dos síndicos dos prédios, que aí a gente tomava banho e fazia a higiene da gente lá. E aí foi no dia 08 de setembro, eu estive na Secretaria de Habitação, que era na Rio Branco e aí a nossa secretária virou para os guardas e falou: ‘se aparecer alguém da Riachuelo 48, a gente não tem atendimento para eles’. Isso, chovia muito, eu voltei pro acampamento e falei: ‘gente, a partir de hoje a gente não dorme mais na rua. E como você vai fazer isso? Eu digo, não sei, só que eu não vou mais dormir na rua’. Isso eu estava prestes a perder a guarda da minha filha, minha filha na época tinha 2 anos e 8 meses, por que a gente… Criamos uma briga política, né? Querendo que ou o governo, ou alguém desse uma solução para o nosso caso. E aí não tivemos apoio de ninguém na verdade. E aí tinha um prédio, isso durante o dia, a noite eu saía, saía eu, dona Regina que era uma funcionária pública que deu muito apoio à gente na época. E a gente saiu pesquisando, aí tinha esses galpões, é um prédio mas na época eram 4 galpões só, não tinha nada dividido. Aí perguntamos ao pessoal da vizinhança, da lanchonetezinha, falou: ‘não, está abandonado’.

“[...] Aí no dia 11 de setembro, na hora que estava tendo a explosão das torres gêmeas, a gente estava entrando den-tro do prédio. Aí veio a resistência: o governo querendo remover de novo, sem dar solução e aí teve o serviço social, dizendo: ‘olha, vocês podem ficar no prédio, só não pode colocar faixas, de movimento nenhum’. Nisso, começou a luta, pra gente ficar realmente no prédio, de que forma, porque eram muitas famílias e o espaço era pequeno. Aí veio o serviço social da Prefeitura, cadastrou algumas famílias e algumas famílias foram para o Aluguel Social, outras famílias já foram contempladas diretamente para o Favela Bairro, na época, o projeto do César Maia, o Favela Bairro. Aí foi reduzindo as famílias [...]”.

“[...]Na época, entraram dentro do prédio 48 famílias, como algumas foram contempladas e tudo, restou 9 fa-mílias. Aí foi em 2003, quando a Matilde, no seminário conheceu a Laís e a Helena. E elas agarraram a nossa cau-sa [...] Um secretário de Habitação que não tinha causa nenhuma com o pobre ou como baixa renda, todos os projetos que foram colocados dentro da Secretaria de Habitação, sumiram. Eu acho que ele amassava, jogava fora, sumiram, ninguém achava nada da Ocupação ali

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dentro da Secretaria. Aí foi quando entrou o Noel12 e ele agarrou a causa da gente, junto com a Helena, a Laís e aí tivemos a promessa de concessão real de uso. E em 2008 a gente saímos, tivemos o dinheiro do Crédito Solidário e uma Emenda Parlamentar do Saturnino Braga. Foi dia 28 de dezembro de 2009, quando tivemos uma última reunião na Caixa Econômica, que a gente ia perder tudo. Ou a gente agarrava a causa e aceitava que o governo continuasse a obra, junto com a Emenda Parlamentar que é uma Emenda Federal ou a gente perdia realmente a promessa de con-cessão. E aí foi quando tivemos que pedir a renúncia da nossa presidente na época, e aí o vice-presidente assumiu, recomeçamos o projeto. Porque até aí ela [a Presidente da Associação de Moradores] tinha tirado, sem autorização da gente, ela tirou, a Laís e a Helena. Agarramos a causa, resgatamos elas de volta para o projeto, que não era justo que outra pessoa agarrasse o projeto, porque o projeto ti-nha iniciado delas. E foi quando a Secretaria de Habitação na época, retomou novamente o projeto, todo o processo e em 2010 recomeçou a obra. E aí veio aquela burocracia toda de licença, de tudo. E aí quando foi em 2012 a gente recebemos a nossa chave, retornando ao prédio. Vamos fazer 2 anos agora, estamos, voltamos à nossa origem, as crianças voltaram a frequentar a mesma escola que já estudavam, retornando os coleguinhas deles, as ativi-dades que eles tinham sempre. Porque nesse período eu fui morar em Caxias, saí totalmente da raiz, que meus filhos tinham concretizado ali e agora eles estão, voltou realmente as raízes.

HELENA GALIZA trabalhou durante mais de 30 anos no Governo Federal - no Banco Nacional de Habitação (BNH), no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e na Caixa Econômica Federal (CEF) - com políticas públicas urbanas, habitação, saneamento, urbanização de favelas, reabilitação de áreas centrais e preservação do patrimônio cultural. É arquiteta e urbanista e doutora pela PROURB/UFRJ.

