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12 Renato Viana Boy A QUERELA ICONOCLASTA: Uma disputa em torno dos ícones no Império Bizantino; 726-843. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHIS), Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História. Orientadora: Professora Doutora. Maria Beatriz de Mello e Souza Rio de Janeiro 2007

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Renato Viana Boy

A QUERELA ICONOCLASTA: Uma disputa em torno dos ícones no Império Bizantino; 726-843.

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHIS), Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História.

Orientadora: Professora Doutora. Maria Beatriz de Mello e Souza

Rio de Janeiro 2007

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Renato Viana Boy

A QUERELA ICONCOCLASTA:

Uma disputa em torno dos ícones no Império Bizantino; 726-843.

Rio de Janeiro, ....... de .................................... de 2007.

Avaliada por:

___________________________________________________________________ Orientadora: Professora Doutora Maria Beatriz de Mello e Souza – UFRJ __________________________________________________________________ Professor Doutor Francisco José Gomes da Silva – UFRJ __________________________________________________________________ Professor Doutor Rogério Ribas – UFF

__________________________________________________________________

Professora Doutora Leyla Rodrigues – UFRJ – Suplente

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Boy, Renato Viana.

A Querela Iconoclasta: uma disputa em torno dos ícones no Império Bizantino- 726-843/ Renato Viana Boy. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2007.

xi, 157f. Orientadora: Maria Beatriz de Mello e Souza. Dissertação (mestrado) – UFRJ/IFCS/ Programa de Pós-

Graduação em História Social, 2007. Referências Bibliográficas: 153-157 1- Iconoclastia. 2- Ícone. 3-Império Bizantino. 4- Cristianismo. I.

SOUZA, Maria Beatriz de Mello e. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro/ IFCS/ Programa de Pós-Graduação em História Social. III. A Querela Iconoclasta: uma disputa em torno dos ícones no Império Bizantino- 726-843.

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RESUMO

Este trabalho se refere ao Oriente medieval, tendo como objetivo analisar uma longa sucessão de debates em torno dos ícones, questão extremante importante e que exemplifica as dinâmicas e tensões presentes no Cristianismo Ortodoxo do Império Bizantino. Esses debates ficaram conhecidos como Querela Iconoclasta, desdobrando-se por mais de um século (726-843). Busca-se reconstituir aqui o cenário dessas discussões, tendo como eixo das disputas as questões suscitadas em torno do ícone de Cristo. O estudo se pauta na análise da apropriação de discussões cristológicas apropriadas por diferentes grupos para legitimar tanto a destruição quanto o culto dessas pinturas, além de demonstrar a existência de um vínculo entre os desdobramentos dessa querela e a política imperial, visto que a religião cristã se vinculava diretamente ao poder autocrático em Bizâncio.

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Abstratc

This dissertation focuses on the medieval East. Its goal is to analyze a long succession of debates centered on icons, an extremely relevant fact that witnesses the dynamics and tensions present in Orthodox Christianity within the Byzantine Empire. These debates became known as the Iconoclastic Controversy, and unfolded for over a century (726-843). The intent is to understand the scenery of these discussions with an axis concerning the issues pertaining to the icon of Christ. The analysis is based on how discussions on Christological theology were appropriated by different groups in order to legitimize both the destruction and the worship of these paintings. It also demonstrates how the Controversy unfolded in regard to the imperial power, since the Christian religion was encompassed within autocratic government in Byzantium.

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À minha família, em especial, meu irmão Juninho.

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Agradecimentos

Agradeço a Deus e à minha família. Qualquer tipo de agradecimento aos

familiares poderia parecer redundância. Entretanto, deixar de citá-los aqui seria uma grande

injustiça. A vocês, Frederico e Célia, meus pais, e Márcia, minha irmã, muito obrigado pelo

carinho, compreensão pela ausência em momentos especiais e pelo apoio que nunca me

faltou. Ao meu irmão Juninho, saudades eternas.

À CNPq, que financiou esse projeto em seu segundo ano de execução,

possibilitando o alcance de um enriquecimento nos resultados finais.

À minha orientadora, a professora Maria Beatriz de Mello e Souza, que aceitou a

orientação desse trabalho, mesmo sem termos trabalhados juntos antes e tendo eu vindo de

outra instituição e outro estado. Sou grato pela confiança em mim depositada nesses dois anos

de convívio e por ter partilhado seu conhecimento sobre um período crucial da história da

Igreja.

Aos professores Francisco José Gomes da Silva e Rogério Ribas, membros da

banca avaliadora que, após uma minuciosa leitura e avaliação durante o exame de

qualificação, contribuíram enormemente para a melhoria dos resultados finais dessa pesquisa.

Ao professor Celso Taveira, da UFOP, que me orientou no bacharelado neste

tema, concluído em 2004, e com quem desenvolvi o projeto para a seleção de mestrado neste

programa. Agradeço também pela atenção sempre demonstrada em relação aos meus estudos.

Às funcionárias do PPGHIS, Sandra e Gleides, sempre atenciosas e cordiais às

questões burocráticas do programa.

Aos conterrâneos mineiros que vivem no Rio de Janeiro. A estas pessoas

maravilhosas, agradeço não só por terem-me aberto as portas de suas casas, mas por toda a

boa vontade sempre demonstrada em ajudar e pelo convívio amigo proporcionado. Às essas

novas amizades constituídas, meu muito obrigado: Luciano, Regina e Jurandy, Toninho e

Cláudia. Serei sempre grato a vocês.

Ao casal de historiadores Victor de Araújo Souza e Sílvia Borges. A esses, teria

que escrever um texto tão grande quanto o dessa dissertação. O fato de sempre terem me

recebido muito bem em seu lar, das leituras de alguns textos e sugestões bibliográficas ao

longo de todo esse tempo, já seria o suficiente para isso. Mas, na ausência da família e dos

velhos amigos, esses dois se tornaram pessoas muito importantes, talvez mais do que eles

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mesmos imaginem. Espero um dia poder retribuir a toda essa amizade. Tenham certeza de

minha eterna gratidão.

Aliás, novas amizades foram feitas e serão levadas. E cada uma delas foi

importante. Algumas por dois anos. Outras por dois semestres. Outras ainda, por dois dias. E

muitas por dois minutos de conversa amiga e acolhedora. Querer mencionar todos aqui seria

pretensioso e certamente esqueceria alguém. Mas alguns não podem deixar de ser aqui

citados: Carlos Henrique Gomes, Bruno Vieira, Janaína Girotto, Elodia Lebourg, Paulo

Romano.

À Dona Loudes, do Castelinho. Talvez ela nunca leia essa página. Mas a gratidão

que tenho a essa jovem senhora é incomensurável. O convívio sempre agradável com ela me

fez aprender muito. Sem bibliografia, sem aulas, sem leituras, sem avaliações, essa mineira de

Montes Claros me fez valorizar as coisas mais simples da vida, como uma boa conversa nas

tardes de domingo, sempre encerradas com muitas gargalhadas.

À Tamara Quírico, colega da área de História da Arte, que além da amizade,

colaborou com importantes sugestões bibliográficas, abrindo sua biblioteca particular para me

ajudar em minhas pesquisas. Alguns autores aqui citados vieram a ser conhecidos por mim

através do seu auxílio.

Aos amigos de Minas Gerais, Mário, Danilo e Carlos Henrique, pelo incentivo,

apoio e pelas sugestões, algumas inusitadas.

Um agradecimento especial à Aline, minha namorada, que conheceu o nascimento

desse projeto ainda na graduação, me apoiou no momento mais difícil pelo qual passei e sem

quem, com certeza, chegar ao mestrado teria sido um desafio ainda mais difícil pelas

circunstâncias que a vida me colocou. Mas cheguei até aqui e muito dessa conquista devo a

ela, que mesmo sem estar perto, esteve sempre junto de mim.

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As imagens do adversário são intoleráveis quando são imagens de culto.

Serge Gruzinski, A guerra das imagens.

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Sumário

Introdução 12 1 Configurações para a Querela Iconoclasta 32 1.1 Os ícones cristãos 35 1.2 Discussões cristológicas 46 1.3 A natureza autocrática do poder imperial 52 1.4 Iconoclastia, defesa das fronteiras e monaquismo 60 2 A primeira fase da Iconoclastia – 726-787 : origens, argumentos teológicos e conflitos

66

2.1 O início da Querela Iconoclasta com Leão III 68 2.2 A defesa de João Damasceno - 730 75 2.3 Heresias cristológicas na iconoclastia: Constantino V e o sínodo de Hieria – 754

90

2.4 O abrandamento da iconoclastia com Leão IV – 775-780 100 3 Nicéia II e a Segunda fase da Querela Iconoclasta – 787-843 103 3.1 Irene e os preparativos para o retorno da iconofilia 105 3.2 As decisões do Concílio de Nicéia – 787 110 3.3 Pós-Nicéia II: um breve período de restauração da iconofilia: 787-815 121 3.4 O retorno à iconoclastia no século IX 124 3.5 A nova defesa dos ícones: o Patriarca Nicéforo e o monge Teodoro Studita 132 3.6 O Triunfo da Ortodoxia: o fim definitivo da Querela Iconoclasta – 843 141 Conclusão 148 Referências Bibliográficas 153

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: mapa do Império Bizantino no ano 814

12

Figura 2: Cruz na Igreja de Santa Irene.

22

Figura 3: Ícone de Cristo

43

Figura 4: Mosaico com Justiniano apresentando o modelo da igreja de Hagia Sophia para a Virgem Maria. Constantino apresenta a ela o modelo de Constantinopla

44

Figura 5: Placa fragmentada com Cristo coroando o imperador Constantino VII

54

Figura 6: Saltério de Cludov

142

INTRODUÇÃO

Existe na produção historiográfica desenvolvida no Brasil uma lacuna no que diz

respeito ao estudo do Oriente medieval, em especial do Império Bizantino. Isso se deve ao

fato de as pesquisas históricas, quando tratam de Idade Média, nos oferecerem um número

quase exclusivo de trabalhos referentes à Europa Ocidental, relegando a segundo plano os

estudos referentes às regiões da Europa Central e Oriental. Nosso objetivo aqui é bem mais

modesto do que pretender preencher essa lacuna historiográfica. Apresentamos apenas uma

possibilidade de pesquisa a respeito de um poderoso Império, o Bizantino, que resistiu

durante onze séculos a invasões, pressões fronteiriças e diversos conflitos internos. Nosso

estudo está focado nos séculos VIII e IX, quando se desenvolveu em Bizâncio a Querela

Iconoclasta, uma violenta disputa em torno das discussões a respeito da licitude do culto dos

ícones entre os cristãos.

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Figura 1: Mapa do Império Bizantino no ano 814.

A utilização de imagens no Cristianismo é uma questão que suscita debates desde

os seus primeiros séculos. O que torna a Querela Iconoclasta bizantina (726–843) um caso

diferenciado é tanto o teor alcançado pela violência aplicada contra os defensores desse culto,

quanto pela sua estreita ligação com o poder autocrático do imperador (o que transformava

questões religiosas em questões de Estado).

Em nosso trabalho, algumas questões consideradas indissociáveis da iconoclastia

serão abordadas. Primeiramente, será necessário entendermos o tipo de representação

pictórica que veio a ser o ícone, visto que não se trata de uma imagem como as que

encontramos no Cristianismo latino. Outra é tentar entender como essa Querela teria afetado

as relações entre o Patriarcado de Constantinopla e o papado em Roma, contribuindo para

alargar o distanciamento já existente entre essas duas sedes religiosas, e as do poder imperial

com os mosteiros bizantinos.

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Para a identificação dos grupos envolvidos nas discussões, adotaremos aqui uma

terminologia utilizada pela maior parte dos autores consultados. Chamaremos de iconoclastas

àqueles contrários ao culto dos ícones e os seus defensores iconófilos. Há outras

denominações para esses mesmos grupos, menos citada, como iconófobos, cristãos contrários

ao uso dos ícones no culto, e iconódulos, favoráveis ao mesmo. Entretanto, para objetivarmos

nosso trabalho, optamos por utilizar apenas os termos iconoclastas e iconófilos.

A aversão aos ícones encontrava um maior número de adeptos nas províncias

mais orientais do Império. É dessa região que provinha o imperador Leão III (717-740), da

dinastia Isáurica, que em 726 promulgou o primeiro decreto contrário ao culto dos ícones. Das

províncias orientais também era a dinastia Amórica, responsável pelo retorno do iconoclasmo

ao Cristianismo bizantino, em 815. Além da corte imperial, grande parte do exército bizantino

e do clero secular compartilhava das idéias iconoclastas de Leão III.

Já a defesa dos ícones encontrou seus principais representantes nos monges

bizantinos. Entre estes, destacaram-se com seus textos de caráter iconófilo João Damasceno

(675–749), o primeiro a responder às determinações de Leão III de destruição dos ícones, e

Teodoro Studita (759–826), que se tornou o principal nome da iconofilia na segunda fase da

Querela. Também líderes do clero regular, mesmo dentro de Constantinopla, se posicionaram

contra a política iconoclasta. Em 730, o então patriarca da capital do Império, Germano (715-

730), manifestou sua aversão à iconoclastia. Nicéforo (c.758–828), outro patriarca de

Constantinopla, também trabalhou na defesa dos ícones cristão. Ambos foram depostos do

Patriarcado pelo poder imperial e exilados.

Como será observado, as discussões da Querela eram travadas diretamente por

membros do alto clero de Roma e Constantinopla, o poder imperial e o monástico bizantino.

Em meio a essas disputas, uma questão permanece sem resposta: qual seria o posicionamento

da população cristã leiga bizantina nesses primeiros anos da Querela Iconoclasta? Em nossas

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fontes não foram encontradas tipo algum de manifestação popular favorável ou contrária ao

culto dos ícones, nem a participação direta de algum membro civil da sociedade cristã

envolvido ativamente da Querela, interferindo, de alguma forma, em decisões conciliares,

sinodais ou imperiais.

Mesmo a religião cristã fazendo parte do cotidiano da população bizantina, chama

a atenção o fato de ela não ter tido participação direta nas decisões sobre questões teológicas,

nem por impulso próprio, nem instigada para isso por bispos ou governos. Apesar de este não

ser um assunto exclusivo do alto clero e do poder imperial, não se verificou em Bizâncio

grandes movimentações por parte da população cristã na Querela, como aconteceu, por

exemplo, nos conflitos entre católicos e protestantes da França reformada do século XVI.1

O objeto principal para nossos estudos é, além dos ícones enquanto pertencentes a

parte da cultura material da Igreja cristã, o corpus de questões dogmáticas, referentes aos

debates surgidos no século IV, a cerca das naturezas humana e divina em Cristo, além das

definições sobre a Encarnação divina. Não cabe aqui aprofundarmos esses debates, que

culminaram com a condenação do Monofisismo e do Nestorianismo como heresias mais de

três séculos antes da eclosão da iconoclastia. Nosso interesse está na compreensão e análise de

como estes foram reapropriados para fundamentar os argumentos favoráveis e contrários aos

ícones em Bizâncio, dentro do recorte cronológico que engloba a Querela, ou seja, entre os

anos 726 e 843.

Importa-nos ainda verificar a relação entre as idéias surgidas para embasar a

veneração dos ícones durante a Querela e as práticas de culto religioso entre os cristãos

1 Cf. MAIER, Franz Georg. Bizâncio. Vol. 13. México: Siglo Veinteuno, 1986. p. 24.

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bizantinos dos séculos VIII e IX. Alguns autores afirmam a existência de um distanciamento

entre essas teorias e as práticas de culto cristãs entre os bizantinos no período da Querela.2

A pesquisa enfoca a capital imperial e principal sede patriarcal do Oriente,

Constantinopla, embora alguns importantes personagens dessa Querela (como os imperadores

das dinastias Isáurica e Amórica, além do monge iconófilo João Damasceno) fossem

originários dos themas (províncias) mais orientais de Bizâncio.

Nosso objetivo nesse trabalho é compreender os argumentos através dos quais a

Igreja cristã legitimou o culto dos ícones, revertendo a consideração de que seria idolátrico.

Para tanto, iremos buscar nos argumentos iconófilos surgidos durante a Querela a

permanência das idéias do primeiro e um dos principais defensores dos ícones, o monge João

Damasceno (675 –749). Seus argumentos para a defesa dos ícones se baseavam na tradição do

uso dessas pinturas na Igreja, no mistério da Encarnação de Cristo e na diferenciação entre

essas representações e os antigos ídolos pagãos.

Também pretendemos demonstrar que, na historiografia tradicional, a

periodização da Querela Iconoclasta está diretamente ligada à convocação de sínodos,

concílios e editos oficiais do Império, e não ao surgimento de novas idéias para defender ou

condenar o culto dos ícones. Isso pode ser verificado, por exemplo, com os escritos de João

Damasceno, que redigiu sua apologia aos ícones em 730, ou seja, quatro anos após à

publicação do edito iconoclasta do imperador Leão III. Porém, suas idéias só foram acatadas

pela Igreja de Constantinopla mais de meio século mais tarde, no II Concílio de Nicéia, em

787. Outro exemplo é o retorno da iconoclastia como política oficial do Estado bizantino em

815, através de um sínodo que não trazia resposta alguma ao concílio niceno, nem inovação

na teologia iconoclasta. Simplesmente, esse novo sínodo reativava as antigas condenações

contra os ícones já apresentadas em Hieria, no ano de 754.

2 Ver FREEDBERG, David. El poder de las imágenes. Estudios sobre la historia y la teoria de la respuesta. Tradução de Purificación Jiménez y Jerónima G. Bonafé. Madri: Cátedra, 1992. p. 469, e LOWDEN, John. Early Christian & Byzantine Art. Londres: Phaidon, 1997. pp. 150-151.

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Uma de nossas hipóteses de trabalho é que os rumos da Querela iconoclasta foram

definidos mais pela posição oficial do imperador e pelas necessidades do Estado do que pelos

surgimentos de novas idéias teológicas a respeito do culto dos ícones.3 Trabalhamos com a

hipótese central de que o eixo dos debates durante a iconoclastia fôra sempre o ícone de

Cristo, a partir do qual se desenvolveu toda uma teologia dessas pinturas, baseadas em

discussões cristológicas que se pautavam no mistério da Encarnação e na relação das

naturezas humana e divina em Cristo.

Encontra-se referências à Querela Iconoclasta em diversos autores que se

propuseram a tratar da história do Império Bizantino, da história da Igreja, do Cristianismo ou

mesmo da história da arte. Entretanto, há uma carência de um estudo específico sobre a

Querela.4 Os principais estudos na área são de autores estrangeiros, compondo estes quase a

totalidade de nossa bibliografia, o que demonstra que este é ainda um campo pouco explorado

pela historiografia em nosso país.

Alguns importantes trabalhos foram produzidos nos anos 1950 e 1960, traduzidos

e reeditados nas décadas de 1980 e 1990. Desse período, destacamos os trabalhos de André

Grabar5, Georg Ostrogorsky6 e Charles Diehl.7 Nesses autores, encontramos uma preocupação

comum, que era relacionar as causas e os desdobramentos da iconoclastia com questões

políticas do Império, tais como a defesa do território bizantino ou a contenção do crescimento

do poder temporal dos mosteiros. Além disso, Grabar indica uma motivação para a Querela

3 Corroboram essa hipótese BELTING. Hans. Likeness and Presence; A history of the image before the era of art.. Trad. Edmund Jephcott. Chicago: The Chicago University Press, 1994. p. 8, e também GRABAR, André. L’Iconoclasme Byzantin; le dossier arquéologique. Paris: Flamarion, 1998, p. 112 e 134. 4 O livro de Alain Besançon A imagem proibida; uma história intelectual da iconoclastia, se dedica ao estudo, como o próprio autor afirma em sua Introdução, de doutrinas e idéias que têm a ver com a representação do divino, não exclusivamente na iconoclastia bizantina, mas perpassando desde a Grécia clássica ao início do século XX. Uma exceção que deve ser aqui registrada seria a obra compilada por Boesplflug e Lossky, Nicée II 787-1987. Douze siècles d’images religieuses, que reúne uma série de artigos dedicados não exclusivamente ao Concílio de Nicéia de 787, mas ao fenômeno da iconoclastia, desde as causas de seu surgimento em Bizâncio, como também suas ligações com antigas heresias, repercussões no Ocidente latino, além de alguns estudos sobre o ícone. 5 GRABAR, André. Op. cit 6 OSTROGORSKY, Georg. História del Estado Bizantino. Tradução de Javier Facci. Madri: Akal Editor, 1984. 7 DIEHL, Charles. Os grandes problemas da história bizantina. São Paulo: Editora das Américas, 1961.

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retomada nos anos 90 por Ducellier, Kaplan e Martín, de que os themas localizados na parte

oriental do Império (como a Isáuria, a Armênia ou a Síria) tendiam a desenvolver um tipo de

Cristianismo mais intolerante em relação ao uso de imagens no culto, visando depurar a

religião de qualquer prática que o assemelhasse ao paganismo.8

Charles Diehl discorre bastante a respeito das relações do imperador com o

patriarcado de Constantinopla e com os monges. Os mosteiros bizantinos eram instituições

muito ricas e influentes na sociedade e tinham nos ícones e relíquias de santos sua grande

fonte de crescimento. Quando fala na relação entre imperador e patriarca, mesmo ressaltando

a autoridade do imperador na administração dos negócios da Igreja, Diehl enfatiza o poder

que era exercido pelo patriarca frente ao governo. O autor chama a atenção para os

“poderosos meios de ação” do Patriarca, que em algumas situações criticava o imperador e até

o desafiava.9

Porém, sobre a autoridade imperial, Gilbert Dagron10 defende uma forma de

governo na qual o imperador se sobrepunha não apenas à estrutura institucional da Igreja de

Constantinopla, mas exercendo um tipo real de sacerdócio em Bizâncio, estando acima do

Patriarca inclusive em questões teológicas. Para uma explicação da Querela Iconoclasta,

seguiremos a hipótese levantada por Dagron, pois foi no início da Querela que o imperador

Leão III definiu seu poder perante a Igreja de Roma como sendo de um rei e sacerdote, além

de ocorrer durante todo o período dos debates uma sujeição do poder patriarcal frente à

autoridade imperial.

8 DUCELLIER, Alain; KAPLAN, Michel; MARTÍN, Bernadette. A Idade Média no Oriente; Bizâncio e o Islão, dos Bárbaros aos Otomanos. Tradução de Luís de Barros. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1994. 9 DIEHL, Charles. Op. cit pp. 94-95. 10 DAGRON, Gilbert. Empereur et prêtre; étude sur le “cesaropapisme” byzantin. Paris: Éditions Gallimard, 1996.

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Causas não puramente religiosas também aparecem em livros de Franz Georg

Maier11 e, mais recentemente, com John Haldon12 e Hans Belting.13 Maier trabalha com a

idéia de que na Igreja e no Império existissem um só espírito (pneuma), o que fazia com que

polêmicas dogmáticas se transformassem em assuntos de Estado.14 No caso da Querela

Iconoclasta, Maier a relaciona com disputas envolvendo questões de identidade étnica e

cultural, unidade territorial e conflitos internos (envolvendo desavenças entre Estado e Igreja,

centro e periferia, corte e monges).

Mesmo assim, Maier aponta questões religiosas como o principal fator para o

início da Querela. Entre essas, levanta a hipótese de a população cristã bizantina não diferir,

no século VIII, o protótipo de sua imagem, sendo culto de ícones comparado às antigas

práticas pagãs.15 Uma observação semelhante foi feita também por John Londew16 e David

Freedberg.17

Paul Lemerle, assim como o já citado Ostrogorsky, aponta tanto questões políticas

quanto religiosas para a compreensão do fenômeno da iconoclastia. Esse duplo aspecto na

interpretação da Querela mereceu, inclusive, dois tópicos separados em seu livro. Ele liga as

causas religiosas às crenças dos imperadores e do clero das províncias centrais e orientais

bizantinas, por estes terem verificado “excessos” e “abusos” no culto dos ícones, conduzindo

os cristãos a uma prática idolátrica. Na questão política, destaca os conflitos entre poder

imperial e monacal, e entre papado e o patriarcado de Constantinopla.18

11 Trabalharemos aqui com duas obras desse autor: MAIER, Franz Georg. Bizâncio. Vol. 13. México: Siglo Veinteuno, 1986, e Las transformaciones del mundo mediterráneo, siglos III-VIII. México: Siglo Veinteuno, 1986. 12 HALDON, John. Byzantium; a History. Londres: Tempus Publishing, 2000. 13 BELTING. Hans. Likeness and Presence; A history of the image before the era of art.. Trad. Edmund Jephcott. Chicago: The Chicago University Press, 1994. 14 MAIER, Franz Georg. A Op. cit.. p. 26. 15 MAIER, Franz Georg. B. Op. cit p. 365. 16 LOWDEN, John. Op. cit pp. 150-151. 17 FREEDBERG, David. Op. cit p. 469. 18 LEMERLE, Paul. História de Bizâncio. Tradução de Marilene Pinto Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1991. pp.76-79.

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Entre as causas religiosas do iconoclasmo, uma é encontrada em praticamente

todos os estudos, podendo ser classificada inclusive como um consenso historiográfico: o

desejo, por parte dos iconoclastas, de “purificar” o Cristianismo de práticas idólatras ou que

se assemelhassem a algum tipo de culto pagão. Soma-se a esta uma outra, apresentada por

James Hall.19 Este historiador viu o iconoclasmo como causa da permanência das idéias

monofisistas na Igreja oriental, pois contestando a Encarnação de Cristo, os iconoclastas não

permitiam a representação pictórica de um ser divino. Alain Ducellier rejeita a idéia de uma

ligação entre o Monofisismo e o iconoclasmo, citando para isso a existência de ícones entre as

comunidades copta, armênia e siríaca, regiões de predomínio de idéias monofisista. Para ele, o

iconoclasmo estava ligado a questões políticas, referentes ao desejo de controle por parte do

Estado sobre a Igreja e ao perigo que os árabes representavam nas regiões de fronteira com

Bizâncio. Nessas regiões, o iconoclasmo teria servido como elemento de coesão frente ao

inimigo muçulmano.20

Já Daniel Sahas traz uma opinião diferente em relação à influência das discussões

cristológicas na iconoclastia. Ele encontra uma relação entre o pensamento iconoclasta e o

Nestorianismo, uma vez que os adversários dos ícones não considerariam a união entre as

naturezas divinas e humana em Cristo, relacionando deificação com o invisível.21 Assim, para

Sahas, a raiz da iconoclastia estaria ligada a uma hostilidade ao antropomorfismo de Cristo.22

Todavia, tanto o Monofisismo quanto o Nestorianismo foram utilizados pelos iconoclastas

para embasar seu argumento de destruição dos ícones, acusando os iconófilos de manterem

vivos esses pensamentos, já condenados como heréticos pela Igreja.

19 HALL, James. A History of Ideas and Images in Italian Art. Londres: Albemorle Street, 1986. 20 DUCELLIER, Alain. Les Byzantines. Histoire et culture. Paris: Editions du Seuil, 1988. p. 60. 21 SAHAS, Daniel. Icône et Anthropologie Chrétienne. La pensée de Nicée II. BOESPFLUG, F. et LOSSKY, N. (Dir). Nicée II 787-1987. Douze siècles d’images religieuses. Paris: Cerf: 1987. pp. 443-444. 22 Ibid. pp. 435-436.

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O francês Alain Besançon dedicou um extenso trabalho ao iconoclasmo, não

restrito apenas ao caso bizantino.23 Sua obra está concentrada no estudo da imagem e sua

diversas formas de apropriações, defesas e acusações. No caso da Querela Iconoclasta, vê essa

disputa também como uma busca de “purificação” dentro da Igreja de Constantinopla, uma

vez que a população não diferenciava uma adoração de um culto de veneração, um tipo de

homenagem honrosa através de uma imagem.

Em relação às fontes dessa pesquisa, deve ser ressaltado que o II Concílio

Ecumênico de Nicéia, reunido em 787, ordenou que toda a documentação de origem

iconoclasta fosse destruída. Era uma forma de eliminar a memória do iconoclasmo. É

provável que após o sínodo reunido em Constantinopla em 843, medidas análogas tenham

sido tomadas.24 Isso significa que o historiador que se dedica a estudar a iconoclastia

bizantina esbarra nessa primeira dificuldade: a destruição proposital das fontes iconoclastas

originais.

Toda essa destruição da documentação referente à política contrária aos ícones

representa um obstáculo para o historiador, que perdeu, no decorrer desse conflito, a maior

parte das fontes primárias iconoclastas. As idéias desse grupo só podem ser conhecidas e

estudadas por uma reconstituição indireta, através dos escritos iconófilos, pois essas idéias

foram apresentadas nos Concílios e Sínodos iconófilos para serem refutadas. É a partir dessas

reconstituições que analisaremos o pensamento iconoclasta apresentado nos sínodos de Hieria

(754)25 e Constantinopla (815)26, além das informações referentes aos editos imperiais de

Leão III em 726 e 730.

23 BESANÇON, Alain. A imagem proibida; uma história intelectual da iconoclastia. Tradução de Carlos Sussekind. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. 24 Ver OSTROGORSKY, Georg. Op. Cit p. 161. 25 Disponíveis numa versão em inglês no website www.fordham.edu e também em MANGO, Cyril. The art of the Byzantine Empire, 312-1453: Sources and Documents. Toronto: University of Toronto Press, 1993. 26 Disponível em MANGO, Cyril. Op. cit..

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Ressalta-se ainda que o II Concílio Ecumênico de Nicéia, reunido em 787,

ordenou que toda a documentação de origem iconoclasta fosse destruída. Era uma forma de

eliminar a memória do iconoclasmo. É provável que após o sínodo reunido em Constantinopla

em 843, medidas análogas tenham sido tomadas.27 Isso significa que o historiador que se

dedica a estudar a iconoclastia bizantina esbarra nessa primeira dificuldade: a destruição

proposital das fontes iconoclastas originais.

Toda essa destruição da documentação referente à política contrária aos ícones

representa um obstáculo para o historiador, que perdeu, no decorrer desse conflito, a maior

parte das fontes primárias iconoclastas. As idéias desse grupo só podem ser conhecidas e

estudadas por uma reconstituição indireta, através dos escritos iconófilos, pois essas idéias

foram apresentadas nos Concílios e Sínodos iconófilos para serem refutadas. É a partir dessas

reconstituições que analisaremos o pensamento iconoclasta apresentado nos sínodos de Hieria

(754)28 e Constantinopla (815)29, além das informações referentes aos editos imperiais de

Leão III em 726 e 730.

Por outro lado, também não encontramos ao longo desse trabalho, ícones

contemporâneos e anteriores à Querela dentro do território bizantino, devido a sistemática

destruição dessas pinturas ao longo das disputas. Muitas dessas representações foram ainda

substituídas nas Igrejas bizantinas pela figura da cruz. Dessa forma, não se pôde conhecer

diretamente o que os ícones cristãos representavam pictoricamente antes e durante a Querela

Iconoclasta, a não ser pela apropriação que dessas foram feitas dessas figuras em textos como

os dos monges João Damasceno e Teodoro Studita. Aliás, Damasceno é o primeiro autor a

tecer uma teoria a respeito do significado, tradições e culto dos ícones.

27 Ver OSTROGORSKY, Georg. Op. Cit p. 161. 28 Disponíveis numa versão em inglês no website www.fordham.edu e também em MANGO, Cyril. Op. cit. 29 Disponível em MANGO, Cyril. Op. cit..

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Figura 2: Cruz na Igreja de Santa Irene. Constantinopla, ápice do mosaico da Cruz, após 740

A Querela Iconoclasta foi uma longa disputa religiosa em torno dos ícones, mas

que envolveu toda uma complexa teia de relações com o poder imperial e monacal em

Bizâncio. Seria demasiado pretensioso nessa pesquisa tentarmos abarcar toda essa intrincada

rede de causas e conseqüências, que nem sempre estiveram ligadas a questões puramente

cristãs. Há que se destacar também que as fontes que sobreviveram à Querela revelam muito

mais a história das idéias do que uma história sócio-política do período. É por conta disso que

será dada maior atenção nesse trabalho às discussões cristológicas que fizeram parte dos

debates, seguindo a cronologia dos sínodos, concílios e editos imperiais que marcaram início

e fim de cada fase da iconoclastia. Ressalta-se também que a discussão à qual nos referimos

acima será aqui reconstruída exclusivamente a partir das fontes iconófilas, uma vez que as

iconoclastas foram destruídas.

As fontes para o estudo da Querela Iconoclasta foram basicamente produzidas por

membros do clero secular ou regular bizantino. Entre os textos oficiais da Igreja estão o II

Concílio Ecumênico de Nicéia (787)30 e o Synodikon da Ortodoxia, reunido em 843 e que

30 Foram analisadas duas versões desse concílio transcritos para o inglês. Uma delas em MANGO, Cyril. Op. cit. pp 150-154, 172-173. A outra se encontra no website www.fordham/halsall/medweb, na coleção Internet Medieval Sourcebook. Há também excertos desse documento em português em ESPINOSA, Fernanda. Antologia de textos históricos medievais. 3ª edição. Lisboa: Sá da Costa Editora, 1981. p. 63-64, e em ZILLES, Urbano. Documentos dos primeiros oito concílios. Tradução: Mons. Otto Skrzypezak. Vol 19. Porto Alegre: Edipucrs, 1999. p. 116.

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significou o fim definitivo da iconoclastia. O texto original desse último sínodo foi muito

alterado ao longo dos séculos. Existe uma tradução para o inglês de um manuscrito que se

encontra na British Library (BL. Additional 28816), escrito no século XII (1110 ou 1111),

que apresenta alguns conteúdos do texto original.31

O distanciamento entre teoria e prática religiosa, anteriormente mencionado,

acontece por parecer não haver entre os cristãos do século VIII (embora não seja uma

exclusividade nem do período da Querela, nem da cristandade bizantina) uma distinção entre

o protótipo e sua representação numa pintura. Este seria inclusive um dos motivos para a

promulgação dos editos de Leão III em 726 e 730.

Daí a importância em se definir a relação que é estabelecida entre significado,

aqui representado pelo protótipo – Cristo, a Virgem, ou os santos – e o seu significante, o

ícone. Segundo Chartier, no que tange ao Antigo Regime, essa relação está “pervertida”, e

“têm em vista fazer com que a identidade do ser não seja outra coisa senão a aparência da

representação, isto é, que a coisa não exista a não ser no signo que a exibe.”32 Essa relação

entre signo e significado que Chartier apresenta para o Antigo Regime pode ser também

aplicada ao caso dos ícones bizantinos.

O próprio Freedberg, acima citado, afirma em seu estudo que a imagem religiosa

só “funciona” quando se percebe nela uma fusão com o seu protótipo, passando a

representação a ser o que se crê que ela representa.33 O culto dessas representações dependeria

assim da ocorrência dessa fusão, pois uma separação entre o significado e o significante,

nesse caso, tenderia a debilitar a devoção dos fiéis.34 O que permite à pintura trazer em si a

31 Essa tradução encontra-se disponível no website www.doaks.org. Há também uma versão em francês do decreto sinodal, datado de 11 de março de 843, que faz parte da coletânea de GRUMEL, Venance. Le patriarcat byzantin. Serie I, les registes des actes du patriarcat de Constantinople V.I, les actes des patriarches, fasc. II e III. Les registes de 715 à 1206. pp. 65-66. 32 CHARTIER, Roger. Op. cit. p. 21. 33 FREEDBERG, David. Op. cit. pp. 48-49. 34 Ibid p. 452.

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autoridade do protótipo representado é o que os iconófilos chamam de “essência” do

arquétipo, a partir da semelhança entre este e seu ícone.35

Essa idéia de Chartier, de que é o signo quem dá vida ao significado, encontra em

Marie-France Auzépy um correspondente para o caso da iconoclastia em Bizâncio. Segundo a

historiadora, a defesa do culto dos ícones durante a Querela era, antes de tudo, uma defesa do

próprio culto dos santos. Para Auzépy, no século VIII, o santo e sua representação numa

pintura não eram dissociados, de modo que o ícone passou a ser a forma pela qual se dava a

devoção dos santos, dando a este um meio visual de existência.36

Assim, na Querela Iconoclasta, a relação entre significado e significante é de uma

união tal que impossibilita a percepção, na prática do culto cristão, dos limites que marcam as

diferenças nas atitudes do fiel diante de cada um deles. Destruir os significantes (os ícones)

poderia significar também colocar em risco o culto dos protótipos, seus significados.

Uma reflexão em torno desses conceitos nos conduz a um problema em relação ao

estudo da iconoclastia. A legitimação do culto dos ícones pela Igreja, através do II Concílio de

Nicéia em 787 e do Synodikon da Ortodoxia 843 (que marcou o fim da Querela), afirmava que

o ícone representa o protótipo e conduz a oração do fiel a ele. João Damasceno chega mesmo

a dizer que o ícone possui a “energia” do protótipo. Mas fica claro que o fiel deve ter em

mente a separação entre a pintura e o santo representado. É problemática essa separação entre

significante e significado defendida pela Igreja, uma vez que o próprio culto aos santos

dependia da fusão desses dois conceitos, como dissemos acima.

Outro conceito importante nesse trabalho é o de apropriação, aqui desenvolvido

segundo a perspectiva de Roger Chartier. Para ele, esse conceito tem por objetivo uma

35 BELTING. Hans. Likeness and Presence; A history of the image before the era of art.. Trad. Edmund Jephcott. Chicago: The Chicago University Press, 1994. p. 153. 36 AUZÉPY, Marie-France. L’iconodulie: defense de l’image ou de la dévotion a l’image? In: BOESPFLUG, F. et LOSSKY, N. (Dir). Op. cit. pp. 162-163.

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“história social das interpretações,”37 pois, mais importante que a própria idéia em si, é a sua

encarnação, sua significação, o uso que delas fazem seus leitores.38 Assim, a historicidade de

uma produção (seja ela uma obra escrita ou uma imagem) nunca é igual à que foi dada pelo

seu produtor.

Como foi dito anteriormente, algumas das justificativas para a proibição do culto

e posterior destruição dos ícones se apoiaram na argumentação de que esta prática legitimaria

pensamentos já condenados como heréticos pela Igreja, a saber o Monofisismo e o

Nestorianismo. Entretanto, os iconoclastas fizeram, durante a Querela, uma releitura dessas

condenações, com o objetivo de fundamentar seus pensamentos contrários aos ícones. Os

iconoclastas, a partir do Sínodo de Hieria em 754, afirmaram que a veneração dos ícones não

consistia simplesmente num pecado de idolatria, mas sim numa heresia. A diferença desses

dois conceitos é sutil. Segundo Alain Besançon, idolatria é o culto de ídolos, ou seja, de uma

representação de uma divindade falsa.39 Santo Tomás de Aquino, seguindo aqui Santo

Agostinho, relaciona idolatria com o culto pagão de criaturas como se fossem Deus.40 A

acusação de idolatria do período da Querela se encaixa nessa definição. Já heresia seria uma

doutrina considerada falsa, que contradiz diretamente os dogmas propostos pela Igreja

Católica a seus fiéis acerca do verdadeiro Deus.41

Também os iconófilos apropriaram-se utilizaram de discussões envolvendo a

natureza humana e divina de Cristo, justificando o culto dos ícones pelo mistério da

Encarnação.

