"a própria mãe":jogos de luz e sombra em um caso de cobertura jornalística de violência contra...

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    A prpria me: jogos de luz e sombra

    em um caso de cobertura jornalstica

    de violncia contra crianasLa propia madre: juegos de luz y sombra

    en un caso de cobertura periodstica

    de violencia contra nios

    Their own mother: lights and shadows

    on a case of journalistic coverage

    of violence against children

    Elton Antunes1

    Eliziane Lara2

    Resumo O presente trabalho visa compreender os gestos realizados pelo

    jornalismo frente a situaes de violncia contra crianas e adolescentes no

    grupo domstico. Observamos as formas como o relato noticioso lida com a

    constatao de que a famlia pode se configurar como espao privilegiado de

    agresso, em um quadro marcado por representaes sociais do ncleo familiar

    como lugar de proteo. Para contribuir com estas reflexes, realizamos a

    anlise de matrias jornalsticas que reportaram um caso de possvel agresso

    da me contra os filhos em Minas Gerais.

    Palavras-chave: Cobertura jornalstica. Violncia contra criana.Representaes sociais.

    1 Jornalista, doutor em Comunicao e Cultura pela Universidade Federal da Bahia e professor do Programade Ps-Graduao em Comunicao Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bolsista daCAPES Proc. n. 3779/11-4. integrante do GRIS Grupo de Estudos e Pesquisas Imagem e Sociabilidade.E-mail:[email protected] Jornalista, mestranda do Programa de Ps-Graduao em Comunicao Social da Universidade Federal de MinasGerais (UFMG). integrante do GRIS Grupo de Estudos e Pesquisas Imagem e Sociabilidade. Colaborou por

    seis anos com as atividades da Rede ANDI Brasil comunicadores pelos direitos da infncia em Minas Gerais.E-mail: [email protected]

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    o Resumen Este trabajo tiene el objetivo de comprender los gestos realizados

    por el periodismo frente a situaciones de violencia contra nios y adolescentes

    en su grupo domstico. Observamos cmo el relato periodstico trata laconstatacin de que la familia puede configurarse como un espacio privilegiado

    para agresiones, pese a las representaciones sociales del ncleo familiar como

    un lugar de proteccin. Para ello, analizamos noticias sobre un posible caso

    de agresin de una madre contra sus hijos en la ciudad de Sete Lagoas, Minas

    Gerais, Brasil.

    Palabras-clave: Cobertura periodstica. Violencia contra nios.

    Representaciones sociales.

    Abstract This paper aims to understand the gestures made by journalismwhen it faces situations of violence against children and adolescents in

    their domestic group. We observe how the news account deals with the

    conclusion that family can be a privileged space for offenses, in spite of social

    representations of the familiar nucleus as a place for protection. In order to

    contribute to those reflections, we develop the analysis of some news about a

    possible case of violence against children carried out by their own mother, at the

    city of Sete Lagoas, in the Brazilian state of Minas Gerais.

    Keywords: Journalistic coverage. Violence against children. Social

    Representations.

    Data de submisso: 13/06/2012Data de aceite: 23/11/2012

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    Introduo

    Me presa sob suspeita de jogar gmeos de 1 ano da janela emMG3, anunciou a manchete publicada s 22 horas e 26 minutos,em 7 de dezembro de 2011, no site da Folha de S. Paulo (Folha.com).A notcia dava conta de que, na noite daquela quarta-feira, a operado-ra de caixa, Gisele Pereira da Fonseca, arremessou os filhos gmeos,de um ano e cinco meses de idade, pela janela de um apartamentono quarto andar, no municpio de Sete Lagoas, Regio Metropolita-na de Belo Horizonte. As informaes se confirmaram ao longo dacobertura realizada pelo prprio site, por jornais impressos e nos tele-jornais exibidos no dia seguinte. Deparamo-nos, assim, com um casoque nos despertou ateno de modo especial. Em trabalhos recentes4temos nos dedicado a investigar a cobertura jornalstica da violn-cia contra crianas e adolescentes em seu grupo domstico buscandocompreender os regimes de visibilidade alcanados por tais aconte-cimentos, atentos maneira como aquilo que noticiado implica

    um conjunto de presenas e ausncias a convocar significaes paraa compreenso do que ocorreu. Para ns, foi instantnea a associa-o entre o que acabara de ocorrer em Sete Lagoas e o caso IsabellaNardoni5, em que o pai e a madrasta da menina foram sentenciadosa mais de 20 anos de priso pelo assassinato da garota. Aos cincoanos de idade, Isabella foi arremessada da janela de um edifcio emSo Paulo. Tanto a morte (ocorrida em maro de 2008) quanto ojulgamento dos rus (realizado em maro de 2010) receberam ampla

    cobertura da imprensa, conferindo ao caso um lugar emblemtico nahistria do jornalismo brasileiro.

    3 HENNEMAN, G. Me presa sob suspeita de jogar gmeos de 1 ano da janela em MG. Folha.com, So Paulo, 7dez. 2011. Disponvel em: . Acesso em: 31 mai. 2012.4 Os projetos de mestrado Saiu no jornal, tornou-se visvel? Um estudo sobre os regimes de visibilidade da violn-cia contra crianas e adolescentes em jornais mineiros, de Eliziane Lara, e de ps-doutoramento Acontecimentos

    violentos e o sentido do trgico no noticirio jornalstico, de Elton Antunes.5 Registra-se que nenhuma das matrias analisadas neste trabalho estabelece essa associao de maneira explcita.

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    o Durante nossa trajetria acadmica e profissional temos realizadouma observao sistemtica de veculos de imprensa e constatamos que

    diariamente so publicadas pequenas notas e notcias sobre casos de vio-lncia contra crianas e adolescentes e, assim como no caso Isabella,os agressores so identificados como familiares ou pessoas prximas.Essas histrias conformam um quadro de ruptura de expectativas umavez que a agresso parte de quem se esperam atitudes como proteo erespeito e alcanam diferentes regimes de visibilidade quando aborda-das por veculos jornalsticos, podendo se desdobrar durante alguns diasou ficando circunscritas a um pequeno texto, publicado em apenas umaedio do jornal.

    nesse contexto que nos propomos a apresentar neste artigo algunsapontamentos crticos sobre os gestos empreendidos pelo jornalismo naabordagem de situaes que envolvem violncia contra meninos e me-ninas no mbito do grupo domstico. A fim de compreender tais gestos,nos concentraremos na anlise de matrias veiculadas na internet e nateleviso sobre o caso ocorrido em Sete Lagoas. Cientes de que a atri-

    buio de um nome a um determinado acontecimento traz implicaes(ANTUNES, 2012; PEDEMONTE, 2010), neste trabalho optamos pornos referir ao caso em tela como o caso de Sete Lagoas.

