a química e a vida; the unesco courier; vol.:jan.-mar. 2011; 2011

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Correio O DA UNESCO Janeiro-Março 2011 A Química e a Vida Ciência e arte da matéria Jean-Marie Lehn Uma história e tanto Michal Meyer A Luz Tebello Nyokong Um pacto contra o câncer Anlong Xu Do negro ao verde Jens Lubbadeh Árvores sintéticas Klaus Lackner Carta a um jovem químico Akira Suzuki Em nossas colunas: Profundas afinidades Rolf-Dieter Heuer A segunda vida de Touki Bouki Souleymane Cissé ISSN 2179-8818

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Page 1: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

Correio O

DA UNESCO

Janeiro-Março 2011

A Química e a Vida

Ciência e arte da matéria

Jean-Marie LehnUma história e tanto

Michal MeyerA Luz

Tebello NyokongUm pacto contra o câncer

Anlong XuDo negro ao verde

Jens LubbadehÁrvores sintéticas

Klaus LacknerCarta a um jovem químico

Akira Suzuki

Em nossas colunas:Profundas afi nidades

Rolf-Dieter HeuerA segunda vida de Touki Bouki

Souleymane Cissé

ISSN 2179-8818

Page 2: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

Jean-Marie Lehn(França)

Klaus LacknerStephen Humphreys

(Estados Unidos)

Vanderlan da Silva Bolzani (Brasil)

Fatemeh Farjadian (Irã)

Marko Viskić (Croácia)

Vicki Gardiner (Austrália)

Ole John NielsenJes Andersen(Dinamarca)

Jens LubbadehRolf-Dieter Heuer(Alemanha)

Michal Meyer(Israel)

Tayra Lanuza-Navarro(Espanha)

Souleymane Cissé (Mali)

Bhagwan Singh Chandravanshi Shimalis Admassie

(Etiópia)

Gabrielle Lorne(Martinica - France)

Tebello Nyokong(África do Sul)

Akira SuzukiNoriyuki Yoshida(Japão)

Philip W. Boyd (Nova Zelândia)

NOSSOS AUTORES

Ana Alejandra Apaseo Alaniz (México)

Kufre Ite (Nigéria)

AIC 2011O Ano Internacional da Química 2011 (AIQ 2011), proclamado pela Assembleia Geral das Nações Unidas a partir de uma proposta da Etiópia, pretende celebrar as contribuições da química para o bem-estar da Humanidade. Sob o lema“A química: nossa vida, nosso futuro”, o Ano enfatizará o papel que esta ciência é chamada a desempenhar em áreas tão diversas como saúde, alimentação, meio ambiente, energia ou transportes. O AIC 2011 destina-se, em particular, aos jovens e aos não especialistas, convidando-os a se associar a um leque de atividades interativas, divertidas e educativas, organizadas em todo o mundo (http://www.chemistry2011.org/).

O ano de 2011 comemora o centenário da atribuição do Prêmio Nobel de Química a Marie Sklodowska-Curie e da criação, em Paris, da Associação Internacional das Sociedades de Química que, em 1919, se tornou a União Internacional de Química Pura e Aplicada (em inglês IUPAC, The International Union of Pure andApplied Chemistry).

Com sede em Zurique (Suíça), a IUPAC foi fundada por especialistas em química oriundos de círculos acadêmicos e industriais com o objetivo de incentivar a cooperação internacional no âmbito da química, além de lançar pontes entre a pesquisa científi ca, as aplicações na indústria e o setor público. É graças à IUPAC que os químicos do mundo inteiro dispõem de uma “linguagem comum”: nomenclatura, símbolos, terminologia, massas atômicas padronizadas etc. Esta União é formada por 54 sociedades e organizações nacionais, além de três membros associados.

O AIQ 2011 é organizado em parceria da UNESCO e da IUPAC com empresas privadas. O Ano Internacional foi lançado, em 27 de Janeiro de 2011, na sede da UNESCO, em Paris, com a participação de um grande número de pesquisadores e engenheiros de renome.

Ano Internacional

daQUÍMICA

AIC 2011

© DR

Anlong Xu (China)

Sunil ManiShiraz SidhvaSomnath Das (Índia)

Page 3: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

Editorial – Irina Bokova, diretora-geral da UNESCO 5

DOSSIÊ: A QUÍMICA E A VIDA

Química : ciência e arte da matéria – Jean-Marie Lehn 7

Química, uma história e tanto 10Os antepassados da Química – Michal Meyer 11

Os infortúnios de um alquimista bastante materialista

Tayra M.C. Lanuza-Navarro 13

A Química na vida cotidiana 17O fio condutor da minha carreira é a luz

Tebello Nyokong responde as perguntas de Cathy Nolan 18

Atenção com a saúde do país – Bhagwan Singh Chandravanshi 21

O metal e o vegetal: um pacto contra o câncer – Anlong Xu 22

O primado da natureza – Vanderlan da Silva Bolzani 24

O boom da indústria farmacêutica na Índia

Entrevista com Sunil Mani, feita por Shiraz Sidhva 25

Uso saudável do ecossistema marinho – Vicki Gardiner 28

A Química em plena renovação 29Como desativar as bombas de pressão dos aerosóis

Jes Andersen conversa com Ole John Nielsen 30

Mudanças climáticas: o Plano B

O ferro contra a anemia do mar – Philip W. Boyd 32Árvores sintéticas – Katerina Markelova entrevista Klaus Lackner 33Vênus... ao socorro da Terra ! – Jasmina Šopova 34

Do negro ao verde – Jens Lubbadeh 35

Carta a um jovem químico

Akira Suzuki responde as perguntas de Noriyuki Yoshida 39

Aspirantes a químicos ao redor do globo terrestre 42

Estudar Química na Etiópia – Shimalis Admassie 44

POST-SCRIPTUM

Ciências sem fronteiras – Susan Schneegans 46

A UNESCO e o CERN: uma história de profundas afinidades

Rolf-Dieter Heuer, Diretor-geral do CERN, é entrevistado por Jasmina Šopova 48

Arte ligando culturas – Stephen Humphreys 51

A segunda vida de Touki Bouki Entrevista com Soouleymane Cissé por Gbrielle Lorne 53

O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1 . 3

Correio O

DA UNESCO

Janeiro-Março 2011

O Correio da UNESCO é publicado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. 7, place de Fontenoy 75352 Paris 07 SP, Françawww.unesco.org/courier

Diretor da publicação: Eric Falt

Editora-chefe: Jasmina Šopova [email protected]ária de Redação: Katerina [email protected]

Editores: Inglês: Peter Coles Árabe: Bassam Mansour assisté par Zaina Dufour Chinês: Weiny Cauhape Espanhol: Francisco Vicente-Sandoval Francês: Françoise Demir Português:  Ana Lúcia Guimarães Russo: Irina Krivova

Fotos: Eric Bouttier Editoração: Baseline Arts Ltd, OxfordImpressão: UNESCO – CLDInformações e direitos de reprodução: + 33 (0)1 45 68 15 64 . [email protected] internet: Fabienne Kouadio, Chakir Piro e Van Dung Pham Agradecimentos a: Danica Bijeljac, Fabienne Dumur, Cathy Nolan, Michel Ravassard, Marie Renault, Susan Schneegans e Fan Xiao

Os artigos podem ser reproduzidos sob a condição de estarem acompanhados do nome do autor e da menção “Reproduzido do Correio da UNESCO”, precisando a data da edição.

Os artigos exprimem a opinião de seus autores e não necessariamente a da UNESCO.

As fotos que pertencem à UNESCO podem ser reproduzidas com a menção ©UNESCO seguida do nome do fotógrafo. Para obter as fotos em alta resolução, favor dirigir-se ao Banco de Fotos: [email protected].

As fronteiras retratadas nos mapas não implicam em reconhecimento oficial pela UNESCO ou pelas Nações Unidas, assim como as denominações de países ou de territórios mencionados.  

��Fibras de cristais de barita. A barita é utilizada principalmente

na indústria petrolífera, mas também na medicina (radiografias

do tubo digestivo) e na construção civil (concreto pesado anti-

radiação). © SPL

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4 . O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O - M A R Ç O 2 0 1 1

Neste númeroEm 1932, o médico alemão Gerhard Domagk confirmou os efeitos anti-bacterianos de um novo corante desenvolvido por um conglomerado de empresas, a IG Farben (abreviatura de Interessen-Gemeinschaft Farbenindustrie AG). Sete anos mais tarde, esse produto, o Prontosil, lhe rendeu o Prêmio Nobel que, no entanto, teve de recusar sob pressão do regime nazista. Atualmente, a cientista sul-africana Tebello Nyokong continua inventando novos medicamentos contra o câncer a partir de moléculas que, habitualmente, são utilizadas como corantes para fabricar o jeans. Longe de ser algo pitoresco, essas descobertas marcaram a evolução de uma ciência bem atraente: a Química. Os artigos propostos nesta nova edição do Correio da UNESCO irão permitir a cada um ter uma ideia mais completa a respeito de seus avanços.

“A química está tão presente em nosso cotidiano que, muitas vezes, ela passa desperce-bida”, lembra Jean-Marie Lehn, laureado francês do Prêmio Nobel de Química de 1987. “Um mundo privado de Química”, observa em seu artigo introdutório, “seria um mundo sem materiais sintéticos, portanto, sem telefone, computador, cinema […], aspirina, sabão, xampu, creme dental, cosméticos, pílulas anticoncepcionais, papel, logo, sem jornais, livros, colas e pinturas” (p. 8).

Depois de ter delineado a pré-história da Química “que surgiu no dia em que nossos antepassados deixaram a animalidade” (p. 11-16), vamos nos interessar por suas aplicações, em particular, na área da Medicina. Eis uma oportunidade de nos questionarmos a respeito das interações entre natureza, pesquisa e indústria, tanto na África

do Sul, quanto na Austrália, passando pelo Brasil, China, Etiópia e Índia (p. 17-28).

É importante reconhecer que a Química é uma ciência com a dupla face de Jano: por um lado encarna os benefícios trazidos à humanidade, e por outro representa os danos causados pela poluição. A catástrofe que atingiu a Hungria, em outubro passado, disparou uma vez mais o alarme (p. 35) – motivo suplementar para nos debruçarmos sobre as soluções fornecidas pela Química para a poluição que ela provoca. Também, atravessamos a China, a Europa, os Estados Unidos e a Nova Zelândia para descobrir – em particular, na companhia de Philip W. Boyd e Klaus Lackner – as tentativas de combater o aquecimento de nosso Planeta em decorrência das mudanças climáticas (p. 32-33).

Indício promissor é o fato de que as indústrias “estão agindo, agora, de maneira muito mais res-ponsável” (p. 31), como destaca o dinamarquês Ole John Nielsen membro do GIEC (Groupe d’experts intergouvernemental sur l’évolution du climat). A Química está em via de se tornar a nova ciência, tão acalentada pelo pesquisador japonês Akira Suzuki, Prêmio Nobel da Química 2010 (p. 39-41). As novas gerações de químicos estarão em condições de apresentá-la em seus aspectos mais favoráveis (p. 42-43).

Como complemento ao dossiê, este número de O Correio apresenta um resumo do Relatório da UNESCO sobre a Ciência 2010 que comemora o aniversário da criação do CERN (Organisation européenne pour la recherche nucléaire) e volta-se para a Cultura, no encerramento do Ano Internacional pela Aproximação das Culturas 2010. – Jasmina Šopova

��Encanamento à vácuo, antigamente usada para a síntese em fase gasosa. Peça da coleção histórica da Universidade de Copenhague (Dinamarca).© Mikal Schlosser

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O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1 . 5

Nossa compreensão do mundo material depende do nosso conhecimento de Química, assim como da nossa capacidade de nos servir adequadamente das descobertas ocorridas nessa área. Os elementos químicos encontram-se no âmago de qualquer matéria conhecida; eles interveem em todos os processos da vida animada. Devemos à Química moderna a maior parte dos avanços terapêuticos e dos progressos na área da alimentação e da tecnologia realizados no século XX. Essa ciência revolucionou a fabricação de fármacos, roupas e cosméticos, bem como a difusão de energia e a produção de aparelhos tecnológicos. Onipresente em nossa vida cotidiana, torna-se essencial conhecê-la melhor para saber utilizá-la melhor.

Por iniciativa da Etiópia, as Nações Unidas declararam 2011 o Ano Internacional da Química (AIQ 2011) e confiaram sua organização à UNESCO. Trata-se de um momento privilegiado para melhor conhecer esta ciência, assim como sua contribuição para compreensão, controle e transformação da matéria. É também uma oportunidade para que a UNESCO venha redobrar seus esforços em áreas que são de sua alçada: a cooperação e a diplomacia científicas, o fortalecimento das capacidades de pesquisa dos Estados-membros, o ensino científico de qualidade para todos, do qual a Química constitui um aspecto essencial. Ao comemorar

o centenário da atribuição do Prêmio Nobel de Química à Marie Curie, o AIQ 2011 oferece-nos igualmente um quadro ideal para prestar homenagem e promover a contribuição das mulheres à área científica. Homenagem que estamos prestando desde o dia do lançamento do Ano, com a ida da cientista Hélène Langevin-Joliot – neta de Marie Curie e filha de Irène Joliot-Curie – à sede da UNESCO, para proferir uma conferência sobre o papel das mulheres no domínio da química.

O último “Relatório Mundial sobre a Ciência”, publicado pela UNESCO em novembro de 2010, mostrou a importância da ciência e da diplomacia científica a serviço da paz e do desenvolvimento. Pesquisas básicas sobre os componentes da matéria exigem recursos colossais e a participação de um grande número de pesquisadores em todo o mundo. Isso requer, necessariamente, o fortalecimento da cooperação internacional e uma melhor distribuição dos recursos para pesquisa em escala planetária. A UNESCO está envolvida em tal processo graças a iniciativas como o Centro de Pesquisa SESAME no Oriente Médio, no qual a Química é um importante componente.

A Química de amanhã deve ser, antes de mais nada, uma ciência responsável. É certo que ela irá desempenhar um papel de primeiro plano no desenvolvimento de energias alternativas e

EditorialIrina Bokova

��Irina Bokova, diretora-geral da UNESCO, e o astrofísico canandense Hubert Reeves, por ocasião da conferência sobre o declínio da biodiversidade, na sede da Organização, em 3 de novembro de 1099.© UNESCO/M. Ravassard

É um momento

privilegiado

para melhor se

fazer conhecer

esta ciência e

sua contribuição

para a

compreensão,

o controle e a

transformação

da matéria.

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6 . O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1

de alimentação para uma população mundial cada vez mais numerosa. As descobertas da Química podem ajudar a enfrentar os desafi os das mudanças climáticas em âmbito mundial: sem elas, não existiriam painéis solares, nem biocombustíveis… Elas podem, também, facilitar o acesso a fontes de água não poluída. Lançado na sequência do Ano Internacional da Biodiversidade (2010), o Ano Internacional da Química integra-se perfeitamente ao contexto da “Década das Nações Unidas para a Educação para o Desenvolvimento Sustentável” (2005-2014).

A Química do amanhã deve ser, também, uma ciência compartilhada. A ausência, na prática, de uma “cultura geral na área da Química”, comparada com a cultura no âmbito da astronomia e da matemática, impede o acesso das pessoas a realidades que nos afetam no cotidiano e inibe nossa capacidade coletiva de nos tornarmos parte integrante dessas experiências de vida. Tal desconhecimento incentiva, também, sua relativa demonização junto ao grande público que, frequentemente, a considera poluente ou nociva. É imperativo aprimorar e acelerar seu ensino, formar hoje os futuros químicos e fornecer a todos, em toda a parte no mundo, a possibilidade de compreender

os processos químicos e avaliar o impacto de suas aplicações. O interesse por essa ciência apaixonante é uma alavanca estratégica para o desenvolvimento. Empenhemo-nos em utilizar melhor tal conhecimento.

A fi m de despertar a curiosidade dos jovens, a UNESCO e a União Internacional da Química Pura e Aplicada (IUPAC – The International Union of Pure and Applied Chemistry) – seu principal parceiro na organização do AIQ 2011, e que comemora, neste ano, seu centenário – lançam uma experiência de envergadura mundial, única em seu gênero, para ajudar os alunos a conhecer melhor nosso recurso natural mais precioso: a água. Em todo o mundo, as escolas farão testes de qualidade e de purifi cação da água e estarão em condições de compartilhar seus resultados.

A melhor compreensão das descobertas da ciência, em geral – e da Química, em particular – é uma prioridade para os próximos anos. Na condição de agência especializada das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, a UNESCO implementará todos os esforços possíveis para atingir tal objetivo. Está em questão nossa capacidade coletiva para tomar decisões plenamente informados e para agir sobre o mundo de uma forma responsável. �

ATRIBUIÇÃO DO PRÊMIO NOBEL DE QUÍMICA A MULHERES:

BALANÇO BEM PRECÁRIO

A primeira mulher reconhecida com o Prêmio Nobel de Química

foi Marie Curie. Foi há 100 anos. Desde então, o número de

laureadas em Química tem sido bem modesto. A essa lista, foram

acrescentados apenas outros três nomes: Irène Joliot-Curie, Dorothy

Mary Crowfoot Hodgkin e Ada Yonath.

Desde sua criação, em 1901, o Prêmio Nobel foi atribuído – contando todas as áreas – a 40 mulheres (1), incluindo a dupla atribuição a Marie Curie. Nascida em Varsóvia (Polônia), em 1867, Maria Skłodowska (e por casamento, Curie) obteve, em 1903, o Prêmio Nobel de Física (atribuído, também, a Pierre Curie e a Henri Becquerelle, ambos franceses), antes de ser reconhecida, em 1911, “pelos serviços prestados ao avanço da Química em decorrência de sua descoberta dos elementos Rádio e Polônio”.

Em 1935, é a vez de sua fi lha, Irène, compartilhar com o esposo, o francês Frédéric Joliot-Curie, esse prestigioso prêmio “como reconhecimento por suas sínteses de novos elementos radioativos”.

Foi necessário esperar praticamente três décadas para que outra mulher viesse a chamar a atenção da Academia Real de Ciências da Suécia: em 1964, Dorothy Mary Crowfoot Hodgkin (Reino Unido) é reconhecida “por ter determinado, mediante a técnica dos Raios X, a estrutura de importantes substâncias biológicas”.

Finalmente, 45 anos mais tarde, a israelense Ada Yonath compartilha o Prêmio Nobel de Química com o indiano Venkaterman Ramakrishnan e com o norte-americano Thomas Steitz, “por seus estudos da estrutura e da função do ribossomo”. No ano anterior, Ada Yonath havia recebido o Prêmio L’Oréal-UNESCO para Mulheres na Ciência – 2008.

Lançado pela L’oréal e pela UNESCO em 1998, o Programa “Mulheres na Ciência” (apoia mulheres envolvidas na pesquisa científi ca, designando anualmente uma laureada por continente. Além disso, 15 bolsas internacionais são concedidas anualmente, desde 2000, a jovens pesquisadoras cujos projetos tenham sido aceitos por laboratórios de renome fora de seu país de origem. J.Š.

1. Química 4; física 2,

medicina 10, literatura 12;

paz 12.

��En 1967, Le Courrier de l’UNESCO a consacré un numéro à Marie Curie.© UNESCO

Uma “cultura

geral da química”

quase ausente,

comparada

à cultura da

astronomia ou

da matemática,

impede o acesso

das pessoas a

realidades que

nos afetam no

cotidiano e inibe

nossa capacidade

coletiva de nos

tornarmos parte

integrante dessas

experiências

de vida.

Page 7: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1 . 7

E D I T O R I A L

A Química desempenha um papel primordial na nossa vida cotidiana, tanto por sua posição no âmago das ciências naturais e do conhecimento, quanto por sua importância econômica e por sua onipresença. Em virtude de estar presente por toda a parte, acabamos por esquecê-la; além disso, ela corre o risco de passar completamente despercebida. Ela não serve de espetáculo, mas, sem sua contribuição, as realizações a que se atribui o qualificativo de espetacular não chegariam a concretizar-se: façanhas na área terapêutica, proezas espaciais, prodígios da técnica etc. Ela contribui, de maneira determinante, para satisfazer as necessidades da

humanidade no que diz respeito à alimentação e aos medicamentos, ao vestuário e à habitação, à energia e às matérias-primas, aos transportes e às comunicações. Ela fornece materiais à Física e à indústria; modelos e substratos à Biologia e à Farmacologia; além de propriedades e de procedimentos às ciências e à tecnologia.

Um mundo destituído de Química seria um mundo sem materiais de síntese, portanto, sem telefone, computador, cinema, tecidos sintéticos; seria, também, um mundo sem aspirina, sabão, xampu, creme dental, cosméticos, pílulas anticoncepcionais, papel, portanto, sem jornais, livros, colas, pinturas.

Química: ciência e arteda matéria Jean-Marie Lehn

A Química é uma ciência cujo objetivo não se limita à descoberta, mas inclui também e,

sobretudo, a criação. Neste aspecto, ela é a arte da complexidade da matéria. Para apreender

a lógica das últimas evoluções da Química, convém dar um salto para trás, no tempo, de uns

quatro bilhões de anos.

“Sonhe alto

a sua pesquisa ”

– Roland Barthes

��A Química está na origem da vida. Desenho original de

Sejung Kim, República

da Coreia.

© Sejung Kim

Page 8: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

8 . O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1

É importante não esquecer que, além de fornecer ajuda aos historiadores da arte para desvendar alguns dos segredos da fabricação de pinturas e esculturas que podem ser admiradas nos museus,– a Química permite que os detetives da polícia científica procedam à análise de amostras encontradas nos locais de crime a fim de identificarem mais rapidamente os culpados. Além disso, revela as sutilezas moleculares das iguarias que encantam nossas papilas gustativas.

Ao lado da Física que decifra as leis do universo e da Biologia que decodifica as regras do ser vivo, a Química é a ciência da matéria e de suas transformações. A vida é a sua expressão mais elevada. Ela desempenha um papel primordial em nossa compreensão dos fenômenos materiais, bem como em nossa capacidade de agir sobre eles, de modificá-los e de mantê-los sob controle.

Desde há praticamente dois séculos a Química molecular elaborou uma ampla gama de moléculas e de materiais cada vez mais sofisticados: da síntese da ureia, em 1828, que provocou uma verdadeira revolução ao fornecer a prova de que era possível obter uma molécula “orgânica” a partir de um composto mineral, – até o pleno desenvolvimento, da síntese da vitamina B12 na década de 1970, essa disciplina não deixou de afirmar sua hegemonia sobre a estrutura e a transformação da matéria.

A molécula considerada um cavalo de Troia

Para além da Química molecular estende-se o imenso domínio da Química chamada supramolecular, que se interessa não pelo que se passa nas moléculas, mas pelo que se trama entre elas. Seu objetivo consiste em compreender e controlar a maneira como as moléculas interagem umas com as outras, se transformam e se encaixam, ignorando outros parceiros. O cientista alemão, Emil Fischer – Prêmio Nobel da Química em 1902 – utilizava a imagem da chave e da fechadura. Atualmente, falamos de “reconhecimento molecular”.

