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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE DEPARTAMENTO DE ODONTOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ODONTOLOGIA ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ODONTOLOGIA PREVENTIVA E SOCIAL A PRODUÇÃO DAS PERDAS DENTÁRIAS: NARRATIVAS DE USUÁRIOS DO SUS Natal 2007

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Page 1: A PRODUÇÃO DAS PERDAS DENTÁRIAS: NARRATIVAS DE … · À querida Núbia, pela alegria na convivência do trabalho, pela delicadeza com os pacientes e pela imensa contribuição

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE

DEPARTAMENTO DE ODONTOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ODONTOLOGIA

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ODONTOLOGIA PREVENTIVA E SOCIAL

A PRODUÇÃO DAS PERDAS DENTÁRIAS: NARRATIVAS DE USUÁRIOS DO SUS

Natal

2007

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JUSSARA DE AZEVEDO DANTAS

A PRODUÇÃO DAS PERDAS DENTÁRIAS: NARRATIVAS DE USUÁRIOS DO SUS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Odontologia, área de

concentração Odontologia Preventiva e Social,

do Departamento de Odontologia da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte,

como requisito parcial para obtenção do título

de Mestre, sob orientação da Professora Dra.

Elizabethe Cristina Fagundes de Souza.

NATAL/RN

2007

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Dantas, Jussara de Azevedo. A produção das perdas dentárias: narrativas de usuários do SUS/ Jussara de

Azevedo Dantas. – Natal, RN, 2007. 110f.

Orientadora: Elizabethe Cristina Fagundes de Souza.

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências da Saúde. Departamento de Odontologia. Área de Concentração Odontologia Preventiva e Social.

1. Odontalgia – Dissertação. 2. Prótese dentária– Dissertação. 3. Perda de dente– Dissertação. 4. Serviços de Saúde Bucal – Dissertação. I. Souza, Elizabethe Cristina Fagundes de. II. Título.

RN/UF/BSO Black D585

Divisão de Serviços Técnicos Catalogação da Publicação na Fonte UFRN/Biblioteca Setorial de Odontologia

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Dedicatória

Dedico este trabalho aos meus queridos

pais, José Adelino Dantas e Letice de

Azevedo Dantas, eternos exemplos de

amor, integridade, dedicação e

perseverança.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por ter iluminado o meu caminhar durante essa árdua trajetória e me

fortalecido a fim de que este sonho pudesse se concretizar.

Aos meus pais, pela total doação e apoio incondicional à felicidade dos filhos.

A Robson, pelo amor e dedicação com que vivenciou todas as etapas na construção

deste trabalho.

A minha orientadora, professora Betinha, pelo exemplo de ética e paixão pela pesquisa

que nos propicia um desejo incessante de busca pelo conhecimento. Com carinho, agradeço as

preciosas reflexões que me ampliaram o olhar sobre os diversos caminhos da pesquisa a

serem trilhados.

Aos irmãos, Eduardo Janser, Rossana e Eugênio, pelo exemplo de dedicação e apoio

fundamentais em todos os momentos. Eduardo e Rossana, obrigada pelo olhar sincero que

sempre desejava “boa sorte” e não me deixava desistir. Aos sobrinhos queridos Lucas, Luisa e

Isadora pela inspiração de um amor sincero.

A querida cunhada Elane, pelo exemplo de determinação, pelas palavras de carinho e

estímulo tão importantes ao longo desta árdua caminhada.

As queridas amigas Ana Larissa, Karen e Ana Maria, pela riqueza da nossa amizade

que vence o tempo, a distância e nos proporcionou o crescimento na vida.

Às professoras que examinaram o projeto da qualificação, Profª Aurigena e Profª

Raimundinha. Obrigada pelo estímulo e pelas preciosas sugestões, tão oportunas naquele

momento.

A Professora Edna Maria da Silva, pelo estímulo e oportunidade de experimentar a

pesquisa na iniciação científica.

A todos os professores do mestrado e a todos os professores convidados. Obrigada

pela riqueza das discussões teóricas e pelo incentivo à incansável busca do saber.

A todos os funcionários da biblioteca, pela total disponibilidade e simpatia com que

nos acolheram.

A todos os funcionários do departamento de preventiva, pelo incentivo e apoio.

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Aos colegas da turma do mestrado, pela agradável convivência, que propiciou um

crescimento conjunto. Em especial, aos amigos Altaíva, Ezilda e Wilton, a proximidade de

nossa convivência fez surgir uma bela amizade que nos fortaleceu, nos ajudou a superar

barreiras e prosseguir em prol de um objetivo comum.

Às amigas, Heloísa e Dona Teresinha, pela acolhida maravilhosa, pela confiança e

pelo incentivo, fundamentais nos momentos difíceis.

À querida Núbia, pela alegria na convivência do trabalho, pela delicadeza com os

pacientes e pela imensa contribuição.

Aos meus pacientes, pela compreensão nos momentos de ausência.

Aos entrevistados desta pesquisa, pela sincera disponibilidade e espontaneidade com

que contaram suas histórias, que, pela sua riqueza, indicaram novos caminhos a serem

trilhados.

À Prefeitura Municipal de São Tomé, na pessoa do Prefeito Francisco Estrela Martins,

do Secretário de Saúde, José Alcivan da Silva e da Coordenadora do Programa de Saúde da

Família, Alcélia Maurício.

A todos que, de alguma forma, torceram por mim!

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RESUMO

A compreensão ampliada dos efeitos da perda dentária exige escuta dos sujeitos que a experimenta. Este estudo, de abordagem qualitativa, investigou, na história odontológica de usuários do SUS, a partir do relato de suas experiências com os serviços de saúde bucal, os motivos que os levaram à perda dentária e as repercussões desta em suas vidas. A coleta de dados foi realizada por meio da técnica de entrevista narrativa, adaptada, utilizando-se roteiro semi-estruturado. Os sujeitos entrevistados, num total de seis (três da zona urbana e três da zona rural), foram usuários de Unidades de Saúde da Família. Consideraram-se os seguintes critérios de inclusão: presença de desdentamento (perda total em ambas as arcadas, ou em uma delas, ou perda parcial a partir de seis elementos em uma das arcadas); idade ente 25 e 59 anos; qualquer gênero; ser morador dos municípios de São Tomé/RN e Natal/RN. A partir do conteúdo das entrevistas foi elaborada a história odontológica de cada entrevistado. Tais narrativas, sistematizadas em histórias odontológicas, foram analisadas com base em estudo de Souza71 e na proposta de Schütze, sugerida por Jovchelovitch, Bauer34. Os resultados indicaram que a experiência de dor foi o principal motivo pela procura por assistência odontológica. As formas de enfrentamento da dor deram-se pelo uso de medicações caseiras e alopáticas e pela busca do serviço de saúde. A procura pela exodontia foi favorecida pela dificuldade de acesso geográfico ou pela grande demanda reprimida, o que produziu agravamento das lesões e descrédito na eficácia do tratamento restaurador. A prática do autocuidado através da escovação com juá ou creme dental e o controle do consumo de açúcar não foram suficientes para evitar a perda dentária. Foram identificados sentimentos de culpa relacionados à falta de cuidado. A aceitação da perda dentária como natural teve forte relação com a garantia de ausência de dor e a crença de fazer parte do processo de envelhecimento. A convivência das pessoas com a prótese dentária mostrou a diferença entre o que era natural e o que era artificial e, a partir daí, foram aparecendo situações de estranhamento com a prótese. A limitação da prótese quanto ao aspecto funcional pode ser compensada pela restituição da estética, ao possibilitar a expressão do sorriso. A partir deste estudo e considerando o elevado número de perdas dentárias, especialmente em populações de menor poder aquisitivo, que convivem com limitações próprias da condição de desdentado e ou com próteses de má qualidade que não reabilitam, adequadamente, sugere-se a realização de pesquisas de abordagem qualitativa que inclua, também, outros atores implicados na produção de cuidados e serviços de saúde – profissionais e gestores.

Palavras-Chave: Odontalgia; Prótese dentária, Perda de dente; Serviços de Saúde Bucal.

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ABSTRACT

For a complete comprehension of the effect of tooth loss is necessary to listen to the patients that have it. This study, of qualitative approach, investigate, in the dental history of users of SUS, listening to his/her experiences with the services of dental care, the reason that lead his/her to dental lost and the repercussion of this in his/her life. The collect of data was made by narrative interview, obeying to a pre-defined schema. The subjects interviewed were six (three of urban zone and three of rural zone), all of them were users of Family Health Units. The criterions of inclusion were the followings: the presence of tooth lost (total lost in both dental arch or in one of them, or partial lost in at least six elements in one of the arches); age between 25 and 59; male or female; to live in municipal district of São Tomé/RN or Natal/RN. Based on previous interviews was elaborated the odontological history of each patient. Such narratives, systemized in odontological history, were analyzed taking as base the studies of Souza71 and the proposal of Schutze, suggested for Jovchelovitch, Bauer34. The results show that toothache was the main reason for the search of odontological care. The patients confront the ache with home-made medicaments, allopathic ones, and searching for dental care. The searching for exodontics was stimulated for geographic access difficulties or for repressed demand, which as a result produced the aggravation of the lesions and the discredit in restoration’s treatment. The self-care practice of tooth-brush with juá or toothpaste and the controlled ingestion of sugar was not sufficient to avoid dental lost. Guilty sentiments were identified in relation with lack of care with teeth. The acceptance of dental lost as a natural factor is an important motivation in lack of pain and in the belief that it was a simple part of life in old age. Life with dental prosthesis makes clear the difference between which was natural and which was unnatural, and difficulties with the prosthesis appeared. The limitation of the prosthesis in its functional aspect can be compensated by esthetic restitution, making possible smiling expression. Starting with this study and considering the high number of dental lost, mainly in low-rent population, which live with toothless limitations or bad-quality prosthesis which do not rehabilitate adequately, we suggested the realization of qualitative researches which include, also, another actors in heath care services such as professionals and administrators.

Key-words: Toothache, Dental Prosthesis; Tooth loss; Dental Health Services.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Mapa do Rio grande do Norte

Figura 2 – Mapa de Natal com Distritos Sanitários, Bairros e Unidades de Saúde

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LISTA DE ABREVIATURAS

CEO Centro de Especialidades Odontológicas

CPO-D Índice de dentes cariados, perdidos e obturados

FUNRURAL Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural

INAMPS Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social

OMS Organização Mundial de Saúde

PNAD Programa Nacional por Amostra de Domicílios

PSF Programa de Saúde da Família

SIA/SUS Sistema de Informações Ambulatoriais do Sistema Único de Saúde

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..................................................................................................... 09

2 A TRAJETÓRIA METODOLÓGICA.................................................................... 16

2.1 Caracterização do estudo.............................................................................................. 16

2.2 Lugar da pesquisa......................................................................................................... 18

2.3 Sujeitos da pesquisa...................................................................................................... 21

2.4 Técnicas e instrumentos de coleta................................................................................ 22

2.5 Análise dos dados......................................................................................................... 24

2.6 Aspectos éticos............................................................................................................. 25

3 NARRATIVAS DE EXPERIÊNCIAS DE USUÁRIOS COM PERDAS

DENTÁRIAS: AS HISTÓRIAS ODONTOLÓGICAS.............................................. 26

3.1 Alegria.......................................................................................................................... 26

3.2 Força............................................................................................................................ 31

3.3 Paciência...................................................................................................................... 36

3.4 Coragem....................................................................................................................... 40

3.5 Simplicidade................................................................................................................. 45

3.6 Felicidade..................................................................................................................... 49

4 TRILHANDO PISTAS DA PRODUÇÃO SÓCIO-CULTURAL DA

PERDA DENTÁRIA................................................................................................ 56

4.1 Práticas odontológicas, dor de dente e perda dentária................................................. 56

4.2 Acesso, resolutividade e perda dentária....................................................................... 66

4.3 Algumas facetas do cuidar-se....................................................................................... 75

5 PROTESISMO: REVERSO DA PERDA DENTÁRIA E DE SUA

NATURALIZAÇÃO ................................................................................................ 85

5.1 Prótese como desejo e ilusão......................................................................................... 89

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................ 100

REFERÊNCIAS...................................................................................................... 103

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Introdução 9

1 INTRODUÇÃO

Compreender o processo de adoecimento exige aproximação ao cotidiano das pessoas,

buscando-se extrapolar a visão biologicista, historicamente predominante nos saberes e

práticas de saúde e considerar os aspectos psico-socio-culturais que integram a dinâmica

complexa do processo saúde-doença.

A perda de dentes é considerada tema de relevância para a saúde pública, tendo em

vista que, na maioria das vezes, é decorrente das doenças bucais mais prevalentes, cárie e

doença periodontal38,54,27. Tal importância ganhou maior destaque, no Brasil, a partir dos

elevados índices de perda dentária detectados nos diversos levantamentos epidemiológicos

realizados, nos últimos anos, e pelo conseqüente impacto negativo na qualidade de vida dos

indivíduos acometidos.

Para Oliveira54, o grau de perda dentária resultante do avanço das patologias bucais e

de traumatismos caracteriza o edentulismo como agravo. Dessa forma, este perpassa vários

fatores que vão desde a impossibilidade de realização de um tratamento restaurador devido ao

avanço das lesões bucais, o tipo de prática odontológica até as características culturais da

população.

Na ausência de intervenção profissional, as doenças bucais evoluem inicialmente de

forma assintomática, chegando a acometer os tecidos mais profundos do dente e provocando

situações em que há extrema dor, incômodo e sofrimento para o indivíduo. Apenas nesse

estágio tardio de evolução da doença, quando os sintomas dolorosos tornam-se fisicamente

não suportáveis e priva o indivíduo da realização de suas atividades cotidianas normais, o

usuário busca a resolução dos seus problemas nos serviços de saúde60,66.

Considerando a inexistência de uma atenção secundária estruturada e capaz de dar

suporte às demandas da atenção básica, o tipo de tratamento ofertado nesse nível de atenção

limita-se, basicamente, ao tratamento mutilador, o que tem contribuído para o elevado

número de extrações dentárias em dentes passíveis de conservação66,80,81.

Esse fato contraria um dos princípios doutrinários do Sistema Único de Saúde (SUS),

a integralidade da assistência, que diz: “as unidades prestadoras de serviços, com seus

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Introdução 10

diversos graus de complexidade, formam também um todo indivisível, configurando um

sistema capaz de prestar um atendimento integral”43.

Apesar de a perda dentária comprometer aspectos funcionais, estéticos e psicossociais

das pessoas acometidas e estar associada a sentimentos negativos e a situações de privação

social, observa-se acentuada naturalização dessa perda. Por um lado, quem a sofre associa a

algo natural e intrínseco ao processo de envelhecimento e, por outro lado, profissionais e

serviços de saúde priorizam a extração dentária como forma de cuidado e solução imediata

para o alívio da dor38,69,81.

Soma-se ainda o fato de o maior número de extrações dentárias ocorrerem em

populações de baixo nível socioeconômico81, provavelmente, devido ao menor acesso a

noções de cuidado em saúde bucal e também ao tipo de serviço odontológico ofertado.

Considerando que a essa parcela da população só são ofertadas ações básicas restritas, não

existindo ofertas de ações reabilitadoras, a população adulta permanece desdentada durante

toda a vida ou desenvolve múltiplas estratégias para superar a mutilação e recompor a auto-

imagem através da aquisição de próteses de baixa qualidade, na rede privada66.

Os avanços científicos alcançados nas diversas áreas de conhecimento e, entre estas,

na Odontologia, como por exemplo, nas especialidades de dentística e prótese, são inegáveis

em termos de benefícios e melhoria na qualidade de vida das pessoas. No entanto, a

“modernização” técnica na Odontologia não foi capaz de proporcionar melhoria no nível de

saúde bucal da população, já que esteve pautada em práticas de natureza curativista e

mutiladora, que elegeu a exodontia como o procedimento predominante.

Observa-se em alguns países desenvolvidos, por exemplo, Noruega e Estados Unidos,

marcante redução no número de dentes extraídos na população de adultos e idosos. Isso

guarda relação com uma mudança geral de atitude em relação à aquisição de hábitos

promotores de saúde bucal, associados a uma relevante evolução na filosofia de educação das

instituições formadoras de recursos humanos, refletindo-se também na clínica sob a forma de

uma incipiente mudança no paradigma pautado em ações de prevenção e promoção de

saúde82. Dessa forma, reconhece-se uma tendência mundial de redução do número de

edêntulos18, embora esse processo seja muito lento, necessitando de formas mais eficazes de

prevenção, controle da cárie e suas conseqüências.

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Introdução 11

Apesar de visualizarmos essa conquista em populações de melhor poder aquisitivo,

sabemos que indivíduos pertencentes a grupos de menor condição sócio–econômica ainda

convivem com altos índices de dentes perdidos. O mais recente levantamento das condições

de saúde bucal da população brasileira, SBBrasil 200340, como já referimos, destacou, além

de outros aspectos, a gravidade da perda precoce e seu incremento com o avanço da idade.

O levantamento das condições de saúde bucal de adultos e idosos, realizado em 1986,

mostrou que, no CPO-D (índice de dentes cariados, perdidos e obturados) de 22,5 para a

população de 35-44 anos, o componente extraído foi de 14,96 e representou 66,5% deste CPO-

D. Nessa mesma população, 3,74% necessitou de prótese total superior e 0,78% de prótese

inferior e na faixa etária de 50-59 anos, 5,72 e 0,97, necessitaram, respectivamente, de prótese

total superior e inferior42. Já no último levantamento das condições de saúde bucal da

população brasileira, realizado em 2003, vimos que a situação relativa ao componente perdido

pouco se alterou, ficando em 13,23, o qual representou 65,72% de um CPO-D de 20,13. Quanto

à necessidade de prótese, observou-se que 2,52% dos indivíduos necessitaram de prótese total

superior e 2,88 de prótese total inferior para a população de 35-44 anos. Na faixa etária de 65-

74 anos, 16,15% e 23,81% das pessoas necessitaram, respectivamente, de prótese total superior

e inferior40. Tais resultados também revelaram que mais de 28% dos adultos não possuem

nenhum dente funcional (todos os dentes foram extraídos, e os que restam têm a sua extração

indicada) em pelo menos uma das arcadas. Desses, mais de 15% necessitam de pelo menos

uma dentadura. A população idosa apresentou quase 26 dentes extraídos em média por pessoa,

e três a cada quatro idosos não possuem elemento dentário funcional68.

A análise dos dados explicita que, em 1986, 1,6 milhão de pessoas entre 35-59 anos

eram totalmente edêntulas, assim como não possuíam dentes artificiais e, somando-se a 1,5

milhão de indivíduos que necessitavam de prótese superior ou inferior, resultava em mais de

3 milhões de adultos e idosos que necessitavam de algum tipo de tratamento reabilitador.

Considerando a população de 2003, observou-se que 1,44 milhão de pessoas, entre 35-74

anos, estavam totalmente edêntulas e não possuíam nenhum aparelho protético. Estas

acrescidas aos 2,6 milhões que necessitavam apenas de prótese superior ou inferior,

acarretavam uma população de mais de 4 milhões de adultos e idosos que necessitavam repor

seus dentes perdidos54.

No Brasil, a realização de extrações múltiplas e em larga escala é considerada a

principal razão para o crescimento contínuo do CPO-D ao longo da vida dos indivíduos. O

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Introdução 12

diagnóstico epidemiológico realizado em 1986 mostra que a extração em massa dos dentes é

uma prática inevitável que acontece de forma mais evidente a partir dos 30 anos de idade. Até

esta idade, as pessoas ainda buscam atendimento na perspectiva de ter a sua saúde bucal

restabelecida, mesmo diante de dificuldades de acesso, da não resolutividade e da ineficácia

das ações nos serviços públicos odontológicos, além dos elevados custos no sistema privado

de atendimento59. De acordo com Pinto59 (p.27): “gradativamente as extrações começam a ser

aceitas como a solução mais prática e econômica tanto para os pacientes quanto para os

profissionais. Esses, afinal, em último caso sempre têm a compensação financeira dos ganhos

proporcionados pelas próteses”.

Na população adulta brasileira, a figura do desdentado representa o reflexo de práticas

mutilatórias, hegemônicas, nos serviços públicos odontológicos, assim como da priorização

no atendimento, quase exclusiva, de escolares de seis a doze anos, em detrimento de adultos e

idosos. Sendo assim, o declínio no índice de cárie em adolescentes e crianças não tem sido

verificado na população adulta e idosa18,54,82.

Sob as mais diversas razões, em um acentuado número de serviços, a única forma de

atendimento ofertado à população era a exodontia. Até 1992, esse procedimento estava entre

aqueles mais bem remunerados pelo Sistema de Saúde, o que explicava, segundo o Ministério

da Saúde, os quase 35 milhões de exodontias realizadas anualmente. Em janeiro de 1992, foi

assinada uma portaria que alterou radicalmente a Tabela de Financiamento dos Serviços

Odontológicos do SIA/SUS (Sistema de Informações Ambulatóriais do SUS), propondo uma

maior valorização de ações de promoção de saúde e prevenção de doenças82. No entanto, ao

longo da história de construção das políticas públicas de saúde, as ações de saúde bucal

ofertadas à população adulta eram basicamente de natureza mutilatória e reparadora e não

sofreram grandes alterações logo após a implementação do Sistema Único de Saúde em

199035.

Estudos epidemiológicos evidenciam a falência da atenção odontológica curativista

restrita, visto que não proporcionou melhoria no nível de saúde bucal da população. Isso

ficou evidente através de uma avaliação realizada pela OMS (Organização Mundial de

Saúde), na Nova Zelândia, no fim da década de 1970, mostrando que lá estava a melhor

cobertura às necessidades restauradoras da população escolar (13-14 anos) e a maior

percentagem de edêntulos entre sete países industrializados estudados18 (Hunter citado por

Weyne82).

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Introdução 13

Esse modelo de prática cirúrgico-mutilador hegemônico na odontologia é centrado

essencialmente no dentista, no dente e na doença e desconsidera a articulação com ações de

promoção. Desse modo, tem produzido uma naturalização da perda dentária que a

Odontologia ajudou a institucionalizar através da separação do dente do corpo70. Como

conseqüência, tal modelo produziu também um quadro caótico na saúde bucal composto por

milhões de desdentados, adultos e idosos, os quais necessitam de reposição de seus dentes e

não têm acesso ao serviço especializado, visto que o mesmo não é ofertado no âmbito do

serviço público54.

A partir de tais constatações, visualizamos que a perda dentária foi reproduzida e

naturalizada tanto pelo serviço de saúde quanto pelo usuário, de forma acrítica,

negligenciando-se os diversos aspectos subjetivos que permeiam e interferem neste processo.

Os dados epidemiológicos, por si sós, revelam a gravidade do problema perda dentária.

No entanto, a limitação da leitura meramente quantitativa desses dados está, principalmente,

em não expor o aspecto subjetivo relacionado à perda dentária. O estudo de Vargas80, ao

analisar pessoas que experimentaram a perda dentária, identificou problemas tanto funcionais

quanto psicossociais como dificuldades para falar e mastigar, modificações no comportamento

(isolamento, depressão e agressividade), dificuldade de inserção no mercado de trabalho e

alterações no convívio social69,80. Em geral, essas alterações emocionais podem ser decorrentes

da relação entre perda dentária e envelhecimento, desencadeando no indivíduo o sentimento de

“ser velho”69.

Na tentativa de minimizar essa dívida assistencial e prover uma reorganização da

atenção à saúde bucal, o Ministério da Saúde lançou as diretrizes para a Política Nacional de

Saúde Bucal41, intitulada de Brasil Sorridente, embasada, principalmente, pelo último

levantamento das Condições de Saúde Bucal da População Brasileira. Essas diretrizes

apontam para ampliação da atenção básica, garantindo o acesso aos demais níveis de atenção,

buscando assegurar a integralidade das ações em saúde bucal. É nesse sentido que propôs a

implantação dos Centros de Especialidades Odontológicas (CEOs), como unidades de

referência para as equipes de saúde bucal em nível regional41. Tal política encontra-se em

implantação nos diversos municípios brasileiros, em graus diferenciados, conforme as

singularidades de cada lugar, cujo efeito ainda não é palpável do ponto de vista de resultados

de avaliação, mas representa iniciativa importante de enfrentamento do problema da perda

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Introdução 14

dentária e abre perspectivas de mudança do modelo hegemônico, oriundo da Odontologia de

Mercado como o denomina Capel17, para um modelo integral centrado no usuário70.

Diante da complexa problemática que envolve as perdas dentárias, que perpassa fatos

decorrentes da gravidade das lesões bucais, do modelo de práticas mutilador e iatrogênico,

além de fatores culturais da população e dos serviços, torna-se necessário desviarmos o olhar

para o indivíduo concreto, em sua subjetividade, para tentarmos compreender a experiência

do desdentamento, assim como a possibilidade de conviver com a prótese. A partir da

ampliação da escuta desse usuário, talvez seja possível contribuir na definição de pistas que

nos auxiliem na mudança de modelo. É nessa perspectiva de contribuição que se inclui o

presente estudo.

A complexidade de sentidos, individual e coletivo, associada à perda dentária sugere a

necessidade de compreendermos a condição de desdentado em uma abordagem qualitativa. O

conhecimento desses relatos e singularidades dos indivíduos poderá ampliar o significado dos

dados epidemiológicos relativos ao edentulismo, ultrapassando-se a leitura meramente

quantitativa para a compreensão dos efeitos da perda dentária nas subjetividades de quem a

sofre. Espera-se que os resultados desta investigação possam contribuir na reorientação das

práticas em saúde bucal, no sentido de salientar a importância de se resgatar a antiga dívida

social e humana produzida pela prática odontológica mutiladora. A importância da presente

investigação ressalta-se também pela existência de poucos estudos que tratem do tema perda

dentária numa abordagem qualitativa.

O objetivo deste estudo é investigar, na história odontológica de usuários do SUS, a

partir do relato de suas experiências com os serviços de saúde bucal, os motivos que os levaram

à perda dentária e as repercussões desta em suas vidas.

A apresentação dos capítulos está descrita a seguir.

Na introdução buscou-se, de forma sucinta, contextualizar o problema perda dentária,

através de uma aproximação dos dados epidemiológicos sobre perdas produzidos na literatura,

bem como o significado destes no contexto sócio-cultural de vida dos indivíduos. Esta fase

termina por explicitar o objetivo que norteou a realização desta pesquisa, assim como a

relevância do estudo, no sentido de contribuir para a qualificação da atenção odontológica.

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Introdução 15

O segundo capítulo apresenta a trajetória metodológica, com descrição de algumas

características do contexto social de realização da pesquisa, os critérios de inclusão para os

entrevistados, além de informações sobre o método utilizado e a forma de analisar o material

coletado no campo.

No terceiro capítulo foram apresentadas as histórias odontológicas a partir da

sistematização das narrativas dos entrevistados, que receberam nomes fictícios. Foram

compostas seis histórias, que expressam a sistematização dos resultados empíricos da pesquisa.

O quarto e o quinto capítulos foram produzidos a partir dos temas emergentes nas

narrativas que compõem as histórias odontológicas dos entrevistados. Tais temas foram

discutidos a partir do diálogo entre os conteúdos das narrativas e da literatura revista. No quarto

capítulo, os temas destacados foram: experiência de dor e as suas formas de enfrentamento

diante da inevitabilidade da perda dentária; o acesso ao serviço ao longo da trajetória

odontológica dos entrevistados, além da resolutividade das ações em saúde ofertadas a esses

sujeitos; o cuidado, tanto em relação às formas como as pessoas se autocuidaram, quanto ao

tipo de cuidado recebido na vivência dos serviços de saúde. A questão da prótese dentária

como uma forma de conviver com a condição de desdentado, mas que também apresenta suas

limitações, foi o tema abordado no quinto capítulo.

No sexto capítulo, apresentamos nossas considerações finais a partir da convergência e

das divergências de sentidos presentes nas narrativas dos usuários.

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A Trajetória Metodológica 16

2 A TRAJETÓRIA METODOLÓGICA

2.1 Caracterização do estudo:

Este estudo é de abordagem qualitativa e foi realizado a partir de relatos de pessoas

que vivenciam a experiência da perda dentária.

A estratégia metodológica utilizada foi a análise da narrativa, esta entendida como a

forma de os indivíduos ou grupos estabelecerem encontros entre si ou com determinadas

situações71. De acordo com Kleinman, citado por Souza71, as narrativas representam o

significado das experiências dos indivíduos com a doença as quais sofrem influências da

coletividade.

O caráter dinâmico de um discurso consiste em reconhecer o vínculo exigido entre o

discurso e seu contexto de interlocução, incluindo um sujeito dirigido a alguém, onde sua fala

representa uma resposta relacionada a eventos, pessoas ou outras falas. Desta forma, o

discurso representa um posicionamento em um ambiente de interação e não uma subjetividade

isolada64.

Para Rabelo64, o discurso relaciona-se a algo que está além do próprio ser e causa

efeitos concretos sobre o presente vivido pelos indivíduos. As narrativas construídas por estes

não refletem de forma imperfeita os fatos que foram vistos e feitos, nem um mundo de idéias

ou representações limitado a si próprio, mas a forma como é organizada sua experiência pela

interação com outros.

Além de reconhecermos o fato de a experiência possuir múltiplas facetas, fluidez e

indeterminação, ela representa uma problematização e um entendimento da vivência dos

indivíduos em seu mundo, remetendo-nos ao conhecimento de consciência e subjetividade e,

principalmente, intersubjetividade e ação social. Anterior à subjetividade viria a

intersubjetividade, uma vez que esta se dirige ao ‘presente vivido’, onde os indivíduos

executam suas ações, compreendem-se e dividem o mesmo tempo e o espaço4. O estudo das

narrativas representa a forma de ter acesso às experiências dos indivíduos e compreender o

seu significado4,36. Autores da área da Antropologia Médica reconhecem a relevância da

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A Trajetória Metodológica 17

experiência da doença no estabelecimento de maior ética e empatia no diálogo entre

profissional e paciente e a sua rede de cuidados36.

As histórias clínicas são também narrativas construídas na interação de discursos entre

profissional e paciente. Para Castiel16, por meio da interpretação médica há uma reformulação

da estória de adoecimento do paciente e uma transformação desse relato em história clínica, a

qual será destrinchada em diagnóstico, tratamento ou possíveis encaminhamentos. Isso

fornece subsídios para os pacientes construírem suas próprias narrativas.

