a progressão continuada no sistema de ciclos - a atuação e a formação do professor

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JLIO DE MESQUITA FILHO UNESP CAMPUS DE MARLIA

MAURLIO MACHI

A PROGRESSO CONTINUADA NO SISTEMA DE CICLOS, A ATUAO E A FORMAO DO PROFESSOR

Marlia 2009

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MAURLIO MACHI

http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp117798.pdf acesso em: 08-08-2011

A PROGRESSO CONTINUADA NO SISTEMA DE CICLOS, A ATUAO E A FORMAO DO PROFESSOR

Tese apresentada ao Programa de PsGraduao em Educao da Universidade Jlio Mesquita Filho Campus de Marlia como exigncia para a obteno do ttulo de Doutor. Orientador: Dr. Carlos da Fonseca Brando

Marlia 2009

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Ficha catalogrfica elaborada pelo Servio Tcnico de Biblioteca e Documentao UNESP Campus de Marlia

Machi, Maurlio. M149p A progresso continuada no sistema de ciclos : a atuao e a formao do professor / Maurlio Machi.

Marlia, 2009.144 f. ; 30 cm. Tese (Doutorado em Educao) Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia e Cincias, 2009. Bibliografia: f. //-//

Orientador: Prof. Dr. Carlos da Fonseca Brando1. Ensino fundamental Sistema de ciclos. 2. Progresso Continuada. 3. Professores do ensino fundamental Formao e atuao. I. Autor. II. Ttulo. CDD 372.

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MAURLIO MACHI

A PROGRESSO CONTINUADA NO SISTEMA DE CICLOS, A ATUAO E A FORMAO DO PROFESSOR

COMISSO JULGADORA TESE PARA OBTENO DO GRAU DE DOUTOR

Dr. Carlos da Fonseca Brando - Orientador

Dr. Alonso Bezerra de Carvalho Dr. Jos Carlos Miguel _______________________________________________________________ Dra. Maria Cristina Gomes Machado _______________________________________________________________ Dra. Tereza de Jesus Ferreira Scheide

Marlia, 18 dezembro de 2009

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Aos meus familiares, Aos pais, Ernesto Machi e Palmyra Burdin Machi, in memoriam, por eu estar presente aqui neste momento. esposa e filhos, pelo apoio e compreenso das ausncias que provoquei, e por darem conta da tarefa que me era destinada a executar por isso, tambm, estou aqui. Este trabalho nosso.

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Prof. Dr. Carlos da Fonseca Brando, pela confiana, por saber ser mestre e amigo, por saber falar e ouvir, pelo exemplo que irradia.

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Quanto tempo duram as obras? Tanto quanto ainda no esto completas. Pois enquanto exigem trabalho No entram em decadncia. [...] As teis/ Requerem gente As artsticas tm lugar para a arte As sbias/ Requerem sabedoria As duradouras/Esto sempre para ruir As planejadas com grandeza So incompletas [...]. Brecht (2000).

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SUMRIO Introduo................................................................................................. 11 Captulo 1 - A educao e esse lugar chamado escola...........................21 Captulo 2 - Ciclo, ser ou no ser.............................................................30 2.1. 2.2. 2.3. 2.4. 2.5. Ciclos de Aprendizagem e Ciclos de Formao...................34 Pressupostos geradores dos ciclos......................................39 Promoo automtica nos anos 1950..................................40 Promoo automtica ps 1960...........................................51 Propostas recentes...............................................................56 2.5.1.Ciclo Bsico de Alfabetizao CB.............................57 2.5.2.A ltima dcada do sculo XX e os dias atuais...........59 2.5.2.1. A Progresso Continuada em Regime de Ciclos no Estado de So Paulo.......................................................60 Captulo 3 - Falas, questionamentos e opinies a respeito dos ciclos.....63 3.1. Pensamentos e vozes de atores que participam e vivem diretamente o processo educacional....................................76 Captulo 4 O Professor, sua formao e seu trabalho na escola como educador......................................................................94 Captulo 5 - Consideraes finais...........................................................113 Referncia.................................................................................................131 Anexos I....................................................................................................144

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RESUMO A pesquisa em pauta focaliza os trmites educacionais promovidos pela Secretaria da Educao do Estado de So Paulo, no perodo de 1997, at o presente momento, com a promulgao da Deliberao CEE n 9/97 que instituiu no Sistema de Ensino do Estado de So Paulo o regime de Progresso Continuada em Sistema de Ciclos, no Ensino Fundamental. Essa Deliberao tem como suporte e fundamentao o artigo 32 da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional, Lei n 9.394 de 20 de dezembro de 1996 LDB. A proposta instituda por essa deleberao e outros diplomas legais insere-se num sistema de ciclos com durao de oito anos divididos em dois ciclos, um de quatro anos, Ciclo I, constitudo pelas antigas sries de 1 a 4, e Ciclo II, pelas antigas sries, de 5 a 8. Este trabalho procura analisar se a adoo dessas medidas trouxe algumas implicaes e mudanas significativas nos procedimentos didticos, nas formas de avaliao e recuperao permanente e paralela, permitindo, com isso, o progresso da aprendizagem dentro do ciclo, sem reprovao ou reteno, fixando essa possibilidade, apenas, para os finais de ciclos. O campo de atividades do Ciclo II a arena de trabalho da pesquisa Procura-se analisar, aps a implantao desse sistema, o impacto causado na populao docente e discente, nos especialistas da educao, como na sociedade que dela usufrui, os acertos e desacertos, sucessos e insucessos, prs e contras. Procura investigar qual a relao que existe ou se pode estabelecer com a filosofia de formao do futuro profissional da educao egresso dessa escola e que para ela retorna como profissional da educao. O amparo metodolgico vem da realizao de entrevistas pouco ou nada estruturadas, questionrios, observao participante ou simplesmente aberta, pesquisa bibliogrfica e documental. Busca-se com isso, chegar a resultado, que, se no responder aos desejos aqui enunciados, provoque novas buscas sempre procurando melhores aproximaes da realidade em questo. Palavras-chave: Progresso Continuada; Avaliao; Sistema de Ciclo; Recuperao; Reteno.

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ABSTRACT The research focuses on the educational paths carried out by the Department of Teaching and Education in So Paulo State, from 1997 up to current days with promulgation of Deliberation CEE number 9/97 that made possible the Continued Progression Regimen in a System of Cycles in Elementary and Junior levels of Education. This deliberation has its support and basis in article number 32 in the National Basic Laws for Education, law number 9.394 of December 20th, 1996. The accepted and approved proposal made by the deliberation and many other legal degrees are inserted in a System of Cycles lasting eight years divided into two other cycles, one of four years, called Cycle I consisted by old four years, and Cycle II by four old next grades (Junior High). This research aims an analysis to confirm if such educational procedures brought some important implications or changes in teaching procedures or acts, ways of evaluating and assessing, permanent and continuous recovery, allowing the learning progress inside those periods without making students fail or flunk, stating such possibility only in final periods. The field of activities of Cycle II is the workplace for this research. After implementation of this educational and evaluation system there was an analysis in order to verify the impact caused on population ( teachers, parents, students and others ), experts on teaching and education, how society and public enjoy it, dos and donts, success and possible failure, pros and cons. There was also an investigation to know how relationship exists or can be established with this kind of philosophy which looks for professional future formation of education bringing it back as a possible professional in education. The methodological basis is built on interviews, questionnaires, observation or simply document research. This aims the search of results in order to better change approaches, feedbacks, development of a previously studied reality. Keywords: Continued Progression; Evaluation; Cycle System; Recuperation; Retention.

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INTRODUO Mas qual a pedra que sustenta a ponte, pergunta Kublai Khan? A ponte no sustentada por esta ou aquela pedra, responde Marco, mas pela curva do arco que estas formam. Kublai Khan permanece em silncio, refletindo. Depois acrescenta: Por que falar das pedras? S o arco me interessa. Plo responde: Sem pedras o arco no existe. Calvino1

O que se discute neste trabalho o desenvolvimento de uma pesquisa na qual se explora os acontecimentos educacionais, especialmente, e com bastante nfase, no Estado de So Paulo, no perdendo de vista a relao maior com o restante do pas e mesmo com experincias de outros pases, se possvel, por sua identidade ou diferena. Nessa abordagem, levase em considerao a implantao do Regime de Progresso Continuada em sistema de Ciclos, no Ensino Fundamental ciclo II de 5 a 8 sries - da rede pblica paulista, institudo pela Deliberao CEE n 9/97, com fundamento nos artigos 23 e 32 da Lei Federal 9.394, de 20/12/1996, e a formao de professores, uma vez que a maioria daqueles que se dirige para os cursos de licenciatura e de formao egressa dessa escola pblica , sob tal regime. A anlise, sem a pretenso de esgotar todas as possibilidades, tentar esboar respostas, hipteses, talvez, de forma no definitiva, pois isto praticamente impossvel, dada a complexidade do tema, mas bem arrazoadas e como abertura de canais para reflexes e tomadas de decises para futuros leitores. O resultado de uma pesquisa no pode ter um fim, mas constituir um elo de continuidade e de novas vises e descobertas; abrir os sentidos para se

Ver CALVINO, I. As cidades invisveis, 2002, p.79. Marco Plo descreve uma ponte, pedra a pedra, a Kublai Khan, a quem serviu durante muitos anos, significando as incontveis cidades do imenso imprio do conquistador mongol.1

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conhecer mais sobre seu objeto e as relaes que este estabelece com seu entorno mediato e imediato, a buscar no contexto a compreenso do todo. Dos vrios projetos que se imbricam de uma ou de outra forma, o que veicula o Regime de Progresso Continuada em Sistema de Ciclos, a realizar-se em consonncia com o estabelecido pelo Ministrio da Educao e da Secretaria da Educao do Estado de So Paulo, prevista nos dizeres das leis acima citadas e os anseios dacomunidade, como a diminuio da repetncia, da evaso e a aquisio de conhecimentos e um sistema de avaliao em que a promoo do aluno dentro, de sua singularidade, toma por base a evoluo alcanada, este o objeto visado por esta pesquisa. Como conseqncia, qual a relao de causa e efeito que esse regime guarda ou acarreta com os profissionais da educao, seu trabalho e sua formao? O foco da pesquisa, como mencionado acima, seu objeto, localiza-se, no tempo, desde 1997, buscando subsdios de experincias anteriores, at o presente momento, nos dias atuais e se envolve nas malhas da poltica educacional vista sob o crivo da filosofia, da economia poltica e dos aspectos educacionais. A datao serve de localizao no espao-tempo dos fatos, de suas origens e de suas consequncias, ocorridos e que podero, ainda, ocorrer nesse perodo. Intenta-se, tambm, a anlise dos atos e atitudes dos responsveis pela execuo e dos legisladores dos documentos legais que norteiam os destinos dessa educao e, ainda, se essa implantao trouxe aos atores que representam e se utilizam da escola pblica, educao de boa qualidade, ou seja, condies de socializao e permanncia nas escolas, servindo-lhes de apoio para suas realizaes pessoais, como aprender pelo aprender, pelas oportunidades de insero no mercado de trabalho, no universo das artes, da cultura e de outras tantas finalidades da educao e desejos dos homens. Com o advento da modernidade e o aumento da procura e a consequente democratizao do ensino, este deixou de ser encargo da famlia ou de pequenos grupos, mas de responsabilidade de um grupo formal ou governo de um territrio, que passa assumir os gastos, as questes curriculares e pedaggicas. Atualmente, em muitas regies do planeta e