O papel dessas interações moleculares é mais marcante no campo biológico: unidades proteicas reúnem-se para formar a hemoglobina; os glóbulos brancos reconhecem e destroem os corpos estranhos; o vírus da Aids encontra seu alvo para circunscrevê-lo; o código genético é transmitido por meio da escrita e da leitura do alfabeto relativo às bases proteicas etc. Vejamos o exemplo bem expressivo da “auto-organização” que ocorre com o vírus do mosaico do tabaco (TMV - Tobacco mosaic virus): 2.130 proteínas, no mínimo, reúnem-se para formar uma torre helicoidal.

A eficácia e a elegância desses fenômenos naturais são tão fascinantes para um químico

que ele é tentado a reproduzi-los ou inventar novos processos que permitam criar novas arquiteturas moleculares com múltiplas apli-cações. Por que não imaginar, por exemplo, moléculas capazes de transportar um fragmento de DNA para o âmago de um alvo escolhido, destinado à terapia genética? Essas moléculas seriam “cavalos de Tróia” que levariam seus passageiros a atravessar barreiras consideradas intransponíveis, tais como as membranas celulares.

Um grande número de pesquisadores no mundo inteiro constroem, pacientemente, “sob medida”, estruturas supramoleculares: eles observam como as moléculas, misturadas sem ordem aparente, se encontram por si mesmas, se reconhecem e, em seguida, progressivamente, se reúnem para chegar – de maneira espontânea, mas perfeitamente controlada – ao edifício supramolecular final.

Assim, inspirada nos fenômenos que a natureza nos apresenta, germinou a ideia de suscitar e guiar o surgimento de reuniões supramoleculares ou, em outras palavras, de promover a “programação molecular”. O especialista em Química concebe tijolos de base (moléculas dotadas de algumas propriedades estruturais e baseadas em interações); em seguida, aciona o “cimento” (o código de reunião) encarregado de ligá-los. Assim, ele obtém uma superestrutura por auto-organização. A síntese dos tijolos moleculares capazes de se auto-organizarem é muito mais simples do que seria a síntese do edifício final. Essa linha de pesquisa abre amplas perspectivas, em particular no âmbito das nanotecnologias: em vez de fabricar as nanoestruturas, deixa-se que as elas mesmas se fabriquem por auto-organização, passando assim da fabricação para a autofabricação.

Ainda mais recentemente, surgiu uma Química chamada adaptativa, na qual o sistema, para se construir, efetua por si mesmo uma seleção entre os tijolos disponíveis, tornando-se capaz de adaptar a constituição de seus objetos como resposta às exigências do meio ambiente. Esta Química – à qual atribuo o qualificativo de “Química constitucional dinâmica” – exibe, assim, uma coloração Darwinista!

Da matéria à vida

No início, deu-se a explosão original, o Big-Bang, e reinou a física. Em seguida, veio a Química,

Satis utilitas catelli corrumperet lascivius apparatus bellis. Utilitas syrtes insectat chirographi, utcunque plane verecundus umbraculi praemuniet pessimus quinquennalis agricolae.

“Quando a natureza para de produzir

suas próprias espécies, o homem

começa, utilizando coisas naturais e

com a ajuda dessa mesma natureza, a

criar uma infinidade de espécies…”

– Leonardo da Vinci

Page 9: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

com temperaturas mais clementes: as partículas formaram átomos, que se uniram para produzir moléculas cada vez mais complexas que, por sua vez, se associaram em agregados e membranas, dando origem, assim, às primeiras células das quais emergiu a vida em nosso planeta, a uns 3,8 bilhões de anos.

Da matéria dividida à matéria condensada e, em seguida, organizada, viva e pensante, o desenvolvimento do universo impulsiona a evolução da matéria em direção a uma complexidade crescente por auto-organização sob a pressão da informação. A tarefa da Química consiste em revelar as vias da auto-organização e em delinear os caminhos que levam da matéria inerte, via uma evolução pré-biótica puramente química, até a criação da vida e, mais além, à matéria viva e em seguida pensante. Ela fornece, assim, recursos para questionar o passado, aprofundar o conhecimento do presente e lançar pontes para o futuro.

Por seu objeto (a molécula e a matéria), a Química manifesta seu poder de criação, sua capacidade de produzir moléculas e novos materiais – novos pelo fato de não terem existido antes de serem criados por recomposição dos arranjos dos átomos em combinações e estruturas inéditas e infinitamente variadas. Pela plasticidade das formas e das funções do objeto químico, a Química tem alguma analogia com a arte. À semelhança do artista, o químico imprime na matéria os produtos de sua imaginação: a pedra, os sons e as palavras não contêm a obra modelada, respectivamente, pelo escultor, pelo compositor e pelo escritor. Da mesma forma, o químico cria moléculas originais, novos materiais e propriedades inéditas a partir dos elementos que compõem a matéria.

A característica própria da Química não é apenas descobrir, mas inventar e, sobretudo, criar. O livro de Química não deve ser apenas lido, mas escrito. A partitura da Química não deve ser apenas tocada, mas composta. �

J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1 . 9

Jean-Marie Lehn, especialista em Química

supramolecular, é laureado do Prêmio Nobel

de Química em 1987, em companhia de

Donald Cram e de Charles Pedersen. Professor

emérito da Universidade de Estrasburgo,

professor honorário do Collège de France

e membro da Académie des sciences, ele

criou o Institut de science et d’ingénierie

supramoléculaires (ISIS - Instituto de Ciência e

Engenharia Supramolecular) de Estrasburgo.

http://www-isis.u-strasbg.fr/

��Cristal de Witherite. O cristal permite elucidar as relações entre as propriedades, a composição química e a organização dos átomos nos materiais. Os químicos “cultivam” os cristais para os estudar, os visualizar e imaginar suas novas formas. Isso os permite descobrir novos materiais com múltiplas aplicações. © SPL

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1 0 . O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O - M A R Ç O 2 0 1 1

Química: uma história e tanto!

À semelhança de Monsieur Jourdain*, que havia

falado sempre em prosa sem o saber, nós fazemos

Química sem que, obrigatoriamente, tenhamos

consciência disso. Desde os primórdios, todos

os seres vivos – incluindo animais e plantas

– fabricaram, por meio de reações químicas,

os compostos orgânicos necessários à vida.

Em seguida, com a ajuda da intuição, nossos

antepassados inventaram as decocções(1),

colorantes e ligas de metais. Da natureza, eles

extraíram elixires, aromas, e fármacos. O ferro no

Níger, a tapiragem entre os ameríndios, o papel

na China, são outras provas das transformações

– às vezes, drásticas – que o homem infligiu à

matéria antes de conhecer as leis da Química. Ele

foi utilizando métodos cada vez mais sofisticados –

certamente algumas vezes absurdos – mas sempre

inspirados na natureza até o surgimento, no século

XVIII, da Química moderna.

Gravura representando a bomba à água de Boyle, tirado de Novos Experimentos Físico-Mecânicos, Tocando a Primavera do Ar e seus Efeitos, 1660. © Com a amável autorização da Biblioteca Química Histórica Roy G. Neville (Chemical Heritage Foundation)

* N.T.: Personagem principal da peça Le Bourgeois gentilhomme, de Molière (encenada pela 1ª vez, em 1670): em suas tentativas para ascender do status como membro da classe média e ser aceito como um cavalheiro aristocrata, ele acaba sempre por representar um papel ridículo.

Page 11: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

Os antepassados da Química Michal Meyer

No limiar do século XVIII, Augusto, o Forte, eleitor da Saxônia e rei da Polônia, mandou prender Johann Friedrich Böttger em seu laboratório, dando-lhe a ordem de fabricar ouro. O jovem alquimista fracassou no que diz respeito à encomenda real, mas contribuiu para a criação de uma substância muito mais atraente e mais útil: a porcelana. E como nos contos com um final feliz, a descoberta agradou ao rei: posto que o mundo já não era feudal, estava surgindo a sociedade de consumo e, mediante uma enorme despesa, é que era possível, na época, importar a preciosa mercadoria da China, região mais avançada do ponto de vista técnico, para alimentar um crescente desejo de beleza e luxo que se manifestava na Europa. Em pouco tempo, a nova porcelana de Meissen – cidade às margens do rio Elba (atualmente, na Alemanha) – tornou-se de tal modo cobiçada que era insuficiente para as encomendas. Tendo enriquecido com o negócio, o rei acabou atribuindo a Böttger, simples

aprendiz de farmacêutico, o título de barão, como sinal de reconhecimento.

Mais uma história, dessa vez menos elegante. Em Hamburgo, por volta de 1669, Hennig Brandt acredita que, finalmente, descobriu a famosa pedra filosofal, aquela que transforma o chumbo em ouro, além de revelar os segredos do cosmos. Ex-soldado, Brandt sabia fabricar vidro. Servindo-se de um pouco de urina, ele a ferveu e esquentou os resíduos até que vapores luminosos – o fósforo branco que reage em contato com o oxigênio – encheram seu destilador. Alguns anos mais tarde, após Brandt ter vendido seu segredo, o fósforo era bastante conhecido por Isaac Newton – que, às escondidas, se aplicava à alquimia – e divulgou a respectiva fórmula começando com estas palavras: “Arranjem um tonel de urina”. Ingrediente difícil de se encontrar, como se sabe!

Da urina até a arte… outra transformação: no final do século XVIII, a descoberta de Brandt foi

��Água-forte de James Gillary, representando uma visão satírica de uma conferência pública feita no Instituto Real de Londres, no início do século XIX. © Com a amável autorização

das Coleções da Fundação do

Patrimônio da Química.

Foto: Gregory Tobias.

A Química

surgiu no dia

em que nossos

antepassados

conseguiram

superar a

animalidade.

O homem

passa a existir

ao transformar

a matéria.

Page 12: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

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O SAPO E O PAPAGAIO

“Os Achagua do alto Meta – afluente do Orinoco, em território colombiano – conhecem procedimentos mediante os quais eles conseguem fazer crescer penas de várias cores em seus papagaios, aumentando assim o valor e o preço desses aves, seja para vendê-las, seja para utilizá-las em suas festas. Eles obtêm esse resultado da seguinte forma: ‘tendo capturado um sapo vivo, eles vão picá-lo várias vezes com uma espinha até fazer sangue. Em seguida, vão colocá-lo em um pote e cobrem as feridas com pimenta e pimentão moído. O animal, enraivecido com esse tratamento cruel, destila lentamente o que há de mais ativo em seus humores que se mistura com o veneno e com o sangue. A essa mescla, eles adicionam determinada poeira vermelha a que atribuem o nome de chica e, misturando esses ingredientes extraordinários, eles fazem um verniz. Em seguida, tendo arrancado as penas do papagaio,

este é untado com esse verniz que é introduzido com a ponta de uma vara nos buracos que as penas deixam na pele. O papagaio não deixa de sofrer com essa operação porque, durante vários dias, ele comporta-se como uma galinha abatida, completamente amarrotado e triste. Após algum tempo, ele retoma suas penas que se tornaram, neste caso, tão esplêndidas e tão atraentes que é um motivo de admiração ver a beleza e a elegância com que elas cresceram. Então, sobre as penas, é possível observar manchas vermelhas com um fundo amarelo que se destacam com uma admirável variedade entre as penas verdes’.”

Esta descrição pitoresca da tapiragem praticada por um povo indígena da Colômbia é obra do jesuíta espanhol, Juan Rivero (Historia de las misiones de los llanos de Casanare

y los Rios Orinoco y Meta, obra redigida em 1728 e publicada em 1883). Ela é citada por Alfred Métraux – antropólogo norte-americano de origem suíça e ex-funcionário da UNESCO – em seu artigo Uma descoberta biológica dos índios da América do Sul: a descoloração artificial das penas em aves vivas (Une découverte biologique des Indiens de l’Amérique du Sud: la décoloration artificielle des plumes sur les oiseaux vivants, Journal de la Société des Américanistes. Tomo 20, 1928. pp. 181-192).

“Ao extrair (das aves) criadas por eles as penas de que têm necessidade,

os índios evitam a fadiga da caça e o risco de danificá-las se viessem

a matá-las com flechas”, afirma o antropólogo que atribui a

divulgação da tapiragem, na Amazônia, aos povos Arawak, cuja migração teria começado há uns três milênios. – J.Š.

imortalizada em um quadro de Joseph Wright of Derby e, em seguida, de novo, em uma gravura de William Pether, em 1775, com este título retum-bante – “A descoberta do fósforo” – na qual se vê o alquimista em êxtase diante da deslumbrante maravilha. Muitos anos depois, em 1943, uma nova transformação: a cidade natal de Brandt seria destruída pelas chamas, atingida por centenas de quilos de fósforo sob a forma de bombas.

O cru e o cozido

A argila em porcelana, a urina em fósforo, o fósforo em bombas, a farinha em pão, a uva em vinho, os minerais em pigmentos... no que diz respeito a transformar a matéria, nossas possibilidades são praticamente ilimitadas.

O primatólogo britânico, Richard Wrangham, chega mesmo a pensar que nos tornamos seres humanos graças ao ato de cozinhar, que acabou fornecendo o suplemento de energia necessária ao crescimento de nossos cérebros. Seria possível dizer que a Química surgiu no dia em que nossos antepassados conseguiram superar a animalidade. Homo chemicus: o homem passa a existir ao transformar a matéria. Mas, como somos seres humanos, tais transformações revelam também o que há de melhor – e de pior – em nós.

Se é impossível remontar ao primeiro instante da Química em que o a comida crua se transformou em cozida, estamos mais bem informados sobre os homens pré-históricos e aspiração deles ao que é belo. No Centro

�Um alquimista apresenta ouro líquido à corte causando estupefação. Transformar o chumbo em ouro é um sonho que persistiu até o século XVIII.© Com a amável autorização

das Coleções da Fundação do

Patrimônio da Química.

Foto: Gregory Tobias

© DR

Page 13: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

de Pesquisa e de Restauração dos Museus da França (Centre de recherche et de restauration des musées de France), Philippe Walter manifesta um verdadeiro interesse pelos procedimentos e pelas substâncias químicas da Antiguidade e da pré-história. Em seu entender, nossos antepassados ignoravam a razão e a maneira como funcionam as reações na área da Química, mas eram capazes de associar os ingredientes naturais para a produção de pigmentos, seja para enfeitarem a si mesmos ou decorar as paredes das grutas. Há 4.000 anos, segundo Walter, os egípcios já haviam sintetizado novas substâncias para tratar doenças dos olhos. Estimulantes do sistema imunológico, tais cosméticos, à base de chumbo – lembrem-se de Cleópatra e de seu kohl (ver destaque na página 15) – estão entre os primeiros produtos de saúde e beleza do mundo.

Al-kimiya

O Egito helenístico designou o refi no dos metais pela palavra chemia. Desde o advento do Islã, os eruditos muçulmanos empenharam-se na tradução dos textos gregos, incluindo as obras relacionadas à chemia, que usavam o qualifi cativo de al-kimiya. A maneira de transformar a matéria, purifi car as substâncias, colorir os metais: tudo isso era al-kimiya. Esse fascínio levou também ao aperfeiçoamento das técnicas, como destilação e cristalização, que continuam sendo essenciais para nossos laboratórios do séc. XXI. Em um nível mais teórico, os cientistas muçulmanos enriqueceram

Os infortúniosde um alquimista bastante materialistaEm 1603, Giraldo Paris completava 33 anos de estada em Madri, cidade na qual ocupava a função de conselheiro de Filipe II para os assuntos relacionados com a Flandres. Crescido na Antuérpia, fez fortuna no comércio de especiarias. Costumava convidar para sua mesa todos os fl amengos da corte espanhola, rodeando-se de embaixadores e dignitários, além de farmacêuticos, médicos e cientistas. Depois de se retirar do comércio com uma imensa fortuna, Giraldo Paris passou a nutrir uma paixão pela alquimia: ele se interessava pelos conhecimentos dos joalheiros, boticários, destiladores e ervanários.

Nesse ano, Paris foi denunciado por inimigos fi gadais à Inquisição sob o pretexto de heresia. Por ocasião do processo que aconteceu em agosto, alguém declarou que o fl amengo “extraía quintessências, fl ores do metal e sais de ervas”. Além disso, afi rmou-se que ele era um grande fi lósofo da natureza que se interessava pelos “segredos da arte química”. Paris foi condenado a um ano de prisão em um mosteiro e a pagar uma elevada multa.

Relatada desta forma, sua história parece ser semelhante à de um homem perseguido pela Inquisição espanhola em decorrência de suas atividades de alquimista. Porém, a realidade é mais complexa. As destilações, as experiências com os metais, as extrações de substâncias vegetais não eram os verdadeiros motivos de preocupação para os inquisidores que o haviam julgado. A razão dessa condenação residia nas explicações fornecidas por nosso alquimista sobre algumas questões religiosas. Giraldo Paris tinha explicado, por exemplo, a virgindade de Maria comparando-a ao procedimento alquímico que consiste em misturar uma matéria pura com outra e, em seguida, reencontrar, no fi nal da operação, a primeira matéria intata “sem que ela tivesse perdido qualquer virtude […] imaculada tal como era no estado inicial”.

Então, a Inquisição condenou Giraldo Paris, não por suas atividades ocultistas, mas por suas “teses errôneas”. Nessa época, Madri acolhia numerosos alquimistas que não eram perseguidos por suas práticas. Mas essa situação não evitou que um grande número de suas obras se encontrassem no Index dos livros proibidos. Entre estes, fi gurava também o Theatrum Chemicum, a mais completa compilação de saberes alquímicos do século XVII, na Europa. A obra era tão importante que a Inquisição foi obrigada a retirar a proibição a seu respeito, mas não deixou de expurgá-la.

Portanto, até prova em contrário, os alquimistas eram perseguidos pela Inquisição, não por suas ações, mas por suas convicções sobre as coisas da matéria que não estavam em conformidade com o dogma.

Tayra M.C. Lanuza-Navarro de nacionalidade espanhola, é uma

historiadora das ciências; atualmente, ela trabalha em um projeto

sobre as obras de alquimia, datadas do início da Era Moderna.

Tayra M.C. Lanuza-Navarro

�“A Farmácia Rústica” , 1775. O famoso curandeiro suíço Michel Schuppach examina a urina de um paciente em sua farmácia.© Com a amável autorização das Coleções da

Fundação do Patrimônio da Química.

Foto: Gregory Tobias.

�Nos laboratórios dos alquimistas, via-se com frequência jacarés que pendiam do teto. © Com a amável autorização das Coleções da

Fundação do Patrimônio da Química.

Foto: Gregory Tobias.

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as concepções gregas da matéria – os quatro elementos o ar, a terra, o fogo e a água – e de seu comportamento, como a transmutação de um metal em outro. No século XII, a al-kimiya propagou-se na Europa, acompanhada de noções sobre al-iksir (o elixir ou a “pedra fi losofal”).

Como é habitual, a alquimia esbarrou em obstáculos semelhantes aos que continuam desfi gurando a medicina: falsos anúncios de remédios milagrosos, charlatães etc. E, evidentemente, ela chama a atenção dos governantes e dos legisladores, mas não pelas mesmas razões: na Inglaterra, foi decretado que a operação bem-sucedida de transformar o chumbo em ouro é ilegal porque ela depreciava o valor do metal precioso!

De acordo com alguns pensadores, o fato de que as manipulações humanas sobre a matéria são, por essência, inferiores ao que é feito pela natureza naturalmente (premissa do debate que se segue entre natural e artifi cial – atualização prevista no século seguinte), qualquer tentativa humana para transmutar os metais estava fadada ao fracasso. Apesar dessas críticas, houve sempre quem acreditasse que a arte humana era sufi cientemente poderosa para transformar o mundo. Mas essa discussão não passava de briga entre elites e universidades. Enquanto isso, a matéria e suas manifestações foram introduzidas, de tempos em tempos, a todos os estratos da sociedade. Ninguém sabe quem criou o kohl ou modelou o primeiro pote de barro, quem teria sido a primeira pessoa a curtir o couro ou a fabricar cerveja, tampouco quem – entre os artesãos medievais – misturou a areia, a cinza de madeira e os sais metálicos para criar

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��“Um alquimista em seu trabalho”, do pintor fl amengo Mattheus van Helmont, século XVII. Figura do alquimista personifi cando a loucura.© Com a amável autorização

das Coleções da Fundação

do Patrimônio da Química.

Foto: Will Brown.

��Retrato de Robert Boyle, pintado por JohannKerseboom, 1689 (Reino Unido).© Com a amável autorização

das Coleções da Fundação

do Patrimônio da Química.

Foto: Will Brown.

Sempre que

cozinhamos um

ovo, acabamos

por modifi car a

própria natureza

da matéria, ou

seja, a forma das

proteínas do ovo.

os maravilhosos vitrais das catedrais. Mas todas essas pessoas transformaram a matéria e, por seu intermédio, nossas vidas.

Com a Era Moderna, os pintores e os ourives, além de todos os artesãos da matéria, ganharam prestígio. A ciência, que durante muito tempo havia sido usada para compreender em vez de ser aplicada, e em proveito das elites e não tanto dos comuns mortais – voltou-se aos fa-bricantes em busca de conhecimentos e de

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poder. Essa tentativa, cujo alvo continuava sendo a matéria, encontrou expressão na obra de Francis Bacon (Novum Organum, 1620) e no surgimento da ciência moderna. A prática – a exploração improvisada e a transformação do mundo material – associava-se à compreensão. Verificou-se uma mudança radical de nosso universo artístico, científico ou cotidiano. O físico e químico irlandês Robert Boyle – autor da lei que associa pressão, volume e temperatura de um gás – é a perfeita ilustração dessa nova abordagem experimental. Herdeiro da tradição alquimista (por definição, ou quase, os alquimistas eram homens da experiência e da medida precisa) e aspirante a alquimista, Boyle é considerado uma figura fundadora da Química moderna, no século XVII.

Uma ciência com enorme prestígio

Entre os químicos, frequentemente se acredita que a Química se tornou uma ciência no verdadeiro sentido do termo no século XVIII. As pesquisas sobre o ar de Antoine Lavoisier (França), a descoberta do oxigênio por Joseph Priestley (Reino Unido), a criação de uma linguagem científica da Química: tudo isso contribuiu para tal reconhecimento. Mas a química – ou, pelo menos, seus resultados – não poderia ficar confinada à esfera puramente científica. O entusiasmo pelo balão de ar

quente e ao hidrogênio, no final do século XVIII, e sua influência sobre as roupas, as cartas de baralho e a cerâmica, são exemplos disso. Ao inventar a água gaseificada para que os pobres pudessem ter águas à disposição, enquanto o paciente rico tinha acesso às onerosas estações termais, Priestley reanimava o vínculo entre Química e saúde que havia surgido com a alquimia. Por outro lado, a moda vitoriana do papel de parede verde – por imposição do arsênico – foi, sem dúvida, o primeiro caso de risco ambiental, reconhecido e relatado como tal.

Em 1856, um inglês de 18 anos, William Henry Perkin, esforçava-se em transformar o coaltar (alcatrão de hulha) em quinina – transmutação material digna de um alquimista – para prevenir a malária. À semelhança do que havia acontecido com Böttger, ele falhou e, com esse fracasso, desencadeou uma revolução da cor que, a contragosto, contribuiu para o lançamento da indústria alemã do tingimento e dos produtos farmacêuticos. Tendo por base a anilina, Perkin criou o lilás, primeiro corante sintético que ia tornar o mundo mais vistoso a partir da década de 1860. Antes de seu período de indumentária preta, a rainha Vitória usou esta nova “química” e lançou a moda deste matiz de cor violeta. Em época de rápida industrialização, a Alemanha apropriou-se imediatamente das anilinas coloridas, criando incidentalmente o primeiro vínculo sólido entre a Química (na condição de ciência moderna) e a indústria. Em 1932, o médico alemão que trabalhava para a IG Farben (Associação de Interesses na Indústria de Tintas) Gerhard Domagk descobriu que a modificação de um corante vermelho matava as bactérias. Assim começaram a ser utilizados os primeiros antibióticos, as sulfamidas. Ainda uma história de moda e de medicina, uma vez que era possível observar, às vezes, a pele avermelhada dos pacientes, sinal da eficácia do remédio.

