a questão agrária brasileira requer solução no século xxi · a elevada concentração da...

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1 A questão agrária brasileira requer solução no século XXI Bastiaan Philip Reydon 1 1. Introdução Neste inicio de século XXI, o Brasil apresenta por um lado um grande crescimento econômico, instituições sólidas em várias áreas, melhora na situação social, e por outro a situação fundiária rural e urbana ainda é muito precária, não tendo resolvido questões elementares que a maioria dos países desenvolvidos resolveu ainda nos séculos XVIII e XIX. No mundo rural a grande concentração da propriedade da terra e a elevada ociosidade da terra associada à existência de inúmeros sem terras demandando terras demonstram que a questão agrária brasileira ainda precisa ser enfrentada. Por outro lado os constantes conflitos pela terra, inclusive com mortes e feridos, a existência de posses com a possibilidade de novos apossamentos de terras, as grandes possibilidades de fraudes nos processos de registros de terras, a completa ausência de controle sobre as compras de terras de por parte de estrangeiros, a constante necessidade de criar novos cadastros para impedir o desmatamento na Amazônia são todos sintomas de que uma faceta da questão agrária se associa à insegurança jurídica associada à propriedade da terra. Por outro lado na área urbana o país tem quase que 40% de sua população vivendo de forma precária em favelas, cortiços e loteamentos clandestinos. O que está por trás de todos estes processos é a possibilidade de especulação com terras, que é uma das atividades mais rentáveis e com menor risco do país. Apenas um processo no qual a sociedade passa em conjunto com os órgãos competentes a assumir a efetiva governança dos mercados de terras é que estes processos serão combatidos de forma efetiva. O crítico problema agrário brasileiro no século XXI tem suas origens no padrão de ocupação e de desenvolvimento do país e as soluções legais e institucionais, por mais que tentassem enfrentar o problema, no mais das vezes os agravavam. Historicamente a realidade fundiária brasileira, foi marcada pela existência de regulação formal, mas não aplicada integralmente, fazendo com que as regras do acesso à terra sejam bastante frágeis e incipientes. A Lei de Terras de 1850 já tinha os seguintes objetivos que regulariam a propriedade: ordenar a apropriação territorial no Brasil; acabar com a posse; fazer um cadastro de terras; tornar a terra uma garantia confiável para empréstimos. Contudo, não foi isso que aconteceu: a terra quer rural quer urbana permanece até o presente apenas com controles que procuram garantir a propriedade, mas dependendo da região com riscos, mas nem regulam a propriedade menos ainda seu uso. Se até o presente não há nem cadastro dos imóveis privados nem das terras públicas (devolutas ou outras) quanto mais alguma forma de regulação social adequada. Portanto com este quadro a terra é passível de qualquer tipo de utilização pelos proprietários, desde a especulativa, passando pela produtiva até a predatória. Até hoje não se tem noção das terras pertencentes ao Estado pelos vários mecanismos existentes, nem mesmo as terras devolutas definidas na Lei de Terras de 1850 foram discriminadas. As conseqüências desse processo são bastante abrangentes, desde estabelecer fronteira entre ricos e pobres, determinar o desenvolvimento tecnológico setorial, a organização da produção, até definir regiões urbanas mais ou menos valorizadas e/ou preservadas. 1 Professor Livre Docente do NEAA/IE/UNICAMP. Endereço eletrônico: [email protected] .

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1

A questão agrária brasileira requer solução no século XXI

Bastiaan Philip Reydon1

1. Introdução

Neste inicio de século XXI, o Brasil apresenta por um lado um grande

crescimento econômico, instituições sólidas em várias áreas, melhora na situação social, e por outro a situação fundiária rural e urbana ainda é muito precária, não tendo resolvido questões elementares que a maioria dos países desenvolvidos resolveu ainda nos séculos XVIII e XIX.

No mundo rural a grande concentração da propriedade da terra e a elevada ociosidade da terra associada à existência de inúmeros sem terras demandando terras demonstram que a questão agrária brasileira ainda precisa ser enfrentada. Por outro lado os constantes conflitos pela terra, inclusive com mortes e feridos, a existência de posses com a possibilidade de novos apossamentos de terras, as grandes possibilidades de fraudes nos processos de registros de terras, a completa ausência de controle sobre as compras de terras de por parte de estrangeiros, a constante necessidade de criar novos cadastros para impedir o desmatamento na Amazônia são todos sintomas de que uma faceta da questão agrária se associa à insegurança jurídica associada à propriedade da terra. Por outro lado na área urbana o país tem quase que 40% de sua população vivendo de forma precária em favelas, cortiços e loteamentos clandestinos. O que está por trás de todos estes processos é a possibilidade de especulação com terras, que é uma das atividades mais rentáveis e com menor risco do país. Apenas um processo no qual a sociedade passa em conjunto com os órgãos competentes a assumir a efetiva governança dos mercados de terras é que estes processos serão combatidos de forma efetiva.

O crítico problema agrário brasileiro no século XXI tem suas origens no padrão de ocupação e de desenvolvimento do país e as soluções legais e institucionais, por mais que tentassem enfrentar o problema, no mais das vezes os agravavam. Historicamente a realidade fundiária brasileira, foi marcada pela existência de regulação formal, mas não aplicada integralmente, fazendo com que as regras do acesso à terra sejam bastante frágeis e incipientes. A Lei de Terras de 1850 já tinha os seguintes objetivos que regulariam a propriedade: ordenar a apropriação territorial no Brasil; acabar com a posse; fazer um cadastro de terras; tornar a terra uma garantia confiável para empréstimos.

Contudo, não foi isso que aconteceu: a terra quer rural quer urbana permanece até o presente apenas com controles que procuram garantir a propriedade, mas dependendo da região com riscos, mas nem regulam a propriedade menos ainda seu uso. Se até o presente não há nem cadastro dos imóveis privados nem das terras públicas (devolutas ou outras) quanto mais alguma forma de regulação social adequada. Portanto com este quadro a terra é passível de qualquer tipo de utilização pelos proprietários, desde a especulativa, passando pela produtiva até a predatória. Até hoje não se tem noção das terras pertencentes ao Estado pelos vários mecanismos existentes, nem mesmo as terras devolutas definidas na Lei de Terras de 1850 foram discriminadas.

As conseqüências desse processo são bastante abrangentes, desde estabelecer fronteira entre ricos e pobres, determinar o desenvolvimento tecnológico setorial, a organização da produção, até definir regiões urbanas mais ou menos valorizadas e/ou preservadas. 1 Professor Livre Docente do NEAA/IE/UNICAMP. Endereço eletrônico: [email protected].

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A democratização do país aliada a governos mais comprometidos com os aspectos sociais e ambientais, desde o final do século XX, empreenderam ações e políticas que avançam na direção de uma maior regulação da terra no país. Mas todas ainda bastante específicas, localizadas e de pequeno alcance. Em função deste conjunto de ações implementadas no passado recente, foi possível perceber a dimensão dos problemas e já implantar algumas soluções, que neste momento necessitam de um aprofundamento.

Mas o principal problema do país é a ausência de mecanismos concretos que regulem a propriedade, o uso e ocupação do solo rural e urbano brasileiros. E essa falta de regulação, efetiva e não de regras, decorre e é determinada pelas possibilidades de se especular com terras – isto é, ganhar dinheiro com a compra, manutenção, transformação e posterior revenda de terras em qualquer de suas formas.

Também é sabido que as regras que visavam à efetiva regulação desses mercados através de legislações acabaram sendo sempre burladas ou não fiscalizadas, gerando condições mais propícias à especulação para alguns. Portanto, a regulação ideal seria aquela na qual a sociedade passasse a ter governança e pudesse definir o uso adequado do solo quer do ponto de vista produtivo, quer para habitações, preservando simultaneamente o meio ambiente. Mas o primeiro passo para a melhora na governança fundiária no Brasil passa pela compreensão da estrutura atual de governança e o potencial de sua transformação para atingir os objetivos acima.

O principal objetivo deste estudo é mostrar que é o município que tem assumir o papel, em conjunto com a população de gerar a efetiva governança da terra no país. Para isto inicialmente no item 2 será mostrado que a questão agrária brasileira não foi solucionada principalmente porque o Estado brasileiro não foi capaz de regular a propriedade da terra. Isto é, mostrar que parte significativa dos problemas crônicos de uso e ocupação do solo rural e urbano na realidade brasileira decorre da falta de regulação/governança adequada nesses mercados.

O item 3 tratará teoricamente do porque a terra é objeto de especulação e que o Estado tem um papel crucial na sua regulação. O item quatro evidencia a evolução da legislação e das regras que foram criadas para regular o acesso à terra ou coibir a especulação com terra, tendo como resultante um quadro caótico de administração fundiária e portanto a ausência de regulação fundiária. O próximo item, o cinco, avalia as principais políticas fundiárias recentes e os entraves à solução da questão agrária brasileira. O item 6 tem como objetivo apontar na direção das principais ações que tem que ser implementadas para a construção de um quadro institucional de governança fundiária adequado à realidade brasileira que ajude a equacionar a questão agrária brasileira.

2. A crítica situação agrária brasileira

É inaceitável que em pleno século XXI, quando o Brasil caminha fortemente na direção de se constituir uma das potencias econômicas mundiais, vários aspectos da situação agrária ainda se encontram num estado bastante crítico. O mais chocante é que o país continua a aparecer nos noticiários internacionais com três aberrações: os maiores conflitos pela terra, inclusive com mortes, uma elevadíssima concentração da propriedade da terra e o desmatamento da floresta Amazônica. As três decorrentes do da questão agrária brasileira que nasceu no processo de colonização e que até a presente data não foi enfrentada menos ainda resolvida. Todos estes problemas se associam ao fato do país ter um conjunto de regras vinculados à propriedade da terra, que não permitem a sua adequada regulação, decorrentes da: a) ausência de um cadastro; b) a possibilidade de se apossar e regularizar terras; c) a ausência de tributo

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sobre a terra e que finalizam em d) a possibilidade de se especular continuamente com terras, como se demonstrará a seguir.