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mesmo em pases ditos em desenvolvimento, existem redutos de pobreza cultural, de ensino e aprendizagem que nada diferem daqueles de centenas de anos j idos. Parece que, atentando para a Histria da Educao, sempre houve certa resistncia s mudanas. E, nas sociedades em que o ensino e a aprendizagem so preocupaes de todos, dos governantes, das famlias, de grupos e sindicatos, como isto tem se manifestado? E nestes ltimos anos, com as mudanas, para muitos, reformas implementadas pela Secretaria da Educao, complementando as normatizaes impostas pelo Ministrio da Educao e outros rgos do poder legislativo, pode-se dizer que a educao sofreu transformaes, mudanas na direo de uma educao de qualidade, nos moldes anteriormente exposto? A sociedade sente-se satisfeita e segura com as mudanas e participa de projetos para implement-las e reforar sua aplicao, em busca de novos horizontes de progresso social e cientfico? Essas questes so variveis intervenientes que saltitam em torno do tema central e ajudam a pensar e tentar discutir essa questo mais central da pesquisa, ou seja: importante compreender, tambm, se a administrao, tanto em nvel de rgos centrais do governo, como locais, em especial nas escolas, gestores, professores e a sociedade assimilaram essas mudanas e as implementou ou simplesmente as recebeu como mais uma. Esses questionamentos integram-se no questionamento maior: O sistema de ciclos e a Progresso Continuada cumpriram e cumprem seu papel como preconizavam os documentos legais e o discurso oficial dos articuladores e responsveis pela sua implantao? A Progresso Continuada, no sistema de ciclos, toca diretamente a questo da avaliao, reteno (ou repetncia), a recuperao contnua e paralela e, ainda, como consequncia, a permanncia dos alunos nas escolas. Segundo vrios autores, esses temas foram os desencadeadores da opo de implantao do regime de ciclos, assim como sua previso na LDB/96, trazendo a ideia de outras tentativas, em outros momentos constantes da histria da educao, inclusive de outros pases.

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No desenvolvimento da pesquisa objetivada por este trabalho, visar-se-, alm do j exposto, como atividade complementar, sem vida prpria, 1. analisar fatos e situaes ocorridos desde o perodo de implantao do sistema de ciclo, no Ensino Fundamental, at o presente momento, no Estado de So Paulo, que fixaram marco como filosofia de ensino e de avaliao, comparar certos aspectos da legislao atual com as de outros perodos, refletindo sobre os aspectos de ganhos ou perdas na qualidade de ensino, cuja meta a construo do aluno, futuro cidado, dotado de senso crtico e formao poltica. 2. Analisar e refletir sobre o trabalho de professores, diretores, coordenaes pedaggicas, relativamente s propostas institudas Leva-se a crer que a opinio de algum2, que vive as elaboraes e os resultados advindos das normas e aes prprias da atividade educacional, ocasionadas pela implantao do sistema de ciclo, deva ser levada em considerao, pois um ponto de vista que se junta aos demais, na construo de uma viso mais abrangente da realidade em foco, com o desejo de atingir o que se poderia chamar totalidade, uma educao integral, na qual as mltiplas faces dessa realidade em questo poderiam oferecer subsdio para implementao ou criao de novas metodologias e representaes, talvez mais prximas daquilo que se deseja alcanar como ideal. A intromisso do pesquisador como elemento integrante da pesquisa faz-se, basicamente, como observador participante. As entrevistas tambm fazem parte, de forma no estruturada, ou ainda, completamente aberta, assim como, questionrios, pesquisas bibliogrficas e anlise documental. Em linhas gerais, a pesquisa caracteriza-se por ser de cunho qualitativo, no desprezando, porm, as intromisses de cunho quantitativo, de menor monta. Por certo, a pesquisa, pela sua natureza, desenvolve-se num clima de grandes dificuldades, porque envolve conceitos de ordem terica, especficos, de ordem filosfica, poltica, econmica, mas, por outro lado, muito do que se precisa est prximo e de acesso permitido ao pesquisador,No caso, o autor desta pesquisa diretor de escola e vive e convive com a situao em foco, diariamente.2

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favorecendo um trabalho cujo interesse mostrar ou destacar o que tem sido considerado sucesso ou em contrapartida resultado em fracasso, incluindo as oscilaes entre esses dois polos, na evoluo educacional e, dentro das possibilidades, desvelar uma crtica sensata e digna de crena. Vale destacar que se deve analisar com cuidado o que a mdia anuncia e que a prpria Secretaria da Educao propaga, de sorte a verificar se h fundamento, est acontecendo ou se constituem estatsticas forjadas para justificar a posio do governo estadual e da Secretaria da Educao, na implantao do Sistema de Ciclo e Progresso Continuada. Em acrscimo, como subproblemas decorrentes, conferir o posicionamento dos rgos que poderiam romper com esses paradigmas, com essa linha assumida pela Secretaria da Educao, como os sindicatos dos professores (APEOESP), sindicato dos diretores (UDEMO), sindicato dos supervisores (APASE) e, ainda, outros menos conhecidos, a fim de verificar se possuem voz ativa ou poder de rplica e a prpria escola e sua comunidade de relaes internas (professores, funcionriose alunos) e externas (pais, organizaes complementares e outras). Procurar saber ou entender se a sociedade j entendeu todo esse processo que move a educao, no Estado de So Paulo, principalmente, e se o processo de gesto dessas mudanas tem orientado e esclarecido sobre seus fins e mtodos. Com certeza, obter respostas para tudo que se prope, no tarefa fcil, mas possvel encontrar hipteses que representam, pelo menos satisfatoriamente, as expectativas. Assim, o relato da pesquisa, concretizado neste trabalho, compe-se de cinco captulos, que se pretende tenham relao entre si e continuidade conceitual. A estruturao do trabalho, em cinco captulos , segue a seguinte configurao: No captulo 1: A Educao e esse Lugar Chamado Escola procura-se mostrar a escola, embora j se tenha feito aluso a isso, como um lugar com caractersticas peculiares ou que pelo menos deveria t-las , no qual as conquistas angariadas pelas sociedades de todos os tempos encontram acolhida e se submetem ao processo de ensino e, concomitantemente, est disposta a realizar atos de aprendizagem. Esse

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bipolo inseparvel ensino e aprendizagem pode ocorrer em qualquer lugar e momento da vida dos indivduos, mas encontra condies propcias ou pelo menos deveria encontrar no ambiente escolar. A educao informal j teve seus momentos de glria e, ainda, participa insistentemente, no justaposto, mas imbricado e com grande energia das buscas de saberes e tentativas de penetrar a realidade, o objeto do conhecimento. Esse lugar, escola, merece algumas pginas para explicitar sua importncia e disponibilidade, pois nele que se instaura a trama proposta pelo regime em questo, entre tantas outras. Ciclo, Ser ou no ser a denominao do captulo 2. Nele se encontra o n grdio da pesquisa e a tentativa de desat-lo, no como o encontro da soluo definitiva da hiptese formulada, mas como proposta de conhecer o problema e refletir sobre ele, para poder explicit-lo e compreendlo. So apresentadas algumas experincias realizadas em torno da proposta de ciclo, em alguns sistemas de ensino, um deslizar por momentos histricos, fatos significativos, tentativas e abandonos. O centro da questo a proposta encetada pela Secretaria de Educao do Estado de So Paulo, desde 1997. O ttulo Ser ou no ser, levado ao p da letra, um tanto petulante, pois sugere que se possa esperar ao chegar ao final do captulo, a um delineamento, tipo sim ou no, se acontece um, o outro est proibido se acontecer. No esse o intuito do caminhar sobre o ttulo, bem como das anlises sobre ele enredadas. Expem-se fatos, acontecimentos e tentativas de algumas experincias. No captulo 3 Falas, Questionamentos a Respeito dos Ciclos, discorre-se sobre o que algumas pessoas, grupos ou comunidades pensam em relao aos ciclos como sistema proposto para solucionar problemas que grassam no campo educacional, como se ter oportunidade de tomar contato, desde pocas bem distantes e, se no se contextualizar, parece que o discurso sobre o hoje. O termo opinio (doxa) empregado com o propsito de significar relatos no amparados pela cincia (espisteme), elaborados pelo intelectual deste ou daquele saber. No fundo, dizer o que o aluno diz, o que seu pai pensa sobre isso ou aquilo. Far-se- uso de relatos de intelectuais e especialistas.

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A base filosfica que ampara, como substrato, praticamente todos os questionamentos, sejam centrais ou perifricos, conceitual e potencialmente dialtica, portanto, poder haver nfase deste e ou daquele contedo ou conceito. As opinies, respostas e sugestes de segmentos da sociedade, preferencialmente, relacionadas com a educao formal e pblica, possivelmente levaro para uma posio razoavelmente definida, todavia o outro lado do questionamento dever ser examinado e receber mrito devido. O captulo 4 O Professor, sua formao e seu trabalho na escola como educador, procura olhar e perceber o professor como profissional da educao, suas atividades dentro da escola, mas, simultaneamente, o v na sua formao, na graduao, a viso que os alunos tm de seu trabalho, de pessoas que frequentam as escolas, estagirios, pais entre outros. Nesse captulo, sobretudo, far-se-, concomitantemente com a utilizao do tratamento impessoal, o uso da primeira pessoa do singular ou do plural, pois h necessidade de o autor do trabalho se expressar, dando depoimentos, visto que trabalha com formao de professores e, alm disso, diretor de escola pblica, vive e sente o dia-a-dia da educao. Ao fechar este trabalho com o captulo 5 nos dizeres Consideraes finais, procura-se mostrar que a pesquisa pode no ser taxativa e alcanar uma resposta unilateral, definitiva para os questionamentos, mas desperta o nimo para provocaes que podem gerar novas tentativas de representaes e respostas no tanto provisrias como as alcanadas por ora. Ainda, pontilhando este trabalho, vez ou outra, um conceito considerado relevante chamado para auxiliar na compreenso dos fatos, dos questionamentos. o conceito de Representao. Representar estar no lugar daquilo que se pretende estudar, conhecer, compreender. Nem sempre, para a maioria dos estudiosos, possvel assimilar todos os ngulos, todas as caractersticas e propriedades de um ente, de uma realidade, de sorte que se utiliza de um expediente que se conhece mais profundamente, colocando-o no lugar do outro. No se pe qualquer coisa no lugar de outra. preciso que as duas tenham possibilidade

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de se aproximarem e estabelecer relaes, no de identidade (j que isso quase impossvel), mas de analogia ou de semelhana. Galileu, em razo da poca que viveu, do grande desenvolvimento da Fsica e da Matemtica, tinha sua representao da natureza ancorada na linguagem matemtica.A natureza um texto a ser decifrado. Para Galileu ela fala a lngua da Matemtica. O problema que, ao voltarmos para a natureza, em vez de encontrar frmulas e nmeros, ela fica nossa frente exibindo cores, cheiros, rudos, temperaturas, mas sem abrir a boca, sem falar nada. Muda. (ALVES, 2000, p. 46).

