a presença de la ruche experiências anarquistas 2010

15
verve 93 a presença de la ruche: experiências anarquistas 1 luíza uehara A educação libertária é uma ofensiva direta ao controle dos corpos pretendido por uma educação disciplinar. Rompe com relações de utilidade e docilidade que sub- metem crianças e jovens ao controle do tempo, à delimi- tação do espaço e à restrição dos movimentos; não é uma alternativa à ordem. La Ruche, em português A Colmeia, foi uma experiên- cia fundada em 1904 por Sébastien Faure, seus amigos, jovens e crianças. Estava próxima à Paris, em uma fazenda de 25 hectares em Rambouillet. Possuía uma casa enorme e vários anexos destinados aos animais, à costura, uma ofi- cina e uma pequena gráfica. A educação não se restringia a currículos ou grades horá- rias fechadas, fazia parte de La Ruche. Faure sabia que não é possível prender a atenção de uma criança por muito tem- po, por isso, o educador mantinha-se atento a isso para não cair em repetições, em um ensino cansativo, e cultivar Luíza Uehara é pesquisadora no Nu-Sol, bacharel em Ciências Sociais e mestran- da no Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais da PUC-SP.

Upload: leonardo-andrade

Post on 14-Nov-2015

218 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

Artigo publicado pela revista Verve em 2010Artigo publicado pela revista Verve em 2010Artigo publicado pela revista Verve em 2010Artigo publicado pela revista Verve em 2010

TRANSCRIPT

  • verve

    93

    a presena de la ruche: experincias anarquistas1

    luza uehara

    A educao libertria uma ofensiva direta ao controle dos corpos pretendido por uma educao disciplinar. Rompe com relaes de utilidade e docilidade que sub-metem crianas e jovens ao controle do tempo, delimi-tao do espao e restrio dos movimentos; no uma alternativa ordem.

    La Ruche, em portugus A Colmeia, foi uma experin- cia fundada em 1904 por Sbastien Faure, seus amigos, jovens e crianas. Estava prxima Paris, em uma fazenda de 25 hectares em Rambouillet. Possua uma casa enorme e vrios anexos destinados aos animais, costura, uma ofi-cina e uma pequena grfica.

    A educao no se restringia a currculos ou grades hor- rias fechadas, fazia parte de La Ruche. Faure sabia que no possvel prender a ateno de uma criana por muito tem-po, por isso, o educador mantinha-se atento a isso para no cair em repeties, em um ensino cansativo, e cultivar

    Luza Uehara pesquisadora no Nu-Sol, bacharel em Cincias Sociais e mestran-da no Programa de Estudos Ps-graduados em Cincias Sociais da PUC-SP.

    ! " # $ " "

    % & ' ( & ) * + , - ) - , . / 0 1 1 2 3 ) 2 4 ) - 4 , - ) - ) 5 6 - , 6 7 -

  • 18

    2010

    94

    os conhecimentos em diferentes oportunidades: em uma conversa, em um passeio, em uma viagem... A educao era realizada para a criana, tinha a preocupao de ser integral, prepar-la para agir por si mesma ao coloc-la em contato com experincias de uma vida associativa livre.

    Vasculhar folhetos e livros sobre La Ruche no mon-tar a Histria da Anarquia, mas destacar resistncias ao governo sobre a vida.

    ***

    Aproximando-se de La Ruche, a estrada inclina um pou-co. O cavalo Pyrame termina o trajeto lentamente. De longe se via La Ruche, escrito em letras grossas sobre o telhado. Ouviam-se os barulhos das crianas que vinham ver na es-trada o novo que chegava. Titine e Lucienne me explicam: Voc v esta pequena menina, Guiguite (Marguerite), ela tem 4 anos, a maior do lado dela sua irm, Louisette, 7 anos. H um ms elas esto aqui; so de Lyon. Sua me morreu jovem. O menino grande ali Alfred e o outro Flix... e muitos outros nomes que eu no guardei.

    A carroa chega, entra no espao pelo porto principal. Um grande nmero de crianas em volta da carroa gri-tam: Vejam o novo! Vejam o novo!..., e tambm algumas pessoas grandes.

