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A QUEDA-Albert Camus

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  • CIP-Brasil. Catalogao na fonte

    Sindicato Nacional dos Editores de Livros. RJ.

    Camus, Albert, 1913-1960

    A queda I Albert Camus: traduo de Valerie Rumjanek - RIO de Janeiro:

    Best Bolso, 2007.

    Traduo de: La chute

    ISBN 978-85-7799-008-5

    07-2917

    CDD- 848

    CDU - 821.l33.1-8

    I. Literatura francesa. I. Rumjanek, Valerie. 11. Ttulo.

    A queda, de autoria de Albert Camus.

    Ttulo nmero 009 das Edies Best Bolso.

    Ttulo original francs:

    LA CHUTE

    Copyright 1956 by ditions Gallimard. .

    Copyright da traduo by Distribuidora Record de Servios de Imprensa S.A.

    Direitos de reproduo da traduo cedidos para Edies Best Bolso, um selo da

    Editora Best Seller Ltda. Distribuidora Record de Servios de Imprensa S.A. e

    Editora Best Seller Ltda. so empresas do Grupo Editorial Record.

    www.record.com-br

    Ilustrao e design de capa: Pedro Meyer Barreto

  • http://groups.google.com.br/group/digitalsource

    Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira

    totalmente gratuita, o benefcio de sua leitura queles que no podem compr-la ou

    queles que necessitam de meios eletrnicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-

    book ou at mesmo a sua troca por qualquer contraprestao totalmente condenvel

    em qualquer circunstncia. A generosidade e a humildade a marca da distribuio,

    portanto distribua este livro livremente.

    Aps sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois

    assim voc estar incentivando o autor e a publicao de novas obras.

  • 1

    Meu senhor, posso oferecer-lhe meus prstimos, sem correr o risco de ser inoportuno? Receio

    que no se consiga fazer entender pelo amvel gorila que preside os destinos deste

    estabelecimento. Na verdade, ele s fala holands. A no ser que me autorize a defender sua

    causa, ele no adivinhar que est pedindo genebra. Olhe, ouso acreditar que me tenha

    compreendido: este aceno deve significar que ele se rende aos meus argumentos. De fato, l vai

    ele, apressa-se com uma sbia lentido. O senhor est com sorte - ele nem resmungou. Quando

    se recusa a servir algum, basta-lhe um grunhido: ningum insiste. Ser senhor do prprio estado

    de esprito privilgio dos grandes animais, Mas eu me retiro, meu caro senhor, feliz por lhe ter

    prestado um servio. Sou-lhe muito grato e aceitaria, com todo prazer, se estivesse certo de no

    bancar o intrometido. muita bondade sua. Ento, vou colocar meu copo junto ao seu.

    Tem toda razo, o mutismo dele ensurdecedor. o silncio das florestas primitivas, to

    pesado que sufoca. s vezes, eu me surpreendo com o obstinado desdm que o nosso taciturno

    amigo demonstra pelas lnguas civilizadas. Seu trabalho atender a marinheiros de todas as

    nacionalidades neste bar de Amsterd, a que deu o nome, ningum sabe bem o motivo, de

    Mexico-City. No acha, meu caro senhor, que esses deveres acabam levando sua ignorncia a se

    tornar incmoda? Imagine o homem de Cro-Magnon hospedado na Torre de Babel! No mnimo,

    sofreria uma sensao de desterro. Mas no, este no sente o exlio, segue seu caminho, nada o

    atrapalha. Uma das raras frases que ouvi de sua boca proclamava que era "pegar ou largar". Pegar

    ou largar o qu? Sem dvida, ele prprio, nosso amigo. Vou fazer-lhe uma confidncia: sinto-me

    atrado por essas criaturas granticas. Quando pensamos muito sobre o homem, por trabalho ou

    vocao, s vezes sentimos nostalgia dos primatas. Estes no tinham segundas intenes.

    Nosso anfitrio, na realidade, tem algumas idias, embora as alimente de modo obscuro.

    Por no compreender o que se diz em sua presena, assumiu um carter desconfiado. Da esse ar

    de sombria gravidade, como se suspeitasse, no mnimo, que h algo de errado entre os homens.

    Esse estado de esprito torna mais difceis as discusses que no dizem respeito a seu trabalho.

