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A PRODUÇÃO DE DOCES E LICORES PARA A FESTA DO DIVINO ESPÍRITO SANTO DE PIRENÓPOLIS GO ALEXANDRE FRANCISCO DE OLIVEIRA 1 MARIA IDELMA VIEIRA D’ABADIA 2 Resumo Em Pirenópolis, uma das cidades mais antigas do Estado de Goiás, o Divino Espirito Santo é celebrado, pelo menos, desde 1819 em uma festa conhecida, na localidade, por “Festa do Divino”. Essa manifestação se projeta na cidade como a principal, sendo celebrada com muita pompa e devoção. A Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis é patrimônio cultural do Brasil desde 2010, sendo inscrita pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artísitico Nacional (IPHAN) no Livro de Registro das Celebrações. Dentro do conjunto de manifestações registradas, os hábitos alimentares e a importância da comida na Festa são recorrentes e bastante relevantes, devido a intensa participação dos moradores na confecção dos alimentos e a grande quantidade que estes são produzidos e distribuídos gratuitamente na comunidade. O objetivo deste trabalho é apresentar a produção de verônicas ofertadas pelo Imperador e os doces e licores distribuídos pelos reis e juízes durante o Reinado de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e o Juizado de São Benedito, bem como os espaços e ambientes em que tais preparações ocorreram, além de apresentar quem são ás pessoas por trás do fazer a festa. A produção de verônicas, doces e licores para os festejos associados a fase que compreende o império envolvem o saber fazer e os conhecimentos transmitidos de forma oral de geração em geração como as receitas, os segredos culinários e as quantidades para cada preparação, conhecimentos que necessitam ser repassados e salvaguardados visto que poucas pessoas dominam tais ofícios e aquelas de mais idade estão morrendo ou devido a problemas de saúde abandonam tais funções. A análise ocorreu nos festejos de 2019 durante a 201º Festa do Divino realizada na cidade por meio de observação participante, quando foram acompanhadas a produção e a distribuição das verônicas, doces e licores, um processo longo iniciado com meses de antecedência até serem distribuídos em momentos que duram pouco mais de uma hora. Os itens distribuídos foram quantificados e transformados em tabela, nesta são analisadas as quantidades, as variedades e os responsáveis por cada etapa de preparo, bem como a procedência dos itens servidos quando adquiridos em outras localidades. Os responsáveis por cada etapa do preparo foram entrevistados e relataram suas opiniões e informações a respeito dos momentos em que estão presentes desempenhando ofícios que não são comuns fora da festa. Ao mesmo tempo que relações são construídas por meio da festa que há em se produzir os alimentos, o estar na mesa partilhando e produzindo juntos, o comércio surge como um facilitador que elimina a mão de obra e oferece grande quantidade em tempo reduzido, o que poderá, no futuro, mudar os fazeres desses alimentos na festa do Divino. Palavras-chaves: Festa do Divino; Verônicas; Doces; Licores. 1 Acadêmico do Programa de Pesquisa e Pós-graduação Interdisciplinar Território e Expressões Culturais no Cerrado (TECCER) da Universidade Estadual de Goiás. Bolsista CAPES. E-mail de contato: [email protected] 2 Docente do Programa de Pesquisa e Pós-graduação Interdisciplinar Território e Expressões Culturais no Cerrado (TECCER da Universidade Estadual de Goiás. Trabalho vinculado ao projeto de pesquisa Os Gostos do Divino: a comensalidade nas festas do Divino Espirito Santo em Goiás” PrP/UEG (2019- 2020).E-mail de contato [email protected]

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Page 1: A PRODUÇÃO DE DOCES E LICORES PARA A FESTA DO DIVINO ... · A produção de verônicas, doces e licores para os festejos associados a fase que compreende o império envolvem o saber