    Uma destas se desloca do grupo, me pega nos seus bra-os para me descer da carroa, me abraa e me coloca no cho. Era Sbast, com 49 anos.

    Minha me nos contava tanto de Sbastien Faure que me parecia j o conhecer; como ele era simples, alegre e cheio de vida. Eu tive imediatamente uma boa impresso desta grande famlia onde, ao contrrio daquela que eu tinha deixado (a minha), eu no sentia nenhum constran-

    % & ' ( & ) * + , - ) - , . / 0 1 1 2 8 ) 2 4 ) - 4 , - ) - ) 5 6 - , 6 7 -

  • verve

    95

    gimento, nenhuma palavra podendo machucar, nenhuma palavra que fosse uma ordem.2

    Sbastien Faure afirmava que as crianas e os jovens no estavam moldados; neles encontrava ardor, energia e fora. Diferente dos mais velhos, em que j no via as mesmas paixes, cujas ideias cristalizadas no os permi-tiam experimentar algo novo. Aos mais jovens, nos quais a imaginao continua fervendo, seria preciso apresentar ideias puras, nobres, para que as abraassem e delas se tor-nassem defensores desinteressados e generosos.

    Para instigar esse vigor, Faure desenvolvia em La Ruche o mtodo positivo de educao. Inspirado na experincia de Paul Robin3 com o Orfanato de Cempuis, propunha esti-mular o que considerava como as trs faculdades humanas: fsica, intelectual e moral. Por meio deste mtodo, cultivava a observao, pela qual a criana exercitaria a memria para que o aprendizado no casse no esquecimento.

    Os integrantes de La Ruche trabalhavam ao lado de Faure e eram conhecidos como ruchards. Eles vinham de vrios lugares e no apenas cuidavam dos afazeres dirios. Eram educadores. Um ruchard no era um professor, no buscava internalizar regras universais, nem a chave expli-cativa de tudo, mas suscitava o entusiasmo investigativo nas crianas.4

    O mtodo positivo desconhecia salas de aula fechadas. Os ruchards exploravam a floresta prxima La Ruche para propiciarem uma educao atraente, com uma linguagem simples, inspiradora e no cansativa. Dispensavam sal-rios, contratos ou recompensas. Estavam interessados em viver aquela experincia e novas relaes com as crianas e

    % & ' ( & ) * + , - ) - , . / 0 1 1 2 7 ) 2 4 ) - 4 , - ) - ) 5 6 - , 6 7 -

  • 18

    2010

    96

    com Sbastien Faure. La Ruche no era uma colmeia com uma abelha-rainha e suas operrias.

    Guentcho era um flautista blgaro que cuidava da ter-ra e ensinava msica. Ao amanhecer, acordava e levava as crianas floresta e dizia que naquele momento, quando a natureza desperta e os vapores da terra sobem ao cu, podia-se perceber o soar de uma flauta.

    A msica atravessava La Ruche. No era uma discipli-na curricular, nem estava apartada da educao anarquis-ta, mas aproximava colaboradores e crianas por meio da dana, de um instrumento e das letras. Corroa a relao hierrquica professor-aluno.

    Em La Ruche era inexistente qualquer forma de cons-trangimento criana. Para Faure, no somente o uso de castigos fsicos, mas de ameaas, caracterizam um ades-tramento que classifica as aes das crianas em recom-pensveis ou punveis. Essas so caractersticas de um ensino disciplinar que busca produzir uma determinada conduta.5 A relao das crianas com os ruchards dissolvia hierarquias: eles comiam, danavam e cantavam juntos.

    Marcel Voisin, um jovem que chegou em 1912 a La Ruche para pintar um nibus e acabou ficando por 4 anos, cuidava da manuteno de ferramentas e ajudava Guentcho com o coral. Na tarde de sua chegada fazenda, as crianas danavam em uma sala e o jovem pintor tambm danou. Ao som de uma flauta e de um bandolim danaram uma mazurka; como os meninos e as meninas ainda no conhe-ciam o nome daquele jovem, chamaram-no pelo nome da dana. Mesmo anos aps a experincia, muitos ainda o cha-mavam Mazurka de La Ruche.