    Veja, por exemplo, acima de sua cabea, na parede do fundo, aquele retngulo vazio que marca o

    lugar de um quadro retirado. Com efeito, l havia um quadro particularmente interessante, uma

    verdadeira obra-prima. Pois bem, eu estava presente quando o mestre-de-cerimnias o recebeu e

    quando ele o cedeu. Nas duas ocasies, teve a mesma desconfiana, depois de passar algumas

    semanas refletindo. Quanto a isso, preciso reconhecer - a sociedade arranhou-lhe um pouco a

    franca simplicidade de temperamento.

    Note bem que no o estou julgando. Acho que sua desconfiana tem fundamento e dela

    compartilharia de bom grado se, como o senhor est vendo, meu temperamento comunicativo

  • no o impedisse. , mas pobre de mim, sou muito loquaz - e me relaciono com facilidade.

    Embora eu saiba manter as distncias convenientes, todas as ocasies me so propcias. Quando

    eu vivia na Frana, no podia encontrar um homem espirituoso sem que logo fizesse amizade.

    Ah, vejo que implica com esse imperfeito do subjuntivo. Confesso minha fraqueza por esse

    tempo verbal e pelo belo linguajar em geral. Mas pode acreditar - uma fraqueza pela qual me

    recrimino. Bem sei que o gosto por finas roupas brancas no pressupe obrigatoriamente que se

    tenham os ps sujos. Ainda assim. O estilo, como a popeline, dissimula muitas vezes o eczema.

    Consolo-me dizendo a mim mesmo que, afinal, aqueles que falam de maneira ininteligvel

    tambm no so puros. Bem, mas voltemos nossa genebra.

    Vai ficar muito tempo em Amsterd? Bela cidade, no? Fascinante, concorda? Eis um

    adjetivo que no ouo h muito tempo. Exatamente desde que sa de Paris, j faz muitos anos.

    Mas o corao tem memria e eu nada esqueci de nossa bela capital, nem dos seus cais. Paris

    uma verdadeira iluso de tica, um magnfico cenrio habitado por quatro milhes de silhuetas.

    Ou quase cinco milhes, segundo o ltimo recenseamento? Bem, eles devem ter feito filhos. No

    me surpreenderia. Sempre me pareceu que nossos concidados tinham duas paixes

    desenfreadas: as idias e a fornicao. A torto e a direito, por assim dizer. Alis, tentemos no

    conden-los: no so os nicos, isso ocorre em toda a Europa. s vezes, imagino o que diro de

    ns os historiadores do futuro. Duas idias lhes bastaro para definir o homem moderno:

    fornicava e lia jornais. Depois dessa forte definio, o assunto ficar, se assim posso me

    expressar, esgotado.

    Os holandeses - Oh, no, estes so muito menos modernos! Tm todo o tempo - olhe s

    para eles. Que fazem? Pois bem, esses senhores vivem do trabalho daquelas senhoras. Alis, tanto

    os machos quanto as fmeas so criaturas extremamente burguesas, que aqui vm, como de

    costume, por mitomania ou burrice. Em resumo: por excesso ou falta de imaginao. De vez em

    quando, estes senhores brincam de faca ou de revlver, mas no acredite que se empenhem

    muito. O papel o exige - nada mais e eles morrem de medo ao disparar os ltimos cartuchos.

    Dito isto, acho que so mais morais do que os outros, os que matam em famlia, pelo desgaste.

    Nunca observou, caro senhor, que nossa sociedade se organizou para este tipo de liquidao?

    Naturalmente, j deve ter ouvido falar dos minsculos peixes dos rios brasileiros que se atiram

    aos milhares sobre o nadador imprudente, e limpam-no, em alguns instantes, com pequenas

    mordidas rpidas, deixando apenas um esqueleto imaculado. Pois bem, esta a organizao deles.

    "Quer ter uma vida limpa? Como todo mundo?" claro que a resposta sim. Como dizer no?

    "Est bem. Pois vamos limp-lo. Pegue a um emprego, uma famlia, frias organizadas." E os

    pequenos dentes cravam-se na carne at os ossos. Mas estou sendo injusto. No se deve dizer

    que a organizao deles. Ela nossa. Afinal de contas, o caso de saber quem vai limpar o

    outro.

    Finalmente, trazem nossa genebra. sua prosperidade. Sim, o gorila abriu a boca para me

    chamar de doutor. Nesta terra, todo mundo doutor ou professor. Gostam de mostrar-se

  • respeitosos, por bondade e por modstia. Entre eles, pelo menos, a maldade no uma

    instituio nacional. Alm disso, no sou mdico. Se quer mesmo saber, eu era advogado antes de

    vir para c. Agora, sou juiz-penitente.