A PRODUÇÃO DE DOCES E LICORES PARA A FESTA DO DIVINO

ESPÍRITO SANTO DE PIRENÓPOLIS – GO

ALEXANDRE FRANCISCO DE OLIVEIRA1

MARIA IDELMA VIEIRA D’ABADIA2

Resumo Em Pirenópolis, uma das cidades mais antigas do Estado de Goiás, o Divino Espirito Santo é celebrado, pelo menos, desde 1819 em uma festa conhecida, na localidade, por “Festa do Divino”. Essa manifestação se projeta na cidade como a principal, sendo celebrada com muita pompa e devoção. A Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis é patrimônio cultural do Brasil desde 2010, sendo inscrita pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artísitico Nacional (IPHAN) no Livro de Registro das Celebrações. Dentro do conjunto de manifestações registradas, os hábitos alimentares e a importância da comida na Festa são recorrentes e bastante relevantes, devido a intensa participação dos moradores na confecção dos alimentos e a grande quantidade que estes são produzidos e distribuídos gratuitamente na comunidade. O objetivo deste trabalho é apresentar a produção de verônicas ofertadas pelo Imperador e os doces e licores distribuídos pelos reis e juízes durante o Reinado de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e o Juizado de São Benedito, bem como os espaços e ambientes em que tais preparações ocorreram, além de apresentar quem são ás pessoas por trás do fazer a festa. A produção de verônicas, doces e licores para os festejos associados a fase que compreende o império envolvem o saber fazer e os conhecimentos transmitidos de forma oral de geração em geração como as receitas, os segredos culinários e as quantidades para cada preparação, conhecimentos que necessitam ser repassados e salvaguardados visto que poucas pessoas dominam tais ofícios e aquelas de mais idade estão morrendo ou devido a problemas de saúde abandonam tais funções. A análise ocorreu nos festejos de 2019 durante a 201º Festa do Divino realizada na cidade por meio de observação participante, quando foram acompanhadas a produção e a distribuição das verônicas, doces e licores, um processo longo iniciado com meses de antecedência até serem distribuídos em momentos que duram pouco mais de uma hora. Os itens distribuídos foram quantificados e transformados em tabela, nesta são analisadas as quantidades, as variedades e os responsáveis por cada etapa de preparo, bem como a procedência dos itens servidos quando adquiridos em outras localidades. Os responsáveis por cada etapa do preparo foram entrevistados e relataram suas opiniões e informações a respeito dos momentos em que estão presentes desempenhando ofícios que não são comuns fora da festa. Ao mesmo tempo que relações são construídas por meio da festa que há em se produzir os alimentos, o estar na mesa partilhando e produzindo juntos, o comércio surge como um facilitador que elimina a mão de obra e oferece grande quantidade em tempo reduzido, o que poderá, no futuro, mudar os fazeres desses alimentos na festa do Divino.

Palavras-chaves: Festa do Divino; Verônicas; Doces; Licores.

1 Acadêmico do Programa de Pesquisa e Pós-graduação Interdisciplinar Território e Expressões Culturais no Cerrado (TECCER) da Universidade Estadual de Goiás. Bolsista CAPES. E-mail de contato: [email protected] 2 Docente do Programa de Pesquisa e Pós-graduação Interdisciplinar Território e Expressões Culturais no Cerrado (TECCER da Universidade Estadual de Goiás. Trabalho vinculado ao projeto de pesquisa “ Os Gostos do Divino: a comensalidade nas festas do Divino Espirito Santo em Goiás” PrP/UEG (2019-2020).E-mail de contato [email protected]