2.1. Conflitos agrários

A tabela 1 abaixo mostra que ao longo da primeira década deste século o número de conflitos pela terra, inclusive com assassinatos persiste com valores bastante elevados. Observa-se, pela mesma tabela que o número de conflitos gira em torno de 1000 anualmente e que o número de pessoas envolvidas é nos últimos três anos da ordem de mais de 300 mil pessoas, contingente significativo. Sem contar que há algumas dezenas de mortes decorrentes destes conflitos. Portanto é inegável que existe uma questão agrária na dimensão de que existe violência no campo. Tabela 1 . Alguns números de conflitos no campo. Brasil. De 2002 a 2010.

número

de

conflitos

pessoas

envolvidas

area com

conflito

em ha

número de

assassinatos

tentativas

de

assassinatos

ameaças

de

morte

número

de

presos

número

de

agredidos

2002 925 425.780 3.066.436 43 36 244 158 18

2003 1690 1.127.205 3.831.405 73 64 266 380 48

2004 1801 965.710 5.069.399 39 99 284 421 335

2005 1881 803.850 11.487.072 38 56 266 261 166

2006 1657 703.250 5.051.348 39 72 207 917 749

2007 1538 612.000 8.420.083 28 66 259 428 443

2008 1170 354.225 6.568.755 28 44 90 168 800

2009 1184 415.290 15.116.590 25 62 143 204 277

2010 1186 315.935 13.312.343 34 55 125 88 90

Fonte: Comissão Pastoral da Terra (CPT)

Outra dimensão dos conflitos é a existência no país de muitos sem terras demandando terras para serem assentados. Apenas entre os demandantes de terras para reforma agrária, segundo o MST, existem no país mais de 50 mil famílias, indicando que a demanda por terras além de elevada se faz com forte mobilização política. A Comissão Pastoral da Terra estima que em 2010 havia 36 acampamentos com 3.579 famílias acampadas indicando que a solução da questão agrária para estas inclui a disposição a viver uma parte de sua vida sob uma lona para obter terras no processo de reforma agrária no país.

2.2. Concentração da propriedade da terra

Uma das facetas da grave situação fundiária brasileira é o elevado grau de

concentração da propriedade da terra, como se pode atestar na tabela 2 abaixo. Possivelmente é um dos países com maior índice de concentração de terras do mundo2, apesar dos esforços recentes no sentido de sua democratização/distribuição através da reforma agrária. O índice de Gini da propriedade continua no nível de

2 Segundo FAO http://www.fao.org/economic/ess/world-census-of-agriculture/additional-international-comparison-tables-including-gini-coefficients/other-international-comparison-tables-of-agricultural-census-data-explanatory-notes-and-comments/en/, o Brasil tem um dos mais elevados Índices de Gini do mundo.

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elevados 0,85, sem apresentar sinais de queda. A participação na área total dos 50 % menores estabelecimentos agropecuários continua na faixa de 2,3 %, enquanto os 5 % maiores estabelecimentos somam mais de 69,3 % do total das terras. Informações que atestam o elevadíssimo grau de concentração da terra no país, que apesar da extensa reforma agrária não modificaram a estrutura agrária do país.

A elevada concentração da propriedade da terra no país é a principal fonte da grande desigualdade social e econômica do país e de parte significativa da sua pobreza rural3, principalmente através da exclusão social, na medida em que os mais pobres não tem acesso à terra. Tabela 2. Estrutura fundiária dos estabelecimentos agropecuários do Brasil. 1975 1985 1995/6 2006 Numero de estabelecimentos (milhões) 5,0 5,7 4,8 4,9 Área total (milhões de ha) 323,9 369,6 353,6 294, Área Média (há) 64,9 71,7 72,8 67,1 Índice de Gini 0,855 0,859 0,857 0,856 Área dos 50 % menores (%) 2,5 2,4 2,3 2,3 Área dos 5 % maiores (%) 68,7 69,7 68,8 69,3 Fonte: Censos Agropecuários IBGE – vários anos

O próprio padrão de ocupação de terras urbanas também tem na grande concentração das terras rurais a sua origem, participando ativamente dos processos de exclusão urbana e participando do processo de gerar pobreza urbana. Além disso, a ausência de limites ou de regulação ao acesso à terra faz com que mesmo o agronegócio não tenha qualquer incentivo a uma utilização mais eficiente do solo, mantendo um padrão baseado na grande abundância de terras sem aumentos significativos da produtividade no seu uso4.

Exemplos disso são a grande ociosidade e/ou o baixíssimo grau de utilização das terras agrícolas e os baixíssimos índice de lotação médio da pecuária de corte do país que é apenas pouco superior a 1 unidade animal por hectare, significativamente abaixo dos índices indicados pelos órgãos técnicos. Outra dimensão da grande concentração de terras no país é a grande aquisição de terras por estrangeiros no Brasil. Isto apenas é possível num país onde a questão agrária não está resolvida.

2.3. Desmatamento da floresta Amazônica

O persistente e elevado volume de desmatamento da floresta Amazônica ocorre também em função da ausência de solução da questão agrária brasileira, particularmente a ausência da regulação da propriedade da terra. Segundo FAO (2010) “Brasil perdeu uma média de 2,6 milhões de hectares de florestas por ano nos últimos 10 anos, comparado com uma perda anual de 2,9 milhões de hectares anuais na década de 90; na Indonésia as perdas foram de 500 mil hectares no período de 2000-2010 e de 1,9 milhão de hectares no período de 1990-2000.”

O gráfico 1, que consiste no levantamento do desmatamento da Amazônia, com base em imagens de satélite, evidencia que o desmatamento nos últimos anos girou em torno de 6,4 e 7,4 milhões de ha, o que representa uma melhora substantiva, mas ainda é um desmatamento muito elevado para um bioma com as características do Amazônico. 3 Deininger (2003) e Lipton (2009) com base em inúmeras experiências internacionais, com argumentos distintos, mostram que a democratização do acesso à terra é a principal política para minimizar a pobreza rural e gerar um modelo de desenvolvimento mais inclusivo e participativo. 4 Em Reydon e Guedes (2006) mostramos como o conjunto da estratégia da empresa sucro-alcoleira COSAN é baseada no seu processo de aquisição de terras, inclusive as ligadas as inovações tecnológicas. E não há qualquer incentivo a um uso mais racional do solo.

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No nosso entender o desmatamento da Amazônia é fruto da continuidade da

tradicional forma de expansão da fronteira agrícola brasileira com a ocupação de terras virgens (privadas ou públicas), a extração de sua madeira de lei, a instalação da pecuária5 extensiva e posteriormente o desenvolvimento de uma agropecuária mais moderna. Estas atividades econômicas exercem o papel de gerar renda, legitimar a ocupação dos novos proprietários no curto prazo, quase sem necessidade de recursos6. No longo prazo as terras ou permanecem com pecuária mais intensiva, ou se existir demanda, serão convertidas para grãos ou outra atividade econômica. Mas o que importa é que existe a expectativa de que haverá demanda por esta terra7, para ser utilizada em algum momento do futuro, fazendo com que seus preços se elevem significativamente. E quanto mais próxima da utilização produtiva maior é a valorização destas terras.

2.4. Especulação com terras

A possibilidade de especulação com terras, com ganho econômicos expressivos é o cerne da questão agrária brasileira que necessita ser enfrentada. Como mostrado em Reydon e Cornélio (2006: 157) os preços da terra do Brasil assumiam em alguns momentos ao longo das décadas de 80 e 90 valores mais

5 Reydon (2011) mostra que o principal motor da pecuarização é, por um lado a existência de muita terra devoluta passível de ser apropriada, associada a possibilidade de, a baixos custos, instalar a pecuária tornando o desmatamento uma estratégia de valorização do capital imbatível. Em levantamento recente do INPE mostrou que 62,2 % dos quase 720 mil km2 desmatados foram ocupados por pastagens.

6 Com freqüência são estes mesmos ocupantes que se utilizam de mão de obra escrava. 7 Esta é decorrente do aumento de preços da arroba do boi gordo, da soja ou mesmo do anúncio que o país será o maior produtor de álcool do mundo. No período recente estes fatores convergiram, fazendo com que a demanda por terras crescesse mais ainda e seus preços também, pressionando ainda mais o desmatamento.

Gráfico 1. Desmatamento na Amazônia Legal

FONTE: PRODES (2011)

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elevados que os dos EUA e Argentina. No gráfico 2 abaixo observa-se que o preço médio da terra de lavouras no Brasil assume valores bastante elevados e se encontra numa tendência altista bastante expressiva. Tomando-se em conta que a média brasileira incorpora terras da Amazônia e do Nordeste com preços muito baixos, conclui-se que os preços praticados no país são bastante elevados.

Gráfico 2. Preços Internacionais da Terra de Lavoura US$

0,00

1000,00

2000,00

3000,00

4000,00

5000,00

6000,00

20002001

20022003

20042005

20062007

20082009

2010

ANO

Pre

ço m

éd

io d

a t

err

ad

e l

av

ou

ra

US

$

BRASIL

EUA

ARGEN

TINA

Fonte: FNP e FGV

Na realidade agrária brasileira tem, em termos econômicos, possibilitado que a propriedade da terra ao não ser regulada, tem permitido a obtenção aos seus proprietários, três principais possibilidades de obter ganhos especulativos8 com a terra:

a) Valorização autônoma no portfólio

A terra no Brasil apresenta uma valorização bastante elevada e representa ganhos ou ao menos manutenção de valores aplicados. Conforme mostramos em Reydon e Cornélio (2006: 201), em alguns períodos, a terra se valoriza mais que qualquer outro ativo. Mas que no conjunto de um portfólio ela pode representar um ganho bastante significativo para seu portador.

b) Transformação no uso rural da terra: de florestas em pastagens

8 Especular aqui é entendido como o processo no qual o agente econômico percebe a possibilidade de obter ganhos no futuro com a aquisição ou obtenção de um ativo. Deve-se deixar claro que nem sempre a especulação gera os resultados esperados. Para o caso da terra, é importante frisar que como há poucos custos associados à sua manutenção no portfólio, essas perdas são mínimas pois com freqüência há ou a urbanização ou surtos de ganhos produtivos com a terra. Portanto, a manutenção de terras no portfólio depende mais da liquidez do agente econômico. Esta decorre da capacidade de prescindir da riqueza aplicada na terra ao longo do tempo. A necessidade de utilizar a riqueza aplicada na terra, ou a real possibilidade de realizar os ganhos especulativos, é que determina o momento de venda e, conseqüentemente, se a especulação foi bem-sucedida.

7

O que ocorre, na realidade, é que qualquer pessoa que adquire ou ocupa a terra com floresta tem a clara percepção que sua terra, isto é seu investimento, se valoriza com o processo de desmatar. Na tabela 39 observa-se inicialmente que os preços da terra com mata nos diferentes estados variam entre R$ 108 no Acre e R$ 546 no estado do Mato Grosso. Observa-se aí que os estado menos desmatados têm os preços mais baixos da terra, enquanto os estados do Mato Grosso, Pará e Rondônia tem os preços mais elevados.