É claro que quando a Igreja definiu, no Concílio da Calcedônia em 451, seu

pensamento oficial a respeito das questões cristológicas, não se referia à possibilidade de se

37 CHARTIER, Roger. Op. cit. p. 26. 38 Ibid. p. 48. 39 BESANÇON, Alain. Op. Cit p. 109-110. 40 Tomás de Aquino, Suma teológica, Iia Iiae, q. 94, art. 1. Citado por BESANÇON, Alain. Op. Cit p. 109-110. 41 Cf. DICTIONNAIRE DE THÉOLOGIE CATHOLIQUE. Contenant l’exposé des doctrines de la théologie catholique. Leus preuves e leur histoire. Paris: Librairie Letouzey et Ané, 1922.

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representar Cristo numa pintura. Esse assunto não foi sequer citado nas atas do Concílio. Mas,

como afirma Chartier, os textos são sempre recriados a partir das novas leituras, recebendo

então novas significações.42

Não vale dizer com isso que o sentido dos textos escritos na Calcedônia foram

alterados pelos iconoclastas, mas que estes textos foram novamente utilizados, agora num

outro contexto, em que suas idéias serviram para uma nova discussão. O que houve nesse caso

é o que Roger Chartier chama de apropriação, ou seja, uma idéia é resgatada de um texto,

reencarnada num novo contexto, e dela são feitos novos usos, que seus produtores sequer

imaginaram no momento de sua criação. No caso da Querela Iconoclasta, estas idéias são de

cunho teológico ou filosófico, como por exemplo o dogma da Encarnação. Não é nosso

objetivo traçar aqui um estudo aprofundado a respeito desses debates do século V, mas sim a

utilização desses pensamentos no contexto da Querela.

Talvez possa se classificar esse trabalho como história das idéias, mas não é nosso

interesse defini-lo como pertencente exclusivamente a este campo, mesmo porque esta é

apenas uma entre as várias disciplinas históricas que possuem as idéias como objeto. Ressalta-

se ainda que as múltiplas denominações das disciplinas de história e as tentativas, nem sempre

bem sucedidas, de se estabelecer correspondências entre elas, demonstram que não há em

história das idéias um objeto comum, homogêneo. Segundo Francisco Falcon, boa parte dos

historiadores preferem hoje a denominação história intelectual, abrangendo o estudo do

conjunto das formas de pensamento.43

Chartier afirma ser problemática a dicotomia história popular-cultura erudita,

rejeitando-a em favor de uma noção mais abrangente, embora não hegemônica, de história

42 CHARTIER, Roger Op. cit.p. 24. 43 FALCON, Francisco. História das Idéias. In: CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História. Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. pp. 92-93.

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cultural.44 Para ele, essa história da cultura compreende “o conjunto das formas de

pensamento”.45 É inviável tentar se distinguir de antemão o que é o popular e o erudito num

contexto sociocultural. E exemplifica, afirmando que Mikhail Bakhtin apresenta, no livro

L’oeuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Age et sous la Renaissance

(1965) aspectos da cultura popular através de Rabelais, um erudito. Em contrapartida, Carlo

Ginzburg mostra fragmentos da cultura livresca misturada com tradição oral com Menochio,

em O queijo e os Vermes.46

A cultura cristã, que é objeto desse trabalho deve ser abordada a partir dessa

perspectiva, pois nossa pesquisa se enquadra nesse tipo de abordagem. As posições oficiais da

ortodoxia cristã de Constantinopla e do Estado bizantino durante a Querela Iconoclasta foram

definidas a partir de editos imperiais e Concílios da Igreja, ou seja, de parte das elites política

e religiosa. Entretanto, essas decisões viriam a postular sobre uma das formas mais populares

de culto do Cristianismo, a devoção às imagens. Assim, mesmo que nossas fontes digam

respeito a um posicionamento na Querela por parte de grupos de nível mais alto na sociedade

bizantina (seja o clero secular, regular ou o poder imperial), leva-se em consideração que

essas idéias deveriam, pelo menos em teoria, alcançar diversos grupos da população cristã.

Mesmo não encontrando formas de manifestações populares no conflito em torno dos ícones,

sabemos que as idéias que partiram dessas elites deveriam ser absorvidas pela maioria dos

fiéis.

Como a Querela se refere a alguns debates cristógicos surgidos nos séculos IV e

V, pretendemos verificar as novas condições e as formas sob as quais essas idéias

reapareceram no Cristianismo bizantino do século VIII. Como essa pesquisa se dedica ao

processo que fez com que essas noções ressurgirem três séculos após suas condenações e o

44 VAINFAS, Ronaldo. História das Mentalidades e História Cultural. In: Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História. Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 153. 45 CHARTIER, Roger. Op. cit .p. 31. 46 VAINFAS, Ronaldo. Op. cit. p. 152-153.

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estabelecimento do pensamento ortodoxo, não nos basta apenas conhecer o significado de tais

pensamentos, o que faremos no capítulo 1. Interessa principalmente saber como, por quem e

com que finalidade essas discussões cristológicas retornaram ao centro dos debates cristãos

durante a Querela Iconoclasta. Como diz Skinner,

Os conceitos ou ‘idéias’ não se esgotam uma vez (re)conhecido o seu significado; é necessário saber quem os maneja e com quais objetivos, o que só é possível através do (re)conhecimento dos vocabulários políticos e sociais da respectiva época ou período histórico, a fim de que seja possível situar os ‘textos’ no seu campo específico de ‘ação’ ou de atividade intelectual.47

Foi em torno dos ícones de Cristo que boa parte das discussões da Querela se

concentrou, sendo o mistério da Encarnação e o dogma de sua dupla natureza a base tanto

para os argumentos iconófilos quanto para os iconoclastas. Por isso, torna-se indispensável

analisar como essas doutrinas foram recuperadas durante os séculos VIII e IX, e entender o

uso que delas fizeram, nesse novo contexto, os dois referidos grupos.

A apresentação dos capítulos desse trabalho foi orientada seguindo a cronologia

da própria Querela, seguindo seus editos imperiais, Sínodos e Concílios, convocados tanto por

iconoclastas quanto por iconófilos. O primeiro é mais conceitual, onde se apresentam

importantes idéias a serem trabalhadas nos capítulos seguintes. Nele encontra-se um estudo

mais aprofundado sobre o ícone, ressaltando as particularidades que o tornaram uma forma de

representação pictórica muito diferente das imagens ocidentais. Esse mesmo capítulo trata de

questões diversas, como as heresias cristológicas que serviram de base para a condenação do

culto dos ícones no século VIII e o modelo autocrático do Estado bizantino, que permitia ao

imperador interferir em questões religiosas. Além dessas questões, lembraremos aqui duas

causas não-religiosas para apontadas para a iconoclastia: a necessidade de manutenção da

unidade territorial bizantina e o uso do iconoclasmo pelo poder imperial para conter o

crescimento dos mosteiros bizantinos.

47 Citado por FALCON, Francisco. Op. cit. pp. 96-97.

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O capítulo 2 trata da primeira fase da iconoclastia, tendo o edito imperial de Leão

III em 726 como ponto de partida, buscando entender as motivações que teriam levado o

imperador a tal atitude e os desdobramentos nas sedes das Igrejas de Constantinopla e Roma.

Além desse edito imperial, o mais importante sínodo iconoclasta de toda a Querela, o de

Hieria em 754, se reuniu nessa primeira fase do conflito e será analisado nesse capítulo. A

partir desse sínodo, convocado pelo filho e sucessor de Leão III, Constantino V, a iconoclastia

ganhou um embasamento teológico mais sólido, sendo então relacionado a antigas heresias

em torno das naturezas de Cristo. O capítulo aborda também a defesa dos ícones, feita nessa

primeira fase principalmente pelo Patriarca de Constantinopla Germano e pelo monge João

Damasceno. Suas idéias foram fundamentais para embasar a argumentação que condenou a

destruição dos ícones no II Concílio Ecumênico de Nicéia, em 787.

Esse concílio será abordando no capítulo 3, quando se verificará como a

imperatriz regente Irene, a Ateniense, preparou o caminho para que este fosse reunido e onde

estudaremos também os seus argumentos em defesa do culto dos ícones cristãos. Nesse

capítulo também será abordada a segunda fase da Querela, reintroduzida na Igreja de

Constantinopla em 815 com Leão V, e definitivamente condenada num sínodo em 843.

Veremos como os argumentos contra o culto dos ícones foram novamente utilizados no

século IX para reativar a Querela. Assim como em sua primeira fase, os principais defensores

da iconofilia aqui também foram um monge, Teodoro Studita, e o então Patriarca de

Constantinopla, Nicéforo.

Também foram analisados textos produzidos pelos dois principais monges

iconófilos da Querela: João Damasceno e Teodoro Studita. De Damasceno, analisamos o seu

principal texto, uma apologia aos ícones, redigida em 730 e dirigida ao Patriarca Germano

(715–730) e à população iconófila de Constantinopla. Esse texto é de suma importância para

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essa pesquisa, uma vez que apresenta a base da argumentação iconófila definida em Nicéia.48

De Teodoro Studita, foram analisados alguns textos de diferentes naturezas, como um

testamento deixado ao mosteiro São João de Studios, em 826, o texto Poems on Images e

algumas cartas.49

Além desses monges, o Patriarca de Constantinopla Germano (715–730) e o Papa

Gregório II (715–731) também deixaram escritas suas posições contrárias às medidas

iconoclastas do imperador Leão III através de cartas. Foi analisada aqui uma carta de

Gregório II, cujo conteúdo nos é apresentado numa passagem da Historia de Vitis

Romanorum Pontificum – S. Gregório II, escrita no século IX.50 O Patriarca Germano

escreveu uma carta favorável aos ícones, escrita em resposta ao edito iconoclasta de 730.51

Por fim, contamos ainda com alguns documentos que serão aqui utilizados como

fonte de valor secundário. Nesse grupo estão as atas do Concílio Ecumênico da Calcedônia,

reunido em 451, que definiu a posição oficial da Igreja nos debates em relação às naturezas

humana e divina de Cristo, condenando como heresia o Monofisismo e o Nestorianismo.52

Consultamos ainda uma carta do bispo Eusébio de Cesaréia a Constança (irmã do imperador

Constantino, o Grande), do século IV, a respeito da impossibilidade de se representar Cristo

48 Esses textos estão disponibilizados em inglês no website www.fordham/halsall/medweb, na coleção Internet Medieval Sourcebook (49 páginas). Possuímos ainda excertos desses discursos em MANGO, Cyril. op.cit. pp. 169-172, e em português na obra de ESPINOSA, Fernanda. Antologia de textos históricos medievais. 3ª edição. Lisboa: Sá da Costa Editora, 1981. p. 62. 49 O testamento de Teodoro ao mosteiro de São João de Studius foi publicado pela Dumbarton Oaks Research Library and Collection. Harvard University: Washington D.C., 2000. Este texto está disponível na internet, através do website www.doaks.org. O texto Poem an Images está em BELTING, Hans. Op. cit p. 508. E duas de suas cartas encontram-se em MANGO, Cyril. Op. cit. pp. 173-175. 50 ESPINOSA, Fernanda. Op.cit pp. 60-61. 51 Esta carta encontra-se em BELTING, Hans. Op. Cit p. 503. 52 O texto desse concílio está disponível no website www.fordham/halsall/medweb, na coleção Internet Medieval Sourcebook (em torno de 20 páginas). Possuímos também alguns excertos dessas atas em ESPINOSA, Fernanda. Antologia de textos históricos medievais. 3ª edição. Lisboa: Sá da Costa Editora, 1981. pp. 58-59.

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numa pintura,53 e outra da imperatriz destronada Irene, em 802, reconhecendo o caráter divino

do poder imperial.54

Portanto, nosso estudo se volta para um tema ainda pouco explorado pela

historiografia no Brasil, abordando um dos fenômenos mais importantes do Cristianismo

oriental. Buscamos compreender aqui os argumentos criados pelos lados envolvidos na

Querela para legitimar o culto ou a destruição dos ícones, tendo como foco dos debates, o

ícone de Cristo, nas duas fases nas quais se dividiu essa disputa.

53 In: MANGO, Cyril. Op. cit pp. 16-18. 54 In: HECTOR HERRERA, C.; MARÍN RIVEROS, José. El Imperio Bizantino. Introducción Histórica y Selección de Documentos. Santiago: Cuadernos Bizantinos Nea Ellas, Serie Byzantiní Historia I, 1998. p. 49.

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CAPÍTULO I:

CONFIGURAÇÕES PARA A QUERELA ICONOCLASTA

Antes de iniciarmos nossos estudos sobre a Querela Iconoclasta propriamente

dita, uma breve análise faz-se necessária em relação a alguns antecedentes teóricos e práticos

que serão abordados nos capítulos seguintes. O objetivo desse primeiro capítulo é

compreender esses tópicos que fazem da Querela Iconoclasta uma disputa teologicamente

complexa e tornam o seu estudo fascinante.

Esse tipo de abordagem se deve ao fato de estarmos debruçando sobre uma

questões que se desdobraram dentro de um terreno arenoso, o das crenças cristãs, e que não se

restringiram somente à Igreja de Constantinopla, tendo envolvido inclusive o papado em

Roma. Além disso, o Cristianismo desenvolveu nas Igrejas do Oriente um tipo de culto e

representações pictóricas que em muito o diferencia do Ocidente. O ícone, enquanto objeto

principal de toda a Querela Iconoclasta, será abordado nesse capítulo a partir de textos

referentes a sua teoria, desenvolvida por João Damasceno, e tradições no culto cristão. Além

desses textos, utilizaremos ainda alguns exemplos de ícones posteriores ao século IX, uma vez

que durante a Querela, inúmeras pinturas foram destruídas pelos iconoclastas. As discussões

cristológicas que foram utilizadas no período para justificar a destruição ou defesa dos ícones,

e a forma de organização política do Império Bizantino são outros tópicos que constituem

esse primeiro capítulo.

Primeiramente, pretende-se fazer uma análise em torno do ícone, tipo de pintura

que representa Cristo, a Virgem, os santos, anjos ou profetas, sobre o qual se desenvolveram

todos os debates da Querela Iconoclasta. No tópico 1.1, será apresentado esse tipo de

representação pictórica considerada sacra entre os cristãos ortodoxos, ressaltando as suas

particularidades e as tradições que envolvem sua criação e seu culto nas Igrejas orientais.

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Cabe ressaltar aqui que existe uma diferenciação entre os graus de culto dentro do

Cristianismo. Um deles é a adoração, da qual somente Deus é digno. É o mais alto nível de

culto cristão. Outro, apresentado a Cristo, a Virgem e aos santos e apóstolos, é a veneração,

um tipo de homenagem honrosa a essas pessoas. Essa diferenciação é fundamental na

formulação do argumento de defesa dos ícones no II Concílio de Nicéia, em 787.

Tanto nos documentos utilizados pelos iconoclastas para justificar a destruição

dos ícones, como por exemplo, a carta de Eusébio a Constança (século IV) e as atas do

Concílio Ecumênico de Calcedônia (451), quanto naqueles citados para defesa de sua criação

e culto, encontram-se complexos e bem formulados argumentos baseados em antigas

discussões cristológicas, envolvendo o mistério da Encarnação e a relação das naturezas

humana e divina em Cristo. No tópico 1.2 será feito um breve estudo em relação a duas

doutrinas, condenadas pela Igreja como heresias, e que embasaram a argumentação

iconoclasta a partir do sínodo de Hieria: o nestorianismo e o monofisismo.

Os rumos da Querela Iconoclasta estavam muito mais associados a decisões

imperiais, que variaram ao longo dos mais de cem anos de debates, do que a uma pressão

popular ou por parte da Igreja de Roma. Entender os mecanismos pelos quais esses

imperadores guiaram as discussões a respeito da destruição de ícones, impondo-a ou

proibindo-a, é fundamental para um contexto onde as decisões da Igreja de Constantinopla

praticamente não se dissociam das decisões políticas do Estado.

O tópico 1.3 apresenta um estudo de Gilbert Dagron a respeito do modelo de

governo desenvolvido em Bizâncio, e que se define enquanto tal com Leão III, o primeiro

imperador iconoclasta: a autocracia. Trata-se de um tipo de poder semelhante ao dos reis do

Antigo Testamento cristão, onde a autoridade política detém ainda um poder de natureza

religiosa. Isso se dava não apenas no sentido de um controle institucional sobre a Igreja de

Constantinopla por parte do imperador, mas era um tipo de sacerdócio exercido pelo monarca,

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o que lhe dava o direito de intervir inclusive em dogmas cristãos. É justamente por essa

característica de ser um poder temporal e espiritual que os imperadores bizantinos dos séculos

VIII e IX tomam a frente dos rumos da Querela, através da convocação de Sínodos e

Concílios.

Devido a essa ligação entre religião e política em Bizâncio, buscaremos traçar no

tópico 1.4 um possível paralelo entre a iconoclastia e a política imperial, relacionando suas

causas e conseqüências a dois fatores não diretamente ligados ao culto dos ícones: a tradição

religiosa anicônica do Oriente Medieval e o enfraquecimento ou até mesmo eliminação do

poder dos mosteiros.

Primeiramente, a expansão islâmica por províncias bizantinas desde o século VII

poderia ser considerada como uma forma de punição divina à prática de cultuar imagens. Em

segundo lugar, o consenso historiográfico admite que destruir os ícones e proibir seu culto

seria uma forma de enfraquecer os mosteiros em uma de seus principais bases de sustentação

econômica e de influência social. Tanto os ícones quanto as relíquias de santos representavam

os pilares de sustentação dos mosteiros. Eram esses objetos de culto que atraíam grande

quantidade de peregrinos com suntuosas quantias em doações e esmolas. Além disso, pelo seu

prestígio, a vida monástica acabava por atrair também um grande número de jovens, em

detrimento da opção pela vida militar.

As fontes para esse estudo serão uma carta de Gregório Magno ao bispo Serenus,

de Marselha, que representa um posicionamento da Igreja de Roma frente à destruição de

imagens.55 As atas do Concílio da Calcedônia, mesmo tendo sido reunido fora do recorte

cronológico traçado para essa pesquisa (451), serão importantes para o conhecimento das

definições oficiais da Igreja a respeito da relação das naturezas humana e divina em Cristo.

55 Gregório Mango, Epítola XIII. Ad Serenum Massiliensem episcopum, patrologie de Migne, t. LSSVII, col. 1128-1130. Esse documento foi aqui analisado através do referido estudo de Alain Besançon. pp. 243-246.

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Existe ainda uma carta da imperatriz Irene, destronada em 802, na qual ela demonstra

reconhecer o caráter divino da autoridade imperial, sobre o qual discorreremos no tópico 1.3.

1.1 Os ícones cristãos

Nos primórdios de sua existência, ainda nos séculos III e IV, as representações

cristãs surgidas no Ocidente hauriam da cultura greco-romana um imenso repertório de

figuras. Essas antigas representações pagãs foram adaptadas, servindo a uma nova finalidade,

que era a de proporcionar, através das imagens, o acesso a símbolos e a narrativas das

histórias sagradas do Cristianismo. O objetivo principal dessa nova forma de representação,

nascida nas catacumbas romanas quando o Cristianismo ainda era uma religião perseguida no

Império, não era o de representar fidedignamente uma realidade. Os traços dessas pinturas não

se propunham a rebuscar com riqueza de detalhes uma cena. O objetivo primordial era

lembrar aos fiéis os ensinamentos, a misericórdia e as mensagens divinas contidas nas

Sagradas Escrituras.

No fim do século IV, com a oficialização do Cristianismo enquanto religião

oficial do Império Romano, houve uma preocupação maior por parte dos cristãos de construir

locais públicos de culto. Entre os ortodoxos, a idéia de uma harmonia entre o local dos cultos

e a liturgia foi o que conduziu à organização dos espaços e das decorações dentro das igrejas.

Tudo dentro delas, da arquitetura ao canto religioso, favorecia uma unidade harmônica. Esse é

o princípio das igrejas Orientais, lembrar ao fiel que ele está num lugar sagrado. É dentro

desse local, onde as representações pictóricas e arquitetônicas faziam parte da liturgia cristã,

que se insere o ícone.

Entretanto, as ressalvas em relação ao uso do ícone no culto já se manifestavam

no Cristianismo desde os séculos III e IV. Segundo Hans Belting e Georg Ostrogorsky, os

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debates em torno desse assunto abordavam o fato de a espiritualidade cristã se ver ameaçada

pelo “materialismo” dessas representações.56

Grande parte das suspeitas projetadas sobre as imagens cristãs, não somente no

período da Querela Iconoclasta, mas desde os seus primórdios até os movimentos protestantes

do século XVI, enfocavam o risco de que elas suscitassem no fiel apenas uma admiração de

suas formas e cores. Assim, o fiel não ultrapassaria o nível da contemplação da imagem em si

mesma e não prosseguiria num caminho de concentração e meditação. O perigo consistia em

ser atraído muito mais pelas formas da representação do que pela reflexão sobre a história

sagrada e os dogmas por ela representados.

Além disso, havia ainda o receio de que o culto cristão fosse assemelhado às

práticas pagãs, uma vez que estas cultuavam em seus templos estátuas de ídolos e

principalmente dos governantes, comparados a deuses desde a época helenística. Essa foi uma

prática tornada comum também pelos imperadores romanos.

Por conta disso, as representações pictóricas entre os cristãos ortodoxos orientais

seguiam um rígido processo de criação, baseando-se nas tradições da Igreja, cuja composição

estava em íntima relação com a teologia e espiritualidade cristã. Isso significa, como veremos

mais adiante, que esse tipo de pintura estava subordinada única e exclusivamente a uma forma

de transmissão da liturgia cristã, de uma realidade transfigurada, na qual não havia espaço

para a subjetividade do seu iconógrafo.

A palavra ícone vem do grego eikon, que significa “imagem” num sentido amplo.

Trata-se de uma representação pictórica considerada sacra, presente nas tradições da Igreja

desde o século IV, que retira seus temas das Escrituras e hagiografias. É sempre uma figura

plana, nunca uma escultura, e pretende ser uma representação fiel do protótipo, através de um

56 BELTING. Hans. Op. cit.. p. 2, e OSTROGORRSKY, Georg. Op. Cit p. 170.

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processo de produção fixo e extremamente regrado. Trata-se de um tipo de imagem que

tampouco se curva diante das preocupações estéticas próprias do seu período ou sociedade.

Por conta dessas características, faz-se necessário aqui uma breve reflexão sobre o

ícone. Há que destacar toda tradição em torno desse objeto, que vai desde o momento de sua

produção pelo iconógrafo, até o culto a ele prestado por um fiel. Por isso o ícone se torna um

tipo diferenciado de representação pictórica, que não pode ser concebido simplesmente como

mais uma imagem cristã.

Diferentemente do Ocidente latino, onde as imagens religiosas ganharam status de

“Bíblia dos iletrados”, com função pedagógica e de manutenção da memória do fiel em cenas

e personagens da Sagrada Escritura, o ícone bizantino fazia parte do próprio rito cristã.

Destinava-se a reproduzir cânones, com uma fixidez quase ritual dos seus processos de

fabricação. É uma pintura que segue a “via de submissão ascética, da oração

contemplativa.”57 Sua produção é controlada pelas autoridades religiosas, que no Oriente

dizem escrever o ícone, ao invés de pinta-lo. Seu vocabulário é limitado, uma vez que sua

“escrita” toma sempre de empréstimo temas da Bíblia, das hagiografias, dos apócrifos e da

liturgia.58 Segundo Alain Besançon, suas formas são extremamente regradas e seus tipos

sempre repetidos devido à prática da própria tradição do ícone, que visa superar a presença de

traços pessoais do seu iconógrafo, buscando representar nem exatamente o céu, nem

exatamente a terra, mas uma realidade transfigurada entre ambos.59

O Papa Gregório Magno escreveu uma carta no ano 600 em repreensão ao bispo

Serenus de Marselha, por este ter ordenado a destruição das imagens nas igrejas de sua

diocese, com o objetivo de evitar que a população cristã daquela região caísse no pecado da

57 OUSPENSKY, L. Algumas reflexões sobre o sentido dogmático do ícone. [on line]. Artigo disponível na irternet: http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/main.htm . Acessado em 12/03/2006. 58 Cf. BESANÇON, Alain. Op. Cit. p. 221. 59 Cf. Ibid. p. 230.

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idolatria. Nessa carta, Gregório afirma o valor didático das imagens cristãs, servindo como

objeto condutor das mensagens da Sagrada Escritura à população iletrada.60

Apesar de essa carta ser o mais importante documento da Igreja Latina para

legitimar o uso de imagens no culto, não podemos considerá-la um trabalho de teologia em

torno dos ícones. Primeiramente, porque não há referências nela especificamente ao ícone e

suas tradições, mas às imagens cristãs num plano mais totalizante. Depois, porque Gregório

não toca na questão teológica para legitimar a possibilidade de representação de Cristo, mas

fala delas como um tipo de objeto com funções didáticas e pedagógicas, uma ilustração das

Escrituras. Este documento apresenta uma preocupação muito maior com a questão da

transmissão das histórias do Antigo e do Novo Testamento através das imagens do que uma

representação do que Leonid Ouspensky chama de uma “realidade transfigurada,” uma

“deificação de seu protótipo”.61

João Damasceno é, assim, considerado o primeiro a desenvolver uma teologia em

torno dos ícones cristãos, publicada em resposta ao primeiro edito iconoclasta do imperador

Leão III, em 730. Entre as idéias de Damasceno, que sistematizaram a defesa dos ícones no

Oriente, e as de Gregório Magno, que legitimaram o uso de imagens com fins de representar

pictoricamente passagens da Sagrada Escritura no Ocidente latino, existe uma grande

diferença teológica.

Enquanto Gregório se preocupou com a utilização de imagens como forma de

instrução dos fiéis ou transmissão das histórias bíblicas, Damasceno dedicou sua apologia a

legitimar o ícone e seu culto a partir da Encarnação de Cristo e da idéia de que essas pinturas

representam pessoas divinas, conduzindo o fiel das coisas corpóreas às inteligíveis.

Entre todos os tipos de ícones, aquele que certamente suscitou maiores discussões

em torno da licitude de sua pintura e de seu culto, sem dúvida, foi o de Cristo. Isso pelo fato

60 BESANÇON, Alain. Op. Cit. pp. 243-244. 61 OUSPENSKY, Léonid. Op. cit. p. 144.

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de ser Cristo o topos central das discussões teológicas dos séculos IV ao IX. Muitos debates

da Querela se desenrolaram em torno dessa discussão, como veremos nos capítulos 2 e 3.

O referencial para a pintura dos ícones de Cristo é a tradição da face acheropta,

ou seja, não feita por mãos humanas. Segundo essa tradição oriental, o próprio Cristo teria

feito surgir uma representação do seu rosto numa toalha, na qual enxugara seu suor. Essa

toalha teria sido encaminhada ao rei Agbar, de Edessa, através de um funcionário seu. Foi

essa imagem que serviu de modelo para toda a produção iconográfica posterior. Essa tradição

não permite ao ícone receber traços de originalidade ou subjetividade por parte de seus

iconógrafos.

Segundo Belting, em Bizâncio, definiu-se que esse tipo de representação se

relacionava a uma profunda profissão de fé, um testemunho da Verdadeira Fé.62 Isso porque,

muito mais do que uma simples representação de uma pessoa divina, o ícone de Cristo era a

expressão do dogma cristológico definido no Concílio da Calcedônia, representando o Filho

de Deus tornado homem, que reuniu em si as naturezas humana e divina. A possibilidade de

representação dessa natureza divina de Cristo suscitou controvérsias durante a Querela

Iconoclasta, como teremos oportunidade de analisar no capítulo 2. Entretanto, o pensamento

iconófilo, que prevaleceu ao fim das discussões, ressaltava que a figura de Cristo presente no

ícone não visa circunscrever sua divindade, mas antes representa a Pessoa na qual se

conjugam as naturezas humana e divina, sem confusão nem separação. O que o ícone de

Cristo propunha é representar o mistério da Encarnação.

Leonid Ouspensky sustenta que o ícone revela em suas cores e formas a face de

Cristo transfigurada e revelada aos apóstolos Pedro, Tiago e João no Monte Tabor. Para

Ouspensky, é essa face transfigurada que o ícone apresenta ao fiel, um Cristo no qual se

conjugam o humano e o divino. Como se trata de um tipo de imagem onde o simbolismo do

62 Cf. BELTING, Hans. Op. cit p. 159. “Thus the image in Byzantium gained all the more status as a profession of faith, a testemony to the True Faith.”

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ícone se sobressai a uma representação realista, seu objetivo não é provocar nenhum tipo de

sentimento humano natural. Ao contrário, pretende principalmente orientar os sentimentos

dos fiéis através da apresentação de um Cristo transfigurado.63 Mesmo apresentando certa

tendenciosidade em seu texto, Ouspensky baseia sua análise nos principais documentos

referentes ao ícone, destacando as definições do Concílio Ecumênico de Nicéia, além de

textos de João Damasceno, Teodoro Studita e diversas passagens bíblicas.

O que ícone propõe não é circunscrever a natureza do protótipo, mas sim aquilo

que dele é compreendido pela inteligência, pelo conhecimento e pelo sentido, apenas sob o

modo da semelhança. Segundo Hans Belting, é essa semelhança “real” com o protótipo que

confere autenticidade ao ícone, como no caso da virgem supostamente pintada por São Lucas

ou do manto de Edessa. Dessa forma, o rosto de Cristo pintado num ícone não representa sua

natureza divina, mas sim sua hipóstase, a Pessoa na qual se conjuga, sem confusão nem

separação, as duas naturezas, a humana e a divina.64 Assim, pelo menos teoricamente, existe

uma diferenciação entre o protótipo e sua representação numa pintura, não sendo ambos da

mesma natureza. David Freedberg chama a atenção para o fato de que nas práticas de culto

dos fiéis, essa diferenciação entre a pintura e a pessoa representada tende a se diluir, havendo

um tipo de fusão entre ícone e o protótipo. Existiria, assim, um certo distanciamento entre a

teoria e a prática de culto cristão em relação aos ícones.

É baseado nessas premissas que nas Igrejas Ortodoxas não se representa o rosto

de um Cristo sofredor, como encontraremos posteriormente nas pinturas religiosas do

Ocidente. Para Ouspensky, essa forte ligação da obra com a sensibilidade humana do pintor é

que faz prevalecer a sua subjetividade, em detrimento das normas que regem a produção dos

ícones na Igreja bizantina. A presença dessa subjetividade na obra é a responsável pelo fato de

se verificar representações religiosas um Cristo no qual se destacam suas características

63 OUSPENSKY, Léonid. Op. cit. p. 163. 64 Cf. BESANÇON, Alain. Op. Cit. p. 228.

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humanas, resultando numa imagem sem os aspectos divinos no qual se reconhece o Filho de

Deus encarnado.65

A produção de ícones seguia, como dissemos, um controle rígido em sua

produção, o que fazia surgir, nas palavras de Besançon, uma “monotonia de formas e

repetição de tipos.”66 Isso exigia do iconógrafo uma submissão de seus sentimentos

individuais em favor da apresentação de uma obra fiel a seu objetivo final: ser a representação

de uma realidade espiritual, sem se preocupar com a representação fiel do mundo físico. A

imagem de uma face transfigurada, como pretende ser o ícone cristão, não tolera inovações ou

a marca pessoal de seu produtor. Toda essa disciplina na produção dos ícones visava uma

aproximação desse objeto com a ordem e a harmonia do Reino de Deus.67 Mais do que ser

uma imagem de conteúdo religioso, a forma como o tema é apresentado (como por exemplo, a

figura principal sempre de frente para o fiel, despreocupação com a proporções realistas) é o

indicador de santificação da pessoa representada.

Esses tipos repetidos, aos quais se refere Besançon, por não se preocuparem com

a reprodução de cenas de maneira realista, deixam as questões estéticas de lado em favor da

busca de uma percepção de uma realidade espiritual. Nesse sentido, percebe-se que as

personagens possuem corpos em tamanhos desproporcionais entre si e algumas vezes em

relação ao cenário onde se encontram representados. A disposição dos personagens nas cenas

e as formas de sua apresentação seguem um princípio hierárquico. A figura principal – Cristo,

a Virgem ou um santo – ocupa o centro da tela e normalmente é maior que as demais pessoas.

O mesmo acontece quando se trata de ícones da Virgem, dos santos e mártires.

Além da desproporcionalidade no tamanho das figuras representadas, outra

característica é a ausência quase total de movimentos no ícone. Isso devido à severidade das

65 OUSPENSKY, L. Algumas reflexões sobre o sentido dogmático do ícone. [on line]. Artigo disponível na Internet: http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/main.htm. 66 BESANÇON, Alain. Op. cit p. 230. 67 OUSPENSKY, Léonid. Op. cit. p. 160.

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linhas que compõem a figura e que submetem toda a composição do ícone a uma ordem e

uma harmonia necessárias à representação de uma pessoa santificada. Essa ausência de

movimentos é percebida também pela fixidez com que são representadas as roupas que

vestem Cristo, a Virgem ou os santos. Seus contornos, traçados em linhas geométricas, fazem

com que a santificação do corpo ali representado se comunique também através de suas

vestes. Esse tipo de representação é possível porque os santos pintados nos ícones quase não

gesticulam, como se estivessem em oração diante de Deus.68

As personagens retratadas nessas pinturas, além de um imobilismo quase que

total, se apresentam de frente para quem o contempla ou, no máximo, em três quartos de

perfil. Segundo Ouspensky, é como se o santo estivesse se colocando diante do fiel, cara a

cara com ele, num espaço bem definido, o que demonstra que os ícones visam uma

aproximação cada vez mais íntima do cristão com o protótipo.69 Fazendo parte da liturgia e do

culto cristãos, o ícone deve estar sempre em harmonia com todos os elementos do rito, desde

a arquitetura do templo ao canto executado. Numa igreja onde há esse conjunto harmônico

entre todos esses elementos, a liturgia engloba os fiéis e os santos representados numa “ação

comum”, onde o culto coloca o cristão e o santo pintado numa relação de extrema

proximidade.70 Nos ícones, os olhos são representados voltados para o espectador, como que

convidando-o a uma contemplação. Por conta dessa característica, o ponto de fuga dessas

imagens encontra-se invertida, centrada no espectador. Nas palavras de Alain Besançon, “as

verdades da fé irradiam-se em direção àquele que o contempla.”71

68 OUSPENSKY, Léonid. Op. cit. p. 167. 69 Ibid. 70 Cf. OUSPENSKY, L. Algumas reflexões sobre o sentido dogmático do ícone. [on line]. Artigo disponível na Internet: http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/main.htm. 71 BESANÇON, Alain. Op. cit. p. 220.

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Figura 3: Ícone de Cristo. Constantinopla, século VI. Encáustica, monastério de Santa Catarina do Sinai, Egito

Nesse sentido, a representação de perfil impediria o contato direto do fiel com o

ícone, sendo considerado “o início da ausência”. Apenas figuras que não representam nenhum

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tipo de santidade poderiam ser representadas de perfil, como os pastores e os reis magos nas

cenas da Natividade.72

Figura 4: Mosaico com Justiniano (esquerda) apresentando o modelo da igreja de Hagia Sophia para a Virgem Maria. Constantino à direita apresenta a ela o modelo de Constantinopla (532–537)

Besançon nos apresenta uma descrição básica de um tipo padrão de representação

dos santos nos ícones:

A fronte é alta e bombeada, sinal de sabedoria e inteligência. O nariz, longo, fino, grave, nobre, com narinas frementes. As faces dos ascetas e dos monges atestam os jejuns e as vigílias. A boca, muito fina, está sempre fechada, porque no mundo da glória tudo é visão e silêncio. [...] Abarba é majestosa no ritmo vigoroso das mechas.73

A função do ícone é então representar uma realidade espiritual, na qual se perceba

uma idéia de harmonia e paz celestiais, opostas à desordem do mundo físico. É por isso que

num ícone tudo o que está ao redor da pessoa representada possui um aspecto diferenciado, de

72 Ver OUSPENSKY, Léonid. Op. cit. pp. 167-169. 73 BESANÇON, Alain. Op. cit p. 220.

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uma realidade transfigurada, que transforma toda a desordem mundana num tipo de

organização divina, que visa aproximar o fiel de Deus.

Os questionamentos e definições a respeito da representação dos ícones de Cristo

fizeram reaparecer no século VIII uma série de debates cristológicos, ora para dar um

embasamento teórico ao iconoclasmo, ora para defender essas representações da total

destruição. O principal questionamento girava em torno da possibilidade de se representar

num ícone a natureza divina de Cristo, sem que esta estivesse separada da sua humanidade.74

Como demonstraremos nessa dissertação, foi em torno do mistério da Encarnação que a

validade e licitude do ícone enquanto uma pintura sacra foram definidas pelos seus defensores

durante a Querela. Assim as questões estéticas estavam excluídas das discussões dos séculos

VIII e IX, que se concentraram exclusivamente em temas de cunho teológico e dogmático.

A Encarnação foi o principal argumento utilizado pelos iconófilos para a defesa

dos ícones. Esse tema perpassou todo o período da Querela Iconoclasta, sendo referenciado

desde o Discurso de João Damasceno a favor dos ícones em 730 até o Sinodikon de 843, que

marcou o fim definitivo da iconoclastia. As formas como este debate cristológico sobre a

Encarnação foi apropriado durante a iconoclastia para questionar ou fundamentar a

representação pictórica de Cristo nos ícones, serão abordados ao longo dos capítulos 2 e 3.

É pelo fato de representar pessoas santas e uma realidade transfigurada que o

ícone deveria ser cultuado, não pela sua matéria em si, mas pela pessoa que representa. São

esses aspectos que fazem do ícone um tipo de pintura diferenciada em comparação àquelas do

ocidente cristão, principalmente a partir do século XIII, merecendo assim algumas reflexões

sobre sua composição, seus temas e sua função dentro das Igrejas Ortodoxas. É devido a essas

74 Para conhecer as definições da Igreja a cerca das naturezas do Cristo, ver as definições do Concílio da Calcedônia, em 451. Acessado em J. D. Mansi, Sacrorum Conciliolum nova et amplissima collectio, t. VII, Florentiae, 1762, cols. 107, 115 e 118. In: ESPINOSA, Fernanda. Op. cit.. p. 59.

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características que o ícone suscitou, nos séculos VIII e IX, tantas discussões, gerando toda

uma querela ao redor de sua definição e de seu papel no culto cristão.

1.2 Discussões cristológicas

O fato de no século VIII o ícone de Cristo ter sido o centro das discussões da

Querela Iconoclasta era um legado de três séculos de preocupações teológicas entre os

bizantinos. Já desde o século IV os cristãos se preocuparam em definir a relação entre o Deus

Pai, o Filho e o Espírito Santo dentro da Santíssima Trindade.

De uma forma geral, as primeiras heresias cristãs se referiam à definição da

natureza de Cristo, principalmente no que diz respeito à sua relação com Deus-Pai. O

primeiro Concílio Ecumênico cristão, realizado em Nicéia em 325, definiu o pensamento

ortodoxo, proclamado ainda hoje pelo Credo niceno, a respeito dessa relação. Afirma que

Cristo é consubstancial (homosios – homo ousia, mesma essência) com o Pai e não criatura

Dele, apenas semelhante a Ele.75

Desde o século IV a busca pela definição a respeito de como as naturezas humana

e divina se encontravam em Cristo havia gerado algumas doutrinas condenadas pela Igreja

como heréticas. Duas dessas doutrinas ganham especial interesse para nossa pesquisa: o

Nestorianismo e o Monofisismo, evocadas em determinações iconoclastas promulgadas no

Sínodo de Hieria, reunido em 754 pelo imperador Constantino V (741–775).

