a questão da verdade própria das sensações na 6ª meditação s
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César Schirmer Dos Santos 2 Aviso: o texto a seguir é uma versão inacabada, por isso por favor não o cite. Comentários são bem-vindos, e podem ser enviados para [email protected]. Para conseguir mais cópias, ou versões atualizadas, visite o site monada.cjb.net. 1 Conferência apresentada no Seminário Livre de Filosofia, na UFRGS, em 27 de setembro de 2000. Boa tarde a todos. 4 Plínio Junqueira Smith, O Ceticismo De Hume, São Paulo, Loyola, 1995, p. 24. 2000 1 2TRANSCRIPT
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Aviso: o texto a seguir é uma versão inacabada, por isso por favor não o cite. Comentários são bem-vindos, e podem ser
enviados para [email protected]. Para conseguir mais cópias, ou versões atualizadas, visite o site monada.cjb.net.
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A Questão Da Verdade Própria Das Sensações Na 6ª Meditação Segundo Martial Gueroult1
César Schirmer Dos Santos2
2000
Boa tarde a todos.
No segundo volume do seu famoso comentário sobre as Meditações de Descartes, Martial Gueroult se
ocupa quase exclusivamente da 6ª Meditação. Tal destaque para esta última Meditação, raro entre os
comentários à obra de Descartes, geralmente mais ocupados com a natureza do cogito ou com a questão de
Deus, pode ser explicado pela hipótese de trabalho de Gueroult, a ordem das razões. Segundo a ordem das
razões que Descartes segue nas Meditações, as razões que são apresentadas primeiramente são mais
evidentes, mais simples e mais elementares. As razões que são apresentadas por último, apesar de serem tão
certas quanto as primeiras, são menos evidentes e mais complexas, exatamente porque dependem das
primeiras para que sua verdade seja estabelecida. Então, a 6ª Meditação, por ser aquela que fecha o todo da
filosofia de Descartes, é a que apresenta, entre todas as Meditações, o maior grau de complexidade, e que
por isso merece as explicações mais detalhadas.
Meio século após o surgimento do comentário de Gueroult, a idéia de ordem das razões continua
fascinando os filósofos brasileiros. Podemos encontrar sinais de deferência à obra por exemplo em Evidência
E Verdade No Sistema Cartesiano, de Raul Landim,3 e O Ceticismo De Hume, de Plínio Junqueira Smith4
(inclusive no Prefácio de Oswaldo Porchat Pereira)5. No ano passado, o livro de Gueroult foi apontado pelo
caderno Mais! da Folha de São Paulo como um dos maiores livros de filosofia do século 20.
Apresento hoje alguns argumentos sobre a 6ª Meditação inspirados na obra de Gueroult. Não pretendo
ocupar-me com tudo o que diz Gueroult na sua obra, mas apenas da introdução da questão da verdade ou
falsidade das sensações nas Meditações.
1 Conferência apresentada no Seminário Livre de Filosofia, na UFRGS, em 27 de setembro de 2000.
2 Mestrando em filosofia da UFRGS e bolsista da CAPES, [email protected].
3 São Paulo, Loyola, 1992, p. 9.
4 Plínio Junqueira Smith, O Ceticismo De Hume, São Paulo, Loyola, 1995, p. 24.
5 Plínio Junqueira Smith, O Ceticismo De Hume, São Paulo, Loyola, 1995, p. 10.
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2
As sensações, vistas nelas mesmas, são verdadeiras ou falsas? A questão do estabelecimento da verdade
ou falsidade das sensações, na interpretação das Meditações de Descartes segundo a ordem das razões,
inicia pelo esclarecimento do que é chamado, por nós, de sensação. Nas Respostas Às 6As Objeções, Descartes
esclarece aos seus objetores que aquilo que chamamos de sensação é, na verdade, algo composto por três
elementos distintos. O primeiro elemento das sensações é a afecção do corpo pela coisa exterior, o segundo
elemento é a afecção da mente pelo cérebro e o terceiro elemento é a atribuição, em um juízo, das qualidades
percebidas pela mente às coisas exteriores.1
O primeiro elemento, a afecção do nosso corpo pela coisa exterior, tem como produto da afecção um
movimento ou irritação do nosso corpo. ‘Sentir’, neste sentido do termo, é ser movido por algo exterior, sofrer
a ação de um outro corpo. Estamos falando aqui, então, de um esquema causal, onde a coisa exterior é a causa,
e a irritação ou movimento do nosso corpo, isto é a ‘sensação’, é o efeito. Neste sentido do termo ‘sentir’,
estamos falando de algo totalmente maquínico. Para explicar o que é a sensação, neste primeiro sentido do
termo, basta a aplicação dos conhecimentos da física. As mesmas leis que explicam o movimento dos corpos
celestes e os choques entre os corpos em geral servem para explicar, aqui, o que são as sensações.