Mas, a conclusão mais importante que se tira da tabela é que em todos os estados o desmatamento sempre valoriza a propriedade significativamente, sendo que, na média destes estados, o desmatamento mais que quadruplica o valor da terra. Isto ocorre porque o preço da terra ainda é fundamentalmente fruto das expectativas dos ganhos produtivos decorrentes da agropecuária associados a ela, sendo que nas terras desmatadas seu uso poder ocorrer imediatamente e sem custos de desmatar. No caso mais extremo, que é do Acre, o desmatamento multiplica este valor por mais de 14 vezes, enquanto no estado do Amazonas multiplica o valor da terra por quase 10 vezes. Poucos investimentos têm retornos tão elevados quanto estes.

Há que se levar em conta que estes proprietários, além do ganho patrimonial com o desmatamento, têm os ganhos oriundos da venda da madeira (em Cotriguaçú-MT estima-se um retorno líquido de R$2.400/ha) e do seu uso econômico posterior (se ocorrer com pecuária, gerará uma receita líquida adicional de mais de R$120 por hectare/ano10. Portanto, o maior catalisador do desmatamento é a combinação dos ganhos da valorização da terra, na sua conversão de floresta em terra produtiva, associada aos ganhos da madeira e da pecuária, estabelecida posteriormente.

Tabela 2. PREÇOS MÉDIOS DE TERRAS DE MATAS E DE PASTAGENS - Estados da Amazônia - em R$/ha correntes de 2008

ESTADOS Mata R$/há Pastagem R$/ha Variação %

Acre 108,00 1571,80 1455,4

Amapa 141,00 800,00 567,4

Amazonas 132,43 1243,91 939,3

Pará 457,73 1509,40 329,8

Rondônia 358,50 1762,50 491,6

Mato Grosso 546,13 2083,69 381,5

Média NORTE 416,53 1832,39 439,9

FONTE: AgraFND (2009)

Este processo de aquisição e desmatamento, que já é muito rentável em áreas privadas, torna-se muito mais lucrativo nas terras devolutas, que, segundo estimativas11, representa 42% do total da área da Amazônia, onde ocorre a maior parte dos desmatamentos. Isto é, no apossamento das terras devolutas, os ganhos

9 A metodologia do Agra FNP coleta preços médios em regiões homogêneas dos Estados citados, usando a uma terminologia não homogênea. Para as matas agregamos as chamadas matas, matas de fácil acesso e de difícil acesso. Para as pastagens utilizamos as pastagens formadas (fácil e difícil acessos), pastagens formada de alto suporte, pastagens formada de baixo suporte. 10 Vide Margulis (2003). 11 Estimativa de Shiqui (2007) indica que 42 % das terras da Amazônia são devolutas.

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oriundos da madeira, da pecuária e da valorização da terra se multiplicam, pois a terra em si não precisou ser adquirida, apenas usurpada do patrimônio público12.

c) Transformação no uso da terra: da rural em urbana.

O processo de parcelar o solo no país, a fim de gerar lotes urbanos, principalmente para os mais pobres, sempre se deu através da ocupação novas áreas, normalmente as rurais sem qualquer tipo de regulação do uso do solo. Isto não significa que as instâncias administrativa e legalmente responsáveis, as prefeituras, não tentem fazê-lo, mas é que elas não têm os instrumentos e a capacidade de fazê-lo.

Reydon (2007), baseado em diversos autores (Maricato, Grodstein, Fernandes, Rolnik, Santos entre outros), mostra que as cidades, particularmente dos pobres, vão se formando nas franjas das cidades existentes. Normalmente de forma ilegal, na construção de loteamentos ilegais que vão se legalizando à medida que o Estado vai levando a infra-estrutura e outras necessidades, e vão criando mecanismos de regularização fundiária.

A troca de atributos da terra de uso rural (medida em hectare) para urbano (medida em metro quadrado) trás uma elevada valorização da terra, seja através de loteamento regular ou clandestino. Um exemplo da valorização da terra através da incorporação de um loteamento regular foi calculado por Gonçalves (2002), que estimou os potenciais ganhos de um empreendimento imobiliário em Pedreira, município da região metropolitana de Campinas. O autor calculou os ganhos por metro quadrado, a partir dos preços de terras rurais do IEA por hectare (ha) e chegou aos valores, dependendo do tipo de terra, entre R$ 0,25/ m2 a R$ 0,60/ m2. Esta mesma gleba parcelada em lotes, no mercado urbano passaria a ter o preço entre R$ 70,00/ m2 a R$100,00/m2. Isto significa que a valorização da terra na transformação da terra de ha em m2 garante um retorno de mais 100 vezes para o loteador. Vale destacar, que nos loteamentos legais existe uma série de custos transacionais que são impostos pelos órgãos públicos, além das normas de planejamento e urbanismo que devem ser obedecidas para que o loteamento seja aceito como regular perante o poder municipal.

Bueno (2004) analisou o processo de ocupação clandestina nas áreas de mananciais através do estudo da formação e consolidação de três loteamentos clandestinos no distrito de Parelheiros na Bacia do Guarapiranga entre os 68 cadastrados na Subprefeitura de Parelheiros. Na comparação dos preços de aquisição das glebas com os preços de venda dos lotes urbanos Bueno (2004) chegou a resultados bastante semelhantes aos de Gonçalves (2002), com valorizações da ordem de 288 vezes no Jardim Almeida e de mais 60 vezes nos outros dois loteamentos.

Uma vez mais se percebe que o estado brasileiro não tem mecanismos para regular os mercados de terras e em função disto a questão agrária se torna mais aguda e os conflitos se avolumam também no espaço urbano.

12 Talvez algumas despesas com capangas, armas, advogados e os custos lícitos e ilícitos de regularizar a área.

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2.5. A ausência de regulação e/ou governança sobre a terra

A melhor evidência da incapacidade que o Estado brasileiro vem tendo de efetivamente regular o mercado de terras consiste no estabelecimento da Portaria 558/99 do INCRA que impôs a todos os proprietários de imóveis com mais de 10.000 ha a necessidade de apresentar a documentação comprobatória de seus imóveis relatada por Sabbato (2001). Essa incapacidade se evidencia por dois aspectos da Portaria: a) o próprio ato de ter que requerer a documentação, pois o Estado deveria deter as informações necessárias de todos os imóveis; e b) o fato de 1.438 (46,9%) dos 3.065 imóveis não terem respondido, e que somam 46 milhões de ha (conforme se observa na Tabela 4).

Dos 3.065 proprietários convocados apenas 1627 compareceram, fazendo com que 1438 imóveis (46,9 %), perfazendo 46 milhões de há13 fossem excluídos do cadastro. Sendo que 49,6 % da área destes imóveis se localizam nos estados do Norte e do Centro-Oeste do Brasil, em grande parte na floresta Amazônica, como se observa na tabela 4. Mas observa-se que em todos os estados há imóveis suspeitos de grilagem.

TABELA 4. Proprietários/detentores de imóveis rurais suspeitos de grilagem. Brasil e regiões.

REGIÃO/UF Nº IMOV. % ÁREA (HA) % BRASIL 1.438 100,0 46.156.619,4 100,0 NORTE 128 8,9 5.477.825,1 11,9 NORDESTE 152 10,6 4.247.183,1 9,2 SUDESTE 187 13,0 7.208.982,5 15,6 SUL 29 2,0 690.607,9 1,5 CENTRO-OESTE 661 46,0 17.382.403,7 37,7 ENDEREÇO NÃO INFORMADO 281 19,5 11.149.617,1 24,2 Fonte: INCRA, Listagem dos imóveis que não atenderam à notificação da Port. 558/99, de 21/12/2000.

Estes esforços durante o governo FHC deram origem a diversas publicações que mostram os problemas fundiários, decorrentes da (des) regulação da propriedade privada. Um dos resultados é o relatório Livro Branco da Grilagem de Terras no Brasil, Incra (1999:2) que mostra, a partir de um levantamento preliminar da situação fundiária brasileira, de forma clara a ausência de regulação da propriedade da terra no Brasil:

“Em levantamento inédito, o Incra está mapeando a estrutura fundiária do país de modo a localizar, um a um, os casos de fraude e falsificação de títulos de propriedade de terras. A grilagem é um dos mais poderosos instrumentos de domínio e concentração fundiária no meio rural brasileiro. Em todo o país, o total de terras sob suspeita de serem griladas é de aproximadamente 100 milhões de hectares - quatro vezes a área do Estado de São Paulo ou a área da América Central mais México. Na Região Norte, os números são preocupantes: da área total do Estado do Amazonas, de 157 milhões de hectares, suspeita-se que nada menos que 55 milhões tenham sido grilados, o que corresponde a três vezes o território do Paraná. No Pará, um fantasma vendeu a dezenas de sucessores aproximadamente nove milhões de hectares de terras públicas.”

13 Vide Sabato (2003) para maiores detalhes.

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O mesmo relatório do INCRA(1999:15) de forma preliminar aponta para as causas deste problema ao afirmar que:

“A fraude foi historicamente facilitada por algumas brechas institucionais como, por exemplo, a inexistência de um cadastro único. Os órgãos fundiários, nos três níveis (federal, estadual e municipal), não são articulados entre si. Ao contrário do que ocorre em outros países, no Brasil não existem registros especiais específicos para grandes áreas. Os dados dos cadastros federal e estaduais não estão cruzados e o cadastro federal, pela atual legislação, é declaratório. A correição (fiscalização) sobre os cartórios deixa a desejar.”

Em decorrência destes levantamentos feitos pelo governo, a justiça iniciou algumas ações para cancelar vários títulos registrados nos cartórios. No inicio dos anos 2000 foram, segundo Lima (2002), cancelados, em 14 comarcas do estado do Amazonas, o equivalente 48,5 milhões de hectares de propriedades registradas junto aos respectivos cartórios de registro de imóveis, demonstrando a fragilidade do sistema de registro de imóveis.

A ausência de regulação da propriedade da terra no Brasil, que é uma das facetas da questão agrária consiste na prática do apossamento de terras, particularmente na Amazônia que pode ser observado no Gráfico 3, obtido de Barreto (2008). Os dados cadastrais existentes, baseados nas declarações dos proprietários de terras que se cadastraram no INCRA, mostram que, em 2003, 35% dos 509 milhões de hectares de terra na Amazônia Legal estavam ocupados sob o direito de posse privado, seja como propriedade registrada ou como posse. Barreto (2008) afirma que o recente processo de criação de reservas Federais e Estaduais, de diferentes tipos, fez com que hoje 43% da Amazônia Legal estejam sob algum tipo de proteção; aproximadamente metade dessa área eram Terras Indígenas e a outra metade em Unidades de Conservação.