    Perspectivas de anlise

    Para investigar os regimes de visibilidade, nossa pesquisa se interessa de

    modo particular pela compreenso das representaes sociais acerca daviolncia contra crianas e adolescentes presentes em textos jornalsticosque abordam o tema. Como reala Frana, o ato comunicativo acionae se funda na representao social, de maneira singular ele atualiza einterfere no terceiro simbolizante6 que o orientou (FRANA, 2003,p. 16). Nossa proposta se inscreve, dessa maneira, na tentativa de esta-

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    Partindo de Qur (1982), o terceiro simbolizante aquilo que atua na interao estabelecendo um terreno co-mum entre os sujeitos.

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    belecer relaes entre os textos jornalsticos e este terceiro simbolizan-te, entendendo que estes elementos se constituem de forma recursiva.

    Pois, como destaca Frana, os produtos jornalsticos acionam os conhe-cimentos presentes no terceiro simbolizante de forma que possam sercompreendidos e inseridos em quadros mais amplos da interao social etambm atuam fortemente na atualizao (seja para confirmar, seja paraestabelecer novos sentidos) destes saberes.

    Assim, nosso esforo neste trabalho ser o de relacionar os textosjornalsticos s noes contemporaneamente associadas a temas comofamlia e proteo de crianas e adolescentes, de modo a perceber asrepresentaes acionadas que ajudam a conferir sentido ao ocorrido.Ao realizar este mapeamento, privilegiaremos a apreenso de trs aspec-tos: o incio da histria; as causas apresentadas; e a forma de construodos sujeitos presentes nos relatos analisados.

    A busca pelo incio da histria inspira-se na tese defendida pelo an-troplogo e cientista poltico Luiz Eduardo Soares em Justia: pensandoalto sobre violncia, crime e castigo. Na referida obra, o autor defende

    que o sentindo de uma histria depende do ponto a partir do qual co-meamos a relat-la (SOARES, 2011, p. 18). O contato que temos esta-belecido com produtos jornalsticos acerca da violncia nos mostra queesta uma abordagem que pode ser bastante reveladora. Se o incio dahistria interfere diretamente no sentido construdo, esta noo tam-bm leva ao tensionamento de padres comumente estabelecidos parao fazer jornalstico, que prescrevem que os acontecimentos devem sernarrados a partir daquilo que se considera mais relevante para sua com-

    preenso. Assim, ao buscar o incio da histria presente nas notcias ana-lisadas que no necessariamente se confunde com o incio do relato ,poderemos observar os elementos que o jornalismo escolhe para narraros crimes violentos, que, por consequncia, so aqueles que os jornalis-tas julgam mais importantes, e observar como estas escolhas interferemnos sentidos construdos acerca da violncia contra meninos e meninas.Observar o incio das histrias poder nos ajudar a compreender tambm

    em que medida o jornalismo, com seus produtos simblicos, contribui

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    o para outro gesto apontado por Luis Eduardo Soares: o de classificar aspessoas aprisionando-as a um momento de sua vida, no qual elas foram

    autoras de atos condenveis (SOARES, 2011, p. 62).O segundo operador que propomos mobilizar a identificao das

    possveis causalidades atribudas agresso cometida contra os irmosgmeos em Sete Lagoas. Os textos jornalsticos operam no mbito deesquemas cognitivos ao criarem categorias de eventos aes, protago-nistas e circunstncias a serem identificados e produzirem relaes decausalidade entre tais elementos relatados nas notcias. Na composiodo relato, a articulao dos elementos implica o estabelecimento de rela-es de causalidade entre eventos que aparecem, por exemplo, em umadada sequncia, indicando que algo acontece por causa de outro evento.Em geral tais eventos no so recapitulados em sequncia cronolgica,na ordem em que ocorreram. H uma ordem lgica subjacente ao relato,causas que ligam eventos em relaes significativas, criando uma coe-rncia que tm interferncia direta na compreenso destes crimes.

    Por fim, circunscrevemos as representaes da violncia contra crian-

    as e adolescentes neste trabalho quelas relacionadas ao grupo doms-tico, que inclui todas as relaes de parentesco e de proximidade emque a criana ou o adolescente est inserido. Optamos por olhar espe-cificamente para este mbito porque a violncia entre pessoas prximascausa sensaes distintas em comparao com situaes em que o agres-sor um desconhecido, como revelam autores que pesquisam os crimesviolentos (ANTUNES, 2012). Para delimitar o que consideramos comogrupo domstico, partimos da conceituao presente na proposta de re-

    formulao do Cdigo Penal apresentada por um grupo de profissionaisdas reas da Medicina e do Direito que atuam no estado do Paran.As relaes prximas famlia so caracterizadas por esses profissio-nais como aquelas protagonizadas por qualquer tipo de cuidador, sejaoficial, comunitrio ou ligado por laos de amizade, coabitao ou

    convivncia aos ncleos familiares (MACHADO, 2012, p. 14, grifonosso). Assim, consideramos que o universo de conhecidos de crianas

    e adolescentes extrapola os vnculos familiares e o espao da moradia.

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    O caso analisado neste trabalho restringe-se ao seio familiar, umavez que as notcias identificam a me como agressora e os filhos co-

    mo vtimas. Dessa forma, faz-se necessrio explicitar tambm o conceitode famlia com o qual trabalhamos, elaborado da seguinte forma porElisabete Bilac: estrutura particularista de relaes entre sexos e geraesorganizada pelo princpio do parentesco (consanguneo e de aliana), im-plicando em direitos e deveres recprocos e vnculos de poder tambm dedependncia afetiva, econmica e social entre seus membros (BILAC,2000, p. 35). Como a prpria autora destaca, a noo de famlia vem pas-sando por constantes mudanas, pois os prprios arranjos familiares tmse transformado7. Na sociedade contempornea divrcios e recasamentosse tornaram mais frequentes, assim novas relaes emergem e no se en-caixam nas noes de parentesco j definidas (BILAC, 2000).