O segundo elemento do composto que chamamos de sensação é a afecção da mente pelo cérebro. Este
elemento é o que mais afasta Descartes, nesta questão, daqueles filósofos que são considerados grandes
racionalistas, ou grandes cartesianos, como Malebranche e Leibniz, que não aceitam que possa haver algum
tipo de afecção entre substâncias tão díspares como o corpo e a alma. Mas, no racionalismo de Descartes, não
há para a relação entre alma e corpo nenhum tipo de sistema de harmonia pré-estabelecida ou de
ocasionalismo. Para Descartes, de fato a alma pode afetar o corpo, e vice versa. Todavia, Descartes não
nega que este tipo de afecção seja incompreensível. Ele realmente afirma que tal tipo de afecção é possível e
de fato ocorre, e justifica sua afirmação, mas não é disto que me ocupo na apresentação de hoje. O fato é que
para Descartes o homem, enquanto união da alma e do corpo, é a própria realização de algo que para o
1 Respostas às 6as Objeções, ponto 9: “A fim de que nos voltemos para qual é a certeza dos sentidos, trêsgraus nestes são distinguidos. O primeiro diz respeito somente aquilo que imediatamente afeta o órgão corpóreo porcausa do objeto externo, e por esse motivo nada de diferente pode ser que o movimento particular destes órgãos, efiguras e mudanças de lugar prodecem destes movimentos. O segundo contém tudo o que imediatamente resulta na mentepelo fato que está unida ao órgão corpóreo que é desta maneira afetado, tais são as percepções de dores, titilações, sede,fome, cores, sons, sabores, odores, calor, frio, e similares, as quais originam-se da união pela qual a mistura da mentecom o corpo é dita na 6ª Meditação. O terceiro finalmente compreende todos os juízos, os quais, pela ocasião domovimento dos órgãos corporais, nos habituamos a fazer das coisas fora de nós em idade ineunte.” (AT VII, 43626 -3711 ) / “Para bem compreender qual é a certeza dos sentidos, é preciso distinguir neles três sortes de graus. Noprimeiro, não se deve considerar outra coisa que aquilo que os objetos exteriores causam imediatamente no órgãocorporal; o que não pode ser outra coisa que o movimento das partículas deste órgão, e a mudança de figura e desituação que provém deste movimento. O segundo contém tudo o que resulta imediatamente no espírito, disto que ele estáunido ao órgão corporal assim movido e disposto pelos seus objetos; e tais são os sentimentos da dor, das cócegas, dafome, da sede, das cores, dos sons, dos sabores, dos odores, do calor, do frio, e outros semelhantes, que dissemos, nasexta Meditação, provir da união e por assim dizer mistura do espírito com o corpo. E enfim, o terceiro compreendetodos os juízos que temos o costume de fazer após nossa juventude, quanto às coisas que estão ao nosso redor, porocasião das impressões, ou movimentos, que se fazem nos órgãos dos nossos sentidos.” (AT IX-1, 236).
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entendimento não deixa nunca de ser ininteligível.1
Para a explicação deste segundo elemento do que chamamos de ‘sensação’, a física não é suficiente, e na
verdade conhecimento humano algum é suficiente, pois neste sentido do termo ‘sentir’, estamos falando de
algo que é inevitavelmente incompreensível. Porém, podemos descrever o mecanismo desta afecção ou
causação da alma por uma afecção corporal. O que ocorre é que, no primeiro grau do que chamamos de sentir,
um corpo exterior move ou irrita nosso próprio corpo. Nosso corpo, ao ser movido pelo corpo exterior,
comunica o movimento que sofre pelo movimento de suas partes, que chega até o cérebro. Do cérebro, então, o
movimento é comunicado à mente humana. O esquema da comunicação entre o corpo e a mente por esta parte
sutil da matéria que Descartes chamou de glândula pineal é o mesmo que a ciência cognitiva utiliza hoje
para explicar o reconhecimento de padrões formados em um reticulo de células receptoras de estímulos
exteriores. Em um livro nem um pouco cartesiano chamado The Engine Of The Reason, The Seat Of The Soul,
publicado em 1996 pela editora do MIT, Paul Churchland descreve, na página 37, um esquema envolvendo
uma grade de células e uma célula-alvo que é, na prática, o mesmo esquema que Descartes descreveu no seu
Tratado do Mundo, de 1633, para explicar como, a partir de algo dado externamente, é possível formar
internamente uma cognição.2 Evidentemente, o esquema de Churchland está enriquecido dos enormes
avanços do conhecimento da fisiologia e anatomia humana que foram realizados nos séculos 18, 19 e 20,
principalmente, e Churchland não crê em um dualismo de substância pensante e corpo, mas o esquema causal
que para ele é o que leva da afecção do corpo pelo ambiente para o que chamamos de cognição é o mesmo que
aquele de Descartes para a explicação da passagem do estímulo para a percepção.
Neste segundo sentido do termo, então, ‘sentir’ é a comunicação à mente de um movimento do corpo. Este
esquema serve também para explicar os sonhos, tal como Descartes mostra no Tratado do Mundo (AT XI, 196-
97), mas este não é nosso assunto hoje. Podemos, em um sentido figurado, falar que neste segundo sentido do
termo ‘sentir’, a mente é ‘movida’ pelo corpo. Porém, a mente humana não é algo de corpóreo para Descartes,
e então é preciso explicar que o ‘movimento’, aqui, não é exatamente o ser levado ou o ir de um lugar ao outro.
O ‘sentir’, neste segundo sentido do termo, é o ato natural de relacionar, a cada tipo de movimento corpóreo,
na intensidade própria com a qual ele se apresenta à mente, uma qualidade única, sempre relacionada a
este movimento que se apresenta nesta intensidade, e a nenhum outro.