A informação decisiva que se obtém deste estudo é que apenas 4 % das áreas privadas (20 milhões de há) estão com os cadastros validados pelo INCRA. Ou seja, na Amazônia apenas 4 % das terras privadas estão legalizadas. Há mais 158 milhões de há (32 %) que são terras supostamente privadas sem validação de cadastro. E os 21% restantes não estavam em nenhuma dessas categorias e, portanto, são tecnicamente consideradas terras públicas sem alocação (Gráfico 3). Portanto a questão da ausência de regulação da terra na Amazônia é o principal problema a ser resolvido.

Mas a situação é mais complexa e incerta do que estes números indicam. Muitas das Áreas Protegidas estão fisicamente ocupadas por usuários privados, cujas reivindicações de ocupação podem ou não ter validade de acordo com a legislação complexa a ser apresentada. A grande área descrita como privada pelo sistema cadastral também está em dúvida. Dos 178 milhões de hectares declarados como propriedades privadas, 100 milhões de hectares podem estar baseados em documentação fraudulenta. Outros 42 milhões de hectares dessa área são classificados a partir de declarações cadastrais como posse, que podem ou não ser passíveis de regularização fundiária, novamente dependendo das suas circunstâncias

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de tamanho, história e localização14. Dessa forma, 30% da área pode ser legalmente incerta e/ou contestada.

É neste contexto que há contradições em torno da propriedade da terra, mas a mais gritante é que há a constante possibilidade de se apossar de terras públicas e registrá-las.

Gráfico 2. Situação fundiária na Amazônia Legal considerando dados do Sistema Nacional de Cadastro Rural (2003) e Áreas protegidas (2006).

Fonte: Barreto (2008)

3. A especulação e a regulação institucional da terra: aspectos teóricos

A terra é um meio de produção essencial, na medida em que é sobre ela que os processos produtivos (agrícolas e não agrícolas) se desenvolvem e que os assentamentos humanos (urbanos ou rurais) se estabelecem. Ela é também fonte de vida para uma enorme população rural, cuja estrutura de representação simbólica garante a continuidade das tradições e valores. A terra é, ao fim e ao cabo, a própria natureza, ou seja, o ambiente natural no qual os homens existem.

A possibilidade de se utilizar a terra para fins especulativos decorre do fato de os mercados de terras fazerem parte de economias de mercado, como chamou Polanyi. Para ele, “a economia de mercado é o sistema econômico controlado, regulado e dirigido apenas por mercados; (...). Uma economia desse tipo se origina da expectativa de que os seres humanos se comportem de maneira tal a atingir o máximo de ganhos monetários" (Polanyi, 1980:81).

Nas economias de mercado, os proprietários de riqueza adquirem diferentes tipos de ativos15, com diferentes níveis de liquidez para se protegerem das incertezas existentes nas economias. Estes procuram antever a psicologia do mercado de

14 Há todos os tipos de tamanhos de posseiros no cadastro do INCRA. Tanto os pequenos com menos de 200 há quanto os com mais de 1000 há somam. 15 Qualquer bem adquirido com o fim de produzir rendas ou para o qual exista a expectativa de que seu valor se eleve em relação ao seu preço de aquisição é considerado um ativo. Nesse sentido, todos os bens podem ser tratados como ativos [vide Reydon(1992) e Reydon e Cornelio (2006) para maiores detalhes].

21%

4%

32%

43%

Sup ostam ente públicasfora de áreas p rotegidas

P ropriedades P rivad ascom cadastro validadaspelo IN C R AÁ reas Protegidasexclu indo as A PA s

Sup ostam ente privadassem validação de

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diferentes ativos e decidem comprar aqueles que, segundo as suas expectativas, lhes proporcionarão maior retorno líquido.

A terra como um ativo apresenta três características importantes: a) é escassa, só existe em quantias fixas e não pode ser facilmente criada; b) não é móvel; e c) é durável, já que não pode ser destruída facilmente. Essas características fazem da terra um ativo atraente: como fator produtivo, como garantia para o crédito e como reserva de valor. A terra, além de possuir características gerais de um ativo, ainda conta com as seguintes condições específicas: a) tem um mercado secundário constituído; e b) é economicamente escassa. Assim, tanto a geração de tecnologia para a elevação do seu rendimento físico quanto medidas administrativas, por exemplo, regulação efetiva dos mercados de terras pode alterar o grau de escassez da terra.

Nesse contexto, o preço da terra enquanto ativo é o resultado das negociações entre compradores e vendedores no mercado de terras. O negócio é sempre feito quando o comprador tem expectativas mais elevadas sobre os ganhos futuros daquela terra do que o vendedor. Mas há um poder diferenciado nesse mercado: como os proprietários especulam sobre os preços futuros dos seus estoques de terras, vendendo-as quando pensam ser o melhor momento, a terra deve se tratada como sendo negociada num mercado de preços 'flex'16. Isso significa que os proprietários de terras, os ofertantes no mercado, apenas a vendem quando há um demandante que ofereça um preço que supere sua expectativa de ganhos com a propriedade da terra.

Os proprietários têm, portanto, um grande poder nesse mercado, podendo manter estoques de terras e vendê-las quando entenderem ser o momento adequado para maximizar seus ganhos. Porém, quando por qualquer razão o proprietário se encontrar fragilizado, necessitando vender sua propriedade, o seu preço de oferta poderá ser relativamente mais baixo. Aqui, por exemplo, a regulação estatal pode ter um papel preponderante ao estabelecer limites ou organizar o mercado.

Um mercado de terras somente se forma a partir da aceitação generalizada da propriedade da terra, independentemente de sua forma, assim como das garantias da manutenção dessa forma. Portanto, se ocorrem mudanças na legislação ou nas garantias dadas à propriedade da terra, a sua condição de ativo se relativiza, fazendo com que o risco associado à sua aquisição se eleve, diminuindo a sua liquidez, reduzindo seu preço.

Portanto, é a regulação institucional que, ao garantir a propriedade da terra, tem um papel fundamental na determinação de seu preço e na possibilidade de se exercer alguma especulação fundiária17.

16 O mercado pode se tornar 'spot' quando os proprietários, normalmente por razões extra-econômicas, necessitam de liquidez imediata (por exemplo, necessidade de saldar dívida). Se essa circunstância se torna generalizada, o preço da terra pode cair acentuadamente. 17 Internacionalmente, também há evidências de que esse tipo de processo ocorre, mas com algum tipo de regulação para que não se inviabilize a própria especulação, conforme Hobsbawm (1995:257): “Mesmo no ocidente, o velho lema do homem de negócios do século XIX ’Onde tem lama, tem grana‘ (ou seja, poluição quer dizer dinheiro) ainda era convincente, sobretudo para construtores de estradas e ’incorporadores‘ imobiliários, que descobriram os incríveis lucros a serem obtidos numa era de boom secular de especulação que não podia dar errado. Tudo o que se precisava fazer era esperar que o valor do terreno certo subisse até a estratosfera. Um único prédio bem situado podia fazer do sujeito um multimilionário praticamente sem custo, pois ele podia tomar empréstimos sob a garantia da futura construção, e mais empréstimos ainda quando o valor desta (construída ou não, ocupada ou não) continuasse a crescer. Acabou, como sempre, havendo um crash – a Era de Ouro acabou, como os booms anteriores, num colapso de imóveis e bancos –, mas até então os centros das cidades, grandes e pequenos, foram postos abaixo e ’incorporados‘ por todo o mundo,

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Para compreender o papel da regulação institucional no mercado de terras pode-se recorrer a Polanyi (1980) que observou que no capitalismo, ao ocorrer a conversão da terra numa mercadoria fictícia, houve uma tendência de transferir a regulação sobre a terra (ou seja, a natureza) ao mercado, subordinando a vida ao sistema econômico de mercado. É dele a idéia de que os três mercados, do dinheiro, de trabalho e de terras, por serem fictícios, requerem uma regulação estatal estrita. São mercados que jamais serão “auto-regulados”, como os mercados das demais mercadorias. Conforme Polanyi (1980:88):

"A história social do século dezenove foi, assim, o resultado de um duplo movimento; a ampliação da organização do mercado em relação às mercadorias genuínas foi acompanhada pela sua restrição em relação às mercadorias fictícias. Enquanto, de um lado, os mercados se difundiam sobre toda a face do globo e a quantidade de bens envolvidos assumiu proporções inacreditáveis, de outro lado uma rede de medidas e políticas se integravam em poderosas instituições destinadas a cercear a ação do mercado relativa ao trabalho, à terra e ao dinheiro... A sociedade se protegeu contra os perigos inerentes a um sistema de mercado auto-regulável, e este foi o único aspecto abrangente na história desse período."

O êxito maior ou menor em restringir os determinantes de mercado no uso da terra, bem como o modo como isso foi feito, parece diferenciar as experiências internacionais em termos de bem-estar e eficiência na agricultura e nas cidades. Na verdade, as instituições e o ambiente institucional18 construídos para regular o mercado de terras procuram definir, regular e limitar os direitos de propriedade sobre a terra, em favor de objetivos socialmente definidos.

Por direitos de propriedade entendem-se os direitos que os indivíduos têm sobre bens e serviços. Esses direitos conformam o direito de vender (ou alugar) um ativo; o direito de usar e derivar renda de um ativo e o direito de legar (transferindo os direitos para os outros) um ativo. Conforme Alston (1998:3):

"Os direitos de propriedade são impostos de três modos. Os próprios indivíduos impõem seus direitos, por exemplo, nós colocamos travas em nossas portas e protegemos nossa propriedade. Sanções sociais tais como o ostracismo podem impedir os indivíduos de violar os direitos dos outros. O poder coercitivo do Estado é também usado para impor direitos de propriedade, por exemplo quando a polícia expulsa invasores de propriedade."

A partir dos direitos de propriedade impostos, são North (1990) e Alston (1998), apud Belik, Reydon e Guedes (2007) que mostram que a forma e a natureza dos direitos de propriedade influenciam o desempenho econômico porque determinam os custos de transformação e transação19. E que, portanto, jogam um papel preponderante na definição das formas de coordenação econômica nas várias esferas da atividade humana.

Pode-se concluir do dito acima que:

incidentalmente destruindo catedrais medievais em cidades tais como Worcester, na Grã-Bretanha ou capitais coloniais espanholas como Lima, no Peru”. 18 Por Ambiente Institucional entendem-se "as regras do jogo que definem o contexto no qual a atividade econômica acontece" (Williamson, 1996:378). 19 Eggertsson (1990; 1999) argumenta que o ambiente institucional influencia o desempenho econômico e o bem-estar social porque age sobre a estrutura de incentivos das firmas, estimulando ou não a incorporação de progresso técnico e uma melhor distribuição de renda.