    % & ' ( & ) * + , - ) - , . / 0 1 1 2 9 ) 2 4 ) - 4 , - ) - ) 5 6 - , 6 7 -

  • verve

    97

    Alfred Joriot, outro ruchard, relata que visitantes tam-bm passavam por l vindos de todos os lugares e empol-gavam as crianas com suas histrias: Havia camaradas de passagem que vinham para ficar pouco tempo e acaba-vam permanecendo mais. (...) Vinham de longe e algumas vezes de fora do pas. Seus rostos expressivos e as dobras desfiadas de suas roupas carregavam a marca de uma vida aventureira. Alguns passaram anos na priso, desafiaram a morte ou viajaram por milhares de quilmetros pendu-rados em um vago de trem. Havia os italianos, de olhos escuros e cheios de fascas, de gestos eloquentes; os espa-nhis, cujo rosto refletia uma invencvel energia; tambm os russos, os mais estranhos, mas que falavam melhor o francs. Contavam das incrveis aventuras que haviam es-capado por um milagre: motins, fugas, perseguies, de-portaes para a Sibria e as fugas de l. (...) Depois de alguns dias ou semanas, iam embora. E as crianas, que j os amavam, entristeciam-se ao v-los partir.6

    A anarquista russa Emma Goldman, acompanhada de Alexander Berkman, em 1907, tambm visitou La Ruche. Em sua revista Mother Earth conta a viagem ao destacar a importncia e a coragem de uma experincia como esta em um momento de padronizaes, em que qualquer invento parecia no ser bem-vindo.

    Sua visita foi decisiva para que, trs anos mais tarde, ela tomasse parte na fundao da Modern School de Nova Iorque: a minha visita a La Ruche foi uma valiosa expe-rincia que me fez perceber o quanto poderia ser feito na direo da educao libertria, mesmo sob o atual sistema. Para construir o homem e a mulher do futuro, para li-bertar a alma da criana que tarefa maior haveria para aqueles que, como Sbastien Faure, so educadores, no

    % & ' ( & ) * + , - ) - , . / 0 1 1 2 5 ) 2 4 ) - 4 , - ) - ) 5 6 - , 6 7 )

  • 18

    2010

    98

    pela simples graa de um diploma universitrio, mas ina-tamente, nascidos com um dom para criar, como poeta ou artista?7

    A festa anual no vero tambm atraa as pessoas. Eram convidados os amigos e a populao de Rambouillet; era um momento para apresentar La Ruche aos que pouco dela conheciam e de rever vrios anarquistas.

    Na semana anterior festa, La Ruche ficava agitada e seus integrantes dedicavam-se aos preparativos: limpar, decorar e aprontar o material destinado venda. As crian-as faziam os acertos e ensaios finais de 10 ou 12 canes a serem apresentadas.

    Nesse dia, as crianas apresentavam o coral aos visitan-tes, dividido em dois momentos, o intervalo era preenchido por uma conversa anarquista iniciada por Sbastien Faure. noite, La Ruche se iluminava com as lanternas espalhadas pelas rvores e mais tarde, os fogos de artifcio fechavam a festa. Para Faure, com a comemorao cada um ganha, nos seus pulmes, uma proviso de ar puro e vivo e, nos cora-es, a alegria e a emoo por um bom tempo.8

    La Ruche fortalecia as relaes entre seus integrantes e seus visitantes que, instigados com esta experincia cora-josa, traziam novas maneiras de viver e dar forma a uma cultura libertria9.

    Na grande fazenda, em seus atelis, como favos, no se dissociava a produo da educao. Se a sociedade discipli-nar opera por localizao, relaes de utilidade/docilidade e obedincia, como mostrou Michel Foucault, os anarquistas, apontam Edson Passetti e Accio Augusto, estimulam a formao do guerreiro, fulminam as imobilizaes. (...) Para

    % & ' ( & ) * + , - ) - , . / 0 1 1 2 * ) 2 4 ) - 4 , - ) - ) 5 6 - , 6 7 )

  • verve

    99

    eles, no h uma lei determinista da histria, mas a possi-bilidade de transformar-se e transformar a histria.10 So contestadores e inquietos.