��O balão francês “O Tricolor” , representado no momento de sua decolagem, em 6 de junho de 1874,em Paris.© Biblioteca do Congresso

(Coleção Tissandier)

CLEÓPATRA COM OLHOS DE CHUMBO

Quem não conhece o lápis de olho de Cleópatra e o tom azulado de suas pálpebras! Mas quem sabe que essa maquiagem era aplicada com fins medicinais, detalhe ignorado pelos filmes de época?

Um estudo publicado na revista científica, Analytical Chemistry (“Química Analítica”, de 15 de janeiro de 2010) mostra que a maquiagem dos antigos egípcios continha sais de chumbo que produziam monóxido de nitrogênio. Este composto químico dilata os vasos e, portanto, abre o caminho para macrófagos ou, em outras palavras, as células que comem partículas de grande porte. Em resumo, ele fortalece o sistema imunológico da pessoa.

Para aprofundar o estudo deste tema, a equipe francesa analisou resíduos encontrados em “estojos de maquiagem” da coleção egípcia do museu do Louvre. Com a ajuda da Nanoquímica, os pesquisadores constataram que o contato do chumbo – contido em doses bastante reduzidas nos cosméticos antigos – com o líquido lacrimal criava um recurso ofensivo contra os micro-organismos. – J.Š.

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A tabela periódica de Mendeleiev (1834 - 1907)

“O primeiro organizador dos elementos da natureza”: esse foi o título de um artigo – publicado pelo Correio da UNESCO em junho de 1971 – em homenagem a Dmitri Mendeleiev, o homem que permitiu ao “estudo da Química passar de um estágio praticamente medieval de improvisações para o estado de uma ciência moderna”.

Como foi seu método de trabalho? “Em poucas palavras”, prossegue o artigo, “o russo propunha dispor os elementos [químicos] em linhas horizontais e em colunas verticais – chamados de períodos e grupos – no interior de um retângulo, na mesma linha e começando pela parte de cima as massas atômicas crescem da esquerda para a direita. Mas nas colunas verticais, poderiam ser encontrados os elementos que possuem propriedades químicas análogas – por exemplo, a mesma maneira de formar um óxido.” 

O que será assim tão revolucionário nesta Tabela? A teoria da classifi cação periódica dos elementos, de acordo com sua massa atômica, que o siberiano de 35 anos tinha apresentado à Sociedade Química da Rússia, em março de 1869, representava na verdade a descoberta de uma lei natural. Além de corrigir um grande número de erros de cálculo, seu procedimento permitia predizer a existência de elementos, até então desconhecidos, tais como o gálio, o escândio ou o germânio (denominados, assim, posteriormente, em honra dos países de origem de seus descobridores).

Os grandes descobridores estimulam a imaginação das pessoas. Como é costume dizer a respeito de Newton que ele teria descoberto a lei da gravitação no momento em que uma maçã caiu em sua cabeça, ou a respeito de James Watt que uma panela de água fervente lhe teria inspirado a ideia da máquina a vapor, alguns comentaristas julgam que Mendeleiev encontrou a classifi cação periódica depois de ter tido um sonho!

“Temos tendência a esquecer uma coisa”, eis a conclusão do artigo: “Se acontece que a verdade científi ca ilumina a mente de um homem de maneira repentina, como se tratasse de um relâmpago, pode ocorrer também que o mesmo pesquisador tenha trabalhado, durante vários anos, sobre o objeto de seu estudo. Pasteur chegou a afi rmar o seguinte: ‘A sorte ajuda apenas as mentes já preparadas’. Se dermos uma conferida às atividades de Mendeleiev antes de 1869, parece evidente que a elaboração da tabela periódica não foi um puro acidente”.

Além da tabela periódica, uma frase de Mendeleiev a propósito do petróleo permanecerá gravada na memória da humanidade: “Este material é demasiado precioso para ser queimado; ao queimar petróleo, estamos queimando dinheiro; impõe-se utilizá-lo como matéria-prima da síntese química”.– K.M.

Michal Meyer Nascido em Israel, Michal

Meyer trabalhou como meteorologista na

Nova Zelândia e nas Ilhas Fiji. Em seguida,

atuou como jornalista em seu país natal. Ph.D.

em História das Ciências, trabalha desde

setembro de 2009, na Chemical Heritage

Foundation, como diretora da revista

Chemical Heritage (http://www.chemheritage.

org/discover/magazine/index.aspx).

© DR

Apesar de ter mergulhado suas raízes na moda, esta mesma indústria alemã da Química, depois de ter pintado o mundo com cores deslumbrantes, não hesitou em produzir o Zyklon [em alemão, ciclone], gás mortal adotado pelos planos nazistas de extermínio, cuja patente pertencia à IG Farben. Por causa da bomba atômica, a Segunda Guerra Mundial é considerada como a guerra dos físicos; no entanto, cada guerra é uma guerra de químicos, desde o momento em que os homens aprenderam a fundir o metal. Nas vésperas dessa guerra, a austro-sueca especialista em Física Lise Meitner deu razão aos alquimistas: podemos transmutar um metal em outro, o que ela fez graças à reação nuclear. Antes do fi nal da guerra, o urânio 238 foi transmutado em plutônio.

A marca dos alquimistas de antes, seus projetos grandiosos, seu mistério ocasional são aspectos que, sobrevivem em nossas pesquisas químicas: criação de uma vida sintética, remédio contra o envelhecimento... E, ao mesmo tempo, sempre que cozinhamos um ovo, acabamos por modifi car a própria natureza da matéria, ou seja, a forma das proteínas do ovo.

O rápido desenvolvimento da ciência moderna, o prestígio colossal que ela usufrui hoje – que provém de sua profi ssionalização no século XIX – deixaram à margem os não especialistas. Perdemos o sentido da Química como arte e ciência do cotidiano e das pessoas comuns. No entanto, sua recuperação depende apenas de nós. Recentemente, no âmbito do programa museográfi co da Fundação Patrimônio da Química (Chemical Heritage Foundation), convidei uma artista vidraceira para apresentar seu trabalho. Manifestando certa inquietação, ela insistiu no fato de que nunca havia estudado Química e ignorava completamente essa questão. Em seguida, começou a falar sobre o que fazia – as ferramentas, o forno, a maneira como ela manipulava o vidro em fusão, os metais que ela acrescentava, o comportamento do vidro em diferentes temperaturas – e, fi nalmente, voltou-se para mim, surpreendida: “Mas, o que eu faço é Química!”, exclamou ela.

No início deste artigo, escrevi que o ser humano passa a existir ao transformar a matéria. Eu gostaria de concluir com uma pequena variação: transformar a matéria é próprio do ser humano. Todos nós somos químicos. �

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O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O - M A R Ç O 2 0 1 1 . 1 7

A Química na vida

cotidiana

Seria bem extensa a lista exaustiva dos serviços

que a Química moderna, desde seu surgimento

no século XVIII, tem prestado à humanidade.

E também seria impressionante a lista das

soluções que ela promete fornecer para os

problemas que o nosso planeta enfrenta neste

início do século XXI, em particular, na área

da saúde. A Química analítica tem repelido,

sem tréguas, os limites de detectabilidade das

substâncias tóxicas.

Por sua vez, a incipiente Nanoquímica tem

feito; no entanto, ainda não foram superados

os perigos que ela comporta. Novas gerações

de fármacos têm oferecem tratamentos para o

câncer cada vez mais eficazes.

Vivemos na época da Química combinatória, dos

equipamentos de filtração automatizados de alto

rendimento (HTS - High Throughput Screening) e

da engenharia molecular, entretanto a natureza

continua sendo nosso maior reservatório

molecular. Quanto aos saberes ancestrais, eles

estão longe de terem sido esquecidos.

© DR

Page 18: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

O fio condutor da minha

carreira é a luz

1 8 . O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O - M A R Ç O 2 0 1 1

Que vínculo pode existir entre os jeans, o câncer e os

pesticidas? A priori, nenhum. E, no entanto, se dermos crédito

ao depoimento de Tebello Nyokong, o ponto comum seria a

luz. Esta sul-africana especialista em Nanoquímica tem uma

paixão pelo laser. Ela continua procurando atribuir-lhe toda

a espécie de aplicações que podem se revelar revolucionárias

para a medicina e para o meio ambiente. Ela está na

iminência de atingir seu objetivo.

Page 19: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

A Sra. está envolvida, atualmente, na busca

por uma nova metodologia de diagnóstico

e de tratamento do câncer, mediante a qual

seja possível encontrar uma alternativa à

quimioterapia. A Sra. pode nos explicar em que

consiste seu trabalho?

Nossa característica de químicos é que somos criativos. Minhas pesquisas incidem sobre a criação de moléculas para uso farmacêutico. Dedico-me a desenvolver medicamentos aos quais atribuímos o qualificativo de “corantes” porque suas moléculas são semelhantes às da tinta para tingir os jeans: as ftalocianinas. Tais medicamentos são utilizados na fotoquimioterapia, tratamento do câncer que exige uma abordagem multidisciplinar, associando químicos, biólogos e especialistas das biotecnologias. Como profissional envolvida na Química, encontro-me no âmago dessa iniciativa por estar encarregada de criar as moléculas; no meu trabalho, estou rodeada por uma grande equipe de cerca de 30 pessoas, sem contar com todos aqueles e aquelas que garantem a elaboração dos testes pré-clínicos e estão espalhados por toda a parte, no mundo inteiro.

Como é que as moléculas utilizadas para colorir

os jeans podem tratar o câncer?

Preste atenção em uma planta: suas folhas são verdes por causa da clorofila. Por sua vez, o sangue deve sua cor vermelha à hemoglobina. Na realidade, essas duas moléculas são praticamente idênticas com a única diferença de que a primeira é construída em torno de um átomo de magnésio, enquanto a segunda elabora-se à volta de um átomo de ferro. Uma diferença tão reduzida é suficiente, igualmente, para estabelecer a distinção entre o que é – e o que não é – um medicamento. A molécula que serve para tingir os jeans é idêntica à minha, com uma pequena diferença: na constituição de cada uma, os metais são diferentes, além de serem eles que permitem realizar uma ou a outra ação.

Será que a fotoquimioterapia constitui um

novo tratamento?

Não, nossos medicamentos é que são novos. Nos Estados Unidos, na Europa e na Rússia, a fotoquimioterapia já está disponível para alguns tipos de câncer. Ela funciona com base na luz: o medicamento é introduzido no organismo e, em seguida, ativado pela luz. O problema é que, atualmente, os efeitos secundários são muitos importantes. O medicamento deve ser introduzido no organismo e dirigir-se aos tecidos cancerígenos. Se ele se fixar nos tecidos saudáveis, o que é o caso dos medicamentos à nossa disposição, o paciente fica impedido de

sair de casa porque a radiação solar acabaria por destruir os tecidos saudáveis, à semelhança do que se produz na quimioterapia.

Suas moléculas são mais confiáveis?

Eis o nosso verdadeiro objetivo. Estamos em via de construir moléculas, cuja especificidade consiste em focalizar diretamente o tumor. Tais medicamentos têm a vantagem de absorver a luz com facilidade. Portanto, basta administrá-los em pequenas quantidades. Mas, estou em vias de dar um passo em frente porque a meu medicamento associo um inédito “sistema de entrega”. Neste momento é que as nanotecnologias começam a funcionar: as moléculas contêm nanopartículas, chamadas “pontos quânticos”, que penetram com grande facilidade em qualquer parte do corpo. Essas nanopartículas entregam o medicamento, da forma mais eficaz possível, no endereço correto e, além disso, emitem luz, o que facilita a localização das células cancerígenas. Em poucas palavras, é uma maravilha.

Esse tratamento poderá ser utilizado contra

todas as formas de câncer?

A luz, utilizada para ativar o medicamento, é produzida pelo laser e transportada por fibras ópticas. Se o câncer é generalizado, este procedimento não pode funcionar: o laser deve ser dirigido precisamente para a zona cancerígena; portanto, trata-se de um tratamento localizado que não consegue substituir a cirurgia.

Como a Sra. escolheu esse domínio de

pesquisa?

Foi por acaso. Essa é a verdadeira beleza da Química! Tendo sido seduzida pelas moléculas, não cesso de me questionar: qual benefício eu ainda poderia extrair dessa atividade? Mas, o fio condutor de minha carreira é a luz. Acabei descobrindo minha paixão pelos raios laser. Eles são luminosos, coloridos e vão direitamente ao ponto! Desde que me envolvi com eles, tenho procurado atribuir-lhes novas aplicações. Eis algo de extraordinário: no início, eu estava interessada pelo laser, e não pelo câncer.

Será que a Nanoquímica é algo de perigoso?

Tenho receio de que isso seja verdade. Em primeiro lugar, porque um produto que penetra facilmente em qualquer parte do organismo é, por definição, perigoso. E, em segundo, porque o centro das nanopartículas fabricadas por nós até aqui é constituído por metais pesados. Em caso de “vazamento”, essas nanopartículas

O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O - M A R Ç O 2 0 1 1 . 1 9

TEBELLO NYOKONG

responde as

perguntas de Cathy

Nolan, UNESCO

© Micheline Pelletier pela Fundação Corporativa L’Oréal

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2 0 . O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O - M A R Ç O 2 0 1 1

podem se fixar à hemoglobina ou a outras partes do organismo, o que constitui uma ameaça potencial. Com a ajuda de biólogos, temos procedido a testes de toxicidade das moléculas e empenhamo-nos em desenvolver aquelas que são menos tóxicas; estudamos, simultaneamente, as aplicações e a toxicidade de cada molécula.

Quanto tempo será necessário para que seus

medicamentos venham a ser usados de forma

geral?

Diversas variáveis devem ser levadas em consideração quando abordamos o uso desses medicamentos no ser humano. Os cancerologistas acham que os raios laser envolvem custos elevados e sua manutenção é difícil. Ora, sozinha, nada posso fazer. Como especialista em Química, posso desenvolver novos produtos; mas em se tratando de verificar seu funcionamento, é indispensável a colaboração com outros especialistas. Na África do Sul, o “Centro para a Pesquisa Científica e Industrial” está em via de fazer testes pré-clínicos de meus medicamentos. Na Suíça, uma equipe conseguiu desenvolver um teste muito interessante a partir de ovos embrionários: o corante é injetado nas veias em torno do embrião, e se avalia sua atividade..

Será que suas pesquisas têm aplicações,

igualmente, para o meio ambiente?

Essas moléculas são verdadeiramente mágicas na medida em que são suscetíveis de executar coisas muito diferentes umas das outras. O método pode ser utilizado, também, na purificação da água poluída, em particular, por pesticidas. Na maior parte dos países africanos, a única opção que resta às pessoas consiste em buscar a água na natureza. A água que bebemos em casa, é extraída dos campos. Temos de nos conformar com essa situação. Desde sempre, a luz tem sido utilizada para purificar a

água. Sabe-se que a luz destrói as bactérias; no entanto, ao colocar essas moléculas na água, verifica-se a aceleração do processo. Além disso, os resultados obtidos são menos tóxicos; sem a intervenção humana, a natureza – ou seja, o sol – permite a formação de moléculas perigosas para o organismo. Ao combinar este medicamento com a luz, vamos obter produtos que deixarão de ser tóxicos para os seres humanos. Estamos muito perto de atingir o resultado e acabamos de depor a patente relativa a este procedimento.

Seu objetivo será o de desenvolver um produto

industrial?

Essa é a minha missão. Vamos alcançar tal objetivo mais rapidamente no âmbito da pesquisa contra a poluição porque, relativamente às aplicações na área da Medicina, as regras a respeitar são tão numerosas que os procedimentos se tornam mais complicados e prolongados. Quero ser bem-sucedida, também, por outra razão: mostrar aos jovens sul-africanos que, por sua vez, eles podem fazer ciência, além de desenvolverem produtos. Por enquanto, tal ideia nem lhes passa pela cabeça; eles pensam que tudo vem do exterior.

Em sua infância, a Sra. já pensava em dedicar

sua vida à Química?

Nem mesmo em sonho! Não havia uma só mulher para me servir de modelo. Mas, eu era muito ambiciosa, pensei sempre que eu poderia ser médica ou dentista. E os professores desempenharam um papel muito importante. Eu conheci um assistente, durante meu primeiro ano de universidade, no Lesoto, e ele era integrante dos Peace Corps (Corpos de Paz) norte-americanos. Ele sabia como tornar a Química extremamente apaixonante. E me mostrou o caminho a seguir e fiquei vidrada pela Química. Além disso, tive sorte também. Sou originária do Lesoto e recebi uma bolsa da

��Os lasers têm uma aplicação múltipla no domínio das ciências. Aqui, “reflexos e gotas d’água”, uma ilustração da experiência “A fonte de laser gigante” do LPL (CNRS/Paris 13). Ela permite compreender o funcionamento das fibras óticas por meio de uma demonstração de princípios fundamentais da ótica.Ver WWW.fontainelaser.fr ©K. Penalba/INP-CNRS

Como especialista em Química, posso desenvolver novos produtos; mas em se tratando de verificar seu funcionamento, é indispensável a colaboração com outros especialistas.

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O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1 . 2 1

Bhagwan Singh Chandravanshi

universidade para me formar no Canadá, país em que concluí vários mestrados e defendi minha tese de doutorado. Atualmente, estou tentando seguir o exemplo de meus professores: acompanho alguns doutorandos oriundos de toda a África e de outros países.

Na condição de primeira mulher contratada

pelo Departamento de Ciência e Tecnologia

na Universidade de Rhodes, a Sra. chegou

a afi rmar que sua motivação consistia em

“realizar o impossível”....

Essa é a realidade porque tive muita difi culdade para progredir com tão pouco. Em decorrência de situação semelhante, o desânimo ganha um grande número de mulheres. Sem ser um pouco “maluca”, é impossível levar adiante o que estou em via de fazer. Mas, assumi comigo mesma o compromisso de ajudar outras mulheres na medida das minhas possibilidades. Elas carecem de autoconfi ança. Ao passo que, por uma razão que me escapa, os homens são, inversamente, autoconfi antes mesmo que suas afi rmações não façam sentido!

Por ser pioneira, a Sra. diria que esta época é

favorável às mulheres cientistas na África do Sul?

Com certeza, este é um bom período: eu mesma tenho um grande número de alunas. Tenho conseguido até mesmo atraí-las, mesmo sendo um pouco severa! Para ser franca, penso que as pessoas não aproveitam sufi cientemente as oportunidades que se apresentam a elas. Vivemos em um país com sorte: a África do Sul é um país emergente e, ao mesmo tempo, um país do Terceiro Mundo. Há pessoas muito pobres que encontram sua comida em latas de lixo, enquanto outras são muito ricas. No entanto, a infraestrutura existe, e o governo tomou a seguinte decisão: além de combater a pobreza, ele vai desenvolver as ciências e as tecnologias. As pessoas devem tirar partido dessa situação e trabalhar com afi nco… Mas, segundo parece, trabalhar com afi nco não é muito popular. Existem recursos para nossos equipamentos e para formar um maior número de estudantes. Da minha parte, não deixo passar nenhuma oportunidade quando se trata de dar minha contribuição. �

Tebello Nyokong, 59 anos, é professora de Farmacologia e de Nanotecnologias na Universidade de Rhodes (África do Sul), onde dirige o Centro de Inovação Nanotecnológica das Sondas (Mintek). Ela é uma das cinco laureadas do Prêmio L’ORÉAL-UNESCO para as mulheres e a ciência de 2009.

Atenção com a saúde do paísPor ter condições de fornecer esclarecimentos

sobre a complicada temática da contaminação

do meio ambiente por metais pesados, a Química

ocupa uma posição importante na cadeia de

tomada de decisões na Etiópia, país que está na

origem da ideia de celebrar o Ano Internacional

da Química - 2011.

A contaminação dos produtos alimentares por metais pesados tornou-se um problema inevitável em qualquer parte no mundo. A poluição da água, do ar e da terra contribui para a presença de elementos nocivos – cádmio, chumbo, mercúrio, arsênico - nos gêneros alimentícios.O rápido desenvolvimento do setor industrial, o crescente uso de produtos químicos na agricultura e o forte aumento da atividade urbana estão na origem dessa contaminação dos alimentos.

Os metais pesados estão presentes na natureza sob a forma de vestígios, na maior parte das vezes, minúsculos. Deste modo, para detectá-los é necessário empregar sofi sticados métodos de análise que compreendem três fases: amostragem, tratamento prévio das amostras e análise. A escolha de um método particular baseia-se em vários critérios, como o custo, a sensibilidade (limite de detecção), a velocidade ou a disponibilidade dos aparelhos. As amostras analisadas podem ser provenientes da água, da terra, de peixes, plantas (em particular, o khat – arbusto cujas fl ores e folhas exercem um efeito narcótico –, o chá e o café), legumes e frutas.

Embora os metais pesados estejam presentes naturalmente apenas em reduzidas quantidades nas terras agrícolas, eles se tornam tóxicos em razão de sua capacidade de se acumularem nos organismos.Ao detectá-los, identifi camos seus efeitos potencialmente prejudiciais não só para o desenvolvimento das plantas, mas também para a saúde dos seres humanos.

Os estudos empreendidos na Etiópia permitem-nos avaliar as taxas de presença desses metais pesados, assim como informar o governo e a população sobre seus eventuais riscos. Nossas análises mostram que, por enquanto, a taxa de metais pesados é ainda relativamente baixa na Etiópia, mas na relação com a atividade humana, ela cresce de tempos em tempos para além da taxa da ocorrência natural.

É assim que a química nos ajuda a prestar atenção à saúde de nosso país. �

Bhagwan Singh Chandravanshi é professor no Departamento de Quí-

mica da Faculdade de Ciências, na Universidade de Addis Abeba (Etiópia).

© D

R

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Anlong Xu

2 2 . O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1

Apesar dos avanços significativos em matéria de prevenção, diagnóstico e tratamento, o câncer continua sendo uma das principais causas de óbito, em escala mundial. Até a década de 1960, o câncer era tratado por via cirúrgica e por radioterapia, mas no decorrer dos últimos 50 anos, a quimioterapia revelou-se uma das armas mais eficazes contra o câncer.

O primeiro medicamento antitumoral moderno, a mostarda azotada, foi descoberto por acaso durante a Segunda Guerra Mundial. Alguns pesquisadores observaram, acidentalmente, que o gás mostarda – composto químico designado assim por causa de sua cor amarela, tendo sido utilizado como arma química na Primeira Guerra Mundial – é capaz de reduzir a taxa de glóbulos brancos no sangue. Em 1942, Louis Goodman, Alfred Gilman e outros farmacologistas de Yale (Estados Unidos) serviram-se dessa substância para tratar linfomas avançados e acreditam que ela pode induzir a regressão de um tumor. Em 1949, a mostarda azotada obterá a autorização da Food and Drug Administration (FDA) dos EUA para ser comercializada, o que vai impulsionar o desenvolvimento de vários medicamentos quimioterápicos para tratar diferentes tipos de câncer.

