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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 4279
A PRODUÇÃO LITERÁRIA DE ERICO VERÍSSIMO PARA CRIANÇAS E JOVENS NA DÉCADA DE 1930
Michele Ribeiro de Carvalho1
Iniciando a leitura
Erico Veríssimo foi um escritor brasileiro, nascido no interior do Estado do Rio Grande
do Sul, bastante reconhecido por seus romances. Para muitos, o maior deles é O Tempo e o
Vento2. Mas o que muitos desconhecem é que Veríssimo foi autor de livros infantis,
publicados pela Editora do Globo, de Porto Alegre. São eles:
QUADRO 1 LIVROS INFANTIS E JUVENIS ESCRITOS POR ERICO VERÍSSIMO
Ano Livro
1935 A vida de Joana d’Arc
1936
As aventuras do avião vermelho
Os três porquinhos pobres
Rosa Maria no castelo encantado
Meu ABC
1937 As aventuras de Tibicuera
1938 O urso com música na barriga
1939
A vida do elefante Basílio
Outra vez os três porquinhos
Aventuras no mundo da higiene
Viagem à aurora do mundo
Se na sua infância os livros de aventura tiveram um lugar garantido em suas leituras ao
pé da ameixeira-do-japão, árvore do quintal de sua casa em Cruz
Alta, podemos supor que muito influenciaram sua escrita voltada para o público infantil,
1 Mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-Mail: <[email protected]>. 2 Romance dividido em O Continente (1949), O Retrato (1951) e O Arquipélago (1961). Conta parte da história do
Brasil a partir do sul, através da história das famílias Terra e Cambará. Considerada uma das mais importantes obras do país.
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marcada pela aventura e pelas viagens. Foi defensor do sonho e da imaginação na literatura
para crianças, contudo, o traço educativo em suas histórias se faz presente. E, segundo
Rodrigues (2010; p. 9), “na confluência da viagem e do aspecto educativo, encontra-se a
ciência, aplicada visando o desenvolvimento social; ou a sua ausência, ilustrando
desequilíbrios”.
Segundo o próprio Veríssimo (1982, p.123), “Destinei minhas narrativas à criança entre
quatro e dez anos. Quero dizer, escrevi – as de tal modo que, se uma pessoa ler esses contos
para criança ainda não alfabetizada, estas poderão compreendê-las”.
Pesquisando em bancos de teses e dissertações de universidades brasileiras, além de
revistas da área, pudemos encontrar alguns poucos trabalhos sobre essa produção do escritor
Erico Veríssimo.
QUADRO 2 TESES E DISSERTAÇÕES PRODUZIDAS SOBRE A OBRA DE ERICO VERÍSSIMO
TÍTULO AUTOR TIPO/ANO DEPOSITÁRIO
A Literatura Infantil na Revista do Globo: a que leitor se destina?
Sandra Tessler Rodrigues Dissertação/2007 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul
A Literatura Infantil de Érico Veríssimo
Maria Dinorah Luz Prado Dissertação/1978 Universidade Federal do
Rio Grande do Sul
Usos da Literatura Infantil no Estado Novo: o caso de As
aventuras de Tibicuera Ana Lúcia Ioppi Zugno Dissertação/2007
Universidade do Extremo Sul Catarinense
Podemos perceber que as poucas dissertações encontradas, de forma alguma as únicas
produzidas, foram escritas no sul do país, local onde Erico Veríssimo conta com grande
prestígio ainda hoje. Demonstram interesse em reconhecer os usos das histórias criadas pelo
autor e a quem se destinavam. Importante salientar que essas histórias não tinham como
suporte somente os livros da Biblioteca de Nanquinote, mas também a Revista do Globo, em
sua seção infantil.