Uma outra representao bastante famosa, a de Aristteles (s/d), quando diz, no incio de sua obra Poltica, que o homem criou Deus sua semelhana, porque, no conhecendo a natureza de Deus, atribui-se-lhe uma natureza humana, como representao; muito se faz e se fala sobre as manifestaes, semelhantes aos homens, das manifestaes da natureza, isto , acerca do ato de antropomorfizar a natureza. As representaes no so verdadeiras nem falsas, entretanto, podem ser mais ou menos adequadas e explicar melhor ou no o objeto do conhecimento. O erro, por certo, advindo da relao com a possvel falsidade, no existe: o que existe uma inadequao, uma inconvenincia da representao, uma m escolha do substituto do representado, por ignorncia ou outra omisso. Eis o que Kche (2002, p.23) afirma neste relato em prol das representaes:O homem um ser jogado no mundo, condenado a viver a sua existncia. Por ser existencial, tem que interpretar a si e ao mundo em que vive, atribuindo-lhes significaes. Cria inteletualmente representaes significativas da realidade. A essas representaes chamamos conhecimento. O conhecimento, dependendo da forma pela qual se chega a essa representao significativa, pode ser, em linhas gerais, classificado em diversos tipos: mtico [...] cientfico.

No captulo 1, quando se localiza a escola como lugar de aprendizagem, assume-se que sua funo primeira e principal a aquisio e difuso de conhecimento, cabendo-lhe portanto, seus atores implementarem

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processos de acolher e formular representaes significativas que cumpram essa funo de modo exemplar. Para representar no existem frmulas, mas requer que se analise, escolha, submeta a representao ao teste da refutao (falsificabilidade) e isso requer, tambm, trabalho, aquele trabalho de que fala Saviani (2000), Trabalho no Material. Alm disso, a linguagem adequada, os smbolos, signos e mais o que Vigotski (1984,2008) e seguidores chamam de Mediao na qual, alm do estmulo-resposta esquema relevante do Behaviorismo, adiciona-se um terceiro elemento, elo intermedirio ou elemento mediador. Kohl, discorrendo sobre Vigotski, apresenta o seguinte exemplo:Quando um indivduo aproxima a mo da chama de uma vela e a retira rapidamente ao sentir dor, est estabelecida uma relao direta entre o calor da chama e a retirada da mo. Se, no entanto, o indivduo retirar a mo quando apenas sentir o calor e lembrar-se da dor sentida em outra ocasio, a relao entre a chama da vela e a retirada da mo estar mediada pela lembrana da experincia anterior. (KHOL, 1984., p. 26).

As relaes mediadas tornam-se muito mais complexas e muito mais poderosas no contato dos homens com o meio, ou seja, com o mundo, a realidade, possibilitando extrair, desvendar ou construir representaes do objeto de estudo, desse mundo, com maior poder e eficcia, facilitando a compreenso de quem ensina e de quem aprende. A mediao um dispositivo, uma ferramenta que deve acompanhar os fazeres e metodologias dos atores que representam nas escolas. O papel do professor ou de cada educador visto e tido como agente mediador entre o aprendiz e o objeto do conhecimento. O elo mediador deve, portanto, ser dinmico, alm de signo, instrumento da prxis educacional. As metforas, ferramentas poderosas, acabam por penetrar nas representaes, tornando-as mais inteligveis, desde que no haja exagero. Como em todas as pocas e, muito mais na atualidade, com o fluxo intenso das comunicaes e das tecnologias de informao, as linguagens desempenham papel de grande relevncia. Em verdade, no h comunicao sem se saber e utilizar uma ou vrias linguagens.

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Tradicionalmente, a linguagem mencionada nos discursos e manuais refere-se, apenas, palavra escrita ou falada na composio de textos linguagem verbal mas quando, o que ocorre so comunicaes que utilizam, simultaneamente, tanto a palavra como outros smbolos e signos, constituindo os textos no-verbais (linguagem dos surdos-mudos, dos escoteiros e outras). Nos dizeres de Ferrara (1986, p. 15)A fragmentao sgnica sua marca estrutural; nele (no texto no verbal) no encontramos um signo, mas signos aglomerados sem convenes: sons, palavras, cores, traos, tamanhos, texturas, cheiro - as emanaes dos cinco sentidos, que, via de regra, abstraem-se, surgem no no-verbal, juntas e simultneas, porm desintegradas, j que, de imediato, no h conveno, no h sintaxe que as relacione

A educao, em seus procedimentos de ensino e similares, sempre enfatizou os textos verbais, embora, sem fazer referncias, utilizasse dos no-verbais. Hoje, impossvel permanecer nessa ttica de omisses, pois a educao uma complexidade de textos verbais e no verbais. Ainda, em Ferrara (1986, p.22) O mundo sensvel um grande texto no-verbal, do qual, por convenincia ou por necessidade, toma-se a parcela que se deseja. As representaes tm por objetivo e responsabilidade, ao utilizar de estudos e anlises acuradas tornar inteligvel esse mundo sensvel ou outros mundos criados ou descobertos. A educao, nessa tarefa, tem papel importante e de destaque. Vale ressaltar a grande dificuldade, seno impossvel, de se obter informaes de rgos relacionados a educao, especialmente Secretarias de Estado e se municpios, a no ser aquelas que se encontram disponveis em publicaes e internet. No atendem solicitaes, por mais que se insista. Muito do que se tem na Internet no digno de confiana. O prximo captulo apresenta um local, no qual sempre se confiou a responsabilidade de apresentar e representar esses mundos.

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CAPTULO 1 A EDUCAO E ESSE LUGAR CHAMADO ESCOLA beira de outro mar, outro oleiro se aposenta, em seus anos finais. Seus olhos se cobrem de nvoa, suas mos tremem: chegou a hora do adeus. Ento acontece a cerimnia de iniciao: o oleiro velho oferece ao oleiro jovem sua melhor pea. Assim manda a tradio, entre os ndios do noroeste da Amrica: o artista que se despede entrega sua obra-prima ao artista que se aposenta. E o oleiro jovem no guarda essa pea perfeita para contempl-la e admir-la: a espatifa contra o solo, a quebra em mil pedaos, recolhe os pedacinhos e os incorpora sua prpria argila.Galeano3

No se faz, propriamente, nesta parte, histria da escola e seus vrios momentos e fases de desenvolvimento, mas se esboa um pano de fundo para localizar e entender a escola desta poca, do agora, e poder se preparar para falar do que tange ao objeto deste trabalho, sem generalizaes desnecessrias. Aristteles comea sua Metafsica com a j clebre afirmao: Todos os homens tm por natureza o desejo de aprender. Na verdade, no existe povo que no tenha preocupao em aprender e ensinar os rudimentos de tcnicas ou conhecimento necessrios para permanecer vivo, reproduzir e transformar a realidade. Jaeger (2001), tambm, comea com essa constatao sua extraordinria obra Paideia, na qual descreve a formao e traa o perfil do homem grego:Todo povo que atinge certo grau de desenvolvimento sente-se naturalmente inclinado prtica da educao. Ela o princpio por meio do qual a comunidade humana conserva e transmite a sua peculiaridade fsica e espiritual. Com a mudana das3

Retirado de GALEANO, E. As palavras andantes. Com gravuras de J. Borges, 1994.

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coisas, mudam os indivduos; o tipo permanece o mesmo. (JAEGER, 2001, p. 3).

Sabe-se, e no mais novidade para ningum, que a educao nem sempre teve a forma de transmisso de seus valores do modo como feito, atualmente. Quando se faz referncia educao, veem-se pela frente salas equipadas com cadeiras e carteiras, quadro negro ou equivalente, equipamentos audiovisuais e algumas parafernlias da tecnologia moderna, alm de, muitas vezes, ferramentas obsoletas ou quase, compondo a arquitetura desses ambientes chamados, atualmente, de salas de aula. Esse tipo de arcabouo, lugar de desenvolvimento de atividades educacionais, didticas ou pedaggicas, com essa configurao tem existncia recente A transmisso de conhecimentos, hoje incumbncia das escolas, no atividade da modernidade ou da ps-modernidade, como parece emergir das fontes de comunicao expressas pela imprensa falada, escrita e de vrias outras modalidades, contudo to antiga quanto os homens. A partir do momento em que o ser humano, desde seus primrdios, sentiu necessidade de produzir ou encontrar seus alimentos, quando percebeu e sentiu sua finitude nascimento, vida e morte ps-se a procurar e inventar meios que permitissem sua permanncia por mais tempo sobre a terra e a perpetuao da espcie humana. Obviamente, essas tarefas no ficariam a cargo de cada gerao descobrir ou criar, toda vez que deparasse com as mesmas necessidades. As prticas de trabalhos, as tcnicas ainda rudimentares, as descobertas e a invenes precisavam ser guardadas, perpetuadas, para utilizao das futuras geraes. A princpio, cabia memria ainda rude e fraca armazenar esses dados, esses conhecimentos; com o tempo, precisou-se de registrar, gravar de alguma maneira em dispositivos materiais, fsicos, para se recuperar quando fosse preciso. Estava dado o primeiro passo para toda essa conquista de redes de informao e comunicao que se presencia hoje; estava criado o embrio do ensino e da aprendizagem. Depois disso, o homem jamais teve sossego! Por outro lado, no parou mais de criar e descobrir. Criou a esttica,

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o belo e o feio, inventou a tristeza e a alegria e os conceitos dotados das mais variadas caractersticas para representar seu mundo, organizar sua vida. Tudo isso e muito mais fez do homem um observador da natureza: aprendeu a admirar, amar e odiar, sua razo, ainda nesse momento, encontrava-se submetida quase totalmente aos sentimentos, mas sua representao j era seu mundo. Por muito tempo, a educao foi exercida[...] nas comunidades tribais por no existir propriedade privada e as atividades econmicas se desenvolverem em comum, compe-se a famlia extensa, constituda pelo patriarca, sua esposa, seus filhos com suas mulheres e filhos. Nesse contexto, as crianas acompanham e imitam os adultos nas atividades dirias de manuteno da existncia. Quer nas tribos nmades, quer nas que j se sedentarizaram, para se dedicarem caa, pesca, ao pastoreio ou agricultura, as crianas aprendem para a vida e por meio da vida. No h, portanto, algum especialmente convocado para desenvolver essa aprendizagem, que nem sequer tarefa exclusiva dos pais. Na verdade, todos na tribo so agentes do processo. Na Grcia e na Roma antigas, a famlia tambm se mantinha extensa formada pelo chefe, que presidia o culto religioso domstico, pela mulher, pelos filhos suas esposas e filhos, alm dos agregados. (ARANHA, 2006, p. 97).