    La Ruche no uma escola

    Em 1913, o inspetor da academia de Versailles escreve cartas a Faure e cita vrias infraes que este cometia ao no se encaixar nas leis educacionais de 1886 derivadas da lei de Jules Ferry, de 28 de maro de 1882, que declarava a obrigatoriedade escolar e a laicidade no ensino estatal pri-mrio na Frana. Entre as mais graves, afirmava o inspetor, estava a coeducao dos sexos, sem contar a ausncia de au-torizao do Estado para abrir uma escola. A resposta firme de Faure deixa claro que sua experincia no se enquadra em nenhuma categoria prevista nas leis do Estado: no uma escola, no um orfanato, nem um pensionato.11

    No era uma escola ao no ter alunos e professores, onde uns, que nada saberiam, escutariam o detentor do conhecimento. No era um pensionato porque as crianas que ali habitavam no eram enviadas por pais que podiam pagar suas estadias e assim diminuir seus esforos quanto educao dos filhos. No era um orfanato, j que para isso precisaria de uma situao regular e uma ligao com a assistncia pblica, que levaria as crianas para l.

    La Ruche no se inseria em nenhuma instituio de ensi-no transcrita na lei. As acusaes do inspetor no possuam valor e Faure no infringia a lei por no estar dentro dela.

    Ao no reconhecerem as leis e se negarem submisso, ao julgamento de uma autoridade superior, os anarquistas detonam o complementar indissocivel entre legalidade e

    % & ' ( & ) * + , - ) - , . / 0 1 1 2 2 ) 2 4 ) - 4 , - ) - ) 5 6 - , 6 7 )

  • 18

    2010

    100

    ilegalidade. Michel Foucault mostra que a ilegalidade est prevista no prprio funcionamento da legalidade; a exis-tncia de uma proibio legal cria em torno dela uma srie de prticas ilegais. Todo dispositivo legislativo organizou espaos protegidos e aproveitveis, em que a lei pode ser violada, outros, em que ela pode ser ignorada, outros, en-fim, em que as infraes so sancionadas.12

    La Ruche no era pautada nem pelo Estado e muito menos por um dogma religioso. Mas transpunha o espao escolar ao pr as crianas em contato com vrias formas de educao experimentadas de maneira autogestionria, como as viagens, as conversas e as festas.

    O confronto de La Ruche no pretendia delimitar o caminho de uma pedagogia libertria, ou seja, um mo-delo, mas a educao anarquista que instiga ao combate, reconhece as intempestividades e provoca liberaes.13

    La Ruche uma heterotopia anarquista14. Afirmava exis-tncias e no atuava por um ideal a ser atingido. Era uma contundente resistncia sociedade disciplinar, ao afirmar a habilidade de cada um dissolvendo a distino entre tra-balho manual e intelectual.

    Neste novo espao, experimentaram-se outras relaes com crianas e amigos de vrios lugares, fazendo jornais, agitaes e se aventurando em maquinarias sofisticadas. Revigorar essa prtica nos dias de hoje um alerta para existncias insubmissas, de recusa obedincia, que se aventuram por uma vida livre.

    O doloroso inverno de 1917

    As relaes com os amigos e anarquistas tambm eram cultivadas por meio do Bulletin La Ruche, impresso ali

    % & ' ( & ) * + , - ) - , . / 0 1 1 ) - - ) 2 4 ) - 4 , - ) - ) 5 6 - , 6 7 )

  • verve

    101

    mesmo a partir de maro de 1914. Nele, os textos no es-tavam apartados das experincias cotidianas, destacando a importncia de uma educao que instigasse prticas de liberdade voltadas s crianas. Mas tambm era possvel encontrar notcias sobre os anarquistas de vrios lugares e suas experincias. Marcava-se, assim, o no reconheci-mento de fronteiras pelos anarquistas, j escancarado em suas longas viagens. Como em todo peridico anarquista est em questo no apenas divulgar novas prticas, mas fortalecer suas relaes desde a elaborao de um texto at sua divulgao.

    O boletim contou com apenas 10 nmeros e, cinco meses depois do seu lanamento, no foi mais editado. Foi um reflexo da Primeira Grande Guerra (1914-18) um perodo de intensificao das agitaes anarquistas e de confrontos entre os prprios anarquistas. A guerra atingi-ria La Ruche de modo avassalador.