Nesse Sínodo, a justificativa para a destruição de ícones cristãos se baseou numa

alegada relação existente entre as práticas de pintura e culto dos ícones e esses pensamentos

condenados pela Igreja. O cerne das discussões era um dogma fundamental do Cristianismo: o

mistério da Encarnação, e a relação entre o humano e o divino em Cristo. Deteremos-nos na

75 JEDIN, Hubert. Concílios Ecumênicos; história e doutrina. Tradução de Nicolas Bóer. São Paulo: Editora Herder, 1961.

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análise das definições desse Sínodo no capítulo 2. Aqui, buscaremos conhecer as bases dessas

heresias e o porquê de sua condenação pela Igreja.

Uma nova proposição, posteriormente condenada como herética, permeou o

pensamento cristão do século V. Encabeçada pelo patriarca de Constantinopla Nestório,

afirmava que em Cristo as duas naturezas seriam distintas, sendo que a humana prevaleceria

sobre a divina. Para Nestório, uma natureza não poderia existir sem um prosôpon próprio,

tendo esse termo aqui um sentido semelhante à personalidade, designando um conjunto de

qualidades individuais. Afirma que pelo prosôpon, a humanidade de Cristo teria suas

características próprias. Assim, não haveria no Cristo um um prosôpon único, pois cada

natureza preservaria o seu prosôpon, a sua individualidade em relação a outra.76

Dessa forma, o nestorianismo fez surgir idéia de uma separação entre as

naturezas, como se houvesse de um lado o homem Jesus, e de outro o Verbo, que o anima e o

inspira.77 E cada uma dessas naturezas possuiria sua subsistência própria, com suas operações

próprias, mesmo após a sua união em uma mesma pessoa.78 Segundo Alain Ducellier, o

Nestorianismo representou uma humanização quase total do Cristo.79 Nesse mesmo sentido,

Paul Lemerle afirmou que os nestorianos consideravam que Cristo seria “um homem que se

tornou Deus.”80

Para Nestório, a união existente entre o humano e o divino no Cristo é do tipo

χατ ευδοχιαν, termo traduzido de maneira imperfeita como “união voluntária”, pela qual

Cristo se conforma voluntariamente às inspirações do Verbo. Assim, essa união não seria

76 DICTIONNAIRE DE THÉOLOGIE CATHOLIQUE. Contenant l’exposé des doctrines de la théologie catholique. Leus preuves e leur histoire. Paris: Librairie Letouzey et Ané, 1922. Verbete Nestorius. p. 152. 77 Ibid. p. 94. 78 Ibid. p. 149. 79 DUCELLIER, Alain. Op. cit p. 57. 80 LEMERLE, PAUL. Op. cit p. 33.

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hipostática ou natural. Disso resulta que as paixões e sofrimentos procederiam exclusivamente

da natureza humana de Cristo.81

Tal definição implicava diretamente no dogma do Concílio de Nicéia de 325 e

também na condição de Maria como mãe de Deus. Uma vez estando as duas naturezas

separadas em Cristo, o pensamento nestoriano via na Virgem a mãe somente da humanidade

de Jesus, não de sua divindade. Assim sendo, deveria ser chamada então de “Mãe de Cristo”,

e não “Mãe de Deus.”82 Os nestorianos tiveram contra si principalmente os bispos da

poderosa sede patriarcal de Alexandria, que pretendiam estender sua influência por todo o

Oriente e alertaram Roma sobre a questão.

A visão nestoriana divergia do pensamento ortodoxo, mesmo entre as sedes

patriarcais do Oriente. Para tentar por um fim na questão, a Igreja reuniu um Concílio

Ecumênico na cidade de Éfeso, em 431, dois anos após a exposição do dogma de Nestório.

Neste Concílio, o nestorianismo foi condenado como heresia e Nestório foi deposto da sede

patriarcal de Constantinopla. Cirilo, bispo de Alexandria, saiu fortalecido dessa disputa.

Entretanto, a doutrina professada pelos alexandrinos era tampouco totalmente

ortodoxa. Ao exaltarem a natureza divina do Cristo, acabaram diminuindo a importância de

sua natureza humana. O resultado foi uma nova heresia que, surgida do combate ao

nestorianismo, acabou se enveredando pelo caminho oposto, reconhecendo em Cristo a

divindade, mas restringindo sua condição de homem, que é condição fundamental para o

dogma da salvação. Essa heresia ficou conhecida como Monofisismo.

Eutiques, abade de um mosteiro em Constantinopla, justificava o monofisismo,

definindo que “[...] depois da união das duas naturezas divina e humana em Cristo, esta foi

absorvida por aquela, de maneira que nessa altura só se pode falar de uma natureza, ou seja, a

81 DICTIONNAIRE DE THÉOLOGIE CATHOLIQUE. Contenant l’exposé des doctrines de la théologie catholique. Leus preuves e leur histoire. Paris: Librairie Letouzey et Ané, 1922. Verbete Nestorius. p. 150. 82 JEDIN, Hubert. Op. cit p. 24.

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divina”.83 O calor das discussões das quais surgiu o monofisismo, em resposta ao

nestorianismo, provocaram certos excessos nas suas interpretações, de modo que esse

pensamento foi definido por alguns teólogos e historiadores como a doutrina da natureza

mista ou dupla, constituída pela mistura e alteração recíproca da divindade e da humanidade

de Cristo.84 Cumpre esclarecer que o pensamento monofisista não pregava uma mistura das

duas naturezas de Cristo, mas sim a sobreposição da divina sobre a humana.

O monofisismo não se posiciona contrário ao dogma da Encarnação, mas o

exprime de um modo particular. A base dessa doutrina está na significação atribuída a palavra

grega φισις (do latim natura) por Nestório, Apolinário e Teodoro de Antioquia. Para estes, o

termo seria como um sinônimo de hipóstase ou prôsopon, uma definição que não nega a

existência real da natureza humana, mas a mantém sob dependência do Verbo, que age nela e

através dela de uma forma humana. Segundo a teologia monofisista, no Cristo, a palavra

φισις guarda sempre seu sentido concreto, sendo assim relacionada ao indivíduo. É a

hipóstase do Verbo que, sem alterações, se reveste de humanidade. Essa afirmação pode

conduzir à idéia de que a natureza humana em Cristo fosse autômata, totalmente subordinada

à divina, sem liberdade ou atividades que a caracterizassem verdadeiramente como

humanas.85

O que essa doutrina apresenta de heterodoxa é a crença de que não existiria em

Cristo nada de sua humanidade após a união das duas naturezas, que em sua individualidade

haveria apenas a sua natureza divina. Como poderiam os monofisitas considerar que em

Cristo houvesse duas φισεις, uma vez que à sua humanidade não fosse atribuída uma

natureza, um sujeito independente? Isso contraria o dogma ortodoxo, segundo o qual Cristo

teria mantido a integridade das duas naturezas após a união destas. Por este dogma, nem a 83 Ibid. p. 29. 84 DICTIONNAIRE DE THÉOLOGIE CATHOLIQUE. Contenant l’exposé des doctrines de la théologie catholique. Leus preuves e leur histoire. Paris: Librairie Letouzey et Ané, 1922. Verbete Monophysisme Sévérien. p. 2227. 85 Ibid. p. 2217-2218.

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divindade se perdeu na Encarnação, nem a humanidade deixou a qualidade tangível de sua

natureza. Uma passagem bíblica utilizada pelos ortodoxos para comprovar o caráter humano

presente em Jesus pode ser encontrada na carta de Paulo aos Hebreus, onde diz: “E por isso

convinha que Ele se tornasse em tudo semelhante aos seus irmãos [...]”86 A expressão em tudo

do trecho acima nada exclui da natureza humana, que seria como a de qualquer outra pessoa.

Numa tentativa de complementar as definições do I Concílio Ecumênico de

Nicéia, de 325, e ainda fixar as proposições da ortodoxia cristã frente aos debates em relação

às naturezas humana e divina em Cristo, um Concílio foi reunido, na cidade de Calcedônia,

em 451. Convocado pelo imperador Teodósio II, Marciano (450-457), esse concílio definiu

uma profissão de fé a respeito da natureza de Cristo, combatendo tanto nestorianos quanto

monofisistas. Afirmava que em Cristo existiam as duas naturezas, a divina e a humana,

inconfundíveis e inseparáveis, numa única hipóstase, sem que união anule a diferença. Esse

novo Concílio definiu que:

[...] o Filho e Nosso Senhor Jesus Cristo são um só e o mesmo, que Ele é perfeito na divindade e perfeito na humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, com uma alma racional e um corpo, consubstancial com o Pai segundo a sua divindade e consubstancial conosco pela sua humanidade [...].87

Essa definição ataca o monofisismo, ao afirmar ter Cristo duas naturezas. A

definição que ataca o nestorianismo se encontra no seguinte trecho: “[...] nascido do Pai antes

de todos os séculos segundo a Sua divindade [...]”88, onde se afirma que Cristo não nasceu

apenas como homem sendo só mais tarde habitado pelo Verbo, como afirmava Nestório, mas

que já nasceu divino. Assim, consolidava-se também a Maria o título de Theotokos (Mãe de

Deus) e não mãe apenas da humanidade do Cristo. “[...] nascido da Virgem Maria, Mãe de

86 BÍBLIA SAGRADA, N.T. Hebreus, 2:17. São Paulo, Edições Loyola, 1995. 87 J. D. Mansi, Sacrorum Conciliolum nova et amplissima collectio, t. VII, Florentiae, 1762, cols. 107, 115 e 118. In: ESPINOSA, Fernanda. Op. cit. p. 59. 88 Ibid.

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Deus nestes últimos dias por causa de nós e da nossa salvação, de acordo com a sua

humanidade”89. Vê-se por esse trecho a importância da condição humana de Cristo para a

salvação.

O texto do Concílio finaliza reafirmando a consubstancialidade do Filho, e a

indivisibilidade de suas duas naturezas, também inconfundíveis:

Um só e o mesmo Cristo, Filho, Senhor Unigênito, em duas naturezas inconfundíveis, imutáveis, indivisíveis, inseparáveis, [...] concorrendo numa só pessoa e hipóstase, não separada ou dividida em duas pessoas, mas um só e o mesmo Filho Unigênito, Deus Verbo, o Senhor Jesus Cristo, como desde o princípio os profetas anunciaram a seu respeito e como Jesus Cristo, ele mesmo, nos ensinou, e como credo dos Padres nos transmitiu.90

Embora condenado pela Igreja, o pensamento monofisista continuou vivo entre os

cristãos do Oriente durante os três séculos seguintes, principalmente no Egito e na Síria, duas

das mais ricas províncias de Bizâncio. O fato de haver essa falta de unidade no pensamento

cristão, verificada entre a capital e as províncias orientais do Império, foi possivelmente um

fator facilitador para a ocupação desses territórios pelos árabes, no século VII. A forma como

essas idéias reapareceram durante a Querela demonstram o poder que elas ainda possuíam

durante as disputas em torno do ícone.

Em contrapartida, a Igreja de Constantinopla visou manter no Oriente, através de

sínodos e concílios, um pensamento cristão uniforme, sem divergências internas. Para isso, os

bispos de Constantinopla procuravam confirmar sua superioridade diante das demais sedes

episcopais do Oriente (Alexandria, Antioquia e Jerusalém). Ademais, a Igreja de

Constantinopla estava diretamente atrelada ao governo do Estado, não apenas por questões

geográficas, mas pela própria natureza do poder imperial bizantino, que unia num único

soberano atribuições de uma liderança religiosa e política.

89 Ibid. Grifo nosso. 90 Ibid.

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1.3 A natureza autocrática do poder imperial

As motivações que são apresentadas pela historiografia para o desencadeamento

da Querela convergem para dois campos de explicações. O primeiro, como vimos, é

teológico, gira em torno da legitimidade de representação de Cristo numa pintura e,

posteriormente, o culto dessa representação.91 O segundo relaciona-se com questões políticas

do Império, referentes à defesa do território bizantino, o controle do governo sobre a estrutura

monástica e até mesmo as convicções religiosas de alguns imperadores.92 Essa pesquisa se

guia pela hipótese de os acontecimentos desencadeados na Querela Iconoclasta estarem

relacionados com a teologia ortodoxa da Igreja de Constantinopla, porém sem descuidarmos

de suas ligações com a política imperial bizantina.93

Como a autoridade imperial em Bizâncio reunia as esferas de poder espiritual e

temporal, a figura do imperador tornara-se uma peça fundamental para a compreensão da

iconoclastia. Isso se devia à crença de que a figura do imperador seria uma representação

direta da vontade divina sobre um império cristão. Sendo um vice-rei de Deus na terra, as

determinações imperiais deveriam ser encaradas como ordens divinas.

A tradição de que Bizâncio seria um Império cristão, um reflexo na terra do reino

celestial, remete a Constantino, o Grande (272 – 337) e trazia consigo a idéia de um governo

que reuniria em torno de si um tipo de autoridade ao mesmo tempo política e religiosa. Sobre

esse ponto, comenta Michael Angold:

No palácio imperial, ele era a personificação da majestade terrena, a encarnação da lei, o herdeiro do Imperador Augusto, mas também o legatário

91 Sobre este tema se dedicaram alguns historiadores, entre eles Hans Belting, Alain Besançon, David Freedberg. 92 James Hall, Franz G. Maier, Paul Lemerle, Georg Ostrogorsky, além do já citado Hans Belting analisam a Querela interligando seus acontecimentos com a política do Império e as convicções pessoais dos imperadores iconoclastas. 93 Nesse ponto, concordamos com alguns autores que abordam tanto as questões relacionadas às questões teológicas quanto as ligadas à política do governo bizantino para a explicação da iconoclastia, como Georg Ostrogorsky, Franz Georg Maier, Paul Lemerle e Michael Angold.

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da conversão de Constantinopla ao cristianismo. Era aí que se via com mais obviedade o imperador como vice-regente do Deus cristão na terra.94

Dessa forma, percebe-se que o soberano desse Estado possuía uma autoridade de

natureza espiritual e temporal. É exatamente sobre esse modelo de governo que pretendemos

discorrer nas páginas seguintes. Isso porque a Querela Iconoclasta se desenvolveu a partir dos

editos publicados, sínodos e concílios convocados pela autoridade imperial, que fez ainda

prevalecer, acima da autoridade do Patriarca de Constantinopla ou do Papa, a sua posição

nesses debates.

Entretanto, questiona-se aqui uma definição que muitas vezes é atribuída a esse

tipo de poder, sobre o conceito de cesaropapismo, que consideramos reducionista. Nesse tipo

de poder, o governo de um determinado Estado se sobrepõe aos domínios da autoridade

religiosa, exercendo sua autoridade também sobre a estrutura eclesiástica. Aqui, “a soberania

temporal incorpora o domínio da religião [...].”95 É um fenômeno típico de sociedades cristãs,

onde o poder político submete o da Igreja.

O modelo de poder do imperador bizantino não deriva apenas da união das

estruturas de poder civil e eclesiástica, como se pode supor à primeira vista, mas se constitui

num tipo de união muito mais complexa. Gilbert Dagron,96 cuja obra analisa detalhadamente

esse modelo de governo, define-o como autocrático, demonstrando que existiu em torno da

autoridade imperial uma relação muito mais sutil entre as esferas do temporal e do espiritual

do que uma simples fusão das instituições do Estado e da Igreja. Para Dagron, colocar “nessas

duas palavras [Igreja e Estado] todas as relações mútuas e os difíceis cruzamentos que podem

envolver o imperador bizantino com a hierarquia eclesiástica é evidentemente uma falta de

94 ANGOLD, Michael. Bizâncio. A ponte da Antiguidade para a Idade Média. Rio de Janeiro: Imago, 2002. p. 25. 95 TAVEIRA, Celso. O modelo político da autocracia bizantina; fundamentos ideológicos e significado histórico. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2002. Tese de doutorado. p. 293. 96 DAGRON, Gilbert. 1996 Op. cit.

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método”.97 Trata-se de um sacerdócio na estrutura de poder, que se manifestaria através da

figura do imperador, “em termos de poder e não de instituição [...]”.98 Assim, na autocracia

bizantina, a relação entre o espiritual e o temporal é muito forte, indissociável. Um estudo

simplificado, que aborde o poder imperial sobre a ótica apenas de uma união entre as

instituições da Igreja e do Estado bizantino, deixaria escapar o que esse modelo tem de mais

original e singular, a saber, a fusão numa só autoridade dos poderes sacerdotais e imperiais.

Figura 5: Placa fragmentada com Cristo coroando o imperador Constantino VII. Século XI.

97 Citado por TAVEIRA, Celso. Op. cit. p. 301. 98 Ibid. p. 305.

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A importância do estudo do modelo autocrático do governo imperial bizantino

para nosso trabalho está no fato de os rumos da Querela Iconoclasta terem sido sempre

determinados pela autoridade imperial. Ademais, a primeira referência conhecida pela

historiografia de um imperador definindo sua própria autoridade a partir da união dos poderes

de um imperador e de um sacerdote está numa carta de Leão III, datada de 730, ao Papa

Gregório II.

No Oriente, havia o desejo de uma sincronia ideal entre o temporal e o espiritual.

Por isso, Leão III pode ter sido um imperador religioso, a ponto de se proclamar também

sacerdote em Bizâncio. Porém, não pode ser descartada a possibilidade de ele ter assim

definido a natureza de seu poder perante o papado com o objetivo de expandir seu controle

sobre a Igreja de Constantinopla ou até mesmo a de Roma.

Têm-se referências às habilidades militares do imperado, que inclusive o fizeram

chegar ao poder. Porém, não podemos dizer o mesmo a respeito de suas convicções religiosas.

Dessa forma, Mesmo assim, não tem sentido qualquer tentativa de análise que separe essas

duas esferas, a temporal e a espiritual, visto que elas estariam unidas formando como que um

único corpo. Essa forma de governo seria devedora muito mais dos modelos de reis-

sacerdotes do Antigo Testamento do que o tipo desenvolvido no Império Romano ou nas

monarquias helenísticas.99 Na própria legislação oficial bizantina, há uma referência aos reis-

sacerdotes do Antigo Testamento. A Écloga, o código de leis elaborado por Leão III,

provavelmente no ano de 726, baseado no código de Justiniano, já se referia a Isaías e

Salomão em seus preâmbulos.100

Gilbert Dagron buscou nas obras compiladas pelo diácono Agepetos (século VI) e

por Basílio I (século IX) um conceito de “poder legítimo” (εννοµοσ αρχη) para o imperador

99 TAVEIRA, Celso. Op. cit. p. 305. 100 DAGRON, Gilbert. 1996 Op. cit p. 36.

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bizantino.101 E busca ainda no Velho Testamento referências ao modelo de poder onde há um

sacerdócio real e não apenas litúrgico. Sobre a complexa noção de sacerdócio real, recorremos

a Celso Taveira, que assim se refere a ela:

Mais que institucional, a natureza do poder se revela ali [nos rituais cristãos da corte bizantina] como algo simbólico que estabelece os limites e as aproximações, marcando uma distância e ao mesmo tempo unindo basileis e sacerdotes. Mais que legitimidade constitucional, é legitimidade veterotestamentária e cristã.102

A respeito do poder imperial bizantino ser supostamente legitimado por Deus, um

documento nos chama a atenção. Trata-se de uma carta escrita pela imperatriz destronada

Irene, a Ateniense, a seu sucessor, o novo imperador Nicéforo, em 802. Nele, Irene afirma

reconhecer a autoridade divina do novo soberano, e atribui a sua queda do poder a uma

punição de Deus por seus supostos pecados:

Es Dios, ciertamente, quien me ha elevado al trono, y atribuyo mi caída solamente a mis pecados. Que el nombre del Señor sea bendito, cualquiera que sea. Atribuyo a Dios tu elevación al Imperio, porque nada puede alzarse sin su voluntad. Es por Dios que reinan los emperadores. Te considero, pues, como el elegido de Dios, y me inclino delante tuyo como delante de un emperador.103

Nesse texto percebe-se, nas palavras da própria imperatriz que teve o poder

usurpado, o reconhecimento de que a subida de Nicéforo ao trono imperial estaria diretamente

relacionada a uma vontade divina, manifestação que teria outrora legitimado o poder por ela

101 DAGRON, Gilbert. Lawful Society and Legitimate Power: Εννοµοσ πολιτεια, εννοµοσ αρχη. In: LAIOU, Angeliki E., SIMON, Dieter. Law and Society in Byzantium: Ninth-Twelfth Centuries. Washington D.C.: Dumbarton Oaks, 1992. pp. 27-51. 102 TAVEIRA, Celso. Op. cit. p. 306. 103 HERRERA H., y MARÍN, J. Op. cit. “É Deus, certamente, quem me elevou ao trono, e atribuo minha queda somente a meus pecados. Que o nome do Senhor seja bendito, qualquer que seja. Atribuo a Deus tua elevação ao Império, porque nada pode erguer-se sem tua vontade. É por Deus que reinam os imperadores. Te considero, pois, como eleito por Deus, e me inclino diante de ti como diante de um imperador.” (Tradução nossa).

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exercido por mais de vinte anos.104 Durante a Querela Iconoclasta, a crença de que o

imperador fosse um representante direto da vontade divina na terra, poderia não ser apenas

um recurso de retórica para uma legitimação desse poder diante da população. Ao contrário, a

própria imperatriz destronada Irene parece participar da crença num modelo divino de

governo.

Essa afirmativa poderia ser reforçada pelo fato de a ex-imperatriz Irene já não

estar mais ocupando o trono de Constantinopla, mas apenas manifestar um reconhecimento da

vontade de Deus, tanto no que diz respeito à sua queda, quanto à ascensão do novo imperador.

Mesmo sendo impossível penetrar objetivamente nos sentimentos e pensamentos de Irene,

esta carta permite supor que, em alguns momentos, a crença num poder imperial guiado

diretamente pela vontade de Deus também fora compartilhada por aqueles que ocupavam o

trono bizantino.

Supostas manifestações de aprovação ou reprovação divina eram registradas

diante de algumas atitudes do soberano. Por exemplo, a longa duração do reinado de Leão III,

teria sido percebida pelos seus contemporâneos como uma bênção merecida pelas atitudes

iconoclastas do imperador. Sobre esse fato, cita Lowden:

“[...] God might be punishing the Byzantines for misusing religious images and falling into idolatry. The solution appeared simple: to ban the use of the religious images in Byzantium and hope for divine approval, which would become apparent through political and military success. Leo’s reign of twenty-five years – longer than that of his five predecessors combined – could thus be interpreted as an indication of God’s satisfaction with Iconoclasm.105

104 Considerando-se o tempo que a imperatriz Irene esteve no trono como regente e, posteriormente, como soberana bizantina, computamos que seu governo se estendeu do ano 780 até 802, quando teve o poder usurpado por Nicéforo. 105 LOWDEN, John. Op. cit. p. 155. “[...] Deus poderia estar punindo os Bizantinos por fazer mau uso de imagens religiosas e caindo na idolatria. A solução parecia simples: banir o uso de imagens em Bizâncio e esperar pela aprovação divina, que se tornaria visível através de sucessos políticos e militares. O reinado de vinte e cinco anos de Leão – mais que os seus cinco predecessores juntos – poderia ser interpretado como uma indicação da satisfação de Deus com o iconoclasmo.” (Tradução nossa).

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Nos momentos de desentendimento entre o imperador e o patriarca de

Constantinopla verificou-se uma supremacia do poder imperial sobre o clerical, sendo a

situação deste último diretamente determinada pelo primeiro. Enquanto detentor de um poder

de natureza também religiosa, percebe-se uma constante sobreposição do governo bizantino

nas questões eclesiásticas, como por exemplo, na convocação de concílios – tradição iniciada

com Constantino, o Grande, em 325 – nomeação e destituição de patriarcas e, mais ainda, na

interferência direta sobre a formulação de dogmas cristãos.

Assim, o imperador mantinha seu controle também sobre a estrutura de poder

eclesiástica de Constantinopla. Por exemplo, quando Leão III publicou seu edito de destruição

de ícones em 730, Germano (715–730), que reprovou esse gesto juntamente com o papa

Gregório II (715-731), acabou destituído do cargo pelo imperador e foi substituído pelo

iconoclasta Anastácio. Portanto, no período da Querela, era imprescindível ao patriarca

comungar das mesmas idéias do imperador, pois seu próprio posto à frente da Igreja de

Constantinopla estava sujeito a aprovação do governo bizantino.

Durante toda a Querela, embora não houvesse, nem mesmo no clero secular, uma

outra autoridade que fosse superior à do imperador, seu poder era legitimado pela sujeição do

imperador a toda uma tradição das leis. Em outras palavras, para que o soberano bizantino

fosse reconhecido pela população e tivesse sua autoridade legitimada como um representante

do poder divino, tornava-se necessária a sua “conversão” e até mesmo uma submissão a toda

uma tradição de governo absolutista106 muito anterior a sua pessoa.

Apesar das fontes não permitirem uma análise da recepção das decisões durante a

Querela por parte da população leiga bizantina, uma questão pode ser aqui levantada. Sendo o

culto dos ícones uma antiga tradição da Igreja cristã, como pode-se supor que o iconoclasmo,

106 Franz Georg Maier afirma que o governo bizantino era “absolutista e centralista”. Ver MAIER, Franz Georg. A. Op. cit p. 10.

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uma quebra nessa tradição, tenha sido visto pela sociedade cristã como uma atitude legítima

de Leão III?

Existia uma brecha em toda essa tradição para a atuação dos imperadores

enquanto legisladores. Gilbert Dagron chegou a questionar a idéia de que toda a fonte da lei

bizantina se baseava somente nas tradições e nas leis do Estado, denominadas

εννοµοσ πολιτεια. Ele chama a atenção para criação de leis por alguns imperadores,

resultantes das necessidades de um momento específico em que se percebe os traços da

personalidade do legislador.107 Assim, cada lei deriva sua autoridade do imperador que a

promulga e da época de sua promulgação.108 Embora devessem se submeter a um código de

leis já estipulado e legitimado antes de sua subida ao trono, os imperadores bizantinos tinham

um certo campo de liberdade de atuação (como no caso de Justiniano e Leão III) dependendo,

é claro, das necessidades do momento.

No caso de Leão III, há o já citado documento redigido pelo imperador

justificando a sua autoridade para intervir em assuntos religiosos, como a proibição (726) e

destruição (730) de ícones, sem convocar um concílio ecumênico, como fora sugerido pelo

papa. Leão III convocou um concílio imperial (e não eclesiástico), reunido em Constantinopla

no ano de 730, para legitimar seu decreto. Infelizmente, os textos dos decretos iconoclastas de

726 e 730 foram destruídos, sendo hoje conhecidos apenas através de suas apropriações nos

registros iconófilos, como o Concílio de Nicéia II (787), os escritos do patriarca Nicéforo

(815) e o Synodikon da Ortodoxia (843).

Assim, nossa análise em relação às decisões tomadas pelos imperadores

iconoclastas e iconófilos, enquanto condutores dos rumos oficiais da Querela, considerará

tanto o aspecto político quanto o religioso enquanto formadores de uma única e mesma esfera

107 Cf. DAGRON, Gilbert. 1992. Op. cit p. 37. 108 Ver Ibid. p. 38.. “each law derived its authority from the emperor who promulgated it and from the date of its promulgation” (Tradução nossa).

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de poder. Não constitui nosso interesse optar por um desses dois campos, e sim manter

sempre em mente a fusão entre o temporal e espiritual no poder autocrático do imperador

bizantino, se sobrepondo inclusive à estrutura de poder eclesiástica.

1.4 Iconoclastia, defesa das fronteiras e monaquismo

Além de questões religiosas, a Querela Iconoclasta foi também motivada por

outros dois pontos não diretamente ligados a discussões teológicas: a política externa imperial

e o desejo de controle do autocrata sobre o clero regular.

Até a primeira metade do século VIII, houve por parte de Bizâncio a necessidade

de se defender do processo de expansão do Império Árabe. Em se tratando de um Império

cristão, qualquer ameaça de invasão e conquista por parte de inimigos externos,

principalmente os muçulmanos, poderia ser interpretada em Bizâncio como um castigo

divino, punindo a população cristã por algum tipo de desvio em seu comportamento religioso.

A questão não era o Deus cristão privilegiar o Islamismo nesse tipo de confronto, mas sim

uma forma de se perceber uma manifestação dessa punição divina, por exemplo, não

auxiliando os soldados cristãos nesse confronto, abandonando-os à própria sorte numa disputa

com um inimigo infiel. No caso da Querela, esse castigo divino se daria em punição à suposta

idolatria praticada pelos fiéis em relação aos ícones.

Além disso, o principal inimigo estrangeiro dos bizantinos durante a primeira fase

da Querela (726-787) eram os árabes. Após a morte de Maomé, em 632, os muçulmanos

iniciaram um processo de expansão e grandes conquistas territoriais, motivados não só por

questões religiosas, mas também econômicas, como os ganhos com pilhagens e arrecadação

de impostos advindos desses territórios. A Síria, a Palestina e o Egito, que pertenciam ao

Império Bizantino e pareciam, segundo Bernard Lewis, culturalmente distantes dos gregos,

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foram conquistados ainda no século VII. O corte de subsídios do governo bizantino à região e

a possibilidade de culto cristão monofisista em território islâmico, mediante pagamento de

impostos, pode ter diluído a resistência a essa conquista, fazendo com que algumas tribos da

região tomassem partido pelos invasores.109 Ainda por volta do ano 670, os muçulmanos

tentaram invadir também a cidade de Constantinopla, voltando a ataca-la no primeiro ano do

governo de Leão III, porém, fracassando em ambas as tentativas. Esta, aliás, foi a primeira

grande vitória do novo imperador, demonstrando, após violentas sucessões no trono bizantino,

sua força militar frente a um poderoso inimigo.

Entretanto, os árabes continuaram cercando e ocupando outras regiões do Império,

localizadas na Ásia Menor. Dessa forma, a preocupação com a ameaça de um ataque

muçulmano ao território bizantino tornou-se constante durante a primeira metade do século

VIII. Durante todo o tempo em que Leão III esteve à frente do poder imperial, os árabes

invadiram alguns territórios bizantinos na Ásia Menor, ocupando Cesaréia e assediando

Nicéia, sendo derrotada definitivamente somente no ano 740, nas proximidades da Amória.110

É sabido também que, além das armas, os árabes levaram para o Império

Bizantino a cultura de uma nova religião monoteísta, de tradição contrária ao uso de

representações pictóricas ou esculturais em seu culto. Os muçulmanos têm a imagem religiosa

como algo inconcebível, devido à sua noção metafísica de Deus.111 É essa concepção de Deus

que impede o muçulmano de qualquer tentativa de representação pictórica em sua religião,

apesar de o Corão não apresentar uma proibição clara de produção e culto de imagens. Karen

Armstrong afirma ainda que os muçulmanos não se curvariam a qualquer outro sistema

humano, mas somente a seu Deus.112

109 LEWIS, Bernard, Os Árabes na História. Lisboa: Editorial Estampa, 1996. pp. 60-67. 110 Cf OSTROGORSKY, Georg. Op. cit. pp. 166-167. 111 Cf. BESANÇON, Alain. Op. cit. p. 135. 112 ARMSTRONG, Karen. O Islão. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 59.

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Também o Judaísmo possui uma tradição contrária às representações pictóricas de

divindades. Enquanto o Corão é suficientemente transcendental para omitir uma menção a

qualquer tipo de representação, a Torá judaica traz explicitamente essa proibição, como pode

ser percebido pela citação do livro do Êxodo: “Não farás para ti escultura, nem figura alguma

do que está em cima nos céus, ou embaixo, sobre a terra, ou nas águas, debaixo da terra.”113

Embora não seja possível afirmar, a partir das fontes, que o iconoclasmo bizantino

tenha nascido de uma suposta apropriação de pensamentos islâmicos ou judeus, seguimos

nesse ponto o que nos dizem Alain Ducellier, Michel Kaplan e Bernadette Martin:

O iconoclasmo traduz a influência oriental de religião de monoteísmo intransigente – judaísmo, islão e cristianismo monofisita. Não que a argumentação teológica dos iconoclastas tenha nascido de alguma destas correntes; mas é essencialmente a sensibilidade religiosa do Oriente que inspira o iconoclasmo, a vontade de depurar a religião cristã do que parece uma superstição próxima do paganismo – a quase idolatria de que as imagens tinham se tornado objeto.114

Ducellier, como visto, afirma ainda que o iconoclasmo teria sido uma forma de

manter a coesão interna em Bizâncio para enfrentar o inimigo estrangeiro.115 Acreditamos

ainda que a própria origem do imperador Leão III, o Isáurico (natural da Isáuria, uma

província localizada na parte oriental no Império, onde o iconoclasmo conseguiu maior

número de seguidores e a proximidade com os muçulmanos deveria ser mais intenso)116,

possa ter propiciado a influência da religiosidade islâmica na proposta iconoclasta. Nesse

ponto, concordamos com André Grabar, John Lowden e Michel Angold, embora não haja

fonte alguma que nos permita confirmar essa relação direta.

Nesse ponto, ressalta-se que a maior parte do exército bizantino era recrutada

entre a população das províncias mais orientais, onde as idéias iconoclastas encontravam

113 BÍBLIA SAGRADA, A.T. Êxodo, 20:4. São Paulo, Edições Loyola, 1995. 114 DUCELLIER, Alain; KAPLAN, Michel; MARTÍN, Bernadette. Op. cit p. 123. 115 DUCELLIER, Alain. Op. cit p. 60. 116 Cf. LEMERLE, PAUL Op. cit pp. 76-77.

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maior número de adeptos. Já que o próprio Leão III provinha dessa região, é possível que ele

já trouxesse esses pensamentos intrínsecos em sua educação.117 Dessa forma, a imposição da

iconoclastia aliava os pensamentos do imperador e da maioria dos soldados do exército, de

quem era imprescindível o apoio, devido às constantes conflitos nas regiões fronteiriças de

Bizâncio com os árabes muçulmanos.

Há ainda uma outra questão importante por trás da Querela Iconoclasta, não de

ordem exclusivamente religiosa, mas de dimensões social, política e mesmo econômica: a

utilização do iconoclasmo pelos imperadores bizantinos como forma de confiscar as

propriedades dos mosteiros. Essa relação entre a destruição de ícones e a perseguição aos

monges já tinha sido denunciada por João Damasceno, em 730: “And now, holy Germanus,

shining by word and example, has been punished and become an exile, and many more

bishops and fathers, whose names are unknown to us. Is not this persecution?”118

Porém, essa perseguição ficou ainda mais evidente após o Sínodo de Hieria, em

754. O crescimento e enriquecimento dos mosteiros bizantinos, isentos de impostos, era

perigoso aos olhos do Império.119 A forma como o imperador Constantino V estendeu sua

política iconoclasta também contra as representações e relíquias de Maria e dos santos, sobre

as quais as argumentações cristológicas utilizadas pelos iconoclastas não procediam, permite

supor que a destruição dos ícones bizantinos parecia ser ainda uma foram eficaz de ataque aos

mosteiros. A Querela Iconoclasta se apresentava, assim, como uma oportunidade de o poder

imperial enfraquecer os mosteiros e controlar seu crescimento.

117 RUNCIMAN, Steven. A teocracia bizantina. Tradução de Heloísa Toller Gomes. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p. 60. 118 St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images In: Website www.fordham.edu. Medieval Sourcebook. Acessado em 25/05/2005. “E agora santo Germano, brilhante pela palavra e exemplo, tem sido punido e foi exilado, e muito mais bispos e padres, cujos nomes não conhecemos. Isso não é perseguição?” (Tradução nossa). 119 Sobre o poderio da estrutura monacal bizantina no período da Querela Iconoclasta, ver DIEHL, Charles. Op. cit pp. 95-101, LEMERLE, PAUL. Op. cit pp. 77-79 e ANGOLD, Michel. Op. cit pp.75-78.

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Os mosteiros representavam grandes centros, não apenas de riqueza material, mas

também de influência sobre a sociedade cristã bizantina. Graças à quantidade de ícones e

relíquias de santos que possuíam, os mosteiros tornavam-se privilegiados locais de

peregrinação de fiéis. Consequentemente, acabavam recebendo também generosas esmolas,

ofertas dos peregrinos e doações de grandes extensões de terra.

Todo esse poderio econômico e o privilégio frente ao Estado de ser isento de

pagamento de impostos fizeram com que essas instituições religiosas possuíssem uma grande

quantidade de bens, expandindo suas propriedades pelo território imperial. Pela grandeza e

pelo poder de atração exercido por esses mosteiros sobre a sociedade cristã, parte dos jovens

em condições de servir o exército teria preferido seguir a vida monástica. Além de absorver

uma potencial força militar, os mosteiros retiravam também para a vida religiosa braços de

trabalho do campo, que deixaram de render ao Império uma arrecadação ainda maior em

impostos, visto que os monges gozavam de isenção fiscal.120

Dessa forma, o processo de destruição de ícones cristãos seria como uma forma de

o poder autocrático bizantino se sobrepor a essa estrutura religiosa, atacando-a diretamente

sobre um dos pilares de sua força: o culto aos ícones e relíquias de santos. Por verem nos

monges uma possível ameaça ao seu poder, os imperadores orientais desse período

acreditavam que o crescimento social e econômico dos mosteiros deveria ser contido.

No período do governo de Constantino V, em especial a partir do sínodo de Hieria

(754), a perseguição e o exílio de monges tornaram-se constantes em Bizâncio. Nessa época,

mosteiros foram fechados ou transformados em quartéis, casas de banho ou edifícios públicos,

e suas imensas propriedades rurais passaram para o controle imperial.121 Além do confisco de

bens, monges e freiras foram ainda submetidos a humilhações públicas no hipódromo.122

120 DIEHL, Charles. Op. cit p. 98. 121 OSTROGORSKY, Georg. Op. cit p. 183. 122 ANGOLD, Michel. Op. cit p. 77.

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Nesse período de intensas perseguições, muitos monges ainda foram mutilados e mortos.

Consequentemente, muitos monges emigraram para o sul da Península Itálica, estabelecendo

ali novos mosteiros e escolas.

Percebe-se assim que as causas e conseqüências da iconoclastia são muito mais

complexas do que o já intrincado debate cristológico. Este ganhou um teor muito mais

elaborado quando foi travado em torno do ícone, objeto de uma longa tradição, envolvendo

desde sua criação pelo iconógrafo até o culto pelo fiel.

Os rumos tomados pelas discussões, decididas em Sínodos e Concílios, eram

sempre comandados pela figura do imperador, que gozava do poder autocrático que, durante o

período da Querela, demonstrou sua superioridade frente a Igreja em questões administrativas

e religiosas. 123 Disso resulta que a questão iconoclasta não se atrelava unicamente ao campo

dos debates iconológicos (como a possibilidade de se representar Cristo numa tela ou o tipo de

culto que deve ser rendido a essa representação), mas se transformava numa questão de

Estado, de defesa da soberania do poder autocrático e dos territórios bizantinos.

O fato de o iconoclasmo servir, mesmo que indiretamente, como um meio de o

poder autocrático se sobrepor à estrutura monástica bizantina, enfraquecendo-a em uma de

suas bases, fez com que os monges se tornassem durante a Querela os principais defensores do

culto dos ícones. Entre estes iconófilos, dois nomes se destacaram: na primeira fase da

Querela, João Damasceno (675 –749) e na segunda, Teodoro Studita (759–826). Nos

dedicaremos à análise de seus textos nos capítulos seguintes.

123 Essa superioridade do poder imperial sobre o patriarcal em Constantinopla não foi uma constante em toda o período de existência de Bizâncio, havendo momentos em que o patriarca se sobrepunha ao imperador. Para tanto, ver DIEHL, Charles. Op. cit pp. 92-95.

