a razão brilha para todos - revista de história

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    A razão brilha para todos

    Muito além das artes, o Renascimento transformou a vida social e ocomportamento do homem comum

    Angelo Adriano Faria Assis

    1/11/2013

    Na pintura do flamengo Pieter Brueghel, O Velho, de 1565,trabalhadores em colheita. A arte do período sobrepunha arazão à fé.

    O sorriso enigmático da Mona Lisafaz por merecer a multidão deturistas e a enxurrada de flashesque a registram todos os dias noMuseu do Louvre, em Paris. Criadapor Leonardo Da Vinci no início doséculo XVI, a Gioconda é resultadoda utilização de técnicas de pintura

    apuradíssimas e proporçõescorporais exatas, sem falar nofamoso meio sorriso e no olharenviesado. Mais do que umarevolução artística, porém, o queaquela criação testemunha é umperíodo de transformações culturaise sociais que varreriam a Europa edariam luz ao homem moderno.

    Em geral, o Renascimento écelebrado por suas grandes obrasna pintura, na escultura e naarquitetura. Artistas do quilate deMichelangelo, Rafael, Da Vinci, Botticelli, Caravaggio, Arcimboldo, El Greco, Bruegel, Bosch,entre tantos outros, reiventarama arte com novas noções de dimensão espacial, emprego dascores e valorização dos planos e contrastes, como ochiaroescuro, ornamentação detalhada eequilíbrio geométrico. Mais tarde, o conceito de renascença seria estendido à literatura, àfilosofia e à ciência. Na escrita, Cervantes, Camões, Maquiavel, Montaigne e Erasmo detalhavamdesejos, medos, qualidades e defeitos do ser humano e de sua moral. Era a razão se sobrepondoà fé. Descreviam a utopia de um homem novo e do mundo perfeito, num tempo em que sonharera arriscado.

    Foi também um momento de exacerbação da escatologia, do realismo grotesco e do vocabuláriodas ruas, presentes nas obras Gargântua (c. 1532) ePantagruel (c. 1564), de François Rabelais,a retratar celebrações e atos cômicos do cotidiano popular. Cientistas como Copérnico, Galileu,Vesalius e Kepler ajudavam a compreender os fenômenos da natureza pela própria natureza, enão mais por vontade divina. O homem, em vez de Deus, passava a ocupar o centro dasatenções.

    O historiador francês Jean Delumeau, em A civilização do Renascimento, afirma que este

    movimento ensinou o homem “a atravessar os oceanos, a fabricar ferro fundido, a servir‐se dasarmas de fogo, a contar as horas com um motor, a imprimir, a utilizar dia a dia a letra decâmbio e o seguro marítimo”. Fez mais: despertou o interesse pelo conhecimento do corpo,definiu maneiras de pensar a política e o sagrado, permitiu a descoberta de terras e costumes nocontato com outros povos, incentivou o avanço nas ciências e no modo de entender a ordem do

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    mundo. Pintores, escultores e escritores representaram o cotidiano e os costumes de camponesese citadinos, a natureza, os rituais da aldeia, as fases da vida, o trabalho diário, a produção e opreparo dos alimentos, as festas, as danças, os jogos, as feiras, as batalhas, a morte, o amor.

    Mas qual terá sido o impacto prático do Renascimento para o homem comum?

    O advento da imprensa – graças à invenção dos tipos móveis por Gutenberg na década de 1450 –tornou‐se poderoso fator de transformação social, ao acelerar e expandir a circulação das ideias

    para um público cada vez mais extenso, incentivando o desenvolvimento da cultura letrada,ainda bastante limitada. Embora muitos fossem analfabetos, as informações eram repassadaspelos que liam e repetidas oralmente aos demais, contribuindo para alargar a visão de mundo epara reordenar os papéis a serem desempenhados pelos homens na sociedade.

    Do macro ao micro, inovações tecnológicas mudaram o entendimento do mundo. Enquantoateoria heliocêntrica provava que a Terra girava em torno do Sol (e não o contrário, comonormalmente se acreditava), microscópios desvendavam seres desconhecidos ao olho humano. Oestudo da dissecação de cadáveres, que permitia a mestres da arte pintarem e esculpirem figurashumanas em perfeição de detalhes, também gerava avanços na medicina. Entender a composiçãoe o funcionamento do corpo – veias, ossos, músculos, órgãos internos e externos, sistemasdigestivo, circulatório e respiratório – auxiliava na descoberta, na identificação e no tratamentode mazelas. Aos poucos, explicações sobrenaturais para as doenças, como espíritos malignos ouinfluência do demônio, eram substituídas por tratamentos racionais e científicos. Surgiram otermômetro e uma série de novos instrumentos e técnicas cirúrgicas, remédios químicos eminerais, a exemplo do mercúrio. Passou‐se a produzir membros artificiais, como pernas ebraços mecânicos, as suturas substituíram a cauterização de ferimentos. Popularizou‐se a ideiado cuidado com a saúde, diminuiu a necessidade de amputações, aumentou a expectativa devida.

    Nos campos, o aperfeiçoamento de arados, alavancas de rosca e moinhos hidráulicos somava‐se a

    métodos organizados de plantio e experiências vindas de outras regiões e continentes, efeito dasgrandes navegações. Resultado: aumentou a produção e a oferta de alimentos e amenizou‐se otrabalho árduo na lavoura, com reflexos imediatos na saúde da população.