Esta relação natural entre um movimento corpóreo e uma certa qualidade que se apresenta à mente pode
ser dita uma semiótica natural, pois nada há de necessário, para Descartes, no fato que ao movimento
corpóreo que causa na mente a percepção qualitativa de frio esteja ligada exatamente esta percepção, e não
1 “Não me parece que o espírito humano seja capaz de conceber bem distintamente, e ao mesmo tempo, adistinção entre a alma e o corpo, e sua união; pois é preciso, para isto, concebê-los como uma só coisa, e conjuntamenteconcebê-los como dois, o que se contraria.” (Carta à Princesa Elisabeth de 28 de junho de 1643, em Alquié III, p. 46)
2 Ver AT XI, figuras no final do volume e textos correspondentes.
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alguma outra. As qualidades percebidas pela mente, tal como as palavras, estão ligadas aos movimentos
corporais aos quais estao estão ligadas assim como as palavras estão ligadas às coisas que elas designam,
arbitrariamente. Nada nos obriga a chamar o amor de ‘amor’ e o ódio de ‘ódio’, esta é simplesmente a
convenção social que seguimos. Da mesma maneira, a mente segue uma convenção natural ao relacionar uma
certa percepção qualitativa, como por exemplo a percepção do aroma das flores, a um certo movimento ou
irritação do corpo. Não é meu assunto hoje, mas há sugestões na correspondência com a princesa Elisabeth e
nas Paixões Da Alma que algumas destas convenções naturais podem ser modificadas pela pessoa que as
sente.
Para melhor explicar o terceiro grau do que Descartes entende por ‘sensação’, retomo rapidamente os
resultados que apresentei até agora. ‘Sensação’, no primeiro grau do termo, é a irritação do corpo pela coisa
exterior. No segundo grau do termo, ‘sensação’ é a qualidade que, natural mas arbitrariamente, a mente liga
a um certo movimento do corpo. Temos, então, dois resultados, e dois sentidos do termo ‘sentir’. Vejamos se,
em algum destes sentidos, podemos dizer que as sensações são falsas.
Mas, para podermos examinar a verdade ou falsidade dos sentidos, primeiro precisamos examinar onde
é possível a falsidade para Descartes. Para ser mais exato, eu precisaria examinar, agora, não apenas a
possibilidade da falsidade para Descartes, mas também a questão da natureza e da possibilidade da
verdade. Essa análise, contudo, está além do ponto que pretendo alcançar com a apresentação de hoje, e por
isso me limito a examinar da falsidade formal para Descartes, deixando de lado a questão muito
importante, para o estudo da relação entre a 6ª e a 3ª Meditações, da verdade necessária das idéias claras e
distintas e da falsidade material das sensações. Então, eu sublinho, é importante notar que a seguir falarei
apenas daquilo que Descartes chama de verdade e falsidade formal.
Se seguimos uma distinção que Jaakko Hintikka estabelece no seu artigo Cogito Ergo Quis Est?,1 podemos
dizer que nas Meditações Descartes não está tratando dos objetos públicos, mas dos objetos vistos ou
percebidos de uma certa perspectiva. Isso não significa que há dois objetos, um objeto público e outro
privado, mas que a compreensão do funcionamento dos argumentos cartesianos exige que eles sejam
interpretados como se estivessem tratando dos objetos a partir de alguma perspectiva. Daí a enorme
proximidade entre Descartes e a fenomenologia de Husserl, que parte do ponto de vista do eu. É deste ponto
de vista que a verdade dos objetos deve ser aqui analisada. Do ponto de vista fenomenológico, se o objeto me
aparece, isto é, se percebo o objeto, é necessariamente verdadeiro que percebo o objeto. Mas, isto é tudo o que é
necessariamente verdadeiro: que percebo o objeto. Esta verdade necessaria do que aparece vale também
para sonhadores e loucos: se sonho que meu corpo é de vidro, é necessariamente verdadeiro que sonho que meu
corpo é de vidro; se deliro que minha cabeça é um porongo, é necessariamente verdadeiro que deliro que
minha cabeça é um porongo. Do ponto de vista da autoridade da primeira pessoa, em qualquer um dos casos
1 Revue de Métaphysique et de Morale, Janvier-Mars 2000, nº 1, p. 13-28.
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acima, se tenho condições de articular um juízo sobre o objeto visto na minha perspectiva, é necessariamente
verdadeiro que o juízo o que afirmo ou nego sobre o objeto perspectivado, se no meu juízo eu for sincero. Uma
hipótese como a de Armstrong, que um super-técnico em cérebros poderia, no fim das contas, dizer que na
verdade eu não estou percebendo um ‘objeto mental’, embora eu continue ‘percebendo’ um objeto mental, não
faz sentido neste contexto teórico.1
Em nenhum dos casos, todavia, posso passar do objeto visto sob certa perspectiva para o objeto público
preservando, necessariamente, a verdade do que disse sobre o objeto percebido, pois nada do que é
necessariamente verdadeiro de um objeto em um campo perceptivo é necessariamente verdadeiro de um
objeto público. Ou melhor: nada do que percebo como qualidade (o segundo grau da sensação), isto é, como
efeito do meu corpo sobre a minha mente, é necessariamente verdadeiro do objeto exterior, isto é da causa do
movimento ou da irritação do meu corpo, o primeiro grau da sensação.