“[...] Eu entrei no BNH nos anos 80, numa época em que houve uma trégua entre aspas, com as remoções. Depois fui para a Caixa Economica Federal (quando o BNH foi extinto) num período em que havia propostas de urba-nização de favelas projeto de saneamento em favelas. Trabalhei na Caixa até 2008, quando eu me aposentei e voltei a estudar. Fiz mestrado, hoje eu faço doutora-do, minha pesquisa trata de habitação social em áreas

12 Noel de Carvalho à época Secretário de Habitação do Governo do Estado do Rio de Janeiro.

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centrais, que é o caso desse projeto voluntário que eu fiz juntamente com outros amigos, com Laís e outras ami-gas. A gente trabalhou direto, de 2003 até 2013, usando a nossa experiência em política pública em financiamentos para viabilizar esse que é o primeiro caso de ocupação no centro do Rio, onde se conseguiu a permanência das família, a reforma e a regularização fundiária do imóvel. Mas é um caso isolado, embora exista outros projetos de ocupação em andamento como a Manoel Congo. Á época em que o Noel de Carvalho, por um ano, foi Secretário de Habitação do Governo do Estado, ele ficou impressionado como fato do Estado ter tantos imóveis subutilizados no centro e conseguiu dinheiro do Ministério das Cidades para realizar um estudo para reproduzir essa experiência da Regente Feijó, e vários outros imóveis do Estado. E o que acontece é que de certa maneira esse projeto volun-tário significou para mim quase que uma expiação de uma culpa que eu sentia por ter trabalhado no governo federal por tanto tempo. Foi quase assim: ‘eu vou mostrar que a gente pode fazer uma coisa melhor do que isso que estava fazendo!’[...]”.

“[...]Eu era uma técnica que analisava esses pedidos de financiamento públicos e dava um parecer técnico dizendo aprovando ou não. Já estava quase saindo da Caixa que chegou o PAC Manguinhos para análise e fiquei assustada ao ver um colega analisar o projeto que previa remoções, pois a analise considerava como se fosse terreno vazio sem moradores. A política da remoção voltava e parece que todo mundo estava meio amortecido. Os técnicos questionadores estavam saindo da Caixa. Não participei desse novo momento nem da análise da Minha Casa Minha Vida. Dá uma revolta enorme, de se ver a repetição de tudo que foi feito no BNH, conjuntos habitacionais distantes e as remoções. Pilar falou que o filme devia chamar de Emoção. Eu chorei no seu filme, eu chorei agora, me deu vontade de chorar com você falando e dá vontade de chorar, de ver assim a perversidade como a coisa é feita, de tanto dinheiro, dinheiro nosso, que é aplicado de uma maneira muito diferente do que seria o correto. O que a gente pode fazer? É uma política de habitação social perversa, uma política de habitação que não leva em conta a emoção, os anseios, a condição do ser humano nessa história[...]”.

REGINA BIENESTEIN é professora titular da Escola de Arquitetura da UFF (Universidade Federal Fluminense) e coordenadora do NEPHU (Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais) da mesma Universidade.

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Tem experiência em assentamento popular e regularização fundiária. É uma das coordenadoras do Plano Popular da Vila Autódromo.

“[...]Em primeiro lugar: a gente não acredita no arquiteto que sabe tudo, a gente acredita que o morador sabe tudo. Nós temos um instrumental técnico que deve estar a ser-viço desse morador. Então a casa, quem tem que definir, são os moradores, porque a minha casa quem definiu fui eu. Então todo cidadão tem o direito de escolha de como vai morar, onde vai morar. Então o que a gente fez em Vila Autódromo, depois eles podem confirmar se estou falan-do a verdade ou não, o que a gente quer é dar voz. E quer simplesmente viabilizar tecnicamente o que já está sendo pensado. Para vocês terem uma ideia, quando a gente foi a Vila Autódromo a primeira vez, eu não conhecia, a gente foi guiado por eles, é lógico, não conhecia e eles já foram mostrando os problemas e as soluções também. Quer dizer, a partir daí foi só ver tecnicamente como a gente faz. Aí desse diálogo com o poder público, é uma total surdez que não é uma surdez porque estou surdo, é uma surdez que é uma decisão de estar surdo às camadas mais empobrecidas, só escutar as elites e o capital. A partir daí, não adianta você apresentar alternativa técnica, porque apresentamos no Plano Popular, tem exemplares aqui para vocês verem.

Depois nós tivemos uma rodada de negociação, suposta-mente uma rodada de negociação, mas que foi uma rodada de um verdadeiro embate, onde tudo que não é defendido no entorno da Lagoa de Jacarepaguá, Vila Autódromo tinha que cumprir, em termos de legislação. Com um discurso de que estamos negociando, porque agora Eduardo Paes [Prefeito do Rio de Janeiro] fez autocrítica na nossa frente, agora não quero mais remover, porque Vila Autódromo, reconheço que agi mal, não escutei a comunidade… Quase choramos! Mas sentamos numa mesa de negociação onde, o que a gente depois da primeira reunião, a gente já tinha claro que o que ele queria era continuar tirando, só que agora mascarado com a bondade, o diálogo, o entendi-mento. E vinha com um rol de demandas que eles deviam obedecer, que eram exigências do projeto olímpico, nós apresentamos uma alternativa que não eliminava 70% de Vila Autódromo, obedecendo a todos aqueles requisitos que eles colocavam na mesa. Nesse dia eles romperam as negociações e a partir daí o assédio é cotidiano, o as-sédio, a ameaça, estão aí, acho que eles [os moradores] podem descrever com muito mais intensidade do que eu,

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ameaçando a Defensora Pública, todo tipo de ameaça, de acinte, de desrespeito ao cidadão. Para culminar, ontem eu abro o jornal, quase tive um infarto. Não devia ter tido a surpresa porque já era esperado: “Remoção Sim, pode ser o caminho” e os meninos felizes, nadando na pisci-na num conjunto que vão ter 940 apartamentos e que é lógico que quando todas as famílias estiverem morando lá, aquilo não vai ser mais uma piscina, mas não pode saber disso. E defendendo. Defendendo por que? Porque foram assediados, porque foram cooptados, porque foram pressionados[...]”.