A história clínica surgiu inicialmente entre os gregos como uma necessidade de

registro escrito da observação médica do adoecimento individual. Desde então tem passado

por diversas modificações, principalmente após o advento da psicanálise, a qual introduziu os

aspectos subjetivos do paciente na produção da doença, potencializando novas formas de

conceber a doença (Entralgo, citado por Souza71).

Souza71 utilizou a idéia de patografia a partir de sua revisão sobre história clínica em

que autores como Pedro Lain Entralgo destacou o relato patográfico psicanalítico baseado em

fatos reais e “fantasiosos”; Luis David Castiel sugeriu a construção narrativa das hestórias

clínicas baseadas em acontecimentos e elementos fictícios; e Anne H. Hawkins produziu

relatos patográficos com base na experiência de doentes reais articulada com personagens da

literatura.

A partir desses referenciais, em seu estudo com doentes de câncer de boca, Souza71

utilizou a noção de “hestórias patográficas”, aproximando-se das idéias de patografia e

“hestórias clínicas” apresentadas pelos autores destacados acima. A partir da estratégia

metodológica das “hestórias patográficas”, a autora buscou nas narrativas dos doentes a trama

de situações repercutidas nos corpos doentes, vividas consciente e inconscientemente.

Para Souza71 a patografia possibilita:

“colocar a vida doente em análise, destacando aqueles aspectos habitualmente menos considerados no desenho das pesquisas e de menor relevância na própria instituição das práticas de saúde – a produção do sofrimento humano – seus efeitos, suas repercussões e seu entorno” (p.23).

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A Trajetória Metodológica 18

Com base nas referências acima, propomos, nesta investigação, a noção de “história

odontológica” para, a partir de narrativas de pessoas em condição de desdentamento,

compreender como se deu a perda dentária e quais as repercussões desta em suas vidas.

A história odontológica aqui proposta refere-se ao resgate da relação da pessoa em

condição de desdentamento com os serviços de saúde e com os cuidados bucais, incluindo o

autocuidado. Buscamos compreender como se deu o processo de produção da perda dentária,

suas repercussões e as re-significações realizadas frente à condição de desdentamento.

2.2 Lugar da pesquisa

A pesquisa foi desenvolvida nos municípios norte-riograndenses de São Tomé e Natal

(figura 1). Figura 1 - Mapa do Rio Grande do Norte

Fonte: IBGE, 2000

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A Trajetória Metodológica 19

O município de São Tomé, localizado na mesorregião Agreste Potiguar e na

microrregião Borborema Potiguar do Estado, é considerado de pequeno porte e limita-se com

os municípios de Lajes, Caiçara do Rio do Vento, Campo Redondo, Lajes Pintadas, Santa

Cruz, Sítio Novo, Barcelona, Rui Barbosa, Currais Novos e Cerro Corá, o que abrange uma

área de 872 km2. De acordo com o censo de 2000, a população total residente é de 10.798

habitantes, com 5.345 do sexo masculino (49,50%) e 5.453 do sexo feminino (50,50%), dos

quais 5.600 vivem na zona urbana (51,90%) e 5.198 na zona rural (48,10%). O município

dista 107 km de Natal (capital), e a sua densidade demográfica é de 12,36 hab/km. A

população estimada em 01.07.2005 foi de 10.380 habitantes44. Observa-se que, entre os anos

de 2000 e 2005, São Tomé apresentou um crescimento populacional negativo.

Após a década de 1970 a população rural do Estado iniciou uma etapa de crescimento

negativo em virtude de crise na base da economia do Estado, a qual era financiada

principalmente pela atividade agropecuária, pela mineração e pela produção do sal. Os censos

revelam uma migração crescente do campo para a cidade. Inicialmente este deslocamento

seria para a sede do município e depois para municípios com um maior grau de

desenvolvimento econômico no Estado. Essa migração deu-se especialmente em busca de

emprego, do ensino superior e de melhores condições de vida. Esse fato produziu um aumento

da densidade urbana entre os anos de 1980 e 2000, o que provocou uma valorização do espaço

urbano e, conseqüentemente, as pessoas de menor poder aquisitivo tiveram de ocupar as áreas

mais distantes do centro, como os loteamentos irregulares ou favelas22.

A escolha do município de São Tomé deu-se em função da ausência de um serviço

odontológico especializado no local, na época de elaboração do projeto de pesquisa, tanto na

esfera pública quanto na privada, com inexistência de articulação, nessa época, a um serviço

de referência regional. Esse fato favoreceu o exercício de práticas mutilatórias que continuam

sendo naturalizadas pelos serviços e pela população. Considerou-se também a viabilidade

operacional da pesquisa pelo fato de a pesquisadora ter fácil acesso às unidades de saúde,

visto que é integrante de uma das Equipes de Saúde Bucal do PSF (Programa de Saúde da

Família) naquele município.

Vale destacar que, em julho de 2006, foi inaugurado um CEO (Centro de

Especialidades Odontológicas) em São Paulo do Potengi, o qual serve como referência para a

atenção secundária odontológica dos municípios da região e, dentre estes, o município de São

Tomé. Isso poderá sugerir uma modificação nas ações odontológicas desenvolvidas naquele

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A Trajetória Metodológica 20

município em direção à construção do conceito de integralidade nas ações em saúde. Contudo,

consideramos que, no período de realização das entrevistas (novembro a dezembro de 2006),

ainda não havia repercussões da implantação desse Centro no que se refere ao impacto na

situação de perda dentária no município de São Tomé.

Em São Tomé, a rede de saúde dispõe de 01 hospital, 01 policlínica, 01 centro de

saúde, 05 postos de saúde, 29 leitos8. A assistência odontológica é distribuída em quatro

consultórios localizados no centro de saúde, no posto de saúde e no hospital, todos situados na

zona urbana, dando suporte às demandas das equipes de saúde bucal de todo o município,

inclusive da zona rural. A escolha da zona rural como referência de moradia para os

entrevistados deu-se em função das precárias condições de vida em que vive essa população,

assim como da dificuldade de acesso a serviços odontológicos por parte de algumas

comunidades rurais.

O município de Natal, capital do estado, possui outra realidade, ao dispor de melhor

estrutura de serviços odontológicos, tanto na atenção básica, com a expansão das Equipes de

Saúde Bucal na Estratégia Saúde da Família, o que sugere maior acesso a informações

relativas à prevenção e à promoção de saúde bucal à população urbana, quanto na assistência

especializada que, supostamente, dá suporte às demandas originárias da rede básica.

A escolha do bairro de Cidade Nova (figura 2), localizado no Distrito Oeste da cidade,

deu-se em função deste ter sido o primeiro Distrito a implantar PSF, em Natal, e a Unidade de

Saúde da Família do bairro foi uma das primeiras a ser implantada, em 1999. Considerou-se,

da mesma forma, facilidade de acesso da pesquisadora ao local.

A ocupação da área de Cidade Nova deu-se na década de 1960 e, em 1971, foi

instalado o “forno do lixo” na região, por iniciativa da Prefeitura Municipal de Natal. Com

isso, foi se instalando uma população carente, naquela região, que dependia do lixo para

sobreviver. Os lotes existentes na área também foram adquiridos por famílias provenientes do

interior do Estado, que vinham para Natal à procura de trabalho. A partir daí, teve início

instalação de equipamentos urbanos como escolas, postos de saúde, linha regular de ônibus,

além de outros serviços básicos. Apenas em 1994, Cidade Nova foi oficializada como bairro.

A população estimada do bairro, em 2005, é de 15.889 habitantes e limita-se ao norte com o

bairro de Cidade da Esperança, ao sul com Pitimbu, ao leste com Candelária e a oeste com

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A Trajetória Metodológica 21

Guarapes, Planalto e Felipe Camarão. O bairro possui um estabelecimento de saúde, que é a

Unidade de Saúde da Família Cidade Nova32.

Figura 2 - Mapa de Natal com Distritos Sanitários, Bairros e Unidades de Saúde.

Fonte: SEMURB – Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo -2005

2.3 Sujeitos da pesquisa

A escolha dos entrevistados ocorreu, de forma intencional, entre usuários do SUS,

freqüentadores das Unidades de Saúde da Família referidas que sofreram perda dentária em

algum momento de suas vidas. O número de entrevistados foi delimitado após ter sido

realizada leitura do material coletado nas entrevistas, a partir do critério de saturação de

informações76.

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A Trajetória Metodológica 22

De acordo com Turato76, não se pode delimitar a priori o número de entrevistados

anteriormente à experiência de pesquisa. Após estar ambientado no local da pesquisa, o

pesquisador analisará os casos emergentes naquele campo de acordo com o propósito de

composição da amostra e, durante a coleta de dados ou ao término desta, o investigador

poderá dizer a quantidade de sua amostra. O autor ressalta a possibilidade crescente de

inclusão de entrevistados de acordo com os interesses da pesquisa.

Na composição da amostra partiu-se de dois critérios principais: ser usuário de

Unidade de Saúde da Família, ter presença de desdentamento e idade entre 25 e 59 anos,

independentemente do gênero. Tal faixa etária foi escolhida com base no referencial

epidemiológico que mostra aumento no número de extrações a partir dos 25 anos81, bem como

após os 30 anos, quando estas ocorrem em larga escala59. Associou-se ao referencial

epidemiológico a classificação demográfica de idade adulta na faixa entre 20-59 anos65. Para

presença de desdentamento, considerou-se perda total em uma das arcadas ou nas duas

arcadas (maxilar e mandibular), ou perda parcial a partir de seis elementos em uma das

arcadas. Foram excluídas aquelas pessoas que não eram usuários de Unidades de Saúde da

Família, assim como as que não concordaram em participar da pesquisa.

No município de São Tomé, além dos critérios anteriormente descritos, só foram

incluídos usuários que moram na zona rural e que sempre residiram no município.

Em Natal, além dos critérios já descritos, foram incluídos na pesquisa aqueles usuários

que sempre residiram no Distrito Oeste da cidade ou que vieram a residir no mesmo até a

idade de 25 anos, visto que nessa faixa etária observa-se um aumento considerável no número

de exodontias realizadas, de acordo com a literatura citada anteriormente. Então foram

selecionados usuários, freqüentadores da Unidade de Saúde da Família Cidade Nova,

localizada naquele distrito, por este ter sido o primeiro distrito a receber o Programa de Saúde

da Família em Natal, como também pela facilidade de acesso ao bairro pela pesquisadora,

conforme referimos anteriormente.

O total de pessoas entrevistadas foi seis, sendo três residentes na zona urbana e três na

zona rural. A partir daí foram construídas seis histórias odontológicas.

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A Trajetória Metodológica 23

2.4 Técnicas e instrumentos de pesquisa

Utilizou-se a entrevista narrativa como estratégia de coleta de dados. De acordo com

Jovchelovitch e Bauer34, esse é considerado um tipo de entrevista não-estruturada, em

profundidade, que assume características especiais. O pressuposto dessa entrevista consiste no

fato de a perspectiva do informante ser mais bem explicitada nas histórias através da

utilização de sua própria linguagem na narração dos eventos, em que se deve minimizar a

influência do entrevistador. Dessa forma, a narrativa evidencia a realidade vivenciada por

aqueles que contam a história e possibilita interpretações individuais do mundo.

As formas de conduzir a entrevista, de acordo com Turato77, podem ser de três tipos:

dirigida, semidirigida e não-dirigida, apesar da literatura referir-se aos termos estruturada,

semi-estruturada e não-estruturada. Para o autor, na entrevista semidirigida, os dois

integrantes possuem momentos que podem dar a direção, o que favoreceria a coleta de dados

de acordo com o objetivo proposto. O entrevistador deve considerar determinados aspectos da

fala do informante: 1- palavras que contêm elementos relevantes podem despertar, no

observador, expressões faciais ou ruídos que estimulem o sujeito a comentar mais o assunto;

2- o entrevistador, ao considerar uma fala incompleta, pode sugerir que o entrevistado se

aprofunde sobre o assunto; 3- quando o pesquisador avalia que a fala ficou obscura, pode

solicitar que o entrevistado explicite com mais clareza o que quis dizer.

Neste estudo, utilizou-se a perspectiva de entrevista narrativa, adaptando-a a um

roteiro de temas a serem explorados durante a conversa. Dessa forma, a entrevista adquiriu

caráter semidirigido.

O estudo das narrativas originou-se da Poética de Aristóteles e tem apresentado grande

relevância nos últimos anos, em virtude de uma maior conscientização sobre a importância de

contar histórias na conformação dos fenômenos sociais. A narrativa possibilita que as pessoas

relembrem acontecimentos, gerem uma seqüência de acordo com suas experiências e

obtenham supostas explicações para os fatos. A experiência e o modo de vida das diversas

comunidades, grupos sociais e subculturas determinam as palavras e sentidos das histórias

contadas34. De acordo com Jovchelovitch e Bauer34, o ato de contar histórias está relacionado

tanto à dimensão cronológica em que há uma seqüência de eventos, quanto à dimensão não

cronológica, em que o todo será constituído pela sucessão dos fatos, ou pela apresentação de

um enredo. Por isso, na análise das narrativas é importante a identificação do enredo. Ainda

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A Trajetória Metodológica 24

de acordo com esses autores, a narrativa representa uma tentativa de ligação dos

acontecimentos descritos em relação ao tempo e ao espaço.

Jovchelovitch e Bauer34 também destacaram que a coerência e o sentido da narrativa

serão dados pelo enredo, que também fornece o contexto para a compreensão dos

acontecimentos, atores, descrições, objetivos, moralidade e relações que integram a história.

Na narrativa, o enredo possibilita que a história tenha começo e fim, pois sabemos que a vida

humana e grande parte dos fenômenos sociais não possuem início ou fim definidos. O enredo

também estabelece critérios para selecionar os acontecimentos que farão parte da narrativa.

Desse modo, a compreensão da narrativa se dá tanto pela seqüência cronológica dos eventos,

a qual permite uma interpretação sobre o uso do tempo pelo contador da história, quanto pelo

aspecto não cronológico, evidenciado nas funções e sentidos do enredo.

Como já referido, neste estudo elegemos a técnica da entrevista narrativa adaptada a

roteiro semi-estruturado (apêndice II), com a pretensão de construir a história odontológica de

cada usuário entrevistado. Dessa forma, foi realizada uma investigação do processo de

produção da perda dentária através do relato de indivíduos pertencentes a diferentes

realidades, buscando identificar os motivos da perda dentária, bem como as suas repercussões

na vida dos indivíduos.

2.5 Análise dos dados

Os conteúdos das entrevistas foram sistematizados em narrativas, buscando-se

construir a história odontológica de cada entrevistado, à semelhança da proposta de estudo

realizado por Souza71. A partir da construção dessas histórias, foram identificados e

sistematizados os temas e situações predominantes no enredo da narrativa que caracterizaram

a produção da perda dentária em cada história, considerando a existência de sentido e

coerência interna dos fatos. Em seguida, foram explorados a partir de aporte conceitual e

referências teóricas sobre os mesmos.

Na análise das narrativas, consideramos também a proposta de Schütze citado por

Jovchelovitch e Bauer34, que propõe seis passos: 1- transcrição detalhada do material verbal;

2- divisão do texto em material indexado (que possui referência concreta a “quem fez o que,

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A Trajetória Metodológica 25

onde e por quê”) e não-indexado (revela valores, juízos e toda forma de uma generalizada

“sabedoria de vida”); 3- utilização dos componentes indexados do texto para a análise do

ordenamento dos acontecimentos de cada indivíduo, que seria as “trajetórias”; 4- investigação

das dimensões não-indexadas como forma de “análise do conhecimento” (opiniões, conceitos

e teorias gerais, reflexões e divisões entre o comum e o incomum que possibilitam a

construção das teorias operativas); 5- agrupamento e comparação das “trajetórias”

individuais; 6- identificação de trajetórias coletivas a partir do estabelecimento de

semelhanças entre as trajetórias individuais34,36.

2.6 Aspectos éticos

O projeto de pesquisa foi apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob registro 135/06. Os participantes foram

informados sobre os objetivos da pesquisa e todas as implicações que estão descritas no

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Anexo I), seguindo as diretrizes e normas de

pesquisas envolvendo seres humanos da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 26

3 NARRATIVAS DE EXPERIÊNCIAS DE USUÁRIOS COM

PERDAS DENTÁRIAS: AS HISTÓRIAS ODONTOLÓGICAS

As narrativas dos usuários entrevistados, aqui apresentadas sob a forma de histórias

odontológicas, foram construídas a partir do conteúdo das entrevistas realizadas. Tivemos o

cuidado de evitar qualquer forma de identificação dos usuários, atribuindo a eles nomes

fictícios. Esses entrevistados narraram as suas experiências com as perdas dentárias

vivenciadas em contextos diversos.

Uma abordagem focalizada na experiência possibilita-nos perceber dimensões

importantes da aflição e do tratamento que não estão mostrados nem nos estudos realizados

sob a ótica biomédica, nem nas tradicionais pesquisas antropológicas e sociológicas

realizadas4.

As entrevistas trouxeram à tona as experiências dos indivíduos com a perda dentária,

constituindo narrativas que resultaram na composição de histórias odontológicas dos

entrevistados. A partir delas buscamos compreender o significado do sofrimento e da perda

dentária na vida desses indivíduos. Apresentamos a seguir seis histórias odontológicas,

construídas a partir dos relatos dos entrevistados, às quais atribuímos identidades fictícias de

Alegria, Força, Paciência, Coragem, Simplicidade e Felicidade. A escolha desses nomes foi

baseada em características pessoais dos entrevistados, percebidas pela pesquisadora durante a

realização das entrevistas.

Alegria

Mulher, 55 anos, separada, 3 filhos, agricultora, residente na zona rural

Aos 15 anos, Alegria revelou que foi extrair um dente na cidade. “Esse dente doeu

tanto, ah meu Deus... eu passava a noite todinha mamãe me balançando...” Contou-me que

teve hemorragia e perdeu cerca de 3 litros de sangue. Pensou que ia morrer, “aí eu me lembro

que a pessoa que veio comigo voltou lá no dentista de novo, pegou uma lanzona, quando

acabar, botou assim no dente, encarcou bem muito aquela lã, aí estancou, deixou de sair

sangue, mas foi sangue franco, mesmo!” Depois a hemorragia acabou e o dente não doeu

mais.

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 27

Naquela época, Alegria morava na zona rural, e sua casa ficava distante das demais

residências da região. Seu pai trabalhava em outra cidade, para arranjar dinheiro para o

sustento da família. Ficava com sua mãe em casa. Confessou-me ter tido uma vida muito

aperriada e sofrida. Quanto à alimentação, contou-me que havia sido muito deficiente. “Aí

nós fumo criada aquelas pessoa fraca... né, a gente não tinha aquelas resistências, que passa

bem, que come aqueles comer bem fortificado, a gente fica aquelas pessoa forte, né, aí eu

acho que por aí foi que começou os dente a ficar fraco, né, e começou a se furar”.

Associou seus dentes fracos à vida sofrida que levara. “Eu acho assim que foi... eu

acho assim que foi procedida de mal... de mal passar dia, assim, porque a gente foi criado

aquela vida... que a gente, olhe, ninguém teve um fortificante pra mode confortar os dentes, o

nascimento dos dentes, a gente foi aquela pessoa sofrida”. Narrou um episódio que ocorreu

aos 8 anos de idade, em que chorou com dor de dente. Passava cinco, seis dias dentro de uma

rede, sem dormir nem de dia nem de noite. Sua mãe lhe dava aqueles remédios de purgante de

azeite de carrapato. Com dois, três dias aquele dente melhorava e deixava de doer. Contou-me

que sua mãe colocava pimenta do reino pisada dentro do dente e, às vezes, cravo. Comentou

que aquela lã de cravo chegava a passar até um mês dentro do dente, “... e lá se foi, e lá se foi,

né, e os dente tudo se estrangando...”.

Após seu casamento ainda continuou com aquela vida sofrida. Deixava as filhas

pequenas com a vizinha e na quinta-feira ia extrair. “Saía de casa de 5 horas, chegava aqui

distraía o dente, e eu voltava pra trás quando chegava em casa era 12 horas em ponto, agora

isso no pé, minha fia, mais era sofrimento, mais eu digo: eu arranco esse dente...!”.

Indaguei: mas ia extrair? Ela respondeu que sim, mais ou menos de 15 em 15 dias.

Contou-me que algumas vezes o doutor não estava ou faltava energia elétrica e, então, dava a

viagem perdida, “mas nunca esmulici, até que terminei... extraí tudinho num deixei nem um

caco na boca. E graças a Deus de dor de dente hoje tou, tou salva, e dou muito valor a

pessoa que extrai um dente, porque precisa de muito nervo, a pessoa que dá pra ser um

doutô, extrair um dente, tirar, Ave Maria eu acho muito admirável...,(risos) dou muito

valor!”. Achava que um “doutor” precisava de muito nervo!

Perguntei-lhe o porquê. Ela respondeu que achava muito difícil a pessoa ter aquela

destreza para retirar um dente tão cravado na boca: “Ter aquele nervo pra extrair aquele

dente, puxar ele com um alicate e ele voar fora e a pessoa ficar salva, (risos) daquele dente,

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 28

eu acho muito importante o doutô extrair um dente”. Interroguei o que seria para ela ficar

salva do dente. “Ave Maria é uma graça!” Falou, referindo-se tanto ao fato de ela mesma

ficar salva do dente, quanto à importância da atitude do profissional “que arranca pra gente

ficar livre dele”. Indaguei-lhe novamente por que achava tão importante. Ela respondeu que

seria o fato de o profissional ter nervo para extrair aquele dente, assim como a cicatrização

daquela “cisura aberta”. Perguntei, então, o que a tinha feito querer extrair os dentes. “Eu

achava assim..., porque as dor que eu sofria, né, passava um noite, duas noite, três sofrendo

dentro de uma rede, né, aquelas dor maior do mundo, porque uma dor de dente é triste...é

triste demais!” Perguntei: como é para a senhora a dor de dente? “Ela é assim minha fia, ela

dá aquela dor... Ave Maria, furando... aquilo chega dói até os caroços dos olhos da gente, é

muito triste, tirana a dor de dente!”. Falou-me que um dente estragado na boca poderia

trazer muitas doenças, trás até a morte. Que a pessoa poderia ficar salva daquilo, e destacou:

disse que as pessoas não têm cuidado “de fazer a limpeza da boca e graças a Deus foi o que

fez eu extrair de um por um e terminar...”. Pedi-lhe para falar como seria esse cuidado. Falou

que seria pelo sofrimento de dor vivido e pelo mau hálito que fica naquela pessoa “que a

gente vê que tem dente estragado na boca”. Referiu-se a isso como um descuido, uma vez que

a pessoa poderia ter uma boca saudável livre. Indaguei o que ela fazia para cuidar dos dentes.

Respondeu que escovava, mas nem sempre tinha pasta, era difícil. Então escovava com juá ou

carvão. Perguntei: com carvão, como era? Relatou que pisava o carvão, fazia aquele pozinho,

aquela gominha, colocava na escova e escovava. Também se referiu à utilização da raspa do

juá. Mas, confessou que isso “num era bem cuidado não”, especialmente pelo fato de não

haver uma freqüência diária na escovação. Contou, então, que finalmente extraiu todos os

dentes: “E até que hoje tou com a boca limpa de dente, e hoje não sinto mais dor de dente,

pra mim, Ave Maria foi a maior graça, mais porque eu tinha aquele cuidado, eu tinha aquela

vontade, meu desejo era extrair tudinho... (risos)”.

Pedi-lhe que falasse como é que conseguia chegar até o dentista. Respondeu que era a

vontade que tinha de extrair. Era o maior sofrimento. Deixava os filhos com a sogra e vinha

na companhia de uma vizinha, que também vinha extrair. Andava duas léguas a pé. Após

meia hora da extração, retornava para casa. Indaguei: O que a senhora achava do

atendimento? Ela respondeu que fora mais ou menos. Era umas 10 ou 15 pessoas para serem

atendidas. O dentista chamava o paciente, aplicava injeção (a anestesia) e mandava aguardar.

Após 30 minutos, chamava novamente pela ordem: “aí pegava o alicatão e começava a

puxar... de repente extraía”.

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 29

Contou-me da hemorragia que teve. Sua sogra disse que era fraqueza e fez um pirão.

Após comer o pirão o dente não sangrou mais. Perguntei-lhe se havia algum outro tipo de

tratamento. “Eu acho que não, aqui não, era só isso mesmo...” Contou-me também que

aquele fora o primeiro dente que havia perdido, um queixar (molar). Perguntei como havia

sido com os outros. Falou que os dentes começaram a se furar e doer, que ele passava uma

noite, duas doendo. Contou que sua mãe era da agricultura, que não tinha aquela atividade...,

e ela, a filha, com apenas 15 anos procurara o dentista. Disse que tomava um comprimido, o

dente desinflamava e, então, extraía. Pedi que falasse como era quando o dente estava

inflamado: “Eu ficava com o queixão inchado... por acolá e não podia nem bater com um

dente um no outro que doía muito, aí quando deixava, aí quando ele desinflamava, que não

doía mais, eu tava agüentando comer, não tava mais doendo, aí é que eu vinha extrair, foi

assim... e até que consegui!” Falou sobre a distância que andava até o local de atendimento do

dentista: “não era fácil não!”. Quando chegava em casa ficava de repouso, não fazia serviço

pesado. No dia seguinte, a gengiva começava a fechar, “graças a Deus eu tive sorte!”.

Destacou a que tivera sorte, porque o doutor trabalhava bem, aplicava a injeção (anestesia) e

passava um medicamento caso o dente tivesse inflamado. Falou que seus dentes não deram

trabalho de extrair.

Pedi que falasse mais sobre o que ocorria antes de extrair um dente: “Doía muito, doía

muito, aí que nem eu disse, aí mamãe fazia, dava purgante de azeite, eu ficava só dentro de

uma rede, e ela fazia esse purgante, aí não levava sol quente não ia pra poeira, não pisava o

pé no chão e ficava até que aquilo passava e o dente deixava de doer”. Mas, com o passar do

tempo, o dente voltava a doer. Sua mãe fazia outro purgante e ela ficava boa. Perguntei se

havia dentista nesse tempo. Respondeu que sim, mas sua mãe não a levava de imediato.

Comentou, então, que os dentistas do seu tempo não eram bons como os de hoje, pois

“arrancava dente cru”. Narrou a extração do seu primeiro dente, com um determinado

dentista, em que a anestesia não pegou, foi muito doloroso, teve hemorragia e sofreu muito.

Após esse primeiro, com os demais não teve problema, mas, não foi mais com o mesmo

dentista. Falou que o último dente que extraiu foi outro dentista (o terceiro), e que ele já tinha

“aquela capacidade, aquele entendimento melhor...”. Perguntei qual havia sido o último

dente que perdera. Respondeu que havia sido uma presa, e que fazia mais ou menos uns 10

anos. Revelou que não havia extraído seus dentes todos em seguida, que demorava..., “eu

ainda passava tempos e tempos com aqueles dentes bom, né, quando aquele dente ia se

furando, aí eu ia, extraía, passava outro tempo, outro se furava e, assim, foi até que

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 30

terminei...” Pedi que falasse o que sentiu depois que tirou os dentes. “Eu senti um grande

alívio porque agora eu não sinto mais dor dente, eu não perco mais uma noite de sono por

causa de um dente doer, eu não vou sentir mais dente ficar ruim, dente ficar furado, dente

ficar preto, dente ficar azul, dente cair um pedaço e ficar outro!”.

Alegria passou a usar prótese. Pedi-lhe que falasse sobre as próteses que usara.

Contou-me que a primeira tinha sido só na arcada superior, pois ainda tinha os dentes

inferiores. A segunda já tinha sido as duas e que aquela, que estava usando no momento de

nossa conversa, já era a terceira. Pedi que falasse sobre como era usar prótese. “Acho bom,

porque a gente come bem, a gente mastiga, a gente come um pedacinho de rapadura, eu acho

bom trincar no dente (risos), acho bom os dente... ah mais eu sem os dente não sei comer

nada...” Contou que com a prótese o comer ficava mais gostoso de mastigar, mas com a

“gengiva” não era bom não, pois com a “gengiva” não poderia mastigar.

Pedi que falasse como foi a sua vida depois de perder os dentes... “Ave Maria, foi uma

vida nova que eu encontrei, porque com os dente mesmo meu não faltava aquele aperreio,

quando pensava que não tava com um dente doendo, passava a noite sem poder dormir, a

boca ficava... o queixo inchado e aquela dificuldade todinha. E depois que eu arranquei, que

eu extraí tudinho, graças a Deus tudo isso acabou, desapareceu, mas... também vivi de novo

por isso depois que extraí”. Perguntei-lhe o que sentia com a prótese. Respondeu que não

sentia nada não, “fica bom..., a gente come uma comida melhor e fica tudo melhor depois que

a gente come, tudo eu acho melhor”.

Indaguei se as pessoas da comunidade conseguiam atendimento. Contou um episódio

que aconteceu com um velhinho que morava perto de sua casa e que tinha os dentes doentes

na boca. Ele veio extrair um dente, deu uma doença e morreu. Depois disso, ficou com medo

e resolveu extrair seus dentes. Perguntei novamente como era para as pessoas conseguirem

atendimento. Disse-me que era fácil, mas as pessoas não davam importância, ficavam com a

“boca cheia de dente cariado, não cuidava”. As pessoas não queriam extrair. Além do

descuido das pessoas, revelou que isto acontecia também devido à dificuldade em ir ao

dentista. Afirmou que hoje os dentistas são melhores e as pessoas têm mais “cuidado com a

boca”. Referiu-se ao profissional dentista de forma positiva, dizendo que achava admirável,

uma pessoa ter a coragem de estudar para ser um dentista, fazer uma “cirurgia de um dente,

né, puxar aquele dente, pegar um alicate, dar uma injeção, e ter coragem e ter nervo pra

puxar aquele dente e tirar e aquilo ficar bem feitinho de novo, cicatrizar aquela gengiva”.