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Abstract In Pirenópolis, one of the oldest cities in the state of Goiás, the Holy Divine Spirit is celebrated at least since 1819 in a Festival known in the locality as "Festa do Divino". This manifestation projects itself in the city as the main one, and it is celebrated with much sumptuousness and devotion. The Holy Spirit Festival of Pirenópolis is a cultural patrimony of Brazil since 2010, and it was registered in the Book of Celebrations by the Institute of National Historical and Artistic Heritage (IPHAN). Within the group of recorded manifestations, the food habits and the importance of food at the Festival are recurrent and quite relevant, due to the intense participation of the residents in the preparation of food and the large amount that these are produced and distributed free of charge in the community. The purpose of this work is to present the production of veronicas offered by the Emperor. It is also aimed to show the production of the candies and liqueurs distributed by the kings and judges during the Reign of Our Lady of the Rosary of the Blacks and the Juizado of Saint Benedict. It is intended as well to highlight the spaces and environments in which such preparations occurred as well as who are the people behind the festival. The production of veronicas, candies and liqueurs for the celebrations related to the phase that comprises the empire involves the know-how and the knowledge transmitted orally from generation to generation. This knowledge such as recipes, the culinary secrets and the quantities for each preparation demand to be passed on and safeguarded since few people masters such trades and those of older age are dying or due to health problems, they are abandoning such functions. The analysis took place in the 2019 festivities during the 201º Holy Divine Spirit Festival held in the city through participant observation, when the production and distribution of the veronicas, sweets and liqueurs were observed. It was a long process which started months in advance until the food was distributed in moments which last just over an hour. The items distributed were quantified and transformed into a table, in which the quantities, varieties and those responsible for each stage of preparation were analyzed, as well as the origin of the items served when purchased in other locations. Those responsible for each stage of the preparation were interviewed and they reported their opinions and informed while performing their duties situations that are not common outside the festival. At the same time that relationships are built through the feast of producing food, being at the table sharing and producing together, the market appears as a facilitator that eliminates labor and offers large quantities in reduced time, which may, in the future, change the practices of these foods in the Holy Divine Spirit Festival.

Keywords: Holy Divine Spirit Festival; Verônicas; Candies; Liqueurs

1- Introdução

Em Pirenópolis, uma das cidades mais antigas do Estado de Goiás, atualmente

com uma população estimada em 24 749 hab. (IBGE/2018), cujo percentual de 77,8%

é de católicos3. De acordo com Jayme (1971) o Divino Espirito Santo é celebrado,

pelo menos, desde 1819 de uma festa conhecida, na localidade, por “Festa do Divino”.

Essa manifestação se projeta na cidade como a principal, sendo celebrada com muita

pompa e devoção. A Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis é patrimônio

cultural do Brasil desde 2010, sendo inscrita pelo Instituto do Patrimônio Histórico e

3 http://populacao.net.br/populacao-pirenopolis_go.html acesso em 01/07/2019.

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Artísitico Nacional (IPHAN) no Livro de Registro das Celebrações. Dentro do conjunto

de manifestações registradas, os hábitos alimentares e a importância da comida na

Festa são recorrentes e bastante relevantes, devido a intensa participação dos

moradores na confecção dos alimentos e a grande quantidade que estes são

produzidos e distribuídos gratuitamente na comunidade.

O objetivo deste trabalho é apresentar a produção de verônicas ofertadas pelo

Imperador e os doces e licores distribuídos pelos reis e juízes durante o Reinado de

Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e o Juizado de São Benedito, bem como os

espaços e ambientes em que tais preparações ocorreram, além de apresentar quem

são ás pessoas por trás do fazer a festa. A produção de verônicas, doces e licores

para os festejos associados a fase que compreende o Império envolvem o saber fazer

e os conhecimentos transmitidos de forma oral de geração em geração como as

receitas, os segredos culinários e as quantidades para cada preparação.

Conhecimentos que necessitam ser repassados e salvaguardados visto que poucas

pessoas dominam tais ofícios e aquelas de mais idade estão morrendo ou devido a

problemas de saúde abandonam tais funções.

A análise ocorreu nos festejos de 2019 durante a 201º Festa do Divino realizada

na cidade por meio de observação participante, quando foram acompanhadas a

produção e a distribuição das verônicas, doces e licores, um processo longo iniciado

com meses de antecedência até serem distribuídos em momentos que duram pouco

mais de uma hora. Os itens distribuídos foram quantificados e transformados em

quadro, neste são demostrados as quantidades, as variedades e os responsáveis por

cada etapa de preparo, bem como a procedência dos itens servidos quando

adquiridos em outras localidades.

Os responsáveis por cada etapa do preparo foram entrevistados e relataram

suas opiniões e informações a respeito dos momentos em que estão presentes

desempenhando ofícios que não são comuns fora da festa. Ao mesmo tempo que

relações são construídas por meio convívio que há em se produzir os alimentos, o

estar na mesa partilhando e produzindo juntos, o comércio surge como um facilitador

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que elimina a mão de obra e oferece grande quantidade em tempo reduzido, o que

poderá, no futuro, mudar os modos de fazer desses alimentos na festa do Divino.