    Mas permita que me apresente: Jean-Baptiste Clamence, seu criado. um prazer

    conhec-lo. Sem dvida, deve ser um homem de negcios, no ? Mais ou menos? Excelente

    resposta! E tambm judiciosa: estamos apenas mais ou menos em todas as coisas. Vejamos,

    deixe-me bancar o detetive. Tem mais ou menos minha idade, o olhar esclarecido dos quarentes

    que j fizeram de tudo um pouco. Est mais ou menos bem vestido, quer dizer, como as pessoas

    se trajam em nosso pas, e tem as mos finas. Portanto, mais ou menos um burgus! Mas um

    burgus requintado! Implicar com os imperfeitos do subjuntivo, na realidade, demonstra

    duplamente sua cultura: em primeiro lugar, porque os reconhece, e porque, a seguir, eles o

    irritam. Enfim, eu o divirto, o que, sem vaidade de minha parte, pressupe no senhor uma certa

    abertura de esprito. O senhor , portanto, mais ou menos ... Mas que importa? As profisses me

    interessam menos do que as seitas. Permita-me que lhe faa duas perguntas, e s me responda se

    no as julgar indiscretas. O senhor possui bens? Alguns? Bom. Repartiu-os com os pobres? No.

    , portanto, o que chamo um saduceu. Se no tem familiaridade com as Escrituras, reconheo

    que no lhe adiantar muito. Adianta? Ento conhece as Escrituras? Decididamente, o senhor me

    interessa.

    Quanto a mim ... Bem, julgue por si mesmo. Pela estatura, pelos ombros e por este rosto

    que tantas vezes me disseram ser feroz, eu teria mais o aspecto de um jogador de rgbi que outra

    coisa, no ? Mas, a julgar pela conversa, preciso conceder-me um pouco de refinamento. O

    camelo que forneceu a pele do meu sobretudo sofria, sem dvida, de sarna; em compensao,

    tenho as unhas tratadas. Eu tambm sou esclarecido e, no entanto, estou me abrindo com o

    senhor sem precaues, baseado unicamente em sua aparncia. Enfim, apesar de minhas boas

    maneiras e de meu belo linguajar, sou um freqentador assduo dos bares de marinheiros do

    Zeedijk. Mas chega, no procure mais. Meu trabalho duplo - eis tudo - como a criatura. J lhe

    disse, sou juiz-penitente. A nica coisa simples no meu caso que nada tenho. Sim, fui rico; no,

    nada reparti com os outros. O que prova isso? Que eu tambm era um saduceu ... Oh! Est

    ouvindo as sereias do porto? Esta noite vai haver neblina sobre o Zuyderzee.

    J vai embora? Desculpe-me se o atrasei. Se me permite, no pagar nada. Est em minha

    casa no Mexico-City e tive imenso prazer em receb-lo. Amanh, certamente estarei aqui, como

    nas outras noites, e aceitarei, de bom grado, seu convite. Seu caminho ... Bem ... Mas, se no v

    nenhum inconveniente, seria mais simples acompanh-lo at o porto. De l, contornando o

    bairro judeu, encontrar as belas avenidas, onde desfilam os bondes carregados de flores e de

    nmeros tonitruantes. Seu hotel certamente fica em uma dessas avenidas, no Damrak. Tenha a

    bondade, primeiro o senhor. Quando a mim, moro no bairro judeu, ou no que era assim

    chamado at o momento em que nossos irmos hitlerianos abriram espao. Que limpeza! Setenta

    e cinco mil judeus deportados ou assassinados _ a limpeza pelo vcuo. Admiro esta aplicao,

  • esta pacincia metdica! Quando no se tem carter, preciso mesmo valer-se de um mtodo.

    Nesse caso, ele fez milagres, sem dvida alguma, e eu moro no local em que foi cometido um dos

    maiores crimes da histria. Talvez seja isso que me ajude a compreender o gorila e sua

    desconfiana. Desse modo, posso lutar contra essa tendncia de temperamento que me inclina de

    modo irresistvel simpatia. Quando vejo uma cara nova, algo dentro de mim faz soar o alarme.

    "Devagar. Perigo!" Mesmo quando a simpatia intensa, tenho cautela.