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 31

Perguntei-lhe, então, o que achava da perda dentária. Respondeu: “porque eu acharia que

aquele dente furou-se, eu sofri muito... né, mamãe sofria comigo, passava a noite sem dormir,

e eu fiquei com aquela atitude de toda vez que um dente meu se furasse, eu não vou mais

guardar na boca não, eu vou tirar, e assim fui fazendo até que terminei, nunca mais quis ficar

com dente furado na boca”. Perguntei: por quê? Respondeu que poderia inflamar, dar uma

doença, “criar uma ferida na boca, a boca estoura, toda coisa ruim eu imaginava que podia

acontecer”.

Força

Mulher, 38 anos, casada, três filhos, dona-de-casa, trabalha na loja de artesanato do marido,

residente na zona urbana

“Ah, eu fui privilegiada, eu vim perder meus dentes, eu estava cum... pra lá de quinze

anos, estava com quase vinte anos, quando meus dentes vieram estragar, o superior, né!”.

Força relata que isso se deveu à falta de orientação de sua mãe, a qual julgava ser um pouco

desligada para caso de doença. Naquele tempo, ela morava em Pernambuco e lá quase nunca

procurava o dentista. Contou que quando seu dente começou a ficar cariado, sentiu uma dor

pra valer, ficou desesperada, nunca havia antes sentido dor de dente. “Aí quando eu vi o

primeiro dente cariar que doeu muito... eu passei um mês com dor de dente, ele inflamou, eu

ia pra o médico, o médico passava antibiótico, eu tomava, em vez de ir melhorando não, de

tanto antibiótico veio prejudicar os outros”.

O médico, segundo contou-me, passou o antibiótico e a mandou ir para casa, mas, em

sua opinião, ele deveria ter feito uma limpeza ou ter lhe orientado. Força conta que tomou o

antibiótico, após um mês o dente não desinflamou, e ela voltou para outro médico: “Eu pedi a

ele que extraísse, ele perguntou: dói? Eu digo: dói não! Meu dente doendo, eu digo dói não,

pois então vamos extrair”. Disse-me que se ele fosse um médico legal, ele tinha dito para

fazer uma limpeza ou recuperar, “hoje os dentistas não querem extrair, quando um dente tá

inteiro né, eles vão limpar, vão fazer canal e, antes não, no meu tempo era só pegar e...

arrancar, o dente só cariado”. Ela disse que sempre pedia ao dentista para ele extrair o dente

que estava doendo e outro vizinho, que estivesse bom. E recordou uma de suas visitas ao

dentista, quando perguntou: “doutô, em vez do senhor extrair só um, extraia os dois, ele e esse

outro que tá, próximo que ele não tá... afetado; aí ele disse: tá não, tá bom! Aí eu digo: e

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 32

pode extrair? Ele disse: é a senhora que quer, pode!” E continuou: “assim foi, tirando

tudinho, até o último”. E para isso o dentista pedia que ela assinasse um termo. Perguntei

sobre esse termo que ela assinara. “Era... não complicando a eles, que eles não queria e

queria extrair, porque cada dente que eles extraem, eles estão ganhando né, e a paciente que

vai querendo extrair mesmo, com medo de sofrer dor de dente, pra eles não era perca, pra

eles era ganho, aí simplesmente ele tirava...”. Para Força, tirando de dois, três dentes, ela

logo colocaria a prótese o que seria uma vantagem uma vez que esta não estragava. Revelou

que ainda possui dentes na arcada inferior e que fuma, por isso eles ficam encardidos: “mas

enquanto não der problema neles, sempre eu estou nessa dentista daí, que eu sou hipertensa,

aí eu tenho direito, mas quando eles estão trabalhando... que eu vou lá e brigo...” Perguntei

em que situações ela brigava. Ela respondeu que quando está com o dente doendo e procura a

dentista do posto e a agenda está cheia, com vaga apenas para o mês seguinte. Contou que

nesse caso, se não tivesse “isso... (referindo-se ao dinheiro) pra pagar”, teria que esperar até o

mês seguinte para ser atendida. Questionei se ela ficava com dor. Falou que ficava tomando

antibiótico e analgésico. Comentou que sua filha esteve com uma dor de dente, tomou um

remédio e a dor passou, mas enfatizou que ela não deveria ficar acomodada, “porque cada vez

mais, ele vai..., acabando o dente, esse é o meu problema de usar prótese, porque com o

dente normal não, o sorriso da gente fica mais bonito... a gente fica com a aparência mais

bonita! E com a prótese não, é diferente! Agora foi que eu vim perceber, depois da idade

avançada é que eu percebo o quanto faz falta o dentinho da gente, viu! Se eu pudesse eu

mandava implantar tudinho novamente, de um por um (risos), de um por um... (...) porque

não é uma coisa que você tá tirando pra fazer higiene toda hora, todo instante limpado, se

você come um doce agarra, e você vai escovar, é pior que os dentes normal da gente”.

Contou que sempre incentiva seus filhos a escovarem os dentes e procurarem atendimento,

devido a sua própria experiência de sofrimento.

Com relação à extração dos seus dentes anteriores, revelou ainda insatisfação com o

tempo de espera entre a extração e a colocação da prótese, “a prótese, eu não esperei não, na

época eu fiquei com muita vergonha quando retirou os quatro dentes da frente, aí eu fiquei

com muita vergonha”. Força extraiu os quatro dentes ao mesmo tempo, em um único

atendimento. Falou que colocou os quatro dentes, mas que incomodava, pois a prótese tinha

um ferrinho que foi cariando os demais dentes. Então, mandou extrair tudo. “Aí pronto, aí foi

dente bom com dente cariado, agora não era cariado que ficasse aquele buraco... era

pouquinho, criatura, muito mal tincava e sentia dor de dente, já ia..., ia pra o dentista...”.

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 33

Ressaltou que antes os dentistas não explicavam as coisas como atualmente: “era olhar,

passava aquele materialzinho que ele tem pra retirar... o sujo do dente né? Aí pegava o

alicate e tirava”. Na opinião de Força, hoje em dia está melhor, não pelo fato de ter mais

dentistas, pois ainda está muito difícil, mas que hoje tem dentista bom, que senta e explica ao

paciente. Revela que a dentista do posto da parte da tarde é muito “carrasca”, uma vez que

ela “não explica a gente as coisas”. Contou-me que sua filha mais nova de 7 anos esteve com

o rosto muito inchado, mas a dentista não atendeu, disse que “não podia nem mexer”. A

dentista da sua área é a do turno matutino, mas ela estava de férias. O médico já havia pedido

para ela procurar a dentista, mas ela disse que não ia, preferiria esperar chegar uma dentista

legal, “que saiba compreender as pessoas, mas essa da tarde eu não vou não minha filha, eu

prefiro sair daqui até lá...” (referindo-se a outro posto em bairro vizinho).

Perguntei-lhe como havia sido o primeiro dente que ela havia perdido. Falou que foi

na região anterior: “O primeiro dente foi esse que..., começou cariar assim... a gente começa

a cariar assim entre um e outro, logo, na frente, aí, quando eu vi os dois cariando, aí eu

mandei extrair, o não cariado e o cariado (...). Aí depois começou, ah quando um começa, aí

começa tudo, se não tem um tratamento adequado, então vai embora de um por um”.

Indaguei sobre o que seria esse tratamento adequado. “É sempre o acompanhamento do

dentista..., fazendo aquelas limpeza que ele faz, se tiver cariado obturar, se precisar de

uma..., de restaurar, restaurar, mas a gente pobre tem isso? Não tem!” Continuou ainda

narrando como funcionava o atendimento da dentista do posto. “Você tá com dor de dente,

você vai a dentista, ela faz aquela limpeza, aí coloca aquela massinha que não é platina não

é nada é só aquela massinha, pronto. É como tá no dente da menina também, é a mesma

coisa, por isso que tá doendo, e o meu de vez em quando dói, aí incha de lado, aí eu digo,

mas, num tá obturado?” Referiu que este procedimento seria um tratamento de faz de conta

para o pobre, já o rico teria direito a colocar platina e a um tratamento melhor. Perguntei

porque seria esse faz de conta. Ela não sabia explicar se era material adequado que elas não

recebiam e voltou a falar sobre o tratamento do posto. “Mas o tratamento da gente, não é bom

não! Porque você faz obturação, mais quando você abre a boca, tá aquela ruma de pedaço

preto dentro do dente, é mesmo que tivesse cariado” Falou que sempre dizia a sua mãe que

preferia a extração ao tratamento restaurador e dessa forma optou por extrair todos os dentes.

“Ou obturação de verdade, ou uma obturação de mentirinha que você passa um mês, dois

mês, e volta a doer de novo. É melhor você extrair, esse foi o meu caso”. Expressou o seu

desejo em extrair os dentes inferiores, mas disse que a dentista preferia tratar (queria

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 34

aproveitar, ajeitar, limpar), mas, Força, não acha legal. Perguntei-lhe por que ela não achava

legal. Ela respondeu que o dente sempre voltava a doer novamente e que era preciso pegar

uma boa dentista que lhe orientasse bem. Perguntei como seria essa orientação. Ela comparou

com aquela que era dada pela dentista da manhã, falando que ela recomendara a sua filha para

não comer doce e sempre escovar os dentes. No entanto, ressaltou limitações. “Mas mesmo

com a orientação dela... ela já obturou também o dentinho dela, com toda essa orientação,

mas ela já tem dente cariado, mesmo eu tando em cima, em cima, em cima”. Comentou que

deveria existir um remédio forte que evitasse que o dente estragasse com facilidade. “Negócio

de dente é muito complicado, complicado demais, eu acho”. Perguntei por que ela achava

complicado. Respondeu: “Porque por mais cuidado que a gente tenha pra não tá no dentista,

mas os dentes estão sempre cariando!”.

Pedi para que falasse sobre o que a haveria levado a querer extrair seus dentes, a sua

motivação: “A motivação foi a dor! A dor de sentir dor de dente, foi achar bonito uma

prótese, foi isso (...) eu achava bonito demais, quando a pessoa botava dois, um dentinho,

sonho de, de... garota abestalhada, de querer uma coisa que não era dela, porque o dente... o

dente da gente é aquele que é normal, é na gengiva da gente mesmo, eu achava bonito a

criatura botava dois dentinho, três dentinho, eu achava lindo...” Lamentou o fato dos

dentistas terem extraído alguns de seus dentes bonzinhos e que eles deveriam ter lhes dado

alguma orientação para evitar as perdas dentárias. Falou sobre o tempo de espera até que a

gengiva viesse ficar sequinha no ponto de colocar a prótese: “eu passei uns dias muito

danado”. A prótese da arcada superior ainda dói e ela disse não querer mais extrair os dentes

inferiores, deseja cuidar. Ela relatou a dificuldade de acesso à dentista da unidade de saúde,

pois é sempre tumultuado, muitas vezes tendo que procurar a unidade no bairro vizinho.

Contou-me, então, que desejaria cuidar dos dentes do seu filho, para que ele não tivesse o

mesmo ‘problema de dente’ vivido por ela: “Olhe meu filho, a melhor coisa do mundo é você

sorrir, tá sempre de dente aberto pro mundo, sorrindo, porque não tem melhor do que um

sorriso verdadeiro”. Perguntei-lhe se, durante a sua vida, tivera acesso a outro tipo de

tratamento odontológico. Respondeu que sim, mas quando ia com o dente doendo, não fazia

limpeza de canal ou obturação, só extração. Só depois veio saber a importância dos dentes, já

era tarde demais. “Aí o jeito foi extrair mesmo, aí fui extraindo de um por um, de um por um,

aí lá foi a prótese completa, eh, eh, a superior, superior nenhum, eu não tenho um dente pelo

amor de Deus”.

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 35

Lamentou então o fato de sua mãe não levar os filhos para o médico e que se a mãe

fosse uma pessoa ativa, soubesse orientar, ela não teria perdido seus dentes. Lembrou que,

naquele tempo, a escovação era com juá. Ela ia com seu pai e cinco irmãos para a beira do rio

escovar os dentes com a raspinha do juá.

Perguntei-lhe se lembrava quando perdera o último dente. Respondeu que havia sido o

dente queiro, o dente casadinho, referindo-se ao terceiro molar. Falou da vontade de colocar

seus dentes todinhos de novo para voltar a ter o mesmo sorriso de antes. Contou que com a

prótese fica inibida, tem medo que caia. “Os dente não são perfeito assim juntinho, mas antes

não, meus dente era tudo juntinho, branquinho, era um sorriso bonito, aí eu sempre digo: se

eu pudesse, eu mandava implantar todos os meus dente, pra voltar a ter o mesmo sorriso, é

que a gente fica inibido, a gente... não tem como a gente sorrir mais feliz, com aquela cara

bonita, feliz, não tem mais, a gente perde um pouco da, da magia da gente.”

Pedi para ela falar mais sobre prótese. “Ai, a prótese é horrível, é ruim demais, a

prótese pra você se acostumar você tem que ir... ir mastigando devagarinho, e sofrendo

devagarinho”. Contou-me sobre a primeira prótese: “O sangue descia, eu chorava mais não

tirava, eu sou assim, eu digo eu não tiro, pois se eu tirar eu vou me acostumar sempre ficar

banguela, aí quando eu mastigava o sangue corria, ardia, doía”. Disse-me que tirava a

prótese, passava remédio e voltava a usar. O dentista passava um remédio para a gengiva

ferida, ela usava e melhorava. Destacou que o dentista deveria ter passado um remédio

quando os seus dentes estavam cariando. Mas, confessou que acostumou com a meia prótese

de quatro dentes e após extrair todos os dentes, colocou a prótese total. “Eu botei a... aquela

toda, aí foi ruim, apertava de um lado, apertava do outro, cobria mais os buracos mais ficava

ardendo, doendo”. Então, ia à farmácia, comprava antiinflamatório e foi se acostumando.

Mas, destacou o seu estranhamento com a prótese, por ser algo móvel, que sai da boca, que

cheira diferente, lembrando que em dente normal não há aquele mau hálito. Para Força, usar

prótese não é muito bom, mas compensa as funções estéticas e mastigatórias. No entanto,

“não é nunca... como dente natural, dente natural não tem aquele céu da boca como ele,

todinho.... que você come e aquilo fica acumulando sugeirinha , e o da gente é natural, é uns

dente ali que não precisa disso, mas é ruim, a prótese é ruim demais”. Disse que a sua

prótese incomodava, mas a do marido dela, não. Ele dormia com a prótese, ela não conseguia,

pois ardia e queimava por baixo. “Aí fica incomodando..., incomoda, o que não incomoda é

você ter suas coisas natural, aí não incomoda não, mas coisa artificial?” Lembrou, então,

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 36

que você perder um dedo e colocar um artificial, não é a mesma coisa.“(...) Se você perder um

dedinho, mandar implantar um dedinho você vai sentir falta do seu dedo verdadeiro, não é

mais como aquele dedo que Deus lhe deu. As peças que a gente tem no corpo, ela é única,

perdeu, minha filha, acabou, nada substitui não. Ai como eu queria ter meus dentinhos... era

bom demais...”.

Paciência

Mulher, 27 anos, solteira, sem filhos, dona-de-casa, residente na zona rural

Paciência começou a perder os dentes permanentes ainda na infância, quando tinha

sete anos. Desde cedo, sofrera com muitas dores, sua boca ficava bastante contaminada com

aqueles dentes doentes e não sentia o sabor completo dos alimentos: “Comecei bem novinha

(...). Aí começou assim, com aquelas dores, aquelas dores, muito doloridas, mesmo, sabe? Aí

começou assim, os dentes se quebrando, sabe... foi a cárie... começou daí, aí comecei a ir ao

odontológico...” Pedi-lhe que me falasse mais sobre esse período em que começou a perder os

dentes. Paciência lembrou que nessa época tinha uma viagem para fazer. Então, aquela dor no

dente a deixava inibida de ir a uma festa, de participar daquele acontecimento: “(...) porque

ali eu ficava sofrendo com dor de dente, ia pra dentro de uma rede ou, senão, você ia pra

cima de uma cama com muitas dores, né? Realmente você sofre demais, é horrível a dor de

dente”. Perguntei-lhe, novamente, como havia sido essa etapa da sua vida. Ela contou-me que

toda a família em casa sofria e ficava preocupada em fazer algo que passasse aquela dor de

dente. Procuravam “arrumar um remédio” e, na época, sua mãe comprava aquele

“comprimidinho anador” e colocava dentro do dente, se este estivesse furado. Então, a dor

passava. Perguntei-lhe se teria sido assim com o seu primeiro dente. Afirmou que sim e com

os demais dentes também. Pedi-lhe para descrever como havia sido, e ela me descreveu os

sintomas de um abscesso dentário: “Eu senti aquele peso assim, sabe do lado do dente

estragado, aquele peso porque realmente o dente estava bem inframado, né? Aí ficava

inchado, eu lembro bem assim, que era bem inchado. Aí no decorrer daqueles dias ia

devagarinho, né? Passando aquilo tudo e ele desinflamando e secava a face, e pronto, ali eu

já podia procurar o médico pra tratar, né?” Após ter tomado um medicamento para

desinflamar, procurou o médico para tratar dos seus dentes, realizar a exodontia. Contou que

na primeira vez que foi ao dentista, pegou a ficha e ele, o dentista, aplicou a anestesia e

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 37

extraiu o dente “de repente!”. Pedi-lhe que me falasse mais sobre esse tratamento. Contou-me

que nessa época era criança e achava que esse seria muito machucante, que ia prejudicar sua

saúde. “Quando a pessoa vai extrair dente, tem aquela anestesia e tudo, a criança tem muito

medo, só disso, mas que realmente foi totalmente diferente, foi ótimo.” Perguntei-lhe como

havia se sentido em relação ao atendimento odontológico. “Eu me senti assim, muito, é muito,

é legal né? De modo geral, vou dizer legal, porque ele é um médico muito especial, né? Ele é

muito carinhoso...” Questionei-lhe se doía na hora de extrair. Disse-me que não, não sentiu

nada. Perguntei-lhe, então, se lhe havia sido oferecido algum outro tipo de tratamento.

Paciência falou que não, que não lembrava não, mas, que na atualidade ela sabe que existe:

“É quando você não quer extrair o seu dente você vai... aí, você aproveita o seu dente né?

Você faz um tratamento muito especial, né?” Referia-se ao tratamento restaurador: “(...) aí

você faz uma limpeza legal, pra você, bem legal, aí coloca platina e tudo”, (...) ou se não,

uma massinha branquinha, né, bem branquinha”. Mas, ressaltou que dependia do estado do

dente. Indaguei-lhe sobre o que achava de outro tipo de tratamento que não fosse a extração

dentária. Respondeu-me que achava legal, mas que não era de muita garantia, uma vez que

com o passar do tempo “aquela platina (...) vai se acabando, cai... ela cai, aí você tem que

cuidar de novo... aí o jeito que tem é extrair”. E continuou: “ (...) aí não é melhor você

extrair e dar por acabado o dente, né? Fica uma boquinha limpa, né...” Paciência destacou

que o correto mesmo seria extrair. Perguntei: mas, por quê? Respondeu-me que a extração

acabaria com “aquela doença na boca” e daria um “fim, né? Naquele dente...”. Dessa forma,

ressaltou, não sofreria mais de “dor de dente e não perderia mais o dente”. Pedi-lhe que

explicasse melhor. “Você tá com dois dentes doentes, né? Aí tem outro assim juntinho, aí o

dentista diz assim que aquela doença, aquele prejudica os outros da frente que vem...”.

Pedi-lhe para contar como se iniciava cada processo de perda dentária. Ela descreveu

que a cárie começava com “aquela dorzinha, aquela dorzinha muito sofrida, aí começa a se

furar o dentinho e vai se quebrando, tem muitos que começa um furozinho, aquele furo... aí

vai se quebrando e... acabou o dente... é a doença que invadiu aquele dente, né?” Relatou

que a restauração, aquele “processo de aproveitar seus dentes”, contribui para que você os

tenha por mais alguns dias. Paciência reconhece que ao extrair você fica banguela, e

aproveitando, com tratamento restaurador, evita-se perder o dente. No entanto, a sua

experiência mostrou que “isso não faz muito bem, porque o certo é extrair”. Para Paciência a

restauração não oferece “garantia por muitos anos” e, portanto, seria melhor extrair para ficar

com a “boquinha limpa”. Indaguei-lhe sobre o fato de ficar com a boca limpa. Respondeu-me

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 38

que sem o dente ficaria livre “daquela doença penetrar na sua boca”. Continuou relatando

que a doença penetraria se a pessoa não soubesse tratar a sua boca, através da escovação dos

dentes utilizando sempre “escova nova” e também “creme dental legalizado”. Falou que

havia o “tratamento do flúor” que era muito bom, pois fortalecia os dentes. Contou-me que

fora ao dentista para restaurar, e ele fez a limpeza e colocou o flúor. Relatou que hoje as

coisas estão evoluindo e que a “forma de tratamento” está mais especializada.

Para Paciência, cuidar dos dentes seria escovar os dentes todos os dias depois das

refeições e não comer coisa doce que ela diz fazer muito mal à saúde. Quando lhe pedi que

explicasse o motivo desse “fazer mal” respondeu: “porque a doença da cárie... né? Eu acho

que começa daí, as coisas doces na sua boca”. Contou-me que o doce tem um vírus que irá

contaminar o dente. Dessa forma, acredita que especialmente as crianças “tem que ter o maior

cuidado na sua saúde bucal, não usar essas coisas assim e sempre manter a escovação”.

Sobre a importância da escovação, comentou que ela iria prevenir contra a penetração do

vírus da cárie. Então, pedi-lhe que falasse mais sobre a cárie. Contou-me que essa doença, a

cárie, prejudica muito o “intestino da pessoa”, (...) porque você vê que dá o câncer...”.Disse-

me que não sabia como isso (a perda dentária) foi acontecer com ela, pois tratava dos dentes e

até hoje gosta de cuidar. Foi aí que se referiu como algo que tinha de acontecer, como destino

ou fatalidade: “aconteceu, quando tem de acontecer”.

Depois que perdeu seus dentes disse ter procurado escovar com raspa de Juá, o que

acreditava ser muito bom. Contou-me que antigamente, na época de seus pais, o pessoal usava

Juá para escovar os dentes e estes eram bem sadios. “Eu acho muito bom, porque diminui

mais a perda dos dentes”. Revelou que usava o Juá, pois este protegia o dente, mas era difícil,

usava mais a pasta. Disse-me que sua mãe contara que havia um senhor que usava somente o

Juá para escovar os dentes e os seus dentes nunca estragaram. Falou-me sobre a importância

de ter “cuidados com a sua boca”. Indaguei-lhe sobre esse tipo de cuidado... Respondeu que

seria “manter a escovação” e “sempre participar do processo do atendimento médico, né?

Você sempre ir ao médico, no odontológico, procurar pra saber como vai, pra ele avaliar

seus dentes...”. Mas, destacou que quando começava aquela “dorzinha de dente” a furar o

dente, não cuidava de ir logo procurar o dentista: “às vezes passava até um ano e eu num

agia, né? Nem meus pais...”.

Paciência confessou-me que se sentia muito irresponsável por ter perdido os dentes,

atribuindo isto à falta de interesse e justificou o “desinteresse” de seus pais, uma vez que era

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 39

criança na época, em olhar sua boca: “É porque é a forma deles, que eles foram criados

naquele ritmo, né? E era o jeito deles...” E novamente destacou que as coisas, hoje, estão

mais atualizadas e que as pessoas não vão mais passar por isso. E reafirmou sua culpa: “Mas

não foi falta de reconhecimento... né? Não, não foi falta de médico, foi desinteresse meu...

(...) de cuidar, de tratar meus dentes, procurar o médico... de ter um acompanhamento

médico...”. Pedi-lhe para falar como se sentia por ter perdido os dentes. Desabafou: “Eu achei

uma grande tristeza, porque é tão bom você ter seus dentes tudo direitinho, né? Tudo certo,

sadio...”. E o que você acha de ter dentes sadios? Perguntei. Respondeu que seria “ter os

dentes todos saudáveis, sem doença, (...) tudo igual...”. Pedi-lhe para falar sobre a experiência

da perda dentária: “Eu acho assim que foi um pouco de não ter experiência, né, na saúde

bucal, tá entendendo, porque se eu tivesse, mais assim, atenta, para que não acontecesse isto,

isso não teria acontecido...” Destacou, então, que achava importante que as crianças e

“qualquer pessoa na vida” tivessem cuidado com a boca. Para Paciência, as crianças

dependem dos pais para olharem se seus dentes estão sadios, mas os jovens já sabem “o que

faz bem a saúde e o que não faz...”. Perguntei-lhe, então, o que fazia bem à saúde e ela

respondeu que seria ter lazer, praticar esporte, viajar, ir a festa, fazer amizades... Continuei: e

o que é ter saúde? Respondeu: “É você procurar o médico, pra você fazer a consulta, né?

Exigir um exame, né? Exame de sangue, têm vários tipos de exame, você exigir do médico e

você seguir em frente, né?”. O que seria “seguir em frente?”. Interroguei. Afirmou que seria

tomar logo as providências, em caso de doença, para evitar a morte ou o sofrimento. Então,

indaguei-lhe sobre a saúde da sua boca e ela foi afirmativa: “Eu me acho assim legalizada,

né? Estou bem, com saúde mesmo, porque eu não sinto mais dores, né? De dente...” E

lembrou que antes quando tinha seus dentes doentes na boca sentia “mau gosto, mal estar...”

mas, agora, diz que se sente “bem livre...”.

Contou-me que, após ter perdido os dentes, ficou banguela, se achou “totalmente

diferente” (...) porque você sem um dente na boca já fica com outro visual...”, e destacou que

uma pessoa, com os dentes, ficaria com um visual mais legal. Lembrou que após a perda dos

dentes sentiu dificuldade para pronunciar as palavras, para comer, “fica tudo mais difícil”.

Para Paciência, quando se fica sem dente, não se mastigam bem os alimentos e, portanto, fica

aquele alimento “mal ingerido”. Ela, sem os dentes, sentiu-se com a boca vazia, e não

gostou: (...) “ eu acho muito ruim”.

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 40

Paciência enfatizou, ainda, que fazia cinco anos que usava prótese e queria trocar, pois

disseram que se a prótese ficar muito velhinha pode prejudicar a saúde e causar doenças.

Perguntei-lhe como era antes de ela usar a prótese. Respondeu que era muito ruim (risos),

porque sentia um vazio: “eu sentia falta dos meus dentes, era ruim demais... pra mim comer

milho, milho assado...” A prótese havia sido feita na cidade onde mora, por uma mulher que,

segundo Paciência, “trabalha muito bem”. Perguntei-lhe como havia sido depois que colocou

a prótese. “Eu me senti mais jovem, com um visual diferente, assim, mais legal, eu me senti

mais à vontade pra conversar, pra sorrir, né?”. Contou-me que no início achara ruim para

comer, para dormir e também ressaltou seu estranhamento inicial com a prótese: “isso daqui

alto não é que nem os dentes da pessoa não, era totalmente diferente, agora era no começo

dos dias, né, primeiros dias, mas quando vai passando, você vai se acostumando, aí pronto

fica do mesmo jeito dos dentes”.

Coragem

Mulher, 47 anos, casada, 15 filhos, catadora de lixo, residente na zona urbana

Quando tinha entre 12 e 13 anos, Coragem morava em uma cidade do interior norte-

riograndense e lá não tinha médico: “ninguém ligava pra isso, aí eu tinha dor de dente, meus

dente começou a se furar, inchava, passava quatro, cinco dias com dor de dente em casa, o

dente... o rosto por aculá (referindo-se a inchaço), aí mãe botava leite de pinhão, botava...

pimenta do reino, alho...”. E dessa maneira, os dentes de Coragem foram se quebrando,

estragando-se. Coragem relatou que seus dentes haviam-se estragado devido a sua própria

falta de interesse. Explicou-me que a fazenda onde morava distava légua e meia da cidade,

onde nem sempre tinha médico e também “ninguém ia e ninguém ligava”. Pedi-lhe que me

explicasse por que ninguém ligava. Respondeu que fora criada com seus avós e que aquele

pessoal mais antigo não ligava para “negócio de médico”, pois para eles falar em médico era

mesmo que “falar em bicho”.

Perguntei-lhe como fazia para cuidar dos dentes. Respondeu-me que escovava os

dentes, mas que despertou tarde demais. “Só se eu tivesse começado a escovar muito antes,

né? Quando a gente vivia no interior ninguém ligava pra isso, que era escovar...”. Contou-

me que usava a “raspinha de juá” para escovar os dentes: “Escovava os dente, agora com o

quê? Com os dedo, com os dedo...” Pedi-lhe que me falasse mais sobre esse período.

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 41

Respondeu-me: “Eu sabia daná o que era cuidado? Nem o que era isso... só sabia o que era

mato, roçado, açude”. Revelou que só ganhara uma pasta e uma escova quando tinha 14 anos

e quem havia lhe dado fora um namorado, que lhe comprava perfume. Falou-me que antes

disso “pegava rapa de juá, aquelas rapa de juá botava no dedo e escovava os dente... logo

cedo passava nos dente pra limpar...” Perguntei-lhe como havia sido depois. Disse-me que

quando começara a escovar os dentes, estes já estavam se estragando, “já não tinha mais

como evitar...”. Indaguei como seria um dente estragado para ela. Afirmou: “Furado, ele

doía, furado se a pessoa fosse comer uma comida caía dentro do buraco começava a doer...

era assim...”. Contou-me que, certa vez, fora extrair um dente em uma Clínica Popular e a

dentista puxou o nervo pensando que era um caco de dente, e ela ficou vários dias sentindo

dor. Coragem distingue diferenças entre profissionais, havendo, para ela, dentistas ótimos que

você nem sente a anestesia e há outros que têm a mão pesada: “(...) um dentista que vinha

pra ali, eu extraí bem uns quatro dente com ele, mais ele tinha a mão pesada quando ele ia

dar a anestesia, mas eu extraí que era mais fácil...”. Pedi-lhe que falasse mais sobre isto.

Então, referiu-se à facilidade para “tirar a ficha” na época de política. Já no posto de saúde,

contou que teria que sair de casa de madrugada “e às vezes nem consegue, às vezes não

consegue não, e tem que ir arriscando a vida ainda mais...”. Contou-me que uma mulher fora

estuprada em frente ao posto de saúde, às quatro horas da manhã, quando buscava

atendimento.