    Jornalismo e representaes da violncia

    Em termos quantitativos, a investigao acerca das representaessobre a infncia e a adolescncia em produtos jornalsticos no temoriginado um nmero expressivo de pesquisas e, dentre os trabalhosrealizados com este vis, fundamental mencionar o investimentorealizado pela pesquisadora Cristina Ponte. A autora realizou estudosobre as representaes da infncia em jornais impressos publicadosem Portugal pelo perodo de 30 anos, de 1970 a 2000, e aponta comoeste trabalho permitiu ilustrar de forma exemplar as muitas formas

    de construo do social potenciadas pelo jornalismo (PONTE, 2005,p. 16). A partir da observao desses peridicos, Ponte classifica ascrianas como matria perifrica entre as perifricas (PONTE,2005, p. 16) e refora que a construo do discurso sobre a infncia naimprensa de informao geral uma das reas mais ignoradas pelostrabalhos de anlise de mdia.

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    Bilac tambm destaca que na sociedade contempornea este modelo no funcionar da mesma forma em todos ossegmentos sociais. Acreditamos que nossa anlise tambm poder contribuir com este debate.

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    o Os estudos indicam, contudo, que a cobertura sobre a temtica temse ampliado na mdia informativa, graas principalmente s aes de

    advocacy de um conjunto de instituies da sociedade civil (WAISBORD,2009). Estudos comparativos internacionais buscam tambm compre-ender similaridades e diferenas nas representaes da infncia nas co-berturas jornalsticas de diferentes pases (MASCHERONI et al., 2010).Ponte, em um posterior monitoramento de jornais portugueses, identi-fica uma redefinio de itens da agenda jornalstica da infncia e mu-danas de padres editoriais. So agora recorrentes as notcias voltadaspara conflitos ou acidentes, para questes relativas s formas de educa-o e uma ateno especfica para violncias cometidas contra crianas.Mas indica-se tambm a permanncia de abordagens marcadas ora pelademonizao das crianas, ora por sua vitimizao, com a manutenode um trao comum: a cobertura jornalstica permanece alicerada emcasos singulares com utilizao de fortes componentes morais e emocio-nais (PONTE, 2007a; 2007b).

    No interior deste amplo universo relacionado s representaes da

    infncia e da adolescncia, nosso trabalho se interessa de maneira par-ticular pelos regimes de visibilidade engendrados pela cobertura jorna-lstica, o que significa propor uma investigao atenta relao entrejornalismo e informao, nos termos definidos por Maurice Mouillaud:

    Parece-nos que toda e qualquer informao engendra o desconhe-cido, no mesmo movimento pelo qual informa; inicialmente, porqueproduzir uma superfcie visvel induz um invisvel como seu avesso (avitrine mostra e esconde, a palavra diz e no diz): um invisvel que no

    pode mais ser destacado do visvel; o avesso de um tecido no o pode serde seu direito (MOUILLAUD, 2002, p. 39).

    Nesta abordagem, a informao no vista como reflexo ntegrodo real, relato f idedigno de acontecimentos, mas entendida como re-sultado de um gesto que rene elementos dispersos em uma unidadehomognea. Dizer o que ocorreu obriga selecionar certos dados elig-los, entre si, para formar um fio; ento, algo ocorreu, figuras tor-

    nam-se manifestas no tecido existencial (MOUILLAUD, 2002, p. 42).

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    Este processo, como sinaliza Mouillaud, no propriedade damdia, mas tem um incio anterior aos aparelhos prprios dos meios

    de comunicao.Na construo da informao, o dito oferece tambm os contornos

    do no dito. A informao , pois, uma sombra, uma vez que nuncapoderemos nos deparar com a coisa em si mesma. O que acessamos representao e esta a resposta de um corpo, o objeto para o qual lan-amos nosso olhar, em relao ao fluxo de perguntas que lhe propomos.Delimita-se, assim, um quadro, que se observa. As bordas deste quadrocolocam em evidncia os elementos pelos quais nos perguntamos e, aomesmo tempo, apresentam os limites daquilo que no poderemos ver.Diante destas definies, o autor conclui: o visvel , s pode ser, umasombra! (MOUILLAUD, 2002, p. 46).

    partilhando desse entendimento que ao analisar os relatos jornals-ticos relacionados ao caso de Sete Lagoas nosso esforo ser o de iden-tificar os diferentes regimes de visibilidade ali instaurados, buscandocompreender quais so os elementos que participam da construo des-

    ses regimes, o que se coloca em evidncia e o que permanece na ordemdo no dito, construindo um mapa daquilo que permanece invisvel apartir das informaes que vm tona.

    Os regimes de visibilidade pelos quais nos perguntamos esto re-lacionados, em grande medida, a acontecimentos. No caso especficodeste trabalho, lanamos nosso olhar a um acontecimento que envol-ve a violncia contra crianas no seio familiar. De acordo com LouisQur, a maioria dos acontecimentos relevantes tem como caracterstica

    a ruptura com o previsto. Os acontecimentos importantes so, em gran-de parte, inesperados. Esta descontinuidade provoca surpresa e afeta acontinuidade da experincia porque a domina (QUR, 2005, p. 61).Dessa forma, so facilmente perceptveis alguns dos elementos que atri-buem o carter inesperado ao caso de Sete Lagoas: dois irmos, deum ano e cinco meses, caem (ou so arremessados?) da janela do quartoandar de um prdio. A me aparece como principal suspeita da agresso,

    assim o ato violento praticado por algum de quem se espera prote-

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    o o e cuidados. Entretanto, estes elementos tambm aparecem no casoIsabella Nardoni e em centenas de relatos publicados pelos jornais, den-

    tre eles o caso Isabela Nardoni. Logo, preciso investigar com maiorprofundidade a cobertura dos grandes e dos pequenos casos.

    Nesse sentido, outro aspecto relacionado ao acontecimento assina-lado por Qur pode representar uma chave para a compreenso dosdiferentes regimes de visibilidade alcanados pelos casos, j que o verda-deiro acontecimento no unicamente da ordem do que ocorre, do quese passa ou se produz, mas tambm do que acontece a algum. (...) Querdizer que ele afeta algum, de uma maneira ou de outra, e que suscitareaes e respostas mais ou menos apropriadas (QUR, 2005, p. 61).

    Numa primeira visada, as discrepncias presentes na cobertura doscasos de violncia contra crianas e adolescentes nos indicam que es-tes acontecimentos de fato acionam afetaes em graus distintos. Essepoder de afetao no algo intrnseco ao acontecimento, mas en-contra-se numa relao estreita com as representaes e os valores dasociedade contempornea. Alcanar grande repercusso no o que

    o caso trar de inesperado em si mesmo, mas os elementos que eletensiona frente s expectativas que a sociedade tem em relao quelasituao por ele enredada. A noo de representao social permitearticular a emergncia desses acontecimentos e os regimes de visibili-dade que podero ser engendrados com a concorrncia do relato jor-nalstico. Como parte da realidade que nos acessvel, tais relatos,podemos dizer, renem informaes j dobradas por representaessociais (MOSCOVICI, 2009). Vemo-las sempre por meio de catego-

    rias e hbitos culturais herdados, sistemas de classificao aprendidos,gestos j esperados.