    Sabe que em minha pequena aldeia, em uma ao de represlia, um oficial alemo pediu

    delicadamente a uma velhinha para fazer a gentileza de escolher entre os seus dois filhos o que

    seria fuzilado? Escolher, j imaginou? Aquele? No, este aqui. E v-lo partir. No insistamos

    nisso, mas creia-me, caro senhor, todas as surpresas so possveis. Conheci um corao puro que

    recusava a desconfiana. Era pacifista, libertrio e amava com um nico amor abrangente toda a

    humanidade e os animais. Sim, uma alma de elite, com toda a certeza. Pois bem, durante as

    ltimas guerras religiosas, na Europa, retirou-se para o campo. Escreveu na entrada de sua casa:

    "De onde quer que voc venha, entre e seja bem-vindo." Quem, segundo o senhor, respondeu a

    este belo convite? Os milicianos, que entraram como se a casa fosse deles e o estriparam.

    Oh, perdo, madame! Alis, ela nada compreendeu. Toda essa gente, hem, e apesar da

    chuva que no pra h dias! Felizmente, existe a genebra, a nica claridade nestas trevas. O

    senhor percebe a luz dourada, metlica, que ela instila? Gosto de caminhar pela cidade, noite, ao

    calor da genebra. Caminho noites inteiras e sonho, ou falo sozinho interminavelmente. Como

    nesta noite, sim, e receio atordo-la um pouco, obrigado, o senhor muito gentil. Mas um

    transbordar: basta eu abrir a boca para as frases extravasarem. Alis, este pas me inspira. Amo

    este povo que fervilha nas ruas, espremido num pequeno espao de casas e de guas, encurralado

    pelas brumas, pelas terras frias e pelo mar fumegante como um caldeiro. Eu o amo, porque ele

    duplo. Est aqui e em outro lugar qualquer.

    Mas sim, pelo rudo de seus passos largos sobre a pavimentao gordurosa, vendo-os

    passar pesadamente entre as suas lojas, cheias de arenques dourados e de jias da cor de folhas

    mortas, acredita, sem dvida, que esto a nesta noite? O senhor como todo mundo, toma essa

    boa gente por uma tribo de sndicos e de mercadores contando seus 12 florins ao mesmo tempo

    em que contam suas possibilidades de vida eterna, cujo nico lirismo consiste em ter lies de

    anatomia, s vezes cobertos de grandes chapus? O senhor se engana. bem verdade que

    caminham junto de ns, no entanto, veja onde se encontram suas cabeas: nesta bruma de neon,

    de genebra e de menta, que desce das tabuletas vermelhas e verdes. A Holanda um sonho, meu

    caro senhor. De dia, um sonho de ouro e de fumaa, mais enfumaado de dia, mais dourado

    noite, e dia e noite este sonho povoado de Lohengrins como este, deslizando sonhadores sobre

    as suas negras bicicletas de guides altos, cisnes fnebres que giram sem parar em todo o pas, em

    torno dos mares, ao longo dos canais. Eles sonham, com a cabea nas nuvens de cobre, andam

    em crculos, rezam, sonmbulos, no incenso dourado da bruma, esto ausentes. Partiram para

    milhares de quilmetros de distncia, rumo a Java, uma ilha longnqua. Rezam a esses deuses da

  • Indonsia, com ar de mscaras, com que guarneceram todas as suas vitrines e que vagueiam neste

    momento, acima de ns, antes de se agarrarem como macacos suntuosos s tabuletas e aos

    telhados em degraus, para relembrar a estes colonos nostlgicos que a Holanda no apenas a

    Europa dos mercadores, mas tambm o mar, o mar que leva a Cipango e a essas ilhas onde os

    homens morrem loucos e felizes.

    Mas eu me deixo levar, como no foro! Desculpe. O hbito, meu caro senhor, a vocao, e

    tambm o desejo que tenho de lhe fazer compreender bem esta cidade, o mago das coisas!