Ainda em nossos dias, em pequenos bolses distantes daquilo que se denomina civilizao, por exemplo, nas altitudes do Himalaia, encontram-se comunidades que praticam esse tipo de educao. a histria viva processando-se ao lado da globalizao e da era da comunicao. Veja o relato que segue:A educao, nas sociedades mais rudimentares, essencialmente uma iniciao ritual progressiva nas crenas e nos usos do grupo. A ele se acrescenta uma participao espontnea no emprego de suas tcnicas prticas e em seu teor de vida. Como esse gnero de vida est ainda to prximo quo possvel de suas condies naturais, parece que essa educao, pelo menos para as crianas, se faz com real suavidade. As provas de endurecimento e de resistncia dor s vem mais tardiamente. (Hambly, Origin of education among primitive peoples). Para compreender esses caracteres da educao primitiva, cumpre lembrar que o reino humano, como diz Bougl, se distingue do reino animal em suas principais aquisies, longe de incorporar-se raa, lhe

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permanecem, de certo modo, estranhas. (HUBERT, 1967, p.

6).

A

primeira

dvida,

provavelmente,

que

precisava

ser

desvendada, conhecida, pode ter sido quanto origem das coisas, em especial, do prprio homem. Nasce, como resposta, a origem divina, o homem a nascer como fruto da vontade ou da necessidade de manifestao dos seres superiores, divinos, dos deuses. Os deuses eram a origem de tudo, a causa e matria fundamental da construo do universo, e os homens deveriam conhec-los e render-lhes homenagem, oferecer-lhes ritos de consagrao e agradecimentos. As supostas respostas, as representaes que se obtinha e uma srie de conhecimentos incorporavam-se aos j rudes saberes desses homens primitivos. Nascia, ento, o embrio de um currculo e a estava a preocupao central dos primeiros homens, das primeiras comunidades, com isso, tambm, nascia e aumentava a necessidade de transmisso de conhecimento e a responsabilidade de alguns para desempenharem essa tarefa. Mudaram-se os contedos com o passar dos tempos, embora existam contedos que vicejam desde remotas pocas, do incio das civilizaes. O que permanece, aparentemente, so algumas formas de procedimentos. A carga gentica, com certeza, determina fazeres humanos, que se modificam sob a influncia da carga cultural advinda da aquisio de novos saberes ou pela aculturao entre os povos, dos muitos fatores. Este planeta, a natureza no mais significava ou se apresentava da mesma maneira todos os dias, acabara a repetio das formas, a homogeneidade e a indiferena dos modelos. A natureza tornara-se um grande texto, no-verbal, que os homens tinham necessidade de apreend-lo. E dar-lhe significado. Recorrerendo-se, novamente, a Ferrara, j citada ao tratar da leitura dos textos no-verbais, que diz que o homogneo no passvel de leitura. A unanimidade a homogeneidade de procedimento ou de sentido, no passvel de leitura ou da existncia de significado. Crescia a necessidade e a responsabilidade da humanidade em formao de compreender e

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representar o mundo. Neste exerccio, amplia-se a capacidade intelectual do homem, este comea o exerccio da genralizao, da construo de teorias. No mais se contenta com a forma linear de descrever ou representar os fatos e fenmenos da natureza, como viria anunciar Nietzsche (1999) em Assim Falou Zaratustra, contra a homogeneidade, a uniformidade, aceitando os desafios do complexo, das dificuldades das representaes e da descoberta dos papeis das mltiplas variveis que interferem no seu ato de ser: Eu sou um viajante e um trepador de montanhas-disse de si para sino me agradam as plancies, parece que no posso estar muito tempo sossegado. (NIETZSCHE, 1999, p.121). A educao, nessa fase, constitua uma preocupao apenas dos adultos, os quais saam em busca de resolver suas necessidades, os problemas corriqueiros do dia-a-dia, quase apenas os insustentavelmente necessrios. Aos poucos, novos horizontes se descortinam ao homem, e o prazer de conhecer e a necessidade acabam contaminando esse ser em crescimento, de sorte que esse conhecimento o empurrava para alm das plancies, para o topo das montanhas. o aparecimento da Arte e o preparo para as contemplaes. Aquela aceitao passiva das ddivas da natureza deixava um vcuo em algumas pessoas do grupo e estas achavam que podiam modificar, transformar a natureza primeira. Comea a primeira revoluo empreendida no planeta Terra. O homem no era mais s fruto de uma criao ou evoluo, mas, tambm, criador:Conhecer para satisfazer a curiosidade, o espanto, a surpresa perante o novo que desencadeia nossa atividade intelectual. [...] Conhecer para se sentir seguro. O espanto perante o novo gera angstia, por no sabermos como nos afeta a realidade desconhecida. [...] Conhecer para transformar. Conhecer para o homem uma questo de sobrevivncia. Como vimos, os seres vivos, para sobreviver, em geral adaptam-se ao meio. Conhecendo o meio, o homem adapta-se a ele e o transforma. (CORDI et al., 1995, p.33).

O que gera a necessidade de procurar conhecer a realidade, o mundo, sua heterogeneidade, sua incoerncia, a existncia de entropia, do caos, dos fractais etc. As representaes que se fazem, hoje, por exemplo, da

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superfcie da Terra esto mais para a aparncia de uma pinha do que para a de uma laranja, e para entend-la ferramentas conceituais ou fsicas so fundamentais. Essas ferramentas precisaram ser inventadas, criadas (ou descobertas?), tal como o Clculo Diferencial e Integral, ferramenta tida como causa final e insupervel, desde o sculo XVII, os Fractais, a Teoria do Caos, a Fsica Quntica, por exemplo. Essa aspereza que se encontra nos conhecimentos, nos saberes, no era, praticamente abordada nas escolas de outros tempos, pois tinham objetivos determinados pelos poderes institudos como o clero, por exemplo, que impunha como explicao dos fenmenos naturais, aes divinas, de modo a corroborar os ditames desses poderes hegemnicos e sua contestao poderia acarretar a priso e, mesmo, a perda da vida. A escola, por volta dos sculos XVI, XVII e XVIII, no era s o lugar de representar o mundo ou sua parte necessria por meio dos conhecimentos a ensinados e adquiridos, mas, sobretudo, o lugar de disseminar as ideologias das classes dominantes. Muitas descobertas ou sua publicao demoraram a ficar conhecidas, justamente por essas razes. Essas prticas de imposio ou de omisso de saberes por parte de grupos de poderes, atualmente ainda so praticadas. A Educao como mediadora entre a realidade e o homem, como instrumento que deve permitir ao homem conhecer sua realidade, seu mundo, seu espao, represent-lo, no pode se limitar disponibilidade de uma modalidade informal, apreendida no convvio dos amigos, nas atividades de trabalho ou lazer, nas comunicaes dos jornais, tev, internet e de outros tantos meios de comunicao restrita ou de massa, como tambm so insuficientes as iniciativas de grupos de trabalho, religiosos, de comunicao empresarial, de tantos definidos como os de Educao no-formal. A educao primeira, no seio familiar educao informal ou no-formal j no resiste s necessidades do mundo moderno e no tem alcance que supra essas necessidades do agora e das que advm das mudanas rpidas impostas pela tecnologia, economia e mesmo pelo vis social. No se pode desprezar as formas de educao oferecidas nos moldes anteriores, mas preciso compreender que so insuficientes.

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A famlia, como clula mater da sociedade, composta pelo pai, a me e o(s) filho(s), na Antiguidade oferecia grandemente uma educao que, at a idade adulta, se mostrava quase completa, complementada muitas vezes por preceptores ou pedagogos, no estilo grego ou equivalente de outros povos. Essa famlia comeava a se fraguimentar com a necessidade dos cnjuges se destinarem ao mercado de trabalho e outros afazeres fora do ncleo familiar. Com essas transformaes, com as mudanas ocorridas na famlia, consequentemente, na sociedade, as quebras de paradigmas cientficos e de teorias como a Fsica aristotlica, o geocentrismo e outras refutadas mudaramse, os interesses, as necessidades dos homens e, consequentemente, a maneira de aprender e de ensinar. Aparece a necessidade de criar metodologias, caminhos diferentes, de descobrir, inventar novas tcnicas, novos materiais, medicamentos, enfim, assimilar mudanas forjadas pelo desenvolvimento e provocar novas, para dar conta de necessidades emergentes foi preciso inventar, descobrir, criar uma nova escola, mais metdica, mais formal, aos poucos dotadas de um currculo e programas com professores no leigos e conhecimentos mais especficos e de maior profundidade. Mesmo assim, de incio, ela no parecia em nada com as escolas destes tempos: somente na Idade Moderna, bem mais recente, as escolas passaram a ter a fisionomia das atuais. . Em Imbernn (2009, p.9) A escola, tal como a conhecemos, criada na modernidade do sculo XVIII [...]. Os alunos eram vistos de modo diferente dos alunos dos dias de hoje, a criana no se diferenciava dos adultos e eram tratadas como adultos em miniatura. Philippe ries (1981), em sua obra Histria Social da criana e da famlia, pesquisou perfis de crianas e adolescentes e reuniu ampla iconografia com a qual foi possvel formular hipteses sobre uma nova infncia que provavelmente tenha surgido a partir do sculo XVII e encio do XVIII, na Europa. Foi possvel constatar essa caracterstica de quase identidade entre o adulto e os menores, em idade. A escola teve de mudar, os professores tiveram de mudar porque a criaa deveria ser olhada como criana, com suas potencialidades e formas de aprender. No mais era

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possvel continuar com o estilo de ensinar e aprender inadequado, obsoleto e incompleto, a necessitar de planejamento e projetos com objetivos e metas passveis de serem alcanados e, sobretudo coerentes com a criana e no mais com o homnculo. Essa escola precisava de mestres com conhecimento e didticas adequadas. Infncia e famlia, para reforar, no constituem uma questo slida e permanente, observe o que segue:Discutir a questo da infncia e da famlia no campo da pedagogia constitui tarefa importante para evitar o recurso a padres rgidos que pensam a educao a partir um modelo universal e atemporal de infncia e da famlia. No existe a famlia em si, mas sim a infncia e a famlia como fenmeno cultural e, portanto, no estritamente biolgico que, por conseguinte, muda no tempo e depende das transformaes econmicas, polticas, tecnolgicas. (ARANHA, 2006, p. 95).