A afirmação que algo que é verdadeiro da qualidade percebida é verdadeiro do objeto que irrita o corpo é
formalmente falsa. Este é o terceiro sentido do termo ‘sentir’ em Descartes, o único onde pode haver
falsidade formal. O erro formal, no caso, é a atribuição de uma qualidade, que é o efeito do corpo sobre a
mente, a um objeto exterior, que não a afeta diretamente. Só o que a mente tem, no segundo grau da sensação,
são objetos perspectivados, e nada a autoriza a atribuir aos objetos públicos, causadores da sensação no
primeiro grau, o que é verdadeiro da sensação no segundo grau.
Este terceiro grau da sensação não é, em nenhum sentido do termo ‘sentir’, o produto de alguma faculdade
sensível humana. A atribuição de qualidades sensíveis tais como maciez, dureza, frio, calor, vermelhidão e
outras às coisas, é obra do entendimento e da vontade, que em um juízo afirmam aquilo que não é conhecido
clara e distintamente, e assim o homem comete um erro formal quanto às sensações. É este terceiro grau do
sentir que fundamenta, para Descartes, a física da escolástica e do epicurismo.
Os dois primeiros graus do sentir, então, não estão errados do ponto de vista formal. A afecção do corpo
por um objeto exterior não é um juízo, mas um fato físico; a afecção da mente pelo corpo não é um juízo, mas um
fato incompreensível, devido à união da alma e do corpo. Só o que há de judicativo, e então só o que pode
estar formalmente errado nas sensações, é a atribuição do que só ocorre por causa da união da alma com o
corpo ao que vale para o domínio do puramente corporal ou físico. Assim, que os animais têm sensações no
primeiro sentido do termo é verdadeiro, mas não pode ser verdadeiro nos outros sentidos, pois o segundo e o
terceiro sentidos do termo ‘sentir’ exigem que aquele que sente tenha mente.
Bem, então, os dois primeiros graus do sentir são, neles mesmos, verdadeiros, pois nada neles é afirmado
ou negado. Tendo esclarecido em que sentido as sensações não são formalmente falsas, e em que sentido elas o
1 Ver D. M. Armstrong, Is Introspective Knowledge Incorrigible?, Philosophical Review, october 1963, vol.72, p. 419-23.
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são, passo agora à análise de como Gueroult passa desta situação para o ponto onde será, finalmente,
estabelecida a verdade e também a falsidade que é própria às sensações.
A análise dos três diferentes sentidos do termo ‘sentir’ mostra que, se retornamos aos dados imediatos da
consciência eles mesmos, não pode haver falsidade formal nas sensações.1 Isso não significa, certamente, que
apenas com a análise das sensações da 3ª Meditação estamos autorizados a julgar, evitando o erro, sobre as
sensações, segundo a dietética do juízo estabelecida na 4ª Meditação, pois, mesmo não sendo formalmente
falsas, as sensações, nos dois primeiros sentidos do termo, não são percepções claras e distintas para o
entendimento. Assim, antes da 6ª Meditação, não estamos autorizados, se queremos evitar o erro, a afirmar
ou negar algo sobre elas, em um juízo.
Então, para que possamos julgar sobre as sensações, evitando o erro, é preciso que Descartes, na 6ª
Meditação, refaça o trajeto conceitual que o levou à autorização para afirmar ou negar, em um juízo, o que é
percebido clara e distintamente. Todavia, o trajeto, na 6ª Meditação, buscará a autorização para afirmar
ou negar, em um juízo, o que é percebido pelo entendimento obscura e confusamente. Mas, certamente, esta não
será uma autorização para fazer afirmações ou negações sobre o que é materialmente falso para o
entendimento, pois o juízo depende da clareza e distinção da idéia que é afirmada ou negada, quando a
dietética do julgar é seguida à risca. Esta será uma autorização para afirmar que é clara e distintamente
percebido pelo entendimento que as percepções obscuras e confusas tem uma finalidade vital ou utilidade,
na economia das percepções, e que tal utilidade pode ser considerada, ao seu modo, sua verdade e realidade
própria.
Tal como na 4ª Meditação, onde é analisada a possibilidade do erro formal no juízo, na 6ª Meditação
será necessário justificar do ponto de vista do jogo das faculdades envolvidas na percepção sensível como é
possível o erro sensível. E, ainda paralelamente à 4ª Meditação, na análise do erro formal no juízo, será
preciso encontrar, na 6ª Meditação, uma explicação para o erro sensível que tire de Deus toda a
responsabilidade pelo mesmo. Tratarei rapidamente, a seguir, da questão do estabelecimento do valor
objetivo dos sentimento, que é prévio, na minha reconstrução da reconstrução de Gueroult da 6ª Meditação, à
questão da justificação da possibilidade do erro sensível. Não tratarei, hoje, nem do mecanismo psicológico
ou psicofísico que possibilita o erro, nem da teodicéia.
