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A PRESENÇA DOS CORPOS EM DIÁLOGO COM AS EMERGÊNCIAS DE NOVOS CENÁRIOS EDUCACIONAIS Considerando a urgência em fortalecer práticas pedagógicas desenvolvidas com visão crítica e emancipadora, entrelaçadas com aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais e, inquietados por antigos e novos desafios nos processos formadores desenvolvidos nas escolas e universidades, aqui aproximamos professor@s- pesquisador@s que reconhecem a educação como direito e devir. Integrantes de Grupo de Pesquisa em que a cultura corporal, o lúdico e as experiências são oportunidades educativas desenvolvidas na Educação Básica e no Ensino Superior, nossos estudos estão interrogados pelas inquietudes que a visibilidade do corpo e de diferentes experiências provoca nas organizações e planejamentos dos cenários educacionais contemporâneos. A partir dessa inserção, mobilizados por temas emergentes, dialogamos, em um primeiro momento, com a relação entre as corporeidades e o processo de democratização dos espaços-tempos escolares, tendo como atravessamento principal as instituintes relações democráticas. Em um segundo momento, trazemos uma perspectiva que potencializa a diferença e a alteridade no cotidiano escolar, mediada pela arte cinematográfica, em contraposição as relações de poder repercutidos no corpo e no gênero. E, em seguida, questionamos como o corpo, o gênero e a saúde estão presentes na escolarização dos jovens e adultos. Os artigos aqui apresentados fazem parte do processo de formação continuada dos seus respectivos autores os quais estão completamente entrelaçados pela atuação e compromisso com/nas instituições públicas educacionais e, por isso, problematizam as demandas contemporâneas salientadas pelos processos escolares na atual conjuntura. Neste fluxo, com as colaborações de Boaventura Santos, Guacira Louro, Jorge Larrosa, Silvio Gallo, Paulo Freire e Carmen Soares, dentre outros, objetivamos desnaturalizar como o corpo e as práticas corporais fazem parte desse contexto, podendo vir a serem compreendidos como expressões, gestos, existências de diferentes sujeitos, em múltiplos tempos e espaços dessa paisagem. Nos resultados, os quais sempre provisórios, a corporeidade vem apresentando sua potência criadora de novos sentidos ao trabalho docente. Palavras-chave: Corporeidade. Experiências. Educação Pública. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 10224 ISSN 2177-336X

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A PRESENÇA DOS CORPOS EM DIÁLOGO COM AS EMERGÊNCIAS DE

NOVOS CENÁRIOS EDUCACIONAIS

Considerando a urgência em fortalecer práticas pedagógicas desenvolvidas com visão

crítica e emancipadora, entrelaçadas com aspectos sociais, políticos, econômicos e

culturais e, inquietados por antigos e novos desafios nos processos formadores

desenvolvidos nas escolas e universidades, aqui aproximamos professor@s-

pesquisador@s que reconhecem a educação como direito e devir. Integrantes de Grupo

de Pesquisa em que a cultura corporal, o lúdico e as experiências são oportunidades

educativas desenvolvidas na Educação Básica e no Ensino Superior, nossos estudos

estão interrogados pelas inquietudes que a visibilidade do corpo e de diferentes

experiências provoca nas organizações e planejamentos dos cenários educacionais

contemporâneos. A partir dessa inserção, mobilizados por temas emergentes,

dialogamos, em um primeiro momento, com a relação entre as corporeidades e o

processo de democratização dos espaços-tempos escolares, tendo como atravessamento

principal as instituintes relações democráticas. Em um segundo momento, trazemos

uma perspectiva que potencializa a diferença e a alteridade no cotidiano escolar,

mediada pela arte cinematográfica, em contraposição as relações de poder repercutidos

no corpo e no gênero. E, em seguida, questionamos como o corpo, o gênero e a saúde

estão presentes na escolarização dos jovens e adultos. Os artigos aqui apresentados

fazem parte do processo de formação continuada dos seus respectivos autores – os quais

estão completamente entrelaçados pela atuação e compromisso com/nas instituições

públicas educacionais e, por isso, problematizam as demandas contemporâneas

salientadas pelos processos escolares na atual conjuntura. Neste fluxo, com as

colaborações de Boaventura Santos, Guacira Louro, Jorge Larrosa, Silvio Gallo, Paulo

Freire e Carmen Soares, dentre outros, objetivamos desnaturalizar como o corpo e as

práticas corporais fazem parte desse contexto, podendo vir a serem compreendidos

como expressões, gestos, existências de diferentes sujeitos, em múltiplos tempos e

espaços dessa paisagem. Nos resultados, os quais sempre provisórios, a corporeidade

vem apresentando sua potência criadora de novos sentidos ao trabalho docente.

Palavras-chave: Corporeidade. Experiências. Educação Pública.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10224ISSN 2177-336X

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CENAS DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: EXERCÍCIOS

DE ALTERIDADE, DIÁLOGOS COM A DIFERENÇA

Andreza Berti (PPGE-UFRJ/Bolsista CNPq)

Renata Ramos (FME-Niterói / SME-RJ / PPGE-UFF)

Mobilizadas pelas questões levantadas pelo XVIII Endipe, acerca das cenas

contemporâneas na diversidade educacional pública brasileira e, como professoras

pesquisadoras integrantes de um Grupo de Pesquisa que tem como temáticas de

investigação as experiências lúdicas, artísticas e corporeidades; problematizamos as

relações hegemônicas de corpo e de gênero comumente encontradas nos cotidianos

escolares, inscritas e marcadas na corporeidade, tendo como princípio pedagógico das

nossas ações o diálogo com a diferença. Nesse movimento, elegemos como ponto de

contato, entre educadores e educandos, a arte (em específico a cinematográfica).

Através dos exercícios realizados, buscamos aproximar a linguagem audiovisual das

diferentes formas de expressão da corporeidade, em toda sua potência de criação e

intervenção na escola, oferecendo subsídios para o questionamento de práticas ainda

naturalizadas de concentração de poder nas relações educativas, sociais, culturais,

econômicas e políticas. Compreendendo que as diferenças não devem ser apagadas ou

toleradas, percebemos os limites de cada processo educacional. Ao nos fixarmos nas

relações de gênero restritas ao feminino e masculino, não pretendemos com isto reduzir

a problemática da diferença a este aspecto, mas revelar as relações entre as práticas

cotidianas escolares com as práticas sociais acentuadas pelas marcas da corporeidade.

Para isso, interrelacionamos discursos, saberes e conceitos de autores como Guacira

Louro, Michel Foucault e Paulo Freire. Deste modo, nossos resultados e discussões

sinalizam que o próprio processo de reflexão e ação com alunos e alunas simboliza uma

ruptura da lógica excludente, na medida em que convoca (docentes e discentes) a

atuarem de forma consistente, contundente e transformadora.

Palavras-chave: alteridade, arte, diferença.

Problematização e objetivos: vai jogar onde?

Vivemos constantemente situações educacionais caóticas no âmbito da escola

pública que tem demandado de professores e professoras uma tomada de posição frente

aos modelos de exclusão e de precarização, facilmente detectável nas diretrizes

curriculares e nos materiais didáticos elaborados por estados e municípios em todo o

território brasileiro. Assim, ao olharmos para as nossas escolas, percebemos como essas

proposições se concretizam e, especificamente, como se desdobram em nossas práticas

pedagógicas.

Nesse movimento, muitas dessas orientações tendem a não considerar as

diversidades educacionais brasileiras e, ainda mais grave, tendem a homogeneizar

práticas e discursos que contribuem com as lógicas meritocráticas, defendidas por

políticas conservadoras que constantemente responsabilizam docentes e discentes,

eximindo o Estado das suas obrigações.

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Podemos perceber a materialização dessas políticas desagregadoras através de

muitos fatores, mas, para efeito desse texto, elegemos como tema de debate a forma

como isso acontece no corpo dos nossos alunos, na produção de corpos dóceis

(FOUCAULT, 2003) e como interferem na construção social das identidades,

reveladoras dos processos de afirmação e de negação, que ressaltam as marcas da

diferença (LOURO, 2000) inscritas nas corporeidades. Portanto, o conceito de

corporeidade se constitui como um potente norteador das ações pedagógicas

desenvolvidas nas escolas.

A formação educacional brasileira contemporânea revela (ainda) a hegemonia

nas relações estabelecidas com a naturalização do domínio de espaços e,

concomitantemente, as impressões e expressões humanas – do direito de ser e da (re)

produção incessante de minorias dentro do espaço escolar. De tal modo que no espaço

educacional as influências dualistas segmentam os sujeitos, estabelecendo uma

separação entre mente e corpo, localizando neste uma matriz biológica para definição

do seu (não) lugar na escola. Atribuindo assim, características determinadas do corpo,

produzindo identidades facilmente localizáveis, visíveis.

Deste modo, ―a ‗definição‘ sexual e de gênero resulta central; ela se constitui,

via de regra, na referência primordial sobre os sujeitos‖ (LOURO, 2000, p. 63),

atribuindo marcas às corporeidades expressas através da dominação, legitimando os

pertencentes à constituição homogênea como sujeitos, donos de identidade e

invisibilizando os que fogem ao padrão estabelecido, classificando-os como diferentes,

que, neste caso, constitui algo pejorativo. Com o intuito de visibilizar as distintas

marcas da corporeidade, dialogamos com a perspectiva de que

(...) o corpo não é ‗dado‘, mas sim produzido - cultural e

discursivamente - e, nesse processo, ele adquire as ‗marcas‘ da

cultura, tornando-se distinto. As formas de intervir nos corpos - ou de

reconhecer a intervenção - irão variar conforme a perspectiva

assumida. Ilusório será acreditar, contudo, que, em algum momento,

as instâncias pedagógicas deixaram de se ocupar e se preocupar com

eles (LOURO, 2000, p.61).