Muitos estudiosos tm considerado um postulado: mudam-se os tempos, mudam-se os homens. O que parece ser relevante, os homens no mudam por mudar os tempos, mas pelo novo que conhecem, passando dos velhos paradigmas, procurando se adequar aos que se irrompem como novidade, mesmo antes de corroboraes e do esforo despendido nessa adequao e das metodologias aprendidas e empreendidas nas aprendizagens e ensinamentos requeridos. Vale ressaltar que o novo no necessariamente o verdadeiro. Construdo esse pano de fundo, resta, agora, pensar a escola, da forma como est se processando, atuando, a prxis de seus agentes como condutores e conduzidos, na busca de um rumo para que a educao se processe. Foi-se o tempo em que as mudanas, as transformaes ocorriam a passos lentos, dando folga para se pensar calmamente sobre os fatos e acontecimentos, no instante em que os mesmos se processavam. No eram to necessrios projetos e planos para prever aquilo que deveria ser feito hoje, amanh ou depois. Poder-se-ia voltar atrs, refazer e continuar em seguida. No se esbarrava na velocidade das coisas, em seu acontecer. As cartas, os jornais pareciam demorar em chegar, mesmo o telgrafo, entre seu envio, sua

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decodificao e sua entrega ao destinatrio pareciam frear a velocidade das ondas eletromagnticas, esperando pelo passo dos homens. A velocidade da luz no era a maior velocidade do universo ou no havia muita importncia em ser ou no ser. A escola no sentia as mudanas repentinamente, andava no mesmo ritmo, at mais lenta, sempre observando os fatos, para segui-los, sempre na retaguarda, ousando pouco ou quase nada como previso e projeto para se antepor a esses acontecimentos e mud-los, dar-lhes outro rumo, na busca de outros e novos objetivos. A responsabilidade dos dirigentes e professores dessas escolas no se deixavam ameaar pelo novo, as respostas que teriam que dar aos questionamentos estavam embasadas na metafsica, nas aes das divindades, na crena, nas foras naturais, no bom senso, ao destino e vontade de determinados grupos de mando, ao passo que os ditames que deveriam seguir no colocavam em conflito a normalidade das teorias e da vivncia cotidiana. A escola esse lugar esboado no qual acontece a Educao Formal, por excelncia, e procura-se adequar o ensinar e o aprender nos moldes das condies do aprendiz idade, territrio cultural, individualidades e potencialidades entre outras caractersticas humanas da criana amparado por vigilncia didtica e psicolgica constante, de modo a se transformar no humano, ou seja, no segundo humano, de acordo com Savater (2005b). nesse lugar com fisionomia da atualidade que se desenvolve a trama daquilo que se pretende estudar, que se comea a expor no prximo captulo.

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CAPTULO 2 CICLO, SER OU NO SERWe shall not cease from exploration And the end of all our exploring Will be to arrive where we started And know the place for the first time. T.S. Eliot, Littel Gidding, Four Quartets.4

O que um ciclo? H uma tendncia, quase generalizada, aps um questionamento, procurar-se um dicionrio e fazer breves incurses procura de respostas. Buscando no dicionrio eletrnico Aurlio - Sculo XXI, entre as muitas acepes, abaixo so citadas algumas que, praticamente, resumem todas as outras. 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. Srie de fenmenos que se sucedem numa ordem determinada. Perodo ou revoluo de certo nmero de anos passados nos quais se devem repetir na mesma ordem os fenmenos astronmicos. Perodo (3) em que ocorrem fatos histricos importantes com base em um acontecimento, seguindo uma determinada evoluo: 2 Bras. Cada uma das divises de certos programas de ensino. lg. Mod. V. permutao cclica. Biol. Ritmo de sucesso ou repetio de um fenmeno. Eletr. Perodo da corrente alternada. Estat. Perodo ou revoluo ao fim dos quais se devem repetir, na mesma ordem, os fatos observados. Outros dicionrios, praticamente, repetem as mesmas acepes de forma equivalentes. O conceito expresso pela palavra ciclo, neste contexto, referese aos sistemas educacionais adotados por algumas secretarias municipais,No paremos de explorar/ E o fim de nossa explorao/ ser chegar ao ponto de onde partimos/ E conhecer o lugar pela primeira vez. Fragmento extrado de KRAUSS, L.M. Sem medo da fsica, 1995, p. 103.4

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estaduais ou localizadas em determinadas regies, com propsitos especficos que sero explicitados no andamento e desenvolvimento deste texto. Sistema de ciclo, como normalmente denominado, um projeto que extingue (ou tenta faz-lo) o sistema seriado estabelecido, historicamente, na quase totalidade das escolas do pas, nas quais os alunos so avaliados num perodo, normalmente de um ano e, dentro deste, bimestralmente ou a qualquer momento ao fim do qual o aluno pode ou no ser retido ou aprovado, dependendo do seu aproveitamento durante esse perodo de tempo e de sua frequncia. O sistema de ciclos pretende agrupar dois, trs ou quatro anos, num s bloco em que as atividades educacionais se desenvolvam de forma diferenciada daquelas do sistema seriado, com caractersticas peculiares, prprias, diminuindo com isso a evaso, a reteno e outros (considerados) malefcios do sistema seriado. No parece ser adequado o vocbulo ciclo, para representar esse perodo de tempo, pois, embora na acepo 4. Cada uma das divises de certos programas de ensino j tenha sido incorporada aos dicionrios, etimologicamente (e na maioria das acepes), o ciclo compreende um tempo em que um fenmeno ou fato acontece e se desenvolve, fechando sobre si mesmo e acontecendo outra vez, sem diferenciao entre os comeos e os fins, os quais voltam, novamente, a se encontrar. A pretenso do sistema ciclado, ao que parece, justamente o oposto do significado comum da palavra ciclo, como um simples aglomerado de tempo anos, normalmente, dois, trs ou quatro com um gargalo ao fim, no qual pode acontecer tudo o que aconteceria no final do ano no sistema seriado: repetncia, abandono etc. Ainda que j se tenha consagrado, na literatura educacional, no dia-a-dia da concepo dos profissionais da educao, da imprensa e da mdia em geral, o termo ciclo no condiz com aquilo que pretende representar, nesse contexto educacional. No final de cada ciclo, captado por processos avaliativos, o aluno deve apresentar evoluo no aprendizado, na gama de seus conhecimentos, um avano que deve ser significativo ou, pelo menos, aceitvel como desenvolvimento cognitivo.

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O vocbulo ciclo, por si s, no remete ao significado de desenvolvimento, de progresso, mas de retorno ao ponto de partida, de reencontro com a origem. Melhor seria nvel, no qual j se encontra implcita a ideia de avano, de um escalonamento, de um dgrad de situaes diferenciadas. Poderia se falar em nvel I, nvel II e assim por diante, subentendendo uma evoluo de um perodo para o outro, dentro de um mesmo nvel ou mesmo na passagem de um para outro nvel. No se pretende polemizar e trocar nomenclatura que se firma e adquire significado, por fora de imposies: Campo Recontextualizador Oficial - (CRO) criado e dominado pelo Estado, poltica e administrativamente (MAINARDES, 2007, p. 18). Ainda Mainardes, na sequncia, apresenta Campo de Recontextualizao Pedaggica - (CRP), que constitudo por pedagogos em escolas, faculdades, setores de educao de universidades, peridicos especializados, fundaes privadas de pesquisa. Os agentes do CRP lutam para controlar o conjunto de regras e procedimentos para construir os textos e prticas pedaggicas Ao contrrio do que parece, a palavra ciclo relativamente recente, na histria da educao brasileira, para significar um perodo de tempo em que ocorrem as aes e atividades educacionais com determinadas caractersticas, que sero explicitadas no decorrer deste texto. Numa pesquisa feita por Fernandes (2000, p.78), sobre os textos educacionais da dcada de 1950, publicados na Revista Brasileira de Estudos Pedaggicos - (RBEP), na qual eram publicadas as produes sobre educao da poca, foi encontrado um artigo com a palavra ciclo, mas em nada tinha ligao com o que hoje vem sendo chamado de ciclo de escolaridade. Em alguns momentos da histria e esses momentos pontilham essa Histria da Educao possvel perceber que certas formaes, mesmo sem fazer referncias ao termo ciclo, se conformam da maneira como se apresentam as atividades cicladas da atualidade, para a formao dos escribas, no Egito, para a dos filsofos, na Grcia, para a educao infantil, mesmo nos tempos atuais, sendo reconhecidas dos educadores, quando se afirma:

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Mesmo naquelas prticas mais convencionais de educao infantil, ainda pode ser observada a organizao por meio de ciclos. A denominao dos grupos em berrios I e II, maternal I e II, jardim de infncia nvel A e nvel B ou pr-escola j demonstra que cada um deles formado por um bloco de dois ou trs anos a partir de uma viso mais flexvel sobre a criana, sobre a aprendizagem, sobre a educadora e sobre a proposta pedaggica. Isto significa que no preciso ciclar a educao infantil, mas antes, poder compreender melhor essa organizao j existente suas bases e fundamentos [...] Assim, j somos cicladas. (BARBOSA, 2004, p.68).

Far-se- uso do conceito expresso pelo vocbulo ciclo, como tem sido entendido e publicado pelos rgos de governo, de secretarias de estado, municpio ou outra situao peculiar que a literatura atual tem consagrado e os leitores j esto assimilando, embora no se preocupando em diferenciar seu sentido mais adequado e sua lgica mais condizente com os ditames das intenes e necessidades reclamadas. Este um dos riscos de mudanas: quando estas chegam, intrometem-se, mesmo no se consagrando como representao prefervel entre outras tantas, de modo que acaba se tornando verdade aceita, sem passar pelo crivo da refutao ou corroborao atestada pela sociedade ou comunidade de interesse. Os slogans, os ditados, as mximas filosficas e outros textos semelhantes representam perigos, desvios e atrasos no caso de algo (ou de suposta teoria ou campo de conhecimento e pesquisa) que no tenha sido bem analisado, posto prova (refutao) e ratificado. Mas tem a preferncia de grande parte da populao, porque no requer labor em torno dos mesmos, so de fcil assimilao e seu usurio assume um tom de autoridade e sabedoria, conhecedor dos temas atuais e antigos, um expert no domnio da histria do conhecimento. H um perigo enorme nesse vcio, em relao implantao do sistema de ciclo, tanto por parte da comunidade escolar, sociedade, como para os elaboradores das normas e de seus executores. Ao contrrio do que parece, a utilizao de procedimentos anlogos aos impostos pelos atuais regimes de ciclos, como forma de trabalhar o currculo da escola, implementar as aes necessrias para sua prtica, no coisa destes ltimos dez anos, assim como alardeiam a imprensa de todas as modalidades e os prprios governos, que demonstram interesses por essa

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prtica. Vrias experincias e tentativas j foram feitas, em diversas localidades, com pequenas ou grandes variaes. 2.1 CICLOS DE APRENDIZAGEM E CICLOS DE FORMAO H, basicamente, duas modalidades de ciclos presentes nas propostas que esto ou foram implementadas nas diversas tentativas de implantao do sistema de ciclos na educao, como alternativas diferentes do sistema seriado, constante na maioria dos sistemas educacionais: os Ciclos de Aprendizagem e os Ciclos de Formao. comum sistema misto de Aprendizagem e de Formao, nem sempre por propsito de implantao, mas por deficincia ou incompreenso. Nas escolas, nas quais, foram implantados regimes de Ciclos de Aprendizagem, a promoo, assim como o agrupamento dos alunos, leva em considerao a idade em tese - e, dependendo do tamanho do ciclo, dois, trs ou quatro anos, os alunos podem ser reprovados ou retidos no final do ciclo. Em relao ao sistema seriado, as mudanas ou rupturas provocadas pelos ciclos de aprendizagem no so demasiadamente drsticas, com referncia ao currculo, avaliao e aos procedimentos de ensino. Muitas vezes, a diferena marcante est em que a reprovao fica abolida dentro do ciclo e o resto permanece praticamente igual. Nessa perspectiva,[...] os Ciclos de Aprendizagem surgem como uma concepo de ensino em que a escola deve integrar aos contedos trabalhados realidade do aluno e da comunidade em que esteja inserido. uma organizao de ensino que exige a transformao da postura do educador em relao ao processo ensino-aprendizagem, entendendo que cada aluno possui um determinado tempo, resultante de sua histria de vida, que interfere na construo de seu conhecimento. uma concepo de educao onde a aprendizagem do aluno ocorre sem as rupturas temporais existentes na organizao escolar em sries, torna-se um processo contnuo, valorizando a formao global humana. (SANTOS, 2003, p. 107).