Gueroult separa a investigação das sensações nuas, sem das vestimentas que lhes foram dadas pelo
entendimento, em quatro momentos. Apresento estes momentos falando na primeira pessoa, mas peço a vocês
que entendam que estou utilizando, para a exposição, o eu que é o narrador das Meditações. O primeiro
momento é a recordação dos diversos juízos de objetividade ligados aos diversos sentimentos. Por exemplo,
1 Ver Gueroult, Descartes selon l’Ordre des Raisons II, p. 48.
7
julgo, pelas sensações, que estou unido a um corpo e que as coisas exteriores existem.1
O segundo momento é a recordação dos fundamentos ou razões destes juízos. Quanto aos sentimentos
exteriores, são quatro as razões.2 A primeira razão era o fato destas sensações ocorrerem sem meu
consentimento, ou contra minha vontade.3 Assim, era natural que eu pensasse que outra coisa, diferente de
mim, as causasse. A segunda razão era a vivacidade das idéias sensíveis.4 Sendo mais vivazes do que as
idéias do entendimento, era natural que eu pensasse que outra coisa, diferente do meu entendimento, as
causasse. A terceira razão era que, não tendo nenhum conhecimento das coisas materias, a não ser pelas
sensações, era natural que eu julgasse que as coisas materias são semelhantes às idéias sensíveis.5 A quarta
razão era que me servia mais frequentemente das idéias sensíveis do que das idéias do entendimento.6
1 Ver Gueroult, Descartes selon l’Ordre des Raisons II, p. 50-51. Na 6ª Meditação: “Primeiro, então, senti quetinha uma cabeça, mãos, pés e todo o resto disto que compõe este corpo que eu via como uma parte de mim, ou talvezcomo eu todo inteiro; senti que este corpo se encontrava em relação com muitos outros corpos, que ele podia ser afetadodiversamente bem ou mal, e eu media estes bens por um certo sentimento de prazer, e os males por um sentimento de dor.Além da dor e do prazer, eu sentia também em mim a fome, a sede e outros apetites deste gênero, e também certasinclinações corporais para a alegria, a tristeza, a cólera e outras semelhantes afecções. Ao exterior, além da extensão,das figuras e dos movimentos dos corpos, eu sentia também neles a dureza, o calor e outras qualidades táteis; e, alémdisso, a luz, as cores, os odores, os sabores, os sons, cuja variedade me fazia distinguir uns dos outros o céu, a terra, osmares e todos os outros corpos.” (AT VII, 74-75) / “Primeiramente portanto senti que eu tinha uma cabeça, mãos, pés, etodos os outros membros dos quais é composto este corpo que eu considerava como uma parte de mim mesmo, ou talvezmesmo como o todo. Além disso senti que este corpo estava localizado entre muitos outros, dos quais ele era capaz dereceber diversas comodidades e incomodidades, e eu observava essas comodidades por um certo sentimento de prazerou volúpia, e as incomodidades por um sentimento de dor. E além deste prazer e desta dor, eu sentia também em mim afome, a sede, e outros semelhantes apetites, como também certas inclinações corporais para a alegria, a tristeza, acólera, e outras semelhantes paixões. E exteriormente, além da extensãos, das figuras e movimentos dos corpos, euobservava neles a dureza, o calor, e todas as outras qualidades que tombam sob o toque. Além disso eu observava aluz, as cores, os odores, os sabores e os sons, cuja variedade me dava meio de distinguir o céu, a terra, o mar, egeralmente todos os outros corpos uns dos outros.” (AT IX-1, 59).
2 Ver Gueroult, Descartes selon l’Ordre des Raisons II, p. 50-51.
3 Ver Gueroult, Descartes selon l’Ordre des Raisons II, p. 51. Na 6ª Meditação: “Eu experimentava com efeitoque elas [as qualidades] sobreviam em mim sem nenhum consentimento da minha parte, ao ponto que eu não podia nemsentir algum objeto, mesmo se eu o quisesse, se ele não estivesse presente a um órgão dos sentidos, nem não senti-loquando ele estava presente …” (AT VII, 758-14) / “Pois eu experimentava que elas [as qualidades] se apresentavam aele [meu pensamento], sem que meu consentimento fosse requerido, de sorte que eu não podia sentir algum objeto, aindaque eu tivesse vontade, se ele não se encontrava presente ao órgão de um dos meus sentidos; e não estava de modo algumem meu poder não sentí-lo, quando ele se encontrava presente.” (AT IX-1, 59).
4 Ver Gueroult, Descartes selon l’Ordre des Raisons II, p. 52. Na 6ª Meditação: “… E como as idéiaspercebidas pelos sentidos eram muito mais vivas e expressas, e mesmo à sua maneira mais distintas, que algumadaquelas que eu forjava eu mesmo em pleno conhecimento de causa e meditando, ou que eu encontrava impressas namunha memória, parecia que elas não poderiam proceder de mim mesmo; elas não poderiam portanto sobrevir a não serdo fato de certas outras coisas.” (AT VII, 7514-20) / “E porque as idéias que eu recebia pelos sentidos eram muito maisvivas, mais expressas, e mesmoà sua maneira mais distintas que alguma daquelas que eu poderia fingir por mim mesmomeditando, ou bem que eu encontrava impressas na minha memória, parecia que elas não podiam proceder do meuespírito; de maneira que era necessário que elas fossem causadas em mim por algumas outras coisas.” (AT IX-1, 60).