    Porque ns estamos no mago das coisas. J reparou que os canais concntricos de Amsterd se

    parecem com os crculos do inferno? O inferno burgus, naturalmente, povoado de maus

    sonhos. Quando se chega do exterior, medida que se passa por estes crculos, a vida, e portanto

    seus crimes, tornam-se mais espessos, mais obscuros. Aqui, estamos no ltimo crculo. O crculo

    dos ... Ah! Sabe disso? Que diabo, o senhor se torna cada vez mais difcil de classificar. Ento

    compreende por que posso dizer que o fundo das coisas est aqui, embora nos encontremos na

    extremidade do continente? Um homem sensvel compreender essas esquisitices. Em todo caso,

    os leitores dos jornais e os fornicadores no podem ir mais longe. Chegam de todos os cantos da

    Europa e param volta do mar interior, sobre a margem arenosa e incolor. Escutam as sereias,

    buscam em vo as silhuetas dos barcos na bruma, em seguida tornam a atravessar os canais e

    vo-se embora sob

    a chuva. Transidos, vm pedir genebra, em todas as lnguas, no Mexico-City. L, espero por eles.

    At amanh ento, meu caro senhor e compatriota. No, agora encontrar facilmente o

    caminho. Deixo-o perto desta ponte. noite, nunca passo numa ponte. Por causa de uma

    promessa. Suponha, enfim, que algum se atire gua. Das duas, uma: ou o senhor o segue, para

    retir-lo, e no tempo de frio arrisca-se ao pior, ou o abandona, e os mergulhos retidos deixam, s

    vezes, estranhas cibras. Boa noite! Como? Estas mulheres, por de trs das vitrines? O sonho,

    meu caro senhor, o sonho a baixo custo, a viagem s ndias! Estas pessoas perfumando-se com

    especiarias. Entra-se, elas fecham as cortinas e a navegao comea. Os deuses descem sobre os

    corpos nus e as ilhas ficam deriva, dementes, encimadas por uma cabeleira desgrenhada de

    palmeiras ao vento. Experimente.

  • 2

    Que um juiz-penitente? Ah! Deixei-o intrigado com esta histria. No coloquei nisso malcia

    alguma, acredite, e posso explicar-me com mais clareza. De certo modo, isso faz mesmo parte de

    minhas funes. Mas, em primeiro lugar, necessrio expor-lhe um determinado nmero de

    fatos que o ajudaro a compreender melhor minha narrativa.

    H alguns anos, eu era advogado em Paris, e, juro, um advogado bastante conhecido.

    claro, no lhe disse meu verdadeiro nome. Eu tinha uma especialidade: as causas nobres. A viva

    e o rfo, como se diz, no sei a razo, j que, enfim, h vivas abusivas e rfos ferozes.

    Bastava-me, no entanto, farejar num ru o mais leve cheiro de vtima para que minhas mangas

    entrassem em ao. E que ao! Uma tempestade! Eu tinha o corao nas mangas. Podia-se

    pensar que a justia dormia comigo todas as noites. Tenho certeza de que o senhor admiraria a

    exatido de meu tom, a justeza de minha emoo, a persuaso e o calor, a indignao controlada

    de minhas defesas. A natureza favoreceu-me quanto ao fsico, a atitude nobre me vem sem

    esforo. Alm disso, eu era alimentado por dois sentimentos sinceros: a satisfao de me

    encontrar do lado certo do tribunal e um desprezo instintivo pelos juzes em geral. Esse

    desprezo, afinal, talvez no fosse to instintivo. Sei agora que ele tinha l suas razes. Mas, visto

    de fora, parecia mais uma paixo. No se pode negar que, pelo menos por ora, os juzes sejam

    necessrios, no acha? No entanto, eu no conseguia compreender por que um homem destinava

    a si prprio para exercer essa surpreendente funo. Admitia-o, j que o via, mas um pouco como

    eu admitia os gafanhotos. Com a diferena de que as invases desse ortpteros nunca me

    renderam um centavo sequer, ao passo que eu ganhava a vida dialogando com pessoas que

    desprezava. Mas, enfim, eu estava do lado certo, isso bastava para a paz de minha conscincia. O

    sentimento do direito, a satisfao de ter razo, a alegria de nos estimarmos a ns prprios so,

    meu caro senhor, impulsos poderosos para nos manter de p ou nos fazer avanar. Pelo

    contrrio, privar os homens desses impulsos implica transform-los em ces

    raivosos. Quantos crimes cometidos simplesmente porque seu autor no podia suportar o fato de

    estar errado! Conheci, em outros tempos, um industrial que tinha uma mulher perfeita, admirada

    por todos e que, no entanto, ele traa. Esse homem ficava literalmente raivoso ao se descobrir

    culpado, na impossibilidade de receber, ou de passar a si prprio, uma certido de virtude.