Este artigo é dedicado a todas as cozinheiras de festa, principalmente aquelas

que tornam a Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis mais doce e mantém os

ofícios de geração em geração através dos ensinamentos e da oralidade, transmitindo

o saber e fazer perpetuando as práticas de produzir doces, verônicas e licores.

2- O pirenopolino e a Festa do Divino

Não é possível pensar a festa sem analisar a relação dos pirenopolinos

envolvidos nas atividades ligadas a esta independente do momento em que a

atividade é realizada. De acordo com o Dossiê do Iphan, (2008, p.24) “a festa e a

devoção ao Divino Espírito Santo marcam profundamente a sociabilidade do local e

estruturam a conformação de sua identidade e de suas representações”.

Essas representações são narradas, nesse texto, na forma de produção dos

alimentos ligados a festa que, de acordo com Amon e Menasche (2008, p.20) são “as

narrativas unem acontecimentos numa história coerente e os relacionam à identidade

social de uma comunidade”. Essa identidade social, por meio da festa é construída e

vivida em Pirenópolis durante e após os preparativos da Festa do Divino.

Segundo Veiga (2002), a festa do Divino está estruturada em três grandes

etapas: Folias, Império e Cavalhadas, estrutura que nem sempre é compreendida

assim pelos pirenopolinos, que não conseguem distinguir tais etapas considerando

todo o período como Festa do Divino. Em cada uma delas a fartura e a distribuição de

alimentos tem importante função de sociabilidade.

Atualmente realizam giros durante a Festa do Divino de Pirenópolis três folias:

A Folia de Rua, a Folia da Roça ou Folia Tradicional (a mais antiga) e a Folia da

Renovação Cristã também chamada de “Folia do Padre” (CURADO, MESQUITA E

OLIVEIRA, 2014). As folias são movimentos com sentido precatório e convidativo para

a grande festa que se aproxima nas semanas seguintes. As mesas das folias

apresentam grandes banquetes.

O imperador do Divino é o principal responsável pela organização dos festejos,

e com a ajuda da comunidade, de empresas e do governo realiza a Festa. Embora o

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Imperador represente a autoridade da festa, são necessárias várias pessoas para

conduzir cada etapa é comum ouvir na cidade que “é o povo quem faz a festa”, seja

na produção de comida ou na organização dos espaços, estes na perspectiva de Maia

(1999) são espaços extremados nos seus usos no período da festa.

As cavalhadas são a encenação cavalheiresca da batalha entre Mouros e

Cristãos presentes em muitos festejos ou festas de padroeiros, em Pirenópolis

acontecem no ápice da festa, com início no domingo de Pentecostes estendendo até

a terça-feira. Segundo registros locais estão presentes na Festa desde 1826, Jayme

(1971), também foi estudada por Maia (2002).

Durante cerca de 65 dias a cidade tem sua dinâmica alterada pelas muitas

manifestações que abrangem a Festa gerando significativa mobilização na sociedade

local que se empenha na realização de ofícios executados quase que exclusivamente

no período dos festejos.

3- Verônicas, doces e licores: alimentos de devoção

A produção de verônicas4, doces e licores para os festejos associados a fase

que compreende o Império envolve o saber fazer e os conhecimentos transmitidos de

forma oral de geração em geração como as receitas, os segredos culinários e as

quantidades para cada preparação, embora seja frequente a presença de doces em

outros momentos da festa, serão observado neste artigo os três dias em que o ápice

da festa acontece no período da manhã: o Domingo do Divino, por meio da distribuição

de verônicas pelo imperador, a Segunda-feira do Reinado de Nossa Senhora do

Rosário dos Pretos e a terça-feira dedicado a São Benedito por meio do Juizado,

momentos de grande distribuição de doces, salgados, quitandas e licores.