“[...]A gente conseguiu, a Defensoria conseguiu brecar as demolições, mas o Defensor Geral conseguiu tirar a liminar que proibia as demolições. Quer dizer, como esse executivo municipal, ele vai permear inclusive um órgão que a gente tem, que é a defesa do cidadão mais pobre, que é a Defensoria, que está sempre do lado do cidadão. É isso, quer dizer, eu tenho repetido, eu sou antiga, eu vi, presenciei, eu vivi a época das remoções, não estando lá, mas acompanhando e nós, a nossa geração, a minha geração nunca acreditou que fosse ver de novo remoções com tamanha violência e falta de respeito, nunca. E hoje se faz, e todos nós dizemos que estamos numa demo-cracia. Não sei qual é essa democracia, democracia para quem? Mas enfim os movimentos estão, a gente espera que cada vez mais a população esteja na rua, não vejo outro caminho[...]”.

JANE OLIVEIRA é moradora da Vila Autódromo e compõe a di-retoria da AMPAVA (Associação de Moradores, Pescadores e Amigos da Vila Autódromo).

“[...]Eu acompanhei diversas comunidades em 2010, quan-do nós descobrimos uma lista da ADEMI, Associação dos Empresários do Mercado Imobiliário do Rio de Janeiro, que se reúne com o nosso governo, as três esferas. E sempre pede para comunidades serem removidas. A Vila Autódromo fez um grupo, marcamos todas as comunida-des da área de Jacarepaguá e saímos em grupo convocando essas comunidades para participar dessas reuniões do Conselho Popular. Houve até um momento em que o conselho enchia muito e depois a gente descobre que as reuniões do Conselho Popular, havia uma conciliação da Igreja, não todos, alguns[...]”.

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“[...]E hoje nós temos um padre muito bom lá dentro da Igreja Católica, que nos dá força, tem nos ajudado a estar ali, erguido. Ontem foi denunciado na assembleia, tive-mos assembleia ontem, que os caminhões que entravam com material de construção, estavam sendo barrados na entrada da comunidade. Aí hoje nós fomos lá conversar com os guardas municipais. Então, ele [Altair Guimarães, presidente da Ampava] chegou assim, ele anda muito cansado, estressado e chegou na minha porta e eu falei: ‘eu vou com o senhor, mas se o senhor controlar, porque eu lhe conheço, eu sei, que o senhor está cansado, estres-sado, mas o de fora não vai levar isso em conta, eu vou com o senhor sim’. E fomos e não gravei eles assim, gravei apenas a voz, o áudio só. E era ordem da Marly Peçanha13 para eles estarem ali barrando sim, qualquer material de construção que entrar pra dentro da comunidade, mesmo o prefeito dizendo que uma parte da comunidade fica, e sai quem quer. Aí eu olhei, tem o nome dos guardas, copiei os nomes e deixamos registrados, o Altair imediatamente ligou para a doutora Marília Lúcia, a defensoria pública agora tem nome, é doutora Maria Lúcia, doutora Adriana e doutora Gabriela[...]”.

“[...]Meu vizinho Jorge não está aguentando a pressão, sofre de labirintite, ele vive desmaiando à toa, ele teste-munhou também isso e os filhos não querem mais ele envolvido em coisas, porque tão vendo a hora de per-der o pai e aí o que faz? Decidiu não lutar mais contra a prefeitura e querem abrir mão do apartamento, é isso que está acontecendo lá dentro. E a gente não consegue mais olhar para as pessoas, que sempre foram amigos nossos, e olhar com aquela certeza de que ainda são nossos amigos, porque se já foram cooptados pela prefeitura, tem alguma coisa dentro deles, muito estranho que faz com que eles tenham um procedimento de olhar e recolher o olhar da gente[...]”.

“[...] Uma das vizinhas que foi pra defensoria defender a casa dela e voltou pra comunidade, dias depois negociou com a prefeitura e saiu lá no jornal, com os braços aber-tos, dançando, sacudindo a chave, dizendo que é tudo maravilhoso[...]”’14.

13 Compõe assessoria do Prefeito Eduardo Paes.14 Conjunto Habitacional Parque Carioca.

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“[...]Então é tudo tão complicado a gente tem que estar cada dia se renovando pra não estar sofrendo com essas coisas, vendo as coisas acontecer… Essas pessoas, analfabetas de seus direitos, foram para o apartamento, porque as caras que estavam na assembléia, são as de sempre, que estão ali buscando entender seus direitos. E essas pessoas que foram pra lá estão tendo a prefeitura como boazinha, elas nunca participaram de luta nenhuma e pra elas, nós que não prestamos e a Maria Lúcia [defensora pública] não presta por isso, porque não queria deixar que quebrasse a casa delas e também dessa forma totalmente diferente, que são pessoas que não entendem da luta e acham que a prefeitura que construiu aquele prédio pra eles e não foi. Como a gente muda essa história? Como a gente faz essas pessoas enxergarem isso aí?[...]”