Santos, especificamente, faz referncia implantao do sistema de ciclos de aprendizagem na rede municipal de Curitiba, no ano de

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1999. Outra experincia de implantao do sistema de ciclos de aprendizagem foi levada a efeito na Rede Municipal de So Paulo, em 1992, quando pela primeira vez os ciclos tiveram um alcance de oito anos, estendidos para todo o Ensino Fundamental. Esse projeto teve como modelo a experincia francesa, com incio no final da dcada de 1980, retomando a proposta pioneira de organizao em ciclos apresentada por Henry Wallon dentro do plano Langevin-Wallon (1944) que objetivava a reconstruo democrtica da Frana aps a segunda Guerra Mundial (PERRADEAU, 1999; LIMA, 2000, citados por MAINARDES, 2007, p.71). Talvez por influncia de So Paulo, nesse momento administrada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), e a situao poltica de sada da ditadura militar, outros Estados ou municpios tambm iniciaram a implantao do sistema de ciclos, tais como: Cear (1998), Mato Grosso (2000), Niteri (1999) e ainda Curitiba, ao qual j se fez referncia. Como no poderia deixar de ser, a influncia francesa, que no fora pequena, nos passos da Universidade de So Paulo - (USP), continuava ainda a mobilizar os destinos da educao no Brasil, por intermdio de Phillipe Perrenoud, na ltima dcada do sculo passado, provocando entusiasmo nos educadores brasileiros que se inclinavam para a educao ciclada. A Secretaria de Educao do Estado de So Paulo busca em Perrenoud um grande aliado para justificar suas tomadas de deciso, no campo educacional, especialmente quando se fala em competncias e habilidade, tanto em voga no momento e questo vital na formulao e caracterizao da educao ciclada promovida pela Secretaria. Tambm Henry Wallon teve influncia, talvez, maior, nos trabalhos de implantao dos Ciclos de Formao, conforme exposto logo mais adiante. Os Ciclos de Formao guardam com os Ciclos de Aprendizagem algumas caractersticas comuns, sem, no entanto, coincidir, porque apresentam, por outro lado, diferenas marcantes que sero vistas e entendidas no decorrer deste texto, sem necessidade de explicitar, de chamar a ateno, embora isso poder ser feito, se necessrio, para a compreenso de fatos ou conceitos.

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Miguel Arroyo (2007), falando dos ciclos de desenvolvimento humano, d um grande suporte para entender, explicar e aplicar os pressupostos contidos nos ciclos de formao. Num dilogo em forma de entrevista com a professora Eustquia, da Faculdade de Educao da Universidade de Minas Gerais, em 2003, Miguel Arroyo expressa de forma sucinta como interpreta os Ciclos de Formao:Para ele o ciclo no mais uma moda pedaggica. H muitas administraes, sobretudo populares, que esto organizando a educao em ciclos de vida: Belo Horizonte, Blumenau, Chapec, Belm do Par, Alvorada, Porto Alegre etc. Os tempos educativos da escola se propem a respeitar os tempos da vida, tempos sociais, mentais, culturais dos educandos. (ARROYO, 2007).

Quando Eustquia lhe pergunta O que pretende a educao em ciclo?, Arroyo salienta trs ideias, que resumem seu pensamento:A idia principal de uma educao que parte dos educandos. Fala-se muito que a escola e ns, educadores, giramos em torno dos educandos, mas na verdade giramos mais em torno dos contedos do que dos educandos. Ento, um ponto fundamental que deveria recuperar os educandos como foco central da educao... A segunda idia entender que a funo da escola e de toda instituio educativa dar conta do desenvolvimento pleno dos educandos se preocupar com a formao total, em todas as dimenses, dos educandos... (ARROYO, 2007).

Essas duas primeiras ideias so praticamente comuns aos Ciclos de Aprendizagem e de Formao, aparecendo igualmente nos discursos seriados, de tom ufanista dos tempos de Escola Nova. A aluso ao tom ufanista de Escola Nova no significa crtica negativa ao movimento escolanovista, mas uma crena exagerada, na esperana de que esse movimento desse conta de solucionar, em definitivo, todos os questionamentos advindos das escolas e, em geral, da educao. Na terceira ideia, fica mais patente o que se pretende, com Ciclos de Formao:A terceira idia tentar entender como se d o desenvolvimento dos educandos, como se formam, como aprendem e se socializam. Quando nos colocamos perante

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essa questo, a resposta que o processo de formao do ser humano passa por tempos diferentes: tempo da infncia, da adolescncia, juventude, vida adulta. uma questo de reconsiderar a idia que sempre esteve presente, de que a formao do ser humano um processo de construo que passa por temporalidades diferentes. recuperar algo que fazemos na vida familiar. Ns no tratamos da mesma maneira uma criana de dois anos, uma de trs, um pr-adolescente de dez, ou um adolescente de catorze. Ns tratamos nossos filhos de acordo com seus tempos, de acorda com seus ciclos. A idia de ciclo ciclo da vida, tempo da vida, temporalidade da formao humana. (ARROYO, 2007).

O que se ressalta que a escola, como instituio gestora de educao, deve organizar-se no apenas em torno dos contedos, mas dos espaos, do calendrio, dos tempos, das prticas educativas do trabalho docente e de toda comunidade escolar (serventes, merendeiras, zeladores e outros) e dar conta de desenvolver e formar plenamente os educandos, respeitando seu tempo. Por exemplo: na formao de turmas, crianas ficam com crianas, adolescentes com adolescentes. Um trabalho minucioso foi desenvolvido por Andria Krug, tomando por base os Ciclos de Formao, na Rede Municipal de Porto Alegre, desde 1996. Nesse trabalho, que est publicado no livro Ciclos de Formao Uma Proposta Transformadora, Porto Alegre, Editora Mediao, 2007, Krug trata do conhecimento e da avaliao, comparando os ciclos de Formao com os ciclos referidos nos Parmetros Curriculares Nacionais (PCN). Comea por definir os ciclos de formao:Os Ciclos de Formao constituem uma nova concepo de escola para o ensino fundamental, na medida em que encara a aprendizagem como um direito da cidadania, prope o agrupamento dos estudantes onde as crianas e adolescentes so reunidos por suas fases de formao: infncia (6 a 8 anos); pr-adolescncia (9 a 11 anos) e adolescncia (12 a 14 anos). As professoras e os professores formam coletivos por Ciclo, sendo que a responsabilidade pela aprendizagem no Ciclo sempre compartilhada por um grupo de docentes e no mais por professores ou professoras individualmente. (KRUG, 2007, p.17).

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Os contedos no so mais ditados pelo sistema educacional central CRO (MAINARDES, 2007) e sim organizados a partir de pesquisa socioantropolgica junto comunidade e, com base nessa investigao, representantes dos alunos, da comunidade e professores renem-se para organizar, analisar e traar metas e aes a serem trabalhadas na escola. Uma diferena significativa entre Ciclos de Formao, escola seriada e at Ciclos de Aprendizagem, que nas escolas de Ciclo de Formao os alunos so reunidos por turma, por idade e no pelos contedos e nvel de conhecimento que j adquiriram. Outra diferena est em que no h reprovao (repetncia) nas escolas de Ciclo de Formao. Tambm, para essas escolas, houve influncia de Henry Wallon. No comum os autores de livros e textos tratarem de uma ou outra forma de ciclos, abordando-os de modo geral, deixando as nuanas camufladas. Quase sempre se referem aos aspectos histricos, traando razes pedaggicas, sociais e econmicas para a implantao do regime de ciclos. Essa postura no merece e no pode ser vista em tom de crtica destrutiva e de anular seus valores como representao de fatos relevantes na Histria da Educao. Um bom exemplo de apresentao dessa problemtica a respeito dos ciclos encontra-se exposto em um trabalho de relevncia, explicitado por Barreto e Mitrulis (2001, p.1-2):Os ciclos escolares, presentes em alguns ensaios de inovao propostos pelos estados, sobretudo a partir da dcada de 60, e, em alguns de seus pressupostos, defendidos desde os anos 20, correspondem inteno de regularizar o fluxo de alunos ao longo da escolarizao, eliminando ou limitando a repetncia. Cada proposta redefiniu o problema sua maneira, em face da leitura das urgncias sociais da poca, do iderio pedaggico dominante e do contexto educacional existente [...] Os ciclos compreendem perodos de escolarizao que ultrapassam as sries anuais, organizados em blocos cuja durao varia, podendo atingir at a totalidade de anos prevista para um determinado nvel de ensino. Eles representam uma tentativa de superar a excessiva fragmentao do currculo que decorre do regime seriado durante o processo de escolarizao.

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2.2 PRESSUPOSTOS GERADORES DOS CICLOS Como j se frisou, essa temporalidade em educao,

denominada ciclo, no tem uma longa vida e, como histria, no Brasil, nasce provavelmente, na dcada de 1980. Um pressuposto, que nem sempre citado como causa dos sistemas de ciclos, mas que esteve presente, desde o comeo do sculo passado e guarda razes semelhantes ou iguais, a questo da Promoo Automtica. O sistema de ensino, no qual a Promoo Automtica um dos parmetros, tem a repetncia ou reprovao abolida, ou seja, induz a uma adeso no-reprovao. O primeiro momento de que se aborda a no reprovao, de forma oficial, nos tempos atuais, em nosso pas, ocorreu com a proposta de Sampaio Dria, por meio de uma carta ao Diretor da Instruo Pblica, Oscar Thompson, que, a partir da, virou reforma de ensino, Lei n 1750, de 1920, quando se tornou Diretor da Instruo Pblica do Estado de So Paulo, na dcada de 1920. A proposta dizia que era necessriopromover do primeiro para o segundo perodo todos os alunos que tiverem tido o benefcio de um ano escolar, s podendo os atrasados repetir o ano, se no houver candidatos aos lugares que ficariam ocupados. (SAMPAIO DRIA, 1923, p. 25).