O trabalho coletivo para a produção das verônicas, doces e licores começa com

semanas de antecedência, visto que é grande a quantidade a ser produzida. Na casa

4 Alfenim produzido de açúcar, com formato de medalha, nos festejos de Pirenópolis representam

símbolos locais como a pomba do Divino, a coroa, as iniciais do imperador e motivos que remetem a cidade ou à própria festa (Curado et al, 2017). Tradicionalmente são produzidas para serem distribuídas ao fim do cortejo do Imperador do ano vigente como símbolo de desejo pela fartura e prosperidade. Atualmente são feitas verônicas para outros festejos de santos padroeiros com distribuição gratuita ou comercializadas para serem utilizadas com lembrancinhas de casamentos, bodas, batizados e outros, não se restringindo apenas a Festa do Divino,

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do imperador às noites são de cantoria e trabalho, pessoas de diferentes idades

dividem os trabalhos na cozinha preparando a calda, batendo o ponto ou na mesa

dando forma às verônicas. Esse processo foi estudado por pesquisadores locais como

Pina e Silva (2016); Curado et al (2017); Ribeiro (2018). As verônicas foram

introduzidas no ano de 1826 conforme relatos de Jayme (1971) e são produzidas em

grandes quantidades a cada ano para serem distribuídas no domingo do Divino. No

início a distribuição era restrita apenas às virgens do cortejo, em um período em que

a cidade era menor alguns imperadores entregavam de porta em porta, atualmente a

iguaria é distribuída aos que participam do cortejo. As verônicas são consumidas,

guardadas como objetos sacralizadas ou levadas como lembranças para aqueles que

não puderam estar presentes.

A festa é pressuposto para o surgimento de práticas de sociabilidade e de

reciprocidade, as pessoas se unem em prol dos ofícios festivos, as casas se tornam

casas de festa, criam novos espaços e alteram a rotina comum do dia-a-dia. “De fato,

não há evento da festa que não seja produzido coletivamente e que não implique a

circulação de bênçãos por meio da fartura e da distribuição de alimentos” (DOSSIÊ

IPHAN, 2008, p. 23-24).

O processo coletivo de confecção dos doces se inicia com cerca de 30 dias de

antecedência e dura entre 10 e 15 dias. Em 2019 a produção na área paralela à casa

do imperador, teve início no dia 07 de maio e se estendeu até o dia 16 e foram

produzidas 10.300 unidades. O motivo de se iniciar a produção antes é que festa

aglutina muitas manifestações que ocorrem quase simultaneamente, além das outras

etapas pelas quais as verônicas precisam passar até serem distribuídas, necessitam

ser secas, limpas para retirar o excesso de polvilho e serem embaladas.

O doce é feito usando apenas três ingredientes: açúcar, água e limão. Porém

ao usar açúcar cristal há a necessidade de limpá-lo.

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Imagem 1 Clarificação da calda ou limpeza do açúcar

Pirenópolis/GO, 201 Fonte: Oliveira, Alexandre

Imagem 2 Calda sendo pontuada Pirenópolis/GO, 2019

Fonte: Oliveira, Alexandre

Imagem 3 Resfriamento da pedra para receber a calda.

Pirenópolis/GO, 2019 Fonte: Oliveira, Alexandre

O primeiro passo é levar os ingredientes com exceção do limão ao fogo para

ferverem, adiciona se então claras de ovos levemente batidas a calda e todas as

impurezas presentes ficam retidas na espuma formada que depois será retirada

(imagem 1). Geralmente a clarificação ou limpeza é feita antes dos dias de confecção,

e a calda descansa um pouco. Após esse processo a calda volta, em menor

quantidade, para as panelas para serem apuradas e ficar espessa (imagem 2) em

ponto de vidro. Enquanto a calda fica no ponto ideal grandes pedras são limpas e

resfriadas com barras de gelo (imagem 3).