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a. Nas economias de mercado há a utilização de ativos para especular;

b. A terra quer rural quer urbana, é passível de ser utilizada para fins especulativos;

c. Há necessidade que o Estado regule o mercado de terras, pois este não é um mercado auto-regulado;

d. A forma, os instrumentos, enfim, o padrão da regulação dos mercados de terras interfere diretamente nos processos especulativos, produtivos, ambientais e sociais determinando suas dinâmicas rurais e urbanas.

O próximo item mostrará como foi gestada a legislação e quais as suas principais características para o caso brasileiro. E que, apesar de existirem legislação e atribuição de responsabilidades institucionais, estas ou são ambíguas ou passíveis de não-cumprimento sem maiores ônus, beneficiando sempre os especuladores com terras em prejuízo das classes menos favorecidas e do meio ambiente.

4. Síntese do problema fundiário brasileiro: breve histórico da ausência de regulação

Desde a descoberta do Brasil, mas mais intensamente desde a ocupação nos anos 1530, até a Lei de Terras, as regras de ocupação do solo urbano e rural eram definidas a partir do poder do rei, da Igreja e do poder político e físico dos ocupantes. Da fase de ocupação inicial, através do poder outorgado pelo rei, até o surgimento de agentes especializados na especulação fundiária foi feita grande parte da ocupação do espaço urbano e rural próximo ao litoral.

A Lei de Terras brasileira (1850), deve ser entendida num contexto mais geral de estabelecimento de leis que colocavam restrições ao acesso à terra em todo o mundo colonial20. No caso brasileiro, as controvérsias e diferenças de interesses, principalmente entre proprietários do Centro-Sul do país e do Nordeste, dificultaram e adiaram a sua regulamentação. Seus principais objetivos eram:

a) Organizar o acesso à terra;

b) Inviabilizar o acesso à terra não ocupada;

c) Estabelecer um cadastro de terras para definir áreas devolutas (do Estado);

d) Transformar a terra em um ativo confiável para uso como garantia para empréstimos (colateral).

Mas em função dos interesses dos proprietários do país, a Lei de Terras manteve a possibilidade de regularização das posses, possibilitando a ocupação de terras devolutas e inviabilizou o estabelecimento de um cadastro. Isto é, sempre há a possibilidade de serem regularizadas as posses que eram fruto de ocupações de terras devolutas. Além do usucapião (que estabelece que após alguns anos o posseiro pode regularizar sua propriedade), os próprios estados (principalmente após a república) em alguns momentos históricos concederam propriedades com ou sem títulos. Esse é o mecanismo básico que fez e faz com que nunca fosse estabelecido

20 Como na Austrália, por exemplo.

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um cadastro efetivo que inclusive permitiria definir as áreas devolutas, passíveis de utilização por outros tipos de políticas fundiárias.

Até a Lei de Terras, o registro das propriedades era feito basicamente junto aos Registros Paroquiais de Terra, sob responsabilidade do vigário local. Esse tipo de registro foi utilizado por muito tempo após a promulgação da Lei de Terras. As mudanças institucionais posteriores a 1822, como, por exemplo, a abolição da escravidão (1888) e a Proclamação da República (1889), longe de questionarem a dinâmica de apropriação de terras do período anterior, fizeram estimulá-la, principalmente no ambiente institucional erigido pela República Velha.

Mas em 1864 uma nova obrigação institucional acaba por estabelecer uma tradição que perdura até os dias de hoje e que acaba gerando uma maior indefinição e incapacidade de se regular efetivamente o mercado de terras: a necessidade de se registrarem as posses e as propriedades nos cartórios. De alguma forma o registro no cartório dá ares de legal ao imóvel sem que haja qualquer mecanismo que garanta isso21.

A Proclamação da República em 1889 e, com ela, a instituição da autonomia dos estados também geraram a possibilidade para que estes demarquem suas terras devolutas e concedam títulos. Isso ocorreu com mais intensidade em alguns estados do que em outros, mas independentemente disso criou mais uma ambigüidade na concessão de títulos e conseqüentemente incapacidade de regular o mercado de terras22.

A institucionalização do Registro Público de Terras, em 1900, é, possivelmente, o principal passo para o sistema hoje vigente de registro de imóveis em cartórios. Nessa regra, todos precisam demarcar e registrar seus imóveis quer rurais quer urbanos, mas sem qualquer fiscalização, e sem que haja um cadastro. O Estado, como também precisaria demarcar e registrar as suas terras (devolutas), o que é impraticável – pois estas são definidas por exclusão –, age, portanto, ilegalmente. Essa obrigatoriedade acaba por potencializar as possibilidades de fraudes nos registros nos cartórios públicos.

Mas foi a promulgação do Código Civil de 1916 que gerou a incapacidade de se regularem efetivamente os mercados de terras no Brasil, tanto por reafirmar o cartório como a instituição de registro como por possibilitar que as terras públicas fossem objeto de usucapião. Nas palavras de Osório Silva (1996:324), “com isso completava-se o quadro para a transformação do Estado num proprietário como os outros. E assim ficava sustentada a doutrina da prescritibilidade das terras devolutas. Ou, em outras palavras, a possibilidade do usucapião das terras devolutas”.

Portanto, o Código Civil, por motivos não necessariamente atrelados aos interesses dos proprietários de terras, acabou por estabelecer os grandes marcos da institucionalidade do acesso à terra no Brasil ao definir que o registro em cartórios de 21 A irregularidade mais comum nos Cartórios de Registro é a superposição de várias áreas, ou seja, vários proprietários se dizem donos da mesma terra. Quando isso ocorre, diz-se que a terra possui ‘andares’, para cada proprietário com título irregular para aquela área acrescenta-se mais um andar. O governo federal está dando um passo decisivo na regulação do mercado de terras rurais e urbanas ao conseguir aprovar a Lei 10.267/2001, na qual os cartórios são obrigados, quando houver qualquer mudança na propriedade, a repassá-la ao INCRA numa planta com os seus limites em forma cartográfica (latitude e longitude). 22 Apesar disso há a preocupação de regular atestada na tentativa fracassada de regulação da propriedade através do Registro Torrens (1891) na qual os posseiros e proprietários poderiam obter o título definitivo através de petição não contestada. E, por outro lado, a possibilidade de legalização das posses em 1895 e em 1922 (referentes às posses entre 1895 e 1921) acaba por criar as condições para que as posses perdurem e se enfraqueça a regulação do mercado de terras como expresso na Lei de Terras de 1850.

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imóveis era necessário (às vezes também suficiente) para comprovar sua titularidade. Nas palavras de Holston (1993:71), analisando a realidade atual dessa aberração jurídica:

“..todas as transações relacionadas com a propriedade devem ser registradas a fim de serem obtidos os direitos legais relevantes. Atualmente esses registros são regulados pela Lei dos Registros Públicos (6015/1973) a qual define as formalidades que constituem o sistema brasileiro de cartórios – sistema privado, labiríntico e corrupto. Seu enorme poder burocrático vem do Código Civil (art. 533), o qual afirma que as transações envolvendo bens imóveis não transferem o direito de propriedade, ou os direitos sobre ela, a não ser a partir da data na qual são registrados nos livros dos cartórios; ou seja, como diz o ditado, ‘quem não registra, não possui’ ”.

Portanto, com base na Lei do Registro, em vigor desde 1916, passando pelas atualizações apresentadas, sempre baseou o registro em alguns documentos apresentados pelos proprietários. São os seguintes os principais documentos que validam a propriedade do imóvel junto ao cartório para fins de registro23:

1. Adjudicação 2. Aquisição dos Governos Federal, Estadual e Municipal 3. Carta de arrematação 4. Compra e venda de particular 5. Concessão de uso dos Governos Federal, Estadual e Municipal 6. Dação em pagamento 7. Desapropriação 8. Doação 9. Foro ou enfiteuse 10. Incorporação 11. Recebimento de herança 12. Usucapião 13. Usufruto

Um conjunto de decisões que acabam por desestabilizar mais a garantia à

propriedade da terra no país foi o Decreto Lei 1164/71, e suas posteriores modificações (Decreto-Lei Nº 2.375/87). A primeira federalizou a alocação e a gestão das terras públicas ao longo de 100 quilômetros de estradas federais existentes e projetadas principalmente na Amazônia Legal. O Decreto Lei de 1987, além de retornar parte destas terras aos Estados o governo federal retornou parte dessas terras aos Estados. Entretanto, a devolução não ocorreu imediatamente, uma vez que o Incra já tinha iniciado vários processos para a regularização fundiária nestes corredores. Além disso, o INCRA solicitou que os Estados apresentassem um plano de uso da terra antes da sua devolução. Ambas as situações criaram uma grande confusão sobre a jurisdição de extensas áreas na Amazônia. Ainda permanecem incertezas sobre quantas terras foram devolvidas aos Estados.

Nesta lei de 1987, o governo federal continuou controlando áreas consideradas “indispensáveis para a segurança nacional e desenvolvimento” por meio do Decreto-Lei Nº 2.375 o governo federal ampliou o controle sobre outras zonas que eram ricas em minerais. Entre elas estavam: Carajás, em Marabá, e a província mineral do Tapajós, ambas no Pará. Um Decreto-Lei (Nº 16, 1989) confirmou a federalização dessas áreas em 1989.

Outro aspecto desta legislação de 1987 que propicia alguma desestabilização na propriedade da terra no país refere-se às limitações dos negócios nas fronteiras

23 Os documentos que não tem uma origem direta do governo devem ser baseados em uma cadeira dominial com a origem na alienação da área pelo governo.

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nacionais. Esta lei complementa a legislação anterior (Decreto-Lei Nº 1.164/1939, Lei 6.634/1979, Lei N 9.871/1999), que visa controlar o acesso de estrangeiros a estas áreas, mas ao exigir que o INCRA e demais órgãos de terras controlem através dos processos estas áreas não dando garantias à propriedade, tem apenas acumulado processos nas suas repartições.