    O tempo passou a ser contado com maior exatidão do que antes, quando o máximo de que sedispunha eram ampulhetas, quando não o badalar dos sinos das igrejas. O relógio mecânico,composto por complexa engrenagem de rodas denteadas, molas e ponteiros, tornava precisa aindicação de horas e minutos, aumentando o controle sobre as rotinas diárias. Tratados comoverdadeiros objetos de arte, ficavam muitas vezes expostos em edificações e praças públicas,enfeitando a paisagem e ordenando os afazeres, fixando e disciplinando compromissos ou acontagem das horas trabalhadas.

    A aplicação dos símbolos matemáticos + e –, em vez de escritos por extenso, o uso de fraçõesdecimais, a invenção da máquina de calcular por Blaise Pascal, em 1642, a padronização depesos, medidas e valores monetários garantiam contas mais rápidas e a exatidão de quantidadese preços, auxiliando os registros comerciais de compra e venda de mercadorias.

    O florescimento das cidades, a ascensão burguesa, as novas normas de convivência e civilidade eo fortalecimento do individualismo levaram a mudanças até nos casamentos, que começavam arespeitar as preferências de cada pessoa, ao contrário dos matrimônios arranjados da IdadeMédia. Extremamente sensível às transformações de seu tempo, coube a William Shakespeare

    criar o símbolo máximo dessa revolução: a tragédia de Romeu e Julieta (1597), dois jovensapaixonados que sacrificam suas vidas em nome do amor, pondo fim à milenar rivalidade entresuas famílias.

    O teatro, por sinal, mobilizava grandes públicos e era um veículo importante para disseminar as

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    mudanças de costumes. O próprio Shakespeare possuía, em sociedade, o Globe Theatre,localizado junto ao rio Tâmisa, na capital inglesa. As peças eram encenadas durante o verão ecom dia claro, para garantir transporte à plateia até a outra margem do Tâmisa e se encerrarcedo, pelo risco de assaltos. Os cenários eram simples, com poucos adereços, e os papéisfemininos ainda eram interpretados por homens, pois mulheres eram proibidas de representar.Elas também raramente apareciam na plateia. Algumas companhias realizavam turnês, levandoos espetáculos, recheados de críticas sociais, para públicos que viviam longe das grandes cidades,divulgando novas ideias e aumentando o interesse popular pela arte.

    Embora os efeitos do Renascimento se fizessem sentir principalmente nas cidades, os locais maisafastados também foram influenciados pelas transformações da época. A rotina dos camponesese das classes populares nunca mais seria a mesma: na forma de comer, no modo de trabalhar,nas relações sociais, na crítica aos valores estabelecidos, na relação com Deus e com o clero. Ummundo com maior presença da razão começava a ganhar força e a moldar as raízes do homemcontemporâneo.

    Mas a soberania da razão não impede a renovação dos horrores humanos: guerras religiosas epela formação de Estados, a miséria e a fome que se alastravam pela Europa, armas de fogomais potentes, a violência da conquista de novas terras e povos, a escravização de africanos. Osquestionamentos à ordem estabelecida também geraram reações conservadoras, principalmenteda Igreja. A Inquisição foi intensificada, espalhando uma atmosfera de perseguição e medo nassociedades sob a alçada do Santo Ofício, como Portugal, Espanha e Itália. Perseguiam‐se bruxas,hereges, protestantes, homossexuais, descendentes de judeus e mouros, proibiam‐se livros e adivulgação de valores contrários à moral cristã. Indivíduos eram denunciados, presos, processadose, no limite, condenados à morte. Não eram poucos os que continuavam a acreditar emsuperstições, na influência do diabo e nos castigos divinos como explicação para os problemas dodia a dia. Os pintores flamengos Hieronymus Bosch e Pieter Brueghel, em quadros como  JuízoFinal e O triunfo da Morte, retrataram os terrores que alimentavam o imaginário popular,recheado de monstros, doenças, demônios, fantasmas, vícios, seres híbridos, hermafroditas.

    Se hoje as obras de arte renascentistas são conhecidas em todo o mundo, na época eramfinanciadas por mecenas e costumavam ficar restritas a poucos, enfeitando palácios ouresidências burguesas. Foi em termos de impacto social e cultural que o Renascimento extrapoloutodos os limites. “Penso, logo existo”, filosofou Descartes. Quando o pensamento humano seliberta, um novo mundo pode existir.

     

    Angelo Adriano Faria Assisé professor da Universidade Federal de Viçosa e autor de João Nunes,um rabi escatológico na Nova Lusitânia: sociedade colonial e inquisição no nordestequinhentista (Alameda, 2011), e de Macabeias da Colônia: Criptojudaísmo feminino na Bahia(Alameda, 2012).

     

    Saiba mais ‐ Bibliografia

     

    BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália. São Paulo: Companhia das Letras,1991.

    BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. Europa, 1500‐1800 . 2. ed. São Paulo:Companhia das Letras, 1989.

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    DELUMEAU, Jean. A Civilização do Renascimento. Vol. 1. Lisboa: Editorial Estampa, 1983.