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QUADRO 3 ARTIGOS SOBRE A OBRA DE ERICO VERÍSSIMO
TÍTULO AUTOR REVISTA/LIVRO ANO
As Aventuras de Tibicuera: literatura infantil, história do Brasil e política cultural
na Era Vargas Ângela de Castro Gomes Revista USP 2003
A história de Meu ABC de Erico Veríssimo Cristina Maria Rosa Editora da
Universidade Federal de Pelotas
--
O caráter pedagógico e a perenidade da literatura infanto-juvenil de Érico Veríssimo
Vera Teixeira de Aguiar Letras de Hoje -
EDIPUCRS 1986
O contador de histórias para crianças e jovens
Vera Teixeira de Aguiar Revista Eletrônica: Estudos Literários
da UFMG 2005
Criança e livro combinam muito bem: a visão de infância nos textos infantis de Erico
Veríssimo Márcia Ivana de Lima e Silva Revista Signo 2005
Erico Veríssimo e a iniciação do Leitor em a Vida de Joana D’arc
Graça Paulino
Cadernos do Centro de Pesquisas Literárias da
PUCRS
1996
Veríssimo e a literatura infantil Paula Bellé Piovesan e Sílvia
Niederauer Dsiciplinarum
Scientia 2003
As obras de Veríssimo, ainda que repletas de fantasia, em primeira instância, são
didáticas, já que apresentam a preocupação do autor em transmitir conhecimento, o que
levava, segundo Piovesan e Niederauer (2003, p. 224), a aliar-se “às instituições de ensino
que têm por objetivo formar intelectualmente as novas gerações”. O universo ficcional criado
por ele demonstra um predomínio de aventuras, vida e viagens, um mundo em movimento,
onde as personagens vencem os espaços e crescem com o acúmulo de experiências.
Em entrevista concedida à Clarice Lispector3, Veríssimo comenta:
Clarice Lispector – Agora que publiquei um livro de história para crianças e outro meu vai sair por esses dias, interesso-me em saber o que você pensa da literatura infantil no nosso país. Erico Verissimo – Devo dizer que só a semana passada é que li a história do seu coelhinho. Acho que você usou a linguagem adequada. Foi mesmo uma história contada ao Paulinho (que hoje deve ser um Paulão). Eu gostaria de voltar a escrever para crianças. As nossas crianças precisam livrar-se do Superman, do Batman. Mas... que histórias poderíamos contar-lhes nesta hora desvairada? Isto é um assunto para discutir. Nossa literatura infantil ainda é muito pobre. (LISPECTOR, 2007)
De acordo com manuscritos encontrados após sua morte, em 1975, Erico Veríssimo
acalentava o desejo de voltar a escrever para o publico infantil e juvenil.
3 Clarice Lispector foi escritora e jornalista nascida na Ucrânia, em 1920, e naturalizada brasileira. Autora de romances, contos e ensaios, chegou ao Brasil, ainda criança, em 1922, com seus pais e irmãs, fugindo da perseguição aos judeus. Faleceu em 1977, deixando uma vasta obra literária.
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Como de costume, para entrar in the mood, começo a desenhar. Desenho de memória o cachorro do anúncio. Escrevo no papel a palavra VIRA-LATA. Depois faço um quadrado, com o desenho dum outro tipo de cachorro e ponho um título: Memórias dum Vira-lata. Memórias? Idéias para um livro para crianças. Há muito ando buscando um tema. E um jeito. Que história contar para a gente miúda? As fadas morreram. A realidade parece mais fantástica que a ficção. Nome para o herói? Pitoco. Homenagem ao Pitoco4 da minha infância. (Manuscrito) (BORDINI, 1963, 56)
Nesse manuscrito ainda é possível verificar a preocupação de Veríssimo com adequação
da história a ser escrita ao seu leitor preferencial, como no trecho transcrito a seguir, que no
original foi escrito em inglês, como o autor preferia fazer suas observações:
Alguns adolescentes e os crescidos poderão entender o significado do livro. MAS É NECESSÁRIO HAVER AÇÃO, AVENTURA E UMA NOTA CÔMICA PARA FAZER MENINOS E MENINAS DE 7 A 14 ACHAREM (NELE) ALGUM INTERESSE. 5
Ao escolher a Literatura Infantil escrita por Erico Veríssimo como objeto de pesquisa,
temos como objetivo buscar compreender a invenção dessa coleção e sua importância para a
formação de crianças leitoras no Rio Grande do Sul, principalmente, e em outras regiões do
Brasil onde tenham chegado.