Detectar a célula cancerígena sem danificar as células saudáveis: eis o

objetivo das novas quimioterapias contra o câncer. Fácil de dizer, mas

difícil de fazer. Os pesquisadores têm seguido diferentes pistas, incluindo

as soluções propostas pela sabedoria dos antigos. Uma planta utilizada

na medicina tradicional da China para combater os tumores do tubo

digestivo abre novas perspectivas para a medicina contemporânea.

No entanto, tais medicamentos provocam, como se sabe, graves efeitos colaterais, e será necessário esperar o início do terceiro milênio para que se inicie uma nova época na terapia contra o câncer, baseada na focalização molecular. Trata-se de uma nova geração de medicamentos que, em vez de serem disseminados em todo o organismo (danificando, assim, as células saudáveis), detectam com grande precisão o local em que se encontram as células cancerígenas.

Evitar os danos colaterais

Se a maior parte dos medicamentos utilizados para o tratamento do câncer são compostos orgânicos, existem igualmente medicamentos baseados em complexos constituídos por metais. A utilização de metais para tratar doenças remonta à Antiguidade: há 2.500 anos, os chineses já sabiam que o ouro (Au) poderia ser usado para fins medicinais. Em época mais recente, a platina (Pt), outro metal precioso, será a base de um dos medicamentos anticancerígenos que, atualmente, continua sendo um dos mais vendidos no mundo: a cisplatina. Esta substância foi descoberta pelo químico norte-americano, Barnett Rosenberg, e por seus colegas que, em 1965, por um feliz

O metal e o vegetal: um pacto contra o câncer

��Fragmentos de células cancerosas.© INSERM/J. Valladeau

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acaso, haviam observado que ela impedia a proliferação das células cancerígenas.

Mas, neste caso também, os efeitos secundários eram prejudiciais, constatação que incentivou os pesquisadores a desenvolver medicamentos baseados em outros metais – por exemplo, o rutênio (Ru). Graças ao trabalho pioneiro de químicos – tais como Michael J. Clarke (EUA), Bernhard K. Keppler (Áustria) e Peter J. Sadler (Reino Unido) –, o rutênio aparece como uma alternativa, particularmente atraente, à platina. À semelhança do ferro (Fe), ele é capaz de se ligar à transferrina, ou seja, a proteína presente no sangue e responsável pelo transporte do ferro para os órgãos. Em vez de se espalhar no organismo, ele vai se acumular nas regiões tumorais, atraído pelas células cancerosas, cujo número de receptores de transferrina, na superfície, é 5 a 15 maior que os receptores das células normais. Assim, ele focaliza diretamente a célula doente e acaba por destruí-la. Além dessa grande precisão, alguns complexos de rutênio possuem a capacidade de paralisar as metástases, ou seja, de impedir a disse- minação do câncer para outras partes do corpo.

Uma nova estratégia

Ao ampliar o campo da pesquisa até os complexos de rutênio, nosso grupo de pesquisa demonstrou, recentemente, que a combinação do rutênio com um ingrediente ativo da harmala (Peganum harmala) pode fornecer uma nova estratégia para desenvolver medicamentos anticancerígenos. No passado, as sementes em pó desta planta foram usadas na medicina tradicional da China como medicamento contra os tumores do tubo digestivo. Atualmente, alguns dos complexos químicos obtidos por esta aliança entre o metal e o vegetal conseguem impedir a proliferação das células doentes de maneira muito mais efi caz do que o efeito da cisplatina. Além disso, constatamos que esses complexos químicos podiam induzir, simultaneamente, uma apoptose e uma autofagia citoprotetora em células cancerosas do corpo humano. Pelo que sabemos, esta é a primeira vez que esta dupla ação foi demonstrada.

A apoptose – às vezes, designada como “suicídio programado das células” – é um processo normal que culmina, em determinado momento, na morte de algumas células “usadas”. Ora, nas células cancerosas, a função de apoptose está desregulada, o que explica sua proliferação ilimitada. As novas pesquisas em oncologia concentram-se, portanto, em grande parte, nas moléculas que provocam o suicídio das células cancerosas.

Em relação à autofagia (literalmente “ação de se nutrir com sua própria substância”), ela constitui um mecanismo que permite à célula digerir, em parte, seu conteúdo para garantir

sua sobrevivência. Trata-se de uma arma de dois gumes porque ela pode permitir, seja a sobrevivência das células saudáveis, em detrimento das células doentes (protegendo o citoplasma) ou, inversamente, a sobrevivência das células doentes, em detrimento das células saudáveis.

As moléculas que constituem o objeto de nosso trabalho visam ativar a autofagia com o objetivo de destruir as células cancerosas que resistem à apoptose. Trata-se de uma nova abordagem no tratamento do câncer que deveria fortalecer nossa luta contra este fl agelo.

De acordo com as estatísticas fornecidas pelo Instituto Nacional do Câncer dos EUA (National Cancer Institute- NCI), a taxa de sobrevivência em relação a alguns tipos de câncer aumentou consideravelmente nos últimos décadas. No entanto, em relação a outros tipos de câncer, as taxas de cura permanecem muito baixas. Por exemplo, a taxa global de sobrevivência para além de cinco anos relativamente ao câncer do fígado é inferior a 10%. O Centro Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (Centre international de recherche sur le cancer – CIRC) das Nações Unidas avalia que, em 2008, cerca de 760 milhões de pessoas morreram em decorrência do câncer, e que esse número poderia atingir 1 bilhão e 320 milhões, em 2030. A guerra ainda não terminou. �

As moléculas que

constituem o

objeto de nosso

trabalho visam

ativar a autofagia

com o objetivo

de destruir as

células cancerosas

que resistem à

apoptose.

O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1 . 2 3

��Cultura de células: neurônio dopaminérgico em apoptose.© INSERM/P. Michel

Anlong Xu é vice-presidente

do Departamento de Pesquisa e

Desenvolvimento, além de professor de

Imunologia e de Biologia Molecular na

Universidade de Sun Yat-sen (China). Ele é o

diretor da State Key Laboratory of Biocontrol,

membro da Comissão de experts encarregada

dos novos medicamentos da Administração

do Estado para os alimentos e para os

medicamentos, assim como membro da

Pharmacopoeia Commission of China.

Page 24: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

que detêm, não só a maior parte dos materiais biológicos, mas também os saberes – quase sempre, seculares –, aferentes a esses recursos, por um lado, e, por outro, os países que os utilizam do ponto de vista industrial. Viramos uma nova página na história da exploração da extraordinária quimiodiversidade dos países chamados “megadiversos” (por disporem das maiores concentrações de biodiversidade na Terra).

A quimiodiversidade é uma componente da biodiversidade. De fato, os metabólitos secundários – taninos, látex, resinas e milhares de outras moléculas já identifi cadas – que assumem funções bastante variadas na vida dos vegetais, desempenham um papel crucial no desenvolvimento de novos medicamentos.

Apesar de vivermos na era da Química combinatória, do crivo de alto rendimento (HTS ou High Throughput Screening) e da engenharia molecular, continuamos a extrair da natureza a matéria-prima para um grande número de novas terapias que têm encontrado um franco sucesso nos laboratórios e no mercado. A natureza forneceu mais da metade das entidades químicas que foram aprovadas pelas agências de regulamentação farmacêutica, por toda a parte no mundo, no decorrer dos últimos 40 anos.

Vanderlan da Silva Bolzani, professora

de Química no Instituto de Química da

Universidade do Estado de São Paulo-Unesp

(Araraquara, Brasil), presidiu a Sociedade

Brasileira de Química (SBQ) de 2008 a 2010,

tendo sido a primeira mulher a ocupar o cargo.

2 4 . O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1

A questão do vínculo entre a exploração dos recursos naturais e os benefícios socioeconômicos da bioprospecção tem sido formulada, com uma crescente acuidade, desde a Cúpula da Terra (Rio de Janeiro, 1992). Os principais objetivos da Convenção sobre a Biodiversidade, adotada por ocasião desse evento, são os seguintes: “a conservação da biodiversidade, a utilização sustentável de seus elementos, além da partilha justa e equitativa das vantagens resultantes da exploração dos recursos genéticos”. Ora, a bioprospecção – consistindo em inventariar os elementos constitutivos da biodiversidade com a fi nalidade de garantir sua conservação e sua exploração sustentável – nem por isso deixou de ser desviada em proveito de empresas que depuseram patentes relativas às substâncias repertoriadas.

A 10ª Conferência das Partes na Convenção, realizada no mês de outubro passado em Nagoya (Japão), irá modifi car tal conjuntura por ter culminado em um acordo, obrigatório do ponto de vista jurídico, sobre a partilha justa e equitativa dos recursos genéticos. Esse protocolo vai orientar, a partir de 2012, as relações comerciais e científi cas entre os países

A natureza

forneceu mais

da metade

dos elementos

químicos que

foram aprovados

pelas agências

de regulação em

todo o mundo ao

longo dos últimos

40 anos.

O primado da natureza Vanderlan da Silva Bolzani

��Os Kallawaya constituem uma comunidade de herbolários e curandeiros dos Andes bolivianos.A cosmovisão andina dos Kallawaya foi inscrita na Lista representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, em 2008.© UNESCO/J. Tubiana

Page 25: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

Como é que o Sr. explica o crescimento

fenomenal da indústria farmacêutica

indiana, atividade que, em algumas dezenas

de anos, se tornou sinônimo de produção

de medicamentos genéricos de excelente

qualidade a baixo custo?

A indústria farmacêutica encontra-se, atualmente, na vanguarda das indústrias indianas de natureza científica, respaldada em um amplo savoir-faire nos domínios complexos da fabricação e da tecnologia dos medicamentos. Ela passou de um modesto volume de negócios da ordem de US$ 300 milhões, em 1980, para cerca de US$ 19 bilhões, em 2008. A Índia ocupa, atualmente, o terceiro lugar, no plano mundial, em volume produzido, com participação de 10% do mercado, atrás dos EUA e do Japão; no entanto, ela encontra-se apenas no 140 lugar em valor de produção, ou seja, 1,5% do mercado.

Vários fatores contribuíram para este crescimento extraordinário. Em 1970, o governo aprovou uma lei sobre patentes que reduziu a influência das multinacionais estrangeiras que, até então, dominavam o mercado indiano,

desde a independência do país, em 1947. Essa política favorável aos direitos de

propriedade intelectual, sem reconhecer as patentes internacionais sobre os produtos

farmacêuticos, incentivou os fabricantes indianos a seguir a trilha dos produtos

genéricos, cujos preços desafiavam qualquer tipo de concorrência.

Nas últimas três décadas, a Índia alcançou o terceiro

lugar, na escala planetária, da produção farmacêutica.

Praticamente auto-suficiente em medicamentos, no

mundo ela ocupa o primeiro lugar em número de

usinas aprovadas pela Food and Drug Administration

(FDA/EUA). Sua indústria

farmacêutica conta

com cerca de 5.000

fabricantes e

emprega 340.000

pessoas. Qual terá

sido o fator que levou

a esse sucesso? E

quais são seus aspectos

desfavoráveis?

O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1 . 2 5

Entrevista com Sunil Mani, feita por Shiraz Sidhva, correspondente

indiana do Correio da UNESCO

O boom da indústria farmacêutica na Índia

Page 26: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

2 6 . O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1

Os empresários indianos foram beneficiados, assim, com um longo período de aprendizagem que lhes permitiu tornarem-se exímios especialistas na “engenharia inversa” (ou seja, a cópia de medicamentos patenteados no exterior) e no desenvolvimento local das tecnologias com uma excelente relação custo-benefício.

Outro fator que acabou estimulando o crescimento da indústria foi a formação maciça de cientistas. Na Índia, o ensino superior mostra mais interesse pelas ciências da vida do que pela engenharia ou pela tecnologia: nas décadas de 1970 e de 1980, e inclusive até mesmo a década de 1990, a cada oito diplomados em ciências apenas um era engenheiro. Daí, a vantagem de nosso país em setores científicos, tais como a indústria farmacêutica.

O Estado indiano concedeu também bolsas de estudo e propôs a redução de impostos para incentivar a criação de infraestruturas de pesquisa.

Como é que a indústria superou as dificuldades

ocorridas em 2005, ano em que a Índia fez uma

revisão de sua política protecionista, alterando

a lei sobre as patentes, em conformidade

com o “Acordo sobre Aspectos dos Direitos

de Propriedade Intelectual relacionados

ao Comércio” (ADPIC - TRIPS, em inglês) da

Organização Mundial do Comércio? Será que

a indústria farmacêutica indiana continua

apostando nas exportações, considerando que o

mercado interno duplicou em dez anos?

Uma boa parte do crescimento da indústria farmacêutica, na Índia, apoia-se nas exportações que, entre 2003 e 2008, aumentaram quase 22%.

Atualmente, a Índia exporta medicamentos intermediários, a granel ou acabados, princípios ativos, produtos biofarmacêuticos e serviços clínicos. Em 2008, seus cinco principais clientes eram, por ordem decrescente, os Estados Unidos, a Alemanha, a Rússia, o Reino Unido e a China. Esta indústria conta com cerca de 5.000 fabri-cantes, indianos e estrangeiros licenciados, que fornecem emprego direto a 340.000 pessoas. Ela é dominada pelas formulações farmacêuticas e pelos princípios farmacêuticos ativos (respectivamente, misturas de diferentes substâncias químicas com produtos químicos ativos, indispensáveis para fabricar um medicamento).

A Índia é quase autossuficiente em medicamentos, como prova sua balança comercial, cada vez mais positiva. A indústria farmacêutica é uma das mais inovadoras da Índia no que se refere à Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) e ao número de patentes concedidas, tanto na Índia quanto no exterior. Ela é particularmente ativa no mercado dos genéricos, incluindo as exportações para os países desenvolvidos.

Em 2007 e 2008, entre quatro demandas de ANDA (Abbreviated New Drug Application - processo de aprovação rápida de medicamentos genéricos para o mercado norte-americano), uma delas foi apresentada pela indústria farmacêutica indiana; a mesma situação verificou-se para quase 25% dos dossiês de comercialização da Food and Drug Administration (FDA) dos EUA. A Índia dispõe também do maior número de fábricas aprovadas pela FDA, no mundo inteiro.

Os empresários

indianos foram

beneficiados,

assim, com um

longo período de

aprendizagem

que lhes permitiu

tornarem-se

exímios

especialistas

na “engenharia

inversa”.

Sunil Mani é

presidente da

Comissão de

Planejamento

da Economia do

Desenvolvimento no

Centro de Estudos do

Desenvolvimento, em

Trivandrum (Índia).

Ele é um dos autores

do Relatório Mundial

da UNESCO sobre a

Ciência 2010. © UNESCO/M. Ravassard

��Fabricação de remédios com roupas de proteção, na Índia, um dos líderes mundiais na área farmacêutica.. © Sinopictures/dinodia/

Specialist Stock

Page 27: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

Alguns fabricantes indianos que, ainda há

pouco, eram especialistas em cópias de

genéricos, alimentam atualmente a ambição

de produzir novos medicamentos. Será que a

indústria está pronta para lançar um produto

desenvolvido inteiramente na Índia?

Isso será difícil. O custo para o lançamento de um novo produto eleva-se, às vezes, a bilhões de dólares. A Índia dispõe de uma regulamentação, sem dúvida, menos draconiana que a FDA norte-americana, mas que não deixa de ser, igualmente, complexa. Afinal de contas, trata-se de produtos que serão utilizados pelo ser humano. Os ensaios clínicos atingem custos proibitivos com taxas de fracasso extremamente elevadas. Para desenvolver um medicamento, será necessário contar, no mínimo, com um período de nove a 10 anos. Já têm sido feitas descobertas em pequena escala, mas ainda teremos de esperar algum tempo para que a Índia possa inovar no plano mundial. E é reduzida a possibilidade de que tal iniciativa seja efetuada em grande escala: o que vai exigir investimentos maciços em P&D, o que não está ao alcance da maior parte das empresas indianas.

Nos anos recentes, a Índia passa por um

momento decisivo na P&D da indústria

farmacêutica e tem sido o destino de um grande

número de empresas estrangeiras à procura de

ensaios clínicos. Qual é, exatamente, a situação

atual?

Essa é uma das repercussões da capacidade de inovação da Índia no domínio farmacêutico: nosso país tornou-se um destino cobiçado para os ensaios clínicos, para a fabricação mediante contrato e para a P&D externa. Essas oportunidades são muito promissoras para a indústria farmacêutica na Índia. Segundo as estimativas, US$ 103 bilhões de produtos norte-americanos devem perder suas patentes daqui até 2012. O mercado mundial da fabricação, mediante contrato, de medicamentos prescritos deveria, aliás, progredir – daqui até por volta de 2015 – de US$ 26 bilhões a US$ 44 bilhões. Os ensaios clínicos custam muito mais barato na Índia do que nos países ocidentais. Mas, acima de tudo, o país dispõe de um grande número de pacientes “ingênuos”, ou seja, que nunca foram submetidos a qualquer tratamento, e os ensaios fornecem melhores resultados nos usuários de primeira experiência. O terceiro fator é a presença de médicos anglófonos, altamente qualificados, para realizar esses testes: considerando que, na Índia, o principal idioma utilizado no ensino superior é o inglês, o período de desenvolvimento clínico é muito mais curto porque é mais fácil obter a anuência dos pacientes.

A Índia continua sendo um dos principais

fornecedores de antibióticos, além de

tratamentos do câncer e Aids a preços

relativamente acessíveis para os países em

via de desenvolvimento. Qual é o impacto dos

genéricos de fabricação indiana nos cuidados

com a saúde, na Índia? E no mundo?

Eis algo difícil de avaliar com precisão porque, na Índia, a indústria farmacêutica está focalizada, sobretudo, nas exportações, seja para outros países em via de desenvolvimento ou para o Ocidente. As empresas indianas desempenharam um papel primordial na queda espetacular dos preços dos antirretrovirais, garantindo que os doentes de Aids tivessem um melhor acesso aos tratamentos. Trata-se de uma das principais contribuições da indústria farmacêutica indiana para a saúde, tanto na Índia quanto no resto do mundo, nos últimos anos.Infelizmente, os empresários indianos – interessados quase exclusivamente nas exportações – deixam de lado as doenças chamadas “negligenciadas”, tais como a malária ou a tuberculose, renegadas pelos fabricantes ocidentais porque os mercados são exíguos e os doentes são, em geral, pobres e, portanto, incapazes de financiar seus tratamentos. De fato, esses medicamentos não permitem fazer grandes lucros. As empresas indianas encontram-se na mesma linha ideológica, de tal modo que nenhuma delas propõe, neste domínio, projetos confiáveis de pesquisa e desenvolvimento. �

O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1 . 2 7

Os ensaios clínicos

custam muito

mais barato na

Índia do que nos

países ocidentais.

Mas, acima de

tudo, o país

dispõe de um

grande número

de pacientes

“ingênuos”, ou

seja, que nunca

foram submetidos

a qualquer

tratamento, e os

ensaios fornecem

melhores

resultados

nos usuários

de primeira

experiência.

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2 8 . O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1

sua vez, os sais de alginatos formam géis que são introduzidos em adesivos, por exemplo, porque a substância medicamentosa pode ser encapsulada para permitir uma lenta difusão no corpo.

Os extratos de algas marinhas, tais como a fucoidina, apresentam um considerável potencial para o desenvolvimento de novos produtos no mercado dos alicaments – alimentos com propriedades medicinais (o termo combina as noções de alimento e de medicamento) – e de produtos farmacêuticos. No entanto, um dos maiores desafi os a enfrentar, nesta área, continua sendo a qualidade das algas: com a diminuição da qualidade da água, consequência da rápida industrialização, é cada vez mais difícil encontrar algas com baixa concentração de toxinas – por exemplo, os metais pesados. O outro grande desa-fi o consiste em utilizar este recurso e, ao mesmo tempo, respeitar o meio ambiente para conservar a biodiversidade do ecossistema marinho. �

Membro da Academia das Ciências na

Austrália e secretária geral honorária do

Instituto Real Australiano de Química

(RACI – Royal Australian Chemical Institute),

Vicki Gardiner é diretora de inovação e

desenvolvimento de produtos da empresa

Marinova Pty Ltd. Ela é a responsável pelas

atividades do Ano Internacional da Química

junto ao RACI.

Logo após a descoberta, em 1977, do sítio arqueológico de Monte Verde (Chile), foram encontradas amostras de nove algas na cabana de um curandeiro que, há cerca de 14.000 anos, tinha vivido nesses lugares. A 17.000 quilômetros de lá, os japoneses do arquipélago de Okinawa são conhecidos desde a Antiguidade, como grandes consumidores de algas pardas que contêm a fucoidina, substância muito rica em polissacarídios sulfatados (açúcares naturais).

Nos últimos 30 anos, a pesquisa sobre a fucoidina e outros polissacarídios marinhos confi rmou, por meio de uns 800 artigos científi cos, o que já era conhecido, desde sempre, pelos japoneses: a fucoidina é um vigoroso anti-infl amatório e anticoagulante que inibe certos vírus e aprimora o sistema imunológico. Os estudos mais recentes sobre um novo produto à base de fucoidina demonstraram uma de suas propriedades, até então, desconhecida: reduzir os sintomas de artrite do joelho.

Atualmente, muitos preparos na área da medicina e suplementos nutrientes contêm algas ou extratos de algas. As algas pardas gigantes, secas e trituradas, são utilizadas em virtude de seus teores de iodo; o tipo de algas agar-agar por suas propriedades gelifi cantes; e os alginatos, por sua capacidade de interromper os refl uxos ácidos. Além disso, o tipo de algas agar-agar serve de meio para a cultura em microbiologia com o objetivo de identifi car agentes infecciosos. Por

Uso saudável do ecossistema marinho

Vicki Gardiner

Os estudos mais

recentes sobre um

novo produto à

base de fucoidina

demonstraram

uma de suas

propriedades,

até então,

desconhecida:

reduzir os

sintomas de artrite

do joelho

��A wakame, ou samambaia do mar, é uma alga comestível muito popular no Japão. © Ian Wallace

Page 29: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

A Química em plena

renovação

Mesmo que esteja na origem da maior parte

das inovações que têm contribuído para a

melhoria de qualidade de vida da humanidade,

a Química é considerada, frequentemente,

como um espantalho pelo público em geral:

um grande número de pessoas costumam

associá-la à fumaça negra lançada na atmosfera

pelas chaminés das fábricas. De fato, se forem

levados em consideração os escândalos da

Química farmacêutica, os efeitos deletérios dos

pesticidas e as catástrofes industriais, a área foi

acumulando, no passado, diversos aspectos

ruins que mancharam sua reputação a tal

ponto que, às vezes, acabam por ocultar suas

vantagens.

No entanto, para superar a poluição química,

impõem-se soluções químicas: nos últimos

20 anos, pesquisadores e químicos do setor

industrial têm competido em inventividade

para combater, em especial, as mudanças

climáticas e a degradação do meio ambiente.

A Química “verde” vai de vento em popa, tanto

no Ocidente, quanto nos países emergentes ou

em desenvolvimento. Testemunho disso é o

entusiasmo dos alunos que têm escrito para nós:

eles representam apenas uma ínfi ma parte dos

jovens que, depois de terem deixado de lado a

Química durante um período de sua vida, estão

manifestando interesse por essa disciplina para

reinventá-la.