Como duas professoras e pesquisadoras, com experiência na educação pública,

tendo como formação inicial de uma a Pedagogia e da outra a Educação Física,

problematizamos cotidianamente nossas práticas pedagógicas, com o desejo de

contribuir para o fortalecimento de processos escolares e sociais questionadores das

lógicas excludentes, sexistas, racistas, machistas, homofóbicas e meritocráticas. Com o

objetivo de desnaturalizar o entendimento de corpo, ao interrogar as práticas de poder

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enraizadas nas relações educativas, apostamos na potência de projetos artísticos na

escola como possibilidade de vivência, invenção e intervenção das diferentes

corporeidades.

As questões de corpo, percebidas em diversas marcas (de classe social, de etnia,

de gênero, de sexualidade, etc) constituídas na história contribuem para o desenho de

uma realidade social, que muitas vezes se impregna de tal forma que passam

despercebidas e naturalizadas nas microrrelações cotidianas escolares. Atentas a isso,

elegemos um contexto para a problematização dessas ações, com o intuito de dialogar

com as temáticas que nos desafiam e vibram nas mais distintas cenas escolares

contemporâneas.

A escola situada no centro de Niterói, cidade às margens da Baía de Guanabara,

no estado do Rio de Janeiro, encontra em sua localização seu primeiro paradoxo: centro,

geograficamente; periferia, econômica e socialmente. Com pouco mais de cem alunos

por turno, a pequena escola pública municipal do Morro da Chácara recebe alunos do 6º

ao 9º ano no turno da manhã, congregando o primeiro segmento do ensino fundamental,

pela tarde, duas turmas de primeiro segmento na modalidade EJA (Educação de Jovens

e Adultos), pela noite, recentemente reduzida com propósitos financeiros. A interrupção

por tiros é menos constante que em algumas zonas de conflito do Rio de Janeiro, porém

mais frequentes e incisivas que a sanidade emocional e integridade física da

comunidade local e escolar gostariam de relatar. A violência e marginalização, porém,

não são exclusividade da localização financeira, sociocultural ou geográfica, tampouco

atribuições fixas a determinados grupos.

Tendo como princípio o diálogo nas nossas práticas pedagógicas, o pedido de

uma aluna pelo empréstimo de uma bola na hora do recreio fez devolver com uma

pergunta: – Mas onde vocês vão jogar? – e a aluna responde, apontando para o pátio: –

Em qualquer lugar por aqui! Um ―aqui‖ que era um canto qualquer, de um espaço

qualquer que sobrava, constituindo-se como o único aparentemente possível.

Esperando ansiosa uma resposta à solicitação (que poderia soar atrevida de tão

incomum) e, após um período prolongado de silêncio, mas não tanto tempo assim, fez-

se visível a necessidade de desorganização e reorganização do espaço.

Discussão: quem pode o quê?

Após o silêncio a bola foi emprestada com a autorização da

coordenadora, que em breve se revelaria uma grande mediadora deste processo

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dialógico. Algumas meninas se agruparam em um espaço descoberto no canto do pátio,

enquanto os meninos imperavam no espaço da quadra. Um olhar um pouco mais

demorado nos faz perceber os ramos da segregação entre eles: apenas os maiores e/ou

mais habilidosos jogavam. Aos outros, uma fila que era inversamente proporcional ao

tempo de recreio. Aproximando essas duas formas distintas de ocupação do espaço das

ideias de Louro (1997), podemos perceber que

(...) através de muitas instituições e práticas, essas concepções foram e

são aprendidas e interiorizadas; tornam-se quase ‗naturais‘ (ainda que

sejam ‗fatos culturais‘). A escola é parte importante desse processo.

Tal ‗naturalidade‘ tão fortemente construída talvez nos impeça de

notar que, no interior das atuais escolas, onde convivem meninos e

meninas, rapazes e moças, eles e elas se movimentem, circulem e se

agrupem de formas distintas. Observamos, então, que eles parecem

‗precisar‘ de mais espaço do que elas, parecem preferir ‗naturalmente‘

as atividades ao ar livre. Registramos a tendência nos meninos de

‗invadir‘ os espaços das meninas, de interromper suas brincadeiras. E,

usualmente, consideramos tudo isso de algum modo inscrito na

‗ordem das coisas‘ (IDEM, p.60).

Nesse sentido, questionar o ―natural‖ e ―habitual‖ no contexto escolar, é urgente

e necessário, pois, ainda que não tivessem chance ou ―direito‖ de jogar, a própria

disposição na escola constituía uma afirmação ou tentativa de aproximação de

identidade: os meninos na quadra, as meninas fora, e aqueles que insistiam ou não se

importavam com esta ―ordem‖ silenciosa, eram postos sob olhares de desconfiança,

classificados como diferentes do ―normal‖. É ―natural‖ que somente os meninos gostem

de atividades ao ar livre? É ―normal‖ que meninos joguem dentro da quadra e meninas

se contentem com o fora da quadra?

Como nada pertence a uma única ordem e não há explicação que se reduza em si

mesma, isto é, tudo é atravessado por um conjunto de fatores (culturais, econômicos,

sociais, étnicos, políticos, etc), as relações que ocorrem na escola são fortemente

marcadas por relações de poder. Para que seja exercido o poder, há necessariamente

uma relação de consentimento (FOUCAULT, 1981). Sem consentimento, não há poder.

Em contrapartida, Foucault (1981) revela a resistência como uma maneira de

desorganizar e reorganizar o poder e que a tensão localizada na estrutura desta relação

constitui o próprio poder.

Desta forma, para as meninas e também para todos aqueles meninos que ficavam

à margem da quadra, esperando algo que não aconteceria, havia a necessidade de

compreender que em seu barulho, ou na estática, havia um tensionamento desse poder

instituído (representado ora pelos próprios colegas, ora pelo professor), bem como

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afirmava um posicionamento político – compreendendo política como tudo que dentro

de uma relação social pode provocar alguma reafirmação ou transformação.

A partir das observações de Foucault (2003), em Vigiar e Punir, podemos

perceber as distintas formas de poder sobre os corpos, não só pelo Estado, todavia a ele

articulado. O controle da sociedade sobre os sujeitos não opera somente pela ideologia,

mas começa no corpo e com o corpo. De acordo com o autor, o corpo é uma realidade

biopolítica, do corpo individual que se amplia e atinge o nível de populações. Isto é, há

vínculo direto entre as sujeições corporais (dominação) e as relações econômicas (força

de produção), ―se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso‖ (IDEM, 2003,

p. 26). As múltiplas técnicas de poder utilizadas sobre os corpos, com a finalidade de

torná-los dóceis, hábeis e eficazes, podem ser percebidas nas diferentes instituições

sociais – a escola é só mais uma delas. A aula de Educação Física, também.

Compreendemos o alcance das relações cotidianas escolares, especialmente na

disciplina de Educação Física, porque assumimos o compromisso em desconstruir as

relações de poder comumente encontradas nessas aulas – demasiadamente segregadoras

e machistas – como nas práticas esportivas historicamente dominadas por homens e

com explícita intenção de manutenção. ―As meninas podiam ficar ali no fundo pulando

corda‖. ― Dá uma bola de vôlei pra elas‖. ―Se sobrar tempo a gente joga futebol, não

é?‖. Ponderações como estas, da parte dos meninos, eram tão comuns que soavam como

deduções óbvias e algumas em tons pretensamente ameaçadores, tão frequentes em suas

relações. As meninas sequer questionavam, pois como bem destaca Louro (2000, p.68):

―não há identidade fora do poder, todos o exercitam e, simultaneamente, todos sofrem

sua ação. As identidades fazem parte de jogos políticos, ou melhor, as identidades se

fazem em meio a relações políticas‖.

É importante ressaltar, porém, que a Educação Física avança e há inúmeras

experiências que demonstram a desconstrução desse histórico regulador. Nesta escola,

as modificações ocorriam de maneira gradual há alguns anos, mas já se mostravam

insuficientes ao perceber que sua prática não ultrapassavam os limites destas aulas. De

início, portanto, talvez fosse preciso uma mediação para além das aulas, para haver uma

verdadeira tomada de consciência, uma libertação (FREIRE, 2013), pois não poderia

ser simplesmente absorvida e instituída como um ―novo natural‖. Era preciso revelar a

transformação como processo necessariamente de dentro para fora, ou seja, da

consciência para a ação.

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Partindo para ação, em outro dia, indagamos se as meninas quereriam a bola e,

responderam logo que não, que estava muito calor para jogar ―ali‖. Com o intuito de

instigá-las, perguntamos por que então não jogavam na quadra, já que é coberta. A

primeira reação foi de riso. E logo explicaram: – se a gente aparecer na quadra, os

meninos botam a gente pra fora –. Quando questionado: – Mas como assim? E por que

vocês saem? – a resposta das meninas se fez em coro e em sorriso: – Porque eles dão

bolada na gente quando a gente quer ficar lá, mesmo sem jogar, só pra assistir ou ficar

conversando encostada no muro, imagina se a gente quiser jogar?!?! – Em seguida o

riso sumiu dos olhos e, a última cartada do dia foi: – Poxa, que história, isso daria um

filme! – Tornaram a rir. Após uma espera, foi perguntado novamente, de forma

empolgada e com múltiplas intenções: – Vamos fazer? – Então as alunas responderam: –

Um filme? Mas como? O interesse mostrou-se revelador.

Procedimentos metodológicos: mete o pé, que é tudo nosso! É tudo nosso!

No diálogo com os alunos, sem esquecer o fato de que transitam no território

periférico das metrópoles e convivem com diversas expressões sonora-visuais, sob uma

avalanche midiática, reveladora das linguagens culturais, científicas e tecnológicas

hegemônicas do nosso tempo, optamos por experimentar um desses elementos,

convertendo-o em uma atividade artística. Assim, elegemos como linguagem

audiovisual o cinema – que no auge dos seus cento e vinte anos, congrega vários

atributos: o produto fílmico, tendências teóricas, discursos político-econômicos,

investimentos tecnológicos, práticas socioculturais, etc.