Um aspecto marcante que torna a questão do registro de imóveis no Brasil mais complexa, citado por MORRETTI at alli (2009) é que apesar da Lei de Terras ter instituído já em 1850 o sistema dominial associado à propriedade, apenas em 1973, com a Lei no. 6.015/73 (artigo 176 parágrafo 1), é que passa a vigorar a unitariedade matricial dos imóveis, isto é que cada imóvel passa a ter uma única matrícula, que lhe é própria, aonde são registradas todos os atos relativos àquele bem. Mas mesmo assim, a assim chamada lei de registro (6.015/73) pressupõe a veracidade de documentos, assumindo a boa-fé dos atores que os registram. A lei de registro de 1973 não exige que a locação física da propriedade registrada seja georeferenciada ou confirmada em campo pelo cartório. Ao contrário, oficiais do cartório devem verificar os documentos de terra emitidos pelos órgãos do governo. Entretanto, muitos cartórios registram a transferência de documentos sem verificar esses documentos de apoio por causa dos atrasos dos institutos de terra para providenciá-los (Brasil 2002).

A grande inovação institucional na esfera da Política e Administração Fundiária brasileira é o Estatuto da Terra de 1964, cujas regras e conceitos continuam válidos até o presente. O conceito mais geral, no qual se baseia inclusive a reforma agrária dos dois últimos presidentes, é de que o imóvel rural deve cumprir funções sociais como o apoio ao bem-estar dos proprietários e trabalhadores; níveis satisfatórios de produtividade do uso da terra; conservação dos recursos naturais; e obediência às leis trabalhistas.

Grandes imóveis (com mais de 600 módulos fiscais) que não satisfazem esses critérios podem ser desapropriados para reforma agrária. Na Constituinte de 1988, o conceito de função social da propriedade rural foi incorporado à Constituição Federal, sendo que a função social é o seu adequado uso produtivo. Portanto ao calculo de índices de produtividade tem sido a base para as definições de terras passíveis de desapropriação24. Em 1970 cria-se o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o INCRA, que uma autarquia federal criada pelo Decreto nº 1.110/1970 com a missão prioritária de implantar o Estatuto da Terra. Segundo definição legal o INCRA tem como missão prioritária realizar a reforma agrária, manter o cadastro nacional de imóveis rurais e administrar as terras públicas da União. Está implantado em todo o território nacional por meio de 30 Superintendências Regionais.

Portanto para orientar a implantação da política agrária e agrícola, o Estatuto de 1964 criou o Cadastro de Imóveis Rurais. Todos os imóveis privados ou públicos deveriam ser registrados, inclusive as posses. Os proprietários deveriam providenciar informação sobre a situação da documentação e uso da terra (usada para estimar a produtividade) a fim de facilitar a reforma agrária. O INCRA, criado em 1970, tornou-se responsável pela gerência do Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR), o qual mantinha o Cadastro de Imóveis Rurais. Uma vez que o imóvel era registrado, o INCRA emitia o Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR) exigido para qualquer tipo de transação de terra. Posseiros registrados pelo Incra também receberam o CCIR e deveriam pagar o Imposto sobre o Imóvel Rural, embora os valores desse imposto tenham sempre sido mantidos a níveis baixos.

O primeiro registro no cadastro do INCRA aconteceu entre 1965 e 1966. Entretanto, como no Registro Paroquial, os fazendeiros eram obrigados a apenas declarar os dados e o INCRA não verificava a legitimidade da informação dada. Na

24 A possibilidade de desapropriação, normalmente decorrente de ocupação pelos Movimentos de Sem Terras, em terras consideradas improdutivas, associada à precariedade das garantias à propriedade tem sido motivo de insegurança dos proprietários de terras do conjunto do pais.

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maioria dos municípios, o INCRA contava com as Unidades Municipais de Cadastramento (UMCs) instaladas em parceria com governos municipais. Inicialmente, o cadastro deveria ser atualizado a cada cinco anos, mas a atualização ocorria apenas esporadicamente. Somente no final da década de 1990, o Incra começou de fato a tomar medidas concretas para melhorar a qualidade do cadastro de imóveis.

O Estatuto da Terra, mais uma vez manteve a legitimação de posse, permitindo assim a titulação de terras públicas ocupadas informalmente. O posseiro teria direito preferencial de adquirir um lote equivalente a um módulo rural25, o qual varia entre 2 e 120 hectares. Sendo 2 hectares para os cinturões verdes das grandes cidades e 120 para propriedades na floresta amazônica. Para aplicar essa legislação, o Incra deve avaliar quais ocupações de terras federais são elegíveis para a legitimação por meio de um processo de discriminação de terras, no qual o governo é capaz de separar terras privadas (ou que tem direito a se tornar privadas) de terras públicas. As normas atuais para a legitimação de posses26 renovadas pelo INCRA em 2006 exigem que o posseiro: (1) não possua um imóvel rural; (2) comprove morada permanente, cultura efetiva e exploração direta, contínua, racional e pacífica, pelo prazo mínimo de um ano; e (3) demonstre que explora a terra de acordo com a legislação ambiental atual.

4.1. Quadro institucional da regulação fundiária no Brasil

Neste item procura-se sintetizar a situação da regulação fundiária brasileira a partir da evolução da legislação apresentada anteriormente e em vigor no país. O Gráfico 4 procura sintetizar através de uma visão esquemática as inter-relações entre os órgãos do sistema de Administração Fundiária do Brasil. Percebe-se que não há vínculos entre o INCRA e os municípios, fazendo com que haja muitos problemas fundiários na ligação entre terras rurais e urbanas. Além disso, não existe uma instituição que centralize o cadastro e faça uma ligação com os órgãos do Judiciário que são responsáveis pela titulação dos imóveis. Não aparece no quadro, mas grande parte dos problemas fundiários no Brasil, tanto rurais quanto urbanos, quando não resolvidos na esfera administrativa, acabam na justiça e esta por ter muitos processos em todas os seus tribunais, acaba por levar anos para julgá-los, fazendo com que quase sempre os casos relativos à terra, quer rural quer urbana, sejam julgados como fatos consumados.

O quadro institucional atual para a Administração Fundiária brasileira é composto pelos seguintes oito conjuntos de instituições principais que não atuam de forma integrada ou conjunta:

a) Governo Federal com aprovação do legislativo – proposições de mudanças na legislação e nas instituições. Tem sido efetivos na criação das Unidades de Conservação de diferentes tipos (Reservas Extrativistas, Florestas Nacionais) e Reservas Indígenas.

b) Governos Estaduais com aprovação do legislativo – criação das Unidades de Conservação de diferentes tipos (Reservas Extrativistas, Florestas Estaduais e outras) e áreas Quilombolas..

25 De acordo com o Estatuto da Terra, um módulo rural é a área mínima que uma família precisa para se sustentar trabalhando na propriedade. Módulos de propriedade rural variam de acordo com as condições naturais e econômicas de cada região. 26 Instrução Normativa 31/2006 do Incra. De acordo com o Estatuto da Terra, um módulo rural é a área mínima que uma família precisa para se sustentar trabalhando na propriedade. Módulos de propriedade rural variam de acordo com as condições naturais e econômicas de cada região.

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c) Instituto Nacional de Reforma Agrária (INCRA) – no Ministério do Desenvolvimento Agrário, é responsável por:

i) criar e informar o número único do sistema de registro de propriedade.

ii) Discriminação das terras devolutas.

iii) Cadastrar os imóveis, mas não o faz, apenas conta com um cadastro o auto-declarado para fins de imposto territorial rural (ITR27).

iv) Concessão de posses nos assentamentos de reforma agrária. A emancipação dos assentados (concessão de título de propriedade) ainda não foi definida.

v) Utilizar terras devolutas discriminadas para diversos fins tais como: colonização, assentamentos e outros.

d) Institutos Estaduais de Terras – responsáveis pela gestão das terras públicas pertencentes aos estados da federação.

e) Sistema de cartórios de notas (sistema notarial) – subordinado ao Ministério da Justiça, esse sistema autônomo é responsável pelo controle dos contratos de compra e venda da terra e das assinaturas legais;

f) O sistema de cartório de registro dos imóveis – também subordinado ao Ministério da Justiça – tem os livros das propriedades nos quais todas as transações associadas aos imóveis rurais ou urbanos são registradas. Mas o registro de propriedade não é associado a mapas, o que torna impossível identificar as terras devolutas e impossibilita ter um cadastro. (a Lei 10.267 está tentando criar as condições para a integração destas informações com a coleta das informações e sua disponibilização para o INCRA fazer o mosaico das propriedades)

g) Municipalidade – composta pelos poderes executivo e legislativo que definem e estabelecem:

i) O Plano Diretor municipal no qual, entre outros estabelece quais terras serão transformadas de rurais em urbana; podem estabelecer as áreas urbanas sem que haja Plano Diretor

ii) O cadastro das terras urbanas para os diversos fins: desde planejamento até cobrança de IPTU (Imposto Predial e territorial urbano)

iii) Cálculo da planta de valores das terras para fins de cobrança de IPTU

iv) Toda a política de uso do solo urbano e sua fiscalização baseada entre outros no Estatuto da Cidade

v) A cobrança do Imposto Territorial Rural (ITR) a partir de convênio com a Receita Federal. A arrecadação do ITR a partir do cadastro de

27 A cobrança do ITR é atribuição da Receita Federal (Lei no. 9393 de 19/12/1996), mas desde 2006, com base na Instrução normativa Instrução Normativa SRF nº 643, de 12 de abril de 2006, a Receita Federal pode repassar a atribuição aos municípios através de convênios.

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proprietários de imóveis rurais permitirá a permanência 100 % da sua arrecadação no município28.

h) Secretaria do Patrimônio da União (SPU) – Ministério do Planejamento – é

responsável por todas as propriedades da União, inclusive as terras devolutas. É a responsável pelo repasse de terras devolutas para que o INCRA conceda o registro único. Mas, pelos relatórios disponíveis, esta tem concentrado suas atividades na regularização de terras para uso urbano e casos localizados de regularização de propriedades rurais.

i) Receita Federal - Ministério da Fazenda – é o responsável pela cobrança de vários dos impostos diretos, sendo o principal o Imposto de Renda. Recebeu a atribuição de arrecadar o Imposto Territorial Rural (ITR) no primeiro governo do FHC (1986). Utiliza o cadastro do INCRA como base para a arrecadação. A arrecadação do Imposto Territorial Rural (ITR)29 tem sido bem aquém do planejado pois os esforços de fiscalização são pequenos.

28 Em estudo em andamento estimou-se para a municipalidade Jaboticabal o aumento de arrecadação de ITR na ordem 300 %. 29 Reydon et al. (2006) mostra que há sub declaração tanto do valor da terra quanto do volume de terra tributável. O valor da terra para fins de ITR tem toda a condição de ser resolvido pela a Receita Federal, se tivesse interesse, pois poderia cruzar as informações do valor da terra no ITR com o valor declarado no Imposto de Renda Pessoa Física.

