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1 A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO DO PROFESSOR DE EDUCAÇÃO FÍSICA SOB A AÇÃO DA ACAD E DO CONFEF Bruno Gawryszewski 1 Tatiane Carneiro Coimbra 2 INTRODUÇÃO O ressurgimento do pensamento liberal ajustado às especificidades daquele momento histórico da crise do capital provocou mudanças na intervenção política do Estado. Há um notório movimento de avanço dos interesses privados sobre a esfera dos direitos universais, como educação, saúde, alimentação, segurança etc., direitos consagrados como essenciais para garantir um funcionamento “estável” da sociedade. Nesse contexto, incluímos o acesso aos bens culturais, equipamentos públicos de lazer e a prática físico-esportiva. O acesso a tais atividades vem, gradativamente, se restringindo aos estabelecimentos privados ou sendo proporcionado através de políticas públicas precárias, através de parcerias com o chamado terceiro setor (ONGs, cooperativas etc.), coadunante com a política de alívio à pobreza e a degradação da condição humana. O advento do neoliberalismo e do seu “Estado mínimo” propiciou a ascensão de novas frações da burguesia. Se, por um lado, a liberalização financeira resultou numa grande concentração de poder junto ao capital financeiro, a ascensão do setor terciário da economia deu margem à consolidação de uma burguesia do setor de serviços (BOITO JR, 1999). Ligada especialmente à exploração de serviços de saúde, educação, seguros e previdência privada, o crescimento da burguesia de serviços é um resultante do descompromisso do poder público com os mais elementares direitos sociais, incluindo o lazer, o esporte e a promoção da saúde através da prática sistemática de atividades físicas. Essa investida da iniciativa privada em se apropriar desses direitos vem, por conseguinte, redimensionando o trabalho do professor de educação física (NOZAKI, 2004). Enquanto até os anos de 1980, o professor de Educação Física no Brasil estava 1 Professor de Educação Física, Mestrando em Educação/UFRJ. Endereço: Escola Nacional de Circo. Praça da Bandeira, n. 4. Rio de Janeiro/RJ. CEP: 20270-150. E-mail; [email protected] 2 Professora de Educação Física, Mestranda em Educação/UFF. E-mail: [email protected]

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A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO DO PROFESSOR DE EDUCAÇÃOFÍSICA SOB A AÇÃO DA ACAD