Dentre os múltiplos espaços e as muitas instâncias onde se pode

observar a instituição das distinções e das desigualdades, a linguagem

é, seguramente, o campo mais eficaz e persistente — tanto porque ela

atravessa e constitui a maioria de nossas práticas, como porque ela nos

parece, quase sempre, muito ‗natural‘. Seguindo regras definidas por

gramáticas e dicionários, sem questionar o uso que fazemos de

expressões consagradas, supomos que ela é, apenas, um eficiente

veículo de comunicação. No entanto, a linguagem não apenas

expressa relações, poderes, lugares, ela os institui; ela não apenas

veicula, mas produz e pretende fixar diferenças (LOURO, 1997, p.65).

Considerando os distintos aspectos realçados por Louro (1997) acerca da

multiplicidade das linguagens na relação com a diferença e a familiaridade com a

linguagem visual que muitos dos nossos alunos e alunas têm acesso, visto que assistem

a filmes pela televisão, pelos DVDs, por sites da internet que admitem baixar e/ou ver

online e tantas outras plataformas digitais que permitem entrar em contato com o texto

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fílmico, em suas mais variadas formas (curtas, longas, vídeos ―caseiros‖, etc), o convite

para a produção de curta metragem apresentou-se como uma possibilidade instigante e

potente, sendo prontamente aceito pelas alunas.

Explicando brevemente apesar do conhecimento relativamente limitado sobre o

que era um roteiro, começamos a montar o curta metragem. De maneira bastante

simplificada, com o auxílio tecnológico de um telefone inteligente, fizemos o ato em

três cenas com o recurso ―pause‖ da câmera, quase todo em plano fixo e amplo, que

resultou em um curta de aproximados dois minutos com a participação de alguns

meninos da mesma turma em sua composição.

A ressignificação do uso de telefones celulares dentro da escola, por meio da

utilização da câmera filmadora enquanto objeto de fruição na escola, proporcionou outra

forma de ―tomar a palavra‖, de se apropriar dela e de ―dar corpo‖ às questões que

emergiam do debate. A partir do posicionamento da câmera, do enquadramento, da

situação filmada e do roteiro idealizado, foi possível perceber a aproximação entre as

diferentes marcas da diferença na produção das imagens.

Especificamente no roteiro, as meninas ―tomavam o lugar dos meninos‖ e

faziam quase exatamente o que eles faziam com elas. Puderam expressar suas ideias e

até ―se vingarem‖, ainda que apenas no imaginário. Apesar de não ter como objetivo a

simples e equivocada inversão de papéis, víamos naquela troca de poder proposta por

elas, uma potência ainda mais elevada para debater as relações que se estabeleciam na

escola. ―Mete o pé que é tudo nosso, é tudo nosso‖ foi a fala espontânea de uma das

alunas durante a encenação e altamente reveladora de uma libertação. Ecos de uma

vivência repetida.

Após a produção do filme, todos assistiram e começamos a conversar,

compreendendo os deslizes cometidos por ambos os lados e compreendendo ainda que

não haviam apenas dois. Inicialmente, a ideia era exibir o curta para toda a escola e

promover um debate mediado pelos envolvidos, entretanto não foi possível naquele

momento pelos insistentes confrontos na favela onde se localiza a escola, além da

imprevisibilidade de funcionamento tecnológico escolar. Mas algo que transcenderia a

um debate viria a acontecer. Algo que revelaria a potência da afirmação da corporeidade

de alunos e alunas, mediado pela força da presença do cinema, pois, ―(...) a arte não

obedece, não repete, não aceita sem questionar. Arte reclama, desconstrói, resiste com

certa irreverência‖ (FRESQUET, 2013, p. 40).

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Resultados e considerações

As meninas tentaram insistentemente jogar na quadra, o que aconteceu algumas

vezes. Mas elas queriam mais: queriam que não fosse algo esporádico, mas instituído

pela organização escolar. O que logo foi feito com mediação da coordenadora.

Compreendendo limites, incompletudes e múltiplas possibilidades e necessidades de

reinventar as relações cotidianas escolares, percebemos nisto o início de uma

descentralização das práticas hegemônicas bem como das práticas emancipatórias

localizadas e até então sem forças para transpor seus muros. Construía-se através da

resistência e mobilização, com e pela libertação (FREIRE, 2013), pela tomada ativa de

consciência que é capaz de modificar sujeitos e cenários determinados e deterministas.

Durante o processo, percebemos, contudo, que não se tratava de reduzir a

segregação de território de disputa entre meninos e meninas, mas que naquele momento,

essa divisão primária era o ―ali‖ possível, potente para iniciar uma desorganização

positiva da lógica estabelecida. Sabendo que as questões de gênero logo

protagonizariam os questionamentos das relações de poder.

As corporeidades afirmadas podem ser desta forma, reconhecidas não como um

produto biológico dado e estabelecido ao nascer, mas como produção em constante

processo social que se forma, renova e se assume como provisório, inacabado, em

múltiplos territórios. A linguagem cinematográfica como subsídio deste processo nos

serviu não apenas para indagar ou promover um debate que se encerrasse como uma

película guardada, mas para provocar uma real mudança, provocar a existência de outras

possibilidades, inspirando os ares de sua própria trajetória de roteiro (ideia), chegando

ao filme (concretização da ideia). E, mais do que isto: permitindo através da linguagem

audiovisual inúmeras interpretações que asseguram o lugar do outro.

Em uma era de intenso apelo aos estímulos sonoros e visuais, entendemos a

apropriação do cinema pela educação não como tentativa de seduzir os estudantes pela

busca de atenção por meio da diversificação dos métodos de ensino-aprendizagem,

tampouco em render-nos à lógica de instantaneidade do consumo, mas, de associar o

cinema como processo educacional constituinte das corporeidades e identidades,

mediadas pelas marcas da diferença.

Incluir a prática de iniciação cinematográfica como atividade pedagógica, pode

permitir que alunos e alunas elaborem e produzam discursos sobre eles e o mundo que

os cerca. Ao realizarem exercícios em que são convidados a se expressarem e

assumirem suas escolhas e desejos, os estudantes poderão desenvolver estratégias de

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libertação do ―natural‖ e ―normal‖, institucionalizado através das relações de poder.

Essas experiências na escola podem produzir múltiplos efeitos, tanto no plano

individual como no coletivo, pois a diversificação de práticas (de mobilização social, de

fruição, de afirmação da corporeidade, de arte), oportunizam momentos educativos

preciosíssimos.

O universo lúdico presente na contemporaneidade, que nunca cessa de se

reinventar, mas que ainda precisa de permissões e concessões para adentrar no cotidiano

escolar – tanto para as não tão novas imagens, como para o ―velho‖ corpo, expresso

pela corporeidade vibrante de cada estudante. Como destacado no início desse artigo, a

pulsante corporeidade plena de histórias e de afetos, que não é apenas individual, mas

social, pois se constrói nos processos cotidianos e nas relações com o outro.

Ao se empossarem do espaço da quadra, tanto no vídeo como nos recreios

conquistados, as meninas não jogaram futebol como os meninos, jogaram um jogo de

queimado. Apesar de inúmeros equívocos que compreendemos como parte do processo

educacional, com esta decisão, dentre tantas outras, elas marcaram suas próprias formas

de ser, porque as relações de gênero não estão localizadas restritamente nas construções

do feminino e do masculino, mas na compreensão dos limites e dos avanços que a

construção de uma trajetória libertadora pode produzir e potencializar as conquistas por

vir, entendendo que elas nunca param de se reinventar.

Referências citadas

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 15ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2000.

______. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 27ª ed. Petrópolis: Vozes, 2003.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 46ª

ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.

FRESQUET, Adriana. Cinema e educação: reflexões e experiências com professores

e estudantes de educação básica, dentro e “fora” da escola. Belo Horizonte:

Autêntica, 2013.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. Petrópolis, RJ Uma

perspectiva pós-estruturalista: Vozes, 1997.

______. Corpo, escola, identidade. Revista Educação e Realidade, jul-dez, 25:2, 59-

76. 2000.

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CORPO, SAÚDE E GÊNERO NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS (EJA)

Cristiano Guimarães de Assis (Especialista Em Educação Física Escolar, SEE-RJ)

Julio Cesar Gomes da Costa (Professor de Educação Física, mestrando na FIOCRUZ)

Rosa Malena Carvalho (Drª em Educação, IEF/UFF, bolsista CAPES, Coord ELAC1)

Integramos esse painel através de artigo formado por dois trabalhos de conclusão de

curso – um na Licenciatura em Educação Física (Educação Física Escolar: promoção

da saúde na Educação de Jovens e Adultos) e outro na Especialização em Educação

Física Escolar da mesma Universidade Federal (A aluna transgênero na aula de

Educação Física da Educação de Jovens e Adultos), localizada na região sudeste do

Brasil. Estudos que são aproximados pela orientadora, pelo grupo de pesquisa e,

especialmente, pelo universo pesquisado (a Educação Física na Educação de Jovens e

Adultos (EJA)). Considerando essa modalidade da educação, destacando as

características atuais da Educação Física, problematizando dois elementos da

contemporaneidade que se apresentam com ênfase na dinâmica dessa prática

pedagógica quando é organizada e com atenção desenvolvida com e para a EJA: saúde e

gênero. Nesse movimento, através da cultura corporal como paradigma desse

componente curricular, destacando os significados atribuídos ao corpo, aos cuidados e

às práticas corporais, desvelando as obviedades atribuídas à saúde e ao gênero, trazemos

as principais questões, objetivos e metodologias dessas duas pesquisas que se destacam,

na medida em que ainda é frágil a presença da Educação Física na EJA. Por isso, as

conclusões, mesmo provisórias, podem auxiliar na organização do trabalho docente que

inclua o corpo e as práticas corporais em diálogo com as urgências de um mundo em

constante mudança e, ao mesmo tempo, com desafios que permanecem – como o direito

à educação, ao acesso aos diversos saberes socialmente construídos, aos benefícios dos

cuidados coletivos e, as marcas corporais como produções individuais e históricas.

Palavras-chave: EJA, saúde e gênero.