    Quanto mais a mulher se mostrava perfeita, mais ele se enraivecia. Finalmente, seu erro se tornou

    insuportvel. Que pensa que fez ento? Deixou de engan-la? No. Matou-a. Foi desse modo que

    travei conhecimento com ele.

    Minha situao era mais invejvel. No s no me arriscava a passar para o lado dos

    criminosos (em meu caso, no havia nenhuma probabilidade de matar minha mulher, pois era

    solteiro), como ainda assumia a defesa deles, com a nica condio de serem bons assassinos,

    como outros so bons selvagens. A prpria maneira como eu conduzia essa defesa me

  • proporcionava grandes satisfaes. Era realmente irrepreensvel em minha vida profissional.

    Nunca aceitei propinas, desnecessrio dizer, mas tambm nunca me rebaixei a nenhum

    empenho. Coisa ainda mais rara, nunca concordei em bajular qualquer jornalista, a fim de torn-

    lo favorvel a mim, nem funcionrio algum, cuja amizade me pudesse ser til. Tive mesmo a

    sorte de me oferecerem por duas ou trs vezes a Legio de Honra, que eu pude recusar com uma

    dignidade discreta, na qual encontrava minha verdadeira recompensa. Enfim, nunca cobrei dos

    pobres nem alardeei isso aos quatro ventos. No pense, meu caro senhor, que eu esteja me

    vangloriando disso tudo. Meu mrito era nenhum: a avidez, que em nossa sociedade substitui a

    ambio, sempre me fez rir. Eu tinha um objetivo mais elevado; ver que a expresso exata, no

    que me diz respeito.

    Mas avalie j minha satisfao. Gozava minha prpria natureza e todos ns sabemos que

    a que reside a felicidade, embora para nos tranqilizarmos mutuamente, demonstremos, por

    vezes, condenar estes prazeres sob o nome de egosmo. Gozava, pelo menos, a parte de minha

    natureza que reagia com tanta preciso viva e ao rfo, que, fora de se exercer, acabava

    reinando sobre a minha vida toda. Adorava, por exemplo, ajudar os cegos a atravessarem as ruas.

    Por mais longe que estivesse, ao avistar uma bengala que hesitava na esquina de uma calada, eu

    me precipitava, adiantava-me um segundo, por vezes, mo caridosa que j se estendia, arrancava

    o cego a qualquer outra solicitude que no a minha, e conduzia-o, com mo bondosa e firme,

    pela faixa de pedestres, entre os obstculos do trnsito, at o porto seguro da calada, onde nos

    separvamos com uma emoo mtua. Da mesma forma, sempre gostei de dar informaes s

    pessoas que passavam por mim na rua, dar-lhes fogo, prestar alguma ajuda a carretas pesadas

    demais, empurrar um automvel enguiado, comprar o jornal moa do Exrcito da Salvao ou

    as flores velha florista, mesmo sabendo que ela as roubava no cemitrio de Montparnasse.

    Gostava tambm, ah... Isso mais difcil de dizer ... gostava de dar esmolas. Um grande cristo

    amigo meu reconhecia que o primeiro sentimento que experimentamos ao ver um mendigo se

    aproximar de nossa casa de desagrado. Pois bem, comigo era pior: eu exultava. Mas passemos

    adiante.

    Falemos antes de minha cortesia. Ela era famosa e, no entanto, indiscutvel. A polidez

    proporcionava-me, com efeito, grandes alegrias. Se tinha a oportunidade, certas manhs, de ceder

    o lugar no nibus ou no metr a quem visivelmente o merecesse, de apanhar do cho algum

    objeto que uma senhora de idade tivesse deixado cair e devolv-lo com um sorriso que eu

    conhecia ou, simplesmente, de ceder meu txi a uma pessoa com mais pressa do que eu, tudo isso

    enchia de luz meu dia. Chegava a deliciar-me, no posso deixar de diz-lo, com os dias em que,

    devido greve dos transportes pblicos, eu tinha a oportunidade de embarcar em meu

    automvel, nas paradas de nibus, alguns de meus infelizes concidados impossibilitados de

    voltar para casa. Deixar, enfim, minha poltrona no teatro para permitir que um casal se reunisse

    ou, em viagem, colocar as malas de uma moa no bagageiro instalado alto demais para ela eram

    alguns feitos que eu realizava com mais freqncia do que os outros, porque estava mais atento s

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