INALVA BRITO, moradora da Vila Autódromo, diretora da AMPAVA e professora da rede pública de ensino.

“[...]Estamos na luta há 20 anos e durante esses 20 anos houve uma política de abandono, intencional e de pre-carização das condições de vida da comunidade Vila Autódromo, que não começou como favela começou como loteamento popular, e também nós lá entendemos e praticamos isso, que a casa é sagrada. Nós até conversamos muito, que o fogo sagrado da nossa casa tem que estar sempre aceso, que no dia que aquele fogo apagar, morreu aquela família, morreu aquela luta. Então a prefeitura precarizando a nossa comunidade há 20 anos pra gente chegar a isso que a gente está descrevendo aí. Mostrar um outro modelo de vida, que é o modelo homogêneo de conjunto habitacional, o formato que eles direcionam para os trabalhadores. O Parque Carioca, para onde nossos vizinhos foram, já foi inaugurado sob o controle da milí-cia. Já tem regras e normas lá. Eu soube que um morador já teve lá um problema, já não pode mais ficar no Parque Carioca e também não pode mais retornar à comunidade, porque ele infringiu as normas lá[...]”.

“[...]Mas enfim, voltando para 2013, quando nós cons-truímos o Plano Popular da Vila Autódromo, que foi uma experiência extraordinária. Eu tenho 65 anos, foi a expe-riência mais positiva de cidadania, que eu participei na minha vida e o interessante é que a gente sempre teve em mente que o Plano Popular ele tinha o adjetivo de conflitual, “alternativa insurgente”. A gente sempre se orgulhou disso e construímos para nós mesmos e até para

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a sociedade mais aberta, mais democrática, Minha Casa Me Abriga, Minha Casa Minha Briga e colocamos na comu-nidade e o resultado disso é que a comunidade realmente está resistindo está na luta. Nós temos nossa autoestima bastante assegurada, ganhamos um prêmio, Urban Age, ironicamente é de um banco alemão, mas é um prêmio, né! Devemos muito aí a organização da nossa companheira Camilla. Ganhamos mas não levamos, porque o prémio é para a construção de uma creche, mas o prefeito insiste que não vai dar licença, que não vai ter creche nenhuma… E ele tem a prática da política secular, que é dividir para governar. Ele faz isso sistematicamente com uma equipe da prefeitura paga por todos nós contribuintes, que está lá permanentemente na comunidade, afirmando coisas do tipo: não ficará nenhuma pessoa aqui; a prefeitura quer a área limpa; quer dizer, na direção da limpeza social, que nós ficaríamos, né, os resistentes, os insurgentes ficarão sem água, sem luz e o que é mais grave, isso aí é o que atropelou a nossa luta mesmo, mas a gente não está ainda vencido. A coordenação da defensoria pública, passou por cima dos nossos advogados que são defensores públicos, que são companheiros de luta e de estimação, passou por cima deles e com a prefeitura desmontou a nossa defesa[...]”.

“[...]O que nós queríamos, o nosso direito é de pedir um projeto de urbanização e um projeto para as demolições. A prefeitura não pode sair demolindo qualquer coisa sem apresentar um projeto. Projeto esse que nos garantia o mí-nimo! O que é o mínimo? Um acesso decente, os serviços básicos, né, que são os bens da terra. A gente exigia esse projeto para as demolições e a defensoria pública passou por cima desse nosso direito, dessa nossa necessidade, e negociou com a prefeitura a demolição das casas, sem a prefeitura apresentar nenhum projeto, quer dizer, uma demolição, e aí retomando a fala do companheiro, que achei muito interessante. Para nós, a gente fala até com uma certa naturalidade lá, que a casa para nós não são 4 paredes nem tijolos. A casa para nós é realmente o lar. A gente aprendeu isso há 20 anos, quando a gente organizou a comunidade antes da constituição de 88, nós organizamos a comunidade em 87, juridicamente. A gente dizia que a nossa casa é o lar, a nossa casa era o lar onde abrigava a nossa família e que na nossa casa existia uma pessoal moral, existe uma história. Há 20 anos que a gente já fala isso, né, então, como destruir uma casa, a prefeitura chega com uma equipe e destrói uma casa sem nem estudo de impacto de vizinhança, sem nenhum

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estudo de impacto na nossa qualidade de vida e a prefeitura está fazendo isso e em momento nenhum, nenhum, ela pensou no acesso de entrada e saída da comunidade, no acesso dos trabalhadores que sustentam essa cidade, se você sai, Francisco, a Jana e eu, e os jovens e os idosos, os trabalhadores, quando saem da comunidade, se deparam com uma via da morte. Tanto a que vai e a que vem, não tem acesso para as crianças irem à escola, os idosos irem a lugar nenhum, para os trabalhadores trabalharem e enfim. Nós estamos sitiados. Então o formato que a prefeitura encontrou para nos jogar para baixo, foi sitiar. Nós somos uma comunidade sitiada, nós somos uma comunidade que estamos na luta, e a gente briga e a gente constrói pontes com todas as instituições públicas e as instituições acadêmicas, enfim, há 20 anos a gente faz isso mas nós estamos sitiados[...]”.