O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O - M A R Ç O 2 0 1 1 . 2 9

© Mikal Schlosser

Page 30: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

A química dos gases industriais teve de enfrentar, sucessivamente, os

problemas do buraco de ozônio e do aquecimento climático. A pesquisa

se empenhou em desenvolver compostos cada vez menos perigosos.

Nos últimos dez anos, ela diminuiu em 350 vezes o potencial do

aquecimento global de gases utilizados em aerossóis, refrigeradores e

ares-condicionados.

Todos aqueles que utilizavam um vaporizador, em 1973, estavam liquidando o Planeta em pequenas doses… sem terem conhecimento disso. Um ano mais tarde, tal questão fi cou totalmente esclarecida: os químicos Mario Molina e F. Sherwood Roland −laureados do Prêmio Nobel de Química em 1995 − descobriram que o gás freon, utilizado na propulsão de aerossóis, destruía a camada de ozônio.

Desde então, predizer o destino dos produtos químicos na atmosfera tornou-se a paixão de um jovem estudante, Ole John Nielsen, que é atualmente professor da Universidade de Copenhague, membro do Grupo Intergovernamental de Especialistas sobre a Evolução do Clima (GIEC) e “adivinho na área da Química”.

“Eles anunciavam que os clorofl uorcarbonetos (CFC) estavam destruindo a camada de ozônio,

que serve de proteção ao planeta contra a radiação ultravioleta e essa destruição, por sua vez, provoca o aumento da radiação que causaria cânceres… ao escutá-los, tinha-se a impressão de que o fi m do mundo estava próximo. Como estudante jovem e ingênuo que eu era, senti, naturalmente, a necessidade de me interessar por esses compostos e por seus efeitos sobre a atmosfera”, relata Nielsen.

A ideia de que as atividades humanas podiam danifi car a atmosfera terrestre era, talvez, algo novo em 1974. No entanto, em meados da década de 1980, não havia mais qualquer sombra de dúvida: os CFCs começavam a corroer a camada de ozônio por cima da Antártida.

Como eles eram utilizados, igualmente, na refrigeração dos aparelhos de ar-condicionado e dos refrigeradores, milhões de toneladas de CFC acabam sendo lançados na atmosfera. “Saber

Como desativar as bombas de pressãodos aerosóis

Jes Andersenjornalista dinamarquês,

conversa com

Ole John Nielsen

3 0 . O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1

��Somente nos anos 1970 foi descoberto o efeito nocivo do gás Fréon, utilizado nas bombas de aerosol.© iStockphoto.com/Franck

Boston

Page 31: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

qual seria o destino desses compostos ou quais poderiam ser seus efeitos não era uma questão colocada”, lembra-se Ole John Nielsen.

Por sua vez, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) manifestou sua preocupação e preparou-se para neutralizar qualquer aerossol suspeito. O “Protocolo de Montréal (Canadá) relativo a substâncias que empobrecem a camada de ozônio” foi aberto, portanto, à assinatura dos Estados-membros, em 16 de setembro de 1987. Atualmente, ele é ratifi cado por 196 Estados. Em essência, esse Tratado Internacional declara que todos os com-postos perigosos para a camada de ozônio são ilegais. Assim, tinha sido decidido o fi m dos CFCs.

Entretanto, Ole John Nielsen ganhou reputação na química da atmosfera e preparava-se para enfrentar “os assassinos do ozônio”. Em um ano, com sua equipe, ele havia publicado 25 artigos sobre o tema. Ele não fi cou, portanto, surpreso quando alguns empresários da indústriai solicitaram sua colaboração para testar um novo composto, suscetível de substituir os CFCs. “De fato, éramos as pessoas certas, dotadas das competências adequadas e era o momento certo”, comenta ele.

Tratava-se de um hidrofl uorcarboneto, conhecido sob a denominação de “HFC 134a”, que era realmente menos perigoso para a camada de ozônio e parecia mesmo francamente inofensivo. Portanto, a partir de 1994, o HFC 134a substituiu os CFCs na maior parte das aplicações, e o professor Nielsen pôs-se a refl etir que seria preferível se ele encontrasse outro campo de pesquisa.

Mas, o cientista dinamarquês não conseguiu pendurar suas “luvas atmosféricas”, porque o produto que ele havia certifi cado sem perigo para a camada de ozônio continuava sendo, em outro aspecto, nocivo para o planeta...

Descobriu-se que o HFC 134a neutralizava os raios infravermelhos, provocando um efeito estufa: ao composto sem danos para a camada de ozônio, atribuiu-se, pelo contrário, um potencial de aquecimento global (GWP - Global Warming Potential) 1.400 vezes maior do que o do CO2!

Felizmente, a indústria aceitou a ideia de testar e adotar um melhor agente de refrigeração. “No decorrer da minha vida, devo dizer que tenho sido testemunha de uma mudança radical de atitude”, confi rma Nielsen. “Atualmente, quando se pretende produzir um composto em grande quantidade, solicita-se a opinião dos especialistas sobre os eventuais efeitos de sua emissão. Nem sempre foi adotado tal procedimento. É óbvio que existe, também, a legislação que garante o respeito pelo meio ambiente, mas é evidente que as indústrias, em particular as grandes empresas, estão agindo, agora, de forma muito mais responsável”.

A partir de 2011, os sistemas de ar-condicionado dos automóveis, na Europa, deverão utilizar um agente de refrigeração, cujo GWP seja inferior a 150. Como o agente do HFC 134a exibia um potencial de aquecimento global de 1.400, Nielsen e sua equipe testaram um novo composto. Com um GWP limitado apenas a quatro, esse HFO-1234yf permitirá que as montadoras se adaptem às normas europeias.

A próxima etapa, de acordo com Nielsen: biocombustíveis! Pode ocorrer que o etanol e butanol não tenham efeitos sobre o aquecimento global, mas poderiam gerar, na atmosfera, produtos nocivos para a saúde humana. “Se os biocombustíveis vierem a substituir o diesel e a gasolina, temos interesse em conhecer bem seu impacto sobre a atmosfera antes de utilizá-los. Isto é válido para todos os compostos lançados na natureza”, conclui o cientista. �

Ole John Nielsen,

professor da

Universidade de

Copenhague, é

membro do Grupo

Intergovernamental

de Especialistas

sobre a Evolução do

Clima (GIEC-Groupe

intergouvernemental

d’experts sur l’évolution

du climat), entidade

laureada com o Prêmio

Nobel da Paz em 2007.

Ele é especialista em

Química Atmosférica.

© Jes Andersen

A ideia de que

as atividades

humanas podiam

danifi car a

atmosfera terrestre

era, talvez, algo

novo em 1974,

mas em meados

dos anos 1980,

não havia mais

qualquer sombra

de dúvida.

O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O - M A R Ç O 2 0 1 1 . 3 1

Page 32: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

A geoengenharia avança de vento em popa em meio à comunidade

científica. Limitar o impacto do aquecimento global por meio da

manipulação do meio ambiente é uma ideia com múltiplas ramificações,

desenvolvida por um número crescente de renomados químicos e físicos,

entre os quais o norte-americano Klaus Lackner, o australiano Ian Jones,

o britânico James Lovelock e o holandês Paul Crutzen.

Certamente, eles esperam que a pesquisa nos traga novas fontes

de energia para a desaceleração do ritmo do aquecimento global. Mas,

com essa expectativa, eles trabalham no que, atualmente, é chamado de

“Plano B”. Duas abordagens são privilegiadas entre as propostas para

salvar o planeta: a primeira consiste na captura de CO2 com o objetivo

de diminuir a concentração de gases de efeito estufa (dopagem das

árvores com nitrogênio, árvores sintéticas, fertilização dos oceanos ou

revestimento do fundo marinho com calcário). E a outra visa a desviar

uma parte da radiação solar (para-sol gigante constituído por bilhões

de pequenos discos de vidro, camada protetora de partículas de sal

provenientes dos oceanos ou de partículas de sulfato).

Se a primeira abordagem envolve menos riscos, avalia-se que é

demasiado lenta em relação à segunda que é considerada demasiado

arriscada. Em ambos os casos, os custos são elevados e a eficácia, bem

limitada.

O ferro contra a anemiado marPhilip W. Boyd

O ferro é um dos principais elementos do qual se alimentam os organismos microscópicos que vivem na superfície das águas, conhecidos sob a denominação de fitoplâncton. O ferro favorece a proliferação dessas microalgas que se desenvolvem ao assimilar, por fotossíntese, gás carbônico (CO2) dissolvido na água. Além disso, ao morrerem, fazem desaparecer esse gás no fundo dos oceanos. Este processo natural é designado por “bomba biológica” à base de carbono.

Para neutralizar, de forma duradoura, uma parte do CO2 que o homem lança na atmosfera desde o início da era industrial, e para limitar, assim, o aquecimento da Terra, os partidários da fertilização preconizam o derramamento de quantidades maciças de ferro, dissolvido em uma solução ácida, nos oceanos.

Por quê? Porque o fitoplâncton é anêmico. Embora o ferro seja o quarto elemento mais abundante na crosta terrestre, ele é muito raro no meio dos oceanos, em áreas mais distantes do litoral, para serem abastecidas de ferro pelos rios. À semelhança do que se passa com o ser humano, suas células funcionam mal quando estão doentes. Por mais microscópicas que sejam, essas algas ocupam vastas extensões de oceanos e sua anemia coletiva tem consequências

Mudanças climáticas:o Plano B

3 2 . O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1

Page 33: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

planetárias, em particular, sobre o clima. E ainda mais porque o fitoplâncton marinho, quando se encontra em boas condições de saúde, produz um volume de oxigênio superior à produção de todas as florestas da Terra.

Daí, surgiu a ideia de “fertilizar” artificialmente determinadas regiões marinhas com partículas ferrosas, a fim de favorecer a produção vegetal. Mas, uma coisa é o projeto e outra, sua realização…

Atualmente, um número crescente de cientistas tem dúvidas a respeito da pertinência do acréscimo de ferro nos mares do planeta para absorver as emissões de CO2. Além disso, são ressaltados os possíveis efeitos secundários dessa estratégia. Longe de limitar-se a imitar a natureza, a semeadura poderia, especificamente, levar ao desenvolvimento de vastas áreas subaquáticas, ao mesmo tempo, acidificadas e desprovidas de oxigênio (as algas deslizam para o fundo do oceano e decompõem-se sob o efeito dos micróbios marinhos), sem esquecer que ela facilitaria a proliferação de algas tóxicas nas águas de superfície.

Fertilizar artificialmente os oceanos com a expectativa de atenuar o aumento do CO2 atmosférico assemelha-se em tudo a um empreendimento de alto risco e parece ser também tão dispendioso quanto um grande número de outras propostas provenientes de empresas de geoengenharia, cujos efeitos colaterais seriam menos consideráveis. Por exemplo, alguns preconizam a implantação de “árvores sintéticas” compostas por um pilar e por uma estru-tura – equivalente aos ramos de uma árvore natural – para captar o CO2. �

Philip W. Boyd é professor de

biogeoquímica marinha no Instituto

Nacional de Pesquisa dda Água e da

Atmosfera (National Institute of Water &

Atmospheric Research) e no Centro para

a Oceanografia Química e Física (Centre

for Chemical and Physical Oceanography)

da Universidade de Otago, situada em

Dunedin (Nova Zelândia).

Árvores sintéticasEntrevista com Klaus Lackner Katerina Markelova

Em termos de soluções para capturar o CO2 e, assim, diminuir a concentração de gases de efeito estufa, parece que a favorita é aquela que propõe as árvores sintéticas, solução idealizada por Klaus Lackner, geofísico e professor da Universidade de Columbia (EUA). Ainda em fase de protótipo, este purificador de CO2 deveria filtrar o ar à maneira de uma árvore natural, mas com uma capacidade muito mais significativa. “A quantidade de CO2 retirado do ar por um purificador do tamanho de um moinho de vento é muito superior à eventual redução de emissões de CO2 por um moinho”, explica o inventor do método.

Sua ideia inspirou-se na filha: “Foi em 1998. Clare havia trabalhado em um projeto que lhe permitiu mostrar que seria possível remover o dióxido de carbono da atmosfera”. De fato, durante uma noite, ela conseguiu recuperar metade do CO2 contido no ar.

Ao ampliar esta experiência, Klaus Lackner construiu um “aspirador” que, colocado em áreas mais expostas ao vento, absorve o ar carregado em CO2, filtrando-o antes de lançá-lo na atmosfera já purificado. A soda cáustica é a chave para o sucesso deste método: ao entrar em contato com ela, o dióxido de carbono transforma-se em solução líquida de bicarbonato de sódio. Em seguida, este líquido é comprimido até transformar-se em um gás muito concentrado, suscetível de ser armazenado na rocha porosa dos fundos marinhos. Como sua densidade é maior que a da água, o gás não pode escapar e permanece aí sequestrado durante milhões de anos.

De acordo com o professor Lackner, seria necessário, em uma primeira etapa, “começar por remover certa quantidade de CO2 do ar. Se o procedimento vier a ser economicamente rentável, ele poderia contrabalançar as emissões de CO2 expelidas pelos automóveis e aviões. Posteriormente, se for demonstrado que o método, combinado com outras tecnologias semelhantes, consegue impedir o aumento das taxas de CO2 na atmosfera, será possível lançar-se na captura de ar em quantidades mais significativas e começar a reduzir o nível de CO2”.

As árvores sintéticas constituem uma peça no quebra-cabeça das negociações internacionais sobre as emissões de dióxido de carbono na atmosfera, por tornarem possível a coleta de CO2 na conta de outro país. “A captura do ar é capaz de separar as fontes de poluição dos poços de carbono”, afirma Klaus Lackner. “Ela permite também que possamos imaginar um mundo em que todas as emissões de CO2 na atmosfera serão tratadas. Sem esquecer os automóveis, nem os aviões”, insiste ele.

Atualmente, esta tecnologia é tão cara “quanto um veículo que tivesse sido feito à mão”, para retomar as palavras de Klaus Lackner que está otimista em relação às possibilidades de reduzir os custos dessa operação. Todavia, as árvores artificiais não são uma solução milagrosa. Como reconhece o cientista, “a etapa da compressão é aquela que consome a maior quantidade de energia: 20% do volume de CO2 que uma árvore sintética pode capturar são liberados para a atmosfera pela produção da eletricidade necessária para este procedimento”.

A tecnologia de Klaus Lackner faz parte das soluções a longo prazo. “Ela exige tempo e um verdadeiro compromisso”, afirma ele, preconizando o recurso às energias alternativas: “O fato de existir um purificador de CO2 não é uma razão para continuarmos a poluir”. �

O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1 . 3 3

��Observação do desenvolvimento do fitoplâncton ao longo das costas do Golfo do Alasca (Oceano Pacífico) induzido por um suplemento de ferro, durante o verão de 2002. Imagem de satélite do Programa Ocean Color. O azul é sinal de baixos níveis de fitoplâncton, e as cores mais quentes, do verde ao vermelho, indicam quantidades crescentes dessas algas. © Reproduzido com a gentil autorização de Jim

Gower (IOS, Canada)/NASA/Orbimage

��A capacidade dos vegetais para absorver CO2 serviu de modelo para as árvores sintéticas de Klaus Lackner. © UNESCO/Linda Shen

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de outubro de 2010, não descarta essa possibilidade. Ele conclui: “Considerando o elevado grau de semelhança entre a camada superior da neblina de Vênus e a camada de sulfato na estratosfera terrestre (camada de Junge), que constitui um importante regulador do clima da Terra, assim como a abundância de ozônio, (nossas) experiências e modelizações podem se revelar pertinentes para a química dos aerossóis estratosféricos e suas aplicações na geoengenharia do clima terrestre”.

Estamos ainda na fase das hipóteses. O SO2 é um gás que, em concentração elevada, pode provocar doenças pulmonares e cardiovasculares, danificar a vegetação, levar à acidificação da água e à corrosão dos metais etc. Os cientistas estão de acordo em reconhecer que há um longo caminho a percorrer antes de pensar em aplicar semelhante “tela solar” na Terra. �

Vênus... ao socorroda Terra !Jasmina Šopova

Será que Vênus nos fornece uma chave para combater o aquecimento global? Em um comunicado de imprensa de 5 de novembro de 2010, o Centro Nacional de Pesquisas Científicas (Centre national de la recherche scientifique- CNRS), na França, anunciava que uma equipe internacional de pesquisadores acabara de localizar uma camada de dióxido de enxofre (SO2) na alta atmosfera de Vênus. “Eles estão particularmente interessados no SO2”, prossegue o comunicado, “porque esse gás poderia servir para resfriar a Terra, segundo um procedimento de geoengenharia proposto por Paul Crutzen, Prêmio Nobel de Química - 1995”.

Com efeito, há cinco anos, o famoso químico holandês havia preconizado uma solução de emergência, em caso de aquecimento acelerado do clima, consistindo em disseminar na

estratosfera um milhão de toneladas de enxofre que, ao final de um processo químico natural, transformar-se-ia em dióxido de enxofre e, posteriormente, em partículas de sulfato. Ao refletir os raios solares, estas últimas permitiriam reduzir a temperatura média da Terra. Esta ideia havia sido inspirada nas pesquisas, na década de 1970, do climatologista russo, Mikhail Budyko, assim como no vulcão Pinatubo (Filipinas) que havia expelido 10 milhões de toneladas de enxofre, em 1991, tendo provocado no ano seguinte uma queda de meio grau na temperatura média global.

Xi Zhang – responsável por simulações de computador que confirmaram a presença de SO2 na alta atmosfera de Vênus – afirma que as aplicações desta descoberta na manipulação do clima estão fora da sua área de especialização.

No entanto, o artigo desse pesquisador do Instituto Californiano de Tecnologia, assinado por ele sua equipe, na revista Nature Geoscience, em 31

��Vista de uma face de Vênus tirada pela sonda Magellan.© NASA/com a gentil autorização de nasaimages.org.

3 4 . O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O - M A R Ç O 2 0 1 1

Page 35: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1 . 3 5

Em 4 de outubro de 2010, uma catástrofe atinge a Hungria: na usina de alumínio, pertencente à em-presa MAL, perto da cidade de Kolontár, a 160 km de Budapeste, verifi cou-se o desmoronamento das paredes de um reservatório. Uma torrente de lama vermelha tóxica de dois metros de altura se espalha e acaba por inundar casas e seus habitantes. Nove pessoas morrem, 150 fi cam feridas. Várias centenas de milhares de toneladas de lama tóxica contaminam 40 km2 de terra. Essa lama é um resíduo oriundo do processo de produção de alumínio. Ela é perigosa por conter hidróxido de sódio altamente cáustico, além de metais pesados tóxicos, tais como mercúrio, arsênico e crômio.

No decorrer das últimas décadas, em várias oportunidades, acidentes químicos tornaram-se

a causa de horror e de grande afl ição – as imagens apocalípticas extraídas desses incidentes desencadearam um efeito negativo sobre a indústria química. Em 1976, um gás de dioxina escapou de uma usina pertencente à empresa Icmesa, fi lial da sociedade Hoff mann-La Roche, em Seveso, cidade do norte da Itália, perto de Milão. A nuvem de gás, milhares de vezes mais tóxica que o cianeto de potássio, semeia a morte e a destruição por onde passa: as plantas murcham, as árvores perdem as folhas e milhares de animais morrem. As imagens de crianças desfi guradas e de trabalhadores com máscaras de gás e uniformes brancos de proteção dão a volta ao mundo. Oito anos mais tarde, um acidente ainda mais terrível ocorre na Índia. Quarenta toneladas de um gás de isocianato de metila, altamente tóxico, escapam

A indústria química é uma das mais importantes do planeta. Sua

produção anual, no mundo inteiro, eleva-se à espantosa soma

de US$ 3,6 bilhões. Durante décadas, não se preocupava com o

desenvolvimento sustentável, nem com a proteção do meio ambiente.

Mas, depois de grandes catástrofes – tais como em Bhopal (Índia) e

Seveso (Itália) –, as atitudes começaram a alterar-se: em vez da Química

negra, é a Química verde que, agora, avança de vento em popa, por

toda parte no Planeta.

Jens Lubbadehcorrespondente

alemão do Correio da

UNESCO e jornalista do

Greenpeace Magazine

��Evitar criar resíduos, diminuir o consumo de energia, aumentar a efi cácia da produção e explorar recursos renováveis são os princípios fundamentais da química verde, nascida no fi nal dos anos 1980.©123rf.com/Michal Rozewski

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de uma usina pertencente ao gigante da indústria química norte-americana Union Carbide (agora, uma filial de Dow Chemical) na cidade de Bhopal, no centro da Índia. Vários milhares de pessoas morreram; ainda hoje, outro meio milhão sofre das sequelas dessa catástrofe. A ocorrência verificada em Bhopal é considerada como o mais grave acidente químico produzido, até agora. Dois anos mais tarde, a Europa é vítima, novamente, de outro acidente quando, perto de Basileia (Suíça), um galpão pertencente ao gigante da indústria química Sandoz (agora, Novartis) ficou reduzido a escombros. Pesticidas tóxicos espalham-se no rio Reno, cuja água torna-se vermelha em centenas de quilômetros e grande quantidade de peixes mortos flutuam na corrente do rio.

O principal poluente

Kolontár, Bhopal, Seveso, Basileia. As razões dessas catástrofes são quase sempre as mesmas: imprudência, negligência, erro humano. E, quase sempre, as empresas tentam dissimular e minimizar as causas e as consequências dos acidentes. Por sua vez, os resultados assemelham-se: campos devastados, vegetação destruída, animais mortos e, no meio de tudo isso, trabalhadores semelhantes a extraterrestres com seus uniformes de proteção. A população se preocupa cada vez mais com essa morte invisível, que ameaça não somente com as radiações, mas também com produtos químicos. Foi isso que desencadeou o surgimento do movimento ecológico nas décadas de 1970 e 1980. Com uma frequência cada vez maior, as práticas das indústrias químicas, tais como a

disseminação de resíduos tóxicos na natureza ou seu envio para os países pobres são tornadas públicas. Para uma população cada vez mais sensível à ecologia, a indústria química tornou-se o principal poluente do planeta. A palavra “química” está sendo considerada como sinônimo de tóxico. Atualmente, as mercadorias utilizam o rótulo “sem produto químico” como um argumento de venda. Apenas em algumas décadas, ocorreu uma mudança dramática de imagem. Na década de 1950, o nylon, os plásticos e o sabão em pó para lavar roupa – por exemplo, a marca francesa Persil – eram vistos como sinais do progresso; já nas décadas de 1970 e 1980, a imagem da indústria química tornou-se tão negra quanto ela havia sido em suas origens.

