a psicose em freud - andréa m.c. guerra

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    Como nos lembra a escritora Clarice Lispector, em guaviva, nem todo texto para ser sobrevoado de perto, poisganha sua secreta redondez antes invisvel quando visto

    de um avio em alto voo. Ento adivinha-se o jogo das

    ilhas e veem-se canais e mares. Boa viagem.

    A psicose em Freud

    Apesar de Freud ter contraindicado o tratamento psicana-

    ltico das psicoses, ele realizou extenso estudo sobre essa

    estrutura clnica desde o incio de sua produo, ainda em

    seus rascunhos e cartas, postumamente publicados. Cer-

    tamente, porm, foi com o estudo do presidente Schreber,

    em 1911, que abriu a discusso sobre as estratgias de cura

    que os psicticos podem construir. Invertendo a ideia de

    que o delrio seria um sintoma dessa estrutura clnica, eleformula o aforismo do delrio como tentativa de cura, oude soluo, nas psicoses. Ou seja, h um movimento do

    psictico em direo estabilizao.

    Sabemos que Freud no delimitou, com a clareza es-

    trutural de Lacan, as solues subjetivas que encontramos

    para tratar a impossibilidade de a linguagem apreender a

    experincia com o corpo e com a realidade. Neurose, psi-

    cose e perverso so os nomes das estruturas clnicas que

    foram finamente sendo isoladas como formas particula-

    res de resposta do sujeito diante do impasse colocado pela

    castrao ou, em outras palavras, por essa insuficincia da

    linguagem de dar conta da experincia pulsional. Entre-

    Extrado de: Guerra, Andra Mris Campos. Apsicose. Rio de Janeiro: Zahar, 2010

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    tanto, desde Freud, encontramos o traado fundamental

    das fissuras que as determinam.

    Em seus primeiros rascunhos, discutindo a paranoia,

    Freud a toma como um modo patolgico de defesae apre-

    senta a proposta da psicose como resultante de um radical

    mecanismo de defesa inconsciente. Ele concebe o aparelhopsquico como sendo alimentado pelo afeto, investido nas

    representaes. As representaes das coisas so aquelas

    que se encontram como registro no sistema inconscien-

    te. Do investimento energtico nas representaes que as

    coisas ganham no aparelho psquico, somado ao investi-

    mento das representaes das palavras, constitui-se a re-

    presentao do objeto, utilizada pelo pensamento lgico,

    consciente e racional, e pela linguagem.

    Lidamos com as representaes de objeto ao falarmos

    e ao nos expressarmos. Porm, nem sempre elas se encon-

    tram dispostas da maneira como acabamos de explicar. Arelao entre as representaes conscientes e inconscientes

    do objeto pode se dispor de outras maneiras. Freud nos

    explica que, na esquizofrenia um tipo clnico das psi-

    coses , as palavras podem ser tomadas como se fossem

    coisas. Haveria um superinvestimento nas representaes

    das palavras como forma de suprir a no inscrio das

    representaes das coisas no inconsciente. Dessa feita, as

    palavras so tomadas como coisas.

    Freud decompe a representao consciente do objeto

    em representao da coisa hiperinvestida atravs da liga-

    o com a representao da palavra que lhe correspon-

    de, articulando que, no inconsciente, permanece apenas

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    a representao da coisa do objeto ponto rejeitado na

    psicose. Da extrai que o investimento das representaes

    de palavras retido na psicose, j que ele no faz parte da

    operao de rejeio. Ele representa, na verdade, a primei-

    ra das tentativas de restabelecimento, dirigidas recupe-

    rao do objeto perdido. E, pode ser que, para alcanaresse propsito, enveredem por um caminho que conduz

    ao objeto atravs de sua parte verbal, contentando-se com

    palavras em vez de coisas, nos diz.