“[...]Se nós formos agora na comunidade, ela é… O entorno tem vias modernas, um engarrafamento estupendo ou então carros passando a 120, os prédios, barreiras de prédios, os projetos das grandes construções, dos elefantes, né, tudo. E nós estamos lá sitiados, ali, sem ter a segurança do direito à cidade e com uma equipe treinada, dentro da comunidade para o tempo inteiro nos jogar para baixo… E outra coisa que observei aqui, que é, como a gente vai provar, como o companheiro aí falou, não há nenhum tipo de anotação legal do assédio que a gente sofre. E da ameaça que a gente sofre. Isso é uma coisa que está nos preocupando muito. A quem recorrer, como recorrer, a gente tem que pensar no coletivo, como a gente, legalmente vai se opor, denunciar esse assédio legal que não é só da prefeitura. É da prefeitura, é da, como chama, a grande mídia, eu já chamo velha mídia, graças a deus, velha e caduca mídia, que hoje nós temos uma mídia que é mais moderna e é mais atualizada, da velha e caduca mídia que chega lá e mostra as casas e fala o que quer, sem a nossa autorização. O ano passado eu botei pra fora da comunidade, aquela Bette Lucchese [repórter da Rede Globo], e ela dizendo pra mim, ela e o câmera: você está nos ameaçando? Eu falei: não! É você que está nos ameaçando! Então não há nenhum tipo de anota-ção pra isso e falas do tipo, que aparece uma mulher lá, as comunidades reconhecem sempre o estranho, né, pelo que todos nós falamos, a gente tem laços de convivência e laços de sangue né, cada terreno lá na comunidade, todos já foram lá, as pessoas moram unidas por laços de sangue, já a terceira geração. Quando aparece um estranho, a gente

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vai perguntar, há várias formas de perguntar. Então uma vizinha perguntou pra uma mulher lá, quem era ela que estava ali. Ela não se identificou, a vizinha insistiu, ela não se identificou, aí ingenuamente ela perguntou se ela era da defensoria pública. Aí ela falou assim: a defensoria pública já abandonou a comunidade há muito tempo, já abandonou vocês há muito tempo. Quer dizer, tudo, tudo isso somado faz com que a gente se lembre dos anos de chumbo. Que não se esqueça e enfim… São encontros como esse dá pra gente desabafar e trocar ideias [...]”.

“[...]Fato é que a nossa precarização aumentou muito mais e qual é a nossa proposta agora? É, não sei como, mas tem uma forma e a gente sempre descobre, é tentar tirar da prefeitura um projeto, de…, nem sei se é um projeto de saneamento básico pra Vila Autódromo, né? É, e pra fina-lizar, lá na Vila Autódromo, a gente associa demolição, à demônio, demo, de demônio. Então é isso aí[...]”.

ROBERTO MARINHO morador nascido e criado no Morro da Providência e componente da Comissão de Moradores Afetados pelas Remoções.

“[...] A Providência já viveu essa época de remoção, essa situação. Na realidade não é a comunidade que está si-tiada, é a classe pobre que está sitiada. Ou seja, a situação não ocorre só na Vila Autódromo, na Providência, ou seja lá qual for a comunidade. A gente sabe que a gente é violentado socialmente, culturalmente, habitacional-mente, pelo governo, seja estadual, federal, municipal… A Providência tem mais de 117 anos de história, ao longo desses anos todos, a gente sabe que toda transformação da Providência veio através do próprio morador. Ou seja, eram épocas de zinco, aqueles estuques. Ou seja, toda essa mudança veio junto, conforme as gerações vieram passando na Providência, elas também vieram fazendo as transformações e com isso, eu tenho até uma foto em casa, que a casa da minha avó era uma casa bem pequenininha, hoje moram 8 famílias, então cresceu muito. Meu avô teve 13 filhos. Com isso ele foi fazendo as transformações, a prefeitura não veio pra dar apartamento, a prefeitura não apareceu pra apresentar nada e de recentemente: ah, coi-tadinho dos pobres favelados, coitadinho da Providência, a gente quer fazer alguma coisa por eles! Mas na realidade tudo está ligado aos grandes eventos que estão aí, que a gente sabe que é muito dinheiro rolando, é muito coisa que está envolvida nisso tudo, muito interesse, principalmente