Coragem aproveitara a época de política para fazer suas extrações dentárias. Perguntei

se nessa época havia outro tipo de tratamento. Respondeu que não, que “quando eu comecei

descobrir o negócio de dentista era só a época que eu vim me ajeitar, o pessoal só falava em

obturação... agora o pessoal fala em canal...” Destacou também que, nos dias de hoje, as

coisas estão mais fáceis, mas, na época em que seus dentes começaram a estragar era “tudo

difícil, tudo... era difícil pra você conseguir um dentista, era difícil pra fazer... tudo era

difícil”. Ressaltou, novamente, a dificuldade para conseguir atendimento no posto de saúde

do bairro onde mora, assim como a não possibilidade de ser atendida nos postos dos bairros

vizinhos. Narrou que seu filho tivera uma dor de dente e não pode ser atendido no bairro

vizinho, pois não tinha prontuário lá. Comentou sua insatisfação: “Esse negócio de saúde pra

ficar assim só nos bairro ficou mais difícil pras pessoa...”. E lembrou que antes, ao não

existir atendimento em um local, poderia ir para outro, e agora não: “falta aqui... pra onde é

que a pessoa corre que não tem pra onde? Não tem pra onde!”.

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 42

Aos 17 anos, Coragem casou e foi morar em Natal, e nessa época, voltou a sentir dor

de dente. Procurou o dentista. Este lhe disse que ela não podia extrair dente por estar grávida e

que seus dentes eram muito fortes, que deveriam ser aproveitados, obturados. Então,

Coragem contou que, como a dor de dente passara, ela não ligava mais, “dava por

esquecido”. Mas, com o passar do tempo, quando o dente voltou a doer, começou a colocar

pimenta do reino dentro do dente, “quebrava todinho, ficava só aquele caquinho e não doía

mais, aí eu fui extraindo, extraí um, extraí dois...”. Depois que começou a trabalhar, não teve

mais tempo para realizar as extrações. Outro dente começara a doer e, novamente, voltou ao

dentista para extraí-lo. O dentista disse-lhe que seu dente era forte, que fosse obturar. Mas,

Coragem não ligou, não deu importância: “E nisso o dente foi se estragando, foi se

estragando... foi passando o tempo, e eu perdi um, perdi dois, perdi três, ficou só, ficou só

quatro aqui, quatro aqui nesse superior, né? Assim...”. Mostrou-me que só restara seis dentes

na arcada inferior. No ano passado, em 2005, foi ao dentista para extrair tais dentes. Disse-me

que passara um a dois meses para ir de novo: “e nisso meus dente foi se estragando assim de

um, dois, até o final, aí extraí tudinho. Fiquei sem nenhum! (risos)”. Coragem riu de si

mesma ao me contar que ficara sem dentes!

Perguntei-lhe mais sobre como foi o atendimento odontológico que recebera.

Coragem, então, destacou, novamente, as suas dificuldades de acesso aos serviços: “Eu

aproveitava mais esse tempo de política, né? Que fica esses dentistas assim, né? Pra extrair.”

Contou-me que trabalha de carroça, na coleta seletiva e destacou sua dificuldade para

conseguir atendimento na Unidade de Saúde. Pedia a seu padrasto para pegar ficha de

madrugada. Contou-me que ela e os filhos estavam com os dentes estragados e que foi “não

sei quantas vezes lá pra extrair, marcava, marcava, saía daqui quatro horas da manhã”.

Demorava quase um mês para ser atendida: “quando chegava lá ela fazia só limpeza, os dente

tudo estragado, fazia só limpeza”. Revelou que os filhos foram atendidos numa dada

instituição e ficaram com trauma da dentista. Disse-me novamente que apesar de ter “dentista

pra criança, adulto, pra tudo”, ficava difícil conseguir atendimento. Contou-me que seu filho

menor chorou com dor de dente quase a semana toda e não teve como ser atendido no posto

de saúde próximo, nem nos bairros vizinhos. Afirmou que não tinha o apoio do dentista.

Indaguei-lhe sobre como seria esse apoio. Respondeu-me: “Ou obturar duma forma que o

dente... que evitasse do dente dele acabar de se estragar, né? Ou senão tirar... pra não

estragar os outros, né?” Perguntei o que a tinha feito querer extrair os dentes. Então,

Coragem contou-me da entrevista que tinha dado na televisão quando começou a trabalhar na

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 43

coleta seletiva na rua: “ficava muito chato, né? A pessoa sem dente pra falar, os dente tudo

estragado, né? Ficava muito feio”. Depois disso, decidiu perder o medo e terminar de extrair

seus dentes. Pedi que me falasse mais sobre esse medo: “porque as pessoas diziam que dente

estragado na boca causava câncer na boca da pessoa, aí se a pessoa fosse extrair e tivesse

um dente estragado demais causava problema, né? Dava hemorragia”. Falou também da

falta de tempo disponível para sair, pois tinha que trabalhar e o seu trabalho exigia que

pegasse em peso. “(...) porque eu não tinha muito tempo, não tinha muita opção pra ficar em

casa, tinha que extrair, tinha que trabalhar, tinha que pegar em peso, tinha que andar em

carroça...”, (...)aí o povo dizia que dava hemorragia, dava isso, dava aquilo... aí... eu ficava

naquele nervoso e eu nunca tinha tempo pra ficar disponível pra sair, pra ficar livre, pra

poder passar dois três dia em casa parada sem fazer nada, porque eu..., tem de trabalhar ou

tem de ficar com fome...”.

Contou-me que vivia no interior com seus avós que não ligavam para nada. Disse que

não tivera pai e sua mãe não se interessava por ela. Casou e começou a ter filhos e, desde

então, diz não ter tido tempo suficiente para se cuidar, “eu nunca tive uma oportunidade boa

de tratar dos meus dente, porque se eu tivesse essa... hoje eu tinha meus dente bom, mas que

dentista é muito bom, cuidar dos dente da pessoa”. Enfatizou a importância da orientação do

dentista que poderia contribuir para que a pessoa chegasse aos sessenta anos “com os seus

dentes tudo inteiro, eu acho, né? Não sei...” Perguntei-lhe o que o dentista poderia fazer. Ela

respondeu-me: “Ele pode evitar, né? Pode fazer um canal, pode fazer uma obturação, né?

Mesmo que caia, faça outra, né?” Destacou que isso evitaria que acontecesse o que ocorreu

com os dentes dela (a perda dos dentes). Lamentou não ter tido oportunidades. Indaguei se lhe

havia sido oferecido algum outro tipo de tratamento e ela ressaltou que os dentistas diziam

que ela obturasse, que seus dentes eram fortes e davam para aproveitar. Mas, ela não se

interessava, só pensava em trabalhar. Perguntei-lhe como se sentia após as extrações.

Respondeu-me que sentia falta dos dentes, que foi difícil. “No dia que eu extraí os últimos, aí

fiquei agoniada, dava aquela agonia na gengiva, a gengiva da pessoa ficava coçando”.

Relatou que sentiu uma impaciência e pensou que iria ficar sempre assim, mas após duas

semanas se acostumou.

Confessou-me que se fosse agora não queria mais perder seus dentes. “Eu acho que eu

andava meio mundo de distância pra não perder um dente, porque é ruim demais, a pessoa

fica ruim sem dente, fica ruim pra falar, fica ruim pra comer, a pessoa sente dificuldade com

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 44

tudo, faz muita falta na boca da pessoa, o dente da pessoa...”. Pedi-lhe para falar mais sobre

“essa falta”. Falou novamente da dificuldade para se comunicar com as pessoas e também

para mastigar bem a comida. E conclui: “Sei que é péssimo... a pessoa perder os dente”.

Continuei: como péssimo? Falou-me, novamente, que sentia muita falta dos seus dentes e que

não havia se acostumado (se adaptado), de jeito nenhum, com a prótese. Pedi-lhe, então, que

falasse sobre a prótese. Disse-me que fica impaciente com aquele negócio, daí a retira da

boca. Só usa quando vai sair, mas, só a da região superior, pois a prótese inferior fica folgada

e a dentista disse que não pode apertar. “Aí é ruim demais, a pessoa vai falar ela folga, sobe,

nam!”.

Pedi que Coragem falasse sobre “como era usar prótese”. Respondeu-me: “Ah prótese

é bom, quando a pessoa se acostuma, né? Fica... não fica feio, fica do mesmo jeito dos dente,

mais eu não acho que seja suficiente não, eu acho que os dente da pessoa é mais suficiente,

né?” Comentou sobre o gosto ruim, o gosto no céu da boca. Continuei: mas se nesse tempo

tivesse outro tratamento... Falou que teria evitado dos seus dentes terem estragado: “eu acho

que meus dente ainda taria bom, se eu tivesse tido interesse, né? Tivesse tido mais apoio dos

dentista, tivesse me interessado, tivesse outra opção...” Perguntei: então a experiência da

senhora com a perda dos dentes... E Coragem completou: “Eu acho difícil, sinto falta dos

meus dente, achei ruim demais ter ficado sem dente, é horrível”. Quando lhe pedi que falasse

sobre a época em que perdeu os dentes, respondeu: “Eu sentia muita dor de dente, sentia dor

de dente demais...”. Pedi-lhe que me falasse mais sobre essa dor. Disse que ficava difícil de

dizer, pois doía demais. Tinha que trabalhar com ele doendo. Para passar a dor tomava aquele

“comprimidinho anador”, e “ora passava, ora voltava a doer”. Também colocava água

gelada em cima para passar a dor. Falou-me da lembrança que tinha da dor de dente: “Eu sei

que dor de dente... ó, é pior do que qualquer outra dor, porque dói, dói, dói o ouvido, dói

tudo... eu tenho muito medo de dor dente”. Voltei a perguntar-lhe sobre como se sentira

depois que extraiu os últimos dentes. Contou-me que sentia falta, que não podia mastigar

suficiente, engolir, nem comer um negócio duro como rapadura. E então, confessou-me que

não sabia comer com a prótese: “Me dá uma agonia, enquanto eu não tiro eu não fico

sossegada, aí eu tiro pra lavar pra poder comer... porque eu fico com nojo, eu fico ingüiando,

ingüiando...”.

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 45

Simplicidade

Mulher, 51 anos, casada, nove filhos, merendeira, residente na zona rural

“(...) Quando eu comecei a sofrer dos meus dentes... aí foi o primeiro, foi um queixar,

aí sofri, sofri de dor de dente, chorava de dia à noite...”. Com tais palavras, Simplicidade

começou a contar-me de seu sofrimento com dores de dente. Falou-me que seu rosto inchava

e ficava com mau hálito na boca. “(...) É muito ruim, a pessoa com dente furado...”. Para

passar a dor, fazia cigarro de “folha de marmeleiro” e “enchia a boca de fumaça”. Também

fumava cachimbo que era mais forte. No entanto, a dor não passava. Perguntei-lhe se,

normalmente, ela fumava. Respondeu que já fumara, mas que, na época da entrevista, não

fumava mais.

Simplicidade tinha por volta de 12 anos quando extraiu seu primeiro dente. Contou-

me que passou cerca de três meses sem arrancar o dente com medo de ir ao dentista. As

pessoas diziam que o único dentista da cidade “não era nem médico formado... arrancava

assim, podia tá com o queixo por acolá, desse tamanho... mas ele arrancava e pronto (...)”.

Então, disse-me que tinha medo de extrair, chegou a ir umas três vezes, mas voltava com

medo. Ouvira dizer que o atendimento odontológico doía muito, pois tinha a anestesia, a

agulha... Revelou que tinha um nervosismo que a impedia de extrair os dentes, tinha medo da

agulhada: “(...) pra mim era a dor do mundo (risos) (...)”. Lembrou-se da falta de delicadeza

do dentista durante o atendimento. “(...) Ele... mas... metia a anestesia pra cima! (...) Mas

contou que depois foi ao consultório odontológico, mandou extrair o dente e não sentiu nada.

Perguntei-lhe, então, o que ela havia achado do atendimento odontológico. “Eu nem

achava bom nem achava ruim, porque não tinha outro médico! (...)” Disse que achava bom,

que não sentia mais nada, porque não sofria mais de dor no dente, nem na gengiva. “Depois

que ele arrancou, tá arrancado! (...)” Falou-me do sofrimento de outras pessoas que

extraíram com esse dentista e tiveram hemorragia, ou quando pegava ponto e ele não sabia

pontear. Mas graças a Deus, não, comigo nunca... aconteceu não! Lembrou um episódio que

ocorrera com uma conhecida sua, em que o dentista removeu um pedaço de sua gengiva

durante uma extração, o que dificultou a adaptação posterior da prótese. Disse que com ela

não teve problemas, foi tudo normal.

Passara cerca de cinco anos e, então, começou a extrair novamente seus dentes e já era

com outro dentista, que atendia pela prefeitura da cidade.

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 46

Contou-me que extraíra os dentes queixar (molares inferiores) com outro dentista da

prefeitura do município onde mora (o 3º dentista), e que o atendimento dele era muito bom,

bem diferente dos demais profissionais que conhecera. Certa vez, fora extrair um dente.

Então, o dentista dissera que seu dente estava inflamado e que ela teria que extraí-lo, pois

poderia causar um outro problema mais grave. Ao extrair o dente, disse que sentiu dor.

“(...)Que eu extraí, agora eu sofri minha fia com dor de dente, chega ficou azul... chega era

azul o dente...” Revelou que não teve mais nada. Este fora o único dente que sentiu dor para

extrair, pois o mesmo estava muito perigoso na sua boca, os outros, ela não sentiu nada. Mas,

revelou que agora o dentista não quer mais extrair se o dente estiver apenas furado (referiu-se

a um dente com início de cárie). Tem que aproveitar, aterrar, (...) quando eu ia pra ele, ele

disse: não, tá bom..., vamos aproveitar esse seu dente, seu dente tá muito bom! Aí eu digo:

não, ó... de dor de dente que eu já senti, pode extrair! É meu! Eu quero extrair! “(...) Não

pode extrair tudo mesmo, já tá furado... minhas dor de dente é, era terrível... era de eu correr

doida...(risos)...”. Contou-me, então, que extraiu todos os dentes superiores, contrariando o

desejo do dentista em aproveitar alguns destes . Relatou que extraía os dentes de um em um e

à medida que ia melhorando (cicatrizando), após um mês ou dois meses, extraía outro. Até

que concluiu as extrações dentárias, “arrancou tudo! (...)”. (Na região superior). Perdera o

último dente há uns 10 ou 11 anos atrás. “(...) Ah... quando eu terminei o último dente, ah dei

graças a Deus. Agora eu tou livre... embora que fique sem os dentes, mas... quando eu puder,

mando botar uma prótese...”.

Quanto ao acesso ao dentista, naquela época, disse-me que não era difícil, não

precisava pegar ficha como hoje em dia, era só chegar e aguardar o atendimento. Falou-me

da distância que tinha de percorrer, a pé, do sítio onde morava até a cidade, pois só havia

carro em dia de feira. Comparou aquela época com a facilidade de transporte encontrada, hoje

em dia, pelas pessoas que moram na zona rural.

Logo após as extrações, disse-me ter sentido muita dor. “(...) Eu sofria muito... era

três, quatro dias, pra doer... parece que o dente tinha ficado na gengiva, doía, doía, doía, não

podia fazer nada, era um sofrimento mesmo que tinha com dor de dente...” Falou-me que

teria de tomar medicamento para suportar a dor e que o dente ficava soltando sangue uns 4 ou

5 dias. Lavava a boca com água de juá, vinagre, assim como com “água de pedra hume”.

Após 5 ou 6 dias da extração, disse não ter tido mais problemas e que possuía uma boa

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 47

cicatrização. Admitiu que seus dentes fazem muita falta: “(...) Agora que faz uma falta

grande os dentes da gente...” .

Questionei-lhe sobre o que a teria levado a querer extrair seus dentes. “(...) Porque eu

sentia dor e pra passar e eu não sentir mais dor...”. Por isso, colocara na cabeça que queria

tirar e, assim, extraiu o primeiro dente. Depois disso, perdeu o medo e extraiu os demais

também. “(...) Extraía numa tranqüilidade... não tinha mais problema!”. Afirmou que, caso

os inferiores (ela perdeu apenas os molares) venham a se estragar, mandará extrair, já que

agora não tem mais medo.

Pedi para Simplicidade comentar sobre sua vida, após ter perdido os dentes. “Agora eu

não sinto mais dor de dente... a vida é outra, assim..., eu não sinto mais dor na minha boca e

é outra coisa, eu não sinto mais gosto ruim... é porque a pessoa com o dente furado engole

muita coisa véa de noite, né? Atribuiu o seu problema de estômago aos dentes estragados que

tivera. O que agravava mais ainda o mau hálito que apresentava.“(...)Só vivia com o estômago

véi embrulhado, com vontade de vomitar, agora não, graças a Deus, depois que eu fiz a

limpeza, não, botei a prótese, não, não sinto mais isso...”. Quando seus dentes estavam muito

estragados, sentia um gosto ruim, de pus na boca. Revelou que sofrera muito com dor dente,

pois tinha filhos pequenos e não podia ir trabalhar no roçado,“era aquela agonia!”. “(...) Aí

graças a Deus depois que eu terminei... aí pronto... aí fiquei... ficou muito bom... não senti

mais dor de dente, esses daqui (referindo-se aos dentes inferiores) não se estragou mais... aí é

isso mesmo... (...) Eu sofri muito com esses dente, esses não, que eu não tenho mais...”

(risos).

Há 6 anos, Simplicidade colocara sua primeira prótese, apesar de ter perdido o seu

último dente há cerca de 10 ou 11 anos atrás. Ficara, portanto, um período de sua vida sem

nenhum tipo de aparelho protético. Relatou que sua gengiva demorou a desinchar e ela quis

esperar para que a prótese não ficasse folgada, como acontece com outras pessoas. Apesar da

sua prótese não ter folgado, diz não ter se adaptado muito bem, pois esquenta muito o “céu da

boca”. Então, não agüenta, tira e guarda. Simplicidade colocou a prótese na cidade onde

mora, e a pessoa que a fez recomendou que deveria ser trocada a cada quatro ou cinco anos.

Revelou seu desejo de trocar a prótese por outra que não fosse dessa “massa vermelha”

(referindo-se ao tipo de resina), mas ainda não teve condição financeira. “ (...) Mas é por isso

que eu vivo mais sem meus... sem essa prótese... porque esquenta... esquenta que só!” Por

isso, disse-me que já tentou, mas não consegue se acostumar com a prótese. “(...) Às vezes

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 48

adormece esses outro (referindo-se aos seus dentes naturais)... é adormece! Por certo é

porque não se dá! (risos)”.

Indaguei-lhe sobre o período que ficara sem os dentes. “Ah foi muito ruim, porque a

pessoa não... tudo tem que ser tudo bem molinho... carne tem que ser bem torradinha...”

Queixou-se de não poder comer milho verde. Relatou-me sentir a falta dos dentes mesmo com

a prótese e referia-se ao tempo em que não tinha energia onde mora e fazia uso da luz de

lamparina. “Com aqueles paviuzinho, pra puxar... eu puxava com o dente, pegava e puxava,

aí agora... já não sei... com esse aqui... aquela falta dos meus dentes mesmo comum! (risos)”.

Perguntei-lhe, então, como seria essa falta que sentia dos dentes. Explicou-me que a pessoa

com dentes naturais tem mais força para puxar e mastigar melhor os alimentos: “a prótese

não é do jeito dos dente... dos primeiros dente da pessoa, não é de jeito nenhum, não tem

aquele... não tem aquele sabor...”. Desabafou ao dizer que a prótese impede que a pessoa

sinta o sabor dos alimentos, já que se estende ao palato, deixando a comida sem gosto. Para

ela, ao comer com a prótese, a comida não tem o mesmo sabor que com os dentes naturais.

“(...) E só com os dente sem ser a prótese aí é outra coisa... bateu na, na, no céu da boca, né?

Na língua assim, a pessoa já sente aquele, vai sentindo aquele, encosta a língua no céu da

boca, aí já sente aquele gosto bom, aquele, aquele sal, aquele gosto bom de sal...”.

Simplicidade contou-me que conversara com outras pessoas que também usam prótese, e estas

concordaram com ela ao dizer: “(...) não é... bom, ninguém se compara!”. Sugeriu a

possibilidade de tirar a prótese para experimentar os alimentos e afirmou que a comida fica

mais gostosa e com muito mais sabor, mas, por outro lado, dificultaria a mastigação pelo fato

de estar sem dentes. “(...) Aí tem que colocar a prótese mesmo que é o jeito... a única solução

é mastigar a comida com a prótese mesmo!”. Afirmou que se tivesse seus dentes... “Ah era

outra coisa... Ave Maria... era outra... aí é que era bom mesmo, mas não tem como mais...

(risos), tem que ser assim mesmo!”. Lamentou o fato de ter perdido os molares inferiores,

restando apenas os pré-molares e incisivos, o que compromete a mastigação. “(...) Eu não

tenho os queixar, aí pronto só com esses miudinho, aí é... é ruim a comida, não é como a

pessoa ter o dente da pessoa mesmo, de nascença... (risos)”. Simplicidade revelou que a

perda de alguns dentes fez com que ela concentrasse a mastigação nos demais elementos

dentários restantes, e isso teria acarretado danos a estes. Contou-me sentir falta na

mastigação dos alimentos logo que começou a perder o primeiro dente, uma vez que já estava

acostumada a mastigar naquele local. “(...) Aí é ruim, é ruim demais, aí vai extraindo, vai

extraindo de um em um, de um em um, aí vai ficando a falta daquele dente!”.

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 49

Questionei-lhe sobre o cuidado com a boca, os dentes... Respondeu-me que utilizava o

“pó de juá” na escovação para desinfetar os dentes. Disse-me que tinha pasta dental, mas

gostava mesmo era de usar o “pozinho de juá”, para não dar piorréia (referindo-se a doença

periodontal) nos seus dentes. Também utiliza o juá para escovar a prótese superior.

Perguntei-lhe se, na época em que perdera os dentes, havia outro tipo de tratamento.

Respondeu que não, e, se existisse, seria muito difícil. Não lembra ter feito limpeza nos

dentes. Mas revelou que agora já tem. Ao indagar-lhe se houvesse tratamento, respondeu:

“Era muito... tinha sido muito bom, né? Quem sabe se eu não tinha meus dente tudinho,

né?”. Confessou seu desejo em fazer a limpeza dos dentes inferiores, para evitar a perda

destes. “(...) É muito bom os dente da pessoa, os natural da pessoa mesmo...”. E continuei: a

senhora acha? “Ave Maria, menina, nem se compara! A pessoa quando bota essas prótese é

muito ruim!”. Disse-me que com a prótese não poderia “quebrar um ossinho”, nem “morder

uma rapadura”, pois poderia arrancar ou descolar o dente. “Aí com os da pessoa mesmo, os

natural da gente é muito bom, a pessoa tora mesmo, o que vier (risos)!(...)”.

Perguntei-lhe, novamente, como seria Simplicidade depois de ter perdido os dentes.

“(...) Depois de perder os dente, pronto tá sem jeito, não tem mais volta! (risos) É... não tem

mais como fazer...”. Então, relatou-me que teria de se acostumar a mastigar com os dentes da

prótese mesmo, “que não tem outro dente pra mastigar, é... aí eu digo tem que ser assim

mesmo, é... é o jeito!(risos)”.

Felicidade

Mulher, 30 anos, separada, cinco filhos, dona-de-casa, residente na zona urbana

Aos 11 anos Felicidade apresentou uma cárie no incisivo superior, o qual foi

restaurado três vezes e, na quarta, necessitou de um tratamento endodôntico que fora realizado

na Faculdade de Odontologia. Disse-me que ficava irritada com aquele motorzinho, que lhe

dava agonia. Aos 12 anos, uma queda na escola a fez partir esse dente ao meio. “(...) Aí

quando quebrou, eu me desiludi...”. Sua mãe lhe aconselhara fazer outro canal, enquanto

outras pessoas diziam que ela deveria extrair o dente: “(...) Não, Felicidade, tire! Porque vai

dar muita dor, vai ser uma dor quando você for cuidar, e eu ia muito, né, assim... com medo

de... eu sempre tive medo de dentista, sempre!”. Decidiu, então, extrair o dente. “(...) Cheguei

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 50

e a médica tirou o meu dente, foi o primeiro dente, foi esse aqui” (mostrou-me a região do

incisivo). Após a exodontia, colocou a prótese unitária.

Quando Felicidade estava grávida, aos 17 anos, de sua filha mais velha, outro dente

começou a cariar. Aos 18 anos tirou o seu segundo dente: “(...) Eu passei bem uns dois meses

sem prótese, né, só com a prótese de um dente, e o outro buraco de fora (risos)”. E continuou

dizendo: “sendo que meus dentes eles eram lindos, esses dois dentes aqui (referindo-se aos

incisivos), depois que eu perdi...”.

Quando Felicidade perdera o seu terceiro dente, ela também estava grávida, com seis

meses de gestação e, por isso, sua mãe achava que ela não poderia tirar o dente. Referiu-se à

facilidade em conseguir atendimento odontológico nesse tempo, já que era atendida no

mesmo dia em que tirava a ficha. Mas, hoje, considera existir mais dificuldade no acesso a

este tratamento. “(...) Mas como tinha o dentista aqui em cima de casa, né, e foi numa época

assim que a gente chegava e extraía não tenha essa de... Porque hoje você vai ali no posto e

diz assim, tem que achar médica no posto, tem que falar com a médica pra agendar com

ela...”.

Felicidade contou-me que, dois anos após, sentiu bastante dor no último dente: “(...)

começou a doer, começou a doer, começou a doer e dele mesmo começou a cair os

pedaços...”. Disse-me que, às vezes, quando comia sentia dor. Procurou a dentista, que

passou um medicamento para desinflamar o dente. “(...) Cheguei na médica, ela disse, eu

tava morrendo de dor; ela disse: não, vá pra casa, eu vou passar esse medicamento, quando

desinflamar você volta...”. Quando o dente desinflamou, Felicidade voltou à dentista para

extraí-lo, mas havia um cisto embaixo do dente, que pode ter contribuído para ter ficado ainda

uma pontinha do dente que só aparecera um mês após a extração, o que ocasionou o seu

retorno para concluir a extração.

Aos 24 anos, também durante uma gravidez, perdeu o seu quinto dente (Felicidade

teve cinco filhos). Contou-me que sentia dor quando comia, pois o dente era mole, ela acha

que estava quebrado e quando a dentista puxou, havia ficado uma das raízes (mostrou-me o

local). “(...) Com o tempo é que aparece os caco de dente todo, como se de dentro de mim

expulsasse né, eu não sei a causa, ou se foi pela metade porque ele também tava inflamado”.

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 51

O sexto dente ela perdera devido ao insucesso do tratamento restaurador realizado:

“(...) foi uma obturação que caiu e eu não agüentava a dor, não agüentava a dor e eu não sou

de tá com dor (risos), e agüentar dentro de casa, aí fui no pronto-socorro...”. A dentista

sugeriu que ela poderia fazer um tratamento endodôntico ou uma restauração, mas, Felicidade

preferiu tirar o dente. Perguntei-lhe o porquê de tal atitude. Respondeu: “É como minha mãe

fala, eu adoeço porque gosto. Eu nunca assim, não procuro, não gosto de médico, não gosto

de viver em médico... Indaguei-lhe: Você não gosta? “Não, pra mim a primeira solução é a

que vai. (risos)”. E continuou: “Vamos tirar logo? Vamos tirar, aí eu tirei logo”. Continuei

questionando-lhe sobre o fato de não gostar de médico. “Assim, tem médicos e tem médicos

né? Porque tem médicos que você vai, você se sente uma pessoa, né. E tem médico que olha

pra você, e vamos resolver e vamos fazer, ignorante, às vezes, assim, não, você tem um

problema, não olha nem você direito, não lhe examina, passa o remédio, não tá nem aí pra

você...”. Falou-me que tem dentistas muito bons e referiu-se a sua primeira dentista que

atendia no bairro vizinho. Nessa época, tinha 3 anos de idade e já fazia tratamento dentário.

Justificou a necessidade de realização deste tratamento precoce, pelo excesso de antibiótico

que tomara devido a um problema de garganta, por isso revelou que sua dentição sempre

fora muito fraca. Associou também o enfraquecimento dos seus dentes à febre reumática que

tivera aos 22 anos de idade, que seria uma febre nos ossos. Para ela, essa doença provocaria

enfraquecimento dos dentes também, além das alterações ósseas. “(...) Aí pronto, foi

enfraquecendo tudo e eu pra não sentir dor, vou tirando”.

Disse-me que enquanto sua mãe a acompanhara ao consultório dentário, ela se

submetera ao tratamento, mas o mesmo não acontecera quando, já adulta, teria que ir sozinha

ao dentista. “(...) Tinha que assumir tudo, eu... a médica dizia vamos fazer, não, eu prefiro

tirar; sempre a médica dizia não, é melhor um canal ou uma obturação. Não, eu quero

tirar!”. Confessou-me que ao fazer a restauração, o dente poderia voltar a doer: “(...) Se essa

obturação não servir? Entendeu? Na minha cabeça, se essa obturação não serve, aí cair de

novo?” Mostrou-me a restauração de um incisivo superior que fizera com uma médica muito

boa e que já faz uns três anos. Na época estava grávida de sua filha pequena. “(...) Graças a

Deus foi muito bom. Não sinto nada nele, não sinto dor, não sinto nada, foi bom”.

Perguntei-lhe onde aconteciam os atendimentos. Respondeu-me que em casos de

urgência ia à unidade do bairro vizinho, onde havia assistência odontológica 24 horas. E

depois, tentava conseguir atendimento no posto de saúde do bairro onde mora.

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 52

Falou-me sobre a dificuldade em ter acesso ao tratamento odontológico, hoje em dia, uma vez

que tem de dormir no local para conseguir a ficha e, às vezes, não é atendida, comparando à

época anterior, em que era atendida no mesmo dia que tirava a ficha: “(...) é minha paciência

que não dá pra esperar..., ah meu Deus do céu, era muito bom que eu tivesse paciência

(risos)”. Expressou a sua insatisfação com a pouca quantidade de dentista em relação à

grande demanda por atendimento na comunidade. Disse-me que a dentista atende apenas 4 ou

3 fichas por dia e que ela deveria priorizar os casos de maior urgência: “ (...) seria bom um

dentista que a gente chegasse e pelo menos desse 5 ficha, 8 ficha por dia, entendeu? Como

era antigamente, hoje em dia só marca com ela, na agenda dela, e nem todo mundo tem

acesso(...)”.