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5. 5. As recentes políticas fundiárias para enfrentar a questão agrária brasileira

MUNICÍPIOS: decisões sobre terras rurais e urbans, uso, cobrança de IPTU etc..

Institutos Estaduais de Terras: responsáveis pelas terras públicas estaduais

Assentamentos de sem-terras

LEI 10.267- imóveis com alterações no cartório apresentam planta georeferenciada para cadastro

AGU – repasse das terras devolutas

Receita Federal: cobrança de ITR

JUDICIÁRIO - homologa ou cria títulos em decisões de qualquer tipo de conflito Cartório de registro de imóveis:

registra e titula com base em contratos de compra e venda (consultando apenas seus registros)

INCRA: concede matrícula

inicial única, faz cadastro, concede titulo de concessão de uso aos assentados, discriminação das terras devolutas e colonização

Fonte: legislação em vigor e Reydon (2006)

Gráfico 4. Situação atual da Administração Fundiária no Brasil

Presidência da República com aprovação do Legislativo estabelecem: Áreas de Conservação e Terras Indígenas

Colonização – destinação de terras públicas a loteamentos rurais

Governos estaduais com aprovação do Legislativo estabelecem: Áreas de Conservação Estaduais

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Deininger (2003) e Reydon e Plata (1996) entre outros, propõem que para solucionar a grave questão agrária brasileira e entre outros democratizar o acesso à terra há que se implementar necessariamente a combinação das seguintes políticas associadas à propriedade da terra:

a. Modernização dos sistemas de registros de imóveis b. Cadastramento das propriedades privadas e públicas c. Titulação de posseiros de terras d. Tributação sobre a terra e. Colonização de áreas alteradas f. Financiamento da aquisição de terras g. Reforma agrária

As três primeiras políticas são necessárias para:

i) Criar o cadastro de terras para efetuar todos os tipos de políticas associadas à propriedade da terra, particularmente regular seu uso e acesso;

ii) Garantir os direitos de propriedade e a transparência no mercado de terras que contribuem ao dinamismo econômico;

iii) Coletar e controlar as terras públicas de direito do Estado brasileiro. Segundo a legislação em vigor, há a necessidade de se cadastrar todas as terras privadas para por exclusão se obter as terras publicas, e assim ter algum controle sobre a propriedade da terra no Brasil.

A tributação da terra faz-se necessária para regular seu uso e reduzir as

possibilidades de se obter grandes ganhos especulativos com a terra. Particularmente no Brasil, onde a especulação com a terra é recorrente e faz parte das atividades econômicas de praticamente toda a população, desde as classes sociais mais pobres à elite do país.

A colonização de terras públicas apenas será possível com o cadastramento e a obtenção das terras públicas. Estas poderão ser vendidas a grupos interessados, ao contrário do que ocorre atualmente que é o simples apossamento das terras públicas30.

As duas últimas são as políticas de democratização das terras o financiamento para aquisição de terra e a reforma agrária é a política de desapropriação e assentamento de sem terras. Políticas absolutamente necessárias para a continua diminuição da concentração da propriedade da terra assim como para a diminuição da pobreza rural e urbana.

Mas o argumento central é que para se enfrentar a questão agrária brasileira há a necessidade do conjunto das políticas, criadas e executadas de forma articulada e tendo como objetivo básico o enfrentamento da questão agrária.

Em seguida passa-se a analisar algumas das políticas qua apresentaram avanços no século XXI na direção proposta, mostrando que o principal gargalo para enfrentar a questão agrária brasileira é o problema da regulação/governança fundiária.

30 Vide Reydon e Monteiro(2006) onde mostramos o caso de ocupação das terras do cerrado do Piauí por grandes grupos de produtores de soja de todo o país, sem qualquer política racional de destinação das terras públicas.

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5.1. Cadastro e titulação de posseiros

A principal contribuição nesta esfera se deu com a criação da Lei 10.267/2001 que propõe um reordenamento fundiário por meio do Cadastramento Nacional de Imóveis Rurais (CNIR) e está regulamentada pelo Decreto no 4.449 (30/10/2002). Ela decorre das atividades anteriores do INCRA particularmente as notificações expedidas pelas portarias: a) no. 558/1999 visa ao recadastramento utilizando notificações para imóveis com área total igual ou superior a 10.000 há em todo o país;e b) no 596/2001 – visa ao recadastramento também utilizando notificações para imóveis com área total maior ou igual a 5.000 ha e até 9.999,9 ha, em 68 municípios.

O caráter geral da Lei 10.267 é que em qualquer alteração que se opere no registro do imóvel junto ao cartório (alienação, venda, arrendamento, hipoteca) obriga o cartório enviar uma planta georeferenciada da propriedade. É com base nesta informação que o INCRA pretendia atualizar o cadastro do levantamento da situação dos imóveis rurais. A partir desse levantamento seria possível resolver os problemas com as titularidades das terras rurais descritos anteriormente e reaver as terras devolutas para propor políticas fundiárias, entre estas a reforma agrária. Os cartórios têm, segundo informações disponíveis, obrigado os grandes proprietários a apresentarem suas plantas atualizadas e os tem disponibilizado ao INCRA31. O Incra não vem processando estas informações assim como não vem cadastramento os imóveis até 400 há, que seria sua obrigação, provavelmente em função de seus elevados custos.

Portanto uma vez mais o país elaborou uma legislação da mais elevada importância e com proposições bastante interessantes, mas não criou as condições para sua implementação, provavelmente porque os últimos governos tinham interesses mais ligados aos projetos de reforma agrária do país.

No que se refere à titulação de posseiros algum esforço foi empreendido na medida que segundo o INCRA entre 2003 e 2010, 167.000 famílias obtiveram seus títulos de propriedade.

5.3. Tributação sobre a terra

O ITR que deveria ser um dos principais instrumentos para diminuir a especulação com terras e viabilizar uma regulação sobre a propriedade da terra teve algumas mudanças na sua legislação ainda nos anos 90. Mas esta não alcançou seus objetivos, na medida em que a arrecadação que deveria ser da ordem de R$ 4,2 bilhão em 2004, segundo Oliveira (2010), gira em torno de R$ 250 a 500 milhões. Como mostram Reydon e Oliveira (2011:3) “Em muitos outros países, a questão da tributação sobre a terra também já foi equacionada, possibilitando uma arrecadação significativa de impostos sobre o imóvel. Seguem alguns exemplos de arrecadação em relação ao PIB, para o período de 2002 a 200532: Estados Unidos: 3,09%; Canadá: 3,05%; Argentina: 0,82%; enquanto, no Brasil, essa arrecadação é de 0,46%”.

Segundo estudo do IPEA (2008:278) “O tributo incidente sobre a propriedade dos veículos é 41 vezes maior e o do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) 30 vezes 31 Segundo estudo de Reydon e Costa (2011) as regras, particularmente do tipo de equipamento para georeferenciamento, tornam o sistema inviável pelo seu custo. Neste estudo estimou-se que o recadastramento de toda a área agrícola brasileira seria da ordem de R$ 11 bilhões. 32 Na Argentina, o percentual apurado foi referente ao período de 2002 a 2004. Fonte: IPEA (2008), apud Lincoln Institute of Landy Policy, apud A Study of European Land Tax System (Second Year Report), Global Property Guide & Government Finance Statistics (IMF).

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[o Imposto Territorial Rural]. Até as transferências patrimoniais conseguem ultrapassar o valor arrecadado com o Imposto Territorial Rural”.

Segundo Reydon e Plata (2006: 174) a baixíssima arrecadação do ITR decorre tanto da sub-declaração do valor da terra nua para fins do imposto, quanto a sub- declaração da área tributável. Segundo IPEA (2008:278) “O grande percentual de evasão combinado com a ausência de fiscalização e de controle do território pelo Estado mostram que o problema do ITR não é de ordem necessariamente tributária, mas de sonegação consentida pelo Estado.” A Lei 11.250/2005 propôs que os municípios que se cadastrassem junto à Receita Federal e tivessem as condições administrativas de, entre outros, gerar um adequado cadastro poderiam efetuar a cobrança do tributo e permanecer com 100 % da arrecadação33. Esta inovação trouxe a possibilidade de uma mudança significativa no ITR pois certamente os municípios são mais competentes para efetuar esta arrecadação34. Além do que para efetuar a arrecadação terão de construir um cadastro das propriedades de terras o que permitira o início do processo de formação de um campo propício a efetiva governança fundiária.

Este argumento de que a ausência de cobrança de ITR reduz a capacidade de regulação fundiária é confirmada pelo IPEA (2008:278) que afirma que: “Disso resultam o aumento do descontrole sobre o território e a precariedade dos registros públicos sobre a propriedade, especialmente as terras públicas. Desse modo, não se tem como calcular com precisão os valores que deixaram de ser arrecadados ao longo desses anos, bem como os possíveis reflexos sobre a estrutura fundiária.”

5.4. Financiamento da aquisição de terras

A maior inovação nos programas de democratização das terras seja o

Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF) que foi criado em novembro de 2003 por meio da fusão de outros programas existentes de âmbito semelhante que vinham sendo implementados e modificados desde 1997. O PNCF que também é chamado de reforma agrária de mercado, tem duas modalidades principais:

i) Combate à Pobreza Rural (CPR), dirigido aos trabalhadores rurais mais pobres, e

ii) Consolidação da Agricultura Familiar (CAF), focalizado nos agricultores familiares sem terra ou com pouca terra. O PNCF oferece financiamentos de acordo com a necessidade de cada

comunidade ou associação, sejam eles para aquisição de terras, investimentos em projetos comunitários, capacitação, assessoria ou apoio técnico.

A tabela 4 apresenta o número de projetos e beneficiários do PNCF para o período de entre 2002 e 2009, por Grandes Regiões. Neste período, no Brasil foram contratados 27.164 projetos de financiamento com 70.690 famílias beneficiáriarias. A região Sul foi a que mais projetos contrataram (18.090), porém, o maior número de beneficiários encontra-se no Nordeste (41.951). A região Sul apresenta 66% do total

33 Sem o convenio utilizando a lei 11.250/2005 os municípios obtém 50 % do que a Receita Federal arrecada na sua jurisdição. 34 Em Reydon e Oliveira (2011) estimou-se para a região de Jaboticabal uma elevação na receita do ITR da ordem de mais de 1000 % com a descentralização do tributo, mantendo as mesmas alíquotas médias.