Uma breve análise
Analisando rapidamente os títulos dos livros infantis e juvenis escritos por Veríssimo
podemos perceber que alguns têm caráter instrutivo, como o livro intitulado Aventuras no
mundo da higiene, esquecido pelo público e como Maria Helena Bastos e Maria Stephanou
constataram, esquecido também por muitos trabalhos sobre a vida e a obra do escritor, que
sequer fazem referência a esse pequeno livro.
Nele podemos perceber que o conhecimento adquirido na observação do ambiente da
farmácia paterna perdurou ao longo de sua trajetória. Além dos livros de aventura e viagens
instigantes, os almanaques farmacêuticos também compunham suas possibilidades de
leitura. Estes eram um tipo de publicação com grande alcance, que conseguia atingir
populações do interior. Roger Chartier sintetizou a importância dos almanaques de farmácia
4 Pitoco era o nome do cachorro mestiço que, em criança, Erico e seus amigos encontraram com a pata quebrada e que adotaram, chamando-o de Pitoco por sugestão de seu irmão, tendo em vista o tamanho do rabo do animal.
5 Mantivemos o texto tal como foi escrito pelo autor.
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brasileiros no século 20, na introdução que escreveu para Histórias e leituras de almanaques
no Brasil, de Margareth B. Park:
No Brasil do século XX, os almanaques farmacêuticos assumem, como alguns de seus precursores europeus, a tarefa da educação sanitária e moral do maior número de pessoas. Fazendo uma aliança original entre publicidade comercial, normas familiares e projeto de higienização, eles se inscrevem, a sua maneira, na filiação dos almanaques “esclarecidos” e pedagógicos do tempo das Luzes. Mas no contexto do Estado moderno, eles são igualmente os portadores de um projeto de reforma e de civilização identificado ao destino da nação e, para alguns, da raça.
Os almanaques eram distribuídos nas farmácias, que nas cidades pequenas,
desempenhavam o papel de hospitais e de consultórios médicos, como era o caso da farmácia
do pai de Erico Veríssimo.
Aventuras no mundo da higiene foi organizado como um manual de higiene pessoal
para crianças, composto por dezesseis lições e trazendo nos anexos um quadro sobre “valor
dos alimentos” e tabelas com a relação peso x altura ideais para cada idade e sexo. A história
é repleta de metáforas sobre bombardeios, aviões e exércitos inimigos, tudo para explicar a
ação dos remédios, vitaminas, micróbios e outros elementos no organismo humano.
Mesmo o livro sendo voltado para crianças, Veríssimo não deixou de pensar na postura
do adulto que compraria ou leria a história para um filho, por exemplo. Sendo assim, no
início do livro escreveu um Bilhete no qual salienta a necessidade de explicar a importância
de hábitos de higiene para as crianças e não, somente, mandar-lhes fazer algo sem que
compreendam o porquê.
Outro livro com o intuito instrutivo é A vida de Joana d’Arc, em que o autor procura
demonstrar aos leitores lições de vida. Escrito na década de 30, em meio ao governo Vargas e
as revoltas em que os jovens eram a maioria, o livro tem caráter cristão, religioso, moralista e
disciplinador; contudo a jovem Joana d’Arc é retratada, não como uma santa, mas como uma
testemunha das atrocidades cometidas na época em que viveu e uma defensora de sua pátria.
Não á toa, Erico Veríssimo despertou o interesse e o medo do governo de que as ideias
diluídas em suas histórias e em seu programa de rádio formassem jovens críticos com a
política da época.