Felicidade destacou suas dificuldades de acesso ao tratamento odontológico: “(...) Eu

tenho uma dificuldade tão grande pra fazer uma extração, imagine um canal, uma obturação.

Como é, né? (...) Por isso que eu em vez de mandar fazer o tratamento, esperar, eu mando

logo tirar... (...) porque eu sei que um tratamento é a coisa mais difícil do mundo(...)”.

Felicidade também comentou sobre o cuidado que sua mãe tinha para que ela não

perdesse dentes. Sua mãe sempre dissera o quanto era ruim usar prótese e por isso ela deveria

ter mais cuidado com os dentes. Então, disse-me que até hoje sua mãe se preocupa se os seus

filhos escovaram os dentes antes de dormir. “(...) Essas coisas de cuidado... E como eu nunca

fui de ter muito cuidado, nunca fui cuidadosa, se eu disser a você que fui... nunca fui. Aí fui

tirando... e, não pelo menos vou tirando esses, se tiver de tirar tudinho, tiro, não tem

problema, pra mim né? Aí pronto, aí vai ficando ruim, vai doendo e eu vou tirando”. Pedi-lhe

que me falasse mais sobre esse cuidado...Revelou-me que escova os dentes após o café e o

almoço, mas se depois do almoço não estiver em casa, não escova os dentes. “(...) Que é um

cuidado que a gente deve ter sempre, né? Você sempre que comer tá com a escova do lado,

escovar seus dentes, já com eles é diferente (referindo-se aos filhos), já escovou os dentes? Já

fez isso? É diferente de comigo, porque eles já se escovaram eu não tô nem aí, né?”. Disse-

me que nem sempre escova os dentes antes de dormir, mas reconhece que isso seria uma falta

de cuidado e tem consciência de que não o faz. Contou-me que sua mãe sempre reclama, pois

ela incentiva os filhos a escovarem os dentes e não faz o mesmo consigo mesma. “(...) E

assim passa o tempo e só é ruim pra mim, eu tenho consciência, né, disso...”.

Questionei-lhe se havia mudado alguma coisa em sua vida depois de ter perdido os

dentes. “Muda, muita coisa, seu rosto muda, porque o que... a boca da gente é quem faz,

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 53

também, completa o rosto da gente, né. Você nota a diferença, pra você se acostumar sem o

dente, é triste...”. Indaguei-lhe sobre o que ela tinha achado de ter perdido os dentes. “(...) Eu

me senti péssima sem dente... (...) não podia sorrir pra ninguém com vergonha, sempre sorria

com a mão na boca, nunca podia sorrir assim, um sorriso aberto, né, espontâneo, porque

você com um buraco na boca e tá sorrindo, todo mundo, ó aquela mulher ali não tem um

dente, que coisa feia, abrindo a boca”. Pedi-lhe que falasse mais o que seria para ela um

sorriso espontâneo. Respondeu que às vezes vê alguma coisa engraçada e dá “aquela risada

gostosa..., aquele sorriso(...)”, mas na frente das pessoas não poderia sorrir desta forma, sem

dente. “(...) Você banguela, como se diz, não tem um... como sorrir pras pessoas sem ser um

motivo de, de, de graça, né, porque o pessoal vai logo, ó aquela mulher ali não tem nem...

Meu Deus do céu sem um dente e rindo desse jeito, é feio demais!”. Provoquei-a: você acha

que o sorriso fica feio? “(...) Com certeza, você sem dente... ah... é horrível, é horrível de

verdade!”. Indaguei-lhe sobre o seu sentimento quando começara a perder os dentes. “Assim,

eu nunca senti muito... por eles, pelos meus dentes porque eu nunca fui de sentir por nada

também (...)”. Falou-me do câncer de útero que tratara recentemente, mas sempre se

mantivera calma, apesar do desespero das pessoas da família. Já fez a cirurgia e diz estar tudo

bem. Ela acredita que esse seu comportamento pode ter influenciado no fato de ela não ter

sofrido tanto com a perda dos dentes. Mas, continuou dizendo que têm pessoas que agem

diferente, como sua filha mais velha, de 13 anos, que estava com um dente doendo, e ela

queria levá-la a dentista para extrair o dente e acabar com a dor. Para ela a solução seria essa.

E sua filha disse: “(...) não, eu perder um dente? Pra quando eu sorrir pra uma pessoa, a

pessoa ver que tá faltando um dente aqui? Não, mainha, vou não (...)”. Felicidade revelou

que a filha cuida bem dos dentes, tem uma boa escovação e que jamais desejaria usar uma

prótese. Os dentes representam tudo para ela. Perguntei-lhe: E para você, o que significam os

dentes? “Os dentes... é..., são uma coisa, pra mim são necessários, né, porque é como a gente

come, mastiga tudo, né, é uma coisa... fora o sorriso da gente, o que acaba com a gente é

um sorriso, é o seu cartão de visita, é um sorriso bonito é tudo, pra mim isso aí vale muito, só

que assim, teve uma prótese pra substituir...(...)”. Felicidade contou que quando levou a filha

ao atendimento de urgência no posto do bairro vizinho, a dentista falou que ela poderia fazer

um canal ou extrair. “(...) Ela disse não, pelo amor de Deus, eu prefiro fazer o canal, mas o

senhor diz quando é que eu vou fazer, me encaminha que eu vou fazer, mas jamais vou perder

esse dente”. E Felicidade continuou referindo-se à filha. “Ela é assim, graças a Deus ela

tem... não é falha como eu, né?”. Perguntei-lhe por que ela se considerava falha. Respondeu-

me que, caso tenha a opção de fazer um tratamento no dente, ela não queria, preferiria tirar o

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 54

dente. “(...) Não tenho um cuidado, entendeu? Porque aquele ali eu não vou mais cuidar dele,

né, já é menos um pra mim cuidar (risos)(...)”. Disse-me que prefere tirar a ficha e resolver

logo a situação, mas devido à dificuldade de atendimento quando necessita, o problema vai se

agravando. “(...) Vai se agravando, vai piorando, vai ficando mais cariado, aí quando chega

lá já tá nas últimas”. Pedi-lhe que falasse mais sobre o fato de ir ao dentista nas últimas:

“(...) porque meus dentes se quebram todinho, eles se racham e se quebram todinho, aí

pronto, é melhor tirar logo do que tá com dor e ir de novo pro médico”.

Indaguei-lhe sobre a idade a partir da qual ela tinha passado a usar sua primeira

prótese. Disse-me que aos 13 anos colocara o primeiro dente (a prótese substituía apenas um

dente). Certa vez, ao escovar os dentes, a prótese caiu e soltou o dente. Relatou que voltou na

pessoa que fez a prótese (provavelmente um protético) e este havia apenas colado o dente,

aguardando Felicidade extrair o outro dente para confeccionar uma prótese completa. A

segunda prótese fora com dois dentes e a terceira, com três. Pedi que ela falasse mais sobre o

que achava das próteses que usara. Disse-me que a sua segunda prótese era folgada e ficava

mexendo na boca, que era péssimo: “(...) incomoda muito, né, porque às vezes você fala, você

tem que tá limpando, constantemente, porque junta comida, essas coisas, e é ruim”. Na

adolescência, aos 13 anos, ela imaginava que seria legal usar prótese, uma novidade, “mas é

errado isso”. “Porque eu via as pessoas, não, vou lavar minha prótese, vou cuidar dos meus

dentes, não sei que, mas eu achava que a pessoa botava aquilo ali porque... queria (...)”. E

confessou-me: “Depois que eu botei, aí tudo mudou, eu vi a realidade das coisas, né, que é

péssimo você usar prótese”. Contou-me que a prótese machuca a gengiva e que demorou a se

acostumar. Apesar de conseguir comer, tem medo de morder com a prótese e quebrá-la.

Observou uma alteração no paladar, o “(...) céu da boca fica muito sensível”. Recordou o dia

em que havia queimado a boca com café quente, e confessou-me que qualquer machucado na

boca quando pega na prótese, é triste.

Pedi-lhe que contasse sobre sua vida antes e depois da prótese. Relatou que antes da

prótese nada a incomodava, exceto quando sentia dor de dente. Mas depois da prótese tudo

mudou: “(...) a gente usa uma prótese só pra dizer que tem dente, que os dentes tão no lugar,

né, porque é uma mentira. Você pode conversar e dar um sorriso e não tá tão feio, né? Não tá

com aquele buraco aberto. Apenas isso, a prótese só é pra isso mesmo, só pra sorrir, e nem

mastigar você pode com a prótese, você não pode morder nada com a prótese. (...) A

realidade é que você é banguela pra sempre...”.

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Narrativas de experiências de usuários com perdas dentárias: as histórias odontológicas 55

Felicidade expressou seu incômodo em relação ao fato de ter de tirar a prótese, para

dormir, não podendo usar direto, o que não acontece com o dente normal, que não precisaria

tirar. “(...) Só se for de vez, agora a prótese é propaganda enganosa... (risos)”.

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 56

4 TRILHANDO PISTAS DA PRODUÇÃO SÓCIO-CULTURAL

DA PERDA DENTÁRIA

4.1 Práticas odontológicas, dor de dente e perda dentária

Os milhões de desdentados existentes, atualmente, no Brasil, representam o resultado

do tipo de práticas odontológicas produzidas, historicamente, nos serviços de saúde e

denunciam o fracasso da odontologia como promotora de saúde bucal. A assistência

odontológica ofertada a essa população, que busca no serviço a resolução para as suas dores,

propiciou menos recuperação da saúde que mutilação bucal.

A prática odontológica, ainda predominante, é caracterizada como individual,

curativista, tecnicista, especializada e biologicista e tem raízes históricas, cultural e social no

processo de formação do cirurgião-dentista, seguindo o paradigma flexineriano ou da

medicina científica. O tipo de assistência é pautado ainda no modelo privatista, que propõe a

organização do sistema com base na demanda espontânea e na prática liberal56.

O predomínio da oferta de serviços odontológicos, pelo setor privado, excluiu

socialmente os que possuem baixos níveis de rendimento. Sem possibilidade de serem

incluídos no mercado de consumo devido ao reduzido poder aquisitivo, aceitaram a extração

como a única opção possível. Dessa forma, ao relacionar o desdentamento com a condição

sócio-econômica, tem-se o mapa dos desdentados superpondo-se ao mapa da fome no Brasil,

evidenciando um outro aspecto desumano da miséria e da exclusão social84.

Apesar dos reconhecidos avanços advindos da criação do Sistema Único de Saúde

(SUS), ainda não houve uma redução significativa na prática de extrações nos serviços de

saúde. Isto seria justificado, por um lado, pela herança cultural de instituições previdenciárias

que se destinavam a prestar assistência médico-odontológica como, por exemplo, o INAMPS

(Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) e o FUNRURAL (Fundo de

Assistência ao Trabalhador Rural), assim como pela enorme falta de acesso ao tratamento

odontológico, tanto no nível básico e, mais raramente, no especializado84.

Durante o século XX, dos anos 30 até fins dos anos 80, a assistência pública

odontológica prestada pelo INAMPS foi de caráter mutilatório. Dessa forma, a oferta pública

de saúde não era tida como um dever do Estado, portanto ficaria restrita àqueles trabalhadores

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 57

formais que contribuíam com a previdência. Assim, as extrações dentárias eram o

procedimento que mais rapidamente restabelecia as condições ideais para que o profissional

voltasse ao trabalho e, assim, não eram compreendidas como perdas à saúde84.

Historicamente, a organização dos serviços de saúde bucal no Brasil, especialmente

considerando as ações ofertadas à população adulta, deu-se a partir da queixa individual,

representada, quase sempre, pela dor de dente. A resposta do serviço a essa demanda por

tratamento era constituída, predominantemente, por práticas mutilatórias que buscavam

solucionar aquele episódio de sofrimento causado pela dor, embora contribuísse para a

construção de uma cultura da naturalização da perda dentária na população e no interior do

próprio serviço de saúde. Isso fica bem evidente na análise das condições de saúde bucal da

população adulta brasileira, que, excluída das programações odontológicas, as quais

privilegiavam os escolares, tinha o acesso limitado a serviços de urgência, quando a dor já

havia se tornado insuportável.

Nas histórias odontológicas, identificou-se que as pessoas buscaram o serviço

odontológico tardiamente. Esse atraso ocorreu, muitas vezes, devido à própria inexistência de

serviços ou à oferta reduzida, permeada por dificuldades de acesso. Dessa forma, a procura

ocorreu, geralmente, quando grande parte da estrutura dentária já estava comprometida pela

cárie, e a extração era a única opção para alívio do sofrimento de dor vivenciado pelos

indivíduos. Para essas pessoas, perder dentes significou deixar de ter um problema, diante da

certeza de não sentir mais dor.

Alegria já havia passado por vários episódios de dor, mas sua mãe não costumava

levá-la ao dentista. Só procurara o serviço de saúde aos 15 anos, com o intuito de extrair os

dentes que doíam. A intensidade da dor, somada à inevitabilidade de evolução da cárie

dentária, justificavam a extração como forma de eliminação da doença da boca e da dor,

diante da inexistência de alternativas conservadoras para o tratamento.

Ao considerar a naturalidade com que as pessoas perdiam seus dentes com o passar

dos anos, Força se considerava privilegiada, pois, aos 15 anos, ainda permanecia com todos

os seus dentes naturais. Onde Força morava, quando era criança, as pessoas não tinham o

hábito de buscar os serviços de saúde e, portanto, só procurou o dentista quando sentiu uma

intensa dor de dente. Nesse caso, a forma de tratamento limitava-se a extração dentária.

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 58

Da mesma forma, a insuportabilidade da dor de dente estimulara Paciência a buscar o

serviço odontológico. No início do processo carioso, quando a dor ainda poderia ser

suportável, Paciência confessou que não procurava, de imediato, o dentista, assim como seus

pais, quando ela era criança.

Na zona rural onde Coragem morava quando criança, nem sempre havia a oferta de

assistência médica, o que contribuía para que as pessoas não tivessem o hábito de resolver os

seus problemas no âmbito dos serviços de saúde, chegando até mesmo a temer esses

profissionais. Essa procura só se daria quando a dor não mais pudesse ser suportada. Dessa

forma, as pessoas conviviam com abscessos dentários e dores de dente como algo que fazia

parte de suas vidas. Assim como Coragem, Simplicidade morava na zona rural, e a procura

pelo atendimento odontológico só se dava após a experiência de inúmeros quadros de

abscessos dentários e dor. Ao confessar que tinha medo de extrair, Simplicidade expressava a

sua expectativa em relação ao tratamento, que seria confirmada através da realização da

exodontia.

O fato de Felicidade não gostar de médico demonstra o seu pouco interesse em

procurar o serviço para resolver os seus problemas de saúde, só buscando o mesmo quando a

dor já estava instalada e a cárie havia destruído grande parte da estrutura dentária.

Outros estudos corroboram as situações narradas nessas histórias odontológicas. O

estudo de Bastos, Nomura e Peres7 concluiu que indivíduos com menor nível de renda

possuem piores condições de saúde bucal e maior probabilidade de sofrerem de dor de dente.

Lacerda e colaboradores35 identificaram que indivíduos com maior nível de escolaridade e de

renda buscam com maior freqüência os serviços preventivos, possuem melhor qualidade na

alimentação, mais autocuidado preventivo e menos doenças bucais que aqueles de menor

nível de escolaridade e de renda. Dessa forma, a dor influencia na qualidade de vida das

pessoas e está associada a condições sociais como o grau de acometimento dos dentes pela

cárie, expresso pelas perdas dentárias e o acesso ao serviço.

Moreira, Nations e Alves47 concluíram que a cárie reconhecida em casos de dor

intensa soma-se ao acesso precário e a uma baixa resolutividade dos serviços, o que

impulsiona a população a extrair o dente doloroso ao invés de optar por procedimentos mais

conservadores.

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 59

Alexandre e colaboradores3 observaram que diversas formas de tratamento passíveis

de serem realizadas nas visitas de rotina ao dentista inibem a evolução da lesão cariosa e,

conseqüentemente, o desencadeamento da sintomatologia dolorosa.

Para Piuvezam61, as perdas dentárias remontam a relação dos indivíduos com os

serviços de saúde, onde o modelo curativista oferta esse tipo de tratamento como solução

pontual para a dor, a qual é tida como principal motivo da procura pelo profissional. Essa

busca tardia pelo serviço possibilita que a cárie atinja elevados níveis de progressão, causando

dor, sofrimento e prejuízo na qualidade de vida.

Mesmo após a implementação do Sistema Único de Saúde, em 1990, a estruturação

das políticas públicas no Brasil permaneceu pautada em ações pontuais quase sempre de

natureza mutiladora ou reparadora. A falta de acesso a ações preventivas e assistenciais nos

estágios iniciais do processo carioso acarreta um aumento na complexidade das doenças

bucais que caminhará para as seguintes situações. A exodontia como a única alternativa de

tratamento diante do elevado grau de destruição dentária e a exodontia como forma de

eliminação da dor, devido à inexistência de acesso a outros tipos de tratamento35. Esse

abandono da parcela adulta da população do serviço de assistência pública odontológica no

Brasil provocou um quadro caótico para a odontologia, onde inúmeras pessoas ficaram

desdentadas e sem acesso ao tratamento reabilitador.

Reconheceu-se desde cedo a importância dos dentes para a alimentação e para a

sobrevivência, acompanhada, no cotidiano do homem, de dor e desconforto o levou à busca

de soluções imediatas e práticas para enfrentá-la52. A experiência de dor é indescritível para

quem a vive e marca, profundamente, a trajetória de vida das pessoas, as quais passam a temer

a ocorrência de um novo episódio.

Apesar de a dor ser tida como uma experiência individual e ter forte impacto no

psíquico do indivíduo, as maneiras de suportá-la e enfrentá-la são saberes compartilhados

socialmente pelos indivíduos24.

A dor é uma sintomatologia que provoca desordem, mas também desperta uma certa

ordem, uma vez que os indivíduos se organizam em sociedade para combatê-la, e para isso,

fazem uso de saberes científicos ou simbólicos23.

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 60

Em muitas comunidades no Brasil, utilizam-se largamente as plantas medicinais no

tratamento de doenças. Isso ocorre devido a influências das culturas indígenas, africanas e

européias, as quais, somadas aos conhecimentos existentes no país, repercutiram tanto no

aspecto espiritual quanto no material. Outro fator que contribui para a larga utilização de

plantas medicinais no Brasil é o vasto número de espécies vegetais encontradas no país. O

conhecimento sobre o uso de espécies vegetais como alternativa é adquirido ao longo do

tempo, sendo por isso, os idosos, os informantes mais relevantes. Observou-se, também, que a

maior parte das pessoas da comunidade fazem uso de plantas medicinais no seu dia-a-dia e

adquiriram esses conhecimentos dos seus pais, parentes e amigos. Os indivíduos acreditam

nos benefícios desses medicamentos e, por isso, recorrem primeiramente a estes em caso de

problemas de saúde, antes mesmo da procura pelo médico10.

Dessa forma, observa-se em um meio social que práticas culturais podem representar a

única alternativa no enfrentamento das dores e sofrimentos humanos23.

Nas histórias odontológicas, os sujeitos narraram suas formas de enfrentamento da

dor, resgatando em saberes da tradição, alternativas de cura ou, ao menos, de alívio, diante do

sofrimento. Em geral, o desenvolvimento de tais estratégias ocorreu em situações em que o

acesso ao serviço odontológico pode não ser possível.

Como forma de minimizar a dor de dente intensa que sentia, Alegria tomava remédios

de purgante de azeite de carrapato, assim como cravo e pimenta do reino pisada colocada

dentro do dente, o qual se encontrava com cavitação advinda de lesão cariosa. Após tomar

esses remédios, Alegria associava algumas medidas para amenizar o quadro doloroso,

permanecendo de repouso sem levar sol quente, nem poeira, nem pisar o pé no chão.

Acredita que isto possibilitava a melhora momentânea, mas não a solução definitiva para o

quadro de dor, que retornava, após certo tempo. Para Alegria, a resolução definitiva para os

problemas bucais deu-se somente através da extração dentária, a qual traria uma sensação de

alívio da dor.

O sofrimento da dor de dente impossibilitava que Paciência participasse de

determinados acontecimentos, o que fazia com que sua família também sofresse,

demonstrando uma atitude de solidariedade diante do sofrimento alheio. Familiares se

mobilizavam no intuito de arrumar um remédio que, neste caso, fora um comprimidinho

anador introduzido no interior da lesão cariosa.

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 61

Mendonça38, em seu estudo sobre a mutilação dental em comunidade rural do estado

da Bahia, também observou que parentes, amigos, vizinhos e pessoas mais velhas podem

indicar a exodontia, de acordo com suas experiências individuais, na tentativa de ser solidário

diante do sofrimento alheio, como forma de encorajar e ajudar a suportar.

Aqueles que vivem na zona rural enfrentam diversas dificuldades de vida e, entre elas,

a convivência com a dor e o sofrimento provenientes das enfermidades do corpo. Dessa

forma, ainda na adolescência, Coragem experimentava suas primeiras dores de dente e a face

inchada refletia o quadro de falta de assistência, próprio daquele lugar. Coragem utilizava

recursos alternativos para amenizar a sintomatologia dolorosa, mesmo que não a resolvesse de

forma definitiva, tais como: pimenta do reino, leite de pinhão, alho. Coragem não poderia

deixar de trabalhar devido à dor de dente e para suportá-la tomava um comprimidinho de

anador, além de colocar, no local doloroso, água gelada. Diante do aumento da complexidade

das necessidades de tratamento e do elevado grau de destruição dentária, restou a Coragem a

extração dentária como o único procedimento possível de ser realizado.

A dor, além de influenciar na qualidade de vida, no comportamento dos indivíduos e

na realização de tarefas habituais, sofre interferência das condições sociais e de acesso aos

serviços odontológicos35.

As necessidades de tratamento, ao longo dos anos, tornam-se mais complexas,

havendo uma maior necessidade de tratamentos endodônticos, periodontais e de próteses81. A

ausência de oferta de tais procedimentos nos serviços públicos de saúde favorece a realização

da exodontia. Pinto60 revela que a ação profissional nesse estágio terminal do processo eleva

os custos do tratamento tanto para o indivíduo quanto para a nação.

Assim como nas demais histórias, Simplicidade vivenciou os efeitos advindos do

processo de adoecimento bucal, que, para essas pessoas, deve ser de ocorrência natural. O

sofrimento da dor de dente iria ser acrescido às demais dores decorrentes das más condições

de vida. Para suportar a dor, Simplicidade fez uso de cigarro de folha de marmeleiro, quando

enchia a boca de fumaça, assim como o cachimbo, que ela considerava mais forte. A extração

dentária traria o alívio para o seu sofrimento, mesmo que provocasse, também, a ausência dos

dentes.

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 62

Quando Felicidade sentiu uma dor de dente intensa, procurou uma dentista, que

passou um medicamento para desinflamar o dente. Nesse caso, a cárie já havia comprometido

grande parte da estrutura dentária e Felicidade tivera que extrair o dente. Felicidade não

suportava sentir dor e logo procurava o pronto-socorro para resolver o problema. Para ela,

também parece haver uma seqüência em que adoecimento, dor e extração ocorrem de forma

natural.

Força sentiu-se desesperada ao vivenciar a sua primeira dor de dente. Permanecera

tomando antibiótico e analgésico, prescritos pelo profissional, mas não obteve melhora.

Força acredita que o antibiótico poderia causar danos aos demais elementos dentários. Assim,

Força optou por realizar a extração de todos os seus dentes.

Para Oliveira55, o processo pelo qual se forma o conhecimento popular advém de

interações complexas relativos à ordem biológica, social e cosmológica. Esses componentes

irão formar um corpo heteróclito de saberes e práticas mágicas, que não sejam supersticiosas,

nem lacunares, mas de ciência e modernidade.

A secularização da ciência trouxe à tona a necessidade de reconsiderar as suas

interpretações, que não podem ser analisadas de um ponto de vista fixo e, portanto, não sendo

definitiva, nem única forma de refletir sobre a sociedade. Então, ciência e magia representam

formas paralelas e distintas, das quais o mundo se permite apropriar e constroem, portanto,

simbolizações diferenciadas do mundo. Quanto às formas alternativas de cura, tem-se uma

ampla variedade de produções culturais que fogem ao domínio do saber erudito, revelando

que a cultura erudita não penetrou em todos os espaços sociais, absorvendo-as sob sua lógica

de dominação simbólica55.

A reduzida oferta de serviços odontológicos e até mesmo a sua ausência em algumas

localidades, especialmente na zona rural da região Nordeste do Brasil, impulsiona as pessoas

a desenvolverem formas singulares para lidar com a dor. Em geral, as estratégias que

pretendem amenizar a dor e o sofrimento dos indivíduos são compartilhadas pelos integrantes

de uma mesma comunidade.

A relação entre pobreza, má condição bucal e falta de acesso ao serviço coloca a

população em uma posição desfavorável que agrava as desigualdades sociais pela diminuição

de oportunidades de se atingir uma melhor condição de vida, havendo o desgaste do capital

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 63

social. Dessa forma, a atenção à saúde deve propiciar ações que valorizem a

intersubjetividade, onde as pessoas estejam próximas das suas reais necessidades, como forma

de minimizar as drásticas iniqüidades sociais47.

A característica da nossa cultura possibilitou a instituição da representação simbólica e

ancestral da “banalização” da dor e da mutilação dos corpos entre aqueles que vivem

marginalizados e excluídos socialmente neste país, enquanto é incutido no imaginário das

pessoas a naturalização dessas perdas84. Para Zanetti84, a perda dentária representa somente o

estágio final de um longo processo de perdas. Durante toda a vida, os indivíduos

possibilitaram que seus elementos dentários perdessem a condição natural e biológica de

higidez a partir da exposição a situações desfavoráveis, de forma individual e/ou coletiva, que

propiciaram o desenvolvimento da lesão cariosa. Cárie, comprometimento endodôntico,

alteração periodontal, falta de acesso a tratamento e extração dentária são acontecimentos

comuns. “Dessa forma, a perda dentária (decorrente das doenças bucais) torna-se assim a

expressão final e inequívoca da falta de cuidado, de atenção e assistência” 84 (p. 347).

Além das marcas do sofrimento e privações sociais de acesso a condições dignas de

vida de grande parte da população, somam-se as dores advindas do processo de adoecimento

bucal. Este, durante a trajetória de vida dos indivíduos, deixa seqüelas físicas e psíquicas

irreparáveis que culminaram no edentulismo. Na impossibilidade de reabilitação adequada no

serviço público de saúde, associado à falta de acesso aos bens de consumo, só resta a

convivência com o estigma trazido pela condição de desdentado.

Canguilhem15, ao comentar as concepções de Leriche, revela que, no indivíduo, a

inconsciência de seu próprio corpo determina um estado de saúde, mas, contrariamente, a

consciência do corpo se dá pela percepção dos limites, das ameaças, dos obstáculos à saúde.

Flores e Drehmer25, em pesquisa com adolescentes, observaram que a cárie é

representada pela dor de dente, mas, na verdade, trata-se de um sintoma que foi representado

como sendo a própria doença. Para eles, cárie e gengivite são considerados problemas comuns

e, por isso, são aceitos como normais. Nesse estudo, consideraram-se como doença as

enfermidades que impediram os indivíduos de realizarem suas atividades corriqueiras.

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 64

Essa ausência de sintomatologia, principalmente nos estágios inicias da cárie, propicia

uma percepção da sua condição de saúde bucal de aparente normalidade e pode ser

responsável pelo adiamento na procura pelo serviço.

Goulart e Vargas30, em estudo com crianças com deficiência visual, verificaram que a

procura pelo dentista deu-se devido a algum desconforto como dor, halitose e/ou lesões

cariosas. A dor foi relatada como o principal fator capaz de despertar os cuidados bucais, além

da estética. A percepção da cárie dentária também esteve associada a sinais que indicam fase

avançada da doença, como a presença de cavitação e/ou dor.

Para muitos pacientes o desejo de ter aliviado a sua dor motiva a busca pelo

tratamento. Tratar dos dentes é fugir da dor e deparar-se com uma situação normalmente

desagradável. A procura pelo dentista dar-se-ia com o aparecimento da dor. A dor estimula o

indivíduo a buscar o tratamento, o qual terá grande possibilidade de causar dor ou

desconforto. Diversos casos de ausências e atrasos no consultório odontológico estão

associados a exemplos de fuga do tratamento46.

Simplicidade construíra uma imagem negativa do atendimento odontológico a partir de

relatos de outras pessoas em relação à possibilidade deste provocar dor. A falta de delicadeza

do profissional que atendia na sua comunidade, associada à possibilidade de o mesmo não ter

formação superior, proporcionava o adiamento da consulta para Simplicidade. A experiência

de Simplicidade ao extrair o primeiro dente fê-la perder o medo e dar continuidade à

exodontia dos demais elementos dentários.

A irritação que Felicidade sentia com o motorzinho a fazia ter medo do tratamento

odontológico. A fratura de um dente, durante tratamento endodôntico realizado anteriormente,

ocasionou desconfiança e receio de que um novo procedimento dentário pudesse causar mais

dor, crença confirmada por relatos de experiências de outras pessoas. Portanto, Felicidade

optou, então, por extrair o dente.

A dor tem caráter subjetivo e, por isso, pode variar entre os indivíduos de acordo com

o contexto social. A sua experiência, vivida pelo próprio sujeito ou relatada pelo outro,

mobiliza as pessoas a adotarem condutas que evitem um novo episódio, seja através da

intensificação de cuidados preventivos, principalmente com relação aos dentes dos filhos, seja

através da exodontia de dentes doentes e não-doentes, na tentativa de impedir um maior dano.

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 65

Dessa forma, Força, ao buscar os serviços de saúde com o processo doloroso já

instalado, solicitava aos profissionais que extraíssem tanto o dente que estava cariado, quanto

o outro hígido, que estava próximo a este, no intuito de alcançar, mais rapidamente, o seu

objetivo, que seria a extração de todos os dentes e a colocação da prótese, assim como forma

de evitar um novo episódio de dor. Posteriormente, Força criticou a facilidade com que o

profissional aceita tal procedimento.