Apresentação

Como Professores de Educação Física, partimos do entendimento de que os

conteúdos da cultura corporal constituem-se a partir da relação entre o homem e a

sociedade (SOARES ET ALL, 1992), apresentando-se como conteúdos desse

componente curricular os jogos, os esportes, as ginásticas, as danças e temas sócio-

políticos atuais, como ecologia, papéis sexuais, saúde pública, relações sociais do

trabalho, preconceitos sociais, raciais, da deficiência, da velhice, distribuição do solo

urbano, distribuição de renda, dívida externa e outros.

Para Daólio (2004), a importância da dimensão simbólica do corpo é relevante

para a Educação Física porque ―Só é possível discutir as especificidades de uso do

corpo a partir de que ele expressa determinados valores de um determinado grupo‖

(p.5). Assim, é possível identificar em cada indivíduo os movimentos e gestos corporais

que indicam inserções socioculturais, mas também aquilo que os torna singulares.

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Percebe-se, então, que possuímos características que nos une em uma coletividade e,

também, àquelas que nos diferenciam como singularidades.

E, no ambiente escolar, um lugar onde encontramos sujeitos que apresentam

características comuns e singularidades, com destaque para a diversidade, é a Educação

de Jovens e Adultos (EJA) - pois as diferenças de idade, etnia, gênero, sexualidades e

credos são questões extremamente presentes, não podendo ser relegadas pela Educação

Física Escolar. Por isso, ao questionarmos como a Educação Física se desenvolve, nessa

modalidade da educação básica (BRASIL, 2000), nosso objetivo também é colaborar

com pistas e elementos que auxiliem nessa aproximação.

Ao abordar a EJA, partimos de Paiva (OLIVEIRA & PAIVA, 2004), quando faz

referência à V Confitea (V Conferência de Educação de Jovens e Adultos) que

aconteceu em Hamburgo, Alemanha, em 1997. Nessa conferência foi firmado o

compromisso de ser preciso não apenas levar em conta os direitos constituídos, mas

lutar pelo direito a ter direitos. Que direitos são esses? O direito à educação é um deles.

O artigo 37 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (BRASIL, 1996) prevê que essa

modalidade da educação básica seja destinada a todos aqueles que não tiveram acesso

ou oportunidade de estudos no Ensino Fundamental e Médio na idade própria. Entende-

se como idade própria aquela em que é esperado o acesso da criança e do adolescente à

escolarização.

Entender o direito à Educação é, antes de tudo, identificar que em qualquer idade

se dá o aprendizado, perceber os desafios no conjunto da sociedade (como a discussão

de saúde e gênero). De acordo com o Parecer CNE/CEB nº11 das Diretrizes

Curriculares para a EJA (BRASIL, 2000), as funções da EJA são conhecidas como

políticas de reparações. Qual papel político pode exercer o professor de Educação Física

na EJA para além dessas políticas de reparações?

Nesse sentido, Paiva (2004) afirma existir uma necessidade de sensibilização de

todos para as desigualdades e para a necessidade de modificação das relações díspares,

pois a legislação reconhece a EJA como modalidade da Educação Básica (BRASIL,

2000), mas pensar no corpo discente da Educação de Jovens e Adultos é pensar nas

classes populares, alunos que têm como marca social a pobreza, uma vida de trabalho

duro e luta por melhores condições de vida. Homens e mulheres que por algum motivo

forçoso tiveram que abandonar ou nem chegaram a iniciar a escolarização, em sua

grande maioria pela necessidade de se engajar ao mercado de trabalho. Questões que

vão além de vontades e decisões individuais e, que as instituições escolares podem

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sinalizar recomeço de vida, quando assim entendem esse momento da escolarização

(CARRANO, 2011).

As Orientações Curriculares da Educação Física Escolar para a Educação de

Jovens e Adultos (EJA) (BRASIL, 2002) sugerem o desenvolvimento de uma proposta

que visa ajustar a proposta de ensino aos interesses e possibilidades dos alunos da EJA.

Constituindo-se assim, simultaneamente, numa necessidade e num desafio.

Quint et all (2005) acrescentam que o professor da Educação Física é chamado a

colaborar, especialmente por ser identificado como detentor de formação considerada

com dupla entrada - viés da Educação e da Saúde. No sentido da promoção da saúde, a

Educação Física através de suas práticas e estratégias, pode propiciar o aumento do

nível de consciência e informação dos indivíduos e coletividades para a tomada de

decisões relacionadas à saúde (FARINATTI e FERREIRA, 2006).

Para isso, todos devem ter oportunidade de conhecer e controlar os fatores

condicionantes da sua saúde, possibilitando a realização de seu potencial. Ambientes

favoráveis, acesso à informação, habilidades para viver melhor, bem como

oportunidades de fazer escolhas mais saudáveis, estão entre os principais elementos que

favorecem a capacitação dos indivíduos (BUSS, 2000).

Compartilhando as ideias de Soares et al (1992) temos em mente um professor

sufocado pelas limitações materiais da escola, pelos baixos salários, pela desvalorização

de sua profissão e do seu trabalho, mas sempre esperançoso em transformar sua prática,

sedento do saber, inquieto por conhecer e suprir o que não lhe foi propiciado no período

de sua formação profissional.

Por isso, ao pensar nessa diferença, para pensar a Educação Física na EJA, é

importante entender que a promoção da saúde lida com valores, as opiniões devem ser o

ponto de partida para criação de alternativas ou escolhas em que cada um sinta-se

saudável. Diferente da prevenção que só leva em consideração a visão das normas

científicas, e junto a ela, dos profissionais especializados (CARVALHO, 2009).

A Educação Física tem a seu favor os elementos da cultura corporal que tende a

ser multifatorial, possibilitando uma ação em diferentes campos. Sua multifatoriedade

permite pensar o ser humano de forma integral e seu corpo numa relação intrínseca com

o ambiente que o cerca (COLLIER ET ALL, 2013). Este corpo, também simbólico,

modifica o sentido de direcionar as propostas de promoção da saúde ou mesmo no

tratamento dos sujeitos a uma vertente restritamente biológica. Passamos, então, a

considerar nessas relações indivíduos históricos sociais.

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O mesmo raciocínio vale para o que consideramos masculino e feminino. Pois a

discussão de gênero não está restrita aos atributos biológicos que definem o sexo.

Identificar isso é questionar as práticas corporais compreendidas com olhar estritamente

biológico, os quais permitem dizer o que é de menino ou de menina...

Com esses pressupostos e indagações, através da metodologia com/no/dos

cotidianos de trabalho e estudo (OLIVEIRA, 2001), desdobramos essa discussão.

Desafios e criações do trabalho da promoção da saúde na EJA

A relação de causa e efeito e, entre prática corporal e saúde, ainda é corrente nas

aulas de Educação Física. Essa visão, construída pelos médicos e militares na Europa,

no final do século XIX, exerce forte influência nas tendências pedagógicas atuais da

Educação Física. Disciplina ―responsável‖ por tratar do corpo e do movimento - o corpo

em sua trajetória foi predominantemente entendido e formado por um prisma biológico

e o movimento enquanto fenômeno biomotor. Não por acaso, essa forma de ver o corpo

e o movimento insere a Educação Física nas escolas brasileiras, com o discurso

essencialmente biológico-epidemiológico, colocando-se uma prática ―neutra‖, capaz de

alterar a saúde, os hábitos e a própria vida dos indivíduos, desconsiderando outros

aspectos igualmente influentes.

No entanto, a partir dos anos 80, surge uma nova forma de encaminhar a

Educação Física escolar no cenário nacional, momento em que o movimento de

―abertura política‖, na ocasião, solicita novas formas de pensar e encaminhar a vida.

Segundo Carvalho (2012), Flávio Pereira, Coletivo de Autores e Wey Moreia

fazem parte dos primeiros autores que auxiliaram a caracterizar a Educação Física como

uma prática escolar crítica, com intencionalidade pedagógica, cujos conteúdos abordam

e tematizam o conhecimento da área através da concepção denominada cultura corporal.

Esta cultura corporal materializa-se através da contextualização (teórica e prática) dos

jogos, das ginásticas, da dança, das lutas, da forma esportivizada que estas práticas

corporais assumem, assim como pela ludicidade e prazer que o trabalho corporal

propicia.

Nessa proposta de Educação Física Escolar como prática pedagógica crítica, que

nossas pesquisas se identificam e partilham. Reconhecemos que pode favorecer a

democratização do universo da cultura corporal, mas reconhece que a influência

biomédica, sua relação com a prática corporal de causa e efeito ainda é um fenômeno

muito presente e forte na prática pedagógica escolar.

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O aluno da EJA, jovem ou adulto, que traz preocupações pessoais com o próprio

corpo e sua saúde, acaba absorvendo informações superficiais e/ou imprecisas,

disseminadas pelo meio sócio cultural, amparadas por ideia de corpo ideal (sarado,

forte e limpo) e, não tem, na maioria das vezes, a consciência de que melhorias em

outros setores (ambientais, atividades que repercutem prazer e autossatisfação) também

são fatores influentes em seu estado de saúde, ultrapassando o só pensar as ações

voltadas para a melhora da estética e prevenção de doenças.

Já o movimento da promoção da saúde é uma resposta a diversos fatores, entre

os quais a crescente desilusão quanto aos limites da medicina, as pressões para

contenção dos gastos com médico, e um clima sociopolítico que enfatizava a autoajuda

e a responsabilidade individual pela saúde. A expressão promoção da saúde foi usada

pela primeira vez em 1974, pelo Ministro da National Health and Welfare (Saúde e Bem

– Estar Nacional) do Canadá, Mark Lalonde, num documento chamado The New

Perspectives on the Health of Canadians (Novas Perspectivas sobre a Saúde dos

Canadenses).

O documento destacava a influencia de fatores ambientais, comportamentos

individuais e modos de vida na ocorrência de doenças e na morte. Segundo Oliveira

(2005), a estratégia de trabalho proposta enfatizava que a promoção da saúde deveria

combinar melhorias ambientais (abordagem estruturalista) com mudanças de

comportamentos (estilo de vida). Isso reduziria a morbidade e as mortes prematuras.