    J no primeiro ano da guerra, a situao comeou a fi-car cada vez mais difcil. Mesmo com a chegada de novos colaboradores, como Julia Bertrand, que fora convidada por Faure devido a sua campanha contra a guerra, era im-possvel manter os boletins. O ltimo nmero data de 25 de julho de 1914.

    Boa parte dos colaboradores foi embora em 1916, como Marcel Voisin. Em suas memrias, ele diz que deciciu par-tir para no ser mais uma boca para alimentar,15 e seguiu para Voisins-le-Bretonneux para ser trabalhador braal, com a inteno de ajudar algumas crianas com o seu sa-lrio. Relata que, com o advento da guerra, os pais foram buscar suas crianas e que Sbastien Faure encontrava-se impossibilitado de realizar suas conferncias pela Europa, rareando ainda mais os recursos para manter La Ruche.

    % & ' ( & ) * + , - ) - , . / 0 1 1 ) - ) ) 2 4 ) - 4 , - ) - ) 5 6 - , 6 7 )

  • 18

    2010

    102

    No comeo de outubro, poucos ainda estavam em La Ruche. O inverno rigoroso de 1917 fez com que os ltimos que l viviam tambm se fossem.

    Sbastien Faure anunciou o fechamento de La Ruche no jornal Ce quil faut dire..., peridico fundado junto com seu amigo Mauricius. Nele, dedicavam-se a acirrar a luta contra a guerra, propagar ideias pacifistas e publicar textos que seguissem a mesma orientao. Em 3 de maro de 1917, publicou uma coluna intitulada La Ruche fechou, e mostrou como tornava-se cada dia mais difcil manter a experincia de educao libertria: A guerra maldita che-gou, submeteu La Ruche mais penosa prova. (...) Nossos modestos atelis, destinados educao profissional dos mais velhos e que asseguravam uma parte dos recursos que faziam La Ruche viver, foram fechados. As reunies foram suprimidas, renunciei s minhas conferncias que compu-nham cerca de 75% das receitas que alimentavam o caixa. (...) A guerra, que matou tantos homens, destruiu tanta ri-queza e quebrou tantos esforos, fez mais uma vtima. (...) Mas do que adianta se lamentar? Mesmo que ela jamais renasa das suas cinzas, La Ruche no sumiu totalmente. Permanecer como outro exemplo de iniciativa e de esfor-os feitos por alguns camaradas.16

    O menino Berthier, em agosto de 1916, volta para casa de seus pais. Nesta data, poucas crianas, aproximada-mente 15, permaneciam em La Ruche.

    Para Berthier, sair de La Ruche e retornar casa dos pais no foi fcil. No comeo de setembro de 1916 eu deixei La Ruche como a maior parte das crianas e voltei para minha famlia, em Beaujolais. Mas La Ruche deixou em mim uma certa impresso, que no me foi mais poss-

    % & ' ( & ) * + , - ) - , . / 0 1 1 ) - , ) 2 4 ) - 4 , - ) - ) 5 6 - , 6 7 )

  • verve

    103

    vel aceitar a autoridade de meu pai. Depois de seis meses, nesta vida em famlia que eu no compreendia mais, voltei para Paris onde encontrei muitas crianas que viveram em La Ruche e onde, to bem quanto mal e em plena guer-ra, cada um de ns tomou sua posio. Mas ao preo de esforos!!! No era mais a livre discusso, mas as ordens do patro e do contramestre. No eram mais os belos pas-seios nos corredores da floresta, mas os telhados das usinas que pareciam me esmagar.17

    As memrias de Marcel Voisin mostram o que aconte-ceu com os integrantes que construram La Ruche, levan-do a desdobramentos de uma experincia anarquista.

    Voisin relata o encontro, em 1930, com Guiguitte na rua, a menina a quem chamava carinhosamente de pe-quena irm e que tinha sete anos quando partiu de La Ruche. A irm de Guiguitte, Louisette, uma criana cheia de vida, inteligente, no conseguiu se adaptar sociedade e suicidou-se.

    Aristide Lapeyre, que aps fugir de casa passara a fre-quentar La Ruche, na poca com 14 anos, mais tarde foi um dos fundadores da Federao Anarquista francesa, em 1945 e fez parte do grupo Amigos de Sbastien Faure, que reeditou algumas de suas obras.