Mendonça38 encontrou, em seu estudo, resultados que apontam para a necessidade de

uma punição, responsabilização do profissional pela extração, somente devido a uma cárie.

Observa-se uma falta de sensibilidade do profissional no exercício dessa prática, como se o

paciente e a dor fossem um problema do qual ele desejaria livrar-se.

Assim como Força, Felicidade teve receio de voltar a experimentar a dor de dente e,

por isso, acreditava que a solução mais eficaz fosse a extração.

Ao discorrer sobre a experiência humana com a dor, Canguilhem15 ressalta que o

conhecimento científico sobre a doença e as formas de impedir que o doente passe pela

experiência de dor e sofrimento adveio da própria experiência anterior que despertou a

atenção dos homens como um desafio a ser superado. De acordo com o autor, “não há nada na

ciência que antes não tenha aparecido na consciência” (p.68).

A universalidade da dor vivenciada ultrapassa o campo da saúde e demonstra a

extensão desse mal-estar, seja orgânica ou existencial, manifestada pela ciência ou pela arte.

A dor faz sofrer não somente pela sua experiência, mas também pela expectativa do seu

surgimento46.

A naturalização do adoecimento bucal, tendo em vista a alta prevalência das doenças

bucais, especialmente cárie, em populações de menor poder aquisitivo, produz também a

naturalização da perda dentária, que sugere a eliminação, de forma radical e definitiva, do

dente “estragado” da cavidade bucal.

As histórias odontológicas mostram que a convivência com o adoecimento bucal e

suas conseqüências, como, as dores de dente (suas formas de enfrentamento, seja através da

utilização de remédios caseiros, seja na luta em busca do atendimento odontológico tão

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 66

escasso, mutilador e pouco resolutivo), dentes cariados, perdas dentais e próteses fazem parte

do cenário de vida dessas pessoas e representam a falta de acesso a condições dignas de vida.

No imaginário popular, a inevitabilidade de controle da cárie dentária e os freqüentes

episódios de dor de dente justificam a extração dentária como forma de eliminação da doença

na boca.

4.2 Acesso a serviços, resolutividade e perda dentária

Como já referimos anteriormente, os dados epidemiológicos relativos à saúde bucal,

no Brasil, especialmente quando analisamos a população de adultos e idosos, mostram

elevados índices de edentulismo, que representam a perda total dos dentes, assim como de

cáries e doença periodontal48. Tal quadro é resultante da exclusão dessa parcela da população

da assistência pública odontológica, bem como da limitação da oferta de serviços, os quais se

caracterizaram por serem, em geral, de caráter mutilatório19. Além de ter sido vítima de um

sistema curativista e mutilatório, essa população não teve acesso ao tratamento reabilitador

no sistema público de saúde.

A assistência à saúde, no Brasil, passou por alterações importantes a partir da criação,

pela Constituição de 1988, e implementação, em 1990, do Sistema Único da Saúde, o qual

instituiu a universalidade do acesso aos serviços de saúde de forma equivalente a populações

urbanas e rurais. O texto constitucional traz à tona também o princípio da eqüidade, que se

refere à oferta de oportunidades iguais de acesso aos serviços de saúde diante de necessidades

semelhantes73. Segundo a política oficial do Ministério da Saúde, a eqüidade significa

“assegurar ações e serviços de todos os níveis de acordo com a complexidade que cada caso

requeira, more o cidadão onde morar, sem privilégios e sem barreiras”43. Contudo, mesmo

após a conquista no plano legal do princípio da universalidade, estudos indicam que

indivíduos com menor poder aquisitivo necessitam de mais cuidados médicos e, mesmo

assim, consomem menos serviços51.

É importante destacar que o conceito de acesso tem sofrido modificações, no decorrer

do tempo, entre opiniões de diversos autores e de acordo com o contexto analisado. Existe

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 67

complexidade e imprecisão na utilização do conceito, além de não estar bem explicitada a sua

relação com o uso dos serviços de saúde75.

A funcionalidade dos serviços de saúde dá-se através de sua utilização, que se

concretiza através da interação entre usuários que buscam cuidados e profissionais que os

direcionam no interior dos serviços de saúde. Dessa forma, o conceito de uso envolve

qualquer contato com os serviços de saúde, que poderá ser tanto de forma direta, através de

consultas médicas, quanto indireta, pela realização de exames diagnósticos75.

A literatura nos remete ao termo acessibilidade, que Campos e colaboradores14

associaram à avaliação da qualidade dos serviços de saúde a partir da relação existente entre a

igualdade no acesso e as características da população ou dos serviços de saúde. Os autores

também relacionam a avaliação do acesso com o resultado da passagem do usuário pelo

sistema de saúde.

Compreende-se a acessibilidade como sendo uma característica dos serviços de saúde

e, dessa forma, pode estar relacionada aos seguintes aspectos: geográfico, que se refere ao

deslocamento do usuário até o serviço de saúde, envolvendo a distância e os obstáculos

encontrados; funcional, analisando o serviço ofertado quanto ao tipo, à qualidade e ao horário

que funciona; cultural, relativo à adequação dos serviços de saúde aos hábitos e costumes da

população; e econômico, que considera a não disponibilidade dos serviços de saúde a todos

os indivíduos79.

As dificuldades de acesso ao serviço estão presentes nas histórias odontológicas dos

entrevistados de nossa pesquisa, pela angústia de pessoas que, ao longo de suas vidas, não

tiveram suas necessidades em saúde atendidas. Tais dificuldades são também retratadas em

suas bocas mutiladas pela ausência dos dentes.

A pouca oferta de assistência à saúde a esses indivíduos ficou evidente no desabafo

revoltado de Força ao relatar sua busca por atendimento odontológico, em caso de dor, a qual

não obteve sucesso. Para consegui-lo ela teve de brigar. Força atribuiu tal dificuldade ao fato

de tratar-se do serviço público, ao contrário do setor privado, onde haveria uma maior

agilidade de atendimento. Devido à condição precária em que vive, só restou a Força

conformar-se com a limitação de acesso ao setor público. Na atualidade, Força ainda convive

com dificuldades de acesso aos serviços de saúde e caracterizou o atendimento odontológico

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 68

do bairro onde mora como sendo sempre tumultuado, devido à grande demanda, devendo, por

isso, recorrer ao bairro vizinho.

A incerteza relativa à possibilidade de conseguir atendimento odontológico provocou

agravamento das condições de saúde bucal de Felicidade, o que redundou também em

extração de dentes, que poderiam ter sido restaurados. Por isso, Felicidade prefere extrair os

dentes ao invés de restaurá-los, pois em caso de dor, teria de retornar ao dentista. A maior

dificuldade de acesso ao tratamento endodôntico e restaurador contribuiu, também, para

Felicidade optar pela extração. A necessidade de ter de dormir no local, a fim de conseguir a

ficha para o atendimento, expressa a insatisfação de Felicidade frente à grande demanda por

tratamento dentário, cada vez maior, o que fez Felicidade lembrar da “facilidade” de

atendimento à época em que começou a perder seus dentes.

Coragem relatou sua dificuldade em ter acesso ao atendimento odontológico tanto na

época em que seus dentes começaram a estragar quanto atualmente. Coragem se sente

desassistida e, por isso, não tem a quem nem aonde recorrer quando necessita de assistência

odontológica. Coragem atribui esse fato à forma dos serviços organizarem a demanda a partir

dos bairros, que, de acordo com ela, não beneficiou a população. Sua condição de

desassistida a coloca em situação limite de negação de direitos sociais e políticos: Coragem

troca seu voto, em período eleitoral, pela realização de exodontias. Certamente, mantém sua

falta de assistência, pelo menos, até as próximas eleições e garante menor possibilidade de

sofrer devido a dor de dentes.

Nuto53 destacou, a partir de achados em estudo realizado com usuários em cidade

cearense, que a demanda por extrações dentárias, bem como as dificuldades de acesso ao

serviço, condiciona a remoção de um dente a um voto em períodos eleitorais. De acordo com

a autora, a concessão do voto em troca da extração em uma eleição possibilitava a oferta da

chapa (prótese dentária total) e outro voto na eleição seguinte.

Simplicidade atribuiu avaliação positiva ao atendimento pautado na demanda

espontânea, que, segundo ela, possibilitou acesso mais fácil ao dentista, à época em que se

submetera à extração dos seus dentes. Ao contrário de hoje, em que a consulta odontológica

está condicionada à obtenção de “ficha”.

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 69

Da mesma forma que Simplicidade, Alegria referiu facilidade ao extrair seus dentes,

pelo fato de, naquela época, não haver marcação de consultas, mesmo que em algumas vezes

não tenha conseguido atendimento devido à ausência do profissional ou a problemas técnicos,

como a falta de energia elétrica. Naquele tempo, o atendimento obedecia à ordem de quem ia

chegando. Paciência também afirmou não ter tido dificuldade quando procurou o dentista,

pela primeira vez, para a realização da extração dentária.

As situações narradas nas histórias odontológicas de nossos entrevistados remetem à

discussão sobre a relação oferta e demanda de serviços odontológicos, bem como sobre a

qualificação da atenção odontológica.

Roncalli67 ressalva que a prevalência obtida pelo CPO-D não implica,

obrigatoriamente, demanda por serviços de saúde, pois, no Brasil, o aumento do CPO-D com

a idade dá-se em decorrência do elevado grau de perdas, que acarreta uma diminuição da

necessidade de tratamento.

Matos e colaboradores37, ao analisarem as desigualdades sociais sobre a saúde bucal,

investigaram usuários de serviços odontológicos público, privado e de sindicato. Concluíram

que entre os usuários do serviço privado havia menor percepção da necessidade de

tratamento, maior satisfação em relação à mastigação e à aparência dos dentes que aqueles

que utilizavam o serviço público. Estes tiveram também maior chance de ter recebido a

extração como tratamento, enquanto aqueles que utilizaram o serviço privado ou de sindicato

tiveram maior chance de receber o tratamento restaurador.

Barros e Bertoldi6 analisaram dados da PNAD 1998 (Pesquisa Nacional por

Amostragem de Domicílios) e identificaram reduzida utilização dos serviços públicos

odontológicos, principalmente, em relação ao SUS, que financiou 24% destes atendimentos e

52% dos atendimentos não odontológicos. Observaram diferença acentuada entre os grupos

de maior e menor renda, pois, entre os de menor renda, 80% dos atendimentos não

odontológicos e 68% dos atendimentos odontológicos eram financiados pelo SUS. Já entre os

de maior renda, 17% dos atendimentos não odontológicos e 4% dos odontológicos eram

realizados no âmbito do SUS.

Outro aspecto destacado por Barros e Bertoldi6 foi o avanço da idade que poderia

reduzir a oportunidade de acesso ao serviço público odontológico nos grupos menos

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 70

favorecidos. Nessa fase, os grupos mais favorecidos tendem a realizar o financiamento do

atendimento com recursos pessoais. Para os autores, isso pode ser resultante do tipo de

programação odontológica no Brasil que, historicamente, excluiu a população de adultos e

idosos em detrimento da ênfase dada a indivíduos em fase precoce da vida, especialmente os

escolares.

Na análise das desigualdades sociais e sua relação com o local de moradia, Pinheiro e

Travassos57 observaram que o local de residência superava a condição econômica individual

do idoso na possibilidade de uso do serviço de saúde. Isso porque, em áreas de menor

condição sócio-econômica, provavelmente, há uma menor disponibilidade de serviços

públicos e uma menor procura pelos mesmos, podendo ocasionar uma diminuição na procura

pelos serviços ou uma demanda reprimida.

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 1998 também foram

utilizados na análise do acesso e do uso dos serviços de saúde em moradores da zona rural e

urbana. Foram observados percentuais elevados de indivíduos, em todas as idades, que nunca

freqüentaram o dentista, principalmente na zona rural, onde há menor oferta de serviços

públicos e menor condição financeira. Estas, associadas à dificuldade de acesso geográfico,

constituem barreiras para a utilização de serviços de saúde 58.

O levantamento das condições de saúde bucal da população brasileira, realizado em

2003, constatou que 13,48% das pessoas nunca freqüentaram o consultório dentário40. Em

relação à população adulta, quase 3% nunca foram ao dentista. Os melhores índices relativos

ao acesso estiveram localizados na região Sul, e a maior proporção de pessoas que nunca

freqüentaram o dentista foi apresentada pela região Nordeste68.

Os estudos sobre o acesso a serviços de saúde revelam a questão da desigualdade e,

portanto, remetem à necessidade de efetivação do princípio da eqüidade. Para Travassos 74, o

termo eqüidade estaria relacionado a uma questão de justiça social. A autora enfatiza a

necessidade de diferenciação entre o termo eqüidade em saúde, que estaria relacionada a

aspectos do adoecimento e da morte dos indivíduos, enquanto a eqüidade no uso ou consumo

dos serviços de saúde seria relevante, mas não suficiente para provocar uma diminuição

dessas desigualdades nos diversos grupos sociais. O uso dos serviços de saúde tanto pode

provocar impacto positivo na saúde das pessoas, através da prevenção ou erradicação de

algumas doenças e no aumento de taxas de sobrevida, quanto impacto negativo, devido a uma

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 71

desqualificação do cuidado ofertado, ineficácia ou perigo no uso de determinados

procedimentos e prestação de assistência desnecessária. Em geral, o caráter social da saúde

indica que indivíduos menos favorecidos sofram os efeitos do adoecimento em uma fase

precoce.

Neri e Soares51 sugerem a utilização do termo eqüidade vertical, em que indivíduos

com diferentes necessidades deveriam receber distintas formas de tratamentos. Dessa forma,

a organização dos serviços de saúde seria em função das necessidades de cuidados em saúde

e não em relação a aspectos sócio-econômicos dos indivíduos. Portanto, o consumo dos

serviços de saúde nem sempre correspondem à demanda por cuidados em saúde, já que se

pode consumir sem, obrigatoriamente, necessitar deles, havendo uma indução no consumo ou

uso dos serviços de saúde pelo fato de o indivíduo possuir plano de saúde ou ter acesso a um

sistema gratuito de prestação de serviços.

Nos relatos das histórias odontológicas ficou evidente a natureza do modelo

odontológico mutilador, cuja manutenção não seria pertinente em iniciativas de expansão de

serviços. Ampliar o acesso pela simples expansão de cobertura de serviços odontológicos,

mantendo a baixa qualificação do cuidado e da atenção, certamente, não reverteria tendências

de edentulismo.

Outras barreiras de acesso como a baixa percepção de necessidade, ansiedade e medo

de sentir dor, alto custo do tratamento odontológico privado, falta de credibilidade no

trabalho do profissional, além da dificuldade de acesso ocasionada por transporte e violência

urbana foram destacadas em estudo realizado por Albuquerque, Abeeg e Rodrigues2. Tais

barreiras constituíram-se em obstáculos à realização do tratamento odontológico também para

as nossas entrevistadas.

A exposição de Coragem à violência urbana, ao ter de sair de madrugada de casa na

tentativa de buscar atendimento no posto de saúde, denota uma situação de carência e

exclusão social a que se submetem essas pessoas que vivem na periferia das cidades.

A violência, em alguns bairros periféricos, limita o livre trânsito na comunidade, em

especial da mulher, que integra um grupo mais vulnerável47. Semelhante ao que encontramos

na história de Coragem, Moreira, Nations e Alves47 identificaram, em seu estudo, que a

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 72

necessidade de ter de sair cedo de casa para alguns serviços de saúde pode gerar situações de

medo e inibir as pessoas de procurarem o dentista mesmo em casos de dor.

Consideramos, também, que a baixa qualificação e, conseqüentemente, baixo poder

resolutivo dos serviços públicos odontológicos frente às necessidades de saúde, produz

cultura de descrédito nas ações realizadas por este setor, sobretudo em relação a tratamentos

restauradores. Nas histórias odontológicas, percebeu-se uma preferência, entre os

entrevistados, pela extração como forma de tratamento para as doenças bucais, em virtude da

experiência com o fracasso do tratamento restaurador ou, até mesmo, de sua ausência.

As sucessivas restaurações, seguidas da realização de um tratamento endodôntico e de

fratura em um dente incisivo superior, fez Felicidade desiludir-se e dar preferência ao

tratamento mutilador. Outro fato que contribuíra para tal decisão foi a dor intensa sentida

após o insucesso do tratamento restaurador realizado. Desta feita, Felicidade decidiu-se e não

quis mais se submeter ao tratamento endodôntico, preferindo a extração dentária. A ineficácia

do tratamento restaurador, a possibilidade de voltar a sentir dor e, portanto, a possibilidade de

se deparar, novamente, com as limitações de um serviço excludente, fizera Felicidade não

mais querer o tratamento conservador.

A desigualdade social ficou evidente para Força ao reconhecer o tratamento realizado

no setor público como sendo um faz de conta, em comparação àquele realizado pelo setor

privado, que acredita ser de melhor qualidade, e ao qual sua condição sócio-econômica a

impedia de ter acesso. O medo de sentir dor e a impossibilidade de acesso ao setor privado

definiram a decisão de Força por extrair todos os dentes superiores, mesmo que,

posteriormente, viesse a sentir um grande arrependimento.

Para Paciência, somente a extração dentária eliminaria de forma definitiva a doença

na boca e o sofrimento com dores de dente, uma vez que o tratamento restaurador apenas

prolongaria, por determinado tempo, a permanência do dente na boca, diante da

inevitabilidade da perda dentária. A naturalização dessa perda a fazia reconhecer a extração

como sendo o procedimento mais correto.

Para Coragem, a orientação do dentista mais a realização do tratamento endodôntico e

restaurador poderiam contribuir para a manutenção dos dentes na cavidade bucal por um

longo período. Mesmo que ocorresse o insucesso de tais procedimentos, haveria possibilidade

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 73

de realizá-lo novamente. Dessa forma, Coragem reconheceu sua falta de oportunidades e seu

destino à extração dentária.

Para Simplicidade, o sofrimento vivenciado com a dor de dente foi decisivo na sua

opção pela exodontia, mesmo quando o dentista sugeriu a possibilidade de realização do

tratamento restaurador.

O que encontramos nas narrativas de nossos entrevistados corroborou achados de

outros estudos identificados na literatura.

O estudo de Caldas Júnior, Silveira e Marcenes13 concluiu que a maioria dos dentes

extraídos, devido à cárie, foram restaurados duas ou mais vezes, o que denota claramente a

ineficácia das atividades clínicas no sentido de contribuir positivamente para a manutenção

dos dentes na boca. Os autores encontraram em seu estudo uma associação bastante

significativa entre o indicador uso dos serviços e exodontia devido à cárie e concluíram que

não se pode afirmar que a simples restauração dos dentes irá prevenir a perda dental e,

conseqüentemente, promover saúde bucal.

Em estudo de abordagem antropológica sobre a perda dentária, Mendonça39 destacou

questionamento dos indivíduos sobre a efetividade de tratamentos conservadores,

principalmente quando estiveram associados às experiências malsucedidas, individual ou

coletivamente, que geraram dor física, sofrimento e perda dentária.

O resultado do estudo de Moreira, Nations e Alves47 mostrou, através do discurso dos

seus entrevistados, que o inevitável insucesso do tratamento restaurador provocaria uma dor

ainda maior e seria decorrente, possivelmente, de um procedimento mal realizado. Dessa

forma, seria preferível a extração à obturação.

Para Roncalli67, a renda tem relação direta com o acesso, em virtude do caráter

extremamente liberal da odontologia, que não é compatível com o orçamento médio dos

indivíduos no Brasil.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 200345 evidenciou que 27,9

milhões de pessoas ou 15,9% da população nunca freqüentou o dentista. E a maior proporção

seria para a população rural, 28% das pessoas, e 13,6% da população urbana. Assim como,

31% da população com rendimento até 1 salário mínimo revelaram nunca ter ido ao dentista.

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 74

Entre aqueles que visitaram o dentista há três anos ou mais, a maior proporção está entre os

que moram na zona rural, homens, com nível de rendimento familiar mensal mais baixo.

O acesso ao serviço de saúde torna-se mais difícil na zona rural, principalmente em

virtude da distância até a zona urbana e pela inexistência de transporte e de serviços

permanentes e ou esporádicos no local. Nas histórias odontológicas das pessoas moradoras

da zona rural, em nosso estudo, tais dificuldades são bem expressivas.

Alegria narra seu sofrimento ao ter de percorrer duas léguas a pé até o consultório

odontológico, localizado na zona urbana, quando já tinha sido acometida por vários episódios

de dor. A necessidade de extrair o dente que doía a fazia vencer mais esse obstáculo em sua

vida. Para ela, o fato de as pessoas da zona rural não procurarem o atendimento odontológico

com tanta freqüência devia-se, também, à dificuldade de transporte.

Simplicidade teve de caminhar por uma longa distância até a zona urbana, onde se

localizava o consultório odontológico, uma vez que só havia transporte em dia de feira. As

pessoas conviviam com a dor até que esta se tornasse insuportável e provocasse a procura

pelo atendimento para efetivar a extração dentária. Da mesma forma, Coragem expôs sua

dificuldade em se deslocar de sua casa até o serviço de saúde, do qual dista légua e meia.

Soma-se a isso a esporádica presença do médico e o desinteresse das pessoas em relação à

procura do profissional.

Faz-se oportuno realizar uma reavaliação de nossas práticas em saúde a fim de torná-

las mais resolutivas, refletindo sobre os elevados índices de edentulismo no Brasil como

resultante da ausência de tratamento de muitas doenças bucais, buscando minimizar as

desigualdades no acesso e na utilização dos serviços de saúde6.

Cabe-nos refletir quanto ao rumo que tem tomado as políticas públicas de saúde, no

Brasil, no sentido de contribuir para a inclusão social dos menos favorecidos, propiciando-

lhes adequadas condições de vida, assim como acesso e utilização dos serviços de saúde.

Mesmo após a garantia constitucional da universalidade, observa-se que grande parte da

população ainda permanece desassistida ou se depara com um serviço de saúde de baixa

qualidade e pouco resolutivo. Dessa forma, Assis, Villa e Nascimento5 lembram-nos que há

contradição entre a legislação e sua legitimidade na sociedade. Desse modo, os autores

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 75

sugerem considerar diversos aspectos que podem facilitar ou não a aplicabilidade do

princípio da universalidade no acesso aos serviços de saúde bucal.

Faz-se necessário também o desenvolvimento de estratégias que possibilitem uma

reordenação nos serviços de saúde em direção à construção e aplicabilidade dos princípios da

universalidade, eqüidade e integralidade, para uma maior resolutividade das ações em saúde,

desenvolvidas de acordo com as necessidades dos indivíduos e que possibilitem

oportunidades de melhores condições de saúde e, conseqüentemente, mais dignidade em suas

vidas.

4.3 Algumas facetas do cuidar-se

Em contexto sócio-econômico-cultural de carências e exclusão social, vive grande

parte da população brasileira, onde questões de sobrevivência têm prioridade. Além da

dificuldade de acesso a serviços de saúde, soma-se o fato destes serem produtores de práticas

mutilatórias, contribuindo para a caracterização do Brasil como um país de muitos

desdentados, que parece ter descuidado de dentes e bocas.

Os problemas de saúde aproximam a pessoa do seu corpo, possibilitando a

identificação dos seus limites e a conscientização dos seus processos fisiológicos, intelectuais

e afetivos. Dessa forma, cuidar da saúde é procurar formas que possibilitem viver por mais

tempo e melhor. Para propor comportamentos saudáveis faz-se necessário o entendimento da

forma de interação dos indivíduos com os serviços de saúde, bem como são assimiladas as

informações sobre os cuidados ideais para a manutenção da saúde46.

Ferreira24 destaca que, desde os períodos mais remotos, em função da diversidade

cultural de cada povo, observam-se formas de enfrentar as doenças que denotam uma

necessidade de cuidado com o corpo.

Giacomin, Uchoa e Lima-Costa29, ao referirem-se à necessidade de cuidado do outro,

descrevem os constituintes do cuidado integral, que inclui o cuidado com o corpo (higiene,

vestuário, banho), tarefas domésticas (cuidado da casa e da alimentação), presença física de

forma integral e cuidados referentes a tratamento de saúde (ida a consulta médica e

administração de medicamento).

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 76

Para Foucault26 o cuidado consigo mesmo do homem contemporâneo está submetido à

definição de regras exteriores. O cuidado de si é um tema bastante antigo na cultura grega que

foi consagrado por Sócrates, mas resgatado posteriormente pela filosofia. Ao extravasar o seu

quadro original e se afastar de seus significados filosóficos iniciais, progressivamente, ganhou

a dimensão de uma verdadeira “cultura de si”. O princípio do cuidado de si teve um alcance

bastante amplo: o preceito de acordo com o qual convém ocupar-se consigo mesmo representa

um imperativo que permeia diversas doutrinas distintas; tomou forma de uma atitude,

impregnando formas de vida; desenvolveu-se em procedimentos práticos e receitas;

constituiu-se em uma prática social, cedendo lugar a trocas, comunicações e instituições; e por

fim, possibilitou uma determinada forma de conhecimento e constituição de um saber.

Nesse contexto, desde a tradição grega, observa-se uma forte relação entre o

pensamento e a prática médica. Essa intensificação no cuidado médico pode ser traduzida por

uma forte atenção com o corpo26.

Boltanski9 revela que os membros das classes populares não dispensam atenção, de

forma voluntária, ao seu corpo, uma vez que o utilizam como um instrumento que precisa

funcionar e, dessa maneira, subordinam a utilização desse corpo às funções sociais. Dessa

forma, a não percepção dos sinais iniciais da doença ou a recusa de percebê-los possibilita a

sua manifestação brutal. Contrariamente, os membros das classes superiores prestam maior

atenção ao seu corpo e aos sinais iniciais da doença, a qual não aparece de forma súbita,

representando uma espécie de perversão longa e insidiosa.

Para Abreu, Pordeus e Modena1, a partir da divisão social do trabalho e do surgimento

das classes e do Estado, o corpo tem sido considerado como o “gerador de bens” para aqueles

que o têm como a única propriedade. Dessa forma, a sociedade capitalista faz do corpo uma

mercadoria destinada a produzir bens para os donos dos meios de produção.

O fato de os indivíduos possuírem o conhecimento sobre cuidados de higiene não

indica que eles o adotem. Mendonça39 reflete isso em sua pesquisa, ao revelar que pessoas que

residem na “sede” do município estudado, termo utilizado para a denominação de zona

urbana, têm um maior nível de escolaridade e acesso aos meios de comunicação como a

televisão, conhecem os cuidados de higiene, mas nem por isso os põem em prática. Na zona

rural, percebe-se praticamente o desconhecimento desses cuidados.

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 77

As regras de higiene mudam de acordo com o nosso estado de conhecimento. Para

Douglas21, a higiene seria tida como uma excelente rota, desde que houvesse certo

autoconhecimento para segui-la. Assim, a sujeira seria uma ofensa à ordem, estando,

necessariamente, associada à desordem.

A higiene fazia parte de um ritual ligado à religião. Definiu-se, então, um critério de

classificação para religiões avançadas ou primitivas. Quanto menos a impureza estivesse

associada a condições físicas e mais se aproximasse de um estado espiritual de indignidade,

mais facilmente a religião poderia ser considerada avançada. Dessa forma, rituais de pureza e

impureza formam unidade no exercício da experiência e possibilitam a execução de padrões

simbólicos que são manifestados publicamente21.

A forma dos indivíduos se autocuidarem varia de acordo com suas experiências

vivenciadas na singularidade de cada contexto sócio-econômico-cultural. Moraes e

Ongaro46(p. 95) revelam que, “no autocuidado com a saúde, as conseqüências não são

imediatas: é a expectativa da conseqüência, entre outros fatores, que interfere no processo de

decisão de cuidar ou não da saúde”. O fato de cuidar ou não de si mesmo tem relação com as

prioridades de vida e, portanto, com o significado atribuído à saúde pelos indivíduos.

Vale lembrar, também, que pesquisas sobre os cuidados com a saúde revelam um

discurso pautado em conhecimentos odontológicos adquiridos, ao longo de suas vidas, que,

em geral, não revelam os procedimentos realmente executados relativos à saúde bucal31.

Para as pessoas das histórias odontológicas deste estudo, diante de tantas adversidades

e da necessidade de luta pela sobrevivência num precário contexto social vivido, cuidar de

partes do corpo, como boca e dentes, foi relegado ao plano secundário de suas existências.

O autocuidado com os dentes realizado por Alegria limitou-se à esporádica escovação

com raspa de juá ou carvão. A utilização do creme dental era rara e Alegria reconhecia a

insuficiência desse cuidado. A perda dentária vivenciada por Alegria fez acreditar em roteiro

natural de destino para os dentes humanos: esperar o surgimento do processo de adoecimento

dental, a vivência com dores de dente e, finalmente, a salvação definitiva destas dores por

meio da extração dentária. Cuidados bucais, nessa lógica, não iriam prevenir o acometimento

dos dentes pela cárie, assim como as perdas dentárias.

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 78

Na época em que Força perdera os dentes, sua escovação era feita com a raspa do juá,

num certo ritual em que Força e sua família se dirigiam às margens do rio a fim de realizar a

higiene da boca e dos dentes. Na atualidade, como arrependimento por ter perdido os dentes e

com falta de adaptação à prótese, Força deseja cuidar dos dentes da arcada inferior, que ainda

lhe restam.

Paciência expressou um discurso tipicamente odontológico em relação à prevenção

das cáries, que seria a manutenção diária da escovação e a não ingestão de doces. Mas tais

conhecimentos parecem não ter surtido o efeito desejado em evitar o aparecimento da cárie e

da perda dentária. Paciência acreditou que a utilização da raspa de juá tornaria os dentes mais

sadios e minimizaria a perda dentária. Ela também associa a noção de saúde com o uso do

serviço de saúde, que significaria a procura do médico e solicitação de exames, refletindo o

efeito da medicalização da sociedade. Paciência condiciona o seu estado de saúde a uma

avaliação médica. A condição de saúde estaria associada, também, ao fato de não ter mais

dores de dente e nem a presença dos dentes doentes.

O estímulo com os cuidados bucais foram incentivados pela mãe de Felicidade,

devido a sua própria experiência negativa com a perda dentária e com a prótese. Assim como

Paciência, Felicidade expressou um discurso odontológico em relação à manutenção da

escovação após as principais refeições, como forma de prevenir o surgimento das doenças

bucais.