Oficialmente, a primeira tentativa global de se estabelecer um conceito

abrangente de saúde partiu da Organização Mundial da Saúde (OMS) (FARINATTI e

FERREIRA, 2006), cuja definição é amplamente conhecida: ―saúde é um estado de

completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas em ausência de

doenças ou de enfermidades‖. Segundo esses autores, essa nova definição de saúde teve

imediata aceitação por parte dos meios científicos e profissionais, favorecendo a

elaboração de conceitos cujo eixo se desloca para o bem-estar dos indivíduos e das

comunidades. Assim, a saúde afirmou-se progressivamente como uma noção ligada às

preferências e aos projetos de vida individuais e coletivos.

Dentre os avanços do movimento da promoção da saúde, a Conferência

Internacional sobre Cuidados Primários em Saúde, realizada em 1978, na cidade de

Alma-Ata (ex-URSS) destaca-se como o evento que marca o início do movimento da

promoção da saúde. A declaração de Alma-Ata é o texto de maior valor histórico: os

postulados da Saúde para Todos até o Ano 2000, definindo bases para a elaboração de

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novas estratégias de saúde pública e para a publicação de documentos posteriores.

(FARINATTI e FERREIRA, 2006, p.70).

Neste sentido é fundamental que as coletividades sejam amplamente informadas,

de forma crítica, esclarecendo o que é direito da população, mostrando a importância da

participação coletiva, seu papel dentro da sociedade assim como o papel do Estado para

com a população. Buss (2000) acrescenta que a efetivação das estratégias de promoção

da saúde depende da combinação de inúmeras ações, numa perspectiva de

responsabilização múltipla: do Estado (políticas públicas saudáveis); da comunidade

(reforço da ação comunitária); de indivíduos (desenvolvimento de habilidades pessoais);

do sistema de saúde (reorientação do sistema de saúde) e de parcerias intersetoriais.

O paradigma da promoção da saúde tem por base abranger toda a população, não

somente os grupos considerados de risco; direcionar as ações para os diversos fatores

que influenciam a saúde; envolver uma variedade de estratégias e instituições, como as

das áreas de comunicação, educação, legislação, desenvolvimento comunitário e outras;

estimular a participação de toda a comunidade na aquisição individual e coletiva de

estilos de vida mais saudáveis e; capacitar profissionais da área para tornarem viável a

promoção da saúde (COLLIER ET ALL, 2013).

Nesse movimento, a saúde não é entendida apenas como a ausência de doenças,

mas como um processo, estado, que o individuo se encontra em vida, em que se pode

estar mais próximo do aspecto positivo de saúde (saudável) ou mais próximo do aspecto

negativo de saúde (doente), tal qual sendo influenciado por aspectos multidimensionais.

Daí, a importância da educação em saúde por parte dos Professores da Educação Física,

formando alunos capazes de realizarem escolhas saudáveis.

(Re) conhecendo o universo transgênero a partir da discussão de gênero

Mantendo o olhar multifatorial, mencionado acima, para pensar os diversos

temas presentes nos cotidianos, dentre as marcas corporais, aqui destacamos o gênero.

Na diversidade que habita a EJA, consideramos o questionamento das situações de

desqualificação da diferença e do respeito às identidades de cada aluno como parte da

promoção de saúde no ambiente escolar.

Durante o ano letivo de 2014, em um colégio da rede estadual de ensino do Rio

de Janeiro, um dos Professores desse artigo teve a oportunidade de trabalhar com uma

turma do NEJA (Nova Educação de Jovens e Adultos). Nessa turma havia uma aluna,

mulher transexual (homem em processo de transexualização, considerada mulher

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transexual), negra com idade de 29 anos, trabalhadora em serviço de limpeza. Um dia,

durante aquele semestre, presenciou uma situação que motivou o estudo que virou

trabalho de conclusão de curso: estava na sala da direção, quando essa aluna chegou

para pedir informação. Ao sair, uma servidora queixando-se da forma como a aluna se

expressou, disse a seguinte frase: ―É preto, viado, pobre e ainda por cima mal educado‖.

Talvez a servidora imaginasse que ninguém se importaria com tal declaração...

As questões de gênero estão relacionadas a todas as instâncias sociais, inclusive

à escola. Segundo Louro (2001), é possível perceber como as aulas de Educação Física

são importantes para a construção do que é masculino e feminino durante as práticas

corporais: ―Se em algumas áreas escolares a constituição da identidade de gênero

parece, muitas vezes, ser feita através dos discursos implícitos, nas aulas de Educação

Física esse processo é, geralmente mais explícito e evidente‖ (p.72).

Durante muitos anos, a Educação Física foi entendida como área exclusivamente

relacionada às concepções biológicas de corpo. Com base nessas concepções de corpo,

era comum haver a separação do que é masculino e feminino durante as aulas, com a

justificativa de que haveria ―diferenças de habilidades físicas‖ entre os sexos. No

entanto, segundo Bento (2008), a escola

[...] funciona como uma das principais instituições guardiãs das

normas de gênero produtora da heterosexualidade. Para os casos em

que as crianças são levadas a deixar a escola por não suportarem o

ambiente hostil é limitador falarmos em ―evasão‖. No entanto, não

existem indicadores para medir a homofobia de uma sociedade e,

quando se fala na escola, quando se fala na escola, tudo aparece sob o

manto invisibilizante da evasão. Na verdade há um desejo em eliminar

e excluir aqueles que contaminam o espaço escolar. Há um processo

de expulsão e não de evasão (p.129)

O conceito de gênero foi criado inicialmente a partir dos movimentos feministas

dos anos 60. Distingue a dimensão biológica da dimensão social, onde homens e

mulheres são decorrências da realidade social e não da anatomia de seus corpos. Sexo

significa somente a classificação biológica das pessoas como machos ou fêmeas,

baseada em características orgânicas como cromossomos, níveis hormonais, órgãos

reprodutivos e genitais.

Ainda, segundo Louro (2001), o termo gênero se contrapõe ao binarismo

macho/fêmea a partir da desconstrução de que essa oposição é construída e não inerente

e fixa. Essa desconstrução mostra que, se existem homens e mulheres de várias classes,

raças, credos e idades, podem existir também diversas formas de viver feminilidades e

masculinidades (diversos gêneros e diversas orientações sexuais). Sexo, gênero e

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orientação sexual são coisas diferentes, afastando-se do padrão heterossexual (pessoa

que se atrai afetivo-sexualmente por pessoas de gênero diferente daquele com o qual se

identifica).

Segundo Jesus (2012), essas diversas formas de viver masculinidades e

feminilidades estão agrupadas em uma sigla: LGBT. LGBT é o acrônimo de Lésbicas,

Gays (lésbicas e gays compõem também o grupo dos homossexuais - pessoas que se

atraem afetivo-sexualmente por pessoas de gênero igual àquele com o qual se

identificam); Bissexuais (pessoa que se atrai afetivo-sexualmente por pessoa de

qualquer gênero); Travestis e Transexuais. Pode ser utilizada a sigla GLBT, ou mesmo

LGBTTT, incluindo as pessoas transgênero/queer. Já o termo assexual é utilizado para

a pessoa que não sente atração sexual por pessoas de qualquer gênero.

Assim, foram criadas outras definições que visam explicar o termo gênero. A

expressão de gênero é a forma como a pessoa se apresenta, sua aparência e seu

comportamento, de acordo com expectativas sociais de aparência e comportamento de

um determinado gênero. Depende da cultura em que a pessoa vive. É diferente de

identidade de gênero. Identidade de gênero está relacionada ao gênero com o qual uma

pessoa se identifica, que pode ou não concordar com o gênero que lhe foi atribuído

quando de seu nascimento, em função do seu sexo e a expectativa hegemônica do que

ele representa.

Identidade de gênero e sexualidade são dimensões diferentes e que não se

confundem. Pessoas transgêneros podem ser heterossexuais, lésbicas, gays ou

bissexuais, tanto quanto as pessoas cisgênero. A orientação sexual refere-se à atração

afetivo-sexual por alguém.

O papel de gênero é o modo de agir em determinadas situações conforme o

gênero atribuído, ensinado às pessoas desde o nascimento. Construção de diferenças

entre homens e mulheres é de cunho social, e não biológico. Já o termo queer é um

termo ainda não consensual com o qual se denomina a pessoa que não se enquadra em

nenhuma identidade ou expressão de gênero.

Mais especificamente, o termo transgênero vai abranger o grupo diversificado de

pessoas que não se identificam, em graus diferentes, com comportamentos e/ou papéis

esperados do gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento. Por outro

lado, o termo cisgênero é aquele que abrange as pessoas que se identificam com o

gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento.

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O termo intersexual foi criado para descrever a pessoa cujo corpo varia do

padrão de masculino ou feminino culturalmente estabelecido, no que se refere a

configurações dos cromossomos, localização dos órgãos genitais (testículos que não

desceram, pênis demasiado pequeno ou clitóris muito grande, final da uretra deslocado

da ponta do pênis, vagina ausente), coexistência de tecidos testiculares e de ovários. A

intersexualidade se refere a um conjunto amplo de variações dos corpos tidos como

masculinos e femininos, que engloba, conforme a denominação médica, hermafroditas

verdadeiros e pseudo-hermafroditas.

Durante anos, as investigações sobre os trangêneros basearam-se em concepções

de base biológica, limitando o assunto ao campo do exótico (BENEDETTI, 2005). Tais

estudos indicavam como causa uma disfunção orgânica ou mesmo psicológica. A partir

do movimento feminista dos anos 60 aparecem novos paradigmas, sendo o principal

deles a divisão entre sexo e gênero. Durante muitos anos, a antropologia tem estudado a

questão trans. Porém, segundo Benedetti (2005), somente a partir de Marcel Mauss é

que o papel da cultura sobre o corpo é abordado em contraposição a determinações

biofísicas. Para Benedetti, Mauss, ao definir diferenças nos usos do corpo, variando de

acordo com o meio cultural, torna o corpo objeto de investigação da antropologia, pois é

um produto social, ligando o simbólico (cultural) ao biológico (natural).