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econômico e também pelo Porto Maravilha. Então você percebe que enquanto tudo estava na questão de: vai sair na Vila Autódromo, vai assim…, era tudo de uma forma, mas assim como foi na Providência, no dia que derrubou o primeiro tijolo, todo mundo sentiu o impacto de uma remoção. Só sabe o que é remoção quem, na tua porta, aparentemente chega a prefeitura, chega um capitão do mato, as vezes até da própria comunidade, no fim das contas eu vejo até como, um sofredor como nós, só que por falta de conhecimento, ou por interesse, ou por egoísmo, seja lá qual for o motivo, ele é tão refém como nós. Ou seja, ele sofreu um dia e ele cansou de sofrer, porque foi oferecido pra ele, todos os dias batendo na porta, você tem que aceitar; você tem que aceitar; você tem que aceitar; se você convencer seu vizinho você ganha um carro; se você conven-cer seu vizinho você ganha 10mil. E aí você vai vendo que, ah, aquela pessoa aceitou. Mas não é questão de aceitar, é questão de até quando você vai sustentar tudo isso? A todo momento as vezes eu me pergunto: e aí, até onde eu vou? Eu só tomei parte do problema quando o problema bateu na minha porta! Nós somos assim! Nós só nos movimen-tamos quando realmente somos ameaçados de alguma forma, de alguma maneira. Dificilmente alguém chega e fala assim, eu vou lutar contigo aí do morro, a gente vai junto! Hoje em dia, se você perceber, só ali na Providência, você vai perceber que é um numero muito pequeno em relação com toda a Providência do que acontece. Ou seja, quem é que lutar, quem é que resiste? Resiste porque tá querendo resistir apenas contra o prefeito? resiste porque sabe que essa obra vai além do que eles apresentaram. Primeiro porque não tem projeto, não tem documento que comprove o que vai ser feito e quando vai ser feito. Mas a gente sabe que as coisas que eles apresentam, que eles mostram de frente, não é verdadeiramente o que vai acontecer mais pra frente. Então, até mesmo na questão das pessoas que vão sair do morro, ah, eu quero sair, quero ir pra não sei aonde; a gente viu o filme Remoção e retrata muito bem isso. Essa questão de você fazer uma escolha, eu estava conversando dia desses com um pessoal lá da Pedra Lisa, que é uma área da Providência, falou: Roberto, como está a situação lá? Falei, continua tudo mais ou menos porque a gente tá aguardando uma posição, porque o coor-denador do NUTH fez um acordo…, a gente chegou, falou pra ele em reunião, falou assim: você não assina esse documento, porque se você assinar o sangue das nossas vidas vai estar na sua mão e todo mundo sabe onde você trabalha e a gente vai vir aqui reivindicar esse sangue; não, não vou fazer isso e blá blá blá! No fim das contas, o que ele fez? Foi lá e assinou.

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Só que antes disso, ele falava assim: vocês estão lutando por que? Roberto, você tá lutando por que? Se sua casa não vai mais sair. Não vai mais sair até que ele consiga derrubar a liminar, quando derrubar a liminar, aí muda tudo! Ou seja até a gente consiga uma outra liminar, já se demoliu o que ia demolir antes, o que ia demolir depois e o que nem ia demolir!

E a todo momento o prefeito vinha falando: não tem remo-ção, não tem demolição. Numa reunião junto com o prefeito ele diz assim você senta pra conversar com o prefeito, os moradores de um lado, os apoiadores, a associação de moradores que é cooptada pelo município, e aí você vê os truculentos da prefeitura, quando na realidade o cara vai falar, ele não pergunta o que a gente quer, ele não pergunta qual é a nossa posição sobre a situação. Simplesmente ele chega e fala assim: plano inclinado? Tá resolvido. Motovia? Tá resolvido. Não tem remoção, não tem remoção, não tem remoção! Agora comprova com documento que não vai ter remoção. Mostra o projeto! Agora pergunta se ele mostrou na Defensoria? Foi lá na Defensoria buscar o projeto, aí me apresenta uma planta muquirana, des-culpe o termo da palavra, mas que é muquirana mesmo, sem desmerecer ninguém, até um cara que vive na rua vai dizer que quilo não é um projeto. É uma planta feita de qualquer jeito que não representa nada, que não diz nada, que colocou um documento que dizia… ele chegou a repetir em três quadros a mesma coisa. Ou seja, o cara não teve nem o cuidado de formatar direitinho ou seja, faz de qualquer jeito! A gente tá lidando com o morro, a gente tá lidando com imbecil! A gente tá lidando com favelado! Só que eles se enganam que essa época de uma favela que não procurava seus conhecimentos, não procurava suas informações, acabou! A gente não consegue todo mundo mas a gente ainda consegue umas pessoas que possam se mobilizar e ter consciência de que, olha só, partir de hoje você não vai mais me empurrar, eu ando com minhas próprias pernas. Eu faço a minha escolha, por que? Por que é o que eles fazem a todo momento. Ou seja, se você não sabe o que vai escolher e ele te dá duas opções e na realidade é a mesma opção, aqueles que não conhecem, vai sempre escolher a mesma coisa. E no fim das contas, é como a Jane fala, ainda coloca a gente como, poxa, ó, é por causa deles! Mas por que?