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CAPÍTULO II:

A PRIMEIRA FASE DA ICONOCLASTIA – 726-787 : ORIGENS,

ARGUMENTOS TEOLÓGICOS E CONFLITOS

Os debates em torno da criação e culto dos ícones cristãos no Império Bizantino

se iniciaram com um edito promulgado pelo imperador Leão III (717–741) em 726 e se

estenderam até o ano de 787, quando o Concílio Ecumênico de Nicéia II pôs um fim

provisório na questão.

O culto de imagens é um tema que suscita divergências desde os primeiros

séculos do Cristianismo. O que torna a Querela Iconoclasta bizantina um caso especial, que

mereça nossa atenção nessa pesquisa, é que as discussões em torno da licitude de culto dos

ícones tomaram ali proporções até então não alcançadas. Isso tanto pelo teor de violência

algumas vezes aplicada contra os adversários da iconoclastia, quanto pela estreita relação da

Querela com questões não puramente religiosas, como por exemplo, o desejo do poder

imperial de conter o crescimento dos mosteiros bizantinos.

Na primeira parte desse capítulo, o objetivo entender como e por que a política de

destruição de ícones teria encontrado na Constantinopla da primeira metade do século VIII

um terreno fértil para sua implantação. Busca-se ainda as possíveis motivações que teriam

levado o imperador bizantino Leão III a dar início a essa política em 726, e algumas das

conseqüências imediatas dessa atitude na vida do Império e nas suas relações com as Igrejas

de Roma e de Constantinopla.

Salientamos que, mesmo a iconoclastia tendo se tornado a política oficial do

Império Bizantino a partir de Leão III, os defensores dos ícones se fizeram presentes desde o

início da Querela. A segunda parte desse capítulo, analisa a crítica do Patriarca Germano

(715-730) ao iconoclasmo, e sobretudo os argumentos do monge João Damasceno (675-749)

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em favor dos ícones. Estes vieram a servir de base para o posicionamento oficial da Igreja no

Concílio de Nicéia II e, posteriormente, no Synodikon da Ortodoxia, em Constantinopla, no

ano 843.

Na terceira parte, será analisado como o filho e sucessor de Leão III, Constantino

V (741–775), conferiu à iconoclastia um teor mais teológico e dogmático a partir do sínodo

reunido por ele em Hieria, em 754. Aqui, objetiva-se demonstrar como a partir desse sínodo a

iconoclastia pode ter servido para que o poder imperial intensificasse sua perseguição ao clero

regular bizantino, numa tentativa de enfraquecer os mosteiros, uma vez que esses tinham nos

ícones e relíquias de santos suas principais fontes de glória e riqueza. Enfraquecer os

mosteiros poderia significar diminuir o poder de influência de uma estrutura religiosa que,

muitas vezes, rivalizava com a autoridade do governo imperial.

O último tópico desse capítulo trata da chegada ao poder do filho de Constantino

V, Leão IV. Seu governo, que durou apenas cinco anos, significou um momento de transição

na Querela, que passou das formas mais extremadas de imposição da iconoclastia a um

abrandamento das perseguições aos iconófilos. Foi também nesse período que surgiu de Irene,

esposa de Leão IV, a imperatriz regente de Bizâncio que convocou o Concílio Ecumênico de

Nicéia, em 787, que condenou a destruição de ícones.

As principais fontes para a elaboração desse capítulo II foram os textos escritos

em defesa dos ícones, fundamentando teologicamente sua existência e seu culto pelos fiéis. O

principal documento é o Discurso de João Damasceno, endereçado ao Patriarca de

Constantinopla, Germano, que deveria divulgá-lo à população cristã bizantina. O Patriarca

Germano redigiu uma carta, endereçada ao papa Gregório II (715-731), na qual expressava

sua defesa dos ícones. Outra carta, do próprio papa Gregório II ao imperador Leão III,

defende os ícones contra a política imperial. Os fundamentos da iconofilia coincidem, nos

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textos citados: a diferença entre ícones e representações de deuses pagãos e a Encarnação

como justificativa da criação e do culto de ícones.

Já que os textos originais de teor iconoclasta foram destruídos após a Querela, só

é possível conhecer as definições do sínodo de Hieria que foram reconstituídas no Concílio

de Nicéia II, para fins de refutação. Esse documento permite ter-se acesso à complexa e bem

elaborada teologia iconoclasta, então apresentada pelo imperador Constantino V. Nele há

referências ao Concílio da Calcedônia, onde a Igreja definiu seu dogma a respeito da dupla

natureza de Cristo, a humana e a divina, que acabou sendo reapropriada como argumento

teológico para os iconoclastas procederem à proibição do culto dos ícones e sua destruição.

Como as decisões desse Concílio já foram trabalhadas no capítulo 1, este documento terá aqui

uma importância apenas secundária.

Assim, pretende-se aqui confrontar argumentos pró e contra a produção e culto

dos ícones cristãos nessa primeira fase da Querela Iconoclasta, analisando a complexidade das

justificativas teológicas de cada um dos dois lados. Deve-se também manter sempre a atenção

para o fato de a iconoclastia estar interligada à política interna (como a pretensão dos

imperadores de manter sob seu controle a estrutura eclesiástica de Constantinopla e o

crescimento das riquezas dos mosteiros), e externa (a ameaça de invasão das fronteiras

orientais) do Império Bizantino.

2.1 O início da Querela Iconoclasta com Leão III e os primeiros conflitos

O início da Querela Iconoclasta se deu com o imperador Leão III, o Isáurico, em

726. Na Isáuria, província de onde sua família era natural, o culto de ícones era rejeitado pelos

cristãos. Nessa região da Ásia Menor, a iconoclastia havia chegado ainda no início do século

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VIII. É muito provável que Leão III tenha sido influenciado pelas opiniões dos bispos

iconoclastas dessa região, considerando esse tipo de culto um ato de idolatria124.

Somente quase dez anos após sua chegada ao poder imperial Leão III começou a

política iconoclasta oficial do Estado, promulgando, em 726, o primeiro edito contra os

ícones, proibindo o seu culto e retirando uma imagem de Cristo do Portão Chalke do palácio

imperial, substituindo-a por uma cruz. Embora o texto original tenha sido destruído, o

objetivo de Leão III nesse primeiro momento parece ter sido controlar a proliferação dos

ícones dentro e fora dos templos, mas não decretava sua destruição imediata.125 Ao que

parece, um desastre natural, interpretado pelo imperador como um castigo divino por estarem

os cristãos cultuando ícones, teria sido o estopim para o desencadeamento do iconoclasmo

bizantino.126 Nesse primeiro momento, Leão III teria apenas se pronunciado contrário ao culto

de ícones, numa tentativa de convencer a população bizantina de que essa prática desagradaria

a Deus, acarretando punições divinas ao Império.

A argumentação que embasava as atitudes iconoclastas de Leão III era embasada

em textos do Antigo Testamento, em trechos como o do Êxodo 20: 4, onde Deus proíbe ao

povo eleito a fabricação e culto de imagens. Diz a passagem em questão: “Não farás para ti

escultura nem figura alguma do que está em cima, nos céus, ou embaixo sobre a terra, ou nas

águas embaixo da terra.”127

Em se tratando de um império cristão, era natural supor que qualquer adversidade

natural, política ou militar, fosse considerada, em Bizâncio, como uma manifestação de Deus

em desaprovação a alguma atitude do imperador ou da sociedade cristã. Nesse caso, o fator

motivador seria o culto dos ícones. Assim, essa passagem do Antigo Testamento, dirigida ao 124 KNOWLES, David; OBOLENSKY, Dimitri. A Igreja Bizantina. In: Nova história da Igreja. Vol. II. A Idade Média. Petrópolis, RJ: Vozes, 1974. p. 96. 125 ALBERIGO, Giuseppe. O Segundo Concílio de Nicéia (786/787) ou Sétimo Concílio Ecumênico. In: História dos Concílios Ecumênicos. Tradução de José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 1995. P. 148. 126 Ostrogorsky e Lowden falam de um terremoto, que teria ocorrido em 726, enquanto Angold se refere a uma erupção vulcânica na ilha de Santorini, no Egeu, na mesma data. OSTROGORSKY, Georg. Op. cit p. 171. LOWDEN, John. Op. cit p. 155. ANGOLD, Michael. . p. 70. 127 Ver LOWDEN, John. Op. cit. p. 148.

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povo hebreu, com o intuito de não permitir que eles praticassem um culto idólatra, fora levada

ao pé da letra por Leão III, que o estendeu às representações pictóricas do Cristianismo.

Para que o imperador tivesse completo sucesso na imposição de suas idéias

religiosas, seria interessante contar com o apoio tanto do Patriarca Germano (715-730), de

Constantinopla, quanto do Papa Gregório II (715-731), em Roma. Entretanto, apesar de a

iconoclastia ter sido imposta a todo o território imperial, essa política encontrou resistências

desde os seus primeiros anos, sobretudo com os dois bispos mais importantes da Cristandade.

O Patriarca Germano e o Papa Gregório II oficializaram suas posições contrárias a

essa política. Ambos argumentaram que esse assunto deveria ser tratado num concílio

ecumênico, reunido pela Igreja.128 Germano ainda chegou a escrever uma carta ao Papa

Gregório em favor dos ícones de Cristo, da Virgem e dos santos.

Germano inicia esse texto, escrito provavelmente em 730, com o argumento que

viria a se tornar básico em quase todos os documentos favoráveis ao culto dos ícones do

Cristo: a sua justificativa através do mistério da Encarnação. Diz o discurso a esse respeito:

“we contemplate the figure of the true God made man for our redemption [...], for we

remember with awe his presence in flesh on earth, which happened because of his great

compassion.”129

Para Germano, a Encarnação não legitimaria a criação e culto somente dos ícones

do Cristo, mas também da Virgem Maria, por ser ela sua mãe. Diz ele em seu discurso:

But when we make a likeness of her who gave him birth, our pure and ever virginal mistress, the Theotokos, a likeness beyond all our imagining, we think of her as the all-holy house of God, who, as the only entirely pure being on earth, was deemed worthy to become the Mother of God, and who surpasses the spiritual natures in heaven.130

128 ANGOLD, Michael. Op. cit .p. 70. 129 Carta do Patriarca Germano, ca. 730. In: BELTING, Hans. Op. cit p. 503. “[...] nós contemplamos a figura do verdadeiro Deus feito homem para nossa redenção [...], para nos lembrarmos com respeito e temor de sua presença em carne na terra, a qual aconteceu por sua grande compaixão.” (Tradução nossa). 130 Ibid. “Mas quando fazemos uma semelhança daquela que Lhe deu a vida, nossa pura e sempre virgem senhora, a Theotokos, uma imagem além de toda nossa imaginação, nós pensamos nela como a toda santa casa de Deus, que, como a única inteiramente pura na terra, foi considerada digna de se tornar Mãe de Deus, e quem supera a natureza espiritual no céu.” (Tradução nossa).

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Há ainda nesse texto outra justificativa para o culto dos ícones dos santos: a

lembrança que essas representações incitam no fiel, da resistência desses homens às paixões

da carne. Serviriam, assim, como exemplos a serem seguidos pelos cristãos.

When we depict the figures of those who by good works and pious deeds have proved themselves the servants of God, we remember their unconquered resistence to the invisible foe. For although they acted through a perishable body, they vanquished the enemy and brought shame on the Devil by destroying the passions of the flesh and stifled [ the Devil’s deceit by the dispassionate blood they shed] in the battle for truth, in which they did not spare themselves.131

Completando seu argumento, Germano utiliza uma explicação dada por São

Basílio, o Grande (329-379), em De Spiritu Sancto, quando este afirma: “A honra rendida a

um ícone se dirige ao protótipo.”132 Este parece ser o argumento mais antigo onde se percebe

uma diferenciação entre significado e significante. Encerrando seu discurso, diz o então

Patriarca: “When we look on an icon of a saint – and this is true for every icon of a saint – we

venerate not the panel or the paint but the pious and visible figure.”133

Esses argumentos utilizados por Germano para construir sua defesa do culto dos

ícones já estavam presentes no Concílio In Trullo, realizado em Constantinopla nos anos 680–

681, na ordem para que Cristo fosse representado com suas formas humanas, e não mais em

alegorias, tais como o cordeiro. A justificativa era centrada na questão da Encarnação.134 As

representações referentes à símbolos cristãos, como o cordeiro, não perecem ter sido alvo de

131 Ibid. “Quando nós pintamos figuras daqueles que por bons trabalhos e atos pios têm se mostrado como servos de Deus, nós lembramos sua invencível resistência diante do inimigo invisível. Embora agissem por meio de um corpo perecível, eles venceram o inimigo e levaram vergonha ao Mal por destruir as paixões da carne e reprimir [a falsidade do Mal pelo desapaixonado sangue que eles derramaram] na batalha pela verdade, na qual eles não se pouparam.” (Tradução nossa). 132 De Spiritu Sancto, 18, PG 32, 149 C. Citado por SCOUTERIS, Constantini. La personne du verb incarné et l’icône. L’argumentation iconoclaste et la reponse de Saint Theodore Studite. In: BOESPFLUG, F. et LOSSKY, N. (Dir). Op. cit. p. 133. 133 Carta do Patriarca Germano, ca. 730. In: BELTING, Hans. Op. cit “Quando nós olhamos para um ícone de um santo – e isso é verdade para todo ícone de santo – nós veneramos não o painel ou a pintura, mas a piedosa e visível figura.” p. 502. 134 ANGOLD, Michael. Op. cit. p. 56.

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destruição dos iconoclastas, uma vez que muitos ícones foram substituídos por cruzes nas

igrejas bizantinas.

Assim, quando o Patriarca Germano fala no culto dos ícones como uma forma de

o fiel se “lembrar” da figura representada, percebe-se uma relação direta com as idéias do

Papa Gregório Magno. O que esses textos nos mostram é que o termo culto, empregado várias

vezes ao longo da documentação pesquisada, se refere a diferentes formas de o fiel

demonstrar sua fé em Cristo, Maria, nos santos e anjos, através de suas representações. Há

desde a adoração, da qual somente Deus seria digno, até mesmo uma prosternação honrosa,

com a intenção de manter viva, na memória do fiel, as ações dos protótipos representados.

Apesar de o Patriarca de Constantinopla Germano e o Papa Gregório II afirmarem

que esse assunto deveria ser tratado num concílio da Igreja, a atitude de Leão III foi

exatamente convocar um conselho imperial, chamado Silentium, no ano de 730, em que foi

decretada a destruição dos ícones cristãos. Como o imperador não conseguiu apoio das

principais autoridades eclesiásticas do período, a solução foi o uso da violência com força de

lei.

Embora provavelmente tivesse sido convocado ao lado de outros representantes

do clero para tomar parte do Silentium, ao que parece Germano não participou desse concílio

imperial.135 Esse conselho era uma forma do imperador impor sua política, numa

demonstração do alcance do seu poder imperial frente à Igreja, como também a convocação

de Sínodos e Concílios Ecumênicos e a nomeação e destituição de bispos e do próprio

Patriarca de Constantinopla.

Após a decisão dessa assembléia pela adoção do iconoclasmo como política

oficial do Império, Germano, já em idade avançada, foi destituído do posto de Patriarca e

135 TREADGOLD. Warren. A history of the Byzantine State and Society. California: Stanford University Press, 1997. p. 353.

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substituído pelo iconoclasta Anastácio. Essa atitude demonstrava que o imperador Leão III

tinha claras pretensões de manter o controle sobre a estrutura eclesiástica da capital do

Império, indicando para ocupar o posto de maior autoridade da Igreja Oriental um patriarca

que compartilhava de seus pensamentos contrários ao culto de ícones. Tendo no patriarca um

aliado, o imperador não teria, pelo menos teoricamente, obstáculos para impor sua política ao

território cristão bizantino.

Também o Papa Gregório II rejeitou o iconoclasmo de Leão III, afirmando que

este não deveria definir dogmas religiosos. Entretanto, não se sabe ao certo quantas cartas o

papa e o imperador bizantino trocaram entre si, e duas cartas que são atribuídas a Gregório II

tem sua autenticidade questionada.136 A resposta de Leão III foi a afirmativa de que seu poder

era o de um rei e de um sacerdote ao mesmo tempo.137

O posicionamento oficial de Roma diante da questão foi decidido num sínodo,

reunido em 731 pelo papa Gregório III (731–741), que condenou a destruição dos ícones

como uma heresia,138 ou seja, uma idéia que se opunha a uma doutrina definida pela Igreja

como uma revelação de Deus. Também a definição do sínodo iconoclasta de Hieria em 754

(que será analisado na terceira parte deste capítulo) utiliza o termo heresia para condenar seus

adversários, por conta da produção e culto de ícones cristãos. Assim, os dois lados dessa

Querela se propunham a falar em nome de uma doutrina por eles considerada “verdadeira”.

Em retaliação ao sínodo de Roma, Leão III astutamente destacou os territórios da

Sicília e Calábria, no sul da Itália, da jurisdição romana do Papa, colocando-os sob domínio

do Patriarcado de Constantinopla, então ocupado pelo iconoclasta Anastácio, além de retirar

136 Giuseppe Alberigo afirma categoricamente que essas cartas são falsas. Ver: ALBERIGO, Giuseppe. O Segundo Concílio de Nicéia (786/787) ou Sétimo Concílio Ecumênico. In: História dos Concílios Ecumênicos. Tradução de José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 1995. p. 148-149. Georg Ostrogorsky apresenta uma série de estudos que questionam a autenticidade dessas cartas, entre esses os de V. Grumel, B. Schwarzlose, Hartmann, J. Haller e A. Fagiotto. In: OSTROGORSKY, Georg. Op. cit p. 161, nota 30. 137 Ver tópico A natureza autocrática do poder imperial, do capítulo 1. 138 TREADGOLD, Warren. Op. cit p. 354 e ANGOLD, Michael. Op cit. p. 71.

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da jurisdição romana a região do Ilírico. Com isso, os territórios subordinados ao Patriarcado

passaram a coincidir com as fronteiras oficiais do Império. Esse é mais um exemplo de um

dos mecanismos pelo qual o imperador autocrata bizantino controlava tanto as estruturas

políticas do Estado, quanto sobre as da Igreja Ortodoxa de Constantinopla.

A partir de então, Roma ficou, em termos institucionais e religiosos, ainda mais

distante do Oriente grego, ao passo que o Império Bizantino se distanciava na mesma

proporção da Sé romana (não da Península Itálica como um todo). Houve um

enfraquecimento da atuação do poder imperial bizantino sobre o lado ocidental do seu

território. A maior conseqüência disso foi o fato de a Igreja de Roma ter se aliado aos francos,

em 751, para se proteger militarmente da invasão lombarda, como será visto no tópico 2.3

desse capítulo. Esta conseqüência foi determinante para as relações entre Igreja e Estado na

história do Ocidente.

Já que a documentação contrária aos ícones foi destruída pelos iconófilos após a

Querela, é-nos hoje impossível conhecer o exato teor do pensamento iconoclasta de Leão III,

quando da promulgação do edito de 730. Michael Angold sugere que, talvez o principal

objetivo do imperador fosse mesmo “acabar com as extravagâncias da veneração das imagens,

que em alguns casos imbuíam o ícone de poderes mágicos.”139 A luta dos iconoclastas pode

ter sido justamente contra essas atitudes consideradas abusivas que teriam diluído a

diferenciação entre representação e protótipo, rendendo um culto considerado idólatra a essas

representações pictóricas.

Acreditamos que Leão III tenha pretendido subordinar toda a Igreja a sua

autoridade. Sendo Bizâncio um Império cristão com pretensões universalistas, a expansão do

domínio territorial implicaria diretamente num domínio da autoridade imperial também sobre

a estrutura eclesiástica. Entretanto, impor sua vontade sobre o Patriarcado de Constantinopla

139 ANGOLD, Michael. Op. cit. p. 70.

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se mostrou mais fácil do que ao papado romano, embora este último também estivesse,

teoricamente, subordinado ao governo bizantino. A distância geográfica entre Roma e

Constantinopla e a preocupação com a defesa das fronteiras no Oriente impediram que Leão

III tivesse uma atuação mais enérgica sobre seus domínios na Península Itálica. A política de

destruição de ícones bizantinos teria servido como um catalisador do progressivo afastamento

entre as Igrejas de Roma e Constantinopla.

2.2 A defesa de João Damasceno

Além da reação de Germano e dos Papas Gregório II e Gregório III, a defesa dos

ícones encontrou um de seus mais destacados representantes em João Damasceno, monge do

mosteiro de São Sabas, em Jerusalém. Após ter perdido o pai, aos vinte e três anos de idade,

abraçou a vida monástica e tornou-se o primeiro a sistematizar uma teoria dos ícones,

baseando-se nas tradições de antigas práticas cristãs, em passagens da Sagrada Escritura e em

obras da Patrística, como em Basílio. É considerado o último dos grandes padres da Igreja

cristã. Defensor da fé cristã frente à expansão muçulmana, sua obra é considerada uma síntese

da cristologia dos padres gregos.140 Viveu sob jurisdição política do califado e, por isso, era

considerado um estrangeiro para o Império Bizantino cristão de seu tempo.

Damasceno escreveu três cartas, em forma de Discurso, a favor dos ícones,

endereçados ao patriarca Germano, numa tentativa de responder ao edito iconoclasta sobre a

possibilidade de pintura dos ícones e a licitude de seu culto. Alain Besançon sintetizou muito

bem a defesa dos ícones feita por Damasceno, comparando-a inclusive com o pensamento de

Teorodo Studita, no século IX.141 John Lowden também trabalhou a defesa iconófila de

Damasceno, destacando nela três pontos fundamentais: o uso dos ícones, sua tradição dentro

140 DICIONAIRE DU MOYEN ÂGE. Littèrature et philosophie. Paris: Encyclopaedia Universalis et Albin Michel, 1999. pp. 486-488. 141 Ver BESANÇON, Alain. Op. cit pp. 202-214.

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do Cristianismo e a própria definição de ícone.142 Passemos à análise desses três pontos

dentro do Discurso de Damasceno.

A primeira dessas questões se refere ao uso que os cristãos faziam dos ícones. O

argumento iconoclasta de que os cristãos teriam se tornado idólatras por adorarem imagens, o

que era proibido pelo Antigo Testamento (Êx. 20, 4), foi negado por Damasceno, alegando

que a atitude dos cristãos diante dos ícones não era de adoração, mas sim de veneração – um

tipo de homenagem honrosa – por representarem pessoas santas, e não pela crença em poderes

milagrosos dos ícones. Dessa forma, seria ao protótipo representado por eles que essa

veneração deveria se dirigir.

Damasceno fez questão de frisar as diferenças entre adoração e veneração. A

adoração seria o mais alto grau do culto, que deve ser apresentado somente a Deus. “Worship

is the symbol of veneration and of honour. Let us understand that there are different degrees

of worship. First of all the worship, which we show to God, who alone by nature is worthy of

worship.”143 A palavra grega latréia (λατρευειν) designa o grau maior desse culto cristão, do

qual somente Deus é digno. A atitude do cristão diante dos ícones do Cristo, da Virgem, dos

santos ou anjos deveria ser a proskinesis (προσχυνειν), uma veneração honrosa, uma

homenagem prestada a essas pessoas santas através de suas representações pictóricas.

Lowden observa o que esse argumento tem de superficial e frágil. Concordamos

com esse autor quando ele afirma que para que essa diferenciação entre adoração e veneração

fosse corretamente observada, cada cristão individualmente deveria observar essa “sutil

142 LOWDEN, John. Op. cit pp. 150-152. 143 St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images. In: Website www.fordham.edu. Medieval Sourcebook. Acessado em 25/05/2005. “O culto é um símbolo de veneração e honra. Entendemos que existem diferentes graus de culto. O primeiro entre todos é adoração, que apresentamos somente a Deus, que por sua natureza é digno do culto.” (Tradução nossa). Como João Damasceno se preocupou em diferenciar o culto apresentado a Deus como sendo de maior grau que aquele prestado a Cristo, Maria ou os santos, quando ele se refere ao culto do qual somente Deus seria digno, é provavel que estivesse se referindo ao culto chamado em grego de latréia, que em português pode ser traduzido como adoração. Por isso, adotamos o termo adoração em nossa tradução nesse trecho.

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distinção” entre as duas atitudes citadas.144 Marie –France Auzepy mostra que, no século VIII,

o santo não era mais dissociado de seu ícone, que se tornava o modo mesmo de existência do

santo.145 Por haver evidências de que, muitas vezes na história do Cristianismo, as práticas

não coincidam com as idéias pregadas, vale questionar se todo cristão possuía conhecimento

necessário para diferenciar um culto de veneração de uma adoração e, mais ainda, se

observava essas sutis diferenciações durante sua prática de culto.

David Freedberg afirma que incomoda aos teólogos iconoclastas admitirem que os

fiéis fundissem imagem e protótipo, não diferenciando assim o que seria um culto de adoração

de uma veneração. Os próprios iconoclastas poderiam crer nessa suposta fusão, uma vez que

só a destruição dos ícones destruiria a atração que estes exerciam sobre os cristãos.146 A

defesa dos ícones feita por Damasceno veio a ser também uma defesa ao culto dos santos,

pela função atribuída à pintura de conduzir a oração do fiel ao protótipo nele representado.

Damasceno chama também a atenção para o fato de que os cristãos não

venerariam os ícones por acreditarem que eles possuíssem algum tipo de santidade em si

mesmos, mas pelas pessoas que eles representam. Frisa ainda que a matéria do ícone é um

meio para conduzir o fiel a realidades inteligíveis, seguindo aqui o pensamento do pseudo-

Dionísio, o Areopagita (final do século IV e início do V), que considera as coisas corpóreas

necessárias para se alcançar as incorpóreas.147 Diz o Discurso: “They were images to serve as

recollections, not divine, but leading to divine things by divine power.”148 E mais adiante: “I

144 LOWDEN, John. Op. cit pp. 150-151. 145 AUZÉPY, Marie-France. L’iconodulie: défense de l’image ou de la dévotion a l’image? In: BOESPFLUG, F. et LOSSKY, N. (Dir). Nicée Op. cit. p. 162. 146 Cf. FREEDBERG, David. Op. cit p. 452. 147 BESANÇON, Alain. Op. cit. p. 207-208. 148 St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images In: Website www.fordham.edu. Medieval Sourcebook. Acessado em 25/05/2005. “São imagens que servem como recordação, não divina, mas conduzindo para as coisas divinas pelo poder divino.” (Tradução nossa). Existem alguns aspectos que diferenciam as imagens, no sentido ocidental do termo, dos ícones orientais. Enquanto as imagens no Cristianismo latino se referem a representações de Cristo, Maria, dos santos e anjos, num tipo de pintura ou escultura que valoriza tendeu, ao longo dos séculos a uma valorização dos aspectos estéticos da obra, os ícones são uma criação tipicamente bizantina dos primeiros séculos do Cristianismo. Neles, a representação tem um caráter sacro, e um processo quase ritual de produção. Aqui, o simbolismo e a tradição estão presentes não só

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reverence and honour matter, and worship that which has brought about my salvation. I

honour it, not as God, but as a channel of divine strength and grace.”149 Assim sendo, esses

ícones conduziriam a honra a eles prestado ao protótipo ali representado. Confirmando essa

idéia, afirma Damasceno: “Thus, we worship images, and it is not a worship of matter, but of

those whom matter represents. The honor given to the image is referred to the original, as

holy Basil [330?–379) rightly says.”150

Faz-se necessário aqui um breve esclarecimento. É provável que João Damasceno

teria utilizado o termo grego eikon para se referir ao ícone em seu Discurso, redigido em

grego. Porém, como a palavra grega eikon possui significados amplos para designar tipos de

representação, encontramos em grande parte da bibliografia consultada, tanto em língua

portuguesa quanto nas estrangeiras, a tradução para o correspondente imagem. É sobre o ícone

que iconoclastas e iconófilos tecem a Querela e por isto é o termo que usamos para traduções

em nota.

Damasceno argumenta que a proibição do culto de imagens no livro do Êxodo, se

refere não a imagens cristãs, mas sim aos ídolos pagãos. O monge utiliza também uma

passagem bíblica, desta vez dos Salmos, para seu argumento: “São ouro e prata os ídolos dos

gentios, são obras fabricadas pelos homens”151 E completa: “It does not forbid the adoration

of inanimate things, or man’s handiwork, but the adoration of demons.”152 Portanto, além do

nos rituais nos quais estão presentes os ícones e nas suas formas, mas também na preparação espiritual para sua criação, além dos seus materiais e técnicas de produção. Por conta dessas particularidades, já por nós discutido no capítulo I, acreditamos que o termo image da versão inglesa do Discurso de Damasceno, escrito originalmente em grego, esteja se referindo aos ícones bizantinos. 149 St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images In: Website www.fordham.edu. Medieval Sourcebook. Acessado em 25/05/2005. “Eu reverencio e honro a matéria honro aquele que tem conduzido minha salvação. Eu honro, não como Deus, mas como um canal da força e graça divina.” (Tradução nossa). 150 St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images In: Website www.fordham.edu. Medieval Sourcebook. Acessado em 25/05/2005. “Nós cultuamos imagens, e não é um culto da matéria, mas daquele que a matéria representa. A honra rendida a uma imagem é referida ao original, como São Basílio corretamente disse.” (Tradução nossa). 151 BÍBLIA SAGRADA. A.T. Salmos 135: 15. São Paulo: Edições Loyola, 1995. 152 St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images In: Website www.fordham.edu. Medieval Sourcebook. Acessado em 25/05/2005. “Não proíbe a veneração de coisas inanimadas ou de objetos

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pseudo-Dionísio, era importante que Damasceno apoiasse sua defesa dos ícones sobretudo em

trechos da Sagrada Escritura, para responder com o mesmo instrumento à argumentação

iconoclasta retirada do livro do Êxodo.

O monge insere a proibição do livro do Êxodo num contexto muito particular,

bem diferente da sociedade cristã bizantina do século VIII. Diz o documento “And I say to

you that Moses, through the children of Israel’s hardness of heart, and knowing their

proclivity to idolatry, forbade them to make images.”153 A grande questão aqui é que a

passagem do livro do Êxodo se refere a uma tentativa de proteção do povo de Israel de um

tipo de culto semelhante ao dos pagãos e dirigido a uma população que, na época do Antigo

Testamento, concebia seu Deus como indefinível, indescritível, sem forma. Leva ainda em

consideração o fato de que aquela sociedade tinha uma inclinação pela idolatria:

So into the same way the good Physician of souls prescribed for those who were still children and inclined to the sickness of idolatry, holding idols to be gods, and worshipping them as such, neglecting the worship of God, and prefering the creature to His glory.154

Segundo Gabrielle Sed-Rajna, essa proibição serviria para não colocar em risco a

coesão dessa sociedade recentemente constituída e não ameaçar também a essência da nova

religião, que era a crença e a submissão num Deus transcendente e invisível.155 Em

contrapartida, no Novo Testamento esse Deus indescritível assumiu uma forma humana

definida, com descrições humanas, através da Encarnação do Verbo divino. É dessa forma feitos pelos homens, mas a veneração dos demônios.” (Tradução nossa). Embora na tradução inglesa do texto de João Damasceno por nós consultada encontremos o termo adoration, preferimos a sua tradução por veneração, visto que o próprio Damasceno faz nesse Discurso uma importante diferenciação entre latreia, o termo grego para adoração, de proskinesis, que significa veneração. Portanto, como o texto original foi escrito em grego, acreditamos que as passagens que dizem respeito à defesa do culto aos ícones se refiram ao termo proskinesis, pois somente Deus seria digno do tipo culto chamado latréia. 153 Ibid. “E eu digo a vocês que Moisés, por causa da dureza do coração dos filhos de Israel, e conhecendo sua propensão para a idolatria, proibiu-os de fabricarem imagens. Nós não estamos no mesmo caso.” (Tradução nossa). 154 Ibid. “Então, nesse mesmo caminho o bom Médico da almas prescreveu para aqueles que eram ainda crianças e inclinados à doença da idolatria, possuindo ídolos para serem deuses, e, cultuando-os como tais, descuidando do culto de Deus e preferindo a criatura que Sua glória..” (Tradução nossa). 155 SED-RAJNA, Gabrielle. L’argument de l’iconophobie juive. In: BOESPFLUG, F. et LOSSKY, N. (Dir). Op. cit.p. 82.

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que o invisível se tornaria visível, justificando assim uma representação do Cristo feito

homem.156

Para diferenciar o ícone que representaria Cristo, Maria ou algum santo, dos

ídolos dos gentios, Damasceno afirma também: “The customs which you bring forward do not

incriminate our worship of images, but that of the heathens who make idols of them.”157 E

para isso, além do argumento bíblico e do patrístico, como no embasamento em São Basílio,

Damasceno também se apoia nos “costumes”. Ao longo de toda a Querela Iconoclasta, as

práticas anteriores de representações pictóricas no culto cristão serviram como embasamento

e justificativa para o uso dos ícones. Era o peso de uma tradição considerada legítima.

Esse é exatamente o segundo ponto no qual a argumentação de Damasceno se

fundamenta: o apelo à tradição dos ícones dentro do Cristianismo. A questão colocada pelos

bispos do iconoclasmo era a de que o culto de ícones seria uma invenção dos seus pintores,

uma vez que não encontraram na Sagrada Escritura apoio para tal culto.

Afirma também que muitas das práticas cristãs não encontravam fundamento em

textos escritos, mas em antigas tradições da Igreja, igualmente válidas. “The eye-witnesses

and ministers of the word handed down the teaching of the Church, not only by writing, but

also by unwritten tradition.”158 Diz ainda:

For if we neglect unwritten customs, as not having much weight we bury in oblivion the most pertinent facts connected with the Gospel. These are the great Basil’s word [...]. As, then, so much has been handed down in the Church, and is observed down to the present day, why disparage images?159

156 SCOUTERIS, Constantini. La persone du verbe incarné et l’icône. L’argumentation iconoclaste et la reponse de Saint Theodore Studite. In: BOESPFLUG, F. et LOSSKY, N. (Dir). Op. cit.pp. 124-125. 157 St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images. In: Website www.fordham.edu. Medieval Sourcebook. Acessado em 25/05/2005. “Os costumes trazidos não incriminam nosso culto de imagens, mas aquele dos pagãos, que fazem deles ídolos.” (Tradução nossa). 158 St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images. In: Website www.fordham.edu. Medieval Sourcebook. Acessado em 25/05/2005. “As testemunhas e ministros da palavra transmitiram o ensino da Igreja não apenas pela escrita, mas também por tradições não escritas.” (Tradução nossa). 159 Ibid. “Se nós negligenciamos costumes não escritos, como não tendo muita influência, nós enterramos no esquecimento os fatos mais pertinentes conectados com o Evangelho. Essas são palavras do grande Basílio [...].

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O importante era afirmar que a prática de cultuar os ícones cristãos não era uma

recente invenção iconófila, mas já se fazia presente na tradição da Igreja. Isso foi afirmado

categoricamente por Damasceno na segunda parte de sua Apologia: “Receive the united

testemony of Scripture and the fathers to show you that images and their worship are no new

invention, but the ancient tradition of the Church.”160

Alguns historiadores inclusive corroboram este argumento. Freedberg afirma que

desde os primeiros tempos do Cristianismo se fazia presente a crença de que as imagens

ajudariam o espectador a se lembrar da passagem bíblica representada e o instigaria a imitá-

la.161Além da defesa teológica, havia toda uma tradição em torno da crença na eficácia

profilática do ícone, que justificaria sua criação e culto.162 Belting chega a afirmar que os

ícones faziam parte de uma tradição “autêntica” do Cristianismo.163 E também André Grabar

e Michael Angold afirmam que, no século VI, os ícones faziam parte integrante da religião

cristã em quase toda parte.164

Chama a atenção o fato de João Damasceno inverter a alegação iconoclasta de

ruptura com a tradição. Os bispos iconoclastas afirmavam que os ícones eram uma invenção

dos pintores, que iria de encontro a uma proibição bíblica.165 E baseavam essa afirmativa em

textos bem anteriores à Querela, como a carta de Eusébio de Cesaréia à irmã de Constantino, Como, então, tanto tem sido legado na Igreja, e é observado nos dias de hoje, por que depreciar as imagens?” (Tradução nossa). 160 Ibid. “Recebemos a união dos testemunhos da Escritura e os padres vos apresentam que as imagens e seu culto não são nova invenção, mas uma antiga tradição da Igreja.” (Tradução nossa). 161 FREEDBERG, David. Op. cit p.116. 162 BELTING. Hans. Likeness and Presence; A history of the image before the era of art.. Trad. Edmund Jephcott. Chicago: The Chicago University Press, 1994. p. 442. 163 BELTING. Hans. Op. cit p. 165. 164 GRABAR, André. Op. cit p. 126; e ANGOLD, Michael. Op. cit. p. 39. 165 Essa crença dos iconoclastas de que o culto dos ícones era uma invenção dos cristãos sem fundamento bíblico pode ser comprovada pela resposta que João Damasceno deu em seu Discurso, afirmando: “Recebemos o testemunho da Escritura e dos Padres para mostrar a vocês que as imagens e seu culto não são nova invenção, mas uma antiga tradição da Igreja” In: Website www.fordham.edu. Medieval Sourcebook. St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images.. Acessado em 25/05/2005. (Tradução nossa). Posteriormente, Constantino V, no sínodo de Hieria, voltaria a insistir em acusar os iconófilos de inovação e rompimento com a tradição cristã.

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o Grande, onde o bispo afirma ser impossível fazer uma imagem de Cristo166, e o discutido

Testamento do bispo Epifânio, da Palestina, escrito contra o uso de imagens no século IV.167

O que o estudo da Querela nos mostra é que, tanto iconoclastas quanto iconófilos,

se valeram das mesmas estratégias para se sobreporem uns aos outros durante os debates em

torno dos ícones: a utilização da exegese bíblica para fundamentar seus argumentos e

acusação dos adversários como heréticos, além do apoio na tradição cristã e patrística para

embasar suas idéias. Em outras palavras, em torno do mesmo objeto, o ícone, desenvolveram-

se discussões sustentadas pela apropriação dos mesmos tipos de fontes, trabalhadas de forma

a atender os anseios de cada um dos grupos envolvidos, fosse para proibir o seu culto, fosse

para justificá-lo. É aqui que se aplica o conceito de apropriação de Chartier, apresentado na

Introdução desse trabalho. Em outras palavras, há divergência quanto ao objeto, venerar ou

destruir o ícone, mas não quanto ao método de defesa e ataque utilizados pelos dois grupos.

No Discurso de Damasceno é a iconoclastia (e não o culto dos ícones) que é

abordada como uma ruptura em relação a uma tradição cristã, uma inovação na Igreja. E

recomenda ainda aos fiéis que não sigam esse caminho de inovações, contrárias a toda uma

tradição de costumes e ensinamentos.