Para Butler (1990), Louro (2000) e Benedetti (2005), é importante que se

compreenda que o gênero está intimamente relacionado à cultura. Benedetti afirma que

―O gênero deve ser compreendido então como uma lógica social que institui significado

a corpos, práticas, relações, crenças e valores‖ (2005, p.94). Mas que também é parte da

própria cultura, assim como o corpo, produzindo e dando sentido à cultura, e não

somente sendo instituído por ela. Nesse sentido, a questão inicial e ao mesmo tempo

crucial para o entendimento dos trangêneros é perceber seus corpos como linguagem,

como lugar de produção de significados sociais. O corpo é o lugar onde a pessoa

trangênero se produz enquanto sujeito. Segundo Jesus (2012), no Brasil ainda não há

consenso sobre o termo transgênero como definição coletiva para travestis e transexuais,

pois também são utilizados os termos travesti e transexual.

Jesus (2012) indica que, quando você não está certo quanto ao gênero da pessoa,

pode perguntar, respeitosamente, como ela prefere ser tratada, e tratá-la dessa forma. A

estigmatizarão social é muito forte. Evite utilizar o termo isoladamente, pois soa

ofensivo para pessoas transexuais, pelo fato de essa ser uma de suas características,

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entre outras, e não a única. Sempre se refira à pessoa como mulher transexual ou como

homem transexual, de acordo com o gênero com o qual ela se identifica.

O homem transexual é pessoa que reivindica o reconhecimento social e legal

como homem. Alguns também se denominam transhomens ou Female-to-Male (FtM).

Mulher transexual é a pessoa que reivindica o reconhecimento social e legal como

mulher. Algumas também se denominam transmulheres ou Male-to-Female (MtF).

Escrever ou falar conforme um vocabulário reconhecido pela própria pessoa é essencial

para valorizar sua afirmação no espaço público. O que contribui com sua existência

política (cidadã) e sua saúde.

Outro ponto de luta é o direto pelo nome social (refere-se ao nome pelo qual a

travesti e a pessoa transexual se identificam e preferem ser reconhecidas, enquanto o seu

registro civil não é adequado à sua identidade e expressão de gênero). Também é uma

forma de respeito, respeitar o desejo dessas pessoas pelo uso do nome social.

A pessoa transgênero vivencia outros aspectos de sua humanidade além dos

relacionados à sua identidade de gênero: que não a de ser uma pessoa transexual, ela

tem etnia, classe social, origem geográfica, religião, idade, uma rica história de vida,

para além da transexualidade.

Para a pessoa transexual, assim como para qualquer pessoa, é imprescindível

viver integralmente como se considera, como se constitui, como gostaria que seu corpo

fosse, seja na aceitação social e profissional do nome pelo qual se identifica, assim

como no uso do banheiro correspondente à sua identidade, entre outros aspectos.

Isso ajuda na consolidação da sua identidade e para avaliar se pode fazer a

cirurgia de transgenitalização (adequação do órgão genital). Pelos autores aqui

mencionados, percebemos que algumas pessoas transexuais decidem não fazer a

cirurgia. O que reforça, ainda mais, a importância da educação nesse processo...

Considerações finais

O corpo é nossa maneira de estar no mundo, de lidar com as diferenças e

semelhanças, adotando comportamentos na organização da vida humana. Com ele

vivemos, criamos e questionamos as estruturas políticas, econômicas e sociais,

materializadas através dos poderes, saberes e prazeres que os corpos vivem e podem

transformar.

Por isso, pensar a escola enquanto uma instituição privilegiada na formação

tanto dos jovens quanto dos adultos com necessidades especiais ou não, faz parte do

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movimento de promoção da saúde aqui explicitado, pois para que essa promoção seja

compreendida e materializada, necessária se faz formar pessoas/alunos críticos e

emancipados (FREIRE, 2001).

Assim como os jovens e adultos que estão nas escolas na idade não considerada

regular, as pessoas que não tem o gênero hegemônico – como as trangêneras - anseiam

por diversas demandas. Como a garantia do direito à educação na Constituição

Brasileira (1998) e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996), no caso das

pessoas transgêneros, já é possível perceber alguns avanços como do direito ao nome

social. Recentemente a Organização dos Advogados do Brasil (OAB) e diversas

instituições de ensino superior permitiram o uso do nome social. Porém ainda falta

muito a se fazer. O acesso ao tratamento do Sistema Único de Saúde (SUS) para a

cirurgia de redesignação genital ainda é muito difícil.

A violência é extrema, motivada pelo preconceito. A invisibilidade

proporcionada pela mídia nos mostra que a sociedade não está preparada para conviver

ainda com as diferenças.

Para garantir o direito à educação, à saúde, à vida, é necessário problematizar e

garantir os direitos civis na escola pública. Para que se fortaleça a Educação Física na

EJA, conhecer cada sujeito e também a melhor forma do agir pedagógico com esses

sujeitos que constituem a EJA torna-se urgente, aproximando educador e educando.

Necessário se faz pensar temas emergentes, ainda não hegemônicos, de novos

paradigmas, como saúde e gênero, para que a escola e a formação docente não sejam

espelhos do que acontece. Necessitam ser, se ainda não são, veículos de lutas, de

mudanças. Com esse sentido, compomos esse painel.

Referências citadas

BENEDETTI, Marcos Renato. Todafeita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de

Janeiro: Garamond, 2005.

BENTO, Berenice A de Melo. O que é transexualidade. São Paulo: Brasiliense, 2008.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988.

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ESCOLA E EXPERIÊNCIA: MOVIMENTOS, DIÁLOGOS E PROCESSOS

DEMOCRÁTICOS NA COMPOSIÇÃO COTIDIANA

Cintia de Assis Ricardo da Silva (SME-RJ/SME- Duque de Caxias/PPGE-FFP/UERJ)

Regiane de Souza Costa (IFFluminense-RJ)

O texto apresenta alguns olhares, a partir de experiências em escolas públicas do Rio de

Janeiro, impulsionadores da reflexão que traz o diálogo como mote da discussão. As

táticas, modos de lidar com as situações da/na escola oportunizam refletir sobre os

valores democráticos, como as perspectivas que fomentem o direito à diferença.

Apresentamos alguns relatos costurados nos locais onde estão os sujeitos que fazem a

escola acontecer, sendo duas escolas públicas do Rio de Janeiro: Um Centro Integrado

de Educação Pública (CIEP) e um Instituto Federal, em um dos seus campus.

Dialogamos inicialmente sobre a prática pedagógica (política e administrativa)

democrática e seu processo de negociação na comunidade escolar; e sobre o tripé

ensino-pesquisa-extensão, lema das instituições federais. Os relatos nos dão pistas

acerca da importância do exercício do diálogo, da participação e das parcerias nos

processos escolares em ambas as instituições, valorizando a comunicação,

argumentação, e ampliação da solidariedade, que contribui para a horizontalização das

relações, favorecendo a democracia nestes espaços. Discutimos a corporeidade no

cenário educativo, fomentando a relação do corpo com os constructos sociais, culturais,

ambientais, políticos e econômicos, entrelaçados nos processos formativos, seja no

ensino, na pesquisa ou na extensão. Destacamos o lugar da experiência nos processos

escolares e na potência dos projetos e ações instituintes, mobilizados pelas práticas

dialógicas que os produzem. Os projetos e ações nas escolas podem ser um convite ao

pensar, ao SE-movimentar e à memória e manifestações locais, problematizando as

interfaces da vida e construindo processos formativos. Compartilhamos preocupações,

questionamos algumas certezas, impulsionamos incerteza aos nossos limites do pensar,

do dizer e do saber, reverberando os movimentos fluidos na complexidade cotidiana.

Palavras-chave: Cotidiano escolar. Democracia. Experiência.

Cotidiano escolar: pistas iniciais

Poema

A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei.

Meu fado é o de não saber quase tudo.

Sobre o nada eu tenho profundidades.

Não tenho conexões com a realidade.

Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.

Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).

Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.

Fiquei emocionado e chorei.

Sou fraco para elogios.

(Manoel de Barros)

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Consideramos que os cotidianos escolares são como ―algo que é efêmero,

incontrolável, caótico e imprevisível‖ (FERRAÇO, 2007, p. 86), mas que neles, estão os

sujeitos com seus modos de viver as práticas escolares.

Provocados pela imprevisibilidade, dinamicidade e fluidez cotidiana

apresentamos alguns olhares, a partir de experiências em escolas públicas do Rio de

Janeiro, impulsionadores da reflexão que traz o diálogo como mote da discussão. Tais

olhares conversaram durante os encontros do Grupo de Pesquisa no qual as autoras

fazem parte, desdobrando o presente trabalho, fortalecendo as relações afetuosas entre

as instituições e professores parceiros, e reafirmando o nosso compromisso com a

escola pública.

A opção pelos estudos nos/dos/com os cotidianos traz à tona a questão da

procura constante por táticas, modos de lidar com as situações da/na escola de uma

forma que esteja em consonância tanto com os valores democráticos, como as

perspectivas que fomentem o direito à diferença. Nesse sentido, uma experiência escolar

integra um conjunto de ações que compõem o processo de formação humana, sempre

inacabado. Ela atravessa os sujeitos que fazem parte deste cotidiano, e enquanto

professores pesquisadores ―estamos sempre em busca de nós mesmos, de nossas

histórias de vida, de nossos lugares‖ (FERRAÇO, 2003, p.81), tomando emprestado de

nós mesmos nossos princípios, nossos pontos de vista, nossa forma de conceber o

mundo, a aprendizagem, nossas dúvidas, cedendo ao outro, sendo entrelaçado pelos

tantos olhares do outro. Uma experiência (um cotidiano) nos permite (re)criar alguma

coisa que não possua uma autoria fixa, por outro lado, um movimento de criação

coletivo, sugerindo uma formação itinerante pelos seus espaçotemposi.

Pretendendo ser ‗poderoso‘, como nos sugere Manoel de Barros, apresentamos,

no texto, algumas insignificâncias (do mundo, as nossas e do cotidiano) não apenas

como descobertas, mas como possibilidades de diálogo, visando uma escola que capte

as variações cotidianas, que vibre com as demandas de sua comunidade e que produza

sentidos para a diferença, para a democracia e para a formação integral dos seus

sujeitos, fomentando experiências outras, que borram as fronteiras daquilo que

entendemos por conhecimento científico/escolar.