    Voisin ainda conta o que aconteceu com Henriette Royer, que tinha 16 anos quando morou em La Ruche. Durante a Segunda Grande Guerra, quando os nazistas invadiram a Frana, Henriette participou de manifestaes e acabou por ser denunciada. Foi presa junto com seu companheiro e o cunhado, foram levados para a Alemanha. Henriette Royer foi para Auschwitz; acometida por uma tuberculose, serviu de cobaia s experincias mdicas e morreu em 1944.

    % & ' ( & ) * + , - ) - , . / 0 1 1 ) - 3 ) 2 4 ) - 4 , - ) - ) 5 6 - , 6 7 )

  • 18

    2010

    104

    No pice da sociedade disciplinar, nos campos de con-centrao, os anarquistas tambm foram alvos. Os cam-pos de concentrao administravam corpos, os apartavam para conter e exterminar; neles se realizava o racismo con-tra o diferente quando era preciso acabar com aquele que rejeita o pacto social, o inimigo poltico, o anormal, o in-corrigvel.18 Os anarquistas mostraram o incontvel diante do campo de concentrao.

    O insuportvel e indcil anarquista, que deve ser cor-rigido e, no limite, exterminado, sabe que suas experi-mentaes, desafios e batalhas no so pela sobrevivncia, mas, ao colocarem suas vidas em risco, lutam por uma existncia livre.

    A experincia de La Ruche e suas repercusses no se limitam a 1917. Neste novo espao, os anarquistas resisti-ram ao governo sobre a vida ao lado de crianas e amigos, fazendo jornais, agitaes, se aventurando e sem abrir mo de suas calorosas festas.

    As experincias anarquistas permitem descobrir percur-sos de mulheres e homens corajosos e como arriscaram suas vidas ao afirmarem a liberdade em relaes fortes e sutis. Diante da recusa obedincia, que se desdobra em vrias prticas, preciso ter ateno aos termos e aos embates que ficaram ultrapassados frente a uma nova composio de foras para encarar o que permanece potente e avanar.

    % & ' ( & ) * + , - ) - , . / 0 1 1 ) - 8 ) 2 4 ) - 4 , - ) - ) 5 6 - , 6 7 )

  • verve

    105

    Notas

    1 Este artigo apresenta passagens pontuais da pesquisa de iniciao cient-fica Sbastien Faure e La Ruche: uma experincia de educao libertria; apresentada em maro de 2010 ao Departamento de Poltica da Faculdade de Cincias Sociais da PUC-SP e Comisso de Pesquisa e Extenso da PUC-SP, financiada pela CEPE/PUC-SP.

    2 Ernest Berthier. La Ruche in Sbastien Faure et La Ruche. Marseille, Fe-deration Anarchiste, 1968, pp. 1-14. (Traduo de Luza Uehara)

    3 Paul Robin, em 1880, assumiu a direo administrativa do Orfanato de Prvost, de Cempuis, na Frana, e experimentou uma educao integral que abrangia os domnios fsico, intelectual e moral. Proudhon, em 1864, na Associao Internacional dos Trabalhadores, lanara a questo de uma educao integral: sua proposta associava o ensino literrio, cientfico e da aprendizagem industrial, voltada formao de homens livres. O orfanato de Cempuis abrigava cerca de 150 crianas a partir dos 6 anos. Ali no era admitida a realizao de qualquer exame ou prova como forma de classifi-cao das crianas, nem prmios ou castigos por desempenhos individuais. Mais do que o ensino laico, o ponto de sua proposta que mais causou escn-dalo foi a coeducao dos sexos. Como ainda era uma experincia vinculada ao governo, no resistiu aos violentos ataques dos meios catlicos, conser-vadores e das autoridades escolares, o que culminou na exonerao de Paul Robin, em 1894.

    4 As ideias universais j haviam sido destrudas por Proudhon, por meio da anlise serial que situa a histria das foras em luta: a liberdade e a autori-dade tensionam-se, no so absolutas. Esta no pacifica a histria em leis, nem identifica uma unidade nela, mas a compreende em uma dinmica, onde nada constante, fixo ou imutvel. No h uma sntese que pacifique essa relao, como na dialtica hegeliana. Para os anarquistas, est o desafio de como avanar a srie liberdade diante da centralizao da autoridade. Cf. Edson Passetti e Paulo-Edgar A. Resende (orgs.). Proudhon. Traduo de Clia Gambini e Eunice Ornela Setti. So Paulo, Editora tica, Coleo Grandes Cientistas Sociais, 1986.