You see what great strength and divine zeal are given to those who venerate the images of the saints with faith and a pure conscience. Therefore, brethren, let us take our stand on the rock of the faith, and on the tradition of the Church, neither removing the boundaries laid down by our holy fathers of old, (Prov. 22.28) nor listening to those who would introduce innovation and destroy the economic of the holy Catholic and Apostolic Church of God.168

166 In: MANGO, Cyril. Op. cit pp. 16-18. 167 MARAVAL, Pierre. Épiphane, “docteur des iconoclastes”. In: BOESPFLUG, F. et LOSSKY, N. (Dir). Op. cit. pp. 51-62. O bispo Epifânio teria escrito quatro textos contra as imagens por elas constituírem numa novidade contrária à tradição do Cristianismo. Só se tem notícas de fragmentos desses textos. João Damasceno, Teodoro Studita, o Patriarca Nicéforo de Constantinopla e o sínodo de Hieria (754) fazem referência a eles, mas com exceção de Hieria, todos o refutam. Segundo Maraval, até mesmo sua autenticidade é contestada. 168 St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images In: Website www.fordham.edu. Medieval Sourcebook.. p. 34. Acessado em 25/05/2005. “Você vê que grande força e zelo divino são dados àqueles que veneram os ícones com fé e consciência pura. Entretanto, irmãos, vamos manter nossa resistência na rocha da fé, e na tradição da Igreja, não removendo os limites colocados pelos santos pais do Antigo Testamento

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Desde o início da Querela Iconoclasta os dois grupos em questão afirmavam

serem representantes de uma verdadeira tradição cristã. Tanto iconófilos quanto iconoclastas

têm consciência do peso que os costumes e a tradição não escrita possuem na definição das

idéias e das práticas cristãs. E de ambos os lados, a ruptura com essa antiga tradição é

apresentada ao fiel como um erro e um desvio de conduta no qual o cristão não deve incorrer.

Uma dessas tradições, citadas na defesa dos ícones, é a do Mandylion, considerada a

verdadeira representação do Cristo. Esta representação é chamada de acheropta, que quer

dizer “não feita por mão humana.” Seria a imagem do rosto de Cristo enviada ao rei Agbar, de

Edessa, que o próprio Jesus teria feito reproduzir numa toalha, na qual enxugou seu suor.

Nessa tradição, há ainda uma segunda versão, que diz que um pintor enviado pelo rei teria

retratado o Cristo. De uma ou outra forma, no Oriente, havia referências à tradição da imagem

acheropta desde o século VI.169

Finalmente, o terceiro ponto no qual se baseia a defesa dos ícones no Discurso a

definição do objeto ao redor do qual os debates transcorriam no século VIII. Afinal de contas,

o que seria um ícone? Aqui encontra-se o grande centro da argumentação iconófila. Não se

trata de uma imagem qualquer. Possui uma série de particularidades que nos levam a destacá-

lo como um tipo de representação especial, presente ainda hoje nas Igrejas ortodoxas.

Foi no decorrer da Querela Iconoclasta que a Igreja Ortodoxa de Constantinopla

formulou as definições a cerca do ícone e seu papel no culto litúrgico. Indo além da sua

função didática e das características estéticas, o fundamental na definição do ícone proposta

nos séculos VIII e IX era a sua função de testemunho do dogma da Encarnação de Deus, base

da própria fé cristã.

(Provérbios 22, 28) nem ouvindo aqueles que introduziriam inovações e destroem a santa Católica e Apostólica Igreja de Deus.” (Tradução nossa). 169 Sobre a tradição do Mandylion, ver BELTING. Hans. Likeness and Presence; A history of the image before the era of art.. Trad. Edmund Jephcott. Chicago: The Chicago University Press, 1994. pp. 208-218.

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Vejamos a seguir a definição de ícone, dada pelo monge João Damasceno na sua

defesa dos ícones em 730:

An image is a likeness and representation of some one, containing in itself the person who is imaged. The image is not wont to be an exact reproduction of the original. The image is one thing, the person represented another; [...]. Every image is a revelation and representation of something hidden..170

Como observou Hans Belting, o ícone adota a essência do protótipo através da

semelhança, não sendo uma invenção do artista. Dessa forma, a legitimidade desse tipo de

representação está diretamente relacionada com a semelhança “real” que possui com o

protótipo. Mesmo evidenciando que ícone e pessoa não são a mesma coisa, seria a partir desse

objeto que uma pessoa, não mais presente no mundo sensível, se apresentaria, ou como o

próprio Damasceno diz, se revelaria ao fiel.171 Mesmo se esforçando para apresentar as

diferenças entre um ícone e um ídolo, Damasceno acaba mostrando em seu argumento traços

de uma filosofia pagã de representação, presentes, por exemplo, no caso das imagens do

imperador.172

Damasceno tentou frisar a diferença entre o protótipo e o ícone que o representa,

embora argumentasse que ambos se refiram a mesma hipóstase.173 Não se observa uma

correspondência direta, no caso do culto dos ícones, entre os escritos teológicos e as práticas

cristãs. Vimos que os cristãos bizantinos do século VIII não diferenciavam claramente a

imagem da pessoa nela representada. Mesmo que os principais teólogos dos ícones, como

João Damasceno, tentassem definir de maneira clara e coerente a que o protótipo é uma coisa

170 Website www.fordham.edu. Medieval Sourcebook. St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images p. 28. Acessado em 25/05/2005. “Uma imagem é uma semelhança e representação de alguém, contendo em si a pessoa que ele representa. O ícone não é uma reprodução exata do original. O ícone é uma coisa, a pessoa representada outra; [...]. Todo ícone é uma revelação e uma representação de algo oculto” (Tradução nossa). 171 Cf. BELTING. Hans. Likeness and Presence; A history of the image before the era of art.. Trad. Edmund Jephcott. Chicago: The Chicago University Press, 1994. 172 Sobre a relação entre o imperador bizantino e suas representações, ver FREEDBERG, David. Op. cit pp. 437-438. 173 BESANÇON, Alain. Op. cit. p. 201. O termo grego hipostase significa pessoa, substância. Cf. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, website catecismo-az.tripod.com/conteudo/a-z/h/hipostase.html Acessado em 29/09/2006.

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e sua representação outra, o próprio culto a uma imagem depende, na consciência do fiel,

dessa fusão entre a pintura e a pessoa nele representada.174 Besançon faz uma crítica a

Damasceno, baseado no fato de ele não se conseguir perceber o que diferencia a sua

valorização da matéria do ícone de tais práticas supersticiosas.175

Encontramos algumas narrações de histórias do século anterior à Querela

Iconoclasta nas quais os ícones de santos aparecem como imagens possuidoras de certos

poderes milagrosos, ou seja, como se possuíssem os atributos da pessoa representada.

Citemos duas delas como exemplos. A primeira é uma narração do monge João Moschos (?–

634):

In our times a pious woman of Apema dug a well. She spent a great deal of money and went down to a great depth, but did not strike water. So she was despondent on account both of her toil and her expenditure. One day she sees a man [in a vision] who says to her: ‘Send for the likeness of the monk of Theodoios of Skopelos, and, thanks to him. God will grant you water.’ Straightaway the woman sent two men to fetch the saint’s image, and the lowered it into the well. And immediately the water came out so that half the hole was filled.176

Em outra narração da mesma época, encontramos uma descrição que nos mostra

um apego ainda maior do fiel ao ícone enquanto um objeto capaz de realizar curas. Trata-se

da prática de engolir pequenos pedaços raspados de um ícone.

[A certain woman] depicted [the saints Cosmas and Damian] on all the walls of her house, being as she was insatiable in her desire of seeing them. [She then fell ill.] Perceiving herself to be in danger, she crawled out of bed and, upon reaching the place where these most wise saints were depicted on the wall, she stood up leaning on her faith as upon a stick and scraped off with her fingernails some plaster. This she put into water and, after drinking the

174 FREEDBERG, David. Op. cit.p. 448. 175 Ver BESANÇON, Alain. Op. cit. pp. 208-209. 176 LOWDEN, John. Op. cit p. 149. “Em nossa época, uma piedosa mulher da região da Apamea cavava. Ela gastou muito dinheiro e foi cavar um fosso de grande profundidade, mas não jorrou água. Então ela ficou desanimada por conta de seu trabalho e de seu gasto. Um dia ela viu um homem [numa visão] que disse a ela: ‘Mande buscar uma representação do monge Teodósio de Skopelos e agradeça a ela. Deus te concederá a água.’ Imediatamente a mulher enviou dois homens para trazer a imagem do santo e ela a abaixou até bem dentro. E imediatamente a água começou a sair tanto que metade do buraco ficou cheio” (Tradução nossa).

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mixture, she was immediately cured of her pains by the visitation of the saints.177

Aqui, o poder de cura parece estar presente no próprio material do qual o ícone é

feito. A visitação dos santos parece se dar de fato a partir do momento em que o fiel ingere

parte da sua imagem. Esse tipo de crença associa esses fragmentos do ícone ao sacramento da

Eucaristia, no qual o Cristo se faz presente através do material das espécies eucarísticas.

Em ambos os casos citados, o ícone parece ter sido utilizado pela crença nas suas

propriedades milagrosas, sem menção explícita da fé no santo por ele representado. Para esses

cristãos, o poder de curar e realizar milagres proveria da imagem dos santos, sem haver uma

distinção clara entre este e sua representação pictórica. Assim, concordamos com o

pensamento de David Freedberg, afirmando que na crença dos fiéis existe uma fusão entre o

protótipo e sua representação.178 Há, necessariamente, uma relação de dependência entre o

culto do santo e o seu ícone, para que tal fusão na crença do fiel seja percebida. Ou seja, deve

haver uma crença anterior nos poderes de interseção de determinado santo para que o fiel o

cultue, mas esse culto se dá muitas vezes a partir da sua representação icônica.

Damasceno ainda afirma, na terceira parte de seu Discurso, que existem imagens

de diferentes tipos dentro do Cristianismo e propõe um esquema na qual essas imagens

aparecem hierarquizadas em seis níveis, onde a pessoa do Cristo aparece como elemento de

destaque, a imagem de Deus por excelência.

Assim, a primeira e mais perfeita imagem é o próprio Cristo, imagem natural de

Deus Pai. “The Son is the first natural and unchangeable image of the invisible God, the

177 Ibid. “[Uma certa mulher] pintou [os santos Cosme e Damião] em todas as paredes da sua casa, como se o seu desejo de vê-los fosse insaciável. [Ela então caiu doente.] Percebendo-se estar em perigo, ela rastejou para fora da cama e, alcançando o lugar onde os mais sábios santos estavam pintados na parede, ela levantou-se inclinando em sua fé como sobre um bastão e arranhou com suas unhas parte do material. Colocou-o na água e, depois de bebe a mistura, foi imediatamente curada de suas dores pela visitação dos santos.” (Tradução nossa). 178 FREEDBERG, David. Op. cit p. 452.

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Father, showing the Father in Himself.”179 Para dar embasamento a seu argumento,

Damasceno cita algumas passagens bíblicas, entre elas o Evangelho de João, onde Cristo

afirma: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo. 14, 8-9) e uma das cartas de Paulo diz que “O Filho é a

imagem do Deus invisível” (Col. 1, 15), sendo portanto revelador de uma realidade

inteligível. Há nessa passagem uma correspondência com a característica que Damasceno

concede ao ícone de ser também revelação e representação de algo oculto. Durante a Idade

Média, essas passagens bíblicas serviram para legitimar as representações não somente de

Cristo, mas do próprio Deus.

O segundo tipo de imagem classificado por Damasceno corresponde ao

conhecimento de Deus dos fatos futuros por Ele determinados. “In His counsels the things

predeterminated by Him were characterised and imaged and immutably fixed before they took

place.”180

O terceiro tipo é o homem, feito por Deus à sua semelhança pela imitação

(κατα µιµησιν): “Façamos o homem à nossa imagem e nossa semelhança” (Gênesis 1, 26).

Na definição de imago proposta por Jean-Claude Schmitt, há uma síntese desses primeiros

tipos de imagens apresentadas por Damasceno: “a noção de imagem diz respeito, enfim, à

antropologia cristã como um todo, pois é o homem [...] que a Bíblia desde suas primeiras

palavras, qualifica com ‘imagem’.”181 E conclui: “no Novo Testamento, a Encarnação

completou a relação entre homem, Deus e Cristo.”182

O quarto se refere a tipos de imagens apresentadas pelas Escrituras para dar uma

forma perceptível a seres imateriais, como os anjos. O objetivo dessas imagens, segundo

179 St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images. In: Website www.fordham.edu. Medieval Sourcebook. Acessado em 25/05/2005. “O Filho é a primeira imagem natural e imutável do Deus invisível, o Pai, apresentando o Pai em Si”. (Tradução nossa). 180 Ibid. p. 29. “Em seus conselhos as coisas pré-determinadas por Ele foram caracterizadas, imaginadas e imutavelmente fixadas antes que elas tomassem lugar.” (Tradução nossa). 181 SCHMITT, Jean-Claude. Imagem. In: LE GOFF, Jaques, SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Edusc, 2002. p. 503. 182 Ibid.

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Damasceno, é: “[...] for a clear apprehension of God and the angels, through our incapacity of

perceiving immaterial things unless clothed in analogical material form.”183 Esse é mais um

pensamento que Damasceno tomou de empréstimo de Dionísio Areopagita, que ele cita como

um homem experimentado nas coisas divinas.184 Mais uma vez, um importante nome da

antiga tradição cristã legitimava o argumento. Nesse trecho, Damasceno relativiza os aspectos

material e formal dos corpos:

Only the divine nature is uncircumscribed and incapable of being represented in form or shape, andincomprehensible.[...].

The angel, and a soul, and a demon, compared to God, who alone is incomparable, are bodies; but compared to material bodies, they are bodiless.185

O quinto tipo de imagem é aquele que apresenta os atributos que prefiguram os

acontecimentos futuros na Sagrada Escritura, como a serpente de bronze hasteada por Moisés,

representando uma Cruz, através da qual se deu a cura daqueles picados pelas serpentes do

mal:

The fifth kind of images is that which is typical of the future, as the bush and the fleece, the rod and the urn, foreshadowing the Virginal Mother of God, and the serpent healing through the Cross those bitten by the serpent of old. Thus, again, the sea, the water and the cloud foreshadow the grace of baptism.186

O sexto e último tipo de imagem classificado por João Damasceno é aquele que

retrata os homens virtuosos do passado, isto é, os santos, para que os cristãos se lembrassem

sempre de suas vidas exemplares. Assim Damasceno define essas imagens:

183 St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images. In: Website www.fordham.edu. Medieval Sourcebook. Acessado em 25/05/2005. “[...] clarificar nossa percepção de Deus e dos anjos, por causa da nossa incapacidade de entender as coisas imateriais a não ser revestidas em uma forma material análoga [...]”.(Tradução nossa). 184 Ibid. “[...] as Dionysius the Areopagite says, a man skilled in divine things.” (Tradução nossa). 185 Ibid. “somente a natureza divina é incircunscrita e incompreensível, incapaz de ser representada numa forma[...] anjos, a alma e o demônio, comparados a Deus, que é incompreensível, são corpóreos, mas comparados com corpos materiais, são incorpóreos.” (Tradução nossa). 186 Ibid. “O quinto tipo de imagem é aquele característico do futuro, como o bosque e lã , a vara e a urna prenunciando a Virgem Mãe de Deus e a serpente curando através da cruz aqueles picados pela serpente do mal. Assim, também, o mar, água e a nuvem prenunciando a graça do batismo.” (Tradução nossa).

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The sixth kind of images is for a remembrance of past events, of a miracle or a good deed, for the honour and glory and abiding memory of the most virtuous, or for the shame and terror of the wicked, for the benefit of succeeding generations who contemplate it, so that we may shun evil and do good.187

Como se vê, o objetivo da contemplação ao qual Damasceno se refere nesse

trecho é moral, uma vez que visa evitar o “mau” e “fazer o bem”. Nesse caso, o bem estaria

diretamente relacionado a ações como as dos santos venerados através de suas representações.

E aconselha a fabricação e culto desses ícones: “So now we set up the images of

valiant men for example and a remembrance to ourselves.”188 Essa definição da imagem

pictórica de Damasceno é muito semelhante à que o Papa Gregório Magno escreveu para o

bispo Serenus, no ano 600, quando enfatizou o caráter didático das representações, servindo à

memória dos fiéis, apresentando cenas e pessoas a serem seguidas.

Entretanto, Damasceno divide esse sexto tipo de imagem em outros dois sub-

grupos: as palavras escritas nos livros e as pinturas. Esse fato chama a atenção, já que os

iconoclastas se preocuparam não só na destruição dos ícones em si, mas também de livros que

continham ilustrações e ensinamentos referentes a eles. Entretanto, cumpre esclarecer que o

monge não fala de palavras escritas em livros necessariamente ilustrados. Nos deteremos

sobre essas práticas de destruição de ícones e livros no capítulo III.

O fato de João Damasceno classificar as obras pictóricas e os textos escritos

apenas como o sexto e último tipo de imagem não significa que estes sejam os menos

importantes, mas, ao contrário, são legitimados pelos cinco tipos precedentes, baseado nas

narrações bíblicas. Mais do que isso, esse sexto tipo tem como princípio a pessoa de Cristo,

do Verbo Encarnado, como a imagem principal. Ou seja, é o Verbo tornado imagem.

187 Ibid. “O sexto tipo de imagens é para lembranças dos eventos passados, de um milagre ou uma boa ação, para a honra, glória e manutenção da memória dos mais virtuosos, ou para a vergonha e terror do mau, para benefício das sucessivas gerações que a contemplam, então nós devemos evitar o mau e fazer o bem.” (Tradução nossa). 188 Ibid. “Então agora nós fazemos ícones de valiosos homens para nosso próprio exemplo e lembrança.” (Tradução nossa).

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Como os seis tipos apresentados formariam um grupo único de imagens cristãs,

segundo Damasceno, argumentar contra os ícones seria o mesmo que argumentar contra as

ações divinas. Um claro exemplo dessa relação é o fato da Encarnação divina, apresentada

pelo monge como a primeira e mais importante imagem, servir como justificativa para a

existência dos ícones, que ocupam o último nível. Essa formulação resistiu durante a Querela

Iconoclasta, servindo sobretudo ao Concílio de Nicéia em 787.

2.3 Heresias cristológicas na iconoclastia: Constantino V e o sínodo de Hieria - 754

A escassez de fontes para o período posterior ao edito de 730 não permite analisar

objetivamente as conseqüências da política de destruição de ícones dentro do território

bizantino, nos anos seguintes do governo de Leão III e nos primeiros anos de Constantino V,

que foi imperador de 741 a 775. Talvez por esse motivo encontremos em nossa bibliografia

opiniões divergentes sobre esse período. Como exemplo, Angold afirma que teria havido,

após o edito de 730, “pouca oposição à medida de Leão III e muito pouca perseguição.”189

Entretanto, o Discurso de João Damasceno denuncia o exílio do Patriarca Germano e a

perseguição de muitos bispos e padres.190 Treadgold prefere ressaltar a resistência militar de

Leão III aos ataques árabes posteriores à promulgação do edito iconoclasta, ocorridos ao

longo de seu governo, concluindo que, se isso não foi suficiente para convencer a população

sobre o fato de o iconoclasmo ser correto, o imperador tampouco teria deixado provas

suficientes de que seria errado.191

O governo de Constantino V foi um período de acirramento da política

iconoclasta, o que resultou num estremecimento ainda maior das relações entre as Igrejas de

189 ANGOLD, Michael. Op. cit p. 70. 190 Ver a nota 118. 191 TREADGOLD, Warren. Op. cit p. 356. “If his exploits head not convinced most people that iconoclasm was right, he had not done badly enough to prove to them that iconoclasm was wrong.” (Tradução nossa).

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Constantinopla e Roma. Durante esse período, Bizâncio precisou se defender contra as

ameaças de invasão árabe e búlgara, o que fez com sucesso. O fato de o governo bizantino ter

enfatizado a defesa dos seus territórios mais orientais, deixou em segundo plano a Península

Itálica, onde sua a autoridade já havia se enfraquecido consideravelmente desde 726, com a

oposição pontifical à política da iconoclatia. Assim, a antiga idéia romana de um império

universal ficava, mais uma vez, seriamente comprometida. Discordamos de Ostrogorsky

quando este afirma que Constantino V teria sido o imperador menos interessado pela parte

italiana de Bizâncio.192 Ao que parece, Constantino V teria ficado, durante seu governo, sem

condições de atuar com sua autoridade sobre solo ocidental, protegendo esses territórios, por

dois motivos, já vistos aqui: as ameaças sofridas nas fronteiras com os árabes e com os

búlgaros e a falta de apoio dos papas à política iconoclasta dos imperadores isáuricos.

No ano de 751, um acontecimento colocou um ponto final nas relações entre o

papado e Constantinopla. Os lombardos ameaçavam diretamente a Sé romana, inclusive

tomando o território do exarcado de Ravena. Apesar das divergências religiosas, o papado

ainda acreditava poder contar que o apoio militar bizantino se faria presente no Ocidente,

assim como se fez nas fronteiras orientais. Entretanto, Constantino V não atendeu aos pedidos

de ajuda feitos pelo então papa Estêvão II, referentes à invasão dos lombardos. O imperador

enviou apenas alguns embaixadores, mas nunca tropas militares para tentar reconquistar

Ravena ou oferecer proteção a Roma.

Sem o auxílio bizantino, o papa se voltou então para o Ocidente, onde selou uma

aliança com os Francos através de seu rei Pepino, conseguindo a proteção militar necessária

contra os invasores. Esse acontecimento rompeu de vez as relações entre Roma e

Constantinopla (embora o Grande Cisma oficial entre as duas Igrejas só veio a ocorrer em

1054). A aliança entre a Sé romana e os francos proporcionou ao papado proteção suficiente

192 OSTROGORSKY, Georg. Op. cit 179: “Nigún imperador de Bizancio mostró menos interés por las posiciones italianas del Imperio.”

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para que este voltasse as costas para o imperador bizantino e sua política eclesiástica.

Doravante, no Ocidente, a Igreja romana desenvolveu uma cultura religiosa cada vez mais

autônoma, tanto em relação ao Cristianismo ortodoxo oriental, quanto ao poder dos

imperadores, uma vez que esta não se encontrava atrelada à autoridade temporal. Essa

situação era exatamente oposta ao que acontecia com a Igreja de Constantinopla, onde o

patriarcado se encontrava unido ao poder autocrático do imperador. O território bizantino no

Ocidente se reduziu então apenas às regiões helenizadas do sul da Península Itálica.193

Constantino V deu seqüência à política da iconoclastia imposta aos cristãos por

seu pai, Leão III. Seu governo foi certamente o período mais violento e onde houve o maior

número de perseguições, dirigidas principalmente contra os monges iconófilos. Considerado

um imperador ainda mais culto e, segundo Ostrogorsky, “un enemigo de las imágenes aún

mas apasionado que su padre,”194 Constantino V tratou de dar à iconoclastia um teor mais

dogmático, com justificativa teológica, para não mais ficar restrito a simples interpretações de

supostas manifestações de aprovação ou reprovação divina.

Para elaborar seu argumento contrário aos ícones, o imperador Constantino V foi

buscar sua justificativa nos debates em relação às naturezas humana e divina de Cristo,

surgidos três séculos antes da Querela Iconoclasta. Suas idéias foram apresentadas num

Sínodo, por ele mesmo convocado na cidade de Hieria, localidade próxima à capital, no ano

de 754.

É importante salientar que, quando Constantino V trouxe aos debates iconoclastas

as questões cristológicas, ele se referia a doutrinas que sobreviveram principalmente entre os

cristãos das províncias localizadas na Ásia Menor. Embora, em tese, o Concílio Ecumênico da

Calcedônia (451) devesse representar o pensamento cristão em sua totalidade, o debate 193 ALBERIGO, Giuseppe (org.). Op. cit p. 150. Ver ainda OSTROGORSKY, Georg. Op. cit p. 179-180, e TREADGOLD, Warren. Op. cit. p. 360. 194 OSTROGORSKY, Georg. Op. cit p. 176. “um inimigo das imagens ainda mais apaixonado que seu pai.” (Tradução nossa).

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cristológico do século V. De maneira muito hábil, o imperador atrelou a produção e culto dos

ícones cristãos a pensamentos heréticos, para assim poder condenar os iconófilos, em especial

os monges.

Convocado o Sínodo, reuniram-se em Hieria trezentos e trinta e oito bispos, a

maioria da parte oriental de Bizâncio. Por não compartilharem dos pensamentos iconoclastas

de Constantino V, nem o papa, nem os patriarcas de Antioquia, Jerusalém ou Alexandria

participaram das reuniões. Por isso este Sínodo ficou conhecido como “acéfalo”, visto que

além das ausências citadas, o patriarcado de Constantinopla encontrava-se vacante naquele

momento. A presidência dos trabalhos ficou a cargo de Teodósio de Éfeso.

As atas originais, por constituírem um tipo de documentação de origem

iconoclasta, foram destruídas após Nicéia II. Assim, é através das atas desse Concílio

Ecumênico que é possível reconstituir as decisões do Sínodo de 754.

Nele, Constantino V apresentou aos bispos presentes um tratado teológico no qual

afirmava que a veneração dos ícones não consistia simplesmente num pecado de idolatria,

mas sim numa heresia. A diferença desses dois conceitos é sutil, como visto na Introdução,

relacionando a um culto de ídolos pagãos e heresia a um pensamento contrário aos dogmas da

Igreja.

Esse Sínodo pode ser considerado um divisor de águas na história da Querela

Iconoclasta, uma vez que decidiu a destruição dos ícones a partir de um argumento teológico.

Foi em Hieria que se apresentou à comunidade eclesiástica uma base teológica para refutar a

defesa dos ícones apresentada por João Damasceno, e não apenas uma exegese bíblica ou

interpretações de supostos castigos divinos. Além disso, foi a partir da promulgação das

definições desse Sínodo que a resistência monacal se apresentou como a principal defensora

do culto dos ícones em Bizâncio. Nos anos 760 assistiu-se no Império o período de maior

severidade e violência na perseguição contra os monges da capital.

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O Sínodo considerou a representação pictórica de Cristo como objeto contrário às

decisões do Concílio Ecumênico da Calcedônia, reunido em 451, onde havia sido definido

que no Cristo existiriam as duas naturezas, a humana e a divina, sem confusão, sem mudança,

sem divisão e nem separação.195

A justificativa de Constantino V para a proibição do culto dos ícones de Cristo

admitia apenas duas vertentes: a primeira era admitir que o Verbo tivesse sido circunscrito

com a carne, combinando as duas naturezas inconfundíveis de Cristo numa só, e assim sua

representação fosse digna de culto. Nesse caso, condenava-se o cristão por prática do

Monofisismo, que se opunha à doutrina das duas naturezas de Cristo, admitindo que Nele a

natureza divina tivesse absolvido a humana, confundindo assim duas naturezas que em Cristo

são inconfundíveis. Acrescentavam os iconoclastas que a carne de Cristo era

incircunscritível196, por ter sido divinizada. A outra vertente era admitir que a pintura

representaria apenas Sua natureza humana, separada do Verbo divino. Nesse caso, haveria

uma clara separação das duas naturezas que em Cristo são inseparáveis, representando-se

apenas a humana, como no Nestorianismo, que afirmava que o Cristo era portador de duas

naturezas distintas.

O trecho abaixo do Sínodo relaciona a iconofilia às heresias cristológicas dos

primeiros séculos:

[...] we have found that illicit craft of the painter was injurious to the crucial doctrine of our salvation, i. e., the incarnation of Christ, and that it subverted the six ecumenical councils that had been convened by God, while upholding Nestorius who divided into two sons the one Son and Logos of God who became man for our sake; yea [sic], and Arius, too, and Dioscorus and Eutyches and Severus who taught the confusion and mixture of the one Christ’s two natures.197

195 Cf. J. D. Mansi, Sacrorum Conciliolum nova et amplissima collectio, t. VII, Florentiae, 1762, cols. 107, 115 e 118. In: ESPINOSA, Fernanda. Op. cit. p. 58-59. 196 Circunscrever, do grego, perigrapho: tirar o contonro. Cf. LOWDEN, John. Op. cit p. 183. 197 MANGO, Cyril. Op. cit. p. 165. “Nós temos estabelecido que a ilícita arte do pintor era injuriosa para a crucial doutrina da nossa salvação, i.e., a encarnação de Cristo, e que ela subverte o sexto concílio ecumênico que tinha sido convocado por Deus, enquanto defendendo Nestório que dividiu em dois filhos o único Filho e Logos de Deus que tornou-se homem por nossa causa; ele, e Ário também e Dióscurus e Eutiques e Severus que

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Mais uma vez se percebe que a estratégia de ataque ao adversário durante a

Querela era o mesmo entre os dois grupos, pois o mistério da Encarnação, utilizado por

Damasceno para legitimar o culto dos ícones, foi aqui mencionado pelos iconoclastas para

justificar a destruição dos mesmos. Certamente, a exposição dessas idéias era uma resposta à

Apologia feita por Damasceno em 730, pois representava agora a primeira sistematização e

teorização dos pensamentos iconoclastas.

O texto do Sínodo condena tanto o pintor de ícones por tentar representar o

“inacessível”, quanto o fiel que os reverencia: “How senseless is the notion of the painter who

from sordid love of gain purses the unattainable [...]. So also, he who reveres [images] is

guilty of the same”198.

O argumento iconófilo de que a pintura pode representar a Encarnação de Cristo, a

qual pôde ser vista e tocada, e que tinha sido defendido até esse momento principalmente pelo

monge João Damasceno, foi rebatida habilmente por Constantino V. Ele considerou essa

atitude como prática herética do Nestorianismo. Afirma no Sínodo a respeito desse

pensamento:

[...] [It] is an impiety and an invention of the evil genius of Nestorius. (…) Granted, therefore, that at the Passion the Godhead remained inseparable from these [i.e., Christ’s body and soul], how is it that these senseless men… divide the flesh that had been fused with the Godhead and [itself] deified, and attempt to paint a picture as if it were that of a mere man?199

E no final do texto, seguem condenações de anátemas, ou seja, excomunhão, aos

que se prestam a representar a figura de Cristo, seja pela via nestoriana, seja pela monofisista.

ensinaram a confusão e mistura do único Cristo em duas naturezas.” (Tradução nossa). extraído por Cyril Mango da coleção de atas dos Concílios de Mansi. 198 Ibid. p. 166. “Que insensata é a noção do pintor de sórdido amor de alcançar o inatingível [...]. Então também, quem reverencia [imagens] é culpado da mesma blasfêmia”. (Tradução nossa). 199 Ibid. “[...] é uma impiedade e uma invenção do gênio mau de Nestório [...] Adimitiu, portanto, que pela Paixão a natureza divina permaneceu inseparável desse [i.e., o corpo e a alma de Cristo], que esses homens insensatos dividem a carne que tinha sido fundida com a natureza divina e [se] deificado, e tentado pintar uma figura como se ela fosse de um mero homem?” (Tradução nossa).

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O trecho abaixo nos mostra que o reforço da política iconoclasta com Constantino V visava a

proibição não só do culto de ícones na Igreja Ortodoxa bizantina,200 mas a sua própria

produção:

If anyone ventures to represent the hypostatic union of the two natures in a picture, and calls it Christ, [...] falsely represents a union of the two natures, let him be anathema. If anyone separates the flesh united with the person of the Word from it, and endeavours to represent it separately in a picture, let him be anathema.201

Segundo Besançon, o pensamento iconoclasta tinha como insustentável a relação

entre representação e protótipo, defendida pelos monges iconófilos. Para os primeiros, a

legítima imagem deveria ser consubstancial ao protótipo para ser cultuada. Nesse sentido, a

única imagem aceitável de Cristo seria a Eucaristia.202 Assim define o texto de Hieria:

The only true image of Christ is the bread and wine of the Eucharist as He Himself indicated. On the other hand, the images of the false and evil name have no foundation in the tradition of Christ, the apostles and the Fathers, nor is there a holy prayer that might sanctify an image, and so transform it from the common to a state of holiness; nay, it remains common and devoid of honor, just as the painter has made it.203

A questão que se coloca aqui é que, na doutrina cristã, a Eucaristia não é

considerada como representação de Cristo, mas seria o próprio Cristo em essência. Aqui,

protótipo e matéria partilham da mesma substância (homousios), não sendo procedente a

consciência da separação, proposta pelos iconófilos, entre protótipo e sua representação.

Segundo Besançon, essa concepção de Eucaristia se afasta da grega, que não pensava a

200 O sínodo de Hieria pretendia-se um Concílio Ecumênico, mas sem a adesão de suas idéias por parte do papa, em Roma, e dos demais patriarcas orientais, o raio de atuação de suas determinações acabaram se restringindo ao Patriarcado de Constantinopla. 201 Epitome of the Definition of the Iconoclastic Conciliabulum, Held in Constantinople, A.D. 754. In: Website www.fordham.edu. Medieval Sourcebook. Acessado em 25/05/2005. “Se alguém tenta representar a união hipostática das duas naturezas numa pintura, chamá-la de Cristo, [...] falsamente representa a união das duas naturezas, seja anematizado. Se alguém separa a carne unida com a pessoa do Verbo, e esforça para repesentá-la separadamente numa pintura, seja anatematizado.” (Tradução nossa). 202 BESANÇON, Alain. Op. cit p. 204. 203 MANGO, Cyril. Op. cit p. 166-167. “A única verdadeira imagem de Cristo é o pão e o vinho da Eucaristia como Ele próprio indicou. Por um lado, as imagens de nome falso e mal não tem fundamentação na tradição de Cristo, dos apóstolos e Padres, nem há uma oração santa que pode santificar uma imagem, e então transformá-la de comum a um estado de santidade; não, ela permanece comum e desprovida de honra, como o pintor que a fez.” (Tradução nossa).

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imagem como tendo participação no protótipo, mas se esforçava para manter a proximidade

com a semelhança. Ao contrário, essa união entre significado e significante se aliava ao ideal

de imagem do imperador Bizantino, que exprime em si a presença do poder real.204

Portanto, a maior preocupação das idéias apresentadas em Hieria não era a

semelhança física da representação, mas sim sua incapacidade para conter em si o próprio

Cristo em substância. A base desse argumento seria que o Cristo teria instituído a Eucaristia.

Ademais, não poderiam se santificar através de uma consagração de imagens, que lhes

conferia poderes que transcendem o aspecto puramente material. Desde os primeiros séculos

do Cristianismo, são as cerimônias de consagração que conferem o poder às imagens, não

possuindo estas valor sagrado algum antes disso.205 Os iconoclastas recusavam também as

tradições mais recentes em favor de uma tradição bíblica.

Além do bem articulado argumento contrário aos ícones de Cristo, em Hieria

foram propostas duas justificativas para estender sua proibição também às representações de

Maria e dos santos. Para os iconoclastas estes ícones não seriam necessários, uma vez que os

do próprio Cristo haviam sido condenados como ilícitos. Outra questão se aplicava por

relacionar o culto dos ícones às práticas pagãs. Diz o texto do Sínodo:

If, however, some say, we might be right in regard to the images of Christ, on account of the mysterious union of the two natures, but it is not right for us to forbid also the images of the altogether spotless and ever-glorious Mother of God, of the prophets, apostles, and martyrs, who were mere men and did not consist of two natures; we may reply, first of all: If those fall away, there is no longer need of these. But we will also consider what may be said against these in particular. Christianity has rejected the whole of heathenism, and so not merely heathen sacrifices, but also the heathen worship of images. The saints live on eternally with God, although they have died. If anyone thinks to call them back again to life by a dead art, discovered by the heathen, he makes himself guilty of blasphemy. Who dares attempt with heathenish art to paint the Mother of God, who is exalted above all heavens and the Saints? It is not permitted to Christians, who have the hope of the resurrection, to imitate the customs of demon-worshippers,

204 Ver BESANÇON, Alain. Op. cit p. 204. Ver também FREEDBERG, David. Op. cit pp. 437-438. 205 FREEDBERG, David. Op. cit p. 115-116.

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and to insult the Saints, who shine in so great glory, by common dead matter.206

A acusação feita aqui aos ícones como um tipo de matéria “morta” nos remete à

idéia de Constantino V considerar apenas a Eucaristia como imagem verdadeira de Cristo, por

ser consubstancial a Ele. Como tampouco há a presença da substância da pessoa representada

nos ícones de Maria, dos santos ou dos anjos, todas elas foram considerados obras sem vida e

sem valor para o culto, sendo assim, igualmente condenadas pelas definições iconoclastas de

754.

Mais adiante, o texto do Sínodo confirma essa condenação a todo tipo de

representação dentro do Cristianismo:

Supported by the Holy Scriptures and the Fathers, we declare unanimously, in name of the Holy Trinity, that there shall be rejected and removed and cursed one of the Christian Church every likeness which is made out of any material and color whatever by the evil art of painters.207

Na proclamação final do texto, os principais defensores da iconofilia, o antigo

patriarca de Constantinopla Germano e o monge João Damasceno, foram excomungados,

considerados traidores de Cristo e do Império. Além disso, o nome do imperador foi exaltado

como defensor da ortodoxia cristã, numa clara alusão ao papel religioso que deveria ser

cumprido pela autoridade imperial através do seu poder autocrático:

206 Epitome of the Definition of the Iconoclastic Conciliabulum, Held in Constantinople, A.D. 754 Website www.fordham.edu. Medieval Sourcebook. Acessado em 25/05/2005. “Se, entretanto, alguém diz, nós podemos estar certos em consideração às imagens de Cristo, por conta da misteriosa união das duas naturezas, mas não está certo para nós proibir também as imagens da imaculada e sempre gloriosa Mãe de Deus, dos profetas, apóstolos e mártires, que eram meros homens e não se constituíam de duas naturezas; nós podemos responder, em primeiro lugar: se aqueles caíram fora, não há grande necessidade destes. Mas nós também consideramos que pode ser dito contra estas em particular. O Cristianismo tem rejeitado todo o paganismo e não somente sacrifícios pagãos, mas também o culto pagão de imagens. A vida dos santos está eternamente com Deus, embora eles tenham morrido. Se alguém pensa em chamá-los de volta a vida novamente pela arte morta, descoberta pelo paganismo, ele se faz culpado de blasfêmia. Quem ousa tentar pela arte pagã pintar a Mãe de Deus, que é exaltada acima de todo o céu e dos santos? Não é permitido para os cristãos, que tem a esperança da ressurreição, imitar os costumes dos cultuadores de demônios e insultar os Santos, que brilham na grande glória, pela matéria morta comum” (Tradução nossa). 207 Ibid. “Sustentados pela Sagradas Escrituras e pelos Padres, nós declaramos unanimemente, em nome da Trindade Santa, que deve ser rejeitado, removido e amaldiçoado da Igreja Cristã toda semelhança que é feita de algum material e qualquer cor pela arte má dos pintores.” (Tradução nossa).

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This is the faith of the Apostles. Many years to the Emperors! They are the light of orthodoxy! Many years to the orthodoxy Emperors! God preserve your Empire! You have now more firmly proclaimed the inseparability of the two natures of Christ! You have banished all idolatry! You have destroyed the heresies of Germanus [of Constantinople], Georg and Mansur [mansour, John Damascene]. Anathema to Germanus, the double-minded, and worshipper of wood! Anathema to Georg, his associate, to the falsifier of the doctrine of the Fathers! Anathema to Mansur, who has an evil name and Saracen opinions! To the betrayer of Christ and the enemy of the Empire, to the teacher of impiety, the perverter of Scripture, Mansur, anathema! The Trinity has deposed these three!208

A argumentação de Hieria é particularmente simplista, utilizando a teologia

precedente não para justificar sua concepção, mas para tentar confundir os iconófilos, num

típico exercício de retórica e sofística. O texto do Sínodo deixa clara a existência de apenas

duas possibilidades para quem cultua ícones, ambas heréticas, não deixando espaço para

explicações de outra natureza. Dessa forma, o objetivo de Constantino V teria sido atacar os

iconófilos, a partir de uma argumentação conclusiva de valor teológico para a destruição dos

ícones.