O termo kemi, em egípcio antigo, fazia refe-rência, originalmente, à terra negra do vale do rio Nilo, mas também ao khol (lápis para sublinhar o contorno dos olhos; ver p. 15); em árabe, kemi transformou-se em al-kimiya ou alquimia (ver p. 13). Este passatempo obscuro e oculto tornou-se uma verdadeira ciência no século XVIII e, a partir do século XIX, uma das mais importantes indústrias do mundo. É nesta fase que surgiram os atuais atores mundiais da indústria: BASF, Bayer, DuPont e La Roche. Desde plásticos, fertilizantes, detergentes ou fármacos, a indústria química produz mais de 70.000 produtos diferentes. Sua produção anual, no mundo inteiro, eleva-se à espantosa soma de US$ 3.600 bilhões, de acordo com Conselho Norte-americano de Química (American Chemistry Council, na sigla em inglês). Essa indústria se modificou e melhorou consideravelmente nossas

3 6 . O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1

��Em março de 2010, uma centena de peixes mortos invadiu a Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, Brasil. Entre as razões evocadas estavam: o derramamento de águas usadas, transportando resíduos tóxicos de origem doméstica e industrial. A proliferação de uma alga devido ao excesso de nitrato e de fósforo teria causado a morte dos peixes por asfixia.© M.Flores – UNEP/Specialist

Stock

Nos anos 1950, o

nylon, os plásticos

e o sabão em pó

para lavar roupa

- por exemplo, a

marca francesa

Persil - eram vistos

como sinais do

progresso; nas

décadas de 1970

e 1980, a imagem

da indústria

química tornou-se

tão negra quanto

ela havia sido em

suas origens.

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condições de vida. Sem ela, a civilização moderna seria impensável.

Todavia, após um século de sucessos, a indústria química, inflada por um enorme volume de produção mecanizada, tem causado um número crescente de problemas ecológicos. Sua necessidade em matérias-primas e em energia é enorme; a maior parte dos solventes e catalisadores é tóxica; os métodos de eliminação dos resíduos são complicados e dispendiosos; algumas substâncias tóxicas e cancerígenas são liberadas no ar e na água. De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), a Europa Ocidental produziu um total de 42 milhões de toneladas de resíduos tóxicos, unicamente, no ano de 2000, dos quais cinco milhões foram exportados em 2001.

Química verde

A eliminação indiscriminada dos resíduos tóxicos foi tolerada ou dissimulada, durante muito tempo, pelos políticos; a indústria química era demasiado importante para a economia. Mas, na sequência dos acidentes em Bhopal e Seveso, os tomadores de decisão políticos foram obrigados a reagir: no decorrer das décadas de 1980 e 1990, as empresas químicas tiveram de atender a exigências ambi-entais cada vez mais rigorosas. Nos EUA, por exemplo, a Agência de Proteção Ambiental, EPA (Environmental Protection Agency, sigla em inglês) aprovou, em 1990, o Pollution Prevention Act que marca uma ruptura na política do meio ambiente. Os procedimentos de fabricação e os produtos deveriam trazer a marca de desenvolvimento

sustentável, a poluição deveria ser evitada – a Química negra começava lentamente a tornar-se verde. “Quando a expressão Química verde surgiu, em 1991, foi possível entender que seria desejável criar um quadro comum para aqueles que pretendessem transformar seus princípios em realizações concretas”, diz Paul Anastas, consi-derado como o “pai da Química verde”. Diretor do Centro para a Química Verde na Universidade de Yale, ele trabalha também para a EPA. Em 1988, com seu colega Jack Warner, ele publicou o texto “Doze princípios da Química verde” (Twelve Principles of Green Chemistry). O primeiro desses princípios estipula que, “em vez da obrigação de tratar ou eliminar resíduos a posteriori, é preferível evitar produzi-los”. Outro princípio é que se deve encontrar produtos inofensivos para substituir os produtos químicos (e os solventes) tóxicos. A última etapa no caminho para chegar à Química verde foi, em 2006, a Diretriz da União Europeia: REACH (Registro, Avaliação, Autorização e Restrição de Químicos). Daí em diante, as autoridades já não têm de demonstrar aos fabricantes que as substâncias utilizadas por eles são potencialmente perigosas. Os papéis foram invertidos. Graças à REACH, cerca de 40.000 produtos químicos devem ser, agora, testados.

Outros objetivos da Química verde consistem em reduzir o consumo de energia, em aprimorar a eficácia dos procedimentos de produção e em voltar-se para os recursos renováveis. Afinal de contas, a indústria química depende, também, do petróleo já que consome 10% da produção mundial desse combustível na fabricação de 80 a

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��Cena da catástrofe ecológica ocorrida na Hungria, em outubro de 2010, matando nove pessoas.A lama vermelha tóxica é um resíduo originado no processo de produção do alumínio.© Waltraud Holzfeind/

Greenpeace

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90% de seus produtos. E a indústria química tem uma enorme necessidade de energia: em 2008, na Alemanha, por exemplo, ela consumiu cerca de 12,5% da totalidade da demanda nacional de energia. Desde a década de 1990, a indústria converte-se ao desenvolvimento sustentável – melhorando, ao mesmo tempo, sua imagem. Além da BASF – a maior empresa química do mundo com vendas anuais de 50 bilhões de euros e contando com mais de 100.000 funcionários –, outros gigantes do setor, como DuPont e Dow Chemical ou, ainda, Bayer, querem tornar-se mais “verdes”. “Em nossa empresa, organizamos todas as atividades, seguindo o princípio do desenvolvimento sustentável”, afirma o diretor-geral de BASF, Jürgen Hambrecht. E acrescenta: “Estamos desenvolvendo produtos que ajudem nossos clientes a economizar energia e recursos naturais, melhorando, ao mesmo tempo, sua qualidade de vida”. Trata-se, essencialmente, de materiais isolantes que permitem aos proprietários de casas diminuírem os custos com o aquecimento, reduzindo igualmente as emissões de carbono na atmosfera.

BASF torna público o volume das emissões de carbono, tanto de suas próprias instalações de produção, quanto de todo o ciclo de vida de seus produtos – o que se estende desde a extração da matéria-prima até o tratamento dos resíduos. Assim, o portal internet da empresa revela que a fabricação dos produtos BASF gerou, em 2010, a emissão de cerca de 90 milhões de toneladas de CO2 na atmosfera – o que corresponde a 10% do total das emissões de CO2 na Alemanha. Daqui ao ano 2020, BASF pretende reduzir de 25% (em relação a 2002) as emissões de gás de efeito estufa, relacionadas a sua atividade de produção. Mas, como o processo de produção é responsável apenas por uma parte do volume total das emissões, esta meta de redução representa somente 7,5% do total das emissões da BASF.

No entanto, Jürgen Hambrecht sublinha que os próprios produtos BASF reduzem as emissões de carbono – o que representa, no total, 287 milhões de toneladas de CO2 por ano, ou seja, três vezes o que é expelido durante sua fabricação, como é anunciado de forma ostensiva pelo portal internet da empresa. A BASF prometeu também aplicar, daqui a 2015, a Diretriz REACH, e a reduzir em 70%, daqui a 2020, a quantidade de compostos orgânicos, de compostos de azoto e de metais pesados lançados no ar e na água. Em seu portal na internet, a BASF afirma já ter alcançado tais objetivos. E a empresa está à procura de recursos renováveis: por exemplo, óleo de rícino natural para a fabricação de colchões, o plástico biodegradável Ecovio, que é constituído, em grande parte, por ácido polilático oriundo do milho etc.

A Química verde não se limita a desenvolver-se no Ocidente. “Recentemente, verificou-se um interesse crescente pela Química

verde nos países em desenvolvimento”, afirma Paul Anastas que, há pouco, participou do 1o Congresso Pan-Africano de Química Verde, realizado na Etiópia, em novembro passado (ver destaque). No seu entender, “em países emergentes, tais como a Índia e a China, a Química verde foi implementada no mundo universitário, nas instituições de pesquisa e na indústria, sem dúvida, mais rapidamente que em qualquer outro lugar no mundo”. Parece que esses países não têm intenção de cometer os erros já verificados no Ocidente. �

3 8 . O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1

A QUÍMICA :

um denominador comum na África 

O 1o Congresso Pan-Africano de Química Verde foi realizado de 15 a 17 de novembro de 2010, em Addis Abeba, capital da Etiópia. Fez parte de uma longa série de seminários, conferências e ateliês em todo o continente, reunindo experts africanos e internacionais sobre temas tão diversos quanto a biodiversidade, o desenvolvimento sustentável, o ensino ou a água, tendo todos a Química como denominador comum. Este Congresso foi organizado pela Rede Pan-Africana em favor da Química (Pan Africa Chemistry Network, PACN na sigla em inglês), lançada em novembro de 2007, por iniciativa da Sociedade Real de Química (Royal Society of Chemistry - RSC) e de Syngeta, empresa suíça especializada em química e na agroalimentação. Um ano antes, a RSC tinha lançado a iniciativa Archive for Africa (Arquivo para a África) que coloca à disposição de um grande número de universidades africanas o acesso gratuito aos periódicos especializados em química.A PACN tem a incumbência de facilitar a comunicação entre os químicos africanos e, assim, favorecer a inovação e o desenvolvimento científico em todo o continente. Ela trabalha em parceria com a Federação das Sociedades Africanas de Química (Federation of African Societies of Chemistry, FASC na sigla em inglês), fundada em 2006, com o apoio da UNESCO. Até agora, foram implantados centros da Rede em três países: Quênia, Etiópia e África do Sul. Outros centros devem ser instalados na Nigéria e no Egito. Ao conceder bolsas ou ao participar nas despesas de viagem, a Rede facilita a mobilidade dos químicos africanos, permitindo-lhes aprofundar as respectivas pesquisas no exterior ou participar de congressos internacionais. Seus domínios de atuação são segurança alimentar, biodiversidade e prevenção das doenças.– J. Š. www.rsc.org/Membership/Networking/InternationalActivities/PanAfrica/

Desde a década

de 1990, a

indústria

converte-se ao

desenvolvimento

sustentável –

melhorando, ao

mesmo tempo,

sua imagem.

Page 39: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1 . 3 9

Carta a um jovem químicoO Prêmio Nobel de Química de 2010 foi atribuído ao

norte-americano Richard Heck e aos japoneses Ei-

ichi Negishi e Akira Suzuki por seus trabalhos sobre

a síntese orgânica: eles permitiram inventar uma das

ferramentas mais sofi sticadas da Química,

o “acoplamento cruzado”. Uma das pedras angulares

desse imenso edifício científi co é o “acoplamento

Suzuki”, nome do laureado entrevistado por nós.

Nesta entrevista, Akira Suzuki fala de suas pesquisas

ao dirigir-se, antes de mais nada, aos jovens que

manifestam tendência para abandonar os campos

científi cos. Ele vai incentivá-los a se voltarem para

a Química com o objetivo de transformá-la em uma

ciência nova.

AKIRA SUZUKI responde as perguntas de Noriyuki Yoshida, jornalista do Yomiuri Shimbun, Tóquio (Japão)

Qual é a aplicação prática do

acoplamento cruzado?

Vou dar-lhe um exemplo de modo que você vai entender imediatamente. Após o anúncio do Prêmio Nobel, recebi um número tão grande de pedidos de entrevistas que minha pressão arterial subiu signifi cativamente! Meu médico receitou-me um hipotensor e o farmacêutico explicou-me que esse fármaco havia sido sintetizado por “acoplamento Suzuki”.O procedimento é utilizado, igualmente, para a fabricação de alguns antibióticos, assim como de medicamentos para o tratamento docâncer e Aids.

Na área dos sistemas de informática e de comunicação, esse procedimento serve para fazer a síntese dos cristais líquidos, indispensáveis para os monitores dos televisores ou dos computadores, assim como para as telas eletroluminescentes orgânicas presentes, frequentemente, nos pequenos aparelhos – por exemplo, nos celulares. O Sr. levou quanto tempo para desenvolver

esse método?

A descoberta da reação de acoplamento levou apenas dois ou três anos, no fi nal da década de 1970. No entanto, trabalhei na química do boro, o metalóide mais próximo do carbono, desde 1965, data de meu retorno dos Estados Unidos, depois de ter concluído meus estudos na Universidade de Purdue. Portanto, é o resultado de mais de 10 anos de pesquisas.

Qual foi a reação das pessoas à sua volta,

quando o Sr. começou a trabalhar nessa

área?

Em geral, considerava-se que não havia a mínima possibilidade de ser bem-sucedido. É também por isso que o número de pesquisadores neste domínio, em escala mundial, era reduzido. Mas, no meu caso, sou otimista e pensei que os inconvenientes poderiam tornar-se vantagens. Eu disse para

Akira Suzuki, em Tóquio, novembro de 2010.© Yomiuri Shimbun

Page 40: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

meus botões que, ao superar as difi culdades, seria possível desenvolver um procedimento de síntese estável e de uso acessível.

Diz-se, frequentemente, que a sorte

desempenha um papel importante na

pesquisa. Qual é a sua opinião a esse

respeito?

Ao iniciar uma pesquisa, não se deve contar com o acaso. Ela deve ser, antes de mais nada, racional. É importante proceder à análise minu-ciosa dos sucessos e fracassos das experiências para levá-los em consideração na fase seguinte. É então que a sorte pode intervir. Todo mundo pode ter sorte. Mas, para que isso ocorra, é necessário fi car atento, despender esforços e permanecer modesto diante de todas as coisas.

Quando era criança, o Sr. já sentia alguma

inclinação pela ciência?

Nasci na pequena cidade de Mukawa, no sul de Sapporo (Hokkaido, Japão). Esta cidade é chamada, agora, Shishamo. No tempo da escola secundária, eu era uma criança muito parecida com as outras – eu gostava de ir pescar com os colegas ou jogar beisebol. Na época, ainda não existiam as juku (escolas privadas que oferecem cursos noturnos). As crianças eram livres e plenas de vivacidade. Eu não estava particularmente interessado pela ciência, mas, no secundário, eu gostava muito de matemática. Observando, agora, à distância, acho que eu gostava muito das coisas exatas.

O que levou o Sr. a escolher a Química na

universidade?

Ingressei na Universidade de Hokkaido para estudar matemática. Mas, em uma aula de Química, deparei-me com um compêndio que li e causou me impressionou muito: o autor era um professor de Química orgânica na Universidade de Harvard. Eu tinha uma grande difi culdade para ler em inglês, mas achei esse livro muito interessante. E acabei esquecendo a matemática.

No decorrer de meus estudos de Química, fui muito infl uenciado pelo professor Harusada Sugino que me ensinou a razão pela qual a Química era importante e sua utilidade. Devo dizer que o professor Sugino não se interessava apenas pela Química: ele era o reitor da Universidade de Hokkaido, além de presidente da Comissão Nacional para a UNESCO, no Japão!

Entre 1963 e 1965, o Sr. estudou nos EUA. Na

Universidade de Purdue, o Sr. frequentou

os cursos de Herbert Charles Brown, Prêmio

Nobel de Química em 1979, que foi também

professor de Ei-ichi Negishi.

Tendo completado já os 30 anos, eu era profes-sor assistente na Universidade de Hokkaido e andava a procura de uma área de pesquisa. Entrei em uma livraria de Sapporo e dei uma conferida nos livros que falavam de Química. Meu olhar fi xou-se em um livro com capa preta e vermelha – parecia um livro de literatura – e retirei-o da prateleira. Era um livro do professor Brown, tão interessante que passei noites inteiras lendo esse texto. Escrevi uma carta ao professor lhe dizendo que eu desejava estudar com ele, e foi assim fui para os EUA.

Nesse país, apesar de ser pós-doutorando, meu salário era quatro vezes maior do que um professor assistente no Japão. E a carne e a gasolina eram muito baratas... Eu senti realmente a diferença entre os dois países. Havia vários pesquisadores estrangeiros e acabei por fazer muitos amigos. O intercâmbio com eles deu-me acesso a mundos que eu ignorava. Em um grupos de japoneses, é possível compreender os outros sem falar, mas aprendi que, ao estarmos imersos em outra cultura, devemos falar muito para chegar a um entendimento. Aprendi, também, o inglês. Recomendo aos jovens que, sem hesitação, façam viagens ao exterior. Aprende-se muito fora de seu país, e não apenas no plano profi ssional e em sua especialidade.

O que o Sr. aprendeu com o professor Brown

fora de suas pesquisas?

O professor Brown dizia sempre: “Façam um trabalho que seja digno de um curso”. Isso signifi cava algo de novo que viesse a se tornar tema de uma conferência. E que pudesse, também, ser útil. Eis algo que não é fácil de conseguir. Mas, eu próprio acabei também por dizer a meus estudantes para não “limparem a marmita com um palito”, expressão japonesa que signifi ca: não ligar para os detalhes inúteis. Pelo contrário, digo-lhes para preenchê-la com seus próprios produtos.

4 0 . O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1

��As descobertas de Akira Suzuki permitem otimizar a luz azul nos diodos eletroluminescentes orgânicos presentes nas telas planas. Aqui uma tela produzidapela Sharp. © Yomiuri Shimbun

“Resta-me

formular, uma

vez mais, o desejo

de que venha

a encontrar

sufi ciente

paciência em

si mesmo para

suportar, assim

como sufi ciente

simplicidade para

acreditar.”

– Cartas a um jovem

poeta , Rainer Maria Rilke

Page 41: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

Será que existe um método de trabalho que

seja a garantia do sucesso?

Mesmo que ele existisse, não seria possível pedir a alguém para adotá-lo. Cada um tem suas qualidades e tudo o que se pode fazer é utilizá-las com o maior proveito. No meu caso, creio que foi o otimismo: quando havia alguma falha nas experiências, eu ia beber um copo e descontrair-me com os estudantes; assim, no dia seguinte, eu podia retomar minha pesquisa com um espírito novo.

Em sua opinião, o que se deve fazer para

aumentar o interesse das novas gerações pela

Química?

Os jovens afastam-se da ciência, e esse é realmente um problema grave. Esse fenômeno é, particularmente, acentuado no Japão. A única coisa que se pode fazer em um país desprovido de recursos naturais como o nosso, é criar coisas novas à força de engenhosidade.

Cabe aos jovens – e unicamente a eles – encontrar suas esperanças e seus ideais na ciência. Mas, tenho o desejo de fornecer meu apoio como “veterano”. Graças a este Prêmio Nobel, a expressão “acoplamento cruzado” começa a ser conhecida até mesmo pelas crianças. A divulgação e a popularização da ciência são, para mim, uma grande fonte de motivação.

Em sua opinião, que tipo de vínculos teremos,

no futuro, com a Química?

Neste momento, a Química não é muito apre-ciada por ser identifi cada com maus cheiros e sujeira, ao ponto de inspirar aversão. Essa já era a situação na minha juventude, mas, nessa época, a indústria petroquímica encontrava-se em pleno crescimento e vários estudantes tinham escolhido essa especialidade.

Atualmente, alguns veem a Química exclusivamente como uma indústria poluente, mas é um equívoco. Sem ela, a produtividade iria diminuir e não poderíamos ter a vida como a conhecemos hoje. Se há poluição, é porque produtos nocivos são expelidos sem o devido controle. É necessário, obviamente, adaptar os tratamentos e a gestão, trabalhar no desenvolvimento de substâncias químicas e de procedimentos de síntese que salvaguardem o meio ambiente.

A Química é indispensável para o desenvolvimento do Japão e, também, do mundo. Meu desejo é que os jovens estudem Química com a ideia de criar uma nova ciência. Muitas descobertas e um grande número de aplicações ocorreram até agora; e um número incalculável de substâncias têm sido fabricadas.

A Química continuará sendo muito importante nos próximos anos.

Em que áreas será necessário fazer progredir

a Química orgânica no futuro?

Como foi afi rmado, também, pelo professor Negishi, penso que será necessário orientar-se para a industrialização da fotoquímica, baseada no dióxido de carbono, como o é a fotossíntese das plantas. O rendimento energético obtido neste setor é ainda baixo. A natureza produz compostos orgânicos complexos a partir do dióxido de carbono, utilizando a luz solar como fonte de energia. Além disso, essas reações ocorrem no domínio da temperatura em que vivemos, em um ambiente em que existe água. Espero que consigamos elucidar esses mecanismos para aplicá-los.

2011 foi proclamado como Ano Internacional

da Química. Será que, nesta oportunidade,

o Senhor tem alguma mensagem para os

leitores do Correio da UNESCO que vivem nos

quatro cantos do Planeta?

A Química desempenha um papel muito importante em nossas vidas. A maior parte das especialidades e tecnologias químicas são destinadas à fabricação de produtos que visam o bem-estar da Humanidade. O número de substâncias fabricadas no mundo é considerável – aliás, ninguém conhece exatamente a quantidade –, mas quase todas essas substâncias são compostos orgânicos. Eis a razão pela qual a Química orgânica é um dos ramos mais importantes desta ciência que merece que um número crescente de pessoas venham a se interessar por ela e contribuam para seu desenvolvimento. �

O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1 . 4 1

��A afi xação eletroluminescente orgânica (OLED) constitui uma das várias aplicações do “acoplamento Suzuki”. © Yomiuri Shimbun

Recomendo

aos jovens que,

sem hesitação,

façam viagens

ao exterior.

Aprende-se muito

fora de seu país,

e não apenas no

plano profi ssional

e em sua

especialidade.

Page 42: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

Viva a reciclagem!Meu nome é Ana Alejandra Apaseo Alaniz. Tenho 19 anos e sou estudante na Universidade de Guanajuato, no México. Devo dizer que tive vontade de fazer uma licenciatura em Química para compreender um pouco melhor o mundo ao meu redor. O que me agrada é que a Química pode ser aplicada a todas as áreas. Quando eu era menina, eu gostava de ferver plantas com água para ver o gosto que elas tinham... várias vezes, tive dores de estômago! Mas, era isso que me divertia: fazer pesquisas.

Estou interessada, sobretudo, pela Química orgânica e suas aplicações. Durante o Ano Internacional da Química, eu gostaria muito de realizar este projeto: o desenvolvimento de um método que nos permitisse a reciclagem de produtos fabricados com poliestireno.

Do ponto de vista profissional, tenho a intenção de lançar um projeto focalizado na criação de compostos orgânicos de uso corrente nos laboratórios e na indústria química, a partir de materiais reciclados. Ana Alejandra Apaseo Alaniz (México)

Escolhi a Química sem hesitação Meu nome é Somnath Das e tenho 21 anos. Frequento o Master 2 de Ciências no Instituto Indiano de Tecnologia de Kanpur, no Uttar Pradesh (Índia).

Após o exame final do ensino secundário, ao ingressar na universidade, temos de escolher nossa especialidade entre três matérias para a licenciatura: Física, Química e Matemática. Optei, sem hesitação, pela Química. Eu me questionava como era possível manipular as moléculas, considerando que elas são invisíveis a olho nu. Eu queria conhecer seu comportamento, suas reações... Portanto, escolhi a Química para conhecer melhor o mundo molecular.

Na Química, tudo me agrada, exceto quando não há explicação teórica para uma reação. Por exemplo, na maior parte das reações que se servem de ambientes quirais, um dos dois enantiômeros é preponderante. Na maior parte das vezes, não se consegue explicar essa seletividade, salvo em raros casos em que se dispõe de um modelo. Entre as três grandes disciplinas, prefiro de longe a Química orgânica, e é nesta área que eu gostaria de fazer pesquisas. Somnath Das (Índia)

4 2 . O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1

Aspirantes aquímicos ao redordo globo terrestrePor ocasião do Ano Internacional da Química (AIQ

2011), o Correio da UNESCO interessou-se pelos

jovens que decidiram estudar Química. Propusemos

um questionário aos estudantes inscritos na rede do

AIQ 2011: para a maioria, a Química vai além de uma

vocação profissional: ela é uma paixão.