5 Ver Gueroult, Descartes selon l’Ordre des Raisons II, p. 52. Na 6ª Meditação: “Como além disto eu nãodispunha de mais nada para conhecer estas coisas, a não ser estas idéias elas mesmas, nada mais poderia vir ao meuespírito senão que aquelas coisas eram semelhantes a estas idéias.” (AT VII, 7520-23) / “De tais coisas não tendonenhum conhecimento, senão este que elas me davam estas mesmas idéias, não me podia vir outra coisa ao espírito,senão que aquelas coisas eram semelhantes às idéias que elas causavam.” (AT IX-1, 60). Na 3ª Meditação: E nada me émais óbvio do que julgar que esta coisa envia para mim sua semelhança mais que não importa o que de outro. “ (AT VII,3820-22) / “E não vejo nada que pareça mais razoável que julgar que esta coisa estrangeira envia e imprime em mim suasemelhança mais do que alguma outra coisa.” (AT IX-1, 30).
6 Ver Gueroult, Descartes selon l’Ordre des Raisons II, p. 52. Na 6ª Meditação: “Além disso, porque melembrava de me ter servido dos meus sentidos mais frequentemente que da minha razão, porque eu via que as idéiasforjadas por mim não eram tão expressas quanto aquelas que eu percebia pelos sentidos e se compunham a maior parte
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Assim, era natural que eu julgasse que nada havia no entendimento que não tivesse passado, antes, pelos
sentidos. Há, também, quatro razões relacionadas aos apetites, paixões e sentimentos internos. A primeira é
que não podia me separar do meu corpo do mesmo modo que me separo dos outros corpos.1 A segunda é que
sentia no meu corpo e pelo meu corpo todos os apetites e sentimentos.2 A terceira é que sentia nas partes do
meu corpo, e não nas partes de outros corpos, comodidades e incomodidades ligadas ao prazer e a dor.3
A quarta razão, e a mais importante de todas as oito, é que constato que a ligação estabelecida entre o
sentimento corpóreo e a afecção da alma que lhe é correspondente não é nem um pouco racional, e que me é
ensinada pela natureza, isto é que esta ligação é um instinto estranho ao entendimento puro. É esta razão
que me faz julgar que a natureza me ensina tudo o que julgo dos objetos dos sentidos, pois o que julgo destes
objetos não é algo apresentado pelo entendimento.4
O terceiro momento da investigação das sensações sem as vestimentas que lhe são impostas pelo
entendimento é o exame das razões que me obrigaram a pôr estes fundamentos em dúvida. Estes motivos são
bem conhecidos. Sabemos que na 1ª Meditação Descartes apresenta motivos positivos para duvidar destes
do tempo de partes destas, eu me persuadia facilmente que não tinha absolutamente nenhuma no entendimento que nãotivesse antes estado nos sentidos.” (AT VII, 7523-29) / “E por isso que eu lembrava também que eu era maisfrequentemente servido dos sentidos que da razão, e que eu reconhecia que as idéias que eu formava por mim mesmo nãoeram tão expressas quanto aquelas que eu recebia pelos sentidos, e mesmo que elas eram o mais frequentementecompostas destas, eu me persuadia facilmente que eu não tinha nenhuma idéia no meu espírito que não tinha passadoantes pelos meus sentidos.” (AT IX-1, 60).
1 Ver Gueroult, Descartes selon l’Ordre des Raisons II, p. 52. Na 6ª Meditação: “Não era sem razão que euestimava que este corpo, que por uma sorte de direito especial eu chamava de meu, me pertencia mais que alguma outracoisa. Eu não podia, com efeito, jamais estar separado dele como de todos os outros corpos …” (AT VII, 7529 -762) /“Não era também sem razão que eu acreditava que este corpo (o qual por um certo direito particular eu chamava demeu) me pertencia mais propriamente e mais estreitamente que algum outro. Pois, com efeito, eu não podia jamais estarseparado dele como dos outros corpos …” (AT IX-1, 60).
2 Ver Gueroult, Descartes selon l’Ordre des Raisons II, p. 52. Na 6ª Meditação: “… Eu sentia nele e por eletodos os apetites e todas as afecções …” (AT VII, 76) / “… Eu sentia nele e por ele todos meus apetites e todas asminhas afecções.” (AT IX-1, 60).
3 Ver Gueroult, Descartes selon l’Ordre des Raisons II, p. 52 (Gueroult fala ‘meu prazer’ e ‘minha dor’). Na6ª Meditação: “… E enfim é nas partes deste corpo, e não em outras situadas fora dele, que eu experimentava a dor e ascócegas do prazer.” (AT VII, 76) / “… E enfim eu era tocado pelos sentimentos de prazer e de dor nas suas partes, e nãonaquelas dos outros corpos que estão separados dele.” (AT IX-1, 60).