A principal resistência às decisões de Hieria vinha dos monges bizantinos. Como

dissemos no capítulo 1, grande parte do poder econômico e social dos mosteiros provinha das

esmolas e doações deixadas pelos peregrinos ao visitar ícones e relíquias de santos dessas

instituições. Ostrogorsky afirma que a perseguição aos iconófilos nessa fase da Querela tomou

um caráter de uma campanha contra o monacato: “Ahora se perseguía a los monjes no solo

por rendir culto a las imágenes, sino simplesmente por su condición monástica, obligándoles a

cambiar de vida.”209

208 Epitome of the Definition of the Iconoclastic Conciliabulum, Held in Constantinople, A.D. 754. In: Website www.fordham.edu. Medieval Sourcebook. Acessado em 25/05/2005. “Esta é a fé dos Apóstolos. Muitos anos para os Imperadores! Eles são a luz da ortodoxia! Muitos anos para os Imperadores ortodoxos! Deus preserve seu Império! Vocês tem agora mais firmemente proclamado as inseparáveis duas naturezas de Cristo! Vocês tem banido toda a idolatria! Vocês têm destruído as hereisas de Germano [de Constantinopla], Georg e Mansur [João Damasceno]. Anátema para Germano, de falsa inteligência e cultuador de madeira! Anátema para Georg, seu cúmplice, pela falsificação da doutrina dos Padres! Anátema para Mansur, que tem um nome mal e opiniões sarracenas! Para o traidor de Cristo e inimigo do Império, por ensinar a impiedade, perverter a Escritura, Mansur, anátema! A Trindade tem deposto estes três!” (Tradução nossa). 209 OSTROGORSKY, Georg. Op. Cit p. 183.

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Portanto, há uma relação causal entre a Querela Iconoclasta e a perseguição dos

monges por parte do poder imperial bizantino. Entretanto, não se pode afirmar que essa

tentativa de enfraquecimento dos mosteiros tenha sido o objetivo principal da destruição dos

ícones, nem mesmo sob o governo de Constantino V.210

2.4 O abrandamento da iconoclastia com Leão IV: 775-780

A morte de Constantino V em 775, durante uma expedição contra os búlgaros, foi

regozijada pelos iconófilos e teria sido interpretada por eles como uma punição divina pelo

seu iconoclasmo. Posteriormente, esses partidários dos ícones se referiram ao imperador como

Kopronimus, que significa “Nome de Excremento”. Entretanto, Constantino V teria deixado

ainda muitos simpatizantes de suas idéias, particularmente membros do exército, que viam o

seu duradouro reinado de trinta e quatro anos como um período que só teria sido tão longo

por uma suposta aprovação divina de seu comportamento contra o culto de ícones.

Seu filho e sucessor no trono imperial foi coroado aos vinte e cinco anos de idade

como Leão IV (775–780). Este fora bem mais brando em sua iconoclastia que seu pai,

buscando inclusive moderar a oposição entre os favoráveis e contrários ao culto dos ícones.

Seu objetivo teria sido reduzir as controvérsias teológicas.211 Embora tenha mantido as

decisões do Sínodo de Hieria em vigor, Leão IV acabou abandonando as perseguições aos

monges e as medidas contrárias ao culto dos ícones da Virgem e dos santos.

Este atitude parece ter tido grande influência de dois fatores: primeiramente, as

pressões externas sobre o Império se abrandaram. Ao levarmos em consideração que o

momento de eclosão do conflito (e como veremos mais adiante, o seu retorno no século IX)

ser um período de tensões nas regiões de fronteira do Império, o fato de a iconoclastia se

210 Sobre a perseguição aos monges por parte dos imperadores iconoclastas, como forma de confisco de bens monásticos, ver TREADGOLD. Warren. Op. cit pp. 363-366, OSTROGORSKY, Georg. Op. cit pp. 182-184, HALDON, John. Op. cit pp. 33-35, e LEMERLE, PAUL. Op. cit pp. 77-79. 211 TREADGOLD. Warren. Op. cit p. 367.

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enfraquecer num momento de diminuição dessas tensões militares não deve ser

desconsiderado.

Para ganhar força e um maior número de adeptos, a iconoclastia precisava de uma

justificativa prática e não apenas teológica. Relacioná-la a uma punição divina, manifestada

através de ameaças e invasões de povos estrangeiros ao território bizantino, era uma dessas

justificativas. Num momento de diminuição dessas ameaças, a destruição de ícones perdia

importante parte de seu vigor. Também leve-se em consideração o fato de ter havido algumas

vitórias árabes na Anatólia nos últimos anos do governo iconoclasta de Constantino V, que

também foram interpretadas como manifestações da aprovação divina, contrária à imposição

da iconoclastia.212

Em segundo lugar, havia a esposa de Leão IV, Irene. Constantino V a escolheu

como esposa de seu filho, apesar de ela ter sido sempre favorável ao culto dos ícones, porque

ter uma ateniense na família imperial seria de grande importância numa época de reconquista

das terras gregas.

Um fato envolvendo a imperatriz nos chamou a atenção. Duas semanas após a

consagração de Paulo ao patriarcado de Constantinopla, em 780, Leão IV descobriu que

funcionários ligados diretamente à Corte introduziam ícones clandestinamente no palácio

imperial para serem objetos de culto da imperatriz. Leão IV puniu severamente seus

funcionários com açoites e repreendeu Irene duramente pelo acontecido, deixando de viver

com ela na condição de sua esposa.

Provavelmente Leão IV teria tentado reconciliar-se com Irene, depois que ela foi

suficientemente humilhada e tivesse demonstrado arrependimento.213 Entretanto, o imperador

acabou morrendo em setembro de 780, atacado por uma forte febre quando tentava colocar

sobre sua cabeça uma coroa doada por Heráclio ao tesouro da Igreja de Santa Sofia. Pelo

212 Ver OSTROGORSKY, Georg. Op.cit. p. 184. Também ANGOLD, Michel. Op. cit p. 78. 213 TREADGOLD. Warren. Op. cit p. 370.

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menos essa é a versão relatada pela imperatriz Irene, que com o ocorrido, emergiu ao poder

como regente de seu filho, o pequeno Constantino VI, então com apenas dez anos de idade. De

fato, parece muito suspeito esse relato de Irene para a morte de Leão IV. Segundo Treadgold,

ao que parece, agentes reais teriam matado o imperador a mando da própria imperatriz.214

A chegada ao trono de uma imperatriz iconófila veio a significar, sete anos mais

tarde, o fim do iconoclasmo, pelo menos de sua primeira fase, decretado pelo Concílio

Ecumênico de Nicéia, em 787, até ser novamente posto em vigor no ano de 815 pelo

imperador Leão V. As formas pelas quais Irene atuou para convocar o Concílio, e os

argumentos ali apresentados para justificar teologicamente o fim da iconoclastia, serão objetos

de nossa análise no capítulo 3.

214 Ibid.

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CAPÍTULO III:

NICÉIA II E A SEGUNDA FASE DA QUERELA ICONOCLASTA: 787-843

Após mais de meio século de destruição de ícones cristãos no Império Bizantino,

uma imperatriz regente, de origem ateniense, foi a principal responsável pelo que pretendia

ser o fim da Querela. Através de um Concílio Ecumênico, reunido na cidade de Nicéia, a

iconoclastia foi condenada e o culto dos ícones restaurado. Entretanto, durante o governo de

Leão V, o Armênio, um novo sínodo convocado para a capital do Império, em 815, fazendo

ressurgir no Patriarcado de Constantinopla a destruição de ícones como política oficial do

Estado. Essa nova fase da Querela Iconoclasta atravessou o reinado dos imperadores amóricos

Miguel II (820-829) e Teófilo (829-842).

O movimento iconoclasta, entretanto, já não apresentava a mesma força que havia

demonstrado no século VIII. Reduzido à capital do Império e seus arredores, e mesmo ali não

se percebendo unanimidade em sua aceitação, esse segundo momento da Querela não teve a

mesma duração da primeira. As discussões se encerraram definitivamente num Sínodo,

reunido em Constantinopla, em 843, conhecido como o Triunfo ou Synodikon da Ortodoxia,

que marcou o fim dos debates e a vitória definitiva do culto dos ícones em Bizâncio.

Como veremos nos tópicos 3.1 e 3.2 desse capítulo, a convocação de um Concílio

para condenar a iconoclastia não ocorreu sem que houvesse pressões dos adversários dos

ícones. Nessa primeira parte, buscaremos entender a atuação da imperatriz regente Irene para

que o Concílio fosse reunido e analisaremos também as suas decisões. Para tanto, as fontes

primárias são as atas dessas reuniões, nas quais se verifica a preocupação em atrelar o culto

dos ícones com as antigas tradições da Igreja, atentando para as diferenças entre os ícones e

ídolos pagãos. Essa defesa também partia do princípio que diante do ícone, o fiel não deve

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proceder a um culto de adoração, mas sim a uma honrosa veneração. Essas idéias tinham por

base os textos de João Damasceno.

No tópico 3.3 faremos uma breve análise da política interna bizantina e da sua

relação com o Ocidente após Nicéia II. No 3.4 veremos que a iconoclastia tinha voltando a ser

colocada em vigor em 815 pelo imperador Leão V e estendendo-se até 843. Nesse segundo

período da Querela, não encontramos inovações nos argumentos iconoclastas, mas sim uma

reativação das determinações do Sínodo de Hieria.

Assim como no século VIII, um monge e o Patriarca de Constantinopla se

destacaram na defesa da iconofilia. No tópico 3.5 procederemos à análise dos argumentos

iconófilos do Patriarca Nicéforo (c. 758–828), deposto do trono patriarcal, e de Teodoro

Studita (759–826), monge que tinha sido exilado por Leão V. Ao contrário das determinações

iconoclastas de 815, encontramos nos documentos dessas duas personagens da Querela a

apresentação de novos argumentos na defesa dos ícones, complementando e, às vezes, se

contrapondo ao Discurso de Damasceno. Entretanto, essas idéias pouco foram aproveitadas

no Synodikon da Ortodoxia, em 843. O estudo das definições finais desse sínodo, conhecido

nas Igrejas ortodoxas como Triunfo da Ortodoxia, será apresentado no último tópico desse

capítulo.

As principais fontes pesquisadas aqui, além das já citadas atas do Concílio de

Nicéia II, foram os documentos de defesa dos ícones, deixados pelo monge Teodoro Studita

em poemas, cartas, um testamento beneficiando o mosteiro de São João de Studius e as obras

teológicas do Patriarca Nicéforo. A estas, adicionamos as definições finais do Triunfo da

Ortodoxia. Sobre o pensamento iconoclasta nessa segunda fase, analisamos a carta escrita

pelo imperador Miguel II a Luís, o Piedoso, em 824, na qual se encontram informações sobre

seus pensamentos iconoclastas, além das determinações do sínodo de 815. A exemplo do que

ocorreu em relação aos textos do século VIII, as fontes iconoclastas do segundo período da

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Querela também foram destruídas, após 843. Por isso, a reconstituição das decisões de Leão V

são hoje possíveis apenas graças à obra Refutatio et eversio, do Patriarca Nicéforo.215

Vejamos, então, como que, em pouco mais de meio século, a iconoclastia fora

condenada, reavivada e definitivamente derrotada no Impéro Bizantino.

3.1- Irene e os preparativos para o retorno da iconofilia

Quando Irene subiu ao poder no Império Bizantino em 780, como regente de

Constantino VI (780–797), todos os principais cargos dentro do governo, os bispados e os

altos oficiais do exército eram ocupados por iconoclastas. Isso se deveu aos mais de cinqüenta

anos de política oficial de destruição de ícones. Há que se ressaltar ainda o fato de estarmos

falando de uma mulher, o que praticamente impedia sua subida ao comando do exército, cuja

lealdade era imprescindível.

Pelo fato de ser mulher, ateniense e iconófila, a chegada de Irene ao poder não se

deu sem resistência. Segundo John J. Norwich, o exército da Anatólia teria preferido um dos

cinco irmãos de Leão IV ao trono, mas Irene rapidamente conteve essa pequena rebelião e

seus líderes foram punidos.216 Nesse contexto, o pretendido fim da iconoclastia por Irene

deveria ser realizado com cautela.

A primeira atitude de Irene foi permitir o retorno dos iconófilos exilados. Depois,

foi substituindo aos poucos os bispos e alguns funcionários iconoclastas por outros favoráveis

ao culto dos ícones. Em 784 substituiu o Patriarca Paulo (780-784) pelo leigo Tarásio (784-

806), então secretário da imperatriz. No natal do mesmo ano, Tarásio passou pelo processo de

consagração e foi entronizado como Patriarca de Constantinopla.

215 Ed. P. J. Alexander, Dumbarton Oaks Papers, VII (1952), 58 ff. Citado por OSTROGORSKY, Georg. História Op. cit p. 168. 216 NORWICH, John Julius. Byzantium, the Early Centuries. New York: Alfred A. Knopf, 2001. p. 167.

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Tão logo ascendeu ao Patriarcado, Tarásio, que possuía boa formação teológica,

manifestou a necessidade de reunir um Concílio Ecumênico para colocar um fim à política de

destruição de ícones em Bizâncio. De fato, o objetivo dos imperadores isáuricos de impor a

iconoclastia a todo o mundo cristão havia malogrado, não tendo obtido apoio nem dos

Patriarcas do Oriente (Alexandria, Antioquia e Jerusalém), nem da autoridade papal em

Roma. Confinado ao território imperial , e mesmo dentro dele não constituindo uma

unanimidade, a destruição de ícones estava tornando o Cristianismo bizantino cada vez mais

isolado da Cristandade como um todo.

Tarásio convocou o concílio para o ano de 786, em Constantinopla, na Igreja dos

Santos Apóstolos. Para confirmar o caráter ecumênico desse concílio, foram convidados a

comparecerem os Patriarcas das sedes orientais e o Papa Adriano I (772– 795). Entretanto,

nem os demais Patriarcas nem o Papa compareceram pessoalmente ao Concílio, enviando

representantes.

Apenas iniciadas as discussões do Concílio, presidido por Tarásio, e contando

ainda com a presença da imperatriz regente e de seu filho Constantino VI, um incidente

obrigou a interrupção dos trabalhos. Soldados da guarda imperial e do exército invadiram a

Igreja dos Santos Apóstolos empunhando suas espadas e dispersando os participantes do

Concílio. Essa violenta atitude contou com o apoio de parte dos bispos presentes, de

tendências iconoclastas.217

Apesar de Irene contar com um Patriarca iconófilo e de ter retirado alguns

iconoclastas dos mais altos postos militares e de alguns bispados, substituindo-os por

iconófilos, grande parte do exército e da guarda imperial ainda mantinha posições contrárias

ao culto dos ícones. Isso se devia, provavelmente, aos longos anos de serviços prestados ao

imperador Constantino V. Essa falta de coesão na aceitação das idéias favoráveis aos ícones

217 Sobre a dispersão da primeira tentativa de se reunir um Concílio Ecumênico iconófilo em 786, ver ALBERIGO, Giuseppe. Op. cit.p. 152. Ver também OSTROGORSKY, Georg. Op. cit p. 186.

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da imperatriz foram decisivas para o fracasso desta primeira tentativa de acabar com a

iconoclastia.

A imperatriz então enviou as tropas iconoclastas do exército a uma oportuna

campanha contra os árabes nas fronteiras orientais do Império. Ao mesmo tempo, mandou vir

da Trácea tropas fiéis ao culto das imagens, confiando a elas a segurança de Constantinopla.

Em maio de 787, reuniu novamente o Concílio, desta vez, na cidade de Nicéia, onde a Igreja

havia reunido o seu primeiro Concílio Ecumênico, sob o imperador Constantino, o Grande,

em 325. Para que não haja confusão alguma em relação a este primeiro Concílio Ecumênico,

nos referiremos nesse capítulo ao concílio de 787 como Nicéia II, como grande parte dos

historiadores que tratam do tema. A essa nova reunião, presidida novamente pelo Patriarca

Tarásio, compareceram 350 bispos, mais os representantes do Papa Adriano I, dos

Patriarcados de Antioquia e Alexandria, do poder imperial, além, é claro, da própria

imperatriz regente Irene e de seu filho Constantino VI.

Entre os bispos participantes estavam os iconoclastas que, no ano anterior, haviam

colaborado para a dissolução do Concílio em Constantinopla. Era difícil para a imperatriz não

contar com a participação desses bispos, uma vez que eles compunham cerca de três quartos

da assembléia.218 Mas, mesmo sem contar com apoio desses bispos e de parte importante do

exército, o que teria motivado Irene a manter seu objetivo de condenar a iconoclastia em

Bizâncio? Suas crenças pessoais? Pressão do Papa, que havia pedido o fim do iconoclasmo

em uma carta enviada em 785?219 Ainda não encontramos uma resposta para essa questão.

Irene teria ameaçado os bispos com a perda de suas sedes episcopais caso se

negassem a participar desse Concílio Ecumênico.220 A partir dessa ameaça, esses bispos

teriam que demonstrar, diante da assembléia conciliar, um suposto arrependimento por seus

218 AUZÉPY, Marie-France. L’iconodulie: défense de l’image ou de la dévotion a l’image? BOESPFLUG, F. et LOSSKY, N. (Dir). Op. cit. p. 157. 219 Essa carta é citada por Jean-Claude Smith, em SCHMIT, Jean-Claude. L’Ocident, Nicée II et les images du VIIIª au XIIIª siécle. BOESPFLUG, F. et LOSSKY, N. (Dir). Op. cit. p. 272. 220 ALBERIGO, Giuseppe. Op. cit. p. 152.

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pensamentos contrários ao culto dos ícones e abjurar dessa crença.221 Essa renúncia pública

dos pensamentos iconoclastas são encontradas na Retratactio do Concílio de Nicéia II. Um

exemplo é a do bispo Basílio:

Je fais apel aux intercessions (πρεσβεια) de la Vierge, des puissances célestes et des saints, j’accepte les reliques des saints que j’embrasse (ασπαζοµαι) et devant lesquells je me prosterne (προσµονω) parce que j’ai foi dans le fait que par elles je participe au processus de sainteté. De la même façon, j’embrasse, je serre dans mes bras (περιπτυσσοµαι) et jaccorde la prosternation de respect aux icônes de l’economie charnelle du Christ, de la Vierge, des anges, des apôtres, prophètes, martyrs et de tous les saints.222

Esse suposto perdão da imperatriz em relação aos antigos iconoclastas não pode

ser visto unicamente como um ato de clemência de Irene. Para nós, essa reconciliação está

diretamente relacionada a uma atitude de defesa e precaução, haja visto que o grupo

iconoclasta, depois de cinqüenta anos à frente do poder imperial e eclesiástico, ainda tinha

muita força em Bizâncio. Marie-France Auzepy afirma ainda que, como estes compunham a

maioria dos bispos em Constantinopla, o Concílio deveria contar também com sua

presença.223

A forma encontrada por Irene para colocar fim a essa política foi muito mais

branda do que as atitudes tomadas por Leão III e Constantino V para sua imposição. Até

porque a experiência da primeira tentativa de reunião havia deixado claro que a iconoclastia

ainda estava muito viva em Bizâncio, principalmente no exército, e que a imperatriz não tinha

o total controle da situação. Essa nova forma de tratar do assunto pode ser justificada

primeiramente pelo fato de Irene ser uma imperatriz regente, por estar falando em nome de

221 OSTROGORSKY, Georg. Op cit. p. 187. 222 Retratactio: MANSI, XII, 1010-1011; anathème: 1010 E. Citado por AUZÉPY, Marie-France. L’iconodulie: défense de l’image ou de la dévotion a l’image? In: BOESPFLUG, F. et LOSSKY, N. (Dir). Nicée II 787-1987. Douze siècles d’images religieuses. Paris: Cerf: 1987. p. 159. “Eu apelo às interseções da Virgem, aos poderes celestes e dos santos, eu aceito as relíquias dos santos que abraço e diante das quais me prosto para que eu tenha fé no fate de por eles eu participar do processo de santidade. Da mesma forma, eu abraço, eu aperto em meus braços e concilio a prosternação de respeito aos ícones da economia carnal do Cristo, da Virgem, dos anjos, dos apóstolos, profetas, mártires e de todos os santos.” (Tradução nossa). 223 AUZÉPY, Marie-France. L’iconodulie: défense de l’image ou de la dévotion a l’image? BOESPFLUG, F. et LOSSKY, N. (Dir). Nicée II 787-1987. Douze siècles d’images religieuses. Paris: Cerf: 1987. p. 157-158.

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um imperador presente, mas que ainda não tinha idade para assumir plenamente o posto de

maior autoridade no Império.

O outro, e mais importante, era o fato de se tratar de uma mulher à frente do

Estado. Independente de ser uma regente, enquanto mulher, Irene não gozava da condição de

sacerdote inerente ao poder imperial bizantino. E essa era uma condição determinante para

que a autoridade política interferisse diretamente nos negócios da Igreja e, mais ainda, nos

próprios dogmas cristãos. Foi baseado nessa condição de sacerdote e de igual aos apóstolos

que Leão III impôs o iconoclasmo e que Constantino V deliberou a respeito desses assuntos

no Sínodo de Hieria.224

De fato, faltava a Irene a possibilidade de gozar do máximo de sua autoridade à

frente do Império e assim poder, como seus antecessores, impor seus pensamentos num

sínodo cristão. O fato de não poder se colocar como uma sucessora legítima de Pedro definia

o limite da autoridade da imperatriz em assuntos da Igreja de uma maneira ainda mais

determinante do que o fato de se tratar de uma regente. Assim, Irene teve que caminhar com

prudência no retorno à iconofilia em Bizâncio.

Ao contrário do imperador Leão III, que destituiu de seus cargos os bispos e o

Patriarca que não compartilhavam de seus pensamentos, Irene preferiu convidar para o

Concílio de Nicéia os mesmos bispos que um ano antes haviam colaborado para seu malogro

em Constantinopla, desde que se mostrassem supostamente arrependidos.

Toda essa prudência Irene de em relação aos iconoclastas desagradou aos monges

chamados “zelotas”, que representavam a ala mais radical entre os favoráveis ao culto dos

ícones.225 Estes não aceitavam de compromisso algum e esperavam uma punição mais severa

224 Sobre a autoridade autocrática do imperador bizantino, ver DAGRON, Gilbert. Empereur et prêtre; étude sur lê “cesaropapisme” byzantin. Paris: Éditions Gallimard, 1996. Ver também, do mesmo autor, Lawful Society and Legitimate Power: Εννοµοσ πολιτεια, εννοµοσ αρχη. In: LAIOU, Angeliki E., SIMON, Dieter. Law and Society in Byzantium: Ninth-Twelfth Centuries. Washington D.C.: Dumbarton Oaks, 1992. 225 OSTROGORSKY, Georg. Op cit. p. 187.

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da imperatriz aos iconoclastas por causa das perseguições aos monges iconófilos sofridas

durante o governo dos isáuricos, em especial, Constantino V.

Nessa tentativa de se colocar um fim na destruição dos ícones, não havia uma

sintonia dentro da Igreja em Bizâncio. De um lado os monges “zelotas”, que desejavam ver os

iconoclastas punidos. De outro, de tendência moderada, parte do clero secular chamada de

“políticos”, que acreditavam que deveriam adaptar-se às condições do Estado naquele

momento. Durante o Concílio, prevaleceu a ala moderada.226

3.2- As decisões do Concílio de Nicéia – 787

Reunido o concílio, foram realizadas oito reuniões, sendo a última delas no

palácio imperial em Constantinopla. Antes de passarmos a uma análise mais detalhada das

definições apresentadas em Nicéia, devemos esclarecer que, de modo geral, as decisões do

Sínodo de Hieria em 754 foram reconstruídas e todas refutadas.

Para que o culto de imagens dentro do Cristianismo ortodoxo fosse restaurado e a

iconoclastia condenada, os bispos ali reunidos sob o Patriarca de Constantinopla Tarásio,

apoiaram-se nos Discursos do monge João Damasceno, no que diz respeito à diferença entre

ídolos pagãos e ícones e em relação à atitude que o cristão deveria demonstrar diante dessas

representações. Vejamos como isso se deu.

Primeiramente, há um único ponto em que Nicéia II apresenta-se de acordo com

Hieria: no que se refere às discussões em torno das naturezas do Cristo. Nele foram

sustentadas as condenações do arianismo e do nestorianismo, realizadas pelo Concílio da

Calcedônia em 451, e a reafirmação da crença nas duas naturezas no Cristo, mantendo o título

de Maria como Mãe de Deus (Theotokos) e não mãe apenas da humanidade do Cristo.

We detest and anathematize Arius and all the sharers of his absurd opinion; also Macedonius and those who following him are well styled "Foes of the

226 Ibid.. p. 187.

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Spirit" (Pneumatomachi). We confess that our Lady, St. Mary, is properly and truly the Mother of God [...],as the Council of Ephesus has already defined when it cast out of the Church the impious Nestorius with his colleagues, because he taught that there were two Persons [in Christ]. With the Fathers of this synod we confess that he who was incarnate of the immaculate Mother of God and Ever-Virgin Mary has two natures, recognizing him as perfect God and perfect man, as also the Council of Chalcedon hath promulgated [...].We affirm that in Christ there be two wills and two operations according to the reality of each nature [...].227

De fato, tanto o Sínodo de Hieria quanto o II Concílio de Nicéia mantiveram-se

coerentes em relação às decisões conciliares da Calcedônia. O principal ataque do sínodo

iconoclasta de Hieria tinha sido em relação à criação e ao culto dos ícones, identificando-os

com as antigas heresias cristológicas. Para se defender da provável acusação de nestorianismo

ou monofisismo, os bispos do Concílio afirmaram que, pelo culto dos ícones, os cristãos não

confundiam as naturezas humana e divina, inseparáveis e inconfundíveis em Cristo. Ao

contrário, teriam sido os iconoclastas a cometer tal confusão.

When, therefore, Christ is portrayed according to His human nature it is obvious that the Christians, as Truth has shown, acknowledge the visible image to communicate with the archetype in name only, and not in nature; whereas these senseless people [the iconoclasts] say there is no distinction between image and prototype and ascribe an identity of nature to entities that are of different natures.228

227 The Decree of the Holy, Great, Ecumenical Synod, the Second of Nicea – 787. In: Website www.fordham.edu. Medieval Source Book. Acessado em 19/07/2006. “Nós detestamos e anatematizamos Ário e todos os seguidores de sua absurda opinião; também Macedonius e aqueles que o seguiram são também intitulados “Inimigos do Espírito” (Pneumatomachi). Nós confessamos que Nossa Senhora, Santa Maria, é propriamente e verdadeiramente Mãe de Deus [...], como o Concílio de Éfeso já tinha definido e expulsado da Igreja os ímpios Nestório com seus colegas, porque eles ensinaram que havia duas Pessoas [em Cristo]. Com os Padres desse sínodo nós confessamos que ele que foi nascido da imaculada Mãe de Deus e Sempre Virgem Maria tinha duas naturezas, reconhecendo-o como perfeito Deus e perfeito homem, como também o Concílio da Calcedônia tinha promulgado, [...]. Nós afirmamos que em Cristo havia duas vontades e duas operações conforme a realidade de cada natureza [...].”(Tradução nossa). 228 Atcs of the Seventh Ecumenical Council (787). In: MANGO, Cyril. Op cit. p. 173. “Quando, portanto, Cristo é retratado de acordo com Sua natureza humana é óbvio que os cristãos, como a Verdade tem mostrado, admitem a imagem visível para comunicar com o arquétipo em nome apenas e não em natureza; enquanto que essas pessoas insensíveis [os iconoclastas] dizem que não há distinção entre imagem e protótipo e relacionam uma identidade de natureza para entidades que são de naturezas diferentes.” (Tradução nossa).

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Em toda a documentação pesquisada, encontramos adjetivos que visavam

desqualificar o adversário durante a Querela. Nesse trecho encontramos um exemplo disso,

quando os iconófilos utilizam a expressão senseless para se referirem aos iconoclastas.229

O texto acima visa esclarecer que um ícone não busca circunscrever a natureza

divina. Entretanto, ao se delimitar o rosto de Cristo numa representação, se delimitam ali os

traços da segunda Pessoa da Trindade, na qual se conjugam as duas naturezas, sem separação

nem confusão. E Nicéia II reafirmou a crença na dupla natureza do Cristo, a humana e a

divina, inseparáveis e inconfundíveis:

The name “Christ” is indicative of both divinity and humanity – the two perfect natures of the Saviour. Christians have been taught to portray this image in according with His visible nature, not according to the one in which He was invisible; for the latter is uncircunscribable and we know from Gospel that no man hath seen God at any time.[John 1:18]230

A pintura do Cristo não pretendia, assim, circunscrever apenas a sua natureza

humana, mas sim o que, na conjugação dessas naturezas, pudesse se tornar visível para o fiel.

Retratar o visível no Cristo não significa necessariamente separar sua natureza humana da

divina.

No Evangelho de João, de onde foi extraído esse último trecho, há ainda um

complemento: “Ninguém jamais viu a Deus. O Filho único, que está no seio do Pai, foi quem

o revelou.”231 A alusão à Encarnação divina de Cristo foi a base para a justificativa do culto

dos ícones, não só em Nicéia II, mas que já no Discurso de João Damasceno e na carta do

Patriarca Germano, em 730. O fato de o próprio Cristo ter se deixado perceber, ver e tocar,

229 Cyril Mango, que publicou o documento nessa versão em inglês aqui consultada, chegou mesmo a esclarecer entre colchetes a quem se referia tal expressão. 230 Atcs of the Seventh Ecumenical Council (787). In: MANGO, Cyril. Op. cit. pp. 172-173. “O nome “Cristo” é indicativo de ambas, divina e humana – as duas perfeitas naturezas do Salvador. Cristãos têm sido educados para retratar essa imagem de acordo com Sua natureza visível, não de acordo com aquela na qual Ele era invisível; pois a última é incircunscrita e sabemos pelo Evangelho que nenhum homem viu Deus em nenhuma época. [João 1:18]” (Tradução nossa). 231 BÍBLIA SAGRADA, N.T. João 1:18. São Paulo, Edições Loyola, 1995.

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tornava lícita uma representação pictórica sua através dos ícones. Como vimos com

Ouspensky, sendo o ícone um testemunho da Encarnação, o fiel que a ele se apresenta para

cultuá-lo admite a crença de que o “Filho do Homem” é realmente Deus, a Verdade revelada.

Dessa forma, além de uma função didática, como transmissão de uma mensagem teológica ao

cristão, o ícone era ainda um símbolo da fé no dogma da Encarnação.232

Se os ícones de Cristo são legitimados pelo mistério da Encarnação e os da

Virgem e os dos santos por se tratarem também de pessoas que possuem formas definidas,

como então o Concílio se pronunciou em relação aos anjos, que são seres incorpóreos? Foi

necessário antropomorfizar esses seres. Isso foi feito pelo patriarca Tarásio, que afirmou:

“Tous les saints qui ont eté dignes de voir les anges les ont vus sous la forme humaine”.233

Pelo fato de não perceberem nos ícones um tipo de imagem especial, que serviria

para conduzir o fiel ao protótipo nele representado, os iconoclastas também foram acusados

pelo Concílio de tratar essas representações como ídolos pagãos. Isso denota uma visão dos

iconoclastas na qual o ícone não era considerado como um objeto sagrado, não havendo

distinção entre estes e outras imagens, devendo por isso receber o mesmo tratamento que os

ídolos. Suas atitudes foram consideradas pelo Concílio como profanas e caluniadoras.

[...] following profane men, led astray by their carnal sense, they have calumniated the Church of Christ our God, which he hath espoused to himself, and have failed to distinguish between holy and profane, styling the images of our Lord and of his Saints by the same name as the statues of diabolical idols.234

232 Cf. OUSPENSKY, Léonid Op. cit. 233 Citado por AUZÉPY, Marie-France. L’iconodulie: défense de l’image ou de la dévotion a l’image? In: BOESPFLUG, F. et LOSSKY, N. (Dir). Op. cit. p. 164. “Todos os santos que são dignos de ver os anjos, os vêem sob a forma humana.” (Tradução nossa). 234 The Decree of the Holy, Great, Ecumenical Synod, the Second of Nicea – 787. In: Website www.fordham.edu. Medieval Source Book. Acessado em 19/07/2006. “[...] seguindo homens profanos, sendo desviados pelos seus sensos carnais, eles tinham caluniado a Igreja de Cristo nosso Deus, que tinham sustentado para si, e tendo falhado em distinguir entre o sagrado e o profano, nomearam as imagens de nosso Senhor e dos seus Santos pelo mesmo nome como as estátuas de ídolos diabólicos.” (Tradução nossa).

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Essa é mais uma oportunidade em que se pode observar uma inversão de

acusação, com o objetivo de legitimar uma posição dentro da Querela. Em suma, o método de

acusação permaneceu o mesmo, alternando apenas o grupo que dele se aproveita. Após serem

acusados de idolatria e, em 754, de heresia por prática de um culto comparado ao pagão,

agora eram os iconófilos a imporem tal acusação a seus adversários. O procedimento em

Nicéia II foi demonstrar que, ao comparar o culto de um ícone cristão a um culto pagão, eram

os iconoclastas que não tinham sido capazes de diferenciar uma estátua pagã de um ícone que

represente Cristo, a Virgem ou algum dos santos. E o Concílio condenou com anátemas

aqueles que compararam os ícones com os ídolos condenados pela Escritura. Abaixo, seguem

as condenações de Nicéia II:

We anathematize the introduced novelty of the revilers of Christians. We salute the venerable images. We place under anathema those who do not do this. Anathema to them who presume to apply to the venerable images the things said in Holy Scripture about idols. Anathema to those who do not salute the holy and venerable images. Anathema to those who call the sacred images idols. Anathema to those who say that Christians resort to the sacred images as to gods. Anathema to those who say that any other delivered us from idols except Christ our God. Anathema to those who dare to say that at any time the Catholic Church received idols.235

Além de destruir imagens, os iconoclastas foram acusados em Nicéia II também

de destruir páginas de livros contendo iluminuras de ícones ou textos com ensinamentos sobre

as imagens. John Lowden nos apresenta relatos do texto conciliar que registram testemunhos

desse tipo de destruição de cultura material:

Demetrius the God-loving deacon and sacristan said: ‘When I was promoted sacristan at the holy Great Church [St. Sophia] at Constantinople, I examined the inventory and found that two books with silver bindings with images were missing. Having searched for them I discovered that the feretics had

235 The Decree of the Holy, Great, Ecumenical Synod, the Second of Nicea - 787. In: Website www.fordham.edu. Medieval Source Book. Acessado em 19/07/2006. “Nós anatematizamos a novidade apresentada pelos injuriadores dos cristãos. Nós saudamos as veneráveis imagens. Colocamos sob anátema aqueles que não fazem isso. Anátema para aqueles que ousam aplicar para as veneráveis imagens as coisas ditas na Sagrada Escritura sobre ídolos. Anátema para aqueles que não reverenciam as santas e veneráveis imagens. Anátema para aqueles que chamam as sagradas imagens de ídolos. Anátema para aqueles que dizem que os cristãos recorrem às sagradas imagens como deuses. Anátema para aqueles que dizem que algum outro nos livrou dos ídolos exceto Cristo ou Deus. Anátema para aqueles que ousam dizer que em alguma outra época a Igreja recebeu ídolos.” (Tradução nossa).

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thrown them in the fire and burnt them. I found another book... which dealt with the holy icons. The leaves containing passages on icons had been cut out by these deceivers. I have this book in my hands and I am showing it to the Holy Sinod.’ The same Demetrius opened the book and showed to everyone the excision of the leaves.236

Portanto, não eram apenas as representações que se prestavam diretamente ao

culto que os iconoclastas se preocupavam em destruir. Os livros que pudessem trazer algum

tipo de imagem que induzisse o fiel a um culto também eram alvos da iconoclastia. Vejamos

um outro caso:

Leontius, the holy secretary said: ‘There is, O Fathers, another astonishing thing about this book. As you can see it has silver covers and on either side of them it is adorned with the images of all the saints. Letting these be, I mean the images, they cut out what was written inside about images, which is a sign of utter folly.’...237

Essa prática de destruir também as informações sobre os ícones nos remete à

classificação dos tipos de imagens apresentadas por Damasceno, onde as representações

pictóricas apareciam em igual condição à palavra escrita (ver capítulo II). Ao que parece, os

iconoclastas também seguiam esse pensamento, preocupando-se em afastar o fiel de toda e

qualquer possibilidade de cair no pecado da idolatria. Nesse sentido, as imagens e os livros

que delas tratam poderiam conduzir o fiel ao mesmo erro e, por isso, deveriam ser igualmente

destruídas.

Outro argumento a ser ressaltado das atas do Concílio de Nicéia II é a importante

diferenciação que o texto faz em relação às atitudes de latreia (adoração) e proskinesis

236 Atas do Concílio Ecumênico de Nicéia II. 787. In: LOWDEN, John. Op. cit p. 160. “ Demetrius o diácono e sacristão amado de Deus disse: ‘Quando eu fui promovido sacristão da santa Grande Igreja [St. Sofia] em Constantinopla, eu examinei o inventário e percebi que dois livros com prata amarrado com imagens foram perdidos. Tendo os procurado, descobri que os hereges tinham os atirado no fogo e os queimado. Eu encontrei outro livro... que tratava dos santos ícones. As páginas contendo passagens sobre ícones tinham sido arrancadas por esses impostores. Eu tenho esse livro em minhas mãos e estou mostrando-o para o Santo Sínodo’. O próprio Demetrius abriu o livro e mostrou a todos a exceção das páginas.” (Tradução nossa). 237 Atas do Concílio Ecumênico de Nicéia II. 787. In: LOWDEN, John. Op. cit p. 160. “Leontius, o santo secretário disse: ‘Há, Ó Padres, outra coisa surpreendente sobre esse livro. Como vocês podem ver ele era revestido com prata e dentro dele é adornado com imagens de todos os santos. Deixando estas inalteradas, digo as imagens, eles arrancaram o que estava escrito ao lado sobre as imagens, o que é um sinal de total estupidez.” (Tradução nossa).

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(veneração). Essas definições foram também baseadas no Discurso de João Damasceno. O

Concílio reiterou as palavras desse monge, afirmando que às imagens são rendidas saudações

e reverências honrosas, que são diferentes da adoração, da qual somente Deus seria digno. Diz

o texto:

[...] and to these should be given due salutation and honourable reverence (aspasmon kai timhtikhn proskunh-sin), not indeed that true worship of faith (latreian) which pertains alone to the divine nature; but to these, as to the figure of the precious and life-giving Cross and to the Book of the Gospels and to the other holy objects, incense and lights may be offered according to ancient pious custom.238

A inclusão do ícone dentro desse grupo de objetos sagrados remete ao pensamento

de João Damasceno, que defendia a veneração do ícone enquanto matéria, da mesma foram

com eram também matéria o lenho da Cruz, os Evangelhos e os vasos sagrados. Porém,

diferente da citação de Nicéia II, Damasceno inlcuía nesse grupo também as espécies

eucarísticas, o que lhe abria o flanco às críticas iconoclastas, por aproximar sua defesa das

práticas supersticiosas, de devoção popular.239

Em Nicéia II foi reiterada ainda a idéia de que o ícone tem a função de servir

como um meio de conduzir a prece do fiel ao protótipo que ele representa: “For the honour

which is paid to the image passes on to that which the image represents, and he who reveres

the image reveres in it the subject represented.”240

Outro ponto importante nas atas de Nicéia II, e já presente na Querela desde João

Damasceno, é o apelo que foi feito às tradições cristãs de criação e culto dos ícones. Nesse

238 The Decree of the Holy, Great, Ecumenical Synod, the Second of Nicea - 787. In: Website www.fordham.edu. Medieval Source Book. Acessado em 19/07/2006. “[...] e para essas devem ser dadas a devida saudação e reverência honrosa (aspasmon kai timhtikhn proskunh-sin), não aquele verdadeiro culto de fé (latreian) que pertence apenas a natureza divina; mas para essas, como para a figura da preciosa e dádiva da vida a Cruz e para os Livros dos Evangelhos e para outros objetos sagrados, incenso e luzes podem ser oferecidos de acordo com antigos costumes pios.” (Tradução nossa). 239 Cf. BESANÇON, Alain. Op. cit p. 208-209. 240 The Decree of the Holy, Great, Ecumenical Synod, the Second of Nicea - 787. In: Website www.fordham.edu. Medieval Source Book. Acessado em 19/07/2006. “Para a honra que é devida à imagem passa pelo que a imagem representa e aquele que reverencia a imagem reverencia a pessoa representada.” (Tradução nossa).