Coragem utilizou apenas a raspa do juá para limpar seus dentes. Só passara a usar a

escova de dente e o creme dental a partir de seus 14 anos de idade. Naquele momento, a

escovação já não resultou nos efeitos desejados de evitar a cárie, diante da inevitabilidade de

sua progressão que culminou com exodontias. Coragem ressalta que a necessidade de ter de

trabalhar para sustentar a família fê-la descuidar-se consigo mesma em prol da luta pela

sobrevivência.

O acompanhamento do cotidiano de indivíduos cujas famílias possuem baixo poder

aquisitivo mostra que as preocupações relacionadas à saúde não representam uma prioridade

por si só, mas integram um conjunto maior de restrições em que a manutenção das condições

de vida da família, e de sua reprodução física e social, têm prioridade28.

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 79

Para Simplicidade, os cuidados bucais foram representados pela escovação dos dentes

com pó de juá, como forma de desinfecção e prevenção da doença periodontal. Simplicidade

tinha preferência pelo juá, apesar de também utilizar o creme dental. Após a perda dos dentes,

o juá também passou a ser utilizado para a escovação da prótese superior.

A utilização de substâncias oriundas da vegetação local representa uma forma de

aplicação do conhecimento popular na tentativa de cumprimento de uma necessidade básica

de limpeza, alternativa a produtos comercializados no mercado de consumo de fármacos e

cosméticos. Para Ferreira24, a ciência admite a relevância das práticas populares ao propiciar o

estudo sobre a atividade terapêutica dessas substâncias. A raspa do juá, como recurso de

higiene, proveio do conhecimento popular, mas teve sua atividade reconhecida por testes

científicos e, atualmente, já faz parte da composição de alguns cremes dentais de circulação

comercial.

Para Canguilhem15 o poder e a tentação de tornar-se doente é parte inerente à

fisiologia humana, ao contrário do que dizem os médicos ao associarem as doenças a crimes

nos quais os indivíduos seriam responsáveis por excesso ou omissão. O autor reflete sobre a

dificuldade de exercer o cuidado na falta de acesso a condições essenciais à vida como a

alimentação, “cuidar-se... como é difícil, quando se vivia sem saber a que horas se comia...”

(p.159).

O impacto dos problemas materiais sobre o corpo se expressa na saúde dos indivíduos,

possibilitando uma leitura das relações entre os mesmos28. Mendonça39, em sua pesquisa

acerca da concepção de trabalhadores rurais sobre a mutilação bucal, observou nas entrevistas

termos como “falta de trato”, “facilidade” e “cuidado” que remetem a consciência de si como

responsável pelo desdentamento. Observou que houve uma atribuição ao outro pela prática

social da extração dentária como forma de “tratamento” (p.145).

Paciência atribuiu o fato de ter perdido os dentes a um ato de irresponsabilidade, uma

vez que detinha os conhecimentos acerca das formas de prevenção das doenças bucais, mas

estes não foram suficientes para evitar o adoecimento. A responsabilização foi relacionada aos

seus pais, devido à falta de interesse destes em olhar a sua boca, quando criança, mas

justificou descuido dos seus pais pelas condições do contexto cultural da época.

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 80

Coragem iniciou a prática dos cuidados bucais, tardiamente, quando os seus dentes já

haviam sido acometidos pelas doenças bucais. Ela culpa a si própria pela perda dos dentes,

atribuindo tal fato a sua falta de interesse e lamenta por não ter cuidado em fase precoce da

vida, o que poderia ter evitado as perdas dentárias.

Felicidade também se culpa pela falta de cuidado com os dentes, tanto pela não

aplicação dos conhecimentos adquiridos sobre a prevenção de doenças, quanto pela forma

natural com que aceitou a perda dos dentes. Felicidade se considera falha, ao não optar pela

prevenção, uma vez que considera o cuidado com os dentes um fardo, e perdê-los minimizaria

a sua responsabilidade.

Para a população de menor poder aquisitivo, o importante seria manter-se em

adequadas condições para trabalhar e, portanto, o que define suas escolhas é a sobrevivência.

A perda dos dentes, como conseqüência de um descuido pessoal no passado, não tornaria o

indivíduo inapto para o trabalho.

Para Canguilhem15 a saúde é, para o homem, um sentimento de segurança na vida, o

qual não se impõe nenhum limite. O autor destaca a origem etimológica da palavra valor, do

latim valere, que significa passar bem. “A saúde é uma maneira de abordar a existência com

uma sensação não apenas de possuidor ou portador, mas também, se necessário, de criador de

valor, de instaurador de normas vitais”15 (p. 163). O autor refere-se à saúde como um

conjunto de seguranças no presente e seguros como prevenção do futuro.

A naturalização da perda dentária presente na sociedade justifica, até certo ponto e em

contextos específicos, a ausência de cuidados precoces com a saúde bucal, assim como o

desconhecimento da necessidade de realizá-los. Isso fica bem evidente pela observação da

relação dos pais com o cuidado com a dentição decídua das crianças, somente deixando para

cuidar quando a cárie já havia atingido um alto grau de desenvolvimento. Mendonça39

observou fato semelhante em sua pesquisa ao constatar a relação entre valor e cuidado

referida à primeira dentição associada à naturalização da perda. Segundo a autora, os

entrevistados, ao se referirem ao cuidado com os dentes dos filhos, demonstram desejo em

extrair os dentes dos filhos menores e incentivar a escovação dos outros maiores. Esse

cuidado tardio dos dentes decíduos por parte dos pais acarreta um rápido acometimento dessa

dentição pelas doenças bucais.

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 81

Mendonça39 observou em seu estudo a relação entre cuidado e descaso constituído

pela incorporação de hábitos de conservação dos dentes obtidos na infância. Dessa forma,

cuidado e incorporação de hábitos de higiene estiveram bastante relacionados a informações

adquiridas entre os membros da família, na figura da mãe.

Nas histórias odontológicas, a mãe surge como a verdadeira cuidadora da família,

através do próprio exemplo ou do estímulo à prática da escovação.

Felicidade demonstrou ter maior cuidado em relação aos dentes dos filhos,

incentivando-os a escovarem sempre após as refeições, em detrimento do cuidado que teve

consigo. Por sua vez, a mãe de Felicidade a criticava pelo descuido em relação aos seus

próprios dentes.

O grande arrependimento pela perda dentária fez Força intensificar ainda mais os

cuidados com os dentes dos filhos, a fim de que estes não venham a passar pelo mesmo

problema de dente que ela. Força revelou transmitir aos filhos valores em relação à

importância da expressão do sorriso verdadeiro através da manutenção da dentição natural. O

desejo de ter os dentes “de volta”, para Força, é compensado por sua batalha para que seus

filhos não percam os dentes.

Abreu, Pordeus e Modena1, ao analisarem as representações sociais de saúde bucal

entre mães do meio rural, observaram que, apesar destas possuírem informações relativas ao

cuidado bucal e o desejo de “cuidar dos filhos direito”, diversos aspectos sociais, econômicos

e culturais, entre outros, dificultam a prática de promoção de saúde. Ferreira24 também

identificou, a partir de estudo sobre representações sociais de necessidades de cuidados

bucais, que a prevenção foi referida, de forma enfática, no cuidados aos filhos, mostrando

preocupações de que estes não estejam tão susceptíveis às doenças quanto suas mães

estiveram.

Uma odontologia com ênfase em práticas curativistas e o desenvolvimento de ações

preventivas descontextualizadas das precárias condições de vida da população contribuíram

para a construção do atual quadro de saúde bucal no Brasil. Cabe-nos uma reflexão acerca da

responsabilidade da odontologia, tanto em relação ao tipo de cuidado ofertado nas instituições

de saúde, quanto no que se refere à omissão da categoria odontológica e do Estado em

propiciar meios de desenvolvimento de práticas integrais para a população.

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 82

Força atribui limitações às informações adquiridas com o profissional no consultório

odontológico, pois estas foram incapazes de evitar que os dentes de sua filha fossem

acometidos pela cárie. A partir dessa crença na inevitabilidade da cárie, Força desejou que

existisse um remédio forte que evitasse que os dentes se estragassem tão facilmente.

A utilização de diversas formas para manusear, treinar, corrigir e controlar o estilo de

vida dos indivíduos e suas bocas, através da higiene, dieta e fumo, assim como a incorporação

de modernas tecnologias e tratamento, não surtiu o efeito desejado na saúde bucal dos

diversos grupos populacionais49.

A busca pelo serviço dá-se a partir da percepção da necessidade, a qual varia entre os

diversos estratos sócio-econômicos e de acordo com a concepção de saúde e doença de cada

indivíduo. Em geral, pessoas com menor poder aquisitivo tendem a procurar o serviço de

forma tardia, quando a doença, a dor e o sofrimento já estão instalados. Por sua vez, o cuidado

ofertado a essa população é de natureza tecnicista e impessoal, ou seja, desconsidera o usuário

como um sujeito dotado de saberes e subjetividades que necessitam de escuta e ações

resolutivas.

Diante de problemas de saúde, várias são as alternativas terapêuticas utilizadas pelos

indivíduos para solucioná-los, que vão, desde a “informal”, que inclui a automedicação, o

aconselhamento ou o tratamento recomendado por parente, amigo, vizinho, a denominada

“popular” praticada por curandeiros, benzedeiros, até a “profissional”. Cada uma delas possui

vantagens e desvantagens e são selecionadas a partir das disponibilidades circunstanciais e

explicações culturais dos indivíduos28.

A busca pelo serviço de saúde denuncia uma “falha” em relação ao cuidado consigo

mesmo. Há expectativa dos usuários em receber cuidado dos profissionais, resposta para as

suas dores, que, além de físicas, têm uma dimensão psíquica muito forte. Esta não consegue

ser captada pelos tradicionais relatórios médicos, necessitando de uma maior aproximação,

vínculo e responsabilização na relação entre o profissional e o usuário.

O compromisso efetivo do profissional com o usuário permite um olhar além do corpo

que se encontra à sua frente, palpável, visível ou passível de diagnóstico através do

estetoscópio ou exame clínico. Esse olhar deve ser direcionado à produção do cuidado

daquele sujeito72.

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 83

A qualidade da interação entre profissional e paciente influencia, de forma decisiva, o

processo terapêutico, apesar do correto diagnóstico e prescrição de tratamento46.

A partir da crítica ao distanciamento entre profissional e usuário, surge a proposta da

humanização, no intuito de resgatar o aspecto humano dessa relação, que foi perdida na

história da construção das práticas de saúde. Deslandes20 questiona a origem de tal termo,

indagando se a prática em saúde seria dês (humanizada) ou não seria feita por e para

humanos.

Deslandes20 enfatiza a humanização em oposição à violência que pode ser física ou

psicológica evidente nos “maus tratos”, ou simbólica, que é expressa pela dor de não ter a

“compreensão de suas demandas e suas expectativas” e pelo “não reconhecimento” das

necessidades emocionais e culturais dos indivíduos.

Um aspecto do atendimento odontológico que tem forte influência na qualidade desse

cuidado recebido, para Força, é o aspecto relacional. Na história odontológica de Força há

registro de seu depoimento de que, atualmente, o cuidado odontológico está mais

humanizado, uma vez que os dentistas estão mais dispostos à escuta do paciente. Percebemos,

desse modo, que Força busca no serviço de saúde mais que a resolução para as sua dores

físicas, mas a escuta para as suas dores psíquicas.

O olhar de responsabilização do profissional pelo cuidado do usuário encontra-se além

de um interrogatório de anamnese, prescinde de um diálogo produtor de falas e escutas, em

que o paciente se sinta confiante e tenha naquele profissional uma referência de cuidado72.

Da mesma forma que Força, Felicidade também valoriza a necessidade de uma

adequada relação entre médico e paciente. Felicidade referiu não gostar de médico,

associando isso à forma pouco comprometida com que alguns médicos tratam os pacientes,

sugerindo falhas em sua humanidade numa expressão de “des-humano”. Felicidade sentiu-se

descuidada também pelo serviço de saúde, ao expressar a sua insatisfação com a falta de

vínculo, responsabilização e escuta por parte dos profissionais: “(...) não olha nem você

direito...”.

Por desconfiança na capacidade técnica do profissional, Simplicidade sentiu medo e

adiou a procura pelo atendimento odontológico. Falta de confiança agravada pela falta de

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Trilhando pistas da produção sócio-cultural da perda dentária 84

delicadeza do profissional durante o atendimento odontológico. A necessidade de extrair os

dentes e livrar-se da dor fez Simplicidade aceitar, passivamente, a forma indelicada de trato

pessoal, invertendo o sentido e os objetivos que deveriam estar presentes na produção do

cuidado.

Moraes e Ongaro46 ressaltam que no encontro entre profissional e paciente predomina,

em geral, a representação de papéis estereotipados, onde o profissional demonstra pouca ou

nenhuma emoção, buscando manter uma postura de neutralidade. Mas o paciente mostra um

papel passivo e colaborador em relação às intervenções e recomendações profissionais.

A Política Nacional de Humanização constitui um conjunto de iniciativas destinadas a

produzir cuidados em saúde que possa combinar toda a tecnologia disponível com a oferta de

acolhimento e respeito ético e cultural ao usuário, proporcionando a satisfação de

profissionais de saúde e usuários20,63. Entre as diretrizes e dispositivos da política está a

proposta de Clínica Ampliada, que pretende resgatar, na relação clínica, os aspectos relativos

à doença, o doente e seu contexto41,71,70.

Dessa forma, faz-se necessário uma maior valorização, por parte daqueles que

compõem o serviço de saúde, desse momento de encontro entre profissional e paciente, o qual

traz inúmeras potencialidades de produção de novas subjetividades que irão contribuir para o

aumento na resolutividade das ações em saúde, assim como para uma maior satisfação do

usuário em relação ao cuidado recebido. Só assim poderemos contribuir para o resgate da

credibilidade em um sistema público de saúde fortalecido e capaz de prestar assistência de

forma universal, equânime e integral.

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Protesismo: reverso da perda dentária e de sua naturalização 85

5 PROTESISMO: REVERSO DA PERDA DENTÁRIA E DE

SUA NATURALIZAÇÃO

A função sócio-cultural da dentição natural foi gradativamente sendo substituída pela

dentição artificial desde o surgimento da odontologia como instituição, seja por suas práticas

curativistas e mutilatórias, seja pela construção de uma cultura de naturalização da perda

dentária, na nossa sociedade.

Em Da Arte Dentária, Botazzo11 destaca que, a partir da reprodução de estruturas

biológicas sobre estruturas sociais, observa-se que uma elevação no grau de desenvolvimento

da civilização demandará funções mais numerosas e órgãos mais aperfeiçoados. Na arte

dentária, de acordo com a trajetória percorrida por aqueles que se ocuparam em exercê-la,

teve-se a substituição da preocupação gradual com órgãos dentários simples para órgãos

dentários mais complexos, chegando-se à necessidade histórica do livro, da associação e da

escola. A partir do surgimento dessa tríade, teve-se início o período científico da Odontologia.

Botazzo11 ressalta ainda a necessidade de se buscarem normas que regulem as funções

desses órgãos dentários, complexos, a qual se encontraria em livros específicos sobre dentes,

associações exclusivas para dentistas e escolas para o ensino de prótese e dentisteria

operatória. Para o autor, tais normas estariam articuladas a uma odontotécnica exclusiva. Ao

fazer um percurso na história, Botazzo11 revelou que a prática odontológica como Clínica não

surgiu no século XVIII com Pierre Fauchard (1678-1761), tido como o pai da Odontologia

Moderna. Esse, em seus escritos, abordou apenas a cirurgia dentária. Bocas e dentes

integraram o discurso médico, no Século XIX, momento em que os estudos de anatomia

possibilitaram conhecer a boca em sua organização e, dessa forma, constituiu-se uma teoria

estomatológica no interior da Clínica Médica. .

O embate entre estomatologia e odontologia, na disputa acerca do seu objeto,

possibilitou uma identificação da odontologia cada vez maior com dentes e menos com bocas

e favoreceu o desenvolvimento da dentisteria operatória e do protesismo. Nos Estados

Unidos, país de grande desenvolvimento econômico, no século XIX, a Odontologia começou

a trilhar o seu próprio caminho, separando-se da Medicina e dando origem à nova profissão, a

de dentista52.

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Protesismo: reverso da perda dentária e de sua naturalização 86

Para Souza70, como um dos efeitos dessa odontotécnica exclusiva teve-se um modelo

de práticas que toma o dente fora do corpo e dotado de autonomia que pode se expressar

através: a) da prótese, na função da terceira dentição, que se tornou essencial para resgatar a

dignidade perdida dos desdentados; b) das práticas educativas, onde os dentes em

macromodelos destinam-se ao ensino de noções de higiene corporal; c) do conteúdo de

atividades educativas, em que dentes têm vida própria e autonomia em relação à saúde e

doença. Isso contribui para que possamos esquecer que os dentes fazem parte do corpo70.

Souza70 também questiona se a odontotécnica exclusiva não teria exercido influência

na atitude do dentista em relação à dificuldade de efetuar um diagnóstico de câncer bucal, por

exemplo, ou a incapacidade desse profissional saber acolher o paciente que se encontra em

processo de desdentamento e busca, no profissional, a escuta para o seu sofrimento e o alívio

para as suas dores físicas e psicossociais. Ressalta ainda que a imagem do “banguela” expõe

a violência da naturalização da perda dentária e representa a exclusão social de muitos

brasileiros que convivem com inúmeras perdas além das dentárias. Estas podem ser de ordem

cultural, social, econômica, afetiva, política, entre outras71.

A perda dentária naturalizou-se na sociedade e no modelo de prática dominante,

propiciando o desenvolvimento da cultura do protesismo e a afirmação da odontotécnica

exclusiva70. Para a autora, é reconhecido o benefício trazido pela odontotécnica, mas o seu

exclusivismo contribui para a naturalização da perda dentária e do protesismo, assim como

para o consumo acrítico e iatrogênico de novas tecnologias em ações preventivas, curativas e

reabilitadoras.

Ao manusearmos a boca, desdentando-a, estamos diante de algo que é mais que um

órgão anátomo-fisiológico, mas sim um território, um lugar, um espaço dotado de uma

diversidade de sentidos, como nos lembra Botazzo11. Segundo o autor, na constituição da

boca há vísceras que se movimentam de forma mais ou menos simultânea a fim de que haja

função, e a disposição dessas vísceras poderia se dar de acordo com a produção sócio-cultural.

Botazzo11 propôs, então, o conceito de bucalidade, que designa aquilo que é bucal

manducação (do verbo comer, mastigar), o movimento realizado pela boca de apreender,

triturar, insalivar, deglutir e o consumo do mundo pelo homem naquilo que ele tem de natural;

erotismo, relativo à relação amorosa e à produção de atos bucais sexuais; e linguagem, onde

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Protesismo: reverso da perda dentária e de sua naturalização 87

há a produção de palavras e o seu consumo11,12. Portanto, a bucalidade corresponderia a um

arranjo teórico-metodológico, onde se desenvolveriam os citados trabalhos bucais, a

manducação, o erotismo e a linguagem. Dessa forma, esses três trabalhos estariam

relacionados a dimensões da vida humana na sociedade e seriam, portanto, “produção social

da boca humana”12(p. 14).

Para Botazzo12, a saúde não se limita a sua forma clínica, e a teoria odontológica não

seria capaz de recuperar o homem em sua totalidade, o que acarreta o surgimento de inúmeras

possibilidades de produção de saberes e práticas considerando o referencial da bucalidade.

Cabe-nos uma reflexão acerca do impacto produzido pela perda dos dentes neste

território, a boca, bem como as resignificações na vida dos indivíduos frente a essa nova

condição de desdentamento. Souza70 lembra-nos que ao atuarmos na boca de indivíduos,

estaremos produzindo, também, alterações nesse território da bucalidade, com efeitos nas

dimensões psíquicas e culturais que são próprios desse território.

Botazzo11 questiona se a função dentária seria mantida mesmo após o desaparecimento

dos dentes, já que o surgimento destes dar-se-ia a partir de uma necessidade, uma função. O

autor afirma que a função mastigatória não cessaria devido ao desenvolvimento, pela indústria

humana, de alguns artifícios que seriam além do processo de cozimento dos alimentos, a

“máquina de mastigar artificial” (p.116). Isso estaria articulado à extrema valorização dada à

prótese no interior do discurso odontológico.

A idéia de desvalorização da dentição natural, especialmente entre a população de

adultos e idosos, tem sido construída e reforçada pelo modelo de práticas cirúrgico-mutilador

dominante nos serviços de saúde, portanto, a manutenção dos dentes na cavidade bucal ainda

não integra o conjunto de valores dessa parcela da população54. O estudo de Nuto53 mostrou

que as pessoas expressam em seus discursos um sentimento de falta e arrependimento por

terem perdido os dentes, embora haja um pensamento por parte daqueles que constituem os

serviços públicos odontológicos em relação à desvalorização da dentição natural pelos

usuários.

Soma-se a isso o quadro de desassistência e más condições de vida observado em boa

parte da população, principalmente naquelas residentes na zona rural do Nordeste do país,

como identificamos nas histórias odontológicas aqui apresentadas. Para aquelas pessoas, a

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Protesismo: reverso da perda dentária e de sua naturalização 88

ausência de assistência à saúde na fase precoce das doenças bucais, quer seja pela inexistência

do serviço quer seja pela dificuldade de acesso geográfico a este, tem proporcionado a

evolução natural das mesmas e, conseqüentemente, situações de intensa dor e sofrimento, que

terá sua resolução quase sempre através da exodontia.

A possibilidade de eliminação definitiva da doença no dente, assim como da dor de

dente experimentada pelos indivíduos, associada a pouca credibilidade dispensada ao

tratamento restaurador realizado no serviço público, também foram fatores que podem ter

contribuído para a construção e a manutenção da cultura da naturalização da perda dentária.

Nas histórias odontológicas aqui apresentadas, identificamos atitudes e sentimentos de

passividade diante do progressivo processo de adoecimento bucal e da perda dentária.

Para Alegria, a perda dentária não parecia um problema, mas sim uma solução

definitiva para o sofrimento vivido a partir do acometimento natural dos dentes pelas doenças

bucais. Dente e, principalmente, dente estragado, remete-lhe a percepção de doença, dor,

sofrimento e sujeira. Dessa forma, as extrações traziam à tona sensações de limpeza na boca e

de ter ficado salva dos dentes e, conseqüentemente, de todos os sentimentos negativos

trazidos por eles. O desejo de extrair os dentes está fortemente expresso na fala de Alegria e

pode ser compartilhado por outras pessoas do mesmo nível sócio-cultural. As extrações,

depois de iniciadas, teriam fim quando já não houvesse mais nenhum elemento dentário a ser

extraído.

O pouco valor atribuído aos dentes naturais, de acordo com o que foi observado na

literatura, pode ser registrado também na fala de Alegria quando valorizou a extração

dentária, tanto em relação à coragem de quem se submete a tal procedimento, quanto à

destreza do profissional ao realizá-lo. Alegria expressou uma forte admiração pela extração

dentária como técnica a ser realizada por um profissional e, dessa forma, reconheceu o

procedimento ofertado pelo serviço como a melhor e mais eficaz forma de tratamento das

suas dores de dente. Esse fato contribuiu para reforçar sua percepção sobre a perda dentária

como algo natural, assim como uma forma de evitar outras doenças.

O que impediu Simplicidade de extrair os dentes que doíam foi o medo de dentista.

Após perder tal medo, Simplicidade conscientizou-se de que queria tirar os dentes.

Simplicidade aceitara, com tranqüilidade, o único procedimento ofertado pelo serviço. Da

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Protesismo: reverso da perda dentária e de sua naturalização 89

mesma forma que Alegria, Simplicidade desejava livrar-se das dores de dente e, para isso, a

exodontia foi a melhor solução. A conclusão das extrações da arcada superior foi

comemorada como se houvesse alcançado um objetivo, principalmente pela esperança da

reabilitação protética.

Para Coragem, a condição de desdentada total denunciava uma vida inteira de

exclusão de oportunidades e de acesso a condições dignas de vida. Ter dentes ou perdê-los

não faria tanta diferença para Coragem, em virtude da necessidade de luta contínua pela

sobrevivência de sua família. Coragem havia sido vítima da oferta de atendimentos pontuais,

mutilatórios, em época de campanha eleitoral. Coragem expressou sentimento de falta dos

seus dentes que foram extraídos, por completo, e lamentou não ter tido oportunidade de tratar

dos dentes, condição que, acredita, teria contribuído para mantê-los em sua boca.

Força desejou, no passado, extrair os dentes da arcada superior, com o intuito de

colocação da prótese, o que reflete sua concepção odontológica de naturalizar a perda dentária

para substituição protéica, desvalorizando a dentição natural. Certamente, junto à promessa da

supremacia da dentição artificial vem a garantia atrativa de “dentes sem dor”.

A desilusão de Felicidade com o serviço de saúde, que para ela era ineficaz e

ineficiente, cujas ações resultam, quase sempre, na extração dentária, a fazia acreditar que esta

seria mesmo a melhor opção de tratamento.

A promessa de controle das doenças bucais pelo indivíduo, propagado pelo discurso

odontológico, encontrou limitações na experiência de adoecimento vivenciada por Paciência,

que expressa um certo conformismo com o destino de perder dentes, pois apesar de tratá-los

conforme acredita ser o correto, não se livrou da inevitabilidade da extração dentária:

“aconteceu, quando tem de acontecer!”.

5.1 Prótese dentária como desejo e ilusão

A prótese de uma das partes do corpo, de um modo geral, pode estigmatizar o

indivíduo, conforme sua capacidade de restituir a aparência natural àquilo que é artificial. De

acordo com Ferreira24, a prótese é concebida como integrante do corpo, fruto de um

conhecimento que a princípio destinava-se a ornamentar a boca, mas que hoje tem a função de

reabilitar, sob o aspecto biológico, o indivíduo. Contudo, a prótese dentária representa o fim

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Protesismo: reverso da perda dentária e de sua naturalização 90

de um longo processo de extrações dentárias que retrata um histórico individual de carências

sociais, que inclui a falta de acesso a serviços de saúde. Dessa forma, é também um estímulo

ao desdentamento.

A prótese dentária e todo o seu arsenal tecnológico desenvolvido pela odontologia e

incutido na população representam a recompensa de mutilações bucais. Mas, inúmeros

desdentados, vítimas de um sistema excludente e curativista, não tiveram acesso a este

“prêmio” construído e naturalizado pela odontologia como forma de minimizar as dores e

limitações trazidas pela ausência da dentição natural. Dessa forma, vivendo em condições

precárias de vida, grande parte da população culmina por adquirir próteses de baixa qualidade,

no setor privado, que não são capazes de propiciar uma adequada reabilitação funcional. Estas

conseguem ter a função de, minimamente, recompor a estética bucal.

As políticas de saúde bucal, desenvolvidas em nosso país, caracterizaram-se por

modelos de atenção excludentes da parcela da população de adultos e idosos, além de não

incluir o tratamento reabilitador como uma atribuição do setor público. Após a implementação

do Sistema Único de Saúde (SUS), o princípio da integralidade tornou-se preceito

constitucional e o tratamento reabilitador constituiria um direito de cidadania. Mas, no início

da implantação do SUS não se identificou nenhuma política de saúde bucal que possibilitasse

a oferta de próteses em nível ambulatorial. Apenas em 2004, o tratamento protético passou a

ser oferecido pelo setor público através da criação dos Centros de Especialidades

Odontológicas do Programa Brasil Sorridente54.

Vargas80, em estudo epidemiológico sobre a perda dentária, com usuários dos serviços

de saúde de Belo Horizonte, verificou que o acesso à prótese pelo setor privado também lhes é

negado e ocorreria uma necessidade de adaptação à nova realidade em função da inexistência

de alternativa para a falta de dentes, o que não significa que esses indivíduos se sintam

confortáveis. Para a autora, a resignação à nova situação, mesmo de desconforto, ficou

evidente, através da modificação de hábitos alimentares, aquisição de novas formas de

mastigar e perda da vergonha de apresentar-se ao outro sem dentes.

Nas histórias odontológicas aqui apresentadas, percebe-se que as próteses dos

entrevistados foram realizadas por pessoas da comunidade que não eram dentistas, mas que

representavam a única opção, para essas pessoas, de voltar a ter “dentes”, mesmo tendo de

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Protesismo: reverso da perda dentária e de sua naturalização 91

conviver com inúmeras limitações funcionais, devido à baixa qualidade do trabalho protético

realizado. Isso ocorre devido à histórica ausência de oferta de próteses pelo serviço público

odontológico.

A história de Coragem mostrou que sua prótese não reabilitou, adequadamente, a

função mastigatória, pois durante a alimentação Coragem vê-se obrigada a retirá-la. Sem os

dentes, Coragem sente dificuldades para mastigar, engolir e ingerir alimentos de consistência

dura. A prótese para Coragem incomoda, fica folgada, então, ela a retira e só a utiliza quando

vai sair de casa, mas apenas a da arcada superior.

Assim como Coragem, Simplicidade também não se adaptou à prótese total superior,

pois o calor produzido pela resina esquentava, o que fazia com que ela não usasse com

freqüência, apenas quando saía de casa. Simplicidade revelou que a prótese a impedia de

comer alimentos mais consistentes, que poderia descolar o dente (da prótese).

Para Força, a prótese total superior ainda dói e incomoda, mas ela disse que só a retira

para dormir, pois não consegue dormir com prótese. Força acredita que o uso contínuo da

prótese fez com que ela se acostumasse, assim como foi uma saída para sua condição de

banguela.

Da mesma forma, Felicidade também expressa a sua insatisfação com a prótese

dentária parcial que usa, por ser algo móvel que ficava mexendo na boca. Para Felicidade, a

prótese não recompôs, satisfatoriamente, a mastigação, uma vez que machucava a gengiva e

ela tinha receio de quebrá-la (a prótese). Contudo, usar prótese contribuiu, relativamente,

como meio de reintegração social já que lhe restituiu o sorriso.