    Alm de prescritivas, pois se impem sobre ns com uma fora im-batvel, Moscovici explica que as representaes sociais so fruto de in-teraes coletivas, no possvel a um indivduo, isoladamente, criaruma representao. Assim, a comunicao ocupa um papel central naelaborao e no compartilhamento das representaes sociais. A comu-

    nicao o que permite as interaes entre as pessoas e essa elaborao

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    coletiva. Por seu turno, so as representaes sociais que viabilizam acomunicao, pois elas possibilitam o entendimento, a troca simbli-

    ca, ao mediar os sentidos construdos acerca das pessoas e dos objetos.Comunicao e representaes sociais estabelecem, dessa maneira, umarelao de recursividade. E por meio dessa circularidade, uma funocentral se constitui: afinalidade de todas as representaes tornar fa-miliar algo no familiar, ou a prpria no familiaridade (MOSCOVICI,2009, p. 54, grifos do autor). Como apontaremos com mais detalhes nostpicos a seguir, lidaremos neste trabalho com uma significativa rupturade expectativas, pois o que se espera do grupo domstico em relao acrianas e adolescentes so gestos de proteo e no de violncia. Diantedeste quadro, quais representaes so acionadas nos textos jornalsticospara lidar com essa no familiaridade representada pela agresso contrameninos e meninas?

    Interessa-nos tambm observar quem so e como so construdosos sujeitos envolvidos nos relatos jornalsticos analisados e, nesse senti-do, a noo de representao social tambm nos oferece entradas que

    podem ser frutferas. Segundo Moscovici, dois processos geram a re-presentao social: a ancoragem e a objetivao. O primeiro procuraancorar as ideias no familiares junto a categorias e imagens comuns;trata-se de um esforo de associ-las quilo que j se conhece. O autorenfatiza que a ancoragem implica classificar e atribuir rtulos, um pro-cesso que no abre espao neutralidade. Quando classificamos umapessoa entre os neurticos, os judeus ou os pobres, ns obviamenteno estamos apenas colocando um fato, mas avaliando-a e rotulando-a.

    E neste ato, ns revelamos nossa teoria da sociedade e da natureza hu-mana (MOSCOVICI, 2009, p. 62). J a objetivao consiste no exerc-cio de tornar algo que abstrato em concreto, conferindo tangibilidadee visibilidade ao fenmeno (MOSCOVICI, 2009).

    Essas dinmicas de elaborao das representaes sociais procu-ram enfrentar a instabilidade e a falta de sentido que o inesperadonos apresenta e esto no corao mesmo do relato noticioso e do

    processo de construo do acontecimento jornalstico. No entanto,

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    o essa forma de agir e compreender o mundo traz implicaes que me-recem considerao.

    No pensamento social, a concluso tem prioridade sobre a premissae nas relaes sociais, conforme a frmula adequada de Nelly Stephane,o veredicto tem prioridade sobre o julgamento. Antes de ver e ouvir apessoa, ns j a julgamos; ns j a classificamos e criamos uma imagemdela (MOSCOVICI, 2009, p. 58).

    Identificar tais julgamentos e classificaes nos textos jornalsti-cos, apresentados pelos meios de comunicao como isentos, umdos principais gestos que nos propomos a empreender neste trabalho.Como reala Pedemonte, Os jornalistas gerem as representaes so-ciais dos grupos humanos e com frequncia, na representao dos su-jeitos e de suas aes, incorrem na discriminao8 (PEDEMONTE,2010, p. 143, traduo nossa).

    A construo social da famlia e da infncia

    A famlia uma construo social e o que a faz existir um sentimen-to compartilhado pelos indivduos (ARIS, 1981). Esse grupo tem exis-tncia remota, mas a sua valorizao na sociedade ocidental acontecesimultaneamente ao desenvolvimento da classe burguesa e de seus valo-res, a partir do sculo XVI. O historiador Philippe Aris defende que amudana na forma de educao das crianas tem ntima relao com oaparecimento e desenvolvimento da noo de famlia. A escola substitui

    a aprendizagem, processo pelo qual as crianas eram enviadas ao con-vvio de outras famlias para que aprendessem um ofcio e boas manei-ras. O autor atribui duas razes para tal mudana. Uma est relacionada preocupao de se manter crianas e adolescentes longe do mundoadulto, de forma que preservassem sua inocncia; a outra corresponde

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    Los periodistas gestionan las representaciones sociales de los grupos humanos y con frecuencia, en la representa-cin de los sujetos y de sus acciones, incurren en la discriminacin.

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    preocupao dos pais de vigiar seus filhos mais de perto, de ficar maisperto deles e de no abandon-los mais, mesmo temporariamente, aos

    cuidados de uma outra famlia (ARIS, 1981, p. 232).Tais preocupaes ainda ocupam posio fundamental na concep-

    o de famlia que prevalece contemporaneamente. Ela ainda deve teruma forma nuclear, assegurar cuidados, proteo, aprendizado dos afe-tos, construo de identidades e vnculos relacionais de pertencimento,capazes de promover melhor qualidade de vida a seus membros e efetivaincluso social na comunidade e sociedade em que vivem (CARVALHO,2000, p. 13). Por seu turno, a crianas e adolescentes associa-se a fragilida-de, a necessidade de ateno especial at que se atinja a fase adulta.

    Construdo ao longo de sculos, no h um marco que possa sinali-zar a consagrao do conceito de infncia. Os estudos de Aris apontamque essa descoberta tem incio no sculo XIII, mas no fim do sculoXVI e ao longo do XVII que a histria da arte e da iconografia revelaa presena de sinais significativos. A pesquisadora portuguesa CristinaPonte chama ateno para a virada entre os sculos XIX e XX, quando

    ocorre uma transformao radical no valor social da criana. Essa mu-dana implica na sobreposio da dimenso econmica pelas dimensesafetiva e simblica. A nova criana sacralizada veio ocupar um mundoespecial e separado, regulado pelos afetos e pela educao, no pelo lu-cro que dela se podia recolher. Era mantida fora do mercado e das ruas,sem utilidade, mas amada, protegida e vigiada (PONTE, 2005, p. 37).