Nessa perspectiva, construímos alguns relatos costurados nos locais onde estão

os sujeitos que fazem a escola acontecer, que travam suas lutas diárias e, fazem do

cotidiano um espaçotempo repleto de possibilidades de ações democráticas, fortes para

enfrentar as desigualdades, para ampliar a participação de todos. Reconhecendo o

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cotidiano escolar como um conjunto de muitas ‗coisas‘ reunidas, tensionando-se

mutuamente, compartilhamos a ideia de que:

O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em

partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma

opressão do presente. Todo dia, pela manhã, aquilo que assumimos, ao

despertar, é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta

ou noutra condição, com esta fadiga, com este desejo. O cotidiano é

aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história

a meio caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada.

[...] É um mundo que amamos profundamente, memória olfativa,

memória dos lugares da infância, memória do corpo, dos gestos da

infância, dos prazeres (CERTEAU, 2008, p. 31).

Fazer parte deste cotidiano e pesquisar algumas de suas particularidades é tomar

emprestado o que parece nos caber, que nos é dado a cada dia nas nossas incursões pela

vida escolar, andando, trabalhando, conversando, enfim, vivendo este espaçotempo.

O CIEP e o Instituto Federal, campus Avançado, são os propulsores dos relatos a

seguir, locais que nos instigam a ampliar o olhar para além da escola, numa relação

local-global, onde os nossos desafios circulam entre os processos escolares

(co)criadores do que chamamos de contemporâneo.

Num primeiro momento, conversamos sobre a prática pedagógica (política e

administrativa) democrática e seu processo de negociação na comunidade escolar,

salientando como alguns espaços de discussões podem fomentar a democracia,

reconhecendo as suas tensões entre o instituído e os movimentos instituintes.

Num segundo momento, reforçamos o tripé ensino-pesquisa-extensão, lema das

instituições federais de ensino básico, técnico e tecnológico, salientando algumas ações

extensionistas e seus sentidos produzidos no contínuo movimento da formação humana.

Provisoriamente, encaminhando as nossas considerações, destacamos o diálogo

como mediador das duas frentes de discussão apresentadas. Tendo como fado ―o de não

saber quase tudo‖, desconfiamos ser o diálogo um contundente rastro para pensarmos

outros momentos sociais e, quem sabe, outros episódios escolares.

Espaçostempos Aula e Conselho Escola Comunidade: relações entre os sujeitos

O reencantamento do

mundo pressupõe a

inserção criativa da

novidade utópica naquilo

que nos é mais próximo.

(Boaventura de Sousa

Santos)

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A participação dos sujeitos em uma instituição depende de conhecimento das

normas; inserção e adesão; relações de poder estabelecidas entre grupos e pessoas.

Participar, na perspectiva democrática que nos ancoramos, requer comunicação

adequada, que as regras do jogo sejam claras, e as relações entre os sujeitos sigam

caminho dialógico e não unilateral.

Destacamos os alunos neste processo. Primeiro porque são maioria na escola.

Segundo porque se relacionam diretamente com os outros sujeitos (professores,

diretoras, responsáveis, coordenadora), pois frequentam a escola sete horas diariamente.

A participação dos estudantes do 5º ano do ensino fundamental, acontece em

vários momentos: nas aulas compartilhando seus saberes nos processos de

aprendizagem e ensino; e no Conselho Escola Comunidade (CEC) ao representarem os

interesses dos outros estudantes.

No CEC, participam das reuniões e confeccionaram um caderno. Foram às salas,

se apresentaram e conversaram com os alunos sobre o conselho, a participação das

crianças e sua representatividade. O caderno é levado nas reuniões deste conselho, as

questões são lidas e debatidas, e as estudantes sugerem encaminhamentos que são

analisados pelo conselho. Caminhando nesse sentido,

[...] a partir da experiência cotidiana, identificamos necessidades e

desejos que auxiliam a reescrever discursos, encaminhamentos,

projetos educacionais – possibilitando reinventar a nossa percepção de

convivência, a maneira de olharmos e estarmos com os outros. [...]

Nessa perspectiva, compreendemos nossos cotidianos como locais de

práticas originais, criativas, extraordinárias, as quais são produzidas

pelos encontros de singulares sujeitos e, as relações que estes

estabelecem com o conjunto da escola e da sociedade. (CARVALHO,

2011, p. 48).

O exercício da escuta, da fala e do debate entre os sujeitos envolvidos, no caso

as crianças, corrobora com a ideia de diálogo, que de acordo com Freire

[...] é este encontro dos homens, imediatizados pelo mundo, para

pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu. Esta é a

razão por que não é possível o diálogo entre os que querem a

pronúncia do mundo e os que não querem; entre os que negam aos

demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste

direito. (FREIRE, 1987, p. 91)

Os alunos disseram que gostam muito da aula de educação física, pois a

presença do lúdico, a disposição dos materiais, os espaços disponíveis e a aproximação

dos amigos despertam interesse. Também podem decidir os rumos da aula.

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Vale ressaltar que as aulas são pautadas em uma abordagem crítica, que tem

como perspectiva principal a cultura corporal (SOARES et alli, 2009), onde os jogos,

as danças, as lutas, as brincadeiras, os esportes, as ginásticas são conteúdos de ensino e

práticas socialmente construídas, desenvolvidas e modificadas ao longo da história da

humanidade. Essas aulas são elaboradas com base em projetos, que tem se constituído

com a participação dos alunos.

Dialogar com as crianças, saber o que é ou não é do seu interesse e tratar de

conjugar com o currículo, é para nosso olhar um exercício democrático.

Pensar e vivenciar um planejamento participativo com os alunos e seus saberes

exige um comprometimento e ousadia, pois não há as garantias que o controle e

autoritarismo trazem, ao contrário, há imprevisibilidade e risco. Hierarquizar estes

saberes quando as relações são verticalizadas contribui para o silenciamento, impedindo

a participação, a contribuição para ampliação das práticas emancipatórias.

O projeto Jogos, Brincadeiras e Brinquedos Populares, por exemplo, demandou

pesquisas, por parte dos alunos, em casa, na rua onde moram e partilha na aula,

percebendo as diferenças de nomenclatura de modos de jogar, o que caracteriza e afirma

a existência do outro e de outras maneiras de viver. Pensando nas vozes infantis,

Uma política da infância na escola seria não dar voz às crianças, fazê-

las falar com a nossa voz, mas darmos ouvidos àquilo que elas estão

nos dizendo. As crianças nas escolas, estão sofrendo os jogos de poder

que jogamos com elas, mas também estão jogando, estão fazendo seus

próprios jogos, queiramos ou não vê-los e ouvi-los. Na maioria das

vezes, preferimos, preferimos não ouvir, para não ver ruir o castelo de

cartas de nossas instituições; mas as falas ali estão, ressoando e

ressoando... (GALLO, 2010, p. 120)

Essas vozes trazem a comunicação, argumentação, e ampliação da solidariedade,

contribuindo para a horizontalização das relações, favorecendo a democracia.

Nesta perspectiva, consideramos que a professora e as crianças, nas aulas de

educação física têm seu lugar de sujeito da experiência, aquele que se ex-põe, logo

O sujeito da experiência é um sujeito ex-posto. Do ponto de vista da

experiência, o importante não é nem a posição (nossa maneira de pôr-

nos), nem a o-posição (nossa maneira de opor-nos), nem a imposição

(nossa maneira de impor-nos), nem a proposição (nossa maneira de

propor-nos), mas a exposição, nossa maneira de expor-nos, com tudo

o que isso tem de vulnerabilidade e risco. (LARROSA, 2004, p. 161)

Assim, acreditamos que a exposição por parte dos sujeitos que fazem parte das

instâncias da escola, contribui para o enriquecimento do conhecimento de todos acerca

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do mundo, da escola em que estamos inseridos e dos outros sujeitos, o que tem sido um

encaminhamento para o exercício democrático.

Corpo, meu ser inteiro e único: circulando experiências

Ao Corpo sem Órgãos não se chega, não se pode chegar, nunca se

acaba de chegar a ele, é um limite. [...]

É sobre ele que dormimos, velamos, que lutamos e somos vencidos,

que procuramos nosso lugar, que descobrimos nossas felicidades

inauditas e nossas quedas fabulosas, que penetramos e somos

penetrados, que amamos.

(DELEUZE e GUATTARI, 2012, p. 12)

Reafirmando o compromisso com a escola pública e suas demandas emergentes

apresentamos a necessidade de discutir a corporeidade no cenário educativo,

fomentando a relação do corpo com os constructos sociais, culturais, ambientais,

políticos e econômicos, entrelaçados nos processos formativos, seja no ensino, na

pesquisa ou na extensão.

Os modos de ser e de se constituir corporeidade – conjunto de manifestações

cognitivas, psicomotoras, éticas, estéticas e afetivas – precisam ser garantidos e

tensionados nos espaços educacionais, contrapondo as referências histórico-sociais que

admitiram/admitem um corpo essencialmente biológico. Interrogando tais referências

pensamos a corporeidade como parceira das práticas escolares, propondo o

transbordamento dos campos consagrados da inteligibilidade, atribuindo à formação

humana uma consistência e contundência para presentificar a cultura no plural; o corpo

vivo, único e inteiro; o corpo do encontro para tantas possibilidades interpretativas; um

corpo povoado por intensidades como nos sugere Deleuze e Guattari:

Um CsO [Corpo sem Órgão] é feito de tal maneira que ele só pode ser

ocupado, povoado por intensidades. Somente as intensidades passam e

circulam. Mas os CsO não é uma cena, um lugar, nem mesmo um

suporte onde aconteceria algo. Nada a ver com um fantasma, nada a

interpretar. O CsO faz passar intensidades, ele as produz e as distribui

num spatium ele mesmo intensivo, não extenso (2012, p.16).