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A Maria Lúcia15 falou pra gente: gente, um dia lá na frente o pessoal da Providência, vai olhar pra trás e vai falar assim: a gente agradece a esses poucos moradores que estão lutando e resistindo, porque se não fosse por isso, a Providência já não era a Providência. Esse é o modelo de cidade propos-to pra nós. É o modelo de cidade onde o pobre não está incluído, o favelado não está incluído. Pra onde a gente vai? Estamos morrendo aí todo dia. Todo dia tem um mor-to, como se fosse a coisa mais comum! É um galinheiro! Morreu uma galinha! É mais um na estatística, e aí onde a gente vai parar com todo isso? Será que vai ter um fim? Ou será que realmente vai ter que ter uma rebelião, ou as pessoas vão ter que falar assim, cansamos de tudo, vamos se unir, vamos explodir tudo, porque esse mundo já era, já passou? Quando na realidade eles só pensam neles mes-mo. Eles só querem eles mesmo. No filme Remoção, 50 anos depois as pessoas falavam assim: hoje se eu pudesse escolher alguma coisa diferente daquilo que eu escolhi, com certeza eu escolheria ficar. Porque não é só tijolo, não é só telha, não é só laje. É história, é vida, é convivência, é amigo… Você sai de um local, vai pra outro local, você não conhece ninguém, você vai ter que reiniciar uma nova vida, só que pra quem tem 18 anos isso é fácil, pra quem tem 70 anos, 80 anos? Que passou toda a sua vida com seu vizinho do lado: oi, bom dia, tudo bem? Oi, Tudo bem! Como a gente faz isso? E ele pensam? Tipo, eles se preocupam com alguma coisa desse tipo? Não, pra eles pouco importa, pra eles somos só produtos. É isso que somos, produtos. Se por um acaso o projeto, essa urba-nização disfarçada de remoção, porque remoção não é urbanização, urbanização não é demolir, urbanização não é tirar. Pode-se fazer urbanização dentro da Providência, dentro da Vila Autódromo, sem retirar ninguém. É questão de sentar e conversar. Quem sabe das dificuldades, das necessidades da favela, da comunidade carente somos nós que convivemos e vivemos lá dia após dia, acorda hoje e aí dorme, amanhã acorda de novo e é uma grande luta. É uma luta longa? É uma luta longa. Cansativa? Cansativa. Que às vezes, às vezes não, que a gente sabe, muita gente já morreu por causa disso, inclusive minha mãe. Por que no momento que a pessoa chega na sua porta e fala assim: vocês tem que sair. O Bittar foi na minha casa 3 vezes, não sei se é sorte, se é azar, eu não estava na hora, porque eu gostaria muito de estar. E todas as vezes ele realmente acuou de uma forma… Meu pai está acamado há 8 anos, não anda mais. Aí você percebe o seguinte: a prefeitura

15 Defensora Pública, titular do Núcleo de Terras e Habitação (NUTH).

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chega na sua porta e fala assim: você vai ter que sair. - Não mas a gente não vai sair, a gente mora aqui, a casa é nossa, a gente paga IPTU. Mas nem todo mundo paga IPTU, na Providência, não sei outros locais. Mas aí você escuta isso e primeira coisa que vem na sua cabeça é: e agora, pra onde a gente vai? Porque além de você sair, você não sabe bem pra onde você vai. A todo momento você vê: milícia não sei aonde, problema aqui, as construções são feitas de papelão e cuspe, porque na primeira chuva tudo começa a se deteriorar, tudo começa a rachar e voce, depois que você saiu, pouco me importa. E aí você percebe o seguinte, e agora, como a gente faz? Roberto, eles estiveram aqui, falou que a gente tem que sair. fomos na prefeitura, olha só a gente arrumou uma casa 300mil. - Não, esse dinheiro a gente não tem. - Então também não tem negociação. A gente nem tinha o valor, a gente nem tinha a casa, falei pra saber até onde iria a proposta porque eles falaram assim: não, você procurem a casa porque vocês tem que sair, queira você, queira não, o projeto vai continuar. Não se trata ninguém desse jeito. As coisas não funcionam dessa forma, com essa truculência, com essa covardia. Por que? Nunca. Eu nunca vi. A Providência eles dizem assim: vai ser uma obra espetacular, vai ter não sei o que, melhoria, melhoria! Mas por onde começou? Pelo teleférico. Um ano depois o teleférico continua lá. Com justificativa de que? Justificamos que a culpa é dos moradores que entraram na justiça. Só que a jus-tiça dizia que abria o precedente pra terminar o teleférico e em consequência disso, fazer funcionar. Aí fica dando desculpa a torto e a direito, porque a gente não tem quem vai gerir esse teleférico, por causa disso, por causa daquilo… Mas na realidade não faz funcionar. O plano inclinado que ia na direita, foi na esquerda, foi pro meio, mas no fim das contas, quando apresentou uma planta, a Helena até viu essa planta, 40 centímetros entre a parece da casa, da escadaria e a parede do plano inclinado. Só que isso eles não falam pra ninguém lá na comunidade! Aí chega lá em cima, ao culpado sou eu! O culpado é o outro que ta lá resistindo. Só que a resistência não é porque a gente tá querendo ser contra o governo, se contra qualquer coisa, que eles colocam lá pra gente[...]”.

Considerações finais

A sessão livre propiciou um intercâmbio de perspectivas e experiências, visões e sonhos, lugares vividos e perdidos nos trans-portou para um espaço que reconhece as conexões e diferenças, as semelhanças e a diversidade. Os registros emocionais, intelectuais e

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políticos evidenciados nas narrativas permitem a construção de novos enquadramentos metodológicos que envolvem as categorias “moradia” e “cidade”. A intenção de publicizar tais fragmentos verbatim, represen-tação das palavras e das vidas dos interlocutores, é irromper o silencio e a invisibilização imposta sobre alguns grupos e comunidades do Rio de Janeiro. Assim foi possível pensar coletivamente a amplitude das categorias “moradia” e “cidade” – através dos espaços e do tempo – desnaturalizando qualquer definição reificada sobre o significado de residir e habitar, e sua conversão em moradia.