    Outro aspecto a ser realado o de que apesar da legislao brasi-leira, em consonncia com tratados internacionais, garantir os mesmos

    direitos a crianas e adolescentes, independentemente de classe social,gnero ou contexto cultural, as situaes vividas mostram grandes he-terogeneidades. A universalizao de um modelo singular da crianafeliz a imagem de uma criana ideal, tendencialmente branca e daclasse mdia (PONTE, 2005, p. 38). No polo oposto esto as outrascrianas, como classifica Cristina Ponte: possuem uma infncia marca-da pela pobreza e desproteo, como se vivessem uma infncia incor-

    reta dentro desse imaginrio.

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    o Num esforo para universalizar a proteo infncia, a ONU(Organizao das Naes Unidas) aprovou, em 1959, a Declarao

    Universal dos Direitos da Criana, que proclamou dez princpios para odesenvolvimento de garotos e garotas. A ratificao desta Declarao e aexistncia de atores engajados na melhoria das condies de vida de me-ninos e meninas que viviam nas ruas de todo o pas esto entre os fatoresque levaram o Brasil a elaborar o Estatuto da Criana e do Adolescente(Lei n 8.069/90). Principal marco legal brasileiro no que tange aos di-reitos e deveres infantojuvenis, o Estatuto define a criana como a pessoade zero a doze anos de idade incompletos e a adolescncia compreendea faixa etria dos doze aos dezoito anos.

    Anlise da cobertura jornalstica

    Neste trabalho faremos a anlise de quatro notcias relacionadas ao casode Sete Lagoas: duas delas publicadas no site da Folha de S. Paulo, nos

    dias 79

    e 8 de dezembro10

    , uma exibida no Jornal da Alterosa 1 edio11

    ,produzido pela TV Alterosa, e outra exibida no Jornal Hoje12, produzidopela Rede Globo de Televiso. Optamos pela anlise destas notcias pelaproximidade temporal que apresentam com o acontecimento, que irrom-peu na noite de 7 de dezembro. O primeiro contato com o caso se deupor meio da notcia publicada no site da Folha, no dia 7 de dezembro, noite. Este o nico texto considerado em nossa anlise que foi publica-do no mesmo dia do ocorrido, os outros trs circularam no dia seguinte,

    8 de dezembro. Destes trs, dois fazem parte de telejornais exibidos no

    9 HENNEMAN, G. Me presa sob suspeita de jogar gmeos de 1 ano da janela em MG. Folha.com, So Paulo, 7dez. 2011. Disponvel em: . Acesso em: 31 mai. 2012.10 HENNEMAN, G. Mulher que jogou gmeos pela janela tem depresso ps-parto, diz me. Folha.com, So Pau-lo, 8 dez. 2011. Disponvel em:< . Acesso em: 31 mai. 2012.11 Jornal da Alterosa. Disponvel em: . Acesso em: 31 mai. 2012.12

    Jornal Hoje. Disponvel em: . Acesso em: 31 mai. 2012.

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    horrio do almoo (Jornal da Alterosa, s 13h e Jornal Hoje, s 13h20),portanto, so relatos que podemos considerar ainda bem prximos da

    ocorrncia, pois as reportagens foram produzidas ao longo da manh dodia seguinte. A matria publicada no site da Folha no dia 8 de dezem-bro, s 18 horas e 55 minutos, considerada em nossa anlise para quepossamos avaliar se h mudanas significativas entre a primeira notciapublicada e sua respectiva sute.

    A anlise de reportagens exibidas em telejornais se justifica tambmpela repercusso que possuem junto populao. Ainda que o Jornal daAlterosa seja exibido apenas para o estado de Minas Gerais, interessamo--nos em observ-lo por sua expresso significativa junto ao pblico de BeloHorizonte e Regio Metropolitana e, principalmente, porque privilegia aabordagem de pautas policiais. A opo pelo Jornal Hoje se d justamentepor sua abrangncia nacional e pelo contraponto que poderia representarao Jornal da Alterosa, uma vez que se caracteriza pela abordagem de temasmais amenos que se adequariam melhor hora do almoo no poden-do negligenciar, no entanto, notcias que possuem apelo junto ao pblico.

    Um aspecto fundamental para compreender o caso aparece de ma-neira controversa nos relatos. Ainda que apresentem a me na condiode suspeita, as notcias da Folha e do Jornal da Alterosa afirmam que elateria jogado as crianas da janela do quarto andar e, de acordo com a po-lcia, confessou o crime. Na chamada da matria realizada no estdio, aapresentadora do Jornal Hoje destaca esta acusao, que tambm apare-ce no incio da reportagem, mas, ao contrrio do que aparece nos outrostextos, a reprter afirma que a me negou a autoria do crime: Em depoi-

    mento, Gisele negou as acusaes. Segundo ela, os gmeos queriam vera av, que estava no trreo, e num momento brusco acabaram caindo(JORNAL HOJE, 08 dez. 2011). Em ocorrncias como essas esperadoque existam verses controversas; no entanto, informaes radicalmenteopostas sobre o contedo do depoimento da me so atribudas mesmafonte: a polcia. Destaca-se que em nenhuma das notcias analisadas ame foi entrevistada, a verso do que ela teria feito apresentada por ter-

    ceiros (a polcia e a av materna). Alm disso, as reportagens tm como

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    o foco o envolvimento da me com o ocorrido, explorando o choqueque este tipo de comportamento provoca. O ponto central das matrias

    marcado, portanto, por uma informao de contornos pouco ntidos. importante observar tambm que, para contar o que ocorreu, as ma-trias renem aspectos que vo apenas reforar a verso de que a mecometeu o crime, gesto presente mesmo na reportagem do Jornal Hoje,nica a afirmar que me teria negado a autoria do crime.

    Onde comea?

    Como explicitado anteriormente, compartilhamos da tese de Soares(2011) de que o incio de uma histria interfere diretamente no sentidoconstrudo em torno dela. Assim, investimos no mapeamento desse co-meo nos textos analisados. Importante esclarecer que o incio da his-tria para ns no corresponde, necessariamente, s informaes queso veiculadas na abertura dos textos. No entanto, nos casos analisados

    vale destacar que os elementos acionados nos ttulos das matrias da in-ternet e na abertura das matrias de TV chamam a ateno para o fato(ora apresentado como confirmado, ora como suspeita) de que a mearremessou dois bebs pela janela. Ainda que no haja uma citaonominal, possvel perceber que essas informaes fazem refernciaao caso Isabella Nardoni, evocando nos leitores / telespectadores umamemria de fatos recentes.