    5 Willian Godwin, em Crime e punio, mostra como o castigo incide em uma pessoa culpada por aes passadas com o fim de corrigi-la ou modific-la para a preveno aos males futuros. Assim, a coao usada para educar

    % & ' ( & ) * + , - ) - , . / 0 1 1 ) - 7 ) 2 4 ) - 4 , - ) - ) 5 6 - , 6 7 )

  • 18

    2010

    106

    exige a obedincia e submisso a uma autoridade, presente na figura do professor, do inspetor, do diretor ou do pai, importante para a continuao do governo sobre a vida. Cf. Willian Godwin. Crime e punio. Traduo de Maria Abramo Caldeira Brant in Verve, vol. 5. So Paulo, Nu-Sol/PUC-SP, 2004, pp. 11-84.

    6 Alfred Joriot apud Roland Lewin. Sbastien Faure et La Ruche ou l education libertaire. Vauchrtien, Editions Ivan Davy, 1989, pp. 82-3. (Traduo de Luza Uehara)

    7 Emma Goldman. Living my life. New York, Dover Publications, 1970, pp. 408-409. (Traduo de Luza Uehara)

    8 Sbastien Faure. crits Pedagogiques. Paris, Editions Du Monde Libertaire, 1992, p. 157. (Traduo de Luza Uehara)

    9 Cf. Edson Passetti & Accio Augusto. Anarquismos e educao. Belo Hori-zonte, Autntica, 2008.

    10 Idem, p. 84.

    11 Sbastien Faure, 1992, op. cit., p. 132.

    12 Michel Foucault. Gerir os ilegalismos in Michel Foucault: Entrevistas. Traduo de Vera Portocarrero e Gilda Gomes Carneiro. So Paulo, Graal, 1999, p. 50.

    13 Edson Passetti & Accio Augusto, 2008, op. cit., p. 10.

    14 Uma heterotopia a realizao de uma utopia num espao especfico; a urgncia de seu acontecimento, o que j impossvel aguardar, ruminar, elaborar no pensamento. Idem, p. 83.

    15 Marcel Voisin. Ctait le temps de la Belle poque. Paris, La pense sauvage, 1979, p. 163. (Traduo de Luza Uehara)

    16 Sbastien Faure. La Ruche est ferme in Ce quil faut dire..., n 49, 3 de maro de 1917. (Traduo de Luza Uehara)

    17 Ernest Berthier, 1967, op. cit., p. 13.

    18 Cf. Michel Foucault. Os anormais. Traduo de Eduardo Brando. So Paulo, Martins Fontes, 2001.

    % & ' ( & ) * + , - ) - , . / 0 1 1 ) - 9 ) 2 4 ) - 4 , - ) - ) 5 6 - , 6 7 )

  • verve

    107

    Resumo

    O artigo expe aspectos da histria de La Ruche, uma expe-rincia de educao anarquista na Frana do incio do sculo XX. Para Sbastien Faure, seu fundador, La Ruche no era uma escola, um pensionato ou um orfanato, mas uma expe-rincia nica, que combinava arte, trabalho, comemoraes e atividades ao ar livre em um ambiente no-hierrquico de educao e aprendizagem.

    palavras-chave: educao anarquista, La Ruche, Sbastien Faure.

    Abstract

    /e article exposes some aspects of the La Ruches history, an anarchist educational experimentation in the France of the early XXth century. To Sbastien Faure, its founder, La Ruche was not a school, a boarding school, or an orphanage, but a unique experience that combined art, work, celebrations and open air activities in a non-hierarchical ambient of teach-ing and learning.

    keywords: anarchist education, La Ruche, Sbastien Faure.

    Recebido para publicao em 5 de abril de 2010. Confirmado em 20 de setembro de 2010.

    % & ' ( & ) * + , - ) - , . / 0 1 1 ) - 5 ) 2 4 ) - 4 , - ) - ) 5 6 - , 6 7 )