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dos projetos e 26,4% do total de beneficiários, entretanto, a região Nordeste tem 15% dos projetos e 59,3% do total dos beneficiários. Isto se explica pelo caráter individual dos projetos beneficiados na região Sul e o caráter comunitários destes na região Nordeste. As regiões Centro-Oeste e Sudeste têm uma menor participação do PNCF, em conjunto representam 5,6% dos projetos contratados e 8% das famílias beneficiárias. Tabela 5. Número de projetos e beneficiários contratados pelo PNCF, entre 2002 e 2009, por Grandes Regiões.

Projetos contratados Núm. de beneficiários Região

n % n % Sul 18.090 66,6 18.633 26,4 Nordeste 4.083 15,0 41.951 59,3 Centro-Oeste 3.446 12,7 4.438 6,3 Sudeste 1.044 3,8 3.518 5,0 Norte 501 1,8 2.150 3,0 Total 27.164 100,0 70.690 100,0 Fonte: Lista SAC (01/set/2009), disponibilizada pelo MDA. Obs. Considerando somente os projetos em Situação Contratada.

Inegavelmente este é um programa que tem viabilizado acesso à terra de um

modo menos oneroso ao Estado que a reforma agrária tradicional, pelos custos judiciais desta35, mas há evidencias de que os beneficiários tem dificuldades para arcar com o pagamento da terra.

5.5. Reforma agrária

Inegavelmente a principal política agrária que o país implementou ao longo dos últimos governos foi a desapropriação e assentamento de sem-terras, não apenas pela vontade do Estado, mas fundamentalmente em decorrência da pressão política exercida pelos movimentos sociais, particularmente o MST. A tabela 6 abaixo mostra que os resultados do programa da Reforma Agrária até 1994 eram inexpressivos frente à dimensão do problema agrário brasileiro em que milhões de famílias sem ou com pouca terra vivem em condições que oscilam entre a pobreza e a miséria. Segundo Gasques e Conceição (1999), a demanda potencial de terras para a Reforma Agrária no Brasil seria da ordem de 4.515.810 de famílias. Até 1994, em torno de 300 mil famílias foram beneficiadas pelo governo Federal e pelos órgãos estaduais de terras em projetos de Reforma Agrária e de colonização.

A situação agrária após 1994 tornou-se bastante delicada, tanto pelas ocupações (e posteriores desapropriações do INCRA), que caracterizam a falta de controle do processo pelo Estado, quanto pela pressão dos proprietários para a manutenção de seus privilégios. Esta combinação fez com que a idéia de intervenção no mercado de terras, que era uma proposta inaceitável, tome corpo no INCRA, assim como na população interessada. Mas, a partir de 1994, apresentaram-se condições políticas favoráveis para realizar modificações importantes para aumentar a eficiência do mercado de terras, graças ao compromisso efetivo do Poder Executivo de intervir

35 Reydon e Plata (2000) mostram com base em estudos para os estados do Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso e Rio Grande do Norte que o que eleva significativamente as indenizações são os tramites judiciais. As avaliações das propriedades desapropriadas na esfera administrativa atingem valores próximos aos de mercado.

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nesta realidade, em grande medida resultado da forte pressão social que se consolidou na “Marcha dos Sem-Terra” de abril de 1997. Tabela 6. Números da Reforma Agrária Brasileira

Períodos Hectares Famílias Projetos de assentamentos

1964-1994 16.439.506 161.348 936

1995-2002 18.785.743 382.654 3.898

2002-2009 49.101.063 362.874 3.728

Total Geral 84.326.312 906.876 8.562 Fonte: INCRA. Ano de 2009 com base em publicação especial INCRA de Março de 2010

Os números da Reforma Agrária mostram que desde a criação do Estatuto da

terra em 1964 até 2009 foram assentadas 909.949 famílias em uma área de 84.326.312 hectares (9,9% da área do Brasil e de 25,5% da área que ocupam os estabelecimentos segundo o Censo Agropecuário de 2006. Demonstrando que ocorreu uma intensa reforma agrária no país. Mas as informações constantes nas tabelas 1 e 2 evidenciam que ainda há espaço pra a reforma agrária assim como as demais políticas de democratização do acesso à terra.

6. Propostas e Perspectivas: desenvolvimento de um Sistema de Governança Fundiária baseada no município

Após quase 20 anos de governos democráticos compromissados com as

populações menos favorecidas que executaram uma das maiores reformas agrárias do mundo, a questão agrária continua sendo um dos principais gargalos da realidade brasileira, tanto urbana quanto rural.

Continua havendo sem-terras querendo terras, grandes proprietários se apossando de terras devolutas, desmatamento ocorrendo na Amazônia, inúmeros posseiros sem garantias de suas terras, cartórios registrando imóveis inexistentes, estrangeiros adquirindo terras sem controle, entre outros problemas.

Simultaneamente a agricultura brasileira apresenta uma performance exemplar, com crescimento de produção alimentos, energia e divisas, maior inserção internacional entre outros. Mas a segurança associada à propriedade da terra continua sendo um grande problema, tanto na área rural quanto na urbana. A sua solução requer uma adequada governança36 fundiária, conforme entre outros FAO (2007) e Doelinger (2010).

36 FAO (2008:9) trabalha com uma definição adequada de governança fundiária:

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Os benefícios a serem obtidos de um adequado sistema de gestão territorial dependem da clara identificação dos imóveis que são registrados e um mecanismo simples e efetivo para a obtenção e atualização de suas informações. Este processo necessita se iniciar sem que se fique dependente das informações dos títulos ou outras formas de documentos formais, que podem ser utilizados sempre que houver conflitos sobre a propriedade. Há que se iniciar com um processo de titulação que concilie informações das propriedades a partir dos satélites37 com um levantamento das propriedades junto aos proprietários e posseiros legítimos (posse mansa). A efetiva participação dos proprietários e posseiros consiste segundo estudo de Gesso (2009) num efetivo conhecimento e assim “empoderamento” dos proprietários de terras, principalmente os pequenos38.

Apenas com a efetiva governança sobre a terra, particularmente a criação de um cadastro moderno e auto alimentado, será possível:

a) Garantir os direitos das propriedades privadas para os diferentes fins: negócios, arrendamento, garantias em obtenção de crédito, para a concessão de pagamentos por serviços ambientais entre outros;

b) Identificar as terras públicas e garantir o seu adequado uso para: criação de reservas, assentamentos ou colonização;

c) Estabelecer com mais segurança as demais políticas fundiárias: reforma agrária, crédito fundiário, tributação sobre a terra;

d) Regular os processos de compras de terras para: limitar o acesso à estrangeiros, à proprietários com muitas terras ou à outros proprietários;

e) Zonear o uso da terra - estabelecer e regular colocando limites, através de Zoneamento, a produção agrícola e pecuária em regiões específicas;

f) Regular os processos de conversão de terras agrícolas em urbanas e assim também ter um cadastro de IPTU atualizado;

g) Ter cadastros atualizados para viabilizar a cobrança correta e efetiva de ITR;

Quase todos os países têm sistemas de identificação de imóveis, mas a maioria dos sistemas baseia-se em informações históricas registradas utilizando tecnologias tradicionais tais como mapas e documentos escritos à mão. Estes têm de se adaptar às novas tecnologias eletrônicas, mas estas adaptações são difíceis e custosas, pois requerem reengenharia das praticas correntes e a conversão de registros produzidos manualmente.

Mas as mudanças são necessárias para acomodar os requisitos do século 21 do processamento de dados eletronicamente. Estas inovações tecnológicas também permitem um avanço que irá revolucionar o sistema de registro de imóveis que consiste na utilização de três dimensões. Adicionalmente os direitos à propriedade estão se tornando mais complexos como resultados do maior fluxo de informações e do maior volume de interesses econômicos associados à propriedade. Alguns direitos e restrições, especialmente aquelas referentes à proteção ambiental que às vezes se aplicam a todos os imóveis e outras apenas a algumas.

37 As inovações tecnológicas de captação de informações através de satélite, segundo DOELINGER (2010), permitem avanços que pode revolucionar o sistema de registro de imóveis existentes. 38 Com base em estudo de GESSA, S.D.(2008), que propõem que o mapeamento participativo é um importante instrumento para assegurar direitos de propriedade e criar empoderamento das populações menos privilegiadas

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As informações acerca de zoneamento, proteção ambiental, solos, vegetação, produção agrícola, uso da terra, entre outros, podem ser disponibilizados utilizando as tecnologias de informática, (na WEB, usando SIG) para comparar informações de diferentes fontes estão disponíveis e disponibilizando-as na forma de camadas de mapas com as informações necessárias. Esta opção é preferível a prática corrente de tentar armazenar e atualizar todas as informações por imóvel no cadastro, o que pelo volume de imóveis e de informações torna-se impossível de se realizar.

A situação ideal é uma total integração entre todas as principais instituições associadas à terra. Os caminhos para esta integração são de cunho político e de gestão e terão que ser definidos ao longo da caminhada. As instituições podem permanecer como estão, mas as informações necessariamente têm que ser integradas e compartilhadas. Seguramente, para se chegar uma total integração levará certo tempo, e a necessidade de melhoras é imediato. Portanto, o Gráfico 5 apresenta a forma como as instituições deverão funcionar no longo prazo, baseado na situação atual e nas suas melhoras. As cinco instituições terão que funcionar de forma integrada e o sistema de informação terão que se atualizar de forma automática. Certamente os cartórios de registros de imóveis continuarão com seu papel diretamente ligado ao Judiciário. O cadastro deveria inicialmente ser uma atividade conjunta e à medida que fosse sendo consolidado deveria se passado às prefeituras que estivessem habilitadas para este fim.

A idéia é que gradativamente as prefeituras, à medida que disponham de mais recursos, de mais estrutura e de mais pessoal capacitado possa gradativamente assumir os cadastros e todas as outras atividades de uso e regulação do solo. E entre estas atividades a cobrança do IPTU e do ITR.

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locias que serão integrados nacionalmente.

Erro! A origem da referência não foi encontrada.

MUNICÍPIOS: informações cadastrais digitalizadas

CARTÓRIOS DE REGISTROS DE IMÓVEIS: registrar e confirmar títulos existentes

INCRA – destinação de terras públicas, reforma agrária, colonização, acompanhamento mercados de terras, supervisão de impostos sobre a terra (IPTU e ITR)

Presidência da República, Ministérios, outros órgãos: fornecimento de dados cadastrais dos imóveis rurais e urbanas

INCRA: informações cadastrais digitalizadas

SISTEMA NACIONAL de INFORMAÇÃO TERRITORIAL

Institutos Estaduais de Terras: gestão de terras públicas estaduais

MUNICÍPIOS: regulação uso do solo, cobrança de IPTU, ITR

Gráfico 5. Proposta institucional do Sistema de Gestão Territorial

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7. Bibliografia utilizada

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