Este exercício crítico vai além do significado dos “direitos” e inclui o sentido da dimensão afetiva e experiencial, que nos permite escapar das epistemologias dominantes (e restritas) da “cidade” e da “moradia”. O primeiro dos depoimentos nos ofereceu uma visão adul-ta, retrospectiva e geograficamente afetiva, de uma infância marcada pelo deslocamento que implicou na ruptura da estrutura doméstica de forma radical, imposta pelos conjuntos habitacionais dos anos 1960 e 1970. O diretor escolheu a noção de “casa” que permitiu capturar dos seus interlocutores experiências, conhecimentos e emoções de pessoas e famílias removidas, sob uma perspectiva que elabora hoje com certo distanciamento.

A diversidade das narrativas revelou o afloramento de dificul-dades na relação com o poder, principalmente na contraposição de sua força, refletindo nas potenciais ações coletivas poderiam mobilizar esforços contra os atropelos históricos que afetam as populações margi-nalizadas. As intervenções, inclusive, apontaram mecanismos ocultos de adaptação e transição que decorrentes dos processos de remoção dentro dos conjuntos habitacionais naquele período – quando estes territórios não estavam ainda ocupados pelos grupos de milícia (como hoje) e as pessoas trocavam apartamentos com o simples objetivo de reconstruir a vizinhança original. Tal exemplo revela o desejo de reconstruir as mo-radias, os núcleos familiares e as comunidades dentro de um contexto socioespacial que limita ou reconfigura as possibilidades das relações sociais.

O debate salientou também determinadas metáforas utiliza-das pelos participantes que remontam os contextos do passado e da atualidade das políticas de remoção urbana no Rio de Janeiro. Mesmo guardando as distancias necessárias, as narrativas destacaram o vínculo entre as remoções que se repetem historicamente: o período da escra-vidão no Brasil, nos anos de 1960 e na atualidade. Em todos os casos as ações respondem a uma desconsideração e negligencia política com relação à diversidade que existe entre os grupos de famílias removidas, obrigadas a viver juntas em modelos espaciais distintos e homogêneos. Essa “ignorância” por parte do poder instituído gera rupturas afetivas, familiares e culturais que interferem na experiência cotidiana das pes-soas removidas de suas casas e comunidades.

Outra metáfora relaciona as consequências afetivas de uma re-moção, sensações comparadas a um exilio político. As novas estruturas do espaço desconhecido, a imposição de um sistema moral distinto, a

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falta de nomes nas ruas (identificadas apenas por letras) são mecanis-mos que geram novas divisões e limites socioespaciais que constituem uma distância – física e afetiva – entre as comunidades e seu entorno urbano.

A visão antropológica de uma casa nos permite ver as grandes diferenças que existem entre as lógicas e as ontologias do que constitui uma moradia. Também nos permite ver que, ainda que haja variações importantes entre como se sente, se vive e se estrutura e, até, se “mata” (demole) uma casa, os laços afetivos e emocionais permeiam as situações de modo especifico, visto que a cultura se pode definir e redefinir a partir de uma moradia.

Por outro lado, a sessão permitiu o contato com histórias de transição, constituição de subjetividades e tomada de posições políticas. Como, por exemplo, a fala angustiada de uma técnica que trabalhou em uma instituição pública responsável pela operação das políticas urbanas e habitacionais, cujos programas são concebidos como um processo “sem gente”. Posteriormente, quando passou a atuar como ativista social, pode compreender, de forma empírica, a natureza “perversa” do arranjo de in-teresses que sustentam a política urbana. Em decorrência, o sofrimento humano ocultado nos mecanismos de remoção, que não atingem certo grau de evidência pública, mas revelado através dos conflitos fundiários na capital carioca. Apesar de estar agora plenamente envolvida com o movimento pela habitação social no centro da cidade do Rio de Janeiro, a depoente explicou como o filme “Remoção” a fez chorar e (re)viver o (re)nascimento desse modelo de política urbana, a política das remoções.

De um modo similar, os moradores ameaçados de remoção narra-ram casos que os levaram ao processo de ações coletivas pela permanência de suas casas, perda de amigos, insegurança crescente, conflitos internos causados pelo poder público, de luta contra pensamento e práticas hege-mônicas acerca da cidade.

Há uma continua e violenta desigualdade em jogo que permite ao poder público não apenas reproduzir uma política de abandono, capaz de naturalizar as remoções, mas também utilizar os meios de comunicação como cúmplices poderosos que divulgam as histórias de desalojamento como conquistas. Enquanto isso permanecem ocultas as ameaças e os abusos cotidianos que sofrem aqueles que resistem a tais práticas.

Segundo os depoimentos, o poder público municipal continua silenciando e ocultando a existência dos conflitos que envolvem a terra urbana no Rio de Janeiro. Além disso, desconsidera os moradores e as comunidades como detentores de direitos, relativizando a condição do morador “pobre” como “humano”, calando a dor e negando os discursos produzidos pelos moradores envolvidos nas disputas.

A conclusão inevitável de todos os participantes da sessão livre parece ser que sem um movimento coletivo que coloque em questão os usos e as apropriações dos territórios urbanos, suas moradias, o direito a permanência e projetos futuros, continuarão incertos.