Logo que Paciência começou a usar prótese dentária, sentiu dificuldade para se

alimentar, para dormir, mas depois se acostumou e avaliou positivamente a “substituição” dos

dentes pela prótese. A boa aceitação da prótese por Paciência pode ser atribuída ao fato de se

tratar de uma prótese parcial, assim como ao pequeno grau de exigência estética no meio

sócio-cultual em que vive.

Alegria avaliou a perda dentária e a prótese de forma positiva, atendeu bem sua

expectativa ao propiciar-lhe adequada mastigação.

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Protesismo: reverso da perda dentária e de sua naturalização 92

Mendonça39 observou que aqueles que já não possuem mais dentes, ao fazerem um

balanço dos seus prazeres, enfatizam principalmente o fato de não poderem “comer de tudo”.

Essa seria uma concepção relativa à condição bucal de ter dentes refletindo uma obrigação

natural do corpo de trabalho e de prazer. A autora mostrou também a dificuldade da

sobrevivência em virtude da necessidade e do desejo não satisfeitos.

Narvai e Antunes50, ao investigarem a questão da autopercepção da mutilação bucal

em idosos, observaram que o uso da prótese dentária total pode contribuir, expressivamente,

para minimizar o grau de comprometimento das funções bucais decorrentes da perda dentária.

O resultado do estudo realizado pelos autores mostra a diferença expressiva em relação à

dificuldade de mastigar “comida dura” entre aqueles que usam prótese dentária total. Dessa

forma, 19,4% daqueles que usam essa prótese demonstraram sentir dificuldade para mastigar

“comida dura”, sempre ou freqüentemente. Mas, entre os que não usam o aparelho protético, a

porcentagem dos que sentem dificuldade para mastigar, sempre ou freqüentemente, atinge

32,2%.

Unfer e colaboradores78 também estudaram a autopercepção da perda de dentes em

idosos e observaram que a ausência dos dentes traz perda da naturalidade e do conforto para

mastigar, havendo necessidade de seleção do tipo de alimento, assim como da forma de

consumi-lo, através de formas para facilitar a ingestão.

A expectativa de grande parte dos pacientes que necessitam de próteses é de que estas

sejam funcionais, confortáveis, esteticamente aceitáveis e com bastante aproximação dos

dentes naturais. Caso isso não ocorra, os pacientes se frustam, mas permanecem a usar a

prótese, sendo capazes de suportá-la em função da aparência, mesmo em caso de dor e

desconforto80.

Para Piuvezam, Ferreira e Alves62, a dificuldade de adaptação à prótese constitui uma

resistência ao novo, uma vez que o indivíduo possui uma memória biológica e afetiva

associada aos dentes naturais. Diante da inevitabilidade do edentulismo, ocorrerá uma nova

adaptação funcional à mastigação, deglutição e digestão.

O impedimento ou a limitação do exercício pleno de funções essenciais à vida, que

seriam a comunicação e a alimentação, por pessoas portadoras de próteses de má qualidade,

atribui a estas, minimamente, uma função estética ao ocupar o espaço “vazio” e possibilitar a

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Protesismo: reverso da perda dentária e de sua naturalização 93

expressão do sorriso. A perda dos dentes pode afastar também a alegria de viver, ao privar o

indivíduo da demonstração de sentimentos, como, por exemplo, o sorriso, interferindo nas

relações sociais. De acordo com Wolf83, o fato de o indivíduo não se encontrar dentro dos

padrões aceitáveis, dentro dos atributos aprovados, torna-o envergonhado e receoso quanto à

sua aceitação social.

O sorriso em nossa sociedade representa um ritual de aproximação entre as pessoas,

uma mensagem de oferenda e receptividade, possuindo diversas conotações, tais como: bem-

estar, alegria, segurança, auto-satisfação, satisfação em relação ao outro, boa acolhida à

aproximação. A ausência dos dentes conduz a uma falta daquilo que se queria demonstrar e,

portanto, impossibilita que a função do sorriso se complete. Por sua vez, a inibição deste

desconstruiria a postura desejável, trazendo conseqüências como a diminuição da auto-estima,

impossibilidade da demonstração da alegria e do acolhimento, prejuízo do convívio social83.

Para Felicidade, a ausência dos dentes a faz ter vergonha de sorrir de forma

espontânea, e, por isso, coloca a mão na boca, na intenção de fuga da condição de desdentada.

Felicidade se preocupa com o que as pessoas achariam do seu sorriso sem dentes, ou seja,

com a imagem de si. Para ela, a beleza de um sorriso está completa somente na presença dos

dentes e este é o seu cartão de visita, referindo-se à forma ideal de apresentação ao outro.

Felicidade se contentaria com a substituição dos dentes naturais pela prótese.

A auto-imagem será organizada de acordo com a percepção que o indivíduo tem de si

ao interagir com os outros e com o meio ambiente. A imagem que o indivíduo terá de si será

em relação a um padrão ideal ditado pelas exigências sociais, uma vez que as imagens são

transferidas de forma lenta da organização social para a organização corporal. A expressão

“os dentes são o cartão de visita da pessoa” mostra uma relação entre os dentes e a imagem de

si, assim como sua relevância para a aceitação do indivíduo no grupo social83 (p.311).

Para Força um sorriso verdadeiro só se concretizaria na presença dos dentes naturais,

os quais trariam a espontaneidade e a liberdade para sorrir, “(...) tá sempre de dente aberto

pro mundo, sorrindo...”.Após a perda dos dentes e uso da prótese, Força se sente inibida.

Fala do medo de que a prótese caísse e refere-se, de forma saudosa, ao sorriso que tinha antes

de perder os dentes, o qual parecia mais feliz e bonito. Força atribuiu grande valor à estética,

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Protesismo: reverso da perda dentária e de sua naturalização 94

por isso sentiu vergonha quando extraiu os dentes anteriores superiores e não esperou o tempo

necessário para a colocação da prótese após as extrações.

Wolf83 ressalta que a reposição dos dentes através da prótese ou implante objetiva uma

volta à aparência anterior, e a estética seria mais importante que a função. A autora fala ainda

que o paciente, ao colocar a prótese, procura a reconstrução de sua integridade física perdida,

possibilitando-lhe uma reestruturação de sua imagem pessoal e social.

Para Paciência, a prótese substituiu bem os dentes naturais e trouxe de volta o

sentimento de juventude e a espontaneidade para conversar e sorrir, que haviam sido perdidos

em função da perda dentária. No relato de Paciência, identificamos a associação que ela faz

entre perda dentária e envelhecimento. A prótese dentária afastou, então, a sensação de “estar

mais velho” a partir do “parecer mais jovem”, certamente, pela recuperação da dimensão

vertical da boca que a prótese proporciona.

No imaginário popular está incutida a associação entre perda dentária e

envelhecimento, onde velhice significa ausência de dentes. Esse fato está bem caracterizado

na literatura, pintura e fotografia na figura do velho “sem dentes”83. Nesse sentido, a prótese

dentária total (ou “dentadura”, “chapa”) completa a caracterização desse cenário de

envelhecimento. Entretanto, perda dentária e prótese são situações corriqueiras e vivenciadas

de forma coletiva em qualquer fase da vida dos indivíduos. Portanto, para essas pessoas não

haveria forma de evitar tal destino.

Para Souza71, a clínica odontológica tem se desenvolvido no exercício da “arte

dentária” cuja ênfase na recomposição protética dos dentes naturalizaram a perda dentária e “a

substituição artificial da dentadura tornou-se o caminho trivial de quem subsiste ao ciclo vital,

tão banal como a coloração dos cabelos brancos que chegam a alguns com a velhice e em

outros pode se dar em qualquer fase da idade adulta” (p.221).

Seger69 ressalta que o envelhecimento é considerado um processo gradativo, enquanto

que o sentimento de “ser velho” ocorreria de forma repentina, em decorrência de algum

evento desencadeador. Neste caso, seria a perda dos dentes. Por outro lado, a utilização de

dentes artificiais ou aparelho protético pode proporcionar uma melhora na auto-estima e nas

relações pessoais ao atender as expectativas dos indivíduos50,83.

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Protesismo: reverso da perda dentária e de sua naturalização 95

A extração e a substituição dentária por meios artificiais constituíram um avanço

técnico em determinado momento de prática odontológica que, na atualidade, deve ser olhado

de forma crítica. Iyda33 chama-nos a atenção para aquilo que é produzido por essa prática.

Elimina-se um sintoma da doença, através da extração dentária, restitui a condição de

normalidade (não sentir dor), mas instala-se a anormalidade (não ter dentes), a qual pode ser

trazida de volta à normalidade por intermédio da prótese dentária e, desta forma, o que é

considerado “anormal”, passa a ser tido como “normal”, social e mesmo profissionalmente.

Cabe-nos uma reflexão acerca da expectativa do paciente em relação ao tipo de

cuidado odontológico recebido. Mendonça39 refere-se ao “dia da mutilação”, como um dia em

que as pessoas, muitas vezes de forma coletiva, buscam o serviço para “arrancar o dente que

dói, o dente que incomoda, o dente que está ‘podre’” (p.69). Sendo assim, afirma ainda que a

perda dentária não seria de ordem cultural, visto quer o usuário, ao buscar o serviço de saúde,

espera atingir um estado adequado de saúde.

No relato de nossas histórias odontológicas há situação diversa. Paciência buscou o

serviço visando ao tratamento para as suas dores de dente e doenças bucais que, para ela,

seriam resolvidos com a exodontia. Neste caso, a perda dos dentes traria um estado de saúde.

Por outro lado, Força culpa os profissionais por ter realizado a extração dos seus dentes,

sobretudo os que estavam bons, uma vez que os profissionais deveriam ter dado alguma

orientação para evitar extraí-los, bem como explicitar as conseqüências da perda dentária no

cotidiano das pessoas. A perda dentária, neste caso, é vista como conduta técnica inadequada.

Seger69 enfatiza a importância do cirurgião-dentista em prevenir ou eliminar a

extração dentária de sua prática e, para isso, sugere que o profissional deva tanto realizar o

tratamento adequado em etapas precoces quanto mostrar ao paciente o que pode ocorrer em

decorrência das perdas, bem como suas formas de prevenção.

Diante do adoecimento bucal e da experiência com a dor e o sofrimento, a prótese

surge como uma esperança diante da condição de desdentado, algo desejado em algum

momento da vida, que traria o benefício de ter “dentes” e, ao mesmo tempo, ter “saúde”. Sob

essa ótica de sofrimento remetida aos dentes naturais, a prótese surgiria como uma

“vantagem”, já que excluiria a doença da boca, assim como qualquer possibilidade de

acometimento pela mesma. Nas histórias odontológicas, constatamos certo conformismo das

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Protesismo: reverso da perda dentária e de sua naturalização 96

pessoas com aquilo que acreditam ser destino, o desdentamento e a prótese. Dessa forma, o

objetivo da assistência odontológica seria alcançado após o término das extrações e a

confecção do aparelho protético.

Foi na busca dessa possível “vantagem” da prótese que Força decidiu concluir a

extração de todos os dentes superiores e colocar a prótese. Para acelerar o alcance do objetivo

e consumo desse “objeto de desejo”, Força solicitava aos profissionais que lhe extraíssem

dentes que estavam estragados e outros que estavam bons.

Mendonça39 em seu estudo sobre mutilação bucal observou fato semelhante entre os

seus entrevistados, onde a prótese serviria apenas para “compor a boca” e seria uma

“vantagem” já que os dentes artificiais não podem “apodrecer”.

Percebe-se que o aumento progressivo da perda dentária com a idade proporciona,

também, um aumento na complexidade da necessidade de prótese, em que a parcial seria

substituída, posteriormente, pela total. Zanetti84, através de censo realizado em 1998, sobre as

necessidades de prótese dentária (parcial e total) na população de Planaltina (DF), observou

que aos 11 anos, ainda na fase de dentição mista, surgem os primeiros registros de

necessidade de prótese parcial. Entre 15 e 20 anos, a situação agrava-se e a necessidade de

prótese torna-se uma questão de saúde pública, em que 10% da população encontra-se

mutilada e sem acesso ao tratamento reabilitador. A maior demanda por prótese parcial ocorre

na faixa etário entre 35 e 45 anos, que atinge 30% da população. As primeiras notificações de

necessidade de prótese total surgem aos 15 anos e, na faixa etária dos 35 aos 45, o

edentulismo agrava-se e torna-se expressivo fenômeno populacional.

Nas histórias odontológicas, Força, inicialmente, extraiu quatro dentes incisivos

superiores e passou a usar uma prótese parcial. Mas, na sua percepção, o grampo da prótese

provocou o acometimento dos demais dentes, o que demandou exodontia destes e a

substituição pela prótese total. Felicidade já usou três próteses em que, a cada prótese

substituída, acresceu outros elementos dentários extraídos.

Ao serem vivenciadas as limitações advindas da condição de desdentado e usuário de

prótese, vem à tona o arrependimento pela perda e, ao mesmo tempo, o desejo de ter de volta

os dentes naturais, através da constatação da diferença experimentada entre a dentição natural

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Protesismo: reverso da perda dentária e de sua naturalização 97

e artificial. A partir daí, tem início o declínio do fetiche construído em torno da soberania da

prótese.

Souza71, ao apresentar a experiência de Sigmund Freud com um câncer de boca que

lhe destruiu parte dos ossos maxilar e mandibular e seu mal-estar com a prótese com que teve

que conviver por parte de seus anos de vida, destaca a relação do sofrimento vivido pelo pai

da psicanálise como contexto da produção de suas obras - O mal estar da civilização e O

futuro de uma ilusão. Para a autora, o mal-estar experimentado por Freud com a prótese, e sua

própria desilusão com as promessas da recomposição protética em superar suas limitações de

fala, deglutição e estética, marcadas em seu próprio corpo, foram reelaboradas pelo gênio da

psicanálise para uma leitura da sociedade e de seu futuro civilizatório, em que o

desenvolvimento científico e tecnológico encontra limitação diante da própria finitude

humana. Prótese como desejo e como uma ilusão de repor conforto bucal e desenvoltura de

sua fala71.

A prótese como objeto de desejo e de ilusão também aparece em nossas histórias

odontológicas. O sofrimento inicial com a adaptação da prótese foi tão intenso que iria se

sobrepor ao desejo, do passado, de possuí-la, levando Força a almejar ter os naturais de volta.

A memória viva destes e o grande arrependimento por tê-los perdido refletiu-se na não

adaptação à prótese. Esta lhe parece algo estranho que não pertence a seu corpo e, além disso,

tem mobilidade e mau cheiro. Retirar a prótese para fazer sua limpeza diária torna mais viva a

lembrança de Força de que aqueles dentes não são mais os seus, e isso a incomoda. Ao

conviver com a prótese, Força reconhece a diferença e a superioridade da dentição natural.

Na adolescência, Felicidade desejou usar prótese, revelando que admirava outras

pessoas que a usavam, em sua convivência. Mas, ao vivenciar tal realidade, constatou que a

prótese não era tão boa quanto seus dentes naturais. Da mesma forma que Força, Felicidade

também relatou incômodo para remover a prótese quando realizava sua higienização e para

dormir. Dessa forma, reconhece a diferença e a falta da dentição natural. Felicidade perdeu a

ilusão com prótese e sua fala é expressiva ao denominá-la de propaganda enganosa porque,

na verdade, não recompôs sua condição de banguela.

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Protesismo: reverso da perda dentária e de sua naturalização 98

Paciência reconheceu a diferença da prótese em relação aos dentes naturais, apenas

quando iniciou o seu uso, mas depois se adaptou bem e passou a não perceber mais tanta

diferença.

Coragem acredita que, caso a pessoa se acostume, a prótese substitui bem os dentes

naturais, principalmente quanto à estética. Contudo, reconheceu a diferença e a superioridade

da dentição natural.

Simplicidade aceitou passivamente a extração dos seus dentes na esperança que tinha

em colocar prótese. Assim como nas demais histórias, Simplicidade reconheceu diferença

(estranheza) da prótese em relação aos dentes naturais, especialmente pelo fato de a resina

cobrir o palato e impedir a sensação do sabor dos alimentos. Mas aceitou a irreversibilidade

da perda dentária, vendo-se obrigada a conviver com a prótese. Agora, sim, como destino

definitivo.

Para Alegria, a memória dos dentes naturais lhe remete a experiência de sofrimento e

dor, por isso Alegria estava decidida a lutar pelo seu objetivo, que seria a conclusão das

extrações. A prótese foi incorporada e aceita no seu cotidiano como algo natural.

O estímulo ao protesismo tem relação com a forma banal como é considerada a

mutilação dentária em nossa sociedade. Soma-se a isso a possibilidade de recuperação do

sorriso, na busca de uma estética bucal que inclui o consumo de novas tecnologias e o

“artificial” toma o lugar do “natural”, apesar de isso poder ter custado a perda dos dentes71.

A convivência com a prótese, que, por ser um elemento artificial, traz inúmeras

limitações em relação ao natural, leva a uma reflexão dos sujeitos em relação à perda dos seus

dentes naturais e na possibilidade de benefício se ainda os possuísse. Ocorre um sentimento

de frustração quando os indivíduos entendem que o elemento artificial não pode ser

comparado ao natural. Portanto, a prótese possui duas vertentes, pois tanto estigmatiza o

indivíduo quanto proporciona a recomposição de sua auto-imagem e da auto-estima24.

Força reconheceu, em sua narrativa, que a substituição de um órgão do corpo perdido

por outro “artificial” não proporcionaria uma adequada reabilitação funcional. Dessa forma,

ela expressou o impacto negativo da perda dos dentes em sua vida, bem como a insatisfação

com a substituição protética, demonstrando incômodo e a rejeição à prótese, pelo fato de esta

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Protesismo: reverso da perda dentária e de sua naturalização 99

ser um elemento “artificial” e estranho ao seu corpo, ao contrário do conforto provocado por

dentes que são algo “natural”.

Souza71 refere-se à “coroação de um reino protético” dado o alto nível de

desenvolvimento tecnológico alcançado na odontologia estética e cosmética, em detrimento

da valorização concomitante dos aspectos psíquicos, antropológicos e sociais da boca

humana, em que se promete a recuperação do sorriso através da sua transformação em um

“sorriso técnico” que se sobrepõe ao “natural” (p.226). No entanto, as benesses desse reino

protético têm alcance social limitado.

Há reduzido alcance social dos benefícios produzidos pelas inovações científicas e

tecnológicas quanto ao aspecto funcional e estético, especificamente na área de reabilitação

oral. Inúmeros desdentados frustram-se ao perceberem que são privados do acesso a essa

modernização tecnológica, e, portanto, têm de conviver com próteses de má qualidade que,

por sua vez, trazem prejuízos a sua qualidade de vida.

Faz-se necessário, portanto, uma reorientação das políticas públicas com a oferta de

um atendimento odontológico digno e de qualidade que contemple todos os níveis de atenção,

de acordo com a necessidade dos usuários, de modo que os avanços científicos na área de

estética e prótese possam ser disponibilizados, também, para aqueles que, historicamente,

viveram excluídos da sociedade de consumo. A atenção integral deve ser o objetivo maior

desses serviços, tendo como foco de sua produção de cuidado o usuário e possibilitando, às

novas e velhas gerações, atendimento às suas necessidades de saúde.

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Considerações Finais 100

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A complexidade do problema perda dentária pode ser expressa apenas parcialmente

através dos dados epidemiológicos, diante da limitação destes em não expor os seus aspectos

subjetivos, tão relevantes na significação dessa temática para a vida dos indivíduos. Desse

modo, ao utilizar a abordagem qualitativa, este estudo possibilitou uma maior aproximação da

percepção das pessoas sobre os efeitos produzidos pela perda dentária.

A experiência da dor de dente esteve presente, de forma marcante, em todas as

histórias odontológicas aqui apresentadas e representou o principal motivo da procura por

assistência odontológica. Percebeu-se que o sofrimento da dor de dente se faz presente, de

forma precoce, na vida dos sujeitos como resultado da “evolução natural” da cárie. Sua

progressão suscita o enfrentamento da dor, inicialmente através da utilização do

conhecimento popular, com o uso das medicações caseiras e alopáticas, além da procura por

assistência odontológica, quando a dor não pode mais ser suportada. Nessa fase, os sujeitos

não tiveram outra escolha, quer seja pela oferta exclusiva da exodontia, quer seja pela

impossibilidade de realização de outro procedimento diante do elevado grau de destruição

dentária. A idéia da inevitabilidade da cárie provém da impossibilidade de deter o surgimento

e o avanço das lesões, mesmo com a aplicação de conhecimentos relativos ao autocuidado. A

vivência com a experiência negativa da dor e o receio de um novo episódio favorecem a

opção da exodontia como forma de tratamento.

A ausência de acesso ao serviço de saúde, seja decorrente da dificuldade de acesso

geográfico, seja pela grande demanda reprimida, proporciona o agravamento das lesões de

cárie e a necessidade por tratamentos complexos. A não oferta de tais procedimentos

especializados no âmbito do setor público, assim como o descrédito no tratamento

restaurador, com o reforço da crença na possibilidade de seu insucesso, favorecem a

realização da exodontia. O descrédito no tratamento restaurador, especialmente aquele

realizado no setor público, provém de experiências mal-sucedidas e que, portanto, podem

resultar na ocorrência de nova experiência de dor.

A prática dos cuidados de higiene bucal, a escovação com juá ou creme dental após as

refeições, bem como o controle do consumo de açúcar, não foram capazes de evitar o

acometimento dos dentes pela cárie e, conseqüentemente, a perda dentária nos indivíduos

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Considerações Finais 101

entrevistados. O não cumprimento das normas ditadas pelo discurso odontológico para a

prevenção das doenças bucais acarretou, nos sujeitos, um sentimento de culpa. Essa

culpabilização decorreu de uma atribuição exclusiva ao sujeito, quanto à responsabilidade

pela realização dos cuidados dentários, de forma descontextualizada da realidade sócio-

cultural vivida. Para os entrevistados, a culpa pelo descuido consigo mesmo, que provocara a

perda dos dentes, reverteu-se em um maior cuidado com os dentes dos filhos a fim de que

estes não venham experimentar o mesmo sofrimento de dor e perda vivenciados.

Por outro lado, os sujeitos buscaram, nos serviços, uma resposta para as suas dores,

que, além de físicas, têm uma dimensão psíquica muito forte. Esta não consegue ser percebida

pelos tradicionais registros médicos, necessitando de uma maior aproximação, vínculo e

responsabilização na relação entre profissional e paciente.

As histórias mostraram que a aceitação da perda dentária está muito relacionada ao

seu efeito de ausência de dor e sua associação ao processo natural de envelhecimento. Somou-

se, ainda, a prática mutilatória dos serviços que ajudou a construir a cultura da naturalização

da perda dentária e do protesismo na população. A convivência com a prótese traz à tona a

percepção da diferença entre o elemento natural e o artificial. Dessa forma, surgem as

impressões iniciais de estranhamento como algo que não pertence ao corpo e, portanto,

incomoda, tem mobilidade quando era para ser fixo, dando ao usuário de prótese sensação de

insegurança.

A experiência com as limitações da prótese produz sua negação como objeto de desejo

e faz emergir o arrependimento por ter “perdido” o dente natural, expressando certa desilusão

com a promessa protética. Contudo, a limitação da prótese quanto ao aspecto funcional pode

ser, de certa forma, compensada pela restituição da estética, ao possibilitar a expressão do

sorriso, o que acarreta o retorno ao convívio social. Embora menos comum, observou-se,

também, entre os entrevistados, uma avaliação positiva do uso da prótese, especialmente em

relação à restituição da função mastigatória, e o fato de se ficar “livre” do sofrimento com

dores de dente.

O entendimento do significado da problemática que envolve a perda dos dentes, para

os indivíduos, como resultante da exposição destes a um sistema produtor de práticas

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Considerações Finais 102

mutilatórias, possibilita uma análise da atual organização das políticas públicas de saúde no

Brasil, em relação aos efeitos de suas práticas produzidos no cotidiano da vida dos sujeitos.

Esperamos, dessa forma, que as narrativas dos usuários aqui apresentadas possam

contribuir nas iniciativas de reestruturação da organização dos serviços e práticas

odontológicas e na sua qualificação.

Diante do elevado número de perdas dentárias, especialmente em populações de

menor poder aquisitivo, que convivem com as limitações advindas da condição de desdentado

e com próteses de má qualidade que não reabilitam, adequadamente, as funções essenciais à

condição digna de vida, sugere-se uma sensibilização de todos aqueles que compõem o setor

saúde. Espera-se que a atual Política Nacional de Saúde Bucal contribua para a inclusão social

através da oferta de próteses dentárias que reabilitem, adequadamente, o aspecto funcional,

estético e psicossocial de todos aqueles mutilados que buscaram no serviço a resolução para

as suas dores.

Dessa forma, sugere-se um aprofundamento da temática perda dentária através da

realização de outros estudos de abordagem qualitativa que inclua, também, a análise da

percepção de profissionais e gestores.

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72. Teixeira MCB. A dimensão cuidadora do trabalho de equipe em saúde e sua contribuição

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73. Travassos C, Viacava F, Fernandes C, Almeida CM. Desigualdades geográficas sociais na

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APÊNDICES

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APÊNDICE 1

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ODONTOLOGIA PREVENTIVA E SOCIAL

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Título da pesquisa:

“Estudo da produção das perdas dentárias na perspectiva de usuários do SUS”

Obrigado (a) pela sua participação como voluntário (a) em nossa pesquisa. O nosso

objetivo é compreender como se deu a perda dentária, bem como suas motivações e repercussões

para a vida dos usuários, a partir da relação destes com os serviços de saúde bucal. Dessa forma,

poderemos contribuir para uma reflexão sobre as ações em saúde bucal e uma possível

reorganização das práticas odontológicas.

PROCEDIMENTOS

O instrumento de coleta de dados utilizado será a entrevista aberta, a qual permite ao

entrevistado expressar livremente as suas idéias relativas ao tema proposto. A pesquisadora poderá

gravar as entrevistas, caso o Senhor (a) autorize, ou fazer anotações das respostas. A duração da

entrevista será de acordo com a sua própria disponibilidade tempo. O horário e o local da

entrevista serão previamente acordadas com o Senhor(a).

CONFIDENCIALIDADE DO ESTUDO

No momento da entrevista estará presente apenas a pesquisadora, sendo respeitada a

privacidade do entrevistado. Será garantido o anonimato durante a entrevista e seu nome não será

divulgado nos resultados da pesquisa. Serão guardados os registros de cada indivíduo e somente os

pesquisadores integrantes da equipe terão acesso a essas informações. A pesquisadora, os demais

envolvidos nesse estudo e o Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande

do Norte (UFRN), podem ter acesso aos arquivos dos participantes para verificar dados, sem

alterar a confidencialidade do estudo. Na entrevista o (a) Senhor (a) não é obrigado a responder

aquilo que não desejar, assim como poderá interromper a entrevista a qualquer momento ou se

recusar a falar sobre o assunto, quando considerá-lo inadequado.

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RISCOS E BENEFÍCIOS

As entrevistas utilizadas para a coleta de dados serão realizadas pela própria pesquisadora,

que é qualificada para isso. Não se espera que o (a) Senhor (a) tenha nenhum problema ao

participar da pesquisa por tratar-se de uma pesquisa de risco mínimo.

PARTICIPAÇÃO VOLUNTÁRIA

A participação é voluntária, não havendo penalidade para aquele que se recusar a participar

do estudo. O entrevistado poderá desistir em qualquer momento da pesquisa em participar da

mesma, sem riscos de penalidades.

RESSARCIMENTO

Caso haja despesas devido à pesquisa o (a) Senhor (a) deverá ser ressarcido e poderá ser

indenizado se forem comprovados danos decorrentes da pesquisa.

Para maiores esclarecimentos, favor entrar em contato com as pesquisadoras:

Jussara de Azevedo Dantas Dra. Elizabethe Cristina Fagundes de Souza

Endereço para correspondência: e-mail: [email protected]

Rua dos Caiapós 2004, Bloco 1, Fone: 3215- 4133

apto. 404, Res. Jardim Satélite.

Natal/RN. CEP.: 59067-400

Fones: 3218-6877/9134-0954

e-mail: [email protected]

Ou, se assim o desejar, procurar informações no Comitê de Ética em Pesquisa da UFRN,

cujo fone/fax é xx (84) 3215-3135 e-mail [email protected]

DECLARAÇÃO DO (A) PARTICIPANTE

Estou de acordo com a participação no estudo anteriormente descrito.

Declaro que após ter sido informado (a) sobre os objetivos e procedimentos da pesquisa

contidas neste formulário, desenvolvida pela mestranda Jussara de Azevedo Dantas e sob a

orientação da Professora Doutora Elizabethe Cristina Fagundes de Souza, do Programa de Pós-

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Graduação em Odontologia Preventiva e Social da UFRN, garantindo-se o anonimato das minhas

informações, assim com o direito de não participar ou de desistir da pesquisa em qualquer fase de

seu desenvolvimento, sem que sofra penalidades, que não terei nenhuma despesa financeira pela

minha participação, e que poderei solicitar esclarecimentos em qualquer momento da pesquisa,

concordei, espontaneamente, em participar desta pesquisa.

Autorizo também a publicação do referido trabalho, podendo utilizar depoimentos.

Concedo também o direito de retenção e uso para quaisquer fins de ensino e divulgação em jornais

e/ou revistas científicas do país e do estrangeiro, desde que mantido o anonimato da minha

identidade.

Natal, ____/______/______.

Assinatura do entrevistado:______________________________

Nome do entrevistado:_________________________________

Compromisso do pesquisador:

Eu discuti as questões acima apresentadas com os indivíduos participantes do estudo e é

minha opinião que o indivíduo entende os riscos, benefícios e obrigações relacionadas a este

projeto.

________________________________________ Data: ___/___/____.

Assinatura do Pesquisador

POLEGAR DIREITO

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APÊNDICE 2

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ODONTOLOGIA PREVENTIVA E SOCIAL

Roteiro de entrevista – Questões a abordar

Obs: Por tratar-se de uma entrevista aberta, não haverá perguntas ao entrevistado, mas será

abordado o tema da perda dentária, buscando resgatar os seguintes tópicos:

- A experiência da perda dentária em sua vida.

-Os motivos que o levaram à perda dentária.

- Caso houvesse um tratamento especializado, se você optaria por este.

- As repercussões desta perda dentária em sua vida.

- Como é a sua relação com os serviços de saúde bucal do seu município.

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ANEXOS

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