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Page 43: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

A sabedoria da vigilância Nasci, em 1981, em Chiraz que é a capital cultural do Irã. Cresci em uma família adorável e muito unida. Eu já era curiosa na escola elementar, por isso, escolhi as ciências experimentais no colégio, e aí, pude desenvolver meu talento em relação à Química. Fiquei muito triste ao saber que não existia um tratamento eficaz para o câncer, nem para os ferimentos causados por armas químicas, nem para um grande número de outras doenças graves. Eis o que me impeliu a escolher a Química para meus estudos universitários. Eu desejaria sintetizar novas moléculas. Em 1999, obtive minha licenciatura em Química pura na Universidade de Yasuj. Então, compreendi que a Química estava por toda a parte, em nosso entorno. Em 2006, iniciei um doutorado em Química dos polímeros, na Universidade de Chiraz.

A Química fornece-me a sabedoria da vigilância que impregna todos os aspectos de minha vida. O que eu acho realmente insuportável, é que os governos e as pessoas em geral manifestem pouca preocupação relativamente aos efeitos secundários da Química industrial: poluição, aquecimento da Terra, doenças etc... Tudo isso deveria ser analisado minuciosamente pelos cientistas.

Em 2011, vou passar um ano sabático na Universidade de Duisburg (Alemanha) para trabalhar em um projeto de membranas de síntese, bastante utilizadas, por exemplo, para a eliminação seletiva de impurezas em diferentes meios. Minha expectativa é que, no final de meu doutorado, tenha a possibilidade de trabalhar em uma empresa industrial, cujos projetos venham a contribuir para a luta contra a poluição.Fatemeh Farjadian (Irã)

A Química é “a ciência-mãe” Meu nome é Kufre Ite. Tenho 28 anos. No final deste ano, pretendo terminar meu Mestrado em Química Analítica na Universidade de Uyo (Nigéria). Durante meus estudos secundários, a matéria “Introdução às Tecnologias” despertou minha curiosidade em relação às ciências. Em seguida, orientei-me para a Química porque os princípios desta ciência estão na base de

todas as ciências naturais e aplicadas. Ela é “a ciência-mãe”. A Química está atenta à natureza e ela recria a natureza. Deixei-me inspirar por este lema da Sociedade Nigeriana de Química: “Haverá algo à nossa volta que não seja química?” De fato, todos se beneficiam, cotidianamente, das aplicações práticas desta ciência, a começar pelo sabão para se lavarem e pelas roupas que utilizam. Aprecio muito, também, a meticulosidade e a precisão dos químicos.

Para o AIQ 2011, escolhi como assunto “Os químicos na sociedade modernizada”. Eu gostaria de sensibilizar as empresas locais de médio porte em relação aos problemas de segurança no trabalho, além da manipulação, armazenamento e transporte dos produtos químicos e dos reagentes. Isso permitirá que o público entenda melhor o papel da Química nos setores público e privado de nossa economia. Kufre Ite (Nigéria)

Não esqueçamos as provetas! Tenho 21 anos e estou estudando para ter um diploma de engenheiro em Química aplicada na Faculdade de Engenharia e de Tecnologia Químicas da Universidade de Zagreb (Croácia). Da minha parte, é claro que o estudo da Química tem a ver com minha história de amor com a natureza, desde minha infância. Aprecio o caráter pluridisciplinar das minhas aulas, mas muito menos a enorme influência dos computadores que nos afasta da tradicional abordagem experimental. Evidentemente, estou consciente de que eles têm também numerosas vantagens. Após a obtenção de meu diploma espero entrar no doutorado, na Croácia ou no exterior, e aperfeiçoar-me nos polímeros. Para celebrar o AIQ, eu gostaria de divulgar a Química por meio de experiências ao mesmo tempo simples e apaixonantes para explicar os fenômenos que temos à nossa volta. Marko Viskic (Croácia)

O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1 . 4 3

“Todo mundo

pode ter sorte.

Mas, para que

isso ocorra, é

necessário ficar

atento, despender

esforços e

permanecer

modesto diante de

todas as coisas...

Cabe aos jovens

– e unicamente a

eles – encontrar

suas esperanças

e seus ideais na

ciência.”

– Akira Suzuki

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Page 44: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

Atualmente, o Departamento de Química garante emprego a 27 professores e oito técnicos; em 2010-2011, 1.121 estudantes estão matriculados na licenciatura, 81 no mestrado e 45 no doutorado. O Departamento dispõe de cursos destinados à análise e à detecção de indícios de metais pesados (ver página 21), ao estudo dos biossensores, à química dos produtos naturais, à química verde, à eletroquímica, à química digital e a um grande número de outras áreas desta ciência complexa.

Estendendo-se em uma superfície de cerca de 2.800 m2, os prédios do Departamento estão equipados com 25 laboratórios e 13 salas anexas. Os produtos químicos e o material estão armazenados em espaços que ocupam mais de 700 m2 suplementares. Entre os instrumentos mais sofi sticados que estão a serviço tanto da pesquisa

quanto da formação, podemos citar um espectrômetro RMN 400 MHz, um cromatógrafo líquido de alta efi ciência, um espectrômetro infravermelho com Transformada de Fourier, um espectroscópio ultravioleta visível e um cromatógrafo gasoso acoplado a um espectrômetro de massa.

A imagem global de nosso Departa-mento é, de preferência, positiva, mas ainda resta enfrentar um bom número de desafi os: medidas de segurança inadequadas, número considerável de estudantes, laboratórios inadaptados para a formação do 1º ciclo, falta de pessoal administrativo, preços proibitivos dos produtos químicos e dos equipamentos científi cos. A maior parte dos trabalhos de pesquisa é produzida graças ao fi nanciamento bastante limitado que o Departamento recebe da Universidade. Apenas alguns programas

são fi nanciados por organizações estrangeiras: Swedish International Development Cooperation Agency (SIDA/SAREC), International Program in the Chemical Sciences (IPICS), Development Partnerships in Higher Education (DelPHE) du British Council e International Foundation for Science (IFS).

A falta de um Centro de Análise de Dados em nossas instalações é outra fonte de problemas. Muitas vezes, somos obrigados a enviar amostras para serem analisadas no exterior, o que gera atrasos desfavoráveis para os estudantes, cujas pesquisas devem ser elaboradas em um tempo limitado. �

Shimalis Admassie é diretor do

Departamento de Química na

Universidade de Addis-Abeba (Etiópia).

4 4 . O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1

Estudar Química na Etiópia

Desde 1950, o ensino universitário na Etiópia esforça-se para responder às necessidades do

país quanto a especialistas de alto nível na área da Química. Em 17 anos, de uma simples

unidade da Universidade de Addis-Abeba (University College of Addis-Abeba), a área se

tornou um Departamento, dotado de todas as seções, da Universidade Hailé Selassié 1o,

conferindo uma Licenciatura em Química. Em 1978, este Departamento criou um programa

de Mestrado em Ciência, em quatro áreas da Química: analítica, inorgânica, orgânica e física.

Finalmente, um programa de doutorado foi implementado em 1985.

© DR

Shimalis Admassie

Page 45: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

Ciências sem fronteirasRelatório sobre Ciência 2010, lançado pela UNESCO em novembro passado, mostra as novas tendências da pesquisa e da cooperação científica em escala mundial. Ele destaca especialmente o desenvolvimento crescente de parcerias, que promovem as alianças não somente no domínio científico, mas também na esfera diplomática. – pág. 46

A UNESCO e o CERN:uma história de profundas afinidadesA idéia de criar um Conselho Europeu para a Pesquisa Nuclear (CERN) foi endossada na 5a. Sessão da Conferência Geral da UNESCO, em 1950. Desde os anos 60, essas duas organizações se esforçam em facilitar o acesso ao saber científico e em promover a cooperação científica. Encontro com Rolf-Dieter Heuer, Diretor-geral do CERN. – pág. 48

Arte ligando culturas Desde sempre as culturas se misturam e interagem entre si, criando as novas culturas híbridas. Entretanto, elas também têm a tendência de rejeitar as culturas vizinhas. Baseando-se no caso das culturas norte-americanas e árabe-muçulmanas, Stephen Humphreys destaca o papel da literatura e das artes como meios privilegiados de aproximação. – p. 51

A segunda vida de Touki Bouki Promover os filmes africanos, apoiar os diretores, salvaguardar o patrimônio cinematográfico de seu continente – esses são os objetivos do diretor malês Souleymane Cissé, um grande defensor das línguas nacionais. Ele fundou, em 1997, a União dos Criadores e Empreendedores de Cinema e do audiovisual da África Ocidental (UCECAO). – pág. 53

O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O - M A R Ç O 2 0 1 1 . 4 5

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��”O Globo Simbólico” de Erik Reitzel (Dinamarca), na sede da UNESCO..© UNESCO/Michel Ravassard

Page 46: A Química e a vida; The UNESCO courier; Vol.:Jan.-Mar. 2011; 2011

4 6 . O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O - M A R Ç O 2 0 1 1

EEm 2012, as estações situadas na África do Sul, nas Ilhas Canárias (Espanha), no Egito e no Gabão vão receber os dados transmitidos pelo satélite de observação terrestre CBERS, colocado em órbita pela China e pelo Brasil: trata-se do terceiro engenho lançado pela parceria sino-brasileira, desde 1999. Até agora, o acesso às imagens da Terra em evolução era reservado unicamente a usuários chineses e latino-americanos, ou seja, desde 2004, mais de um milhão e meio de pessoas. Graças

à adesão da África ao projeto CBERS, um novo continente junta-se à lista

dos benefi ciários. Um satélite que gira em torno do globo, ignorando as fronteiras, deveria logicamente fornecer aos países situados em sua trajetória, por meio de parcerias, a possibilidade de tirarem proveito dessas informações. Após a guerra das estrelas do século passado, eis a “diplomacia das estrelas”.

Este exemplo, extraído do Rela-tório UNESCO sobre Ciência 2010, mostra uma tendência ascendente: a da colaboração internacional

Ciências sem fronteirasSe há uma área onde a globalização parece trazer

benefícios, é a área da pesquisa. Parcerias desenvolvem-se

por toda parte, forjando alianças científi cas, até mesmo,

diplomáticas, entre países, muitas vezes, bem distantes

uns dos outros, com potenciais muito diferentes. Trabalhar

em cooperação consiste em tirar um melhor proveito das

competências de cada um, ganhar tempo e economizar

dinheiro. Alguns exemplos extraídos do Relatório UNESCO

sobre Ciência 2010.

Susan Schneegans, redatora-chefe do Relatório UNESCO sobre Ciência 2010

“Cada vez mais, nos próximos anos, a diplomacia internacional assumirá a forma de uma diplomacia científi ca”.Irina Bokova

�5 de junho de 1999. O satélite STARSHINE (Student Tracked Atmospheric Research Satellite for Heuristic International Networking Experiment) deixa o porão da nave espacial Discovery ao fi m de 10 dias de missão STS-96. Este satélite, recoberto por centenas de espelhos que refl etem a luz solar, tem por missão ajudar aos alunos a estudarem os efeitos da atividade solar na atmosfera terrestre.© NASA/cortesia de nasaimages.org

��Imagem feita pelo satélite CBERS-2, em 10 de abril de 2005, mostrando Florianópolis, a capital do estado de Santa Catarina no Sul do Brasil.

A versão completa deste artigo está publicada na revista Planète Science, janeiro-março, 2011.

Post-scriptum

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L E C O U R R I E R D E L ’ U N E S C O . J A N V I E R M A R S 2 0 1 1 . 4 7O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O - M A R Ç O 2 0 1 1 . 4 7

na aplicação das tecnologias espaciais à gestão ambiental. Ela surge da inquietação crescente perante a degradação do meio ambiente e as mudanças climáticas. Reconhecendo que a terra, a água e a atmosfera formam uma só coisa, foi possível perceber, fi nalmente, que a partilha de dados entre países e continentes era crucial para compreender e gerenciar o planeta. A “diplomacia das estrelas” é, portanto, motivada, entre outros motivos, por essa necessidade comum.

No entanto, ela é apenas um subconjunto de um fenômeno mais abrangente: o recente e rápido desenvolvimento da diplomacia científi ca. As perspectivas são várias: saúde, tecnologias da informação e da comunicação, energias limpas... O Sudão inaugurou assim, em junho de 2009, sua primeira fábrica de biocombustíveis, construída em cooperação com a empresa brasileira, Dedini. Um segundo projeto sudanês – resultado da colaboração com o Egito que se eleva a US$ 150 milhões – produz, de acordo com o Relatório, “biocombustíveis de segunda geração a partir de plantas não alimentícias, incluindo os resíduos agrícolas, como palha de arroz, caules e folhas de refugo”.

Em 2003, o Paquistão e os Estados Unidos assinaram um acordo para o “fi nanciamento de um fundo comum gerenciado, em conjunto, pela Academia Nacional de Ciência (National Academy of Science), nos EUA, e pela Comissão do Ensino Superior, assim como pelo Ministério das Ciências e das Tecnologias, no Paquistão”, observa Tanveer Nair que, na qualidade de presidente do Conselho das Ciências e das Tecnologias do Paquistão, desempenhou um papel fundamental para a assinatura do acordo. “Incentivamos, anualmente, os projetos de colaboração científi ca, com a condição de que, entre os principais candidatos, estejam presentes, pelo menos, um norte-americano e um paquistanês”, explica ele. “Uma análise empreendida por vários especialistas, em ambos os países, permite selecionar os melhores projetos. Eis o que fortaleceu as capacidades dos laboratórios paquistaneses”, afi rma ele, “e, até mesmo, de descobrir, juntos, uma vacina contra uma doença mortal, causada pelos carrapatos, que tem dizimado os pastores do Sind, no sul do país”.

Partilhar os custos

No mundo inteiro, os países promovem parcerias de cunho científi co, tecnológico e de inovação, destinadas a forjar alianças políticas e a fortalecer sua presença no cenário internacional. Mas, essas uniões são ditadas, também, pelo desejo mais realista de compartilhar os recursos, diante dos custos exponenciais da infraestrutura científi ca: um recente projeto internacional de criação de fonte de energia limpa, a partir da fusão nuclear, exibe uma fatura prevista de 10 bilhões de euros. “Até agora, é o mais ambicioso projeto de colaboração científi ca”, observa o consultor Peter Tindemans, ex-coordenador dasPolíticas Científi cas e de Pesquisa da Holanda. Esse Reator Experimental de fusão Termonuclear Internacional (ITER, International Thermonuclear Experimental Reactor, na sigla em inglês) será instalado em Cadarache (França), daqui até 2018.

A entrada nesta parceria – ao lado das potências científi cas tradicionais (Japão, EUA, Federação da Rússia e União Europeia) – da China, Índia e República da Coreia dá testemunho da progressão espetacular na área econômica e tecno-lógica desses países. De acordo com o depoimento escrito por Mu Rongping, diretor do Centro de Inovação e Desenvolvimento da Academia Chinesa das Ciências, para o Relatório, a China deveria “garantir 9,09% dos custos da construção, ou seja, um investimento de mais de US$ 1 bilhão”. E indicando com maior precisão: “Mil cientistas chineses participarão do projeto ITER, já que a China está incumbida de desenvolver, instalar e testar 12 de seus componentes”.

Novos mercados em perspectiva

O setor comercial não demorou em avaliar os benefícios dessas colaborações. Além da partilha dos custos, os consór-cios internacionais oferecem uma oportunidade tentadora para conquistar novos mercados. O enorme sucesso do consórcio Airbus vem da fusão dos fabricantes de aeronaves de quatro países – Alemanha, Espanha, França e Reino Unido – ou seja, um exemplo brilhante de cooperação pan-europeia.

Duas décadas após o desapareci-mento da “cortina de ferro”, a Federação da Rússia assiste ao aumento do volume de contratos comerciais e de parcerias científi cas e tecnológicas com empresas estrangeiras. Em 2010, a empresa francesa Alcatel-Lucent RT, junto com a empresa estatal Rostechnologii investiram no desenvolvimento, produção e comercialização de

equipamentos de telecomunicações para o mercado russo e para os países da Comunidade dos Estados Independentes, enquanto a empresa norte-americana/russa IsomedAlpha, lançava-se na produção de aparelhos médicos de última geração, como tomógrafos computadorizados.

Parcerias nos textos científi cos

Mas não se trata apenas de geopolítica ou de considerações fi nanceiras. O rápido crescimento da colaboração científi ca internacional deve bastante ao desenvolvimento das novas tecnologias da comunicação: de 2002 a 2008, a proporção de usuários de internet passou de 11% para 24% da população mundial; nos países em desenvolvimento, ela progrediu de 5% a 17%.

Se nos últimos anos verifi cou-se um aumento das publicações conjuntas, assistiu-se também à diversifi cação geográfi ca das co-assinaturas de pesquisa: entre 1998 e 2008, a China tornou-se o terceiro grande parceiro da Austrália nas publicações científi cas, após seus colaboradores tradicionais, os EUA e o Reino Unido. Nas Filipinas, os EUA e o Japão estão na dianteira, seguidos pela China que é o parceiro número um dos pesquisadores malaios, antes do Reino Unido e da Índia. O papel crescente da China e da Índia nas publicações científi cas conjuntas, corolário da progressão espetacular desses dois países no cenário mundial, redesenha já a paisagem científi ca do Sudeste Asiático.

Os vizinhos nem sempre fazem as melhores parcerias. A Índia, Irã e Paquistão publicam 20% a 30% de seus trabalhos científi cos em colaboração, mas, em primeiro lugar, com pesquisadores ocidentais: só 3% estão domiciliados no Sul da Ásia. No Brasil, país onde a colaboração científi ca internacional mantém-se, há cinco anos, em torno de 30% do total da produção científi ca nacional, “os pesquisadores norte-americanos são nossos principais interlocutores”, de acordo com Carlos Henrique de Brito Cruz e Hernan Chaimovich, respectivamente, diretor científi co da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e presidente do Instituto Butantan (SP). Eles indicam um estudo de 2009: “entre 2003 e 2007, 11% dos artigos científi cos brasileiros eram co-assinados, no mínimo, por um cientista norte-americano e 3,5% por um britânico. Argentinos, mexicanos e chilenos, em conjunto, representavam apenas 3,2% dos co-signatários de artigos brasileiros”. �

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velocidade próxima da velocidade da luz. “Com esta experiência, estamos apenas a uma fração de segundo do Big-Bang!”, explica Rolf-Dieter Heuer, diretor-geral do CERN. “Trata-se de uma nova etapa que abre perspectivas insuspeitadas na pesquisa sobre a criação do universo”.

A descoberta histórica, ocorrida em 30 de março do ano passado, tornou-se possível graças ao projeto “Collaboration Atlas” que reúne cerca de 3.000 físicos (incluindo, 1.000 estudantes) de cerca de 40 países e que fazem parte de mais de 170 universidades e laboratórios. Uma verdadeira “nação virtual”, para retomar a expressão comumente utilizada no CERN. “A motivação é a única explicação para o sucesso deste gigantesco empreendimento. Vindos de diferentes regiões do mundo, todos nós estamos caminhando no mesmo sentido: em direção ao saber”, afi rma o diretor-geral. Se, um dia, for descoberto o famoso bóson de Higgs – partícula hipotética, denominada o Santo Graal dos físicos porque estes andam à sua procura há mais de meio século –, tal evento deverá ser atribuído ao projeto “Atlas”. “Sabemos tudo a respeito desta partícula, exceto uma coisa: se ela existe”, diz ele com um sorriso.

O CERN não é a única instituição que persegue essa busca. Há também Fermilab (Fermi National Accelerator Laboratory), laboratório especializado em Física de partículas de alta energia,

Poucas pessoas sabem que a ideia de criar um Conselho Europeu para a Pesquisa Nuclear (Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire, CERN, na sigla em francês) foi homologada na 5a sessão da Conferência Geral da UNESCO, em 1950, em Florença (Itália). Nessa época, o mundo restabelecia-se das feridas, ainda recentes, da Segunda Guerra Mundial. Eis o que os intelectuais, homens de cultura e cientistas europeus haviam compreendido: a cooperação era uma ferramenta-chave para a reconstrução da paz. Impunha-se reunir, em torno do mesmo projeto, pesquisadores europeus oriundos não só dos países Aliados, mas também dos países que haviam pertencido ao Eixo (Alemanha, Itália e Japão).

O projeto de Florença entraria em vigor três anos mais tarde, com a assinatura da Convenção fi nal que trouxe a criação do CERN (O Conselho

se metamorfoseando em Centro). A Convenção seria ratifi cada por 12 países1, em 1954, e a primeira pedra do edifício sede foi colocada em 1955, perto de Genebra (Suíça).

Atualmente, os prédios da Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear – que conservou sua sigla inicial –, comportam em seu subsolo o maior acelerador de partículas do mundo: com uma circunferência de uns 27 quilômetros, o Grande Colisor de Hádrons (Large Hadron Collider, LHC, na sigla em inglês) é um instrumento gigantesco que contém um total de 9.300 ímãs. Em 30 de março de 2010, uma notícia do CERN havia constituído a principal crônica no mundo inteiro: o LHC havia conseguido a primeira experiência de colisão de feixes a uma

Promover a cooperação científi ca, tornar o ensino das

ciências mais atraente, facilitar o acesso ao saber científi co

com a fi nalidade de construir um mundo mais justo são

os objetivos comuns pretendidos pela UNESCO e pela

Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear que

conservou seu acrônimo inicial: o CERN (Conseil européen

pour la recherche nucléaire). Há 60 anos que as duas

Organizações estão estreitamente associadas.

Rolf-Dieter Heuer, Diretor-geral do CERN, é entrevistado por Jasmina Šopova

A UNESCO e o CERN:uma história de profundas af inidades

1. Alemanha, Bélgica, Dinamarca, França, Grécia, Holanda, Itália, Iugoslávia, Noruega, Reino Unido, Suécia e Suíça.

Post-scriptum

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O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O - M A R Ç O 2 0 1 1 . 4 9

localizado nas proximidades de Chicago (Estados Unidos). “Atualmente, o CERN é que possui o acelerador com maior potência, no mundo. No entanto, até recentemente, esse lugar era ocupado pelo Fermilab que, em 25 anos, acumulou uma massa extraordinária de informações, enquanto nós ainda estamos iniciando nossa atividade. O LHC só foi lançado em setembro de 2008. Dito isso, creio que, graças a esse aparelho, temos possibilidades de tomar a dianteira na descoberta do bóson de Higgs”, espera Rolf-Dieter Heuer. Será que existe colaboração entre as duas organizações? “Por minha parte, designo tal iniciativa como uma colaboração competitiva ou uma competição colaborativa. Fermilab forneceu-nos uma ajuda considerável, em particular, quando o LHC fi cou avariado [logo após seu lançamento]”. Será que elas têm procedido ao intercâmbio de dados? “Por enquanto, nenhuma troca. Daqui a alguns anos, certamente, darei outra resposta a essa mesma pergunta”.

“Sem competição não há progresso”, declara Rolf-Dieter Heuer. Sem cooperação também não. Ela está na origem da criação do CERN e continua sendo sua força motriz, assim como um dos ideais permanentes da UNESCO. Entre os projetos recentes, a Organização apoia, em particular, o Centro Internacional de Radiação Síncrotron para as Ciências Experimentais e Aplicadas no Oriente Médio (SESAME - International Centre for Synchrotron Light for Experimental Science and Applications in the Middle East), em Allan (Jordânia). No plano da cooperação científi ca internacional, o SESAME é o equivalente do CERN para o Oriente Médio. Ele reúne o Bahrain, Chipre, Egito, Irã, Israel, Jordânia, Paquistão, Autoridade Palestina e Turquia. “Apesar de não termos o mesmo domínio de competências”, explica o diretor-geral do CERN, “a ideia da ciência em favor da paz é subjacente aos dois projetos. E o CERN não poupa seus esforços para colaborar na

construção do SESAME, em particular, no plano da expertise”.