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trecho do Concílio, por exemplo, percebermos a presença dessas idéias, baseadas em João

Damasceno:

To make our confession short, we keep unchanged all the ecclesiastical traditions handed down to us, whether in writing or verbally, one of which is the making of pictorial representations, agreeable to the history of the preaching of the Gospel, a tradition useful in many respects, [...].241

E esse peso que a tradição exerceu nos debates foi ligado diretamente à fé dos

apóstolos, aos primórdios do Cristianismo e à legislação patrística.

This is the faith of the Apostles, this is the faith of the orthodox, this is the faith which hath made firm the whole world. Believing in one God, to be celebrated in Trinity, we salute the honourable images! Those who do not so hold, let them be anathema. Those who do not thus think, let them be driven far away from the Church. For we follow the most ancient legislation of the Catholic Church. We keep the laws of the Fathers.242

João Damasceno insistia tanto nas tradições escritas quanto nas não escritas da

Igreja, que deveriam ser respeitadas. “We do not change the boundaries marked out by our

Fathers. (Prov. 22:28) Keep the tradition we have received”243, diz Damasceno. E completa:

“The making of icons is not the invention of painters, but [expresses] the approved legislation

of the Catholic Church.”244

Essa defesa da tradição reverte se lembrarmos a acusação iconoclasta de que os

ícones seriam uma invenção dos pintores que rompiam com as tradições da Igreja, adotando

práticas semelhantes às pagãs. Tratava-se de uma inversão na direção das acusações, pois 241 The Decree of the Holy, Great, Ecumenical Synod, the Second of Nicea – 787. In: Website www.fordham.edu. Medieval Source Book. “Para fazer nossa breve confissão, mantivemos imutáveis todas as tradições eclesiásticas a nós transmitidas, sejam por escrito ou verbalmente, uma das quais faz da representação pictórica, unida à história de pregações do Evangelho, uma tradição usada com muito respeito.” (Tradução nossa). 242 The Decree of the Holy, Great, Ecumenical Synod, the Second of Nicea - 787. In: Website www.fordham.edu. Medieval Source Book. Acessado em 19/07/2006. “Essa é a fé dos apóstolos, essa é a fé da ortodoxia, essa é a fé que tem feito forte todo o mundo. Acreditando em um Deus, ser celebrado na Trindade, nos saudamos as honoráveis imagens! Aqueles que assim não acreditam, deixe-os ser anatematizados. Aqueles que assim não pensam, deixe-os ser guiados para longe da Igreja. Porque nós seguimos a mais antiga lei da Igreja Católica. Nós guardamos as leis dos Padres.” (Tradução nossa). 243 St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images In: Website www.fordham.edu. Medieval Source Book. Acessado em 19/07/2006. “Nós não alteramos os limites marcados por nossos pais (Prov. 22:28) nós mantemos a tradição que temos recebido.” (Tradução nossa). 244 Atcs of the Seventh Ecumenical Council (787). In: MANGO, Cyril. Op. cit p. 172. “A produção de ícones não é uma invenção dos pintores, mas [expressa] a aprovada legislação da Igreja Católica.” (Tradução nossa).

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agora eram os iconófilos que falavam em nome de uma verdadeira tradição. Se os ícones já

faziam parte do culto cristão, era a sua destruição que deveria ser relacionada com uma

ruptura.

Portanto, se em Hieria a produção e culto dos ícones foi condenado como uma

prática sem embasamento na Escritura, diretamente ligada ao paganismo e guiada por atitudes

nestorianas ou monofisistas, agora o Concílio Ecumênico encontrava na tradição da Igreja um

alicerce para seus pensamentos.

Definidos esses pontos, o texto segue para as condenações finais do Concílio.

Those, therefore who dare to think or teach otherwise, or as wicked heretics to spurn the traditions of the Church and to invent some novelty, or else to reject some of those things which the Church hath received (the Book of the Gospels, or the image of the cross, or the pictorial icons, or the holy reliques of a martyr), or evilly and sharply to devise anything subversive of the lawful traditions of the Catholic Church or to turn to common uses the sacred vessels or the venerable monasteries, if they be Bishops or Clerics, we command that they be deposed; if religious or laics, that they be cut off from communion.245

Ao proceder às excomunhões por conta da iconoclastia, o texto do Concílio se

referia tanto à não reverencia aos ícones com a honra que a eles é devida quanto também pela

ruptura que a destruição dos ícones provocava com as antigas tradições da Igreja.

Nas condenações finais do Concílio, não foram dirigidas excomunhões contra

Leão III e Constantino V. Isso chama a atenção porque, como vimos no capítulo II, as

definições finais do Sínodo de Hieria citavam diretamente os nomes de João Damasceno e do

Patriarca de Constantinopla Germano, que por terem encabeçado a defesa da iconofilia na

primeira metade do século VIII, foram anatematizados em 754.

245 The Decree of the Holy, Great, Ecumenical Synod, the Second of Nicea - 787. In: Website www.fordham.edu. Medieval Source Book. Acessado em 19/07/2006. “Aqueles, então, que ousaram pensar ou ensinar de outra forma, ou como uma heresia má para rejeitar as tradições da Igreja e invertar alguma novidade, ou ainda rejeitar alguma das coisas que a Igreja tinha admitido (os Livro dos Evangelhos, a imagem da Cruz, pinturas de ícones ou as santas relíquias dos máritires), ou com maldade e severidade inventaram alguma subversão às leis tradicinais da Igreja Católica ou tornaram usos comuns os vasos sagrados ou os veneráveis monastérios, se são bispos ou clérigos, nós ordenamos que seja deposto; se religioso ou laico, que seja excluído da comunhão” (Tradução nossa).

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No fim do texto de Nicéia II, seguiam desejos de vida longa ao Imperador,

encerrando os trabalhos. O fim do Concílio marcava também o fim do primeiro período da

Querela Iconoclasta em Bizâncio, restaurando o culto dos ícones cristãos. Entretanto, como

veremos, a iconoclastia voltaria a se tornar a política oficial do Império a partir do ano de 815.

Encerrado esse primeiro período, uma questão pode ser levandada: que

providências poderíamos esperar do Patriarcado de Constantinopla em termos práticos? Duas

prováveis respostas poderiam surgir. A primeira seria uma punição aos antigos bispos

iconoclastas, a exemplo do que havia acontecido com os monges iconófilos após o Sínodo de

Hieria. A segunda era uma justificável reconciliação do patriarcado com a Sé romana.

Entretanto, nem uma nem outra se concretizou.

Terminadas as reuniões, o Patriarca Tarásio não procedeu a punição alguma aos

destruidores de ícones, preferindo antes a reconciliação, a exemplo do que tinha feito a

imperatriz Irene pouco antes do Concílio. Michel Angold cita a insinuação, por parte do

monge Sabásio de Studius, de que o Patriarca estivesse apenas cumprindo ordens imperiais.

Além dele, outros monges também acusavam Tarásio de ter sido leniente demais em relação

aos iconoclastas e disposto a acatar qualquer ordem imperial.246 Se a imperatriz não possuía as

atribuições sacerdotais do governo bizantino por ser mulher, então o que poderia fazer com

que o Patriarca lhe fosse submisso em relação a assuntos da administração eclesiástica?

Provavelmente, a resposta está no fato de Tarásio não ter sido sacerdote nem monge antes de

se tornar Patriarca da maior sede episcopal do Oriente. Tarásio era então funcionário do

Estado, um leigo com boa formação teológica e visão política. E, mais importante, era alguém

da confiança de Irene. Portanto, sua ascensão ao Patriarcado estaria mais ligada a questões

políticas, por se tratar de um iconófilo, do que religiosas. Provavelmente por conta disso,

Tarásio falasse sempre em nome da imperatriz.

246 ANGOLD, Michael. Op. cit pp. 79-80.

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A possibilidade de uma reaproximação entre as Igrejas de Constantinopla e Roma

também não ocorreu. Tendo enviado um representante ao Concílio, o Papa Adriano I esperava

que além das medidas religiosas, Nicéia II se pronunciasse também em relação à política

eclesiástica do período. A esperança do Papa era que fosse reafirmada a primazia da Sé

romana sobre os Patriarcados orientais e restituídos os direitos de Roma sobre os territórios do

sul da Itália e do Ilírico.247 Porém, a questão da soberania papal sobre os territórios perdidos

durante o governo de Constantino V não foi sequer citada durante o Concílio. Ademais, foram

suprimidas de uma carta enviada por Adriano I a Nicéia passagens referentes à primazia de

Roma e a sua crítica sobre a escolha do leigo Tarásio para ocupar o trono Patriarcal.248

Dessa forma, mesmo após a restauração do culto dos ícones em Bizâncio, as duas

maiores sedes episcopais do Cristianismo continuavam distantes, demonstrando que uma

reconciliação seria algo praticamente impossível. De fato, a influência do poder papal havia se

diluído no Oriente, enquanto que no Ocidente, não verificamos tampouco a atuação dos

poderes Patriarcal ou imperial de Constantinopla, que permaneceu à frente dos demais

Patriarcados orientais, eliminando ali a influência da Sé romana.

Tanto Roma quanto Bizâncio desejavam tornar-se o cume hierárquico de toda a

eocumene cristã. Entretanto, esse choque entre dois projetos universalistas, agravado durante

a primeira fase da Querela, demonstrou que o rompimento do corpo cristão entre Oriente e

Ocidente envolvia questões de uma política imperialista, e não somente pensamentos

religiosos.

247 OSTROGORSKY, Georg. Op. cit p. 191. 248 Ibid.

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3.3- Pós-Nicéia II: um breve período de restauração da iconofilia: 787-815

O abismo que separava o Oriente bizantino do Ocidente latino se alargava ainda

mais após Nicéia II. E uma das provas desse distanciamento foi a recusa por parte do

imperador carolíngio em acatar as decisões do Concílio iconófilo como representante da

totalidade da sociedade cristã.249 Além disso, a aliança do papado com o Reino Franco no

Ocidente, agora governado por Carlos Magno, se mantinha cada vez mais sólida.

O principal foco da discussão foi uma versão errônea das decisões conciliares que

teria sido enviada ao imperador, onde tanto os termos latréia quanto proskinesis, que se

referiam a atitudes distintas, apareciam na tradução para o latim como adorare. Dessa forma,

uma discussão que ocupou boa parte dos debates em Nicéia havia sido diluída nessa tradução

equivocada. Carlos Magno teria manifestado uma atitude de neutralidade, recusando-se a

aceitar tanto as decisões iconófilas do Concílio de 787 quanto as iconoclastas do período

anterior. Esse posicionamento do rei franco ficou registrado nos Libri Carolini, quatro livros

onde Carlos Magno manifestava sua crítica tanto às idéias de Hieria quanto às de Nicéia II.

Escrito por teólogos ligados à Corte franca entre os anos 790 e 792, os Libri Carolini

representaram um posicionamento oficial dos francos frente às decisões de Nicéia, porém

baseado numa tradução incorreta das decisões conciliares, como citamos acima.

Ao rejeitar a idéia de que os ícones pudessem ser cultuados, embora servissem

como ornamentos para instrução e manutenção da memória dos eventos passados, a postura

tomada pelo imperador dos Francos se aproximava das idéias do Papa Gregório, o Grande.

Ambos concordavam que as imagens religiosas serviriam como instrumento de pedagogia

cristã, recusando assim tanto a atitude de destruí-las quanto de cultuá-las.

249 Sobre a recusa do Ocidente em aceitar as decisões do Concílio de Nicéia II, ver SCHMITT, Jean-Claude. L’Ocident, Nicée II et les Images du VIII au XIII Siècle. In: BOESPFLUG, F. et LOSSKY, N. (Dir). Op. cit. pp. 271-282.

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Para oficializar sua posição, Carlos Magno chegou mesmo a convocar um sínodo

na cidade de Frankfurt, em 794. Ao que parece, e nesse ponto concordamos com Ostrogorsky,

Carlos Magno estaria buscando uma posição religiosa autônoma, independente da

bizantina.250 Nesse sínodo havia representantes do Papa, o que solidificava ainda mais a

aliança entre o papado e os francos. Apesar de toda essa iniciativa, as discussões envolvendo

o culto de imagens não tiveram no Ocidente a mesma repercussão que se deu no Império

Bizantino.

Nesse sínodo decidiu-se pela permissão de imagens nos templos, embora a função

destas, segundo os bispos carolíngios, não implicaria em favorecer um transitus251 do material

ao divino. Numa refutação preparada por Alcuíno e Teodulfo de Orleans, afirma-se:

“Também permitimos que haja imagens nas basílicas dos santos, não com um objetivo de

adoração mas para lembrar suas ações e embelezar as paredes.”252 Sendo assim, além de

excitar a memória do fiel para as boas obras, como sugeriu Gregório Magno, ficava claro que

as imagens cristãs também teriam, no Ocidente, a função de ornamentar os espaços sagrados,

algo inconcebível entre os cristãos orientais.

Enquanto Carlos Magno tentava firmar uma posição religiosa autônoma em

relação à Igreja de Constantinopla, a década de 790 foi de constante disputa pelo trono

bizantino entre a então imperatriz regente e seu filho e herdeiro legítimo do trono,

Constantino VI. Irene pretendeu se manter no poder, mesmo após seu filho ter atingido a

maioridade, mantendo-o apenas como um co-imperador. E para isso, contou com o apoio das

tropas da capital do Império. Entretanto, parte do exército dos themas da Ásia Menor, sob

250 OSTROGORSKY, Georg Op. Cit pp. 191-192. 251 Conceito que, segundo Jean-Claude Schmitt, se refere a uma passagem entre uma forma material e o protótipo divino. SCHMITT, Jean-Claude. L’Ocident, Nicée II et les Images du VIII au XIII Siècle. In: BOESPFLUG, F. et LOSSKY, N. (Dir). Nicée II 787-1987. Douze siècles d’images religieuses. Paris: Cerf: 1987. p. 274. 252 BESANÇON, Alain. Op. cit. p. 247.

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liderança dos armênios, fez forte resistência às pretensões de Irene. O resultado foi a

aclamação de Constantino VI como único imperador em 790.

Pouco depois de chegar ao poder como soberano, Constantino VI acabou sofrendo

derrotas militares diante dos búlgaros, provocando uma desilusão por parte de seus partidários

e favorecendo o retorno de sua mãe ao seu lado no trono, em 792. Além dessas baixas, o novo

imperador demonstrou ter pouca habilidade na condução do seu governo, conseguindo a

antipatia tanto dos iconófilos quanto dos iconoclastas.

Primeiro, para evitar um golpe que o tirasse do poder, mandou cegar a um tio e

cortar a língua dos outros quatro. Mutilações dessa natureza impediam que esses homens

chegassem ao poder, pois o imperador nunca poderia ser alguém que tivesse algum tipo

deficiência física. Aliás, a aplicação desse tipo de violência para impedir a alguns homens a

ascensão ao poder não foi rara na história bizantina. Devido a atitudes como essa, as tropas do

exército que outrora apoiaram Constantino VI na subida ao poder, mostravam-se agora hostis

a ele.

Os monges zelotas também se voltaram contra o imperador. Além da insatisfação

desses monges com a clemência da regente Irene em relação aos iconoclastas, a indignação

agora se voltava contra um comportamento desviante do imperador, que havia rejeitado sua

esposa para casar-se com sua amante Teodora, dama da corte, coroando-a como Augusta.

Esse comportamento contrariava os mandamentos da Igreja, sendo completamente

desaprovado pelos ortodoxos.

Sem o apoio tanto dos iconófilos quanto da oposição iconoclasta, Constantino VI

sofreu uma derrubada do poder, sem que nenhum grupo se manifestasse a seu favor. Em 797,

sua própria mãe Irene mandou cegá-lo, eliminando-o do poder. Com isso, Irene se tornou

imperatriz soberana, sendo a primeira mulher a governar o Império Bizantino em seu próprio

nome, como soberana absoluta. Ficou no poder até de 802, um ano antes de sua morte.

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Seu sucessor, Nicéforo I (802-811) não colocou em risco o culto de imagens,

embora tenha contribuído para alargar o distanciamento entre os monges e o poder imperial.

O motivo agora era a reconhecimento, por parte do imperador, do casamento entre

Constantino VI e Teodora, que tinha sido considerado um adultério anos antes. Os monges do

mosteiro de Studius chegaram mesmo a romper abertamente com a Igreja de Constantinopla,

expondo-se a perseguições e exílios por parte do poder imperial.

Os studitas só voltaram do exílio e se reconciliaram com o poder eclesiástico no

governo de Miguel I (811-813), o último imperador antes da nova explosão iconoclasta. Nesse

período também cresceu a influência do monge Teodoro Studita, o principal nome da defesa

do culto aos ícones no século IX.

3.4- O retorno à iconoclastia no século IX

Os primeiros anos do século IX não foram favoráveis para os bizantinos no campo

militar. Os búlgaros haviam conseguido importantes vitórias e se aproximavam da capital. A

incapacidade de Miguel I conter as investidas búlgaras levou à sua queda e à ascensão de um

comandante do exército ao trono: Leão V (813-820).

Seguindo os passos dos imperadores isáuricos Leão III e Constantino V, Leão V,

o Armênio, também tinha uma origem militar, vindo da Ásia Menor. Sua meta inicial no

governo foi restabelecer a força do exército bizantino diante dos búlgaros e eslavos, além de

reavivar a política iconoclasta, oficialmente condenada no Concílio de Nicéia II. Segundo sua

crença, as derrotas militares diante desses inimigos nos últimos anos teriam uma ligação

direta com uma punição divina aos cristãos de Bizâncio, por estes terem legitimado as práticas

de culto aos ícones em 787. Assim, o cenário no qual a iconoclastia retornou tinha

semelhanças com aquele de Leão III no século VIII: a crença num possível castigo de Deus ao

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Império cristão por uma prática de culto considerado idolátrico, manifestado através de uma

ameaça de invasão e conquista estrangeira infiel.

Embora a expansão islâmica no século VII tivesse conquistado as ricas províncias

bizantinas do Egito, Palestina e Síria, Bizâncio conseguiu defender sua capital dos árabes e de

búlgaros, com quem se observam conflitos a partir da segunda metade do século VIII. Assim,

mesmo conseguindo importantes vitórias na defesa de parte de suas fronteiras, os constantes

combates contra esses inimigos estrangeiros mostram que o perigo de uma ameaça externa era

uma preocupação constante para o imperador bizantino. E nos momentos da explosão da

iconoclastia em 730, e de sua retomada em 815, esse perigo estrangeiro foi utilizado como

justificativa para uma ação contrária ao culto dos ícones.253 Depois de algumas batalhas nos

arredores de Constantinopla, Leão V fixou uma paz de trinta anos entre bizantinos e búlgaros,

tendo tempo assim para colocar em prática seu objetivo de retorno do movimento iconoclasta.

Como era importante contar com o apoio do exército, que sempre foi de tendência

iconoclasta, e também devido ao fato de ser natural da Armênia, local onde a iconoclastia, já

antes da Querela, encontrava boa parte de seus adeptos, Leão V logo agiu a favor dos

iconoclastas. Primeiramente, em 813, tinha proibido os ícones em locais visíveis nas

igrejas.254 Posteriormente, o então Patriarca de Constantinopla Nicéforo foi deposto, a

exemplo do que já havia acontecido em 730 com Germano, e substituído no domingo de

Páscoa de 815, pelo cortesão Teodato Meliseno.

O passo seguinte foi a convocação de um Sínodo para oficializar novamente a

política de destruição dos ícones no Império Bizantino. Para esse novo sínodo, João, o

Gramático, fora encarregado de reunir a documentação necessária para colocar em vigor a

iconoclastia. Este Sínodo se reuniu na Igreja de Santa Sofia em Constantinopla, no ano de 253 Cf. OSTROGORSKY, Georg. Op. cit p. 208. 254 Informação citada Miguel II a Ludovico, o Pio, em 824 (MANSI, 14, col. 420), citado por ALBERIGO, Giuseppe. O Segundo Concílio de Nicéia (786/787) ou Sétimo Concílio Ecumênico. In: História dos Concílios Ecumênicos. Tradução de José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 1995. p. 153.

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815. Nesta ocasião, apenas esse florilegium iconoclasta de João, ou seja, uma compilação de

textos contrários ao culto dos ícones, foi acrescentado às idéias apresentadas em Hieria. Por

conta disso, Georg Ostrogorsky afirmou que esse Sínodo carregou a marca de ser apenas uma

impotente imitação das decisões de 754.255 Não houve, nesse segundo período da iconoclastia,

nenhuma grande inovação em seus fundamentos teológicos em relação ao século anterior.

Esse também pode ter sido um dos motivos para a falta de adesão da população cristã

ortodoxa nessa segunda fase da Querela.256

Reunido o Sínodo, foram recusadas as decisões de Nicéia II e colocadas

novamente em prática as de Hieria, ordenando-se assim a destruição de todos os ícones

cristãos. Para tanto, as decisões conciliares de 787, agora refutadas, foram atribuídas não

somente ao desvio dos bispos iconófilos, mas também pelo fato de o Império ter sido

governado naquele momento por uma mulher. Assim diz o texto do Sínodo:

[...] wherefore the Church of God remained untroubled for many years and guarded the people in peace; until it chanced that the imperial office passed from [the hands of] men into [those of] a woman, and God’s Church was undone by female frivolity: for, guided by most ignorant bishops, she convened a thoughtless assembly, and put forward the doctrine that the incomprehensible Son and Logos of God should be painted [as He was] during the Incarnation by means of dishonored matter.257

Existem duas afirmativas a serem ressaltados em relação à forma como o texto

desse sínodo se refere ao Concílio de Nicéia II. Primeiro, o fim da iconoclastia fora fruto da

atuação de “bispos ignorantes” através da figura da imperatriz. Como vimos, é mais provável

que Irene tenha agido através, principalmente, da figura do Patriarca Tarásio para fazer

255 OSTROGORSKY, Georg. Op cit. p. 210. 256 Cf. ALBERIGO, Giuseppe. Op. cit 257 Definitions (Horos) of the Iconcoclastic Council of 815. In: MANGO, Cyril. Op cit. p. 168. “[...] portanto, a Igreja de Deus permanceu tranqüila por muitos anos e mantendo as pessoas em paz; até acontecer que o serviço imperial passou [das mãos] de homens para de uma mulher, e a Igreja de Deus foi arruinada pela frivolidade feminina: já que, guiada pelos bispos mais ignorantes, ela reuniu uma imprudente assembléia e levou adiante a doutrina de que o incompreensível Filho e Logos de Deus podia ser pintado [como ele foi] durante a Encarnação por meio de desonrosa matéria.” (Tradução nossa).

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prevalecer suas convicções a respeito do culto de ícones, do que ter sido manipulada pelos

bispos iconófilos.

Depois, ao longo do texto, revela-se uma contradição, pois o peso das decisões

sempre recai sobre Irene. Ao que parece, seria mais fácil voltar a impor as idéias iconoclastas

se as decisões de Nicéia II fossem diretamente relacionadas a uma frivolidade feminina de

Irene, uma imperatriz destronada e que tinha morrido alguns anos antes.

Percebe-se novamente a questão da Encarnação no centro dos da Querela. Mas,

assim como aconteceu em Hieria, a extensão da proibição do culto alcançava ainda os ícones

da Virgem e dos santos. Aqui, a preocupação iconoclasta se justificaria com um tipo de

representação antropomórfica dos santos cristãos, à semelhança dos cultos pagãos:

She also heedlessly stated that lifeless portraits of the most-holy Mother of God and the saints who share in His [i.e. Christ’s] form should be set up and worshipped, thereby coming into conflict with the central doctrine of the Church.258

E novamente aparece no texto a discussão em torno da atitude do fiel diante do

ícone. A acusação era, assim como aquela feita em Hieria, de que os cristãos estariam

oferecendo a uma matéria desonrosa o mesmo tipo de culto do qual o próprio Deus seria

digno. Era como se toda o cuidado de Nicéia II para demonstrar a distinção entre o culto

chamado de latréia e o de proskinesis, para a legitimação da veneração aos ícones, agora

simplesmente fosse desconsiderada ou tratada de maneira equivocada pelos iconoclastas:

Further, she confounded our worship by arbitrarily affirming that what is fit for God should be offered to the inanimate matter of icons, and she senselessly dared state that these were filled with divine grace, and by offering them candlelight and sweet-smelling incense as well as forced veneration, she led the simple-minded into error.259

258 Definitions (Horos) of the Iconcoclastic Council of 815. In: MANGO, Cyril. Op cit. pp. 168-169. “Ela também, de maneira imprudente, decretou que os retratos sem vida da santíssima Mãe de Deus e dos santos que compartilharam de Sua [de Cristo] forma deviam ser erguidos e cultuados, através de um esperado conflito com a doutrina central da Igreja.” (Tradução nossa). 259 Ibid. p. 169. “Além disso, ela confundiu nosso culto pela arbitrariedade, afirmando que o que é digno de Deus deve ser oferecido à inanimada matéria dos ícones e de forma insensata ousou declarar que esses eram cheios da

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Como vimos acima, o texto do Sínodo de 815 afirma que a imperatriz, além de

conduzir a mente dos simples ao erro, teria ainda forçado a veneração dos ícones. Nas fontes

não encontramos indícios de que Irene tivesse, por uso de qualquer meio, imposto pela força

aos fiéis o culto dos ícones. Entretanto, para que o Concílio de 787 fosse convocado, ela teria

exigido dos bispos que no ano anterior contribuíram para o malogro dos trabalhos que estes se

abjurassem de suas idéias iconoclastas diante da assembléia. O texto de 815 não parece fazer

referência a este acontecimento.

Após essas acusações, o texto do Sínodo afirma ainda que os ícones deveriam ser

banidos das práticas cristãs, considerando que sua manufatura não era sagrada e que estes

teriam sido audaciosamente proclamados:

“Wherefore, taking to heart the correct doctrine, we banish from the Catholic Church the unwarranted manufacture of the spurious icons that has been so audaciously proclaimed, impelled as we are by a judicious judgment”.260

Posteriormente, as decisões de Nicéia II foram revogadas, fazendo vigorar

novamente a política da iconoclastia em Bizâncio:

[...] passing a righteous judgment upon the veneration of icons that has been injudiciously proclaimed by Tarasius, and so refuting it, we declare his assembly invalid in that it bestowed exaggerated honor to painting, [...]. We decree that the manufacture of icons is unfit for veneration and useless.261

Percebe-se que não houve uma resposta às decisões de Nicéia II, mas tão

simplesmente a sua anulação. E mais uma vez as fontes mostram que, além do objetivo de

graça divina e por oferecer-lhes candelabro e incenso com aromas assim como forçou a veneração, ela induziu as pessoas de mente simples ao erro.” (Tradução nossa). 260 Definitions (Horos) of the Iconcoclastic Council of 815. In: MANGO, Cyril. Op. cit.. p. 169. “Portanto, tomando para o coração a correta doutrina, nós banimos da Igreja Católica a manufatura não autorizada dos falsos ícones que foram tão audaciosamente proclamados, impelidos como somos por um julgamento sábio.” (Tradução nossa). 261 Ibid. “passando um correto julgamento sobre a veneração dos ícones que tem sido injuriosamente proclamada por Tarásio e refutando-a, nós declaramos sua assembléia inválida naquilo que ela concedeu exagerada honra às pinturas [...]. Nós decretamos que a manufatura dos ícones não é digna de veneração e desnecessária.” (Tradução nossa).

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desqualificar o adversário, aqueles que têm a palavra nos sínodos se apresentam como

representantes da “verdadeira” doutrina cristã, de um “julgamento correto”. É como se os

iconoclastas não apresentassem apenas uma defesa de seus argumentos no texto sinodal, mas

falassem em nome do único pensamento teologicamente correto. Esse tipo de discurso fora

utilizado por ambos os lados durante toda a Querela Iconoclasta.

Há algumas semelhanças entre o segundo período da iconoclastia e o primeiro,

não apenas em seu conteúdo dogmático, como vimos acima, mas no próprio desenrolar dos

fatos. Vejamos alguns exemplos: nas duas ocasiões havia uma ameaça de invasão eminente

por parte de um povo estrangeiro (árabes até a primeria metade do século VIII e búlgaros no

IX); tanto Leão III, que iniciou o movimento em 726, quanto Leão V, que o restaurou em 815,

eram naturais da Ásia Menor e foram comandantes do exército bizantino antes de chegar ao

poder; nos dois momentos os Patriarcas de Constantinopla (Germano em 730 e agora

Nicéforo) eram contrários à imposição da iconoclastia, sendo por isso depostos. Mas dois

aspectos diferenciadores devem ser aqui ressaltados. O primeiro foi a perda da força que o

movimento iconoclasta teve em seu segundo momento, percebida, por exemplo, no fato de

não ter-se repetido toda a violência na perseguição aos iconófilos que foi observada no século

VIII. Outro foi a ausência de novas idéias em relação à destruição dos ícones, limitando-se

aqui a simplesmente repetir os mesmos pensamentos teológicos já condenados pela Igreja e

pelo Império havia poucos anos.

Após a morte de Leão V, a iconoclastia ainda sobreviveu sob o poder de seus dois

sucessores imediatos, Miguel II (820-829) e Teófilo (829-842), ambos da dinastia amórica.

Miguel II, embora fosse contrário ao culto dos ícones, chegou a proibir qualquer tipo de

discussão referente ao assunto, não reconhecendo nem as decisões conciliares de Nicéia II

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nem as de Hieria. No seu governo, os iconófilos exilados por Leão V, entre eles o ex-Patriarca

Nicéforo e o monge Teodoro Studita, puderam retornar ao território bizantino.262

Apesar de algumas atitudes condescendentes em relação aos iconófilos, Miguel II

parecia manter uma tendência contrária ao culto dos ícones. Sua já citada carta ao imperador

franco Luís, o Piedoso, em 824, desaprova certos comportamentos dos cristãos em relação aos

ícones, criticando inclusive o comportamento de alguns membros do clero bizantino:

This, too, we declare to your Christ-loving Affection that many clerics and layman, alienating themselves from apostolic traditions and not observing the definitions of the Fathers, have become originators of evil practices. First, they expelled the venerable and life-giving crosses from the holy churches and in their stead they set up images, in front of which they placed lights and burnt incense, and held them in the same esteem that is due to the venerable and life-giving cross upon which Christ, our true God, deigned to be crucified for the sake of our salvation.263

Outras práticas relatadas foram consideradas “inadequadas” por Miguel II em

relação ao culto dos ícones cristãos, que não tinham sequer sido citadas anteriormente. E o

que chama mais a atenção é que, segundo essa carta de Miguel II, algumas dessas práticas

partiam mesmo de padres e clérigos:

262 OSTROGORSKY, Georg. Op. cit pp. 210-211. 263 Carta do Imperador Miguel II a Luís, o Piedoso (824). In: MANGO, Cyril. Op. cit. pp. 157-158. “Assim, também, nós declaramos para seu amado Cristo que muitos clérigos e leigos, alienando-se das tradições apostólicas e não observando as definições dos Padres, tem se tornado criadores de más práticas. Primeiro, eles expulsaram as veneráveis e cruzes, dádivas da vida, das santas igrejas e em seu lugar ergueram imagens, em frente das quais colocaram luzes e queimaram incensos e guardam a mesma estima que é dada a venerável cruz sob a qual Cristo, nosso verdadeiro Deus, dignou ser crucificado por causa da nossa salvação.” (Tradução nossa).

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Many people wrapped cloths round them and made them the baptismal godfathers of their children. [...] Others [certain priests and clerics] again placed the Body of the Lord in the hands of images and made the communicants receive it there from. Others, yet, spurning the Church, used panel images in the place of altars, and this in ordinary houses, and over them they celebrated the holy ministry, and they did in the churches many other illicit things of this kind that were contrary to our faith and appeared to be altogether unseemly to men of learning and wisdom.264

Um dos pontos mais importantes no discurso iconófilo era justamente o fato de os

ícones pertencerem a uma antiga tradição da Igreja cristã. Também destacam um ritual tanto

em torno da sua criação quanto do seu culto, além de esclarecer constantemente que o ícone

seria apenas um condutor do fiel ao protótipo que ele representa. O que se percebe na

narração acima é uma quebra com esses dois fundamentos da iconofilia, não sendo observada

a distinção entre imagem e protótipo, inclusive por membros do clero.

Nessas atitudes, fica clara a existência de um distanciamento entre o que se define

num sínodo ou concílio da Igreja a respeito de uma prática religiosa e as manifestações

cotidianas do cristão diante dos ícones. Como afirmou David Freedberg, na relação do cristão

com o ícone, existe uma grande diferença entre a teoria e a prática dos fiéis.265

Numa demonstração de seu posicionamento favorável à iconoclastia, Miguel II

citou na referida carta a Luis, o Piedoso o Concílio de Constantinopla de 815 como

representante da sua crença e convicção em relação ao culto dos ícones:

Wherefore, the orthodoxy Emperors and most-learned bishops decree that a local council be convened so as to examine these matters, and they came together under the inspiration of the Holy Ghost.266 By common decision they forbade such practices in any place whatever, and caused images to be removed from position near the ground lest they be worshipped by ignorants and weak persons; on the other hand, they allowed those images that had been placed higher up to remain in place, so that painting might fulfill the purpose of writing, but they did not permit either lamps to be lit before them

264 Ibid. p. 158. “Muitas pessoas vestem roupas em volta delas e fazem delas o padrinho de batismo de suas crianças. [...] Outros [certos padres e clérigos] muitas vezes colocam o Corpo do Senhor nas mãos das imagens e fazem os que comungam recebê-lo a partir dele. Outros ainda, menosprezando a Igreja, usaram painel de imagens no lugar dos altares, e esse em casas ordinárias, e sobre eles celebraram o sagrado ministério, e fizeram nas igrejas muitas outras ilícitas desse tipo que foram contrárias a nossa fé e parecem ser completamente inadequadas para homens de conhecimento e sabedoria.” (Tradução nossa). 265 FREEDBERG, David. Op. Cit, 1992. p. 469. 266 O Sínodo de Constantinopla de 815.

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or incense to be burnt. Such also is our belief and conviction, and we reject from Christ’s Church those who cling to the above wicked inventions.267

Seu sucessor no trono bizantino, foi seu filho Teófilo (829-842), um imperador

ligado à arte e cultura, que também era contrário ao culto dos ícones. Pode parecer paradoxal

para um iconoclasta esse gosto pela arte. Mas os iconoclastas não eram contrários a todos os

tipos de imagens, somente àquelas que pudessem excitar o fiel a um tipo de culto considerado

idolátrico. Tanto que muitos ícones destruídos cederam seu espaço para outros temas de

pinturas, como animais e paisagens.

Foi sob seu governo que a política iconoclasta viveu seus últimos anos de vigor.

João, o Gramático, que tinha preparado a documentação para a realização do sínodo de

Constantinopla em 815, chegou ao trono Patriarcal. Entretanto, a iconoclastia já não

apresentava a mesma força para sua defesa como no século anterior. Teófilo foi o último

imperador bizantino a manter a política da iconoclastia. Após sua morte em 842, a Querela

perdeu o apoio imperial, uma vez que seu filho Miguel III não poderia assumir o trono por ser

ainda menor de idade e a imperatriz regente Teodora ter se disposto a colocar um fim no

período do iconoclasmo.

3.5- A nova defesa dos ícones: o Patriarca Nicéforo e o monge Teodoro Studita.

Assim como ocorreu no século VIII, a iconofilia encontrou seus principais

defensores nas figuras do patriarca de Constantinopla e de um monge: Nicéforo (c. 758–828)

e Teodoro Studita (759–826), respectivamente. Nicéforo baseou sua defesa da legitimidade do

267 Carta do Imperador Miguel II a Luís, o Piedoso (824). In: MANGO, Cyril. Op. cit. p. 158. “Portanto, os imperadores ortodoxos e os bispos mais sábios decretaram que um concílio local seria assim reunido para examinar essas matérias, e eles vieram juntos sob inspiração do Espírto Santo. Por decisão comum, eles proibiram tais práticas em qualquer lugar e as imagens deveriam ser removidas de perto do chão para que não fossem cultuadas pelos ignorantes e pessoas fracas; por outro lado, eles permitiram aquelas imagens que tinham sido colocadas em locais altos permanecessem nesses lugares, de modo que a pintura pudesse satisfazer o propósito da escrita, mas eles não permitiram tampouco acender lâmpadas diante delas incensos para serem queimados. Tal também é a nossa crença e convicção, e nós rejeitamos da Igreja de Cristo aqueles que se apegam sobre más invenções.” (Tradução nossa).

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ícone sobre a questão da possibilidade de circunscrever pictoricamente o Cristo, mesmo após

sua ressurreição. O argumento iconoclasta em Hieria menciona a impossibilidade de

circunscrever a divindade de Cristo numa imagem. E mais ainda, que após a Ressurreição,

circunscrever sua natureza humana seria impossível, pois levando em consideração a

definição da união entre humanidade e divindade em Cristo, seu corpo físico teria sido

considerado pelos iconoclastas como de incircunscritível, pois não havia mais a possibilidade

de seu corpo ser tocado ou visto.268 Esse pensamento se aproxima das idéias monofisistas.

O que Nicéforo propõe é uma verdadeira ruptura com as determinações

iconoclastas apresentadas em Hieria, e que tinha sido novamente colocada em vigor em

Constantinopla, desde 815, de que a imagem para ser legítima deveria ser consubstancial ao

protótipo, como a Eucaristia. O Patriarca defende que representar numa imagem não seria o

mesmo que circunscrever (perigraphos), não pretendendo assim limitar numa pintura a

divindade de Cristo. Dessa forma, ele separa o protótipo de sua representação, e afirma que o

ícone não possuía a mesma natureza do representado.

Assim, os iconoclastas se preocupavam muito mais com a consubstancialidade

para que uma representação do Cristo fosse aceita como verdadeira do que com sua forma. E

os iconófilos buscam uma semelhança com o protótipo a partir de sua imagem, reafirmando

porém a inexistência de uma consubstancialidade, deixando clara a distância que existe entre

o Cristo e sua representação pictórica.

Para refutar a exigência da consubstancialidade, Nicéforo se baseia na diferença

entre a pintura ou o desenho e uma circunscrição. Diz o Patriarca: “A pintura está relacionada

com a semelhança[...], ela é pintura do arquétipo mas dele acha-se separada, subsiste à parte e

268 Essa impossibilidade de circunscrever a divindade de Cristo numa pintura se encontra nas atas do sínodo de Hieria, por nós trabalhado no tópico 2.2 do capítulo II. Estas fontes se encontrarm transcritas para o inglês em MANGO, Cyril. Op. cit.pp. 165-168, e no website In: Medieval Sourcebook, website www.fordham.edu Epitome of the Definition of the Iconoclastic Conciliabulum, Held in Constantinople, A.D. 754. Há também uma edição em português dessas definições em ESPINOSA, Fernanda. Op. cit. p. 63.