4 Ver Gueroult, Descartes selon l’Ordre des Raisons II, p. 53. Na 6ª Meditação: “Mas por causa deste não seiqual sentimento de dor segue uma certa tristeza do espírito, e do sentimento de prazer uma certa alegria, porque estanão sei qual fisgada do estômago que chamo de fome me leva a tomar um alimento, e a secura da garganta uma bebida, eassim o resto, não vejo verdadeiramente nenhuma razão senão que tal é o ensinamento da natureza; não há com efeitoabsolutamente nenhuma afinidade (ao menos que meu entendimento reconheça) entre esta fisgada e a vontade de tomarum alimento, ou entre o sentimento da coisa que traz a dor e o pensamento de tristeza nascido deste sentimento. E todosos outros juízos concernindo os objetos dos sentidos me pareciam assim terem sido ensinamentos da natureza: eu estava,com efeito, persuadido que estas coisas eram tais antes de haver pesado algumas das razões que poderiam prová-lo.”(AT VII, 766-20) / “Mas quando eu examinava porque deste não sei qual sentimento de dor segue a tristeza no espírito,e do sentimento de prazer nasce a alegria, ou bem porque esta não sei qual emoção do estômago, que chamo de fome, nosfaz ter vontade de comer, e a secura da garganta nos faz ter vontade de beber, e assim o resto, eu não podia dar razãoalguma, senão que a natureza me ensinava desta sorte; pois, não há certamente alguma afinidade nem alguma relação(ao menos que eu possa compreender) entre esta emoção do estômago e o desejo de comer, não mais que entre o sentimentoda coisa que causa a dor, e o pensamento de tristeza que este sentimento faz nascer. E da mesma maneira me parecia queeu havia aprendido da natureza todas as outras coisas que julguei quanto aos objetos dos meus sentidos; pois euobservava que os juízos que eu tinha o costume de fazer destes objetos, formando-se em mim antes que eu tivesse o lazerde pesar e considerar algumas razões que me pudessem obrigar a fazê-los.” (AT IX-1, 60).
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juízos e a insuficiência das razões alegadas a seu favor.1 Economizo também esta parte.
O quarto momento, o que é próprio à 6ª Meditação, é a determinação da natureza e dos limites do valor
objetido das sensações. Este problema deve ser analisado do ponto de vista metafísico e do ponto de vista
psicofísico, isto é das faculdades cognitivas humanas.2 Toda a questão do valor objetivo das sensações pode
ser montada em dois quebra-cabeças, um metafísico, e o outro psicológico. Do ponto de vista metafísico, o
problema ou quebra-cabeças é o seguinte:
(1) O nada não tem propriedades.
(2) Se a sensação é obscura e confusa, ela é algo.
(3) Tudo o que é algo é obra de Deus.
(4) Tudo o que Deus faz é verdadeiro.
∴ (5) Logo, as sensações são verdadeiras.
Esclareço cada um dos quatro pontos do quebra-cabeças, deixando o esclarecimento da conclusão para
depois de ter apresentado o outro quebra-cabeças. O ponto (1) é um princípio metafísico que era aceito por
Descartes, e sua aplicação não traz maiores problemas. O ponto (2) merece esclarecimentos. Afinal, não é
necessário que a sensação seja algo por ter a propriedade de ser obscura e confusa. Obscuridade e confusão
poderiam ser apenas a ausência de algo, uma privação de clareza e de distinção, e assim as sensações
poderiam ser, no fim das contas, uma aparência ou um não-ser. A questão se para Descartes, do ponto de
vista metafísico, as sensações não têm nenhuma propriedade positiva, pois as únicas propriedades
positivas que uma idéia pode ter são a clareza e a distinção, ou se as sensações têm as propriedades
positivas de serem obscuras e confusas, é de difícil solução. Creio que para Gueroult obscuridade e confusão,
por serem aderentes3 às sensações, são propriedades positivas das mesmas.
O ponto (3) também merece esclarecimentos. Tudo o que Deus faz é verdadeiro. É fácil mostrar que
Descartes adota esta tese. Porém, aquilo que não é obra de Deus pode ser falso. Tal é, exatamente, o caso do
juízo, que do ponto de vista metafísico é um produto da vontade e da liberdade do ser humano.
Metafisicamente, o juízo humano é algo, mas não é obra de Deus, e sim do homem. Então, esta exceção ao que
1 Ver Gueroult, Descartes Selon L’Ordre des Raisons II, p. 50 e 54. Retomada das razões de duvidar na 6ªMeditação: “Mas pela sequência de inúmeras experiências foi pouco a pouco arruinada toda a confiança que eu tinhatido nos sentidos. Algumas vezes, com efeito, as torres que de longe tinham parecido redondas, de perto pareciamquadradas; estátuas enormes, elevadas no auge destas torres, não pareciam grandes a quem as olhava de perto; e eminúmeros casos semelhantes retirei erro nos juízos dos sentidos exteriores; e não somente exteriores, mas tambéminternos.” (AT VII, 76-77) / “Mas após muitas experiências foi pouco a pouco arruinada toda a credibilidade que eutinha ajuntado aos sentidos. Pois observei várias vezes que as torres, que de longe me haviam parecido redondas, mepareciam de perto serem quadradas, e que os colossos, elevados sobre os mais altos cumes destas torres, me pareciampequenas estátuas quando os olhava de baixo; e assim, em uma infinidade de outras oportunidades, encontrei erro nosjuízos fundados sobre os sentidos exteriores; e não somente sobre os sentidos exteriores, mas mesmo sobre osinteriores.” (AT IX-1, 61).