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Imagem 4

Retirada da calda resfriada da

pedra Pirenópolis/GO, 2019

Fonte: Oliveira, Alexandre

Imagem 5

A calda é batida até mudar de cor Pirenópolis/GO, 2019 Fonte: Oliveira, Alexandre

Imagem 6

Massa das verônicas sendo cortada depois de batida Pirenópolis/GO, 2019

Fonte: Oliveira, Alexandre

Em seguida a calda é colocada nas pedras frias e descansam ali por alguns

minutos (imagem 4). A massa é dividida e distribuída aos batedores de puxa na sua

maioria homens que realizando movimentos de oito ou vai e volta transformam a

massa transparente no branco e delicado alfenim (imagem 5). A massa só é levada

para a mesa quando estiver rendando, segundo as “veronqueiras5”. Então fazem um

grande pavio e cortam pequenos pedaços (imagem 6) que serão arredondados e

achatados para serem cunhados pela forma de chumbo com os motivos relacionados

ao imaginário da Festa.

5 Modo como são chamadas as mulheres que detêm o saber de preparar a calda e orientar na produção

do doce “a massa mal batida morre na mesa, não dá para ser utilizada, endurece e não é possível

moldá-la”.

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Imagem 7 Instrumentos utilizados na produção de verônicas

Pirenópolis/GO, 2019 Fonte: Oliveira, Alexandre

Imagem 8 Verônica sendo decorada após receber a a impressão da forma de chumbo

Pirenópolis/GO, 2019 Fonte: Oliveira, Alexandre

Imagem 9

Verônicas prontas para secarem e serem embaladas Fonte: Oliveira, Alexandre

Enquanto isso usando garfos, facas, tesouras, canetas, canetinhas e outros

são moldadas as verônicas (imagem 7), cada pessoa usa de criatividade (imagem 8)

ao desempenhar o ofício em torno de uma grande mesa forrada contendo polvilho

espalhado para ajudar que as verônicas não grudem nas formas. Estas vão para um

tabuleiro (imagem 9) e no dia seguinte são colocadas para secar ao sol, são viradas

por alguns dias e pinceladas a seco para a retirada do excesso de polvilho.

Próximo da festa as verônicas são embaladas para serem distribuídas no Domingo do

Divino. Para essa produção os espaços são improvisados para circulação de um

grande número de pessoas. Os utensílios são emprestados e o serviço exercido é

exclusivamente voluntário. A produção do doce embora simples, não é um trabalho

fácil. Qualquer erro ou demora na execução de alguma etapa pode colocar todo o

processo a perder. Os trabalhos são bastantes específicos e são poucas as pessoas

que sabem tirar o ponto ou bater a puxa, o que indica a necessidade de transmissão

dos ofícios a outros, para que estes não se percam.

A verônica é o doce mais importante do Império, senão da Festa, segundo

Gerardes (2014) é o alimento sagrado:

A alimentação é um fato presente em festas populares. Comidas com traços regionais, quitutes, salgados, bolos e doces são artefatos inerentes ao

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processo ritual de um festejo popular. Em Pirenópolis a comida é um elemento que se faz presente em todos os âmbitos da Festa: nas folias, nas farofadas, nas Cavalhadas, no Reinado, no Juizado e no Império. E a verônica é o alimento sagrado, o doce do Império do Divino. (GERARDES, 2014. p. 178).

Outros dois momentos com grande distribuição de doces e licores são o

Reinado de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e o Juizado de São Benedito,

festejos negros deslocados de suas datas originais e inseridos junto aos festejos do

Espírito Santo. Doceiras, amigos, voluntários e familiares produzem na casa dos reis

e juízes, os doces de frutas e os licores para serem servidos no Reinado e no Juizado6

Esses festejos também foram estudados por Lôbo(2006) reforçando as características

do lugar festivo na cidade.

Estes acontecem respectivamente na manhã de segunda e terça-feira

posteriores ao Domingo do Divino, em cortejo pela cidade, após a celebração da

missa, conduzindo os reis e juízes, seguidos por uma grande multidão se deslocam

para o lugar onde serão distribuídas farta comida e bebidas aos presentes (salgados

variados, quitandas, doces e licores de várias qualidades).

Anteriormente faziam-se quatro festas uma na casa do rei e outra na casa da

rainha, uma na casa do juiz e outra na casa da juíza. Atualmente devido ao número

de participantes e o elevado custo do Reinado e do Juizado geralmente acontecem

duas festas os reis se juntam e realizam uma festa e os juízes do mesmo modo. Em

2019 os festejos aconteceram nos dias 10 e 11 de junho. Os itens distribuídos foram

quantificados e organizados no quadro 1, com o intuito de dimensionar a produção,

bem como identificar os responsáveis pelo preparo ou a procedência quando estes

são adquiridos em outras localidades.