    Ao nos perguntarmos pelo comeo destas histrias, buscamos obser-

    var tambm em que medida as narrativas jornalsticas so capazes deretroceder e buscar informaes anteriores ao fato que desencadeou aproduo daquela notcia, construindo um fio condutor que colaborepara a compreenso do que ocorreu.

    De maneira geral, os textos analisados no fazem um grande recuono tempo ao abordar o caso. Na Folha, a histria comea com a negativada av materna em ficar com os netos. Em depoimento, Gisele disse

    que estava segurando as crianas no colo e as atirou pela janela aps a

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    me ter se negado a cuidar dos meninos13. Nos telejornais um dado an-terior apresentado a partir de entrevistas realizadas com o pai. Segundo

    Tales Balduno, Gisele j havia ameaado jogar as crianas da janela du-rante brigas do casal. Ele, inclusive, teria chamado a polcia e registradoum boletim de ocorrncia. Dessa forma, o incio da histria est em ummomento anterior noite do dia 7 de dezembro, mas observamos queestas informaes so acionadas para dar mais plausibilidade suspeitade que a me tenha cometido o crime, reforando a tese de que Giseleteria contrariado suas atribuies como me. Entretanto, como aponta-remos no tpico seguinte, os veculos fazem apresentaes distintas daspossveis explicaes para este tipo de comportamento desviante.

    Por que aconteceu?14

    A observao das causas atribudas histria que estamos analisando bastante reveladora. Apenas as duas matrias da Folha de S. Paulo trazem

    a informao de que a me sofria de depresso. Na matria publicadano dia 8 de dezembro essa informao ganha, inclusive, destaque nottulo: Mulher que jogou gmeos pela janela tem depresso ps-parto,diz me. tambm nessa notcia que encontramos a explicao maisdetalhada sobre as causas que ajudariam a compreender a atitude toma-da pela me, por meio de um trecho de uma entrevista concedida pelaav materna: Ela teve depresso ps-parto, os mdicos deram um laudodizendo que ela estava impossibilitada de trabalhar. Tinha se separado e

    estava muito deprimida. Foi uma soma de problemas que resultou nessedescontrole, disse Maria de Ftima de Oliveira, 44, me de Gisele15.

    13 HENNEMAN, G. Me presa sob suspeita de jogar gmeos de 1 ano da janela em MG. Folha.com, So Paulo,7 dez. 2011. Disponvel em: . Acesso em: 31 mai. 2012.14 Ainda que faamos a apreenso do incio e das causas das histrias em etapas distintas de nosso trabalho, estes as-pectos no se encontram separados de forma estanque nos textos analisados, ao contrrio, eles se mantm em estrei-ta relao e contribuem para a construo de sentidos. A distino procura apenas tornar a anlise mais operativa.15 HENNEMAN, G. Mulher que jogou gmeos pela janela tem depresso ps-parto, diz me. Folha.com, So Paulo,

    8 dez. 2011. Disponvel em: . Acesso em: 31 mai. 2012.

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    o Nas notcias dos telejornais no h qualquer meno ao quadro de-pressivo enfrentado pela me e possvel observar como ela j acionada

    nos relatos como presa ao ato criminoso. Mais do que isso, refora-se aimagem de uma pessoa irresponsvel, cruel e caprichosa, que diante darecusa da av em ficar com os netos arremessa-os pela janela. Interessan-te observar como a construo dessa imagem de irresponsabilidade ga-nha fora com a apresentao do motivo que fez Gisele pedir sua mepara ficar com os netos. Em todos os textos, afirma-se que ela desejavair a um encontro com o pai das crianas, mas neste ponto h uma dife-rena muito significativa sobre a forma como tal informao apresenta-da. Nas reportagens dos dois telejornais, menciona-se apenas que Giseledesejava ir a um encontro, o que d margem compreenso de que elaestaria se esquivando das suas funes maternas para ir a um encontroamoroso. Os trechos a seguir mostram como o encontro mencionadonas matrias televisivas:

    De acordo com a polcia, Gisele pediu para que a me dela tomas-se conta dos netos porque ela queria sair para outra cidade para se en-

    contrar com o ex-marido, pai das crianas. A av no pode ficar comos gmeos porque tambm precisava sair para trabalhar e assim ela fez(JORNAL DA ALTEROSA, 08 dez. 2011).

    A me dela contou polcia que a filha insistiu para que ela ficassecom as crianas, como se recusou, Gisele teve um acesso de raiva e ati-rou os bebs pela janela. A av dos meninos disse que Gisele queria seencontrar com o pai das crianas e por isso acabou discutindo com ame (JORNAL HOJE, 08 dez. 2011).

    Constri-se dessa forma uma relao de causa e efeito que de fatoprovoca estupor diante de um comportamento que se demonstra gra-tuitamente cruel. AFolha, no entanto, apresenta dois dados que tornama sua trama diferente em aspectos muito relevantes, pois alm de men-cionar que a me sofre de depresso, as notcias publicadas em 7 e 8de dezembro afirmam que, de acordo com a polcia, Gisele precisavabuscar dinheiro com o ex-namorado, como se pode observar no trecho

    a seguir: Em depoimento, Gisele relatou polcia que precisava viajar

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    a Nova Lima (MG) para buscar dinheiro com o ex-namorado e pai dascrianas e que se desesperou ao no ter com quem deixar os gmeos16.

    Dessa maneira, o encontro, que parece ter apenas uma finalidade amo-rosa de acordo com as matrias veiculadas nos telejornais, assume outrocontorno quando relatado pelos dados reunidos nas matrias veiculadasna internet. A presena (e a ausncia) dessas informaes exerce umainfluncia bastante significativa nas representaes presentes nos textos,como poderemos observar adiante. Alm disso, no se trata apenas deconstatar diferenas na apurao ou avaliar se as matrias so mais oumenos completas, mas estamos nos referindo a um processo complexode construo e atribuio de sentidos. Trata-se da competncia herme-nutica dos meios, como define Pedemonte: O relato d forma ao sen-tido da existncia. [...] Criar um sentido para a vida com a linguagem:no pouco. Os problemas se tornam claros quando so nomeados(PEDEMONTE, 2010, p. 17, traduo nossa)17.

    Quem est em cena?