2 Ver Gueroult, Descartes Selon L’Ordre des Raisons II, p. 50 e 57.
3 Ver Gueroult, Descartes Selon L’Ordre des Raisons II, p. 18.
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é obra de Deus deve ser levada em conta, pois é possível que as sensações, tais como os juízos, sejam fruto da
liberdade humana. Todavia, tal como Gueroult reconstrói a 6ª Meditação, esta possibilidade é excluída,
pois é um dos fundamentos da antiga crença nas sensações que elas se me apresentam contra a minha
vontade. Neste sentido elas são não-judicativas.
O ponto (4), sobre a veracidade divina, é esclarecido nas respostas às objeções de Hobbes, onde Descartes
nega que Deus possa enganar. A conclusão, (5), parece paradoxal, principalmente se levamos em conta a
teoria da falsidade material das idéias sensíveis da 3ª Meditação, a dietética do julgar da 4ª Meditação, e
a teoria da verdade das essências das coisas materiais da 5ª Meditação. Examinarei com mais detalhe esta
conclusão a seguir, pois ela chega ao mesmo ponto que chega o quebra-cabeças montado quanto às faculdades
humanas. O quebra-cabeças psicológico é o seguinte:
(6) Todas as faculdades humanas foram dadas por Deus.
(7) Tudo o que Deus dá é verdadeiro.
(8) As faculdades humanas são, então, verídicas.
(9) Tenho a faculdade de sentir.
∴ (10) Logo, o que sinto é verdadeiro.
Os pontos (6) a (8) podem se beneficiar dos esclarecimentos anteriores. O ponto (9) já aparece na 2ª
Meditação, mas agora, na 6ª Meditação, o que está em jogo não é o fato que sou uma coisa que sente, que
deseja, que quer, que não quer, etc., e sim a verdade que é própria ao ‘sente’.
Agora, os esclarecimentos sobre as conclusões dos dois quebra-cabeças, o metafísico e o psicológico, que as
sensações são verdadeiras, em um caso, e que o que sinto é verdadeiro, no outro. No primeiro caso, se as
sensações são verdadeiras, então tenho que reconhecer que, assim como elas têm uma falsidade material ou
intrínseca, tal como foi estabelecido na 3ª Meditação, elas também têm uma verdade ou realidade
material, tal como as idéias claras e distintas do entendimento. No segundo caso, a conclusão é a mesma,
mas colocada de uma maneira mais escandalosa: o que sinto é verdadeiro. As conclusões dos dois quebra-
cabeças parecem ir contra tudo o que se considera, normalmente, a doutrina de Descartes.
Bem, eu creio que a conclusão dos dois quebra-cabeças é bastante cartesiana, e que em Gueroult
encontramos uma boa justificação. Segundo Gueroult, a veracidade divina deve garantir, simultaneamente,
a falsidade material que o entendimento atribui às idéias obscuras e confusas e a verdade material que a
natureza reconhece nas sensações. Esta solução está na garantia que entendimento e sentimento são, ambos,
faculdades verídicas, mas que cada um é verdadeiro em relação a uma realidade ou verdade diferente,
cada um na sua região. A cada esfera é garantida uma verdade que lhe é apropriada. O que é falso na região
do entendimento pode ser verdadeiro na região do sentimento, e vice versa.1
1 Ver Gueroult, Descartes Selon L’Ordre Des Raisons II, p. 57.
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O sentimento nos coage, nos inclina, é obscuro e confuso. Ele nada diz sobre a natureza dos corpos.1 Sua
finalidade (para a qual ele é na maior parte dos casos verdadeiro) é ser o signo do que é útil ou nocivo ao
nosso corpo, e à nossa natureza composta. Esta explicação dá conta dos requisitos metafísicos da veracidade
divina e quanto à verdade da realidade psicológica das sensações, que não nos enganam (na maior parte dos
casos) sobre aquilo que elas estão qualificadas a significar.
Mas, devemos entender que o que é garantido pela veracidade divina não é a verdade de cada sensação
individual, na sua correspondência com um certo estado corporal. O que está garantido é a natureza ou
instinto, que liga imediatamente a um movimento corpóreo uma certa qualidade percebida, que tem uma
significação de valor objetivo relativo ao corpo.2 Este esclarecimento permite que compreendamos a
explicação que Descartes dará para os casos onde os sentidos de fato nos enganam. Porém, a elucidação deste
conceito cartesiano de natureza, que é um antecedente do conceito de boa natureza que chega a Rousseau, fica
para uma outra ocasião.
Muito obrigado.
Referências
ADAM, Charles e TANNERY, Paul, editores. Œuvres de Descartes. Paris, Vrin, 1996.
ALQUIÉ, Ferdinand, editor. Œuvres Philosophiques de Descartes III. Paris, Classiques Garnier
Multimedia, 1998.
DESCARTES, René. Méditations Métaphysiques. Nova tradução do texto latino por Michelle Beyssade
(1990). Paris, Le Livre de Poche, 1998.
GUEROULT, Martial (1953). Descartes selon l’Ordre des Raisons II — l’Âme et le Corps. Paris, Aubier,
1994
1 Ver Gueroult, Descartes Selon L’Ordre Des Raisons II, p. 59.
2 Ver Gueroult, Descartes Selon L’Ordre Des Raisons II, p. 60.