6 O Reinado é uma devoção a Nossa Senhora do Rosário e o Juizado a São Benedito. Começou na

cidade a Festa do Divino. Os pretos tinham também vontade de fazer suas festas, isso no tempo dos escravos. Então eles começaram a fazer. Pediam licença, naturalmente, e faziam também a sua comemoração em Louvor a Nossa Senhora do Rosário e a São Benedito (BRANDÃO, 1978, p. 99).

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Os doces servidos no Reinado de Nossa Senhora do Rosário foram produzidos

em Nerópolis, segundo a rainha de 2019, Lurdes Curado, as doceiras locais estavam

muito ocupadas e então ela preferiu ir até a cidade para comprar ali os doces que iria

servir, enquanto os demais itens foram comprados de produtores locais. Os

responsáveis pela produção não foram mencionados no quadro, mas são pessoas

ligadas aos ofícios exclusivos da Festa ou que produzem em maior escala por ocasião

desta.

7 Os alimentos que apresentam um asterisco (*) indicam que o item não foi produzido por meio de

trabalho coletivo e não foi fabricado em Pirenópolis.

Quadro 1 - Cardápio e Quantidade de Alimentos Servidos em 2019

Domingo Segunda-feira Terça-feira Pentecostes/Divino Espírito Santo

Reinado de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos

Juizado de São Bendito

10.300 verônicas 2.000 verônicas.

25 litros de licores variados 40 litros de licores variados (abacaxi, caju, coco, figo, jenipapo, laranja, leite e tucum).

19 kg de bala de coco (Aprox. 5.700 unidades)

2 kg de bala de coco (Aprox. 600 unidades)

20 kg de doce de leite 20 kg de doce de leite

1000 pastelinhos 400 pastelinhos

1200 canudinhos 900 canudinhos

150 kg de doces secos variados (ameixas de queijo, cocada branca, preta e de maracujá, doces de banana, figo, goiaba mamão, pé de moleque)*7

120 kg de doces secos variados (doce de abóbora com coco, batata doce, caju, mamão (enroladinho e pedaço), figo e laranja da terra.

500 geladinhos (chocolate, jabuticaba, limão, manga, maracujá e umbu)

5 receitas de queijo leite

4 receitas de pudim manuê

1 receita de bolo de banana com castanhas

4 kg de pãozinho de São Benedito

6 kg de bolacha de melado

14.000 salgadinhos variados 10.500 salgadinhos variados*

Fonte: Trab.de campo - 2019 Org. Oliveira, Alexandre

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No Juizado de São Benedito com exceção dos salgados, dos refrigerantes, do

chope e do pastelinho, todos os outros alimentos servidos foram produzidos na casa

que recebeu os festejos por meio de atividades coletivas de produção. Nessa

manifestação em específico os autores estiveram mais envolvidos com a execução

das atividades. O trabalho iniciou cerca de três meses de antecedência e se estendeu

até a madrugada do dia 11 de junho, data do juizado em 2019. Todas as etapas da

produção foram executadas sob os comandos de Dona Marta Lôbo, avó do juiz do

ano em estudo. A família tem um grande envolvimento e devoção por São Benedito,

e quando não tem a responsabilidade de realizar a festa colabora produzindo doces

para doação. Os doces de laranja, mamão e caju foram produzidos por meio de

imersão das frutas levemente cozidas em calda de açúcar em ponto médio,

permanecendo ali por cerca de dois ou três dias para que o sabor penetre nas frutas,

repetindo diariamente o processo de fervura. Após esse processo são dispostas em

peneiras por mais alguns dias e levadas ao sol para secarem e passados em açúcar

refinado para criarem um camada crocante enquanto a parte interne permanece

úmida, os demais doces foram produzidos usando a proporção de 1k de polpa de fruta

para 1k de açúcar, depois são moldados e passados em açúcar refinado como os de

abóbora com coco e batata doce. O licores são produzidos a partir da calda grossa

que escorre das peneiras, acrescidos de cachaça de boa qualidade, de modo que ao

serem degustados apresentem um sabor particular no paladar de quem os consome.