Se, no âmbito de iniciativas conjuntas (SESAME, bibliotecas virtuais nas universidades africanas, formação de professores etc.), o CERN coloca sua expertise científi ca à disposição da UNESCO, o Programa Internacional relativo às Ciências Fundamentais (Programme international relatif aux sciences fondamentales, PISF, na sigla em francês) da UNESCO fornece ao organismo europeu um quadro de cooperação com pesquisadores oriundos de países que não são seus membros. De fato, o CERN conta com 20 Estados-membros, mas seus projetos incluem 10.000 especialistas associados de 85 nacionalidades diferentes.

O CERN conta, igualmente, com a UNESCO para ajudá-lo a promover a ideia de uma nova abordagem do ensino da Física e da Matemática em escala internacional. “É impossível continuar ensinando a Física com base em teorias elaboradas no século XVIII!”, observa Rolf-Dieter Heuer com certa irritação. “As pesquisas atuais sobre o universo, por exemplo, são muito atraentes para os jovens. A escola deve começar por despertar a curiosidade dos alunos e, em seguida, fornecer-lhes lentamente as bases. O CERN é incapaz de elaborar um método válido para todos os países do mundo, mas pode sensibilizar e formar professores em todo o mundo. Por sua vez, a UNESCO pode convencer os formuladores de políticas no sentido de tornar, absolutamente, essas matérias mais atraentes para os alunos do secundário, a fi m de que os jovens não se afastem das ciências exatas.” A batalha corre o risco de se estender durante um período longo. O diretor do CERN está consciente disso, mas ele sabe que quem não tenta nunca, nunca terá nada!”

A ciência fundamental é outra área em que se verifi ca convergência entre os objetivos das duas organizações. É inevitável constatar que, no entender dos decididores, a pesquisa

Rolf-Dieter Heuer, físico alemão, assumiu as funções de Diretor-geral do CERN no dia 1° de janeiro de 2009. O início de seu mandato coincidiu com o início da exploração do Grande Colisor de Hádrons (LHC - Large Hadron Collider).

��L’exposition « Univers de particules » vise à sensibiliser les visiteurs du CERN aux grandes questions de la physique contemporaine. © UNESCO/J. Šopova

��Três anos depois do lançamento da idéia do CERN, acontece a assinatura da Convenção que o criou em 19 de julho de 1953, na UNESCO.© UNESCO

fundamental é percebida, às vezes, como uma abstração, porque seus resultados não são imediatamente aplicáveis. Eis uma postura considerada por Rolf-Dieter Heuer como um contrassenso.

“Defi no a ciência fundamental como uma pesquisa aberta que, em vez das aplicações, está focalizada nos resultados. Imagine que alguém tivesse solicitado a Wilhelm Röntgen (1845- 1923) para inventar um aparelho capaz de fotografar o esqueleto humano! Ele nunca teria pensado na radiação. E, no entanto, sem qualquer ideia preconcebida, ele acabou descobrindo, em 1895, os raios-X que, ainda atualmente, são utilizados na radiografi a moderna.” São inúmeros os exemplos que poderiam ilustrar a conclusão de Rolf-Dieter Heuer: “É impossível saber em que momento ou em que lugar, o resultado da pesquisa fundamental será aplicado. Mas, ele acaba sempre sendo aplicado”.

Nunca se sabe nem quando nem onde o resultado da pesquisa fundamental será aplicado. Mas ele acaba sempre sendo aplicado.

© CERN

Sem competição não há progresso. Sem cooperação, também não.

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5 0 . O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1

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et solutions », esse número da revista aborda os seguintes temas:���sinergias entre zonas chaves para a

biodiversidade e o patrimônio mundial��patrimônio mundial marinho: chegou o

momento��Aquecimento climático – a contribuição

da natureza��Diversidade cultural, biodiversidade e

sítios do patrimônio mundial��Ghats Ocidentais: biodiversidade,

endemismo e conservação��Os jardins botânicos reais de Kew e a

conservação da biodiversidade ��Financiamento para a biodiversidade:

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A redução da variedade genética das espécies, o ritmo acelerado de sua extinção, as profundas modifi cações das condições dos seres vivos são provas do declínio da biodiversidade. O livro se

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O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1 . 5 1

Post-scriptum

Qualquer refl exão sobre culturas em contato mais próximo entre si – traduzindo-se por tensões, por confl ito aberto ou por uma busca de aproximação – começa necessariamente por um esforço em defi nir o que se entende por “cultura”. Vou adotar, neste artigo, a perspectiva desenvolvida pelo antropólogo norte-americano, Cliff ord Geertz, há cerca de 40 anos. De acordo com ele, a cultura reside não em modelos de comportamento, nem nas próprias estruturas sociais, mas na maneira como criamos sentido e o exprimimos no seio desses modelos e dessas estruturas. Uma cultura é o acúmulo de ideias, crenças, gestos, rituais e práticas que levam uma sociedade a se perceber como um conjunto coerente e portador de sentido; ou, dito com outras palavras, como um povo distinto que possui uma identidade própria.

Nem por isso as culturas são herméticas, porque é raro que elas

possam proteger-se das pressões e infl uências externas. Na realidade, as culturas são permeáveis, dotadas da capacidade e, ao mesmo tempo, da particularidade de estarem sempre comprometidas, até certo ponto, em processos de interpenetração e de hibridização. Elas encontram, então, uma maneira equilibrada de avançarem lado a lado e de se amalgamarem, promovendo uma interação limitada e pragmática com as culturas vizinhas, sem deixarem de experimentar difi culdades para conservar a percepção de si e para manter sua identidade fundamental.

O confl ito ocorre quando um sistema cultural mostra-se ameaçador em relação a outro. Esse sentimento origina-se, quase sempre, na intrusão violenta de um sistema cultural no espaço ocupado por outro, digamos, um “imperialismo”, em pequena ou grande escala, característica constante e

Stephen Humphreys

Desde sempre, verifi ca-se a mistura e a interação entre

as culturas, dando origem a novas culturas híbridas.

Entretanto, elas também têm tendência a se fecharem em

si mesmas e rejeitarem as culturas vizinhas. Baseando-se

no caso das culturas norte-americana e árabe-muçulmana,

Stephen Humphreys destaca o papel da literatura e das

artes como meios privilegiados de aproximação.

onipresente na história da Humanidade. O medo do outro é, no entanto, mais intenso e insidioso quando é o resultado de uma situação de hibridação rápida, invasiva e incontrolável, que cria um profundo sentimento de perda de controle. Todos os símbolos, todas as regras de comportamento, crenças e rituais seculares dissolvem-se e começam a parecer estranhos, dando a impressão às populações em questão de que, apesar de se manterem em seu próprio território, já não serem elas mesmas. Atualmente, esta inquietação associada à hibridização contamina quase todas as culturas do planeta. A questão consiste em saber se é possível superar tal inquietação ou atenuá-la. Se a resposta for afi rmativa, como proceder e em que medida tal desafi o será vencido?

Derrubar os estereótipos

Para tentar responder a esta pergunta, vamos debruçar-nos sobre a reação norte-americana às sociedades árabes e muçulmanas. Ninguém fi cará surpreendido se afi rmarmos que essa reação é, no mínimo, confusa. De maneira geral, os norte-americanos manifestam desejo de compreender e, até mesmo, aceitar as diferenças culturais, mas eles estão intimamente convencidos da superioridade do famoso american way of life. A reação norte-americana concentra-se, sobretudo nos temores (em relação, principalmente, ao “terrorismo islâmico”) e não tanto na busca de uma compreensão abrangente e matizada das culturas, ao mesmo tempo, diversas e complexas das sociedades árabes e muçulmanas. Tal busca de compreensão existe realmente nos EUA, mas apenas em círculos restritos (essencialmente, nos meios universitários), e não no público em geral infl uenciado pela mídia e pela internet.

Inevitavelmente, na sociedade norte-americana, os estereótipos sobre os árabes e os muçulmanos são predominantes. A questão consiste

��Encontro em plena pintura: díptico feito pela artista alemã Helga Shuhr e o artista líbio Youssef Fatis. © Helga Shuhr & Youssef Fatis

Photo : UNESCO/R. Fayad

Arte ligando culturas

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5 2 . O C O R R E I O D A U N E S C O . J A N E I R O M A R Ç O 2 0 1 1

em saber como proceder para que um grande número de norte-americanos questione tais estereótipos, enfrentem seus medos e procurem entender realmente as culturas árabe e muçulmana.

Inútil deixar-se induzir em erro: mesmo que consigamos tal compreensão, continuará existindo, sem dúvida, diferenças culturais muito difíceis de aceitar por questionarem e ofenderem profundamente os valores e os modos de vida norte-americanos. Basta um exemplo simples: para os norte-americanos, a burca e o véu simbolizam – ou, antes, encarnam – o aviltamento e a despersonalização da mulher. A priori, nenhum debate ou esforço de explicação conseguirá superar essa reação quase instintiva.

Ainda existe outro problema. É possível, perfeitamente, chegar a compreender as diferenças culturais, mas sem aceitá-las por não serem consideradas como opções aceitáveis ou pertinentes. Será que essa rejeição implica necessariamente um confl ito? Não tenho uma resposta categórica para essa pergunta, mas convém formulá-la de forma séria e honesta.

O espelho da desconfi ança

A tentativa de compreender uma cultura é necessariamente seletiva: é impossível saber tudo a respeito de tudo. Mas então, quais são os aspectos das culturas árabe e muçulmana que devem ser privilegiados? Quais grupos deverão ser escolhidos para representar essas culturas junto de nossa sociedade? Até agora, os norte-americanos têm mostrado tendência a se interessar por dois grupos, com a exclusão de quase todos os outros: os militantes religiosos radicais e as mulheres. Os debates e as análises tendem a ser distorcidos pelo medo e pelas inquietações suscitados por eles.

No que diz respeito ao primeiro grupo, pode-se dizer que os norte-americanos veem o Islã à luz do 11 de setembro (de 2001) e os árabes à luz do confl ito israelo-palestiniano. Penso que o inverso é, também, verdadeiro: os árabes do Oriente Médio e da diáspora veem, por sua vez, os EUA sob o prisma israel-palestino. Cada um é o refl exo da desconfi ança, medo e ressentimento

pelo outro: um coquetel ideal para provocar tensões e suspeitas, até mesmo, uma rejeição cultural recíproca.

Em relação aos militantes norte-americanos em favor dos direitos das mulheres, alguns estão bem informados e dão testemunho de uma sensibilidade cultural que faz falta a outros. Em ambos os casos, suas intervenções atingem as dimensões mais íntimas, e contestadas com maior obstinação, das sociedades árabe e muçulmana; assim, por vezes, ocorre que as tentativas de aproximação acentuam as tensões culturais, em vez de dissipá-las.

O papel dos intermediários culturais

A literatura e as artes abrem vias originais para a compreensão das culturas árabe e muçulmana. Em um artigo de The New Yorker, Claudia Roth Pierpont faz um balanço revelador: “Os romances árabes fornecem excelentes respostas às perguntas que, sem estarmos conscientes disso, teríamos desejo de nos formular.”1 É exatamente isso. Infelizmente, apenas uma ínfima parte da literatura árabe, publicada nos últimos 20 anos, foi traduzida para o inglês.

Embora os romancistas construam seus próprios universos – que não são simples refl exos de suas culturas, nem falam em nome de suas sociedades, mas unicamente em seu próprio nome –, suas obras constituem produtos diretos e autênticos das sociedades e culturas no centro das quais eles vivem. O mesmo se passa com os músicos, pintores e escultores.

A despeito de todos os limites e de todas as reservas que possam ser evocados, a literatura e as artes continuam sendo o melhor meio para que os estrangeiros venham a entender uma cultura diferente. Elas oferecem as mais amplas e variadas oportunidades sobre a maneira como as culturas árabes se percebem e sobre os múltiplos modos por meio dos quais elas tentam se defi nir. No entanto, para serem capazes de servir como ponte entre as culturas, tais artes têm necessidade de tradutores, de artistas e de intérpretes. Esses intermediários têm sido considerados, muitas vezes, com certa condescendência, como simples passarelas para transmitir os esforços

criativos dos autores a um novo público. Com toda a evidência, esta visão não faz justiça à profundidade do conhecimento e da compreensão indispensáveis para que os produtos de um sistema cultural se tornem inteligíveis, portadores de sentido e, até mesmo, úteis aos membros de outra sociedade. A obra tanto do tradutor, quanto do intérprete musical, não constitui, talvez, uma criação em si, mas como recriação, ela é um elemento essencial do processo de aproximação cultural.

Para concluir, eu diria que os EUA serão capazes de assumir as realidades complexas das culturas árabes apenas quando vierem a dispor de um grupo mais importante de tradutores e intérpretes e, sobretudo, quando estes intermediários deixarem de ser atores marginais da vida intelectual e cultural do país para serem considerados realmente como atores que usufruem de todas as prerrogativas. Essa evolução não irá acontecer de um dia para o outro e não resolverá todas as tensões e as inimizades existentes entre culturas tão diferentes. Mas, ela teria, pelo menos, o mérito de permitir que os norte-americanos comecem a ver os árabes e os muçulmanos tais como eles são na realidade, em toda a sua complexidade. Convém esperar que, em compensação, os intelectuais e os eruditos árabes venham a fazer um esforço semelhante para compreender o modo de vida e de pensamento norte-americanos, o que, admito, não é algo fácil. Mas é uma tarefa que devemos empreender se pretendemos, um dia, superar a confusão e a desconfi ança mútuas que impregnam tão profundamente essas duas culturas.

R. Stephen Humphreys é professor de História e de Estudos Islâmicos na Universidade de Califórnia, em Santa Barbara (Estados Unidos). Este artigo é extraído de suas “Refl exões sobre o problema da aproximação das culturas”, apresentadas na UNESCO, em 9 de fevereiro de 2010, por ocasião do Fórum organizado para a entrega do Prêmio UNESCO-Sharjah para a Cultura Árabe.

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O Sr. considera o cinema como um

espaço de diálogo entre as culturas?

Com certeza, o cinema reduziu o tamanho do mundo. Ele participa da teoria da aldeia planetária. Eu diria mesmo da emoção planetária. Seja qual for a nacionalidade de seu diretor, seja qual for o país em que vier a ser fi lmado, o fi lme leva a compartilhar uma visão. O espectador tem o sentimento de ser transportado para um universo, cujos sons e sotaques não lhe são familiares. Creio que uma das virtudes do cinema consiste precisamente em aproximar os seres humanos.

O Sr. fala de aldeia planetária. No

entanto, parece que o retraimento

em si mesmo, a desconfi ança e a

incompreensão estão progredindo.

Essa ambivalência é incontestável. No decorrer dos últimos 30 anos, tenho visto as grandes empresas de distribuição desviarem-se progressivamente dos fi lmes africanos. Pode-se dizer que os distribuidores têm medo da diferença. Em 1987, meu fi lme, Yeelen (A luz), foi projetado em todas as grandes salas de cinema da França e conquistou espectadores de todas as classes sociais! Atualmente, isso me parece impossível. Entretanto, não creio que tenha ocorrido alguma mudança na preferência dos espectadores. Pelo contrário, os responsáveis pelas decisões é que têm evitado correr riscos: seja o risco da diferença ou o da descoberta; e, sobretudo, os riscos de ordem econômica. Em

compensação, entre nós, nos países do Sul, limitamo-nos a assistir a fi lmes ocidentais.

Será possível corrigir esse desequilíbrio?

Tem de haver uma consistente vontade política a fi m de inverter essa tendência para o retraimento. Com efeito, a falta de receitas tem um impacto tanto na qualidade, quanto na quantidade de nosso trabalho. E nós, diretores africanos, temos de aprender as lições dessa situação: nos voltarmos para o nosso público natural, por exemplo, de nossos países. Mas nossos espectadores, por mais numerosos que sejam, não dispõem de recursos para fi nanciar nossos fi lmes. É por isso que, no Mali, a produção cinematográfi ca é, atualmente, mais reduzida do que há 20 ou 30 anos.

Por que razão o Sr. fi lma sempre em

bambara, a língua nacional de seu país?

Fui muito criticado por não fi lmar em francês, a única língua ofi cial do Mali. Decidi fi lmar em bambara por ser a língua principal de 80% dos maleses. Ela é compreendida por mais de 20 milhões de pessoas na África Ocidental. É a língua do comércio. Este peso linguístico não é um detalhe desprezível.

Por outro lado, tendo dirigido dezenas de comediantes, posso lhe garantir que o resultado é bastante diferente dependendo do fato de os diálogos serem em francês ou em bambara, o idioma da intimidade… Disseram-nos, frequentemente, que ninguém fora da África conseguirá nos entender, que isso é uma desvantagem para nós, mas penso que essa postura é falsa. A língua coloca-se a serviço da história do fi lme. Como é que eu poderia fi lmar em francês Yeelen, fi lme que fala dos conhecimentos ocultos, transmitidos pelos bambaras de geração em geração?

O Sr. ainda vai mais longe: de acordo

com suas palavras, os Estados devem

renunciar às línguas dos colonizadores

em favor das línguas nacionais que não

são reconhecidas como línguas ofi ciais.

As línguas nacionais facilitam a aproximação entre os cidadãos, elas são indispensáveis para construir uma nação. No Mali, temos 13 línguas

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A segunda vida de Touki BoukiFilmar em línguas nacionais, ajudar os cineastas africanos,

promover suas obras, apoiar a produção audiovisual moderna,

salvaguardar o patrimônio cinematográfi co da África – eis os

objetivos do cineasta malês Souleymane Cissé. Um homem

cheio de entusiasmo e de ambições para seu continente.

Entrevista feita por Gabrielle Lorne, jornalista martinicana

��Souleymane Cissé na UNESCO, por ocasião do Lançamento do Ano Internacional de Aproximação entre as Culturas, em 18 de fevereiro de 2010. ©

UNESCO/A.Wheeler

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nacionais, mas apenas uma língua ofi cial: o francês. Digo e repito: as línguas nacionais não liquidam com o inglês, nem com o francês ou o espanhol. Mas, acho que, se o Mali não assumir a manutenção de suas próprias línguas, a civilização veiculada por elas, desde milênios, acabará por desaparecer.

E se posso me permitir um comentário de cunho político, quero acrescentar o seguinte: no momento em que um Estado decide ser independente, ele deve conduzir tal processo até o fi m, sem ter medo de subverter a administração vigente. Ainda há tempo para retomar o trabalho com o objetivo de codifi car uma escrita para cada um dos idiomas e revalorizar os ideogramas deixados pelos nossos antepassados.

O Sr. está também muito engajado na

promoção do cinema africano.

É verdade, sim. Depois de Waati (O Tempo), meu fi lme sobre o apartheid na África do Sul, lançado em 1995, percebi que estava diminuindo o apoio fi nanceiro atribuído ao cinema africano, principalmente, na Europa. Por seu lado, os Estados africanos não têm recursos para investir em nossos fi lmes, mas, pelo menos, podem promover a criação e a indústria cinematográfi cas com um enquadramento jurídico adaptado.

Era necessário, portanto, que nós, profi ssionais do cinema, nos empenhássemos na defesa de nossas profi ssões. Então, em 1997, fundei a União dos Criadores e Empresários do Cinema e do Audiovisual da África Ocidental (UCECAO, Union des créateurs et entrepreneurs du cinéma et de l’audiovisuel de l’Afrique de l’Ouest). Nosso objetivo consiste em promover o cinema africano, além de incentivar aqueles que dispõem de recursos na África – por exemplo, o setor privado – a apoiar tal iniciativa.

O Sr. tem promovido, igualmente,

festivais de cinema?  ?

Em 1998, a UCECAO lançou o evento Encontros cinematográfi cos de Bamako (Rencontres cinématographiques de Bamako). Em seguida, iniciamos o “Festival Internacional de Nyamina” (Festival International de Nyamina, FINA), em áreas rurais, porque a cultura não pode ser reservada exclusivamente à população urbana. O FINA acolhe não só jovens diretores, mas também cinegrafi stas e, até mesmo, fotógrafos.

Atualmente, o Sr. está preocupado

com o patrimônio cinematográfi co do

continente.

É isso mesmo. Em 2007, em Cannes, tive o prazer de participar no lançamento da World Cinema Foundation (WCF) do norte-americano Martin Scorsese. Alguns meses mais tarde, a convite da UCECAO, Scorsese foi ao Mali e decidiu investir na preservação de nosso patrimônio cinematográfi co. No Festival de Cannes do ano seguinte, consegui apresentar a versão restaurada de Touki Bouki (A jornada da hiena) de Djibril Diop Manbety, que data de 1973. Fazia já 20 anos que era impossível assistir a este fi lme por estar muito danifi cado pelo tempo e pelas más condições de conservação.

Touki Bouki foi o primeiro fi lme da África Subsaariana que teve direito a uma segunda vida. Fiquei muito satisfeito com esta escolha porque, na minha opinião, é um fi lme profético, em particular, sobre a emigração já

que conta a história de um jovem casal fascinado pelo Ocidente. �

Primeiro cineasta africano a receber um prêmio em Cannes, em 1987, por seu fi lme de longa-metragem, Yeelen (A luz), Souleymane Cissé fi gura entre os grandes nomes do cinema mundial. Aos 70 anos, depois de ter dirigido mais de 30 de fi lmes, ele é membro do Painel de Alto Nível sobre a Paz e o Diálogo entre as Culturas, instalado pela UNESCO, em 2010. A primeira reunião desse Painel, em 18 de fevereiro de 2010, marcou o lançamento do Ano Internacional da Aproximação entre as Culturas que se encerra em março de 2011.

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��Cartaz do fi lme Touki Bouki feito por Djibril Diop Manbety em 1973. O fi lme foi recentemente restaurado pela WCF.© WWW.trigon-fi lm.org

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“Os Parachicos na festa tradicional de janeiro, em Chiapa de Corzo” (México) foram inscritos, no fi nal de 2010, na Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.

O termo “Parachicos” designa, ao mesmo tempo, os dançarinos e a dança por ocasião dessa grande festa tradicional que é celebrada, anualmente, entre 4 e 23 de janeiro. Associando música, dança, artesanato, gastronomia, cerimônias religiosas e folguedos, a festa abrange todas as esferas da vida local,

promovendo o respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos.

Os dançarinos desfi lam por toda a cidade, exibindo máscaras esculpidas em madeira, cobertas por um boné, um cobertor, um xale bordado e fi tas multicolores. Eles são guiados pelo patrón que usa uma máscara, cuja expressão é severa, um violão e um chicote; acompanhado por um ou dois tambores, ele toca fl auta e recita homenagens que são respondidas com aclamações pelos dançarinos.

A Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, adotada em 2003 na UNESCO, entrou em vigor em 20 de abril de 2006. Ela reconhece a importância do patrimônio cultural imaterial que reside não somente na própria manifestação cultural, mas na riqueza dos conhecimentos e do savoir-faire que ele transmite de geração em geração.

© 2009 Coordenação Executiva para a Comemoração do Bicentenário da Independência Nacional e do Centenário da Revolução Mexicana do Estado de Chiapas.

Patrimônio Cultural Imaterial

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