A proposta tem um ar paradoxal, porque, ao mesmo tempo em que procura sustentar a no reprovao, sugere que a reprovao permitida, se houver vagas para outros candidatos a ocup-las. Instaurada a Repblica, recentemente, precisaria o Brasil comear a erradicar o analfabetismo. Os olhos do mundo o estavam observando. A Repblica no poderia conviver com o analfabetismo. Afinal, o pas se preparava para o desenvolvimento e para entrar na rota dos pases que j o havia conquistado. Precisaria colocar todas as crianas na escola, faz-las aprender a ler, escrever e contar, os trs erres (RRR) - Reading, 'Riting and 'Rithmetic - faziam parte das escolas

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primrias da Europa, Estados Unidos da Amrica. Por que no, tambm, no Brasil? interessante que, no trecho acima, o enunciado no parece dizer da preocupao com o aprendizado dos alunos, mas com a economia gerada no oferecimento de vagas. No entanto, uma atitude sensata e louvvel tomou Sampaio Dria, comportando-se como pesquisador, fazendo um recenseamento escolar, detectando que o nmero de analfabetos era bem maior do que o enunciado pelo Anurio de Ensino de 1918: quando este anunciava 250.000, na verdade, aps o recenseamento, constatou-se que eram 455.569 crianas. Essa reforma j previa a gratuidade do ensino para crianas de 7 a 12 anos, com frequncia obrigatria, assim como a liberdade de credo religioso (KNOBLAUCH, 2004). Contudo, a gratuidade consolidou-se, apenas para os dois primeiros anos de escolaridade, para os outros anos, aps o 2 ano, uma taxa seria cobrada e seu valor no sabido. Na verdade, o que Sampaio Dria propunha era, com a ausncia de reprovao, aquilo que depois ficou patenteado como promoo automtica, embora no tenha usado essa denominao. Um longo perodo decorreu at a proposta de Sampaio Dria cair por terra, em 1925, retornando tudo ao comeo, como era antes. Por volta dos anos 50, comeam a aparecer preocupaes com a reprovao e meios de impedi-la. Pelo menos no se tem notcia de que algo tenha acontecido, nesse intervalo dos anos da dcada de 1920 at 1950. Havia preocupao em relao no repetncia, obteno de vagas para os novos candidatos, mas, pelo menos formalmente, como proposta, no parece ter ocorrido nos moldes daquilo que veio a ocorrer em outros momentos posteriores. 2.3 PROMOO AUTOMTICA NOS ANOS 1950 No trabalho de Fernandes (2000), A promoo automtica na dcada de 50: uma reviso bibliogrfica das publicaes na (Revista Brasileira de Estudos Pedaggicos) - (RBEP), a autora pesquisa as publicaes feitas nessa revista, veculo de difuso daquele momento histrico, relacionadas ou

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que faziam referncia promoo automtica ou processo de no reprovao e, de modo geral, da educao. Embora a pesquisa esteja direcionada aos anos 50, comea sua anlise por um artigo de 1949: O problema da repetncia na escola primria, de Oflia Boisson Cardoso, por julgar significativo e de valor, no especificamente para apresentao da Progresso Continuada, com essa denominao, porm como suporte para seu desencadeamento e implantao, por parte de outros que demonstrassem interesse. Como o prprio ttulo do artigo informa, trata-se do problema da repetncia no final da 1 srie da escola primria e, para isso, lana mo de argumentos psicolgicos como justificativa de adaptao da criana ao ambiente escolar, ambiente de sociabilizao no o primeiro, a famlia, mas o primeiro fora da famlia, que metodicamente, exige da criana que se adapte e o siga nas suas normas e determinaes, as quais surgem de seu exterior, na qual sua vontade no , simplesmente e apenas, sua. A autora examina o texto, com base em quatro causas ou pressupostos que influenciam a repetncia dos alunos: 1) causas pedaggicas; 2) causas sociais; 3) causas mdicas e 4) causas psicolgicas. Quanto aos aspectos de cunho pedaggico, reconhecia-se que, no ambiente escolar, nessa poca, a alfabetizao era preponderantemente focada na leitura e na escrita, o que no era nada motivador, sem o poder de cativar a ateno da criana; ressaltava ainda que a receita para um bom professor e, consequentemente, uma boa alfabetizao, era exigir dele vocao, dom para exercer sua profisso e, assim, despertar o interesse dos alunos para os temas indicados. O texto mostra, tambm, quanto anlise das causas sociais, uma parecena muito grande com os contedos das falas e as reclamaes constantes dos encontros, simpsios de educadores etc. Eis a afirmao: o que a escola procura construir, a famlia destri. [...] ditando-lhe formas amorais de reao, comportamento anti-sociais. A influncia tanto mais perniciosa quanto mais baixa a idade cronolgica e o nvel de maturidade social (CARDOSO, 1949, p. 83). De acordo com a autora, a influncia negativa e de oposio da famlia concorre para agravar o problema da reprovao. Na escola, o

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ambiente bem diferente do de fora da escola: quando l se obriga obedincia de regras, aprende-se higiene, tica, boas maneiras e outras normas, na famlia, o ambiente tem sido o contrrio. claro que uma generalizao nesse sentido desleal e perigosa. As causas atribudas aos fatores mdicos so a pobreza e a fome, a falta de saneamento bsico e as doenas. As causas de ordem psicolgica esto ligadas ao histrico familiar e ao contexto de vida dentro da famlia, hereditariedade, de sorte que somente os testes para detectar o retardamento da criana so insuficientes. necessrio conhecer o seu passado, suas doenas e possveis sucessos na escola. Voltando a frisar, o texto no sugere a promoo automtica ou qualquer soluo imediata, para resolver o problema da repetncia, melhorar as estatsticas do governo e solucionar questes econmicas. Na verdade, aponta causas que devem ser analisadas e que exigem providncias, da parte dos responsveis, e que sejam encontradas sadas para curar a doena da reprovao. Este texto marca um momento importante para as futuras providncias, muito provavelmente, mas no se tm notcias, oficialmente, de que ele tenha provocado tais mudanas. No entanto, outros textos que j enunciam a posio de assumir a promoo automtica surgem, logo em seguida. Sete textos, ao todo, so pesquisados por Fernandes (2000). A disposio da apresentao dos textos, na sua pesquisa no segue a ordem cronolgica usual. Fernandes comenta em seguida o texto de Dante Moreira Leite, de 1959, depois o de H. Martin Wilson, de 1954, Luiz Alves de Mattos, de 1956, discurso do Presidente da Repblica Juscelino Kubitschek, de 1956, para uma turma de professoras primrias de Belo Horizonte, Almeida Jnior, de 1957, Luis Pereira, de1958, e Heloisa Marinho, de 1959. O importante a temtica desenvolvida pelos textos, de maneira que a ordem cronolgica no exerce influncia, porque o perodo de tempo bastante curto, sem possibilidade de grandes alteraes no contedo. Existem vrios outros textos fundamentais para o entendimento do Sistema de Ciclos e, para o momento, sobre a promoo automtica; estes so contemporneos e comentam, por meio de pesquisas, os textos antigos e algumas tomadas de posio de governos de Estado ou de municpios, mais

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recentemente. Entre os mais relevantes, que expressam a temtica, esto os escritos de Mainardes (1998, 2001, 2007); Barreto e Mitrulis (1999); Jacomini (2004) e Knoblauch (2004). Esses textos trazem um apanhado bastante minucioso das questes dos ciclos e da promoo automtica, assim como da Progresso Continuada. Um apanhado rpido de cada autor citado ser comentado, incluindo as ideias fundamentais e as propostas, quando existirem. Em 1954, Henry Martin Wilson traz a experincia inglesa para o Brasil, num artigo denominado Avaliao, Promoo e Seriao nas Escolas Inglesas. Nesse texto, enfatizao autor:Chegamos agora anlise de outro princpio importante do sistema ingls, que muito contribuiu para deixar confuso o observador do outro lado do Atlntico. A educao inglesa traz consigo todas as marcas da evoluo lenta e gradual de muitos sculos. (WILSON, 1954, p. 54).

As mudanas no devem acontecer de uma hora para outra, sem preparo, por simples obrigao ou imposio - CRO, por desejo deste ou daquele. Como no cresce repentinamente o recm-nascido, por simples prazer de aproveitar o tempo futuro longamente, tambm uma mudana tem o tempo de maturao, de experimento, de anlise e aplicao, com possveis retornos ao comeo ou a qualquer um de seus pontos. Por esse motivo, os ingleses praticaram a promoo por idade (o germe dos ciclos, especialmente de formao, defendido por Krug e Arroyo), mesmo antes da legalizao por um Ato Educacional do Parlamento, em 1944. Antes, pelos padres de rendimento de extrema rigidez, a promoo somente poderia ser atingida por uma criana estudiosa. Contudo, novas idias estavam sendo absorvidas. Os estudos sobre criana progrediam. Novas concepes da filosofia educacional e da psicologia acentuavam o respeito pela personalidade individual, princpio fundamental de uma sociedade crist e democrtica (WILSON, 1954, p. 57). Contudo, com a necessidade imposta pelos novos tempos, proclamada na sociedade, assim como com as insatisfaes geradas como uma forma de desrespeito s crianas no privilegiadas pelas possibilidades de estudos ou pela natureza, as escolas tiveram de se estruturar, oferecendo-se

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s crianas pertencentes a grupos diferentes, de tal modo que o ritmo e as dificuldades prprios de cada disciplina fossem adaptados e ajustados ao aluno mdio e ao atrasado. Wilson prossegue, concretizando o entendimento do que se propunha no sistema ingls, ou seja, completando o raciocnio:Sem dvida foi talvez o difcil problema das crianas retardadas e dbeis, que forou primeiramente a ateno da escola, exigindo uma reforma radical de programas e mtodos. [...] Os alunos mdios e retardados podiam sentir que estavam sendo julgados e encorajados de acordo com suas prprias possibilidades e interesses. Podiam expandir-se e progredir. Podiam ser promovidos ano aps ano, mesmo quando suas mentes se revelassem relativamente mais vagarosas. Alm do mais seu crescimento fisiolgico no parar e por isso no se exigia que seus vasos sanguneos e msculos repetissem tambm a srie. (WILSON, 1954, p. 57). Nesse mesmo ano, enfatiza Wilson (1954, p.58): A Inglaterra

vem praticando de todo corao, h cerca de 20 ou 30 anos, a promoo por idade. O que no se sabe se Sampaio Dria tinha conhecimento do sistema ingls, porque h praticamente coincidncia temporal do que os ingleses estavam, j, fazendo na educao, em termos de promoo, com aquilo que propunha Dria. Antes, se no fossem estudiosas, seriam reprovadas, seus vasos sanguneos e seus msculos repetiriam a srie. A semelhana com as propostas de ciclos, principalmente com os ciclos de formao, patente. Embora Wilson (1954) no se apresente como personagem de destaque, no cenrio educacional brasileiro, tornou-se conhecido por essa publicao, um projeto, uma proposta que se afigura como atual, moderna, que se tenta imitar em vrios recantos do Brasil. O julgamento quanto sua razoabilidade e processo seguro, sem riscos iminentes, de sua aceitao, no est em pauta. Seu valor est na sua afigurao como modelo copiado e adaptado para dar conta de determinados questionamentos enfrentados pela educao da atualidade No ano de 1956, o ento presidente da Repblica, Juscelino Kubitschek, profere um discurso para as formandas professoras primrias em Belo Horizonte, o qual a Revista Brasileira de Estudos Pedaggicos - (RBEP)

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publica, em 1957. Nesse discurso, Juscelino cita a experincia estrangeira de adoo de promoo automtica:Adotando-se, concomitantemente o sistema de promoo automtica, vitoriosa hoje entre os povos mais adiantados, farse- uma reforma benefcios amplssimos. A escola deixou de ser seletiva. Pensa-se, na atualidade, que ela deve educar a cada um, no nvel a que cada um pode chegar. As aptides no so uniformes e a sociedade precisa tanto das mais altas , quanto das mais modestas. No mais se marca a criana com o ferrete da reprovao, em nenhuma fase do curso. Terminado este, ela classificada para o gnero de atividade a que se tenha mostrado mais propensa, sobre racional, a reforma seria econmica e prtica, evitando o nus da repetncia e os males da evaso escolar. (KUBITSCHEK, 1957, p. 144).