3– Breves considerações

As práticas festivas relacionadas a Festa do Divino são iniciadas ainda na

infância quando as crianças observam seus familiares exercendo tais ofícios, a

maioria destas são transmitidas de geração em geração por meio da oralidade e

reproduzidos quase que por ocasião de festejos associados ao culto ao Divino. A

maioria das “veronqueiras” ou doceiras aprenderam com as suas mães ou parentes

próximas. A mesa de trabalho é local de memória e de reencontro, sendo comum ouvir

situações de tempos passados ou de práticas e modos antigos de se produzir.

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A maioria destas atividades são realizadas por devoção e de forma gratuita

quando executados dentro das festas de santos. A dimensão alcançada pelas festas

atuais que ocorrem na cidade exige, em alguns casos, que os responsáveis pelos

festejos recorram a fábricas de doces ou de salgados que produzem em larga escala

eliminando o tempo de trabalho por exemplo, reduzindo assim a coletividade e as

interações bem como a transmissão do conhecimento que acontece durante o preparo

dos doces em homenagem aos santos votivos.

4 – Referencias AMON, Denise e MENASCHE, Renata. Comida como narrativa da memória social. Sociedade e Cultura, v.11, n.1, jan/jun. 2008. pp. 13 a 21. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O Divino, o Santo e a Senhora. Rio de Janeiro: Funarte, 1978. CURADO, João Guilherme; MESQUITA, Adolpho Randes Ferreira; OLIVEIRA, Alexandre Francisco. Fartura à mesa: Folia do Divino Espírito Santo em Pirenópolis/GO Revista Geonordeste. São Cristóvão, Ano XXV, n. 2, Edição Especial, p. 71-86, Ago/2014. CURADO, João Guilherme; SILVA, Erick Tavares; BRAZUNA, Izabel; OLIVEIRA, Alexandre Francisco. Verônicas: O doce sabor do Espírito Santo em Pirenópolis – Goiás In: No rastro da bandeira: terço, festas e folias. Goiânia: Caminhos. 2017,156 p. DOSSIÊ IPHAN Festa do Divino Espírito Santo Pirenópolis – GO. Brasília, 2008. 125p. GERALDES, Amanda Alexandre Ferreira. A memória dos objetos: verônicas, máscaras e flores do Divino Espírito Santo de Pirenópolis/Goiás. 2015. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. JAYME, Jarbas. Esboço Histórico de Pirenópolis. Goiânia: UFG, 1971. Vols I e II. 624p. LOBO, Tereza Caroline. A singularidade de um lugar festivo: o reinado de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e o juizado de São Benedito em Pirenópolis. 2006. Dissertação (Mestrado em Socioambientais) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia. MAIA, Carlos Eduardo Santos. Enlaces Geográficos de um Mundo Festivo – Pirenópolis: a tradição cavalheiresca e sua rede organizacional. 2002. (Doutorado em Geografia) Rio de Janeiro: PPGG/UFRJ. MAIA, Carlos Eduardo Santos. Ensaio Interpretativo da Dimensão Espacial das Festas Populares. In: ROZENDAHL, Zeni e CORREA, Roberto Lobato. Manifestações da Cultura no Espaço. Eduerj: Rio de Janeiro, 1999.

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RIBEIRO, Maria Cristina Campos. Mutirões Camponeses: trabalho, devoção e festa em Pirenópolis, Goiás. (Mestrado em Ciências Sociais e Humanidades) Anápolis: PPG em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado/UEG, 2018. SILVA, Erick Tavares; PINA, Patrícia Carvalho Rios. Verônicas: o alfenim de Pirenópolis – Goiás. Universidade Estadual de Goiás, 2016. VEIGA, Felipe Berocan. A Festa do Divino Espírito Santo em Pirenópolis, Goiás: polaridades simbólicas em torno de um rito. 2002 (Mestrado em Antropologia) Niterói: PPG em Antropologia e Ciências Políticas/UFF.