No livro As aventuras do avião vermelho Erico Veríssimo inova ao propor uma criança
no papel de herói da história, como o agente de suas aventuras, mesmo que isso contrariasse
o modelo tradicional. Mesmo que a história enfatize determinados valores e comportamentos
adotados pela família tradicional de classe média sulina, mostra também a criança com suas
limitações e desejos de emancipação.
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Nesse livro Veríssimo conta a história de Fernando, um menino travesso, que ganha um
livro de seu pai, como prêmio por seu bom comportamento. Esse livro leva-o a conhecer as
aventuras do Capitão Tormenta e a pedir um novo presente, em troca de seu bom
comportamento, um avião vermelho. Suas brincadeiras agora incluíam ser o Capitão, e ele
passeava pela Lua, pela Índia, pela África e pela China, sempre em companhia de um urso
ruivo e do boneco Chocolate. No caminho enfrenta relâmpagos, ventanias e um exército de
pássaros.
Se o menino travesso em casa é cerceado pela família, ao ganhar o livro, através de suas
ilustrações, pois parece não saber ler, conhece um mundo maravilhoso, onde não é mais
solitário, já que tem a companhia do Urso Ruivo e do Negro Chocolate. É através do livro e
sua história fantástica que o menino foge de sua realidade solitária e encontra amigos que o
acompanham em sua fuga para a liberdade, com o aval da família, que fornece o meio para
que isso ocorra, o livro.
E a Biblioteca de Nanquinote?
No Brasil, desde o início da República, escrever para crianças era lucrativo e possuía
uma aura de arte engajada em projetos políticos específicos ou em uma política cultural não
só de governos, mas também da própria intelectualidade, mesmo que não fosse de forma
programada. Por isso, vários escritores brasileiros renomados são, além de romancistas
reconhecidos, autores de livros infantis. Podemos citar: José Lins do Rêgo, Cecília Meireles
(produção didática) e Graciliano Ramos. Esse crescimento quantitativo da produção para
crianças e jovens e a atração que exerce sobre os escritores comprometidos com uma
renovação da arte nacional demonstram que o mercado estava sendo favorável aos livros,
segundo Lajolo e Zilberman (2007, p. 45).
Nessa época, surge a Biblioteca organizada pela Editora do Globo, de Porto Alegre.
Se Chartier (1999) entende o termo biblioteca como uma imposição para qualificar o
gênero, o Dictionnaire da Academia Francesa chama de “bibliotecas as coleções e
compilações de obras da mesma natureza”. Porém, o historiador adverte que nem todas as
coleções são denominadas de bibliotecas, ainda que organizadas de acordo com as
características do gênero.
A Biblioteca de Nanquinote, coleção publicada de 1936 a 1939 pela Editora do Globo,
de Porto Alegre, demonstra um projeto pedagógico-literário do escritor Erico Veríssimo.
Composta por livros entre os quais podemos encontrar uma biografia, um abecedário, livros
de literatura, sobre higiene e sobre a origem das espécies, é nos protocolos de leitura que
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demonstra seu desejo de formar pequenos leitores. De acordo com Chartier (2001) os
protocolos de leitura referem-se a “uma ordem, uma postura, uma atitude de leitura”, que
assim, “define qual deve ser a interpretação correta e o uso adequado do texto, ao mesmo
tempo em que esboça o seu leitor ideal”. A seguir, uma imagem do “mascote” da coleção ou
do pseudônimo de Erico Veríssimo, o boneco Nanquinote.
Figura 1 - Carta ao leitor, apresentando Nanquinote.
Fonte: Acervo pessoal.
O personagem Nanquinote foi apresentado ao público no primeiro livro escrito por
Veríssimo, Fantoches, de 1932.