    Neste ponto retomamos a concepo de Frana (2003) de que o ato co-municativo, ao mesmo tempo em que aciona, tambm, tem como baseas representaes sociais e estas sero tanto reforadas ou questionadasao longo das trocas comunicativas. As representaes de famlia, infn-cia e, especialmente, da figura materna esto no cerne do caso anali-sado. Como j realamos, a sociedade contempornea entende que

    as crianas so seres frgeis e indefesos que necessitam de proteo.Quanto mais novas, mais se acentuam essas caractersticas. Os irmos en-volvidos nos relatos que estamos analisando possuem um ano e cinco mesesde idade e o fato de serem as vtimas nesse acontecimento gera comoo.

    16 HENNEMAN, G. Mulher que jogou gmeos pela janela tem depresso ps-parto, diz me. Folha.com, So Pau-lo, 8 dez. 2011. Disponvel em: . Acesso em: 31 mai. 2012.17

    El relato le da forma al sentido de la existencia. [...] Crear un sentido para la vida con el lenguaje: no es poco. Losproblemas se aclaran cuando se les pone nombre.

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    o O depoimento de um vizinho, veiculado na matria do Jornal daAlterosa, bastante ilustrativo a esse respeito. Com a voz embargada e

    visivelmente emocionado, ele diz: T horrorizado, como se diz jogarduas crianas. Olha bem a situao, duas! Uma j difcil e duas? Numaidade dessa de um ano e meio. muita crueldade, desculpa, eu t aterro-rizado at agora (JORNAL DA ALTEROSA, 08 dez. 2011).

    Em todos os textos possvel captar a ruptura de expectativas que aagresso gera, no apenas pelo fato de envolver as crianas indefesas,mas principalmente, pela suspeita de que a agresso tenha partido dame, socialmente representada como smbolo do amor incondicional,aquela que deve estar sempre disposta a fazer renncias em nome dosfilhos. O conf lito gerado quando a figura materna assume o papel de al-goz se evidencia em vrios momentos dos textos, tornando-se, inclusive,o mote principal das notcias. Nas duas matrias dos telejornais, aparecea expresso pela prpria me, o que refora o choque provocado poresse gesto de violncia:

    Eles [os irmos de um ano e cinco meses] teriam sido jogados de

    uma altura de 12 metros, desta janela do quarto andar, pela prpriame. Giselle Pereira da Fonseca, de 25 anos, foi presa em flagrante evai responder por dupla tentativa de homicdio. (Jornal da Alterosa,08 dez. 2011, grifo nosso)

    10 metros de altura. Foi desta janela no quarto andar que os gmeosde um ano de cinco meses caram. Como isso aconteceu o que chocouos vizinhos. As crianas teriam sido jogadas da janela pela prpria me.Gisele Pereira da Fonseca, de 25 anos, foi presa em flagrante por dupla

    tentativa de homicdio qualificado. (Jornal Hoje, 08 dez. 2011, grifo nosso)No Jornal Hoje a expresso tambm aparece na chamada da matria

    feita em estdio, mas ao dizer pela prpria me, a apresentadora estfazendo referncia av materna: As crianas tm um ano e cinco me-ses, elas caram do quarto andar, mas felizmente sobreviveram. A jovemnega que tenha jogado os filhos, mas acusada pela prpria me(JORNAL HOJE, 08 dez. 2011). Neste trecho a imagem da me tambm

    evocada no sentido de que s mes cabe o exerccio da proteo e que

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    se algum acusado pela prpria me porque esta acusao grave e,muito possivelmente, verdadeira, pois a me no acusaria a filha em vo.

    A imagem da me protetora, incapaz de fazer mal aos filhos tambm acionada pelos depoimentos do pai presentes nas duas notcias dos te-lejornais. Ele afirma que no acreditava que Gisele fosse capaz de con-cretizar as ameaas que fazia s crianas. este argumento do pai que,inclusive, encerra a matria do Jornal da Alterosa: Nunca imaginei por-que eu pensava o seguinte: ela me, n? Que me seria capaz de fazerisso com o filho? (JORNAL DA ALTEROSA, 08 dez. 2011).

    Buscar pela representao do pai, Tales Balduno, outro pontode anlise instigante. Nas matrias da Folha, menciona-se apenas quea me precisa buscar dinheiro com o pai. Ele no entrevistado pelareportagem. Vale destacar que a Folha cita como fontes apenas a pol-cia e a av materna, enquanto os telejornais citam informaes obtidascom a polcia e o pai das crianas. O Jornal da Alterosa ouve tambmdois vizinhos das crianas e a av paterna. O que nossa anlise revela que a participao das fontes interfere de forma substantiva nos relatos

    construdos. nico a ouvir a av materna, o relato da Folha consegueapresentar de forma um pouco mais complexa o quadro de motivaesdo caso, por outro lado, nos dois textos produzidos para o site no hnenhuma informao sobre o pai ou as possveis causas que ele possaatribuir ao que aconteceu. J nos telejornais ele aparece com destaquee concede entrevistas em ambos. No h informaes sobre sua idadee ocupao, pelas imagens possvel observar que se trata de um ra-paz jovem, possivelmente mais jovem do que Gisele, que tem 25 anos.

    Ele assume uma posio acusatria em relao ex-mulher, afirmandoque ela j havia feito ameaas e que no se conformava com a separaodos dois. Nas reportagens possvel observar que se atribui ao pai umnvel de responsabilidade distinto daquele destinado me, pois, mesmosabendo das ameaas, ele no considerado negligente. Em nenhumadas reportagens pergunta-se h quanto tempo ele no via os filhos ouse contribua financeiramente para os cuidados demandados por eles.

    como se o pai passasse a existir e a ter funes a cumprir apenas depois

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    o que a me se mostrasse inabilitada para isso. No se trata, desse modo,de uma responsabilidade efetivamente compartilhada, mas de algo que

    cabe com prioridade me, apenas no caso de ela falhar que entra emcena a figura do pai.

    Nesse sentido, a observao dos textos nos permite constatar que pre-valece a representao de que o cuidado com a prole uma responsabi-lidade que compete s mulheres; concepo que se refora pelos outrospersonagens acionados nas matrias: as avs. A av materna aparece nacondio de me da suspeita, testemunha e elemento-chave na histria,pois diante da sua negativa em ficar com os netos que Gisele teriatomado a deciso de agredi-los. Cabe a ela oferecer algumas pistas queajudem a entender e justificar o comportamento de sua filha. J a avpaterna aparece para reforar o discurso do filho e confirmar que a noraj havia ameaado as crianas.