Nesse mesmo ano (1956), Luis Alves de Matos, com o texto A Aprovao e a Reprovao Escolar, tambm publicado na RBEP, comea-o com a constatao:O resultado final dos trabalhos escolares se exprime concretamente em termos de aprovao e reprovao. Os alunos considerados aptos a continuar seus estudos num escalo mais avanado so aprovados e promovidos srie seguinte ou diplomao final; aqueles, porm, que, pela evidncia das provas prestadas, no satisfazem aos requisitos mnimos para a aprovao e promoo so reprovados, devendo repetir a srie na qual demonstraram aproveitamento insuficiente. (MATOS, 1956, p. 254).

O julgamento do professor sumamente importante e este deveria ter noes bem definidas das consequncias advindas desse julgamento sobre os alunos. O autor divide o texto em duas partes: A. APROVAO: o aluno aprovado est apto a prosseguir para as sries seguintes de estudos mais avanados. Considera que a aprovao pode ser justa pelo aproveitamento do aluno, funcionando como um prmio; todavia, se meramente benvola, prejudicial para o aluno e desmoralizante para o professor e a escola. B. REPROVAO: Em muitos casos, indiscutivelmente, o resultado da desdia e da vadiagem mental dos alunos, quando no de sua incapacidade para

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aprender. Essa constatao no deve suplantar a Didtica que procura de maneira detalhada as causas dessa suposta incapacidade. Procedendo a uma anlise mais aprofundada, v-se que a causa dessa situao est mais na inabilidade do professor. O autor enumera vrias omisses do professor, para se chegar a essa situao de reprovao. Quase nas ltimas linhas do texto, salienta que a escola fundamental direito dos alunos. E acrescenta:A escola primria nunca foi, e a escola secundria de h muito deixou de ser, uma agncia selecionadora de talentos privilegiados que se situam na cota da genialidade e da quasegenialidade. Ambas de direito e devem se tornar de fato agncias difusoras de educao e da cultura a servio da juventude e da democracia. (MATOS, 1956, p. 257).

Outro texto, cujo autor, j bem mais conhecido e citado nos meios e trabalhos educacionais, Almeida Jnior, intitula-se Repetncia ou Promoo Automtica?, de 1957. Faz referncia direta ao procedimento de promoo. Supunha, j, que essa maneira de comportamento quanto eliminao da repetncia fosse comentada, aludida e at proposta nos meios educacionais. Quem era educador no poderia alegar ignorncia nesse quesito. Em abril de 1956, Almeida Jnior e mais cinco brasileiros tomaram parte da Conferncia Regional sobre Educao Gratuita e Obrigatria, promovida pela United Nations Educational, Scientific and Cultural

Organization - Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO) na capital do Peru. Na bagagem,levaram papis chegados recentemente de Paris, um deles, elaborado pela UNESCO, o qual tratava do fenmeno da reprovao na Amrica Latina. Falava tambm da Gr-Bretanha, que havia sido abolida a reprovao (WILSON, 1957). Na Unio Sul-Africana, a sugesto era de que o aluno da escola primria no permanecesse mais que um ano em cada srie, exceto em alguns casos excepcionais. Os delegados brasileiros em Lima, Peru, aps discusses, acataram as recomendaes, e o plenrio de Lima aprovou as recomendaes do Brasil:

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Procure-se resolver o grave problema da repetncia, que constitui importante prejuzo financeiro e subtrai oportunidades educativas a considervel contingente em idade escolar, mediante as seguintes medidas: a) reviso do sistema de promoo na escola primria, com o fim de torn-lo menos seletivo; b) estudo, com a participao do pessoal docente primrio, de um regime de promoo baseado na idade cronolgica dos alunos e em outros aspectos de valor pedaggico, e aplicvel, em carter experimental, aos primeiros graus da escola. (ALMEIDA JNIOR, 1957, p. 3).

O temor de Almeida Jnior consistia no que poderia acontecer no Brasil, com essa proposta: seria necessrio preparar o esprito e buscar adeso. Nos pases estudados da Amrica Latina pela UNESCO Colmbia, Salvador, Mxico e Brasil o volume de reprovaes era alarmante. Quanto s variaes da taxa de reprovaes, constata-se que[...] a sua percentagem diminui medida que se sobe da primeira para a quinta srie; que ligeiramente superior no sexo masculino; que se mostra maior na zona rural, menor na zona urbana, e que aumenta sensivelmente quando se passa do ensino particular para o estadual, e deste para o municipal. (ALMEIDA JNIOR, 1957, p. 4).

As reprovaes representam um grave prejuzo financeiro, de sorte que sempre este o teor das justificativas, quando se prope eliminar as reprovaes, alegando que, se o aluno for aprovado, no se deve reclamar, mas, se reprovado, uma parcela do oramento se perdeu. Os argumentos sublinham que a taxa de 15% de reprovaes acarreta 21% de acrscimo no oramento escolar e a de 30%, um acrscimo de 43% (ALMEIDA JNIOR, 1957, p. 8). Percorrendo o texto, percebe-se que o autor se mostra favorvel adoo do sistema ingls, porm no somente em sua pgina final, a que contempla a promoo automtica; entende que se faz necessrio, tambm, o aperfeioamento de professores e a consequente mudana na concepo de ensino primrio, assim como de reforar a obrigatoriedade. No final da conferncia, proferida em 19 de setembro de 1956, no I Congresso Estadual de Educao, realizado em Ribeiro Preto So Paulo, refletindo sobre o teor deste texto, Almeida Jnior faz uma espcie de desabafo e, ao mesmo tempo,

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um alerta aos educadores e congressistas presentes e aos futuros leitores e responsveis, direta ou indiretamente, pela educao brasileira: tempo, entretanto, senhores congressistas, de encerrarmos esta palestra. Temos a impresso de que h vrios anos nosso Estado perdeu, em matria de educao, o senso da realidade e passou a viver no mundo do sonho. Sente-se por toda parte, no o desejo de cultura, mas a nsia pelo diploma. O saber pouco importa; o que interessa so os ttulos acadmicos, obtidos por bem ou por mal, de qualquer maneira. Neste caso, parece melhor e mais fcil imitar aquele conhecido educador brasileiro que, no sei se por economia ou por escrnio, registrou para o filho recm-nascido o nome de Doutor. (ALMEIDA JNIOR, 1957, p.6)

Ningum nasce Doutor, uma concluso advinda das premissas adquiridas da experincia do cotidiano, do trabalho de anlise e aprendizado na relao com as coisas e fatos. Se assim pensa o educador referido na citao, com certeza deve ser escrnio; encara-se isso mais como uma opinio, contudo, bem provvel que Almeida Jnior tenha advertido (lembrando-se dessa citao), que para ser Doutor preciso antes ser nascido, depois esse ttulo se constri, no somente pelo diploma, mas com aquilo que se aprende e apreende das coisas e dos fatos, com planejamento, trabalho e transpirao, no bastando, pura e simplesmente, esperar pela inspirao. Sabe-se que as mudanas, para produzirem grandes efeitos, devem estar aliceradas em devoo apaixonada e aes a buscar respostas. A inspirao e a intuio no aparecem do nada, no so frutos de milagres de divindades ou heris. Talvez fosse essa a proposta de Almeida Jnior: lanar sementes de ideias e esperar que fervilhassem e produzissem respostas para os problemas da educao brasileira, naquele momento e, possivelmente, para depois. O texto de Luis Pereira, A Promoo Automtica na Escola Primria, originariamente publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 1958, depois na Revista Brasileira de Estudos Pedaggicos, em 1958, tem como fundamento comentar e opinar sobre a implantao da promoo automtica. O autor desse texto no era favorvel implantao do sistema de promoo

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automtica, no Brasil, uma vez que entendia que, na sua implantao, na Inglaterra e nos Estados Unidos, as condies de implantao foram bem diferentes das condies brasileiras, na dcada de 1950. Nesses pases, a promoo automtica no foi implementada para resolver o problema das reprovaes em massa, no final de ano, como no sistema seriado e, sim, em atendimento aos alunos com dificuldades de aprendizagem, os ditos atrasados, aqueles com capacidade inferior mdia. As reprovaes no eram os problemas mais iminentes e graves. Convm lembrar que,[...] ao adotarem a promoo automtica, os sistemas escolares, que vm sendo tomados como modelo, no apresentavam os problemas que existem, ainda hoje, em nosso sistema escolar primrio. Naqueles sistemas, a promoo automtica veio ao encontro de problemas deferentes, por isso, no desempenhou nem desempenha as funes que, transplantando-a se lhe quer atribuir entre ns. (PEREIRA, 1958, p. 106).

As escolas brasileiras ainda no resolveram problemas bsicos de aprimoramento gradativo de suas condies materiais, pessoais e estruturais, para dizer que as altas taxas de repetncia so causadas pelas diferenas individuais dos alunos, seus ritmos de aprendizagem e capacidade. Ao que parece, em acrscimo, admitindo-se as pssimas condies internas de organizao, materiais, de currculo, de pessoal docente, alm das condies externas, como a situao socioeconmica dos alunos, seria indiscutvel que a implantao dessa sistemtica na escola primria brasileira consistiria numa precria tentativa (PEREIRA, 1958). Talvez o mais completo texto, com mais informaes sobre a reprovao e a promoo automtica, venha a ser o de Dante Moreira Leite, Promoo Automtica e Adequao do Currculo ao desenvolvimento do Aluno, publicado em 1959, o qual contm anlise, reflexo sobre o sentido que tem a reprovao e o que lhe do, e dos padres a que o aluno deve se submeter, sendo seu ponto de vista secundrio, neste caso. Leite discute a questo de que a escola primria obrigatria por lei, o governo obriga o aluno a frequentar a escola, no entanto, no prope soluo para o fenmeno da

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reprovao. Ressalta que a criana reprovada tem trs alternativas: considerar-se incapaz, considerar as exigncias da escola como absurdas ou desnecessrias, ou continuar admitindo que capaz (apesar de todas as provas contrrias) (LEITE, 1959, p. 187). forte seu argumento quanto ao prmio e ao castigo, que no so formas duradouras em seus efeitos, como motivaes para a aprendizagem, uma vez que, na realidade, destroem o que se espera da escola e de seu objetivo: o estudo, pois, ainda como fuga os alunos lanariam mo da cola, por exemplo, como forma de fugir do castigo, o que o autor considera uma falncia total da escola. Nesse sentido, ainda, faltam aos professores critrios para avaliar o interesse real ou a capacidade de compreenso dos alunos (Ibid, p.190). A experincia tem mostrado no estar garantido que o aluno que se interessa apenas pela nota ser aquele que continuar a se interessar pelo conhecimento. importante salientar que o aluno reprovado, com frequncia, abandona a escola, mas no s esses alunos desistem da escola, outros motivos devem ser pesquisados, para no se falar em vo e cometer inju