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num determinado momento [...].”269 Assim, o que se reproduz num ícone de Cristo não é a

sua natureza, mas o que a inteligência é capaz de apreender desse corpo que une em si

humano e divino de uma forma que ao mesmo tempo não se confundem nem se separam.

Hans Belting destaca a importância da semelhança de um ícone com seu protótipo. Afirma

que uma semelhança “real” (como no caso da Virgem de São Lucas) é o que caracteriza um

ícone como autêntico.270 Belting ainda cita o Patriarca Nicéforo, que afirmou ser um ícone um

objeto de veneração mais valoroso que uma cruz, por possuir uma substancial similitude

(homoiôma) com o Cristo.271

Completa Besançon: “O ícone não é uma imagem natural do protótipo, porque, se

fosse este o caso, os iconoclastas teriam razão de dizer que tal é impossível. O ícone é uma

imagem artificial, que não é da natureza do protótipo: ela só faz imitá-lo.”272 Assim, o elo

entre o protótipo e seu ícone era a forma que este assumia, mantendo uma semelhança física

com aquele que é representado. Entretanto, não há nenhuma pretensão por parte dos

iconógrafos ou iconófilos de buscar uma semelhança com a natureza divina do protótipo, de

fazê-la presente no ícone, como no caso da Eucaristia.

Portanto, Nicéforo desvaloriza o poder do ícone de Cristo em si para justificar a

sua representação, que se limitaria a ter apenas uma semelhança física com o protótipo. Este,

mesmo sendo um corpo divino, não deixa de ser antropomorfo e, por isso, passível de uma

representação.273

A defesa de uma idéia em desacordo com a posição imperial (até então não

oficializada) resultou na deposição de Nicéforo da sede patriarcal no ano de 815, pouco antes

da realização do Sínodo de Constantinopla. Essa atitude por parte do imperador Leão V

269 BESANÇON, Alain. Op. cit p. 210. 270 BELTING, Hans. Op. cit p. 4. 271 Ibid. p. 159. 272BESANÇON, Alain. Op. cit p. 210. 273 Ibid. p. 211.

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visava a ascenção ao trono patriarcal do cortesão Teodato Meliseno, de tendência iconoclasta,

como vimos. Era quase que um pré-requisito para o sucesso de um novo Sínodo que um

Patriarca iconoclasta estivesse à frente da Igreja de Constantinopla. O mesmo já havia

ocorrido quando da convocação para o Concílio de Nicéia II, com a subida de Tarásio ao

patriarcado.

O outro importante nome na defesa dos ícones no século IX foi o monge Teodoro

Studita. Sobrinho de um dos principais abades que havia participado do Concílio de Nicéia II,

Platão de Sakoudion, Studita também se tornou abade, em 794, do mosteiro de Studios, um

dos mais poderosos e respeitados de Constantinopla. Por seu radicalismo no que se refere a

suas posições religiosas, foi mandado ao exílio pelos imperadores Constantino VI, Nicéforo e

também por Leão V. Nem todas essas condenações estavam ligadas à questão da iconoclastia.

A base para a defesa de Studita, assim como para seus antecessores, era a

Encarnação de Cristo. Seus principais documentos na defesa dos ícones foram o seu

testamento ao Mosteiro de São João de Studius, além do texto Poems on Images e algumas

cartas.274 Se em Nicéforo e Damasceno vimos que é possível a representação pictórica de

Cristo por causa da união da sua divindade com sua humanidade, o que fez dele também um

homem visível, agora Studita busca a resposta para uma questão trazida das definições

iconoclastas de Hieria: E a natureza divina, também poderia estar presente num ícone, ou nele

só se percebe a humana? Para encontrar a resposta, Studita recorre às mesmas fontes que os

iconoclastas haviam utilizado para condenar a iconofilia, as atas do Concílio da Calcedônia.

Se em Cristo o que há são suas naturezas inseparáveis e inconfundíveis, não se representa

uma ou outra em separado. Nele, “o invisível se faz ver”275, e os ícones representam sua

hipóstase, não sua natureza.

274 Para ver a referência dessa documentação, ver a nota 49 da Introdução. 275 BESANÇON, Alain. Op. cit p. 211.

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Os documentos escritos por Teodoro, concordam com Damasceno ao afirmar que

o ícone poderia servir para conduzir o intelecto do fiel do sensível ao inteligível nele

retratado. E recorre a definições já apresentadas em Nicéia II, onde se afirmou que venerar um

ícone de Cristo, eqüivaleria a venerar o próprio Cristo e que recusar suas representações, seria

recusar o protótipo: “He who venerates this image therefore venerates Christ; he who does not

venerate it is wholly his foe, for he is filled with hate for him and does not wish his depicted,

incarnate appearance to be venerated.”276 Essa idéia foi reafirmada pelo monge numa carta:

[...], as far as I know, basing myself on the doctrine of the holy Fathers, is the reverence towards the image of Christ. If it is subverted, Christ’s incarnation is also subverted; and if the image is not revered, our reverence towards Christ is likewise destroyed.277

A defesa iconófila se apoderou ainda de algumas idéias já definidas na primeira

fase da Querela. Para Teodoro Studita, assim como para João Damasceno e Nicéforo, a

questão da representação de Cristo está diretamente relacionada ao mistério da Encarnação.

Se à pessoa de Cristo for negada a possibilidade de ser pintada num ícone e,

consequentemente, o culto desse ícone também for negado, a própria crença na Encarnação

divina é então colocada em dúvida.

Para Studita, é pelo mistério da Encarnação que seria possível uma representação

pictórica da Pessoa de Cristo. E aqui ele se esforça para esclarecer que o ícone não possui a

substância de Cristo em si, mas sim que ele representa a sua Pessoa. A substância, no caso do

ícone, seria o material do qual este é feito. Diz Studita:

For the nature of painting (hulographia) is different from that of Christ, whereas the person is one and the same, [...]. Whereas in the case of the imitative picture and its model, i.e., Christ and Christ’s image, granted that

276 Poems on Images by Abbot Theodore of Studion. In: FREEDBERG, David. Op. cit p. 508. “Quem venera a imagem consequentemente venera Cristo; quem não a venera é seu inimigo completo, por estar cheio de ódio dele e não querer sua pintura, aparência encarnada ser venerada.” (Tradução nossa). 277 Carta do monge Teodoro Studita. In: MANGO, Cyril. Op. cit.. p. 174. “ [...], até onde eu sei, baseando-me na doutrina dos santos Padres, a reverência é para uma imagem de Cristo. Se ela for subvertida, a Encarnação de Cristo é também subvertida; e se a imagem não é reverenciada, nossa reverência para Cristo é igualmente destruída.” (Tradução nossa).

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the person of Christ is one and the same, the reverence is here, too, the same, because of the identity of person, without regard to the difference of nature between Christ and the images.278

Havendo essa identidade entre o ícone e o protótipo, uma reverência à

representação teria o mesmo valor daquela prestada à pessoa. A partir dessas colocações,

Studita valoriza o ícone unicamente pela identidade que este mantém com o protótipo, pois

ambos tratam da mesma pessoa. Nesse ponto, Teodoro se distingue de Damasceno, que

acreditava que a matéria do ícone teria o poder de transmitir a presença do protótipo.279 Ao

ressaltar a diferença entre a natureza da pintura e aquela do protótipo, Teodoro valoriza o

ícone por este ser a imagem de um prosôpon, de um aspecto visível que caracteriza uma

pessoa concreta, em detrimento do material do qual é feito o ícone.280 Assim, o ícone não

seria digno de culto por si só, mas antes pela semelhança do “caráter” do ícone com a Pessoa

do Verbo.281 É seguindo essa linha de pensamento que Studita responde as acusações de

idolatria que novamente foram feitas pelos iconoclastas no Sínodo de 815:

If, however, we acknowlekdge that the reverence towards image and model was one, not only because of the identity of person, but also that of nature, we would be disregarding the difference between the image and the person represented... and falling into pagan polytheism by deifying every kind of material which is fashioned into the image of Christ.282

Já Damasceno dava grande importância aos aspectos materiais, pois dizia que na

Encarnação Deus havia se dignado a habitar na matéria para concretizar o plano da Salvação.

E para justificar seu pensamento de não desprezar a matéria, afirmou:

278 Ibid. p. 173. “A natureza da pintura (hulographia) é diferente da de Cristo, enquanto a pessoa é uma e a mesma [...]. Enquanto no caso da imitativa pintura e seu modelo, i.e., de Cristo e sua imagem, concebe-se que a pessoa de Cristo é uma e a mesma, a reverência é aqui, também, a mesma, por causa da identidade da pessoa, sem considerar a diferença de natureza entre Cristo e a imagem.” (Tradução nossa). 279 Ver BESANÇON, Alain. Op. cit p. 212. 280 BARBU, Daniel. L’Image byzantine: production et usages. In: Annales HSS, janvier-févier 1996, no 1, p. 73. 281 Cf. BESANÇON, Alain. Op. cit 282 Carta do monge Teodoro Studita. In: MANGO, Cyril. Op. cit.. p. 173. “Se, porém, nós sabemos que a reverência para a imagem e o modelo é uma, não apenas por causa da identidade da pessoa, mas também da natureza, nós não estaríamos considerando a diferença entre imagem e a pessoa representada... e caindo no politeísmo pagão por deificar todo tipo de material do qual é feita a imagem de Cristo.” (Tradução nossa).

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Was not the thrice happy and thrice blessed wood of the Cross matter? Was not the sacred and holy mountain of Calvary matter? What of the life-giving rock, the Holy Sepulchre, the source of our ressurrection: was is not matter? Is not the most holy book of Gospels matter? Is not the blessed table matter which give us the Bread of Life? Are not the gold and silver matter, out of which crosses and altar-plate and chalices are made? And before all these things, is not the body and blood of our Lord matter? [...]Do not despise matter, for it is not despicable.283

Além da defesa dos ícones do Cristo, Teodoro se preocupou também com as

demais representações iconográficas, como as da Virgem, dos apóstolos, santos e mártires.

Para tanto, seu argumento baseia-se no Concilio de Nicéia II. Encontramos essa defesa no

testamento que o monge deixou para o mosteiro de São João de Studion, em Constantinopla

em 826. Numa passagem desse documento, diz Studita:

I also follow the Second Council of Nicaea which was recently assembled against the accusers of Christ. I accept and revere the sacred and holy images of our Lord Jesus Christ, of the Mother of God, of the apostles, prophets, martyrs, and of all the holy and just. Moreover, I ask for their undefiled intercessions to propitiate the Godhead. With faith and awe I embrace their all-holy relics as full of divine grace.284

Alain Besançon afirma que o corpo de Cristo não é matéria no mesmo sentido que

um ícone, o livro dos Evangelhos ainda ou um cálice sagrado. Damasceno, ao associar

diferentes materiais, acaba por se aproximar das práticas da devoção popular e supersticiosas

em relação ao ícone. Uma delas foi denunciada pelo imperador Miguel II (820-829) em uma

carta a Luís, o Piedoso (814-840), em 824. O imperador critica a atitude de alguns sacerdotes

283 St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images. Disponível em: www.fordham.edu. Medieval Source Book. Acesso em 25/05/2005. “Não é a três vezes feliz e três vezes sagrada madeira da Cruz matéria? Não é a sagrada e santa montanha do Calvário matéria? E a pedra do dom da vida, o Santo Sepulcro, a fonte de nossa ressurreição: ela não é matéria? Não é o mais santo livro dos Evangelhos matéria? Não é a sagrada mesa matéria, na qual nos deu o Pão da Vida? Não são ouro e prata matéria, dos quais cruzes, pratos de altares e cálices são feitos? E antes de todas essas coisas, não é o corpo e o sangue de nosso senhor matéria? [...] Não despreze a matéria, pois ela não é desprezível.” (Tradução nossa). 284 Testament of Theodore the Studite for the Monastery of Saint John Studios in Constantinople, 826. Publicado por Dumbarton Oaks Reserche Library and Celletion. Washington, D.C. Trustes for Havard University, 2.000. p. 76. "Eu tambem sigo o Segundo Concilio de Nicéia que foi recentemente reunido contra os acusadores de Cristo. Eu aceito e reverencio as sagradas e santas imagens de nosso Senhor Jesus Cristo, da Mãe de Deus, dos apóstolos, profetas e mártires, e de todos os santos e justos. Além do mais, eu pergunto pela sua incorruptível interseção para propiciar a graça divina. Com fé e temor eu aceito suas santas relíquias como cheias da graça divina." (Tradução nossa).

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que raspavam os ícones, para fazer cair pequeninos pedaços deles sobre os vasos eucarísticos.

Diz o imperador nessa carta: “Certain priests and clerics scraped the paint of images and,

mixing this with the eucharistic bread and wine, let the communicants partake of this oblation

after the celebration of the mass.”285

É exatamente esse afastamento do material do ícone em relação ao protótipo que

Studita ressalta, sendo este o principal aspecto que o diferencia das idéias de João

Damasceno. Este último, ao propor que o ícone contenha em si a “energia” do protótipo,

iguala a matéria do ícone ao da espécie eucarística, colocando-o no mesmo patamar de um

dos sacramentos cristãos. Acreditamos que, por mais que Damasceno tenha defendido e

exaltado a importância do ícone no culto cristão, não teria sido sua pretensão colocá-lo em pé

de igualdade com o sacramento da Eucaristia. Entretanto, quando se percebe essa valorização

da matéria, fica difícil perceber, por exemplo, em que a sua teologia se distinguiria da prática

condenada pela Igreja de raspar ícones para serem ingeridos na comunhão.286

Se para Damasceno, o ícone era digno de culto por uma certa energia que a pessoa

representada transmitiria através da pintura, para Teodoro Studita, seu valor estaria apenas na

semelhança que a representação mantém com o protótipo representado, evidenciando aqui

uma distinção entre as suas naturezas. Se o ícone não possuir os traços distintivos do modelo

representado, então não tem valor para o culto.

A questão da semelhança ressaltada por Teodoro Studita abre uma nova

perspectiva na defesa dos ícones dentro da Querela. Se, por um lado, o argumento iconoclasta

não havia apresentado, nesse segundo período, alterações em relação às decisões do sínodo de

Hieria, o mesmo não se pode dizer em relação aos iconófilos. Ao se apropriarem de

discussões já traçadas no século anterior, fundamentadas pela questão da Encarnação, por 285 Carta do Imperador Miguel II a Luís, o Piedoso (824). In: MANGO, Cyril. Op. cit.. p. 158. “Certos padres e clérigos raspam a pintura das imagens e, misturando-as com o pão eurcarístico e o vinho, permitem aos que recebem a comunhão partilhar dessa oblação depois da celebração da missa.” (Tradução nossa). 286 BESANÇON, Alain. Op. cit pp. 208-209.

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exemplo, tanto Nicéforo quanto Studita apresentaram idéias que complementavam o

pensamento iconófilo anterior existente. O Patriarca inovava ao afirmar que o ícone não

pretendia circunscrever um ser divino, enquanto o monge contesta o fato de a matéria ser

transmissora da presença divina, sendo venerada por sua semelhança com o protótipo.

Não obstante os pensamentos dos monges Damasceno e Studita se encontram na

afirmação que para ambos o ícone é considerado como veículo que leva à oração e à

veneração do fiel à pessoa representada. O próprio Damasceno, que em contraposição a

Studita, valorizava a matéria da qual era feito o ícone, procurou deixar claro que o culto não

era motivado pelo ícone em si, mas por este se constituir num caminho para a graça divina: “I

reverence and honour matter, and worship that which has brought about my salvation. I

honour it, not as God, but as a channel of divine strength and grace.”287

Esse pensamento encontra correspondência com as idéias de Teodoro Studita.

Também para ele, o ícone é um meio pelo qual a reverência do fiel chegaria até o próprio

Cristo:

[...] the reverence is not [directed] to the substance of the image... but toward Christ who is revered in His image, while the material of the image remains altogether unrelated to Christ who is revered in it by virtue of similitude... 288

Portanto, mesmo utilizando um caminho diferente daquele proposto por

Damasceno, Studita também reconhece a importância do ícone como testemunha do mistério

da Encarnação e defende seu culto como um culto à própria pessoa que nele está retratada.

Devemos ressaltar aqui que essas opiniões não se distinguiram umas das outras nas definições

287 St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images. In: Website www.fordham.edu. Medieval Source Book. Acessado em 25/05/2005. “Eu reverencio e honro a matéria e cultuo aquela que tem conduzido minha salvação. Eu a honro, não como Deus, mas como um canal da força e graça divina.” (Tradução nossa). 288 MANGO, Cyril. Op. cit.p. 174. “[...] a reverência não é [direcionada] à substância da imagem... mas ao Cristo que é reverenciado em Sua imagem, enquanto que o material da imagem permanece completamente ausente do Cristo, que é revernciado nela pela virtude da similitude.” (Tradução nossa).

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finais sobre os ícones ao final da Querela, mas antes elas se justapuseram, sem que houvesse a

necessidade de uma opção por um desses sistemas.

3.6- O Triunfo da Ortodoxia: o fim definitivo da Querela Iconoclasta – 843

O filho e herdeiro do trono bizantino, Miguel III (842-867) não pôde assumir o

trono imediatamente após a morte de seu pai por ser menor idade naquele momento. Como o

imperador tinha apenas seis anos de idade, o governo ficou novamente nas mãos de uma

imperatriz regente, Teodora. Foi novamente a figura de uma mulher a comandar a restauração

do culto dos ícones na Igreja bizantina. Segundo John Haldon, Teodora teria decido pôr um

fim na iconoclastia influenciada por Theoktistos, um eunuco muito influente na corte

imperial.289

Assim como Irene tinha feito no século anterior, a primeira atitude da nova

imperatriz regente no caminho da restauração do culto dos ícones foi nomear Metódio para

Patriarca, um iconófilo para presidir a sede de Constantinopla. É curioso o fato de, tanto na

primeira fase da Querela quanto na segunda, ter sido uma imperatriz regente a responsável

pela vitória iconófila. No caso de Irene, sua origem grega poderia explicar sua inclinação pelo

culto dos ícones. Mas o mesmo não se aplica a Teodora. O fim da iconoclastia parecia se

dever perda da força que essa política teve no seu segundo período, perdendo adeptos

inclusive na Ásia Menor, quanto à crença pessoal da imperatriz.290 Em 843, não foi necessária

a convocação de um Concílio Ecumênico para colocar um fim na questão, pois, sem o mesmo

vigor de antes, a iconoclastia nem sequer atravessou as fronteiras da capital do Império.

Uma ilustração do Saltério de Cludov permite se fazer algumas analogias

concernentes à condenação do iconoclasmo a partir de um ponto de vista iconófilo:

289 HALDON, John. Op. Cit pp. 35-36. 290 Tanto Michael Angold quanto Alain Besançon afirmam que a imperatriz Teodora venerava os ícones, antes mesmo do fim da Querela Iconoclasta. ANGOLD, Michael. Op. cit.. pp. 22-23, e BESANÇON, Alain. Op. cit. p. 214.

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Figura 6: Saltério de Cludov: A Crucificação e os Iconoclastas folio 67r, Moscou: c. 850-75.

Existem duas cenas nessa ilustração. Num primeiro plano estão representados o

Patriarca iconoclasta João, o Gramático (837-843) e um bispo erguendo uma esponja com cal

para cobrir um ícone circular de Cristo. No segundo plano, vemos uma representação da

Crucificação, onde judeu estende uma vara com vinagre ao Cristo. A conexão entre as duas

cenas é nítida. Em ambas existe um personagem estendendo uma vara ao Cristo – no primeiro

caso seu ícone – e os vasos onde estão o vinagre e o cal possuem uma grande similitude. A

relação entre as cenas traz uma mensagem muito clara: ser um iconoclasta e destruir ícones de

Cristo equivaleria a se comportar como os judeus que o crucificaram.

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O ponto final da Querela Iconoclasta acabou se dando em Constantinopla, no dia

11 de março de 843, através de um documento conhecido como o Synodikon da Ortodoxia, ou

Triunfo da Ortodoxia. Tratou-se de um Sínodo reunido pelo Patriarca Metódio, no qual se

decidiu pelo condenação da destruição dos ícones, encerrando definitivamente a questão da

iconoclastia.

Utilizamos aqui de uma versão do texto do Synodikon em francês, retirada da

coletânia de documentos do Patriarcado de Constantinopla, de Venance Grumel.291

Consultamos também um manuscrito da British Library, do monge André de Oleni, escrito

provavelmente no ano 1110 ou 1111, que permite também reconstruir parte do conteúdo do

Synodikon.292

Como aconteceu em todos os momentos da Querela Iconoclasta, uma das

primeiras atitudes nos momentos de definição ou reafirmação de pensamentos teológicos em

relação aos ícones, era a desqualificação do lado oposto. Os bispos e imperadores sempre se

colocavam como “porta-vozes” de uma doutrina verdadeira, sugerindo que o adversário fosse

relacionado a pensamentos falsos, heréticos e de ensinamentos não coerentes com a fé cristã.

Em seguida, se exaltava o nome do imperador, como o real defensor da Ortodoxia. Esse foi

também o caso do Synodikon de 843:

Des hommes ont paru, évêque indignes, qui ont tenu un sanhédrin diabolique et enseigné des dogmes impies. Ils ont accusé d’idolâtrie le peuple saint sauvé le Christ de l’erreur des idoles et ont détruit ou envelé les vénérables images. [...] Nos très valeurex et très orthodoxes empereurs Michel et sa mère Théodora n’ont pas supporté que cette peste continuât sous leur règne. C’est pourquoi ils ont ordonné de tenir cette nombreuse assemblée dans la ville royale pour chasser la dissension et rétablir l’unité293

291 Examen synodal, décret rétablissant le septième concile oecuménique et le culte des images, et anathématismes. In: GRUMEL, Venance. Op. cit. pp. 65-66. 292 Retirado do website web.ukonline.co.uk/ephrem/synodikon.htm. Acessado em 03/09/2006. 293 Examen synodal, décret rétablissant le septième concile oecuménique et le culte des images, et anathématismes. In: GRUMEL, Venance. Op. cit p. 65. “Homens surgiram, bispos indignos, que tiveram o sinédrio diabólico e ensinaram os dogmas ímpios. Acusaram de idolatria o povo santo salvo pelo Cristo dos erro dos ídolos e destruíram ou arrancaram as veneráveis imagens. [...] Nossos muito valorosos e muito ortodoxos imperadores Miguel e sua mãe Teodora não suportaram que essa peste continuasse sobre seu reino. É por isso

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Logo nessa primeira passagem reitera-se um dos principais pontos da defesa da

iconofilia: a diferenciação entre o culto de ícones e o culto idólatra de outros deuses. Essa

idéia remete a João Damasceno e Nicéia II. Nenhuma inovação em termos teológicos ou

dogmáticos fora apresentado em 843, como aliás, também não havia ocorrido no sínodo

iconoclasta de 815. O que aconteceu foi um retorno às idéias de culto dos ícones já defendidas

em Nicéia II, tanto em relação às representações de Cristo, quanto às da Virgem, dos santos e

anjos. Assim definiu o texto do Synodikon:

Par l’inspiration du Saint-Esprit, tous ensemble, en conformité avec la tradition de l’Église catholique, nous nous accordons avec les sept conciles pour absolument les saintes images : du Christ selon qu’il est homme parfait et qu’il est décrit dans le récit évangélique ; de la sainte Théotocos ; des anges, car ils ont apparu comme des hommes ; des saints : sur les tablettes, sur les murs, sur les vases sacrés, sur les vêtements, selon la tradition de l’Église et les règlements des patriarches de notre doctrine et leurs successeurs ; car c’est chose indubitablement agréable à Dieu que de vénérer et de baiser les reproductions du Christ, de la Théotocos, des anges et des saints, et aussi les reliques des martyrs qui ont lutté pour le Christ et ont reçu de lui la grâce de guérir les maladies et de chasser les démons.294

Como não houve invovações na argumentação de defesa da iconofilia em relação

ao que já havia sido apresentado em Nicéia II, duas questões presentes nas discussões de 787

voltaram a servir como base para justificar a produção e o culto dos ícones. Primeiro a

diferenciação entre um ícone cristão e um ídolo pagão. No Synodikon, os iconoclastas foram

anatematizados por não procederem a tal distinção, considerando a veneração a uma

representação de Cristo, da Virgem ou dos santos como um ato de idolatria comparado às

que eles reuniram essa numerosa assembléia na cidade real para expulsar a dissenção e restabelecer a unidade.” (Tradução nossa). 294 Examen synodal, décret rétablissant le septième concile oecuménique et le culte des images, et anathématismes. In: GRUMEL, Venance. Op. cit pp. 65-66. “Pela inspiração do Espírito Santo, todos juntos, em conformidade com a tradição da Igreja Católica, nós estamos de acordo com os sete concílios para receber absolutamente as santas imagens: de Cristo, por ser homem perfeito e que está descrito na narrativa evangélica; da santa Theotokos; dos anjos, porque eles aparecem como homens; dos santos: sobre as tabuletas, sobre os muros, sobre os vasos sagrados, sobre as vestimentas, segundo a tradição da Igreja e os regulamentos dos Patriarcas de nossa doutrina e de seus sucessores; pois é coisa indubitavelmente agradável a Deus venerar e beijar as reproduções de Cristo, da Theotokos, dos anjos e santos, e também as relíquias dos mártires que lutaram pelo Cristo e receberam dele a graça de curar doenças e de expulsar os demônios.” (Tradução nossa).

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proibições do Antigo Testamento, como a do livro do Êxodo, 20,4. Tais atitudes foram

condenadas em 843:

Those who apply the sayings of the divine Scripture that are directed against idols to the august icons of Christ our God and his saints: Anathema! Those who share the opinion of those who mock and dishonour the august icons: Anathema! Those who say that Christians treat the icons like gods: Anathema! Those who dare to say that the Catholic Church has accepted idols, thus overthrowing the whole mystery and mocking the faith of Christians Anathema!295

John Haldon afirma que o culto aos ícones seria restaurado, desde que não se

condenasse o imperador Teófilo.296 Realmente não encontramos no texto do Synodikon

qualquer condenção de anátema ao imperador. Mas não foram poupados os nomes dos

Patriarcas iconoclastas Constantino (754-766) e João, o Gramático (837-843). Portanto, não

houve condenação direta nem contra Teófilo e nem contra os demais imperadores

iconoclastas. Esse fato é curioso, uma vez que a convocação dos sínodos que impuseram a

destruição dos ícones cristãos em Bizâncio partia sempre da figura do imperador.

Mas a principal questão, que permaneceu no embasamento da argumentação

favorável ao culto dos ícones, foi a da Encarnação. O fato de o Verbo ter-se encarnado, se

feito homem visível entre outros homens, justificaria a produção de sua representação

pictórica. O Synodikon anatematizou aqueles que não aceitaram a veneração dos ícones:

On those who hear and understand the Lord saying, If you believed Moses, you would have believed me, and the rest, and Moses saying, The Lord our God will raise up for you from your brothers a prophet like me, and then say that the prophet is received, but that they will not represent the grace of the prophet and the salvation he brought for the whole world through images, even though he was seen and lived among men and women, and cured

295 Decreto Sinodal, de 11 de março de 843. In: Synodikon of Orthodoxy. Website www.ukonline.co.uk/ephrem/synodikon. “Aqueles que aplicam os dizeres da divina Escritura que são direcionados contra ídolos para os nobres ícones do Cristo nosso Deus e seus santos: Anátema! Aqueles que participam da opinião daqueles que zombam e desonram os nobres ícones: Anátema! Aqueles que dizem que os critãos tratam os ícones como deuses: Anátema! Aqueles que ousam dizer que a Igreja Católica tem aceitado ídolos, destruindo então todo o mistério e zombando da fé dos cristãos: Anátema!” (Tradução nossa). 296 HALDON, John. Op. cit p. 36.

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sufferings and sickness with mighty acts of healing, and was crucified, and buried, and rose again, and did and suffered all this for our sake; on those who will not accept that these works of salvation, accomplished for the whole world, may be seen in icons, nor honoured and venerated in them: Anathema!297

Apesar de ter envolvido representações da Virgem, dos anjos e santos, o tema

central dos debates ao longo da Querela Iconoclasta foi sempre a questão da possibilidade de

uma pintura circunscrever uma Pessoa da Trindade. Segundo a crença cristã, enquanto ser

onipresente, seria impossível delimitar um espaço no qual pudesse ser circunscrito.

Entretanto, quando se trata do Verbo encarnado na pessoa de Cristo, essa representação se

mostrara possível, uma vez que enquanto homem, Cristo fora visto, tocado e ocupou

determinados lugares. Essa questão apresenta uma singularidade em relação à iconofobia

judaica ou muçulmana. Era por isso que a Encarnação era tão importante para o argumento

iconófilo, pois a partir dela os iconógrafos teriam um embasamento teológico para

“circunscrever” (perigrapho), não a natureza divina de Cristo, mas a sua pessoa, na qual

coexistiam o humano e o divino, sem separação nem confusão.

A proclamação do Synodikon significou o fim definitivo da Querela Iconoclasta,

restabelecendo-se o culto aos ícones e condenando-se a sua destruição, baseado nas difinições

conciliares de Nicéia II e ainda nas tradições da Igreja Cristã. Entretanto, como dissemos

anteriormente, não encontrarmos nesse texto referências às novas idéias propostas pelo

Patriarca Nicéforo e pelo monge Teodoro Studita, a respeito da desvalorização material do

ícone e da valorização de sua semelhança com o protótipo. Desconhecemos o motivo de tal

omissão e não encontramos na bibliografia citada uma explicação para tal ausência, uma vez

297 Decreto Sinodal, de 11 de março de 843. In: Synodikon of Orthodoxy. Website www.ukonline.co.uk/ephrem/synodikon. “Aqueles que ouvem e entendem o que o dito Senhor, se você acredita em Moisés, você teria acreditado em mim, e o resto, o dito de Moisés, o Senhor nosso Deus levantaria dos seus irmãos um profeta como eu, e então disse que o profeta é recebido, mas que eles não representariam a graça do profeta e a salvação ele trouxe para todo o mundo através de imagens, mesmo que apesar de ele ser visto e viver entre homens e mulheres, e curou sofrimentos e doenças com poderosos atos de cura, e foi crucificado, enterrado e ergueu-se novamente, e sofreu tudo isso por nossa causa; aqueles que não aceitam que esses trabalhos de salvação, consumado por todo mundo, possa ser visto nos ícones, nem honrados e venerados neles: Anátema!” (Tradução nossa).

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que tanto Nicéforo quanto Studita produziram seus textos na capital do Império e poucos anos

antes do Triunfo da Ortodoxia, o que não aconteceu, por exemplo, no caso de Damasceno.

Mesmo que a defesa dos ícones tenha sido complementada pelo pensamento de duas

importantes personagens na segunda fase da Querela, ao que parece, o Synodikon de 843

apenas recolocou em vigor as definições do Concílio de Nicéia II.

Essa vitória sobre a iconoclastia em 843 é relembrada ainda hoje na Igreja

Ortodoxa, como o Domingo da Ortodoxia, celebrado todos os anos no primeiro domingo da

Quaresma.

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Conclusão

Trabalhar num campo que envolve idéias e crenças religiosas é uma tarefa

complexa, pois, como frisamos ao longo de todo o texto, esse é um assunto onde a teoria e as

práticas nem sempre caminham lado a lado. E tal é o caso da Querela Iconoclasta.

Alternando momentos de maior e menor intensidade, com perseguições,

proibições e reativações das decisões de um e outro grupo, o conflito em torno dos ícones

durou mais de um século, estando ligado, em Bizâncio, a uma intrincada rede de causas e

conseqüências, relacionadas tanto a questões dogmáticas quanto à política imperial. Não foi

nosso objetivo tentar desemaranhar toda essa teia de relações.

Optamos por seguir o caminho traçado pelos debates cristológicos que

fundamentaram essas discussões e serviram como base para a sustentação das teorias

iconológicas surgidas no período. Entretanto, em certos momentos desse estudo, foi

imprescindível abordar aspectos relacionados ao modelo autocrático do governo imperial, às

questões referentes à defesa nas regiões de fronteira e, principalmente, aos conflitos que

envolveram a corte bizantina e o crescimento do poder econômico e social das instituições

monásticas.

A opção pelas questões teológicas para o estudo da Querela foi tomada por ser

possível perceber que todas as discussões do período diziam respeito à relação das naturezas

humanas e divinas em Cristo e de como essa união seria representada numa pintura e

cultuada. Mesmo que a iconoclastia tenha estendido suas determinações também aos ícones

da Virgem, dos santos e dos anjos, o principal objeto de contestação e sobre o qual se

dedicaram a maior parte dos trabalhos tanto de iconoclastas quanto de iconófilos, foi sem

dúvida o ícone de Cristo. Por isso, em nosso texto, dedicamos maior espaço para a análise

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desses ícones, tentando assim reproduzir o peso que essa pintura especificamente teve nos

debates da Querela.

O eixo dessas discussões era o fato de, nas crenças cristãs, Cristo ser o Verbo

encarnado, no qual se conjugam sem separação nem confusão as naturezas humana e divina.

A questão que se colocava era como representá-lo sem que, para isso, não houvesse nem uma

separação nem uma mistura de suas naturezas, não contrariando assim um dogma cristão. A

resposta iconófila se baseava numa separação, defendida por Damasceno e Studita, entre o

protótipo e sua representação numa pintura, que o segundo conduz a oração do fiel ao

primeiro, mas eles não são a mesma coisa. O problema é que nem sempre nas práticas cristãs

de culto essa separação parece ter sido observada pelos fiéis.

Práticas à parte, a condenação da iconoclastia tinha como finalidade apresentar

uma defesa teologicamente bem formulada dos ícones que não contradissesse nem as

definições da Igreja em relação à dupla natureza de Cristo, nem as proibições bíblicas em

relação à idolatria. Como vimos, as teorias formuladas a cerca do ícone apresentaram

fundamento teológico, baseadas nas idéias dos monges João Damasceno e Teodoro Studita,

além dos Patriarcas de Constantinopla Germano e Nicéforo.

Embora tenha havido a oportunidade de trabalhar as idéias dos imperadores, do

alto clero e dos monges bizantinos, não foram encontradas nas fontes manifestações populares

que permitissem fazer uma análise do pensamento dos fiéis da sociedade cristã bizantina do

período. Não foi possível perceber se a maior parte dos cristãos se colocava à favor da

iconoclastia ou se manifestava contrário à ela. Ainda assim, alguns autores falam de práticas

iconoclastas entre os cristãos dos themas mais orientais de Bizâncio.298 Entretanto, não foram

encontradas nas fontes relatos de cristãos dessas localidades na Querela. Assim, não pudemos

298 Ver, por exemplo, LEMERLE, PAUL. Op. cit pp. 76-79, RUNCIMAN, Steven. A civilização bizantina. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar Editores. 1977. p. 60. DUCELLIER, Alain; KAPLAN, Michel; MARTÍN, Bernadette. Op. cit p. 123.

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proceder a um estudo da iconoclastia sob um ponto de vista dos fiéis bizantinos. Ressalta-se

que, além de não dispormos de fontes dessa natureza, privilegiamos em nossa análise as

definições dos seus Concílios e Sínodos, privilegiando a elaboração e propostas de

argumentos com fundamentação teológico.

O pensamento a cerca dos ícones foi definida ao longo da Querela, através dos

escritos dos monges e definições sinodais e conciliares. Segundo esse pensamento, o ícone

não representa nem somente a natureza divina do Cristo circunscrita, nem apenas a humana,

mas sim a hipóstase do Cristo, o Verbo Encarnado. Seu rosto numa pintura retrata a Pessoa na

qual se conjugam as duas naturezas, sem confusão nem separação. A recusa em cultuar uma

imagem de Cristo era considerada, segundo o pensamento iconófilo definido no Concílio de

Nicéia em 787, como a recusa na própria crença da Encarnação divina.299

Outro objetivo aqui foi analisar a periodização da iconoclastia através da

convocação dos Sínodos e Concílios, e não unicamente pelo surgimento de novas idéias a

respeito do assunto. Isso porque o surgimento de novas idéias nem sempre significou uma

mudança da posição da Igreja de Constantinopla e do Império e, por outro lado, a convocação

de sínodos também nem sempre significava a proposta de uma nova teoria dos ícones, ou

mesmo uma resposta a questionamentos anteriores. O que se percebeu no século IX foi uma

reativação de proposições em relação ao ícone que, em alguns casos, tinham inclusive sido

condenados.

Acreditamos que ambos os objetivos aqui traçados tenham sido atingidos.

Primeiro por termos mantido a apresentação dos acontecimentos em sua ordem cronológica,

analisando a Querela a partir de seus dois períodos históricos. Depois, porque através da

análise dos documentos apresentados, foi possível perceber a importância que os ícones de 299 Essa é uma convicção comum dos iconófilos, apresentada em Nicéia II (787) e que pode ser verificada desde os escritos de João Damasceno, nos primeiros anos da Querela. Cf St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images In: Website www.fordham.edu. Medieval Source Book. Acessado em 25/05/2005.

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Cristo tiveram nas definições da Querela, pois as formulações dos bem elaborados

argumentos iconófilos e iconoclastas tinham por base primeiramente a legitimação da pintura

e culto do ícone que evoca a Encarnação do Verbo divino, só então se estendendo às demais

representações.

Durante a Querela Iconoclasta, a Igreja se esforçou para diferenciar o ícone de seu

protótipo. Porém, o que se percebeu entre ícone e pessoa representada foi uma relação de

dependência mútua, na qual o culto aos santos dependesse mesmo da existência dos ícones

para se desenvolver. Marie-France Auzépy intitula um artigo com a pergunta: “L’iconodulie:

défense de l’image ou de la dévotion a l’image?”300 Tendo percebido que a função do ícone

fosse não apenas pedagógico ou evangelizador, acreditamos que a defesa da iconofilia

significou, assim como pensa Auzépy, também a defesa da próprio culto aos santos. Destruir

os ícones não representaria apenas o fim de parte da cultura material da Igreja, mas também

destruir uma das manifestações de culto na piedade pessoal dos cristãos.

Em se tratando de uma Querela, nos esforçamos para analisar os dois grupos em

questão. Mas, se por um lado, a vitória da iconofilia significou a restauração do culto de

ícones cristãos, por outro, resultou em um processo de grande destruição da memória, através

da destruição dos documentos produzidos pelo lado vencido. Era interesse da Igreja de

Constantinopla não deixar nenhum vestígio que pudesse ocasionar, no futuro, um retorno ao

iconoclasmo, como já havia acontecido em 815.

Para o historiador, isso representa uma limitação nas suas pesquisas, pois as fontes

iconoclastas originais se perderam com os debates. Porém, essa limitação não impede que

essas idéias sejam reconstruídas hoje, mesmo que indiretamente, através dos documentos

300 AUZÉPY, Marie-France.. L’iconodulie: défense de l’image ou de la dévotion a l’image?. In: BOESPFLUG, F. et LOSSKY, N. (Dir). Op. cit. pp. 157-165.

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iconófilos, possibilitando assim um estudo de iconoclastia bizantina que privilegie as

discussões que formularam os argumentos de legitimação da pintura e do culto dos ícones.

Este trabalho não tem a pretensão de esgotar questões referentes ao Oriente

medieval ou, mais especificamente, ao Império Bizantino. Cuidamos de explorar uma das

inúmeras possibilidades de pesquisa sobre o Cristianismo, suas práticas e pensamentos

referentes aos ícones – um aspecto importante de sua cultura material. Durante a Querela

Iconoclasta, essas pinturas atraíram uma série de debates, por vezes violentos, envolvendo

complexas discussões teológicas na busca da condenação ou legitimação de seu culto.

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