A complexidade que se apresenta no processo de formação humana sugere olhar

atento e sensível diante das demandas contemporâneas. As escolas são locais onde

comumente revisitamos os propósitos formativos, com os quais nos situamos diante da

sociedade e do mundo em que vivemos. E a pergunta que nos acompanha é que

indivíduo a escola quer formar? São muitos os sentidos e significados que podemos

tencionar com essa pergunta. Todavia, potencializaremos o sentido de que a escola

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precisa ter o caráter mais amplo e mediar uma formação para a pluralidade (e para a

diferença) e para a integralidade, ou seja, numa perspectiva de educação integral como

um direito e um devir de todos os educandos.

Os processos formativos pelos quais passamos vão enredando um conjunto de

saberesfazeresa partir das experiências, agregando novos-outros sentidos ao que

chamamos de patrimônio cultural da humanidade ou tessitura do conhecimento, como

nos sugere Nilda Alves e Inês de Oliveira (2008). A escola, ao questionar o que é

conhecimento, percebe a inteireza e a intensidade das experiências, que em cada um

produzirá um sentindo. Sendo um espaço público tem potencialidades para reconfigurar

os territórios do pensar, pois pode ofertar momentos de igualdade e momentos

democráticos, onde as negociações dos conflitos promovem experiências e, com elas,

outros conhecimentos. Aqui, aproveitamos para rememorar o quão privilegioso foi/é o

conhecimento e o acesso a ele, e demarcamos que a escola que queremos precisa

transgredir as naturalizações política, econômica e social, reconhecendo-se, portanto,um

espaço de disputa, coabitação entre a ordem hegemônica e as tensões cotidianas; trata-se

de ‗despertar‘ potências numa estrutura espaço-temporal pública; permitir encontros (de

diferentes) para um mesmo objeto de conhecimento.

No movimento de tatear o lugar da experiência nos processos escolares Larrosa

(2014) nos alerta para quatro possibilidades que, aqui, tomamos como necessidades:

reivindicar a experiência como subversão ao pensamento educacional elaborado a partir

dos pares ciência/técnica e teoria/prática; desconectar a palavra experiência de suas

conotações empíricas e experimentais; perceber as ações políticas e econômicas que

expropria o homem de sua experiência; questionar se vivemos experiências nossas ou

dos dispositivos regulatórios do/no mundo contemporâneo.

A partir dos rastros que escolhemos para pensar o contexto, concordamos que

experiência ―é sempre de alguém, é subjetiva, é sempre daqui e de agora, contextual,

finita, provisória, sensível, mortal, de carne e osso, como a própria vida‖ (LARROSA,

2014, p. 40). Dedicamos também a ela o caráter contingencial, singular, inventivo, e que

transborda os processos identitários numa perspectiva de escola que viola o seu

espaçotempo como local de produção funcional da lógica governamental.

[...] manter a experiência como uma palavra e não fazer dela um

conceito, trata-se de nomeá-la com uma palavra e não de determiná-la

como um conceito. Porque os conceitos dizem o que dizem, mas as

palavras dizem o que dizem e, além disso, mais outra coisa (ibid.,

p.43).

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Acreditando na potência dos projetos e ações instituintes, mobilizados pelas

práticas dialógicas que os produzem, pensamos ser o Projeto de Extensão “Corpo, meu

ser inteiro e único: movimentos e diálogos”, um mediador para a circularidade dos

saberesfazeres produzidos e reinventados nas experiências da vida.

As artes de fazer: a proposta extensionista

Entendendo o processo formativo a partir do tripé ensino-pesquisa-extensão,

lema das instituições federais de ensino, concordamos com Gallo que ―educação é

encontro de singularidades‖ (2011, p. 231). Nesse sentido, os encontros de extensão são

espaçostempos de experiência, atravessando saberes locais, ambientais, culturais,

científicos, afetivos, políticos e econômicos, confrontando possibilidades interpretativas

do nosso objeto de intenção – o movimento. A educação, os encontros e o movimento

pelo outro possibilitam uma gama de experiências, processo coletivo onde cada um

colabora com seus saberesfazeres e, ao mesmo tempo, produz sentidos próprios.

O Projeto de Extensão ―Corpo, meu ser inteiro e único: movimentos e diálogos”

(aprovado por edital interno, da Pró-reitoria de Extensão e Cultura do IF, em fase de

renovação) lança convites ao pensar, ao SE-movimentar e à memória e manifestações

locais, problematizando as interfaces da vida.

Construindo um processo formativo, onde a ―conversa é um efeito provisório e

coletivo de competências na arte de manipular ‗lugares-comuns‘ e jogar com o

inevitável dos acontecimentos para torná-los ‗habitáveis‘‖ (CERTEAU, 2011, p. 49),

apoiamo-nos na pesquisa nos/dos/com os cotidianos, salientando a sensibilidade

extensionista e criticidade no entendimento acerca de conhecimento. Teoricamente

definido, esse projeto de extensão é acima de tudo um propulsor de ações coletivas.

A coletividade é possível porque, sendo singularidades, sendo todos

diferentes, irredutíveis ao mesmo, podemos construir projetos

coletivos. Podemos construir situações que aumentem nossa potência,

a potência de cada um, situações em que a liberdade de um não é um

limite da liberdade do outro, mas sua confirmação e sua elevação ao

infinito (GALLO, 2011, p. 244).

Na arte de conversar, como nos sugere Certeau, fomentamos a Cultura Corporal,

mediando experiências e diálogos do movimento com as possibilidades lúdicas,

esportivas, cooperativas, circenses, artísticas, folclóricas e ambientais. Em conversas

com o grupo praticante criado pela comunidade interna (estudantes e servidores, do IF,

campus Avançado) e pela a comunidade externa (estudantes do 9º ano do Ensino

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Fundamental, do Ensino Médio e da EJA), encaminhamos iniciativas para a prática do

movimento enquanto atividade física e/ou atividade de lazer, ampliando o repertório

cultural, contribuindo para as reinvenções do patrimônio histórico-social da

comunidade, e, portanto, desdobrando alternativas para manter o indivíduo em

constante processo de formação, por onde as linguagens corporais trilham caminhos

para seu entendimento como sujeito integral.

Com uma dupla preocupação, que se constituíram frentes de discussão para

pensarmos essa proposta extensionista, destacamos a necessidade de SE-movimentar

(KUNZ, 2006), complexificada pela demanda da Organização Mundial da Saúde no que

se refere à inatividade física e suas consequências para a qualidade de vida. A segunda

preocupação, procurou problematizar a redução do conhecimento acerca das diversas

linguagens que compõem a corporeidade que nos habita, nos difere, nos torna

indivíduos sociais, históricos, dinâmicos, plurais e reflexivos. O movimento foi,

portanto, reconhecido, nesta proposta, como um interlocutor para repensarmos esses

dois emblemas atravessados no cotidiano ‗maricaense‘, numa perspectiva local e,

estendido às demandas globais, numa análise conjuntural.

Concluindo um Ciclo de Vivências em Corporeidade, a partir de intervenções

lúdicas, esportivas, cooperativas, circenses, artísticas, folclóricas e ambientais,

construímos processos coletivos lançando, quem sabe, convites para a tessitura de

‗novos‘ lugares, ‗novos‘ fazeres, ‗novos‘ dizeres às demandas da inatividade física e da

redução significativa do movimento como patrimônio cultural, transbordando sentidos

de uns e de outros.

Considerações provisórias

No desafio da escrita como diálogo (prévio) com um conjunto de leituras, textos,

discussões, dúvidas, cotidianos, reconhecemo-nos no exercício de escrever pensando ou

pensar escrevendo, pretendendo encontros com as palavras, com os autores, com os

movimentos políticos nos espaçostempos do trabalho profissional e acadêmico, com os

incômodos diários, com as inquietações de tirar o sono confrontando os sonhos, com

uma ―ponte que abre o dentro para o seu outro‖ (CERTEAU, 2011, p. 197).

Compartilhamos preocupações, questionamos algumas certezas, impulsionamos

incerteza aos nossos limites do pensar, do dizer e do saber, reverberando os movimentos

fluidos na complexidade cotidiana. Não possuímos uma conclusão ou não a queremos

tê-la a respeito dos temas que perpassam os (tantos) processos formativos, alguns

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mediados pela escola, em diálogo com a vida. Entretanto, temos pontos de partida:

considerando que a dialogicidade

(...) exige que o homem se mantenha em uma relação de respeito

diante da liberdade do outro, ou seja, exige uma relação instituída não

pela força da opressão e submissão, mas pela capacidade de

comunicabilidade que vai além de um simples ajustamento e

acomodação às ideias ou circunstâncias de um mundo prescrito.

(FREIRE, 2013, p. 62)

Esses caminhos são feitos cotidianamente, nas lutas, muitas vezes solitárias. O

exercício democrático não é de forma alguma algo que se institui à força, mas uma

espécie de consenso provisório, onde o bem comum, o direito de todos é mola

propulsora das tomadas de decisões.

Freire destaca que ―se a estrutura do meu pensamento é a única certa,

irrepreensível, não posso escutar quem pensa e elabora seu discurso de outra maneira

que não a minha‖ (FREIRE, 1987, p. 136). É necessário ampliarmos as possibilidades

de dialogar com as diferenças, e enfatizar o exercício do debate.

Remetendo-nos aos escritos que nos exercem duplamente uma função –

acolhedora e provocadora – de Larrosa, com apoio de Rancière, quem indiretamente

contribuiu para essa conversa, esperamos potencializar a escola como espaçotempo

―seres de palavras‖:

Trata-se de abrir uma experiência individual (de cada um) e, ao

mesmo tempo, coletiva (de fazê-lo juntos) orientada a fazer saltar essa

faísca do pensamento friccionando-se as palavras de cada um com as

palavras dos outros e, ao mesmo tempo, as palavras com as coisas,

com o mundo, com o que vemos e com o que sentimos (2014, p. 168).

E com esse desejo fazemos uma breve pausa...

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i O uso desses termos em uma escrita aglutinada tem o sentido de mostrar os limites que o modo

dicotomizado de analisar os acontecimentos sociais, herdada da modernidade, no que se referem às

necessidades das pesquisas nos/dos/com os cotidianos.

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10256ISSN 2177-336X