Vi papel, caneta e nanquim. Peguei da caneta. Molhei-a na tinta e – zás! Comecei a riscar... A minha creatura seria o homem sintético. Uma circunferência – a cabeça. Uma fisionomia agora: dois olhos oblongos, um nariz lustroso e abatatado, uma boca rasgada... Mais dois complementos característicos: orelhas grandes e um penacho simbólico no alto da cabeça. Uma linha ondulada: o tronco. Depois, as varetas flexíveis dos braços e das pernas. Pronto! O calunga nasceu. (VERISSIMO, 1995, p. 188)
É ele, Nanquinote, o “autor” de Meu ABC. Um pseudônimo de Veríssimo, que na
segunda capa do livro apresenta o “autor” e seu projeto pedagógico-literário.
Uma vez certo homem rabiscou no papel um bonequinho e disse assim para êle: Foste feito com tinta Nanquim; tu te chamarás “Nanquinote”. Disse e foi dormir. O bonequinho fugiu do papel e caiu no mundo. Hoje Nanquinote é um grande aventureiro. Faz grandes viagens montado num gafanhoto ou numa borboleta azul. Anda por toda a parte. Não tem
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paradeiro certo. É um sujeito muito ladino, muito travesso e muito implicante. Quando pára o relógio da casa da gente, por que foi? Foi Nanquinote que se pendurou nos ponteiros ou que botou uma pedra no mecanismo. Quando vovô espirra, que foi que aconteceu? Foi Nanquinote que fez cócegas no nariz dele. Quando mamãe perde o dedal? Foi Nanquinote que escondeu. Quando uma janela se abre de repente? Foi Nanquinote que puxou o trinco. Mas Nanquinote é muito amigo de todas as crianças do mundo. Quando um nenê não quer dormir, Nanquinote se aproxima do ouvido dele, canta-lhe uma canção misteriosa e o nenê dorme em seguida. Muitas vezes pensamos que foi Papá Noel que deixou cair um brinquedo bonito no nosso sapato... Na verdade quem trouxe o presente foi Nanquinote. Agora nosso herói preparou uma biblioteca para as crianças brasileiras. Como é muito modesto botou na coleção o seu próprio nome. Este livro faz parte da “Biblioteca do Nanquinote”. Há muito mais. Todos interessantes com lindas figuras coloridas. Todas as crianças do Brasil devem querer muito bem a esse bonequinho de tinta de nanquim. Guardem êste nome: “NANQUINOTE”. (NANQUINOTE [VERISSIMO, Erico]. Meu ABC. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1936).
O próprio Nanquinote tem voz, ao dizer: “Nós, os calungas, as creações literárias, temos
uma realidade muito mais interessante e viva do que a de vocês, bonecos de osso, carne e
nervos, gente sem imaginação nem imprevisto” (Correio do Povo, n. 20 In: BRUM, 2009, p.
301).
Mas para quê Erico Veríssimo quis formar uma coleção de livros voltada para o público
infantil? Essa questão vem acompanhada de outras, que segundo Weitzel (2002) são: o quê, o
por quê, o como e o para quem colecionar. Se a criação de uma coleção envolve todas essas
questões, envolve também um estudo da comunidade a que se destina, o para quem
colecionar. Para tanto, se faz necessário uma estratégia, ou como define Weitzel (2006), um
mecanismo para viabilizar um espaço social que expresse os anseios de um segmento da
sociedade em relação às suas necessidades informacionais.
Desenvolver uma coleção é, portanto, uma atividade de planejamento, em que o
conhecimento ou reconhecimento da comunidade e suas características oferecerão
possibilidades para o estabelecimento de políticas de seleção.
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Figura 1 – Erico Veríssimo e Luis Fernando Veríssimo. Fonte: Acervo ACALEV.
Livros organizados em coleções tendem a seduzir o público, torná-lo fiel a um formato
regular, criando expectativas de leitura. Conforme pesquisas de Hallewell (1985) e Olivero
(1999) no campo da edição, as séries e as coleções visam a um público específico e, em função
desse público, são pensados protocolos inscritos nos livros, como as imagens impressas nas
capas, os prefácios, os títulos, os tipos de letras. Por outro lado, são planejados o conteúdo da
obra, a temática, os personagens que se repetem de um título a outro. Diferentes
perspectivas, que tomam o livro e a leitura como objetos de investigação ao longo da história,
tem estudado a estratégia de sedução do leitor pelo mecanismo de organização das obras em
séries ou em coleções.