    Por fim, preciso atentar tambm para aqueles elementos que noganham destaque nos relatos jornalsticos, ficando relegados a uma zonaobscura, mas que julgamos importantes para o entendimento do con-

    texto em que a situao se desenrolou. Pelas imagens da TV possvelobservar que se trata de um casal jovem, ambos pardos e pobres. A me,de acordo com as matrias da Folha, operadora de caixa. No se sabeh quanto tempo o casal se separou, mas, de acordo com o pai, o casa-mento era conturbado. No h informaes sobre em que condies ame cuidava dos filhos gmeos, mas no havia outra pessoa, alm delamesmo, que pudesse tomar conta das crianas naquela noite, uma vezque a av materna precisava sair pra trabalhar. A reunio de todos esses

    elementos revela, assim, um cenrio pouco confortvel. No entanto, natrama tecida por cada um dos relatos jornalsticos tais elementos noaparecem em destaque, ou seja, no so colocados explicitamente emordem para explicar o que ocorreu. Ressalta-se novamente que a me,apontada como protagonista da histria, no entrevistada em nenhumdos textos analisados.

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    Consideraes finais

    Destacamos que as anlises realizadas neste trabalho no tm a intenode apontar quais das matrias jornalsticas realizaram a cobertura maisadequada do caso. Nosso intuito contribuir para uma compreenso dosgestos realizados pelo jornalismo frente a situaes de violncia contracrianas e adolescentes no grupo domstico, a partir da identificao doincio da histria presente nos textos, das causalidades atribudas ao queocorreu e das figuras postas em cena pelo acontecimento, a partir das re-presentaes sociais acionadas pelos relatos jornalsticos. As notcias queanalisamos renem informaes originadas pelas respostas a um fluxode perguntas que os jornalistas lanam a um determinado objeto, nestecaso frente a um fato permeado por controvrsias em sua origem: duascrianas de um ano e meio caram (ou foram arremessadas pela me?)da janela do quarto andar de um prdio.

    A partir de um quadro de representaes sociais acerca de temascomo infncia, famlia, maternidade e paternidade, percebe-se o com-

    partilhamento de um repertrio semelhante de questes que os ve-culos jornalsticos propem ao objeto: as crianas caram ou foramarremessadas? A me seria capaz deste gesto? O que a levou a cometertal barbaridade?

    A famlia tomada como epicentro dessa trgica histria. Todos ospersonagens so enredados em funo do lugar que ocupam na fam-lia: a me, o pai, os filhos, as avs. Essa forma de agenciamento toforte que no chegamos a saber a idade e a ocupao do pai das crianas,

    que se faz presente naquela histria por um nico motivo: a paternidadeinquiridora. A polcia aparece como fonte autorizada e confivel paratratar do assunto, ainda que a ela sejam atribudas duas verses opostassobre o que a me teria dito em depoimento.

    Mesmo que estudos de diversas reas (ARIS, 1981; ALMEIDA,ANDR e ALMEIDA, 1999) e uma anlise das notcias veiculadas nosjornais nos mostrem que a famlia no necessariamente um espao de

    proteo, mas, ao contrrio, pode se configurar como um lugar privile-

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    o giado de agresso, o que observamos que a representao positiva sobreestes vnculos parece manter sua fora. Nos textos analisados neste traba-

    lho, o nvel de atualizao e interferncia do acontecimento em tela noparece suficiente para questionar essa representao e os nexos causaisque privilegiam o discurso da harmonia no ambiente familiar. Por outrolado, devemos reconhecer que ainda que a concepo da famlia comoespao de proteo seja reforada no discurso do senso comum, o des-vio desse modelo envolvendo contextos e sujeitos que se encontram nabase da pirmide econmica no parece provocar tanta surpresa, o quepode ser explicado pelos regimes de exposio da violncia domstica nasociedade contempornea.

    Cristina Ponte (2005) reala que as clivagens sociais so aspectos de-terminantes para a publicidade que violaes no espao domstico po-dem alcanar. Almeida; Andr e Almeida (1999) chamam ateno parao modo desigual como as vrias classes sociais se deslocam por entreservios e especialistas da infncia. As classes populares fazem o usogeneralizado e frequente dos servios pblicos (de educao e de sade,

    por exemplo), j as classes privilegiadas optam pelos servios privados.A facilidade da exposio do universo domstico aos olhares dos ou-tros, nas primeiras, ope-se ao resguardo que protege a privacidade davida familiar das outras (ALMEIDA; ANDR; ALMEIDA, 1999, p. 7).Consideramos que estes mesmos aspectos parecem se refletir tambmno acesso da imprensa aos casos de violncia. O jornalismo brasileiroadota regimes bastante diferenciados na cobertura de crimes violentose estas distines possuem implicao direta com a posio social das

    vtimas, com distintas operaes discursivas a eleger vtimas ocasionais os mais ricos e preferenciais segmentos mais pobres da populao(VARJO, 2008; ANTUNES, 2012).

    Outro estudo que oferece pistas relevantes volta-se para cobertura demeios de comunicao britnicos sobre maus tratos e morte de crianasno contexto familiar, que passou a ocupar espao na pauta da imprensado Reino Unido a partir dos anos 70. Os pesquisadores Davis e Bourhill

    constatam que a agresso no seio familiar contrariava o o arqutipo

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    das histrias de crime como parte da grande narrativa da sociedade emdeclnio, com os valores tradicionais e instituies em colapso e o espa-

    o familiar como refgio (DAVIS; BOURHILL apud PONTE, 2005,p. 127). Para fugir deste aparente paradoxo e inserir estes fatos nos mol-des como a imprensa lida rotineiramente com os crimes, recorreu-se patologizao das famlias que cometiam atos violentos contra crian-as e adolescentes, classificando-as como falhadas ou desviantes(PONTE, 2005). Este comportamento levou valorizao da singulari-dade dos casos, o que ofuscou a compreenso da violncia como umacaracterstica das relaes cotidianas estabelecidas entre adultos e crian-as. A famlia apresentada de forma descontextualizada e h omissode fatores sociais, materiais ou culturais, por uma adjetivao pejorativado criminoso (PONTE, 2005, p. 127).

    As anlises realizadas neste trabalho revelam que estes parmetrosse mostram muito pertinentes para a investigao da cobertura sobreviolncia contra crianas e adolescentes no grupo domstico. A rupturadas funes que se espera que cada membro da famlia desempenhe

    gera interesse, mas se os casos se desenrolam em contextos sociais me-nos favorecidos este interesse da imprensa parece mais rarefeito, ditandoo ritmo de (des)continuidade que marca o percurso destas histrias aolongo do noticirio.

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