    Assim, por exemplo, um paciente psictico, paranoico,

    que deseja ser um homem direito, com a misso de resga-tar a honestidade perdida no delrio que tem acerca de sua

    famlia, candidata-se a uma vaga universitria de um cur-

    so de direito. No h dialtica, no h simbolizao. Para

    ser um homem direito, ele precisa cursar direito. Ou, em

    outro caso, o sujeito deseja construirpara si uma persona-

    lidade e, para isso, muda seu ramo de negcios de mveisusados para o de material de construo.

    essa a diferena determinante na psicose. O que vivido como traumtico, como afetivamente intenso pelopsictico, no ganha uma representao capaz de favore-

    cer o escoamento energtico ou a vinculao desse excessoa uma ideia, a uma representao. As palavras so reais.Freud nos diz que o eu rejeita a representao incompa-tvel juntamente com seu afeto e se comporta como se arepresentao jamais lhe tivesse ocorrido. Mas a partir domomento em que isso ocorre, temos uma psicose.

    Na neurose, o contedo aflitivo recalcado (ou man-dado para o inconsciente, onde produz, dinamicamente,

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    derivados), h recalque das exigncias pulsionais. E o re-

    calcado retorna, de maneira substitutiva, sob a forma de

    sintoma, seja no corpo, seja no pensamento, seja na forma

    de angstia. H, porm, um lao simblico que liga a for-

    mao sintomtica ao contedo originalmente recalcado,

    diferentemente do que ocorre na psicose. Na psicose, um fragmento desagradvel da realidade que rejeitado e

    substitudo pelo delrio. Na neurose, por seu turno, as exi-

    gncias pulsionais recalcadas so substitudas pela satisfa-

    o obtida com a fantasia inconsciente. A diferena entre a

    neurose (aqui pensada como a nossa normalidade) e a psi-

    cose (aqui equivalente loucura) se localiza no no rompi-

    mento com a realidade, mas no caminho para restaur-la.

    A rejeio na psicose atinge a prpria situao real, que

    nunca precisou se tornar consciente. Trata-se de uma de-

    fesa to eficaz que nega a realidade mesma da percepo

    ligada representao incompatvel. Como essas ideiasno so passveis de alterao, seria o eu que a elas preci-

    saria se adaptar, modificando-se. Na verdade, para Freud,

    tanto na neurose quanto na psicose, haveria perda da rea-

    lidade. Na neurose, num primeiro momento haveria um

    recalque das exigncias pulsionais, enquanto na psicoseocorreria uma rejeiodo fato desagradvelda realidade.

    Em qualquer dos casos, porm, haveria perda na relao

    com a realidade externa e posterior construo de uma sa-

    da diante dessa perda, seja pela fantasia, na neurose, seja

    pelo delrio, na psicose.

    Com a releitura do caso Schreber, efetuada a partir da re-

    flexo metapsicolgica sobre o narcisismo, em 1914, Freud

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    estabelece nova diferena entre as psicoses e as neuroses

    localizada na circunstncia de que, nas primeiras, a libido,

    ou energia sexual, liberada pela frustrao no permane-

    ceria ligada a objetos na fantasia, mas se retiraria para o eu.

    Nesse sentido, a megalomania corresponderia ao domnio

    psquico dessa ltima quantidade de libido, e seria assim acontrapartida da introverso para as fantasias, encontrada

    nos neurticos.

    Transferncia nas psicoses a partir

    de suas modalidades clnicas

    Como decorrncia dessa defesa estrutural, cuja base a re-

    tirada da libido dos objetos, haveria uma dificuldade, por

    parte dos psicticos, de estabelecer o lao transferencial,

    essencial ao tratamento psicanaltico. Freud nos ensinaque a regra de ouro da psicanlise, a nica regra a regero tratamento, a associao livre. Nela, o sujeito se pea falar, sem restries ou prejulgamentos, tudo o que lhe

    ocorre mente. um mtodo construdo em decorrnciado modo de funcionamento associativo do inconsciente.

    Esse mtodo opera tendo como pano de fundo a trans-ferncia, mecanismo no qual se d o deslocamento do in-vestimento libidinal insatisfeito para a figura do analista,com vistas satisfao. O analisando inclui o analista numadas sries psquicasatravs das quais estabelece um modo de

    conduzir-se na vida ertica. Na repetio desses afetos comseu analista, o sujeito pode trabalhar, a partir do incons-

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    ciente, suas fixaes e sintomas de tal forma que entre alinguagem e o corpo, entre a compreenso e a ao, entreele e seu analista o territrio da transferncia se constitua

    naquele no qual as batalhas analticasse realizam.

    Em funo de seu modo singular de estruturao, mar-

    cado pelo desinvestimento libidinal, os psicticos so, paraFreud, incapazes de estabelecerem o amor transferencial.

    Por conta dos efeitos subjetivos da operao de rejeio,

    a energia libidinal se volta para o corpo na esquizofrenia

    (autoerotismo), para o Outro na paranoia (narcisismo pri-

    mrio) e se dispersa no eu, escoando-se, pela identifica-

    o ao objeto perdido, na melancolia. Em outras pala-

    vras, os psicticos seriam incapazes de investir na figura

    do analista.

    Freud chega mesmo a denominar essas patologias

    (paranoia e esquizofrenia) de neuroses narcsicas, em opo-

    sio s neuroses transferenciais (histeria e neurose obses-siva). Por conta disso, contraindica a aplicao do mtodo

    psicanaltico s primeiras e adverte o psicanalista do risco

    de um erro diagnstico entre os dois grupos.

    Na esquizofrenia, com o mecanismo de defesa que a

    constitui, a libido (ou afeto) que foi retirada no procura

    um novo objeto e refugia-se no eu. Em outras palavras,

    os investimentos nos objetosso abandonados,restabe-

    lecendo-se uma primitiva condio de narcisismo de au-

    sncia de objeto.A libido retorna para o corpo que, nesse

    caso, no encontra o apoio simblico de uma imagem de

    unicidade. A experincia do esquizofrnico se desenrola

    em relao a um corpo despedaado. Assim,

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    a incapacidade de transferncia desses pacientes (at onde o

    processo patolgico se estende), sua consequente inacessibi-

    lidade aos esforos teraputicos, seu repdio caracterstico

    ao mundo externo, o surgimento de sinais de um hiperin-

    vestimento do seu prprio eu, o resultado final de completa

    apatia todas essas caractersticas clnicas parecem concor-

    dar plenamente com a suposio de que seus investimentos

    objetais foram abandonados.

    Encontraramos, segundo Lacan, o vetor da transfe-rncia retornando ao prprio sujeito, e no dirigindo-sea um analista. O que faz supor que a transferncia se en-contra ausente nesse tipo clnico. no corpo que o afetono subjetivado no Outro simblico do esquizofrnicoretorna sob a forma de gozo. J na paranoia, ainda comFreud, onde a capacidade da transferncia tornou-se es-

    sencialmente limitada a uma transferncia negativa, deixade haver qualquer possibilidade de influncia ou trata-mento. Freud, estudando o caso Schreber, supe em suabase um amor homossexual: eu (um homem) o amo (ou-tro homem). Esse amor homossexual ocupa a lacuna queo conceito de narcisismo (amor a si mesmo como objetode investimento) ainda no formulado na poca deixaem aberto.

    A negao do verbo na frase eu o odeio , seguida desua projeo, culminaria na gramtica transferencial do

    paranoico: ele me odeia. Uma outra maneira de o amor

    transferencial se estabelecer na paranoia confere-lhe umacolorao erotmana. Nesse caso, a negao da frase se da-

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    ria a partir da negao de seu objeto: eu a amo, que, porprojeo, constituiria o ela me ama. As demais negaes,respectivamente, do sujeito da frase e desta como um todo

    derivariam da gramtica do delrio de cimes ela o ama e do delrio megalmano eu s amo a mim mesmo.

    Essa estrutura gramatical ganhar um contorno teri-co novo com o desenvolvimento do conceito de narcisismo

    poucos anos depois, em 1914. A partir de ento, Freud ve-

    rifica uma regresso e uma fixao do paranoico no nvel

    do narcisismo primrio. O paranoico constitui-se como

    objeto de investimento, a partir da imaginarizao de um

    eu unificado no corpo que opera de maneira especular

    com os outros. A especularidade e a ausncia da inscrio

    da falta no campo do simblico propiciam a subjetivao

    de um Outro denso, pleno e tirano, na paranoia. Assim,

    comumente, encontramos nesses casos a certeza psictica

    que implica esse Outro no marcado pela falta, em relaoao qual o paranoico se toma como objeto da vontade de

    seu gozo. H, pois, uma modalidade de transferncia tipi-

    camente persecutria ou erotmana a ser manejada con-

    forme a colorao que ganha em cada caso.

    Na melancolia, a dor de existir, como Lacan a nomeia,

    est associada a uma perda fundamental, perda do ide-

    al que encobriria a falta da castrao no campo do Outro.

    Para Freud, ocorre na melancolia umfuro no psiquismoque

    culmina numa hemorragia de libido. Para Lacan, esse tam-

    bm o furo do gozo prprio estrutura da linguagem.

    A perda no nvel do ideal liquida o investimento ob-

    jetal e a libido livre retirada para o eu, atravs de uma

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    identificao com o objeto perdido. A sombra do objeto(perdido) cai sobre o eu. No arranjo que o melanclico

    realiza, o ideal do eu ocupa o lugar da referncia simblica

    para o sujeito, suprindo a ausncia ou foracluso do refe-

    rente simblico que nos estrutura na linguagem e no lao

    social, conhecido como Nome-do-Pai, como veremos. E,se esse arranjo se abala, o eu perde esse revestimento nar-

    csico, evidenciando seu status de objeto. A foracluso, en-

    to, se desvela, deixando evidente o furo no simblico.

    Assim, uma perda objetal se transforma numa perda do

    eu, para o qual convergem as recriminaes antes referi-

    das ao conflito advindo da ambivalncia na relao com o

    objeto. s recriminaes somam-se as autodepreciaes eautoacusaes, decorrentes do sentimento de culpa. Iden-tificado ao objeto, o eu atrai a clera do supereu contra ele.Da pode at mesmo nascer um delrio de reconstituio

    do Outro, antes eliminado na melancolia, que julga e con-dena, deixando o sujeito espera de um castigo. O Outrodo tribunal aparece aqui como uma espcie de supereu.

    De uma maneira geral, mas respeitando cada caso sin-gularmente, a direo do tratamento com as psicoses parteda tentativa de operar alguma maneira de circunscriodo gozo e de interveno sobre o Outro, j que a interpre-tao no est do lado do analista, mas antes do lado dosujeito. Desalojar o sujeito do lugar de subordinao aoOutro e buscar tom-lo como sujeito capaz de resposta foia aposta legada por Lacan. Outra via a de favorecer uma

    circunscrio do gozo pela construo ou apropriao deobjetos nos quais o gozo se adensa, deslocando-se do cor-

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    po do sujeito. Outra ainda apontar um Outro castrado,que no pode tudo e que tambm falha, veiculando suarelativizao.

    Nesse sentido, o analista no ocupa a mesma posiocom a qual trabalha com as neuroses. Nas psicoses, ele pre-

    cisa se precaver de encarnar o Outro, buscando um lugarvazio de gozo que possa produzir um corte capaz de con-vocar o sujeito na psicose. preciso barrar o gozo do Ou-tro, criando intervalos nos quais o sujeito possa se alojar.Seja pela via imaginria, seja pela via simblica, seja pelavia real, orientar-se pelo estilo de construo de respostasde cada sujeito o vetor que orienta a clnica das psicoses,

    aps a coragem lacaniana de propor a elas um tratamentopossvel.

    Retorno do gozo no corpo (esquizofrenia), retorno dogozo no Outro (paranoia) e perda permanente de gozo

    atravs do eu (melancolia) as psicoses nos ensinam queos caminhos do tratamento possvel com elas so muitocomplexos e variados. Somente ao final da vida ao dis-cutir as condies do final de uma anlise , Freud reto-

    maria a questo do tratamento psicanaltico das psicoses,inaugurando uma nova possibilidade que reconfigurariasua resistncia clnica com esses sujeitos. Ele afirma, en-to, que somente atravs de uma modificao do mtodopsicanaltico, adaptado linguagem e s condies de fun-cionamento das psicoses, estas poderiam ser acolhidas pelapsicanlise. Foi nessa aposta que Lacan se fiou e com a qual

    hoje operamos.

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    Estabilizao psictica em Freud

    No tocante s possibilidades de curanas psicoses, confor-me terminologia freudiana, ou de estabilizao, como dize-

    mos atualmente, Freud trouxe novidades determinantes no

    texto Notas psicanalticas sobre um relato autobiogrfico

    de um caso de paranoia (dementia paranoides). Neste, ele

    analisa o caso Schreber, provocando uma reverso inaugu-

    ral e fundamental leitura posterior da psicose. Alm disso,

    lanou definitivamente princpios que orientam, at os dias

    de hoje, a investigao psicanaltica acerca do tema. Dois

    grandes enunciados se estabeleceram com esse texto:

    a) em relao ao mecanismo estrutural da psicose, Freud

    afirma que aquilo que foi abolido internamente retor-

    na desde fora. O que permitiu a Lacan, dcadas depois,

    afirmar que, na base da psicose, seu mecanismo no se

    resume a um recalque por projeo, mas a uma opera-

    o muito mais radical que ele denomina foracluso,

    como exposta a seguir;

    b) e, em oposio a uma interpretao fenomenolgica

    da psicose, Freud subverte sua leitura apontando que

    a formao delirante uma tentativa de restabeleci-

    mento, e no a enfermidade propriamente dita, como

    era interpretada at ento. Donde Lacan afirmar, tex-

    tualmente, que no de dficit que se trata na psicose,

    mas de produo de resposta. Para Lacan, a liberdade

    que Freud se deu a foi simplesmente aquela de in-

    troduzir o sujeito como tal, o que significa no avaliar

    o louco em termos de dficit.

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    Apesar de reafirmar que a projeo est na base da de-fesa psictica provocando uma ejeo dos sentimentos

    de autoacusao do paciente, que retornam sob a forma de

    acusaes exteriores , na anlise do caso Schreber Freud

    altera substancialmente a descrio desse processo. Pro-

    pe que incorreto afirmar que a percepo suprimidainternamente projetada para o exterior; a verdade ,

    pelo contrrio, que aquilo que foi abolido internamente

    retorna desde fora. Esse desde foranos interroga. Comoconceber que o que foi internamenteabolido possa retor-nar de fora? Fora do aparelho psquico? Fora da realidade?

    Fora do corpo do sujeito? Suportemos por enquanto essas

    questes

    Cabe ainda lembrar que o mecanismo de retirada do

    investimento da energia sexual no mundo externo coin-

    cide com o delrio do fim do mundo em Schreber. A pos-

    terior construo de seu mundo interno, realizada atra-vs do trabalho delirante que se presumia sero produtopatolgico, , na realidade, para Freud, uma tentativa derestabelecimento, um processo de reconstruo, ainda quenunca completamente bem-sucedido. Ou seja, onde su-

    pnhamos a patologia, desenrola-se a cura. E esta, dife-

    rentemente do processo de adoecimento (que equivale

    retirada do investimento nas pessoas e nas coisas e que

    acontece silenciosamente), ruidosa no momento em que

    se realiza.

    Da Lacan extrai que, mesmo para Freud, a projeo

    j era insuficiente para explicar o recalque na psicose.

    Quando Freud aponta que desde fora que retorna aquilo

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    que foi internamente abolido, ele mesmo percebe que nose trata de um mecanismo projetivo. Como projetar, lan-ar de dentro para fora aquilo que no existe dentro? Se o

    contedo foi internamente abolido, ns estamos falandode uma representao primordial sobre o ser do sujeito

    psictico que no encontra meios de significar-se, repre-sentar-se. Trata-se de uma defesa to eficaz, que nega arealidade mesma da percepo ligada representao in-compatvel. Ser no caso do Homem dos Lobos, publicadoem 1918, que Freud utilizar o termo alemo Verwerfungnovamente para tratar dessa no inscrio de uma repre-sentao fundamental do sujeito, diferente da operao do

    recalque para a neurose.Nos artigos metapsicolgicos, que escreve em torno de

    1915, desdobra a discusso do lugar da palavra na esqui-zofrenia e prope uma diferenciao entre esquizofrenia

    e paranoia a partir do ponto de fixao ertico. Na esqui-zofrenia, haveria uma fixao na posio autoertica, queno pressupe a unidade imaginria e simblica do corpo.O sujeito vive, primordialmente, uma relao autoertica

    com o corpo, obtendo prazer a partir de seus pontos desatisfao (zonas ergenas). preciso uma ao psquicapara que o corpo ganhe a consistncia de uma unidadee o sujeito possa investir nele como um objeto. Trata-sedo narcisismo primrio. Atravs dele o eu se conformacomo primeiro objeto de investimento libidinal. A partirda, pode investir em outros objetos do mundo externo

    (narcisismo secundrio). Freud observa que na esquizo-frenia h uma fixao na posio autoertica, enquanto na

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    paranoia h uma fixao no narcisismo primrio. Final-

    mente, apresenta a diferena entre luto e melancolia que

    contribui decisivamente para a discusso dos transtornos

    de humor na atualidade.

    Como vimos, o problema da psicose no seria o da

    perda da realidade, mas o do expediente daquilo que vemsubstitu-la. Em outras palavras, devemos seguir os cami-

    nhos que o prprio sujeito encontra para tratar daquilo

    que escapa na sua condio de ser falante. A diferena en-

    tre as estruturas clnicas diz respeito exatamente maneira

    como cada uma delas ir, num segundo momento, recom-

    por essa relao. Na neurose, um fragmento da realidade

    evitado por uma espcie de fuga, mas o neurtico no re-

    pudia a realidade, apenas ignora-a, recalcando o contedo

    aflitivo. J na psicose, a realidade remodelada, o psictico

    a repudia e tenta substitu-la, transformando-a a partir de

    precipitados psquicos de antigas relaes com ela. Assim,na psicose, o substituto tenta colocar-se no lugar da rea-

    lidade, enquanto na neurose liga-se a um fragmento dela,

    conferindo-lhe uma importncia especial e um significa-

    do secreto, simblico porque substitutivo, sintomtico.

    Enquanto Freud situa na psicose um remodelamento

    da realidade, veremos Lacan apontar um remodelamen-

    to de toda a sua teoria a partirda psicose na dcada de70. Assim, podemos, enfim, quanto ao campo das estabi-

    lizaes psicticas, concluir que Freud apresenta suas so-

    lues pela via do trabalho delirante. E mesmo no tendo

    desenvolvido um comentrio acerca do ato ou da criao

    artstica na psicose, como Lacan o fez, despertou um novo

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    olhar sobre questes relacionadas arte stricto sensu. Tal o caso da relao entre o sentido e a obra, quando, por

    exemplo, se pergunta, no texto sobre o Moiss de Miche-

    langelo: Por que a inteno do artista no poderia ser

    comunicada e compreendida em palavras, como qualquer

    outro fato da vida mental?Freud j esboa que h um insondvel, um imposs-

    vel de dizer, uma cifra, enfim, na produo artstica que

    a orienta por outra via que no a estritamente simblica.

    Algo escapa produo artstica que no pode ser intei-

    ramente dito em palavras. E desse real que Lacan tratar

    ao estudar Joyce, como veremos em seguida, oferecendo-

    nos novos subsdios para pensar a estabilizao nas psico-

    ses. Ser, portanto, com Lacan que veremos surgir novas

    proposies acerca das solues construdas pelos psic-

    ticos para tratar dessa dimenso insondvel do humano.

    Vamos a elas.

    A psicose em Lacan

    Na dcada de 50, Lacan articula o mecanismo fundante

    da psicose a uma operao significante, ou, em outros ter-

    mos, a uma operao simblica que ocorre no nvel da

    linguagem. Para ele, distinguir as relaes do sujeito com

    a estrutura, enquanto estrutura significante, implicou res-

    significar essa noo de defesa. Em Freud, ela implicava

    um processo mais amplo que o do recalque (Verdrngung),

    englobando outras estratgias e mecanismos, quais sejam, a