Em se tratando de obras para crianças, as ilustrações assumem papel significativo,
sendo presença consolidada nos livros para este público, pois contribuem para a construção
de sentidos que ultrapassam aqueles sugeridos pelo texto verbal. Funcionam também como
uma estratégia para evitar que o leitor se canse. Como afirma Lins (2003, p. 31), “O texto
escrito conta uma história recheada de imagens nas linhas e nas entrelinhas. A imagem
complementa e enriquece esta história, a ponto de cada parte de uma imagem poder gerar
diversas histórias”.
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Figura 2 Página do livro Outra Vez os Três Porquinhos.
Fonte: Acervo pessoal.
O livro infantil ilustrado pode ser lido como um texto híbrido, em que ocorrem dois
discursos, o verbal e o visual, criando, assim, um diálogo entre texto e ilustrações; no caso do
livro de ficção, uma espécie de narrativa dialogada entre as duas linguagens. No diálogo entre
texto e ilustrações pode ocorrer uma convergência de sentidos, quando os sentidos da
ilustração convergem para os sentidos do texto ou uma contradição, quando o texto diz uma
coisa e a ilustração outra – por exemplo, o texto refere-se a um gambá e a ilustração mostra
outro animal (Glossário CEALE6). Contudo, uma contradição não significa, necessariamente,
um erro. Gustave Doré, por exemplo, ao ilustrar a fábula A cigarra e a formiga, de La
Fontaine, não representou dois animais, mas duas mulheres.
Nos livros de literatura infantil, o leitor não deve buscar apenas equivalências entre
texto e ilustrações, mas uma relação dialógica – portanto, mutuamente enriquecedora –, pois
os sentidos do texto se projetam sobre as ilustrações e vice-versa.
O artista responsável pelas ilustrações da Biblioteca de Nanquinote foi Edgar Koetz
(1914-1969), que foi desenhista, gravador, artista gráfico, ilustrador e pintor brasileiro. Como
6 Glossário criado pelo Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. ISBN: 978-85-8007-07908.
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capista e ilustrador, trabalhava na Editora Livraria do Globo, sob orientação de Ernst Zeuner
(1895-1967)7.
Possíveis conclusões
Como já dito anteriormente, no Brasil, desde o início da República, escrever para
crianças era lucrativo e possuía uma aura de arte engajada em projetos políticos específicos
ou em uma política cultural não só de governos, mas também da própria intelectualidade,
mesmo que não fosse de forma programada.
Não só Erico Veríssimo pode ser citado como um desses autores, mas também
Monteiro Lobato, Graciliano Ramos. Este, ao lado de Erico Veríssimo, foi premiado para o
grupo de “livros pré-escolares” do concurso organizado pela Comissão Nacional do Livro
Infantil - CNLI.
De acordo com Zilberman (1992), a primeira produção significativa na área, no Rio
Grande do Sul, ocorreu na década de 30, sob a liderança de Erico Veríssimo, que deu feições
particulares à literatura produzida no Estado.
Acreditamos que as leituras de sua infância, na cidade de Cruz Alta, muito
influenciaram sua forma de escrita para o público infantil e juvenil, garantindo histórias
cheias de aventura e ação, em lugares desconhecidos e com personagens sem medo desse
desconhecido, onde a liberdade era autorizada pela família, que comprava o livro, ainda que
não o fosse na realidade.
Referências
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7 Pintor, desenhista e ilustrador alemão radicado no Brasil. Veio para o Brasil em 1922, chegando a Porto Alegre, onde notabilizou-se pela contribuição dada à Revista do Globo.
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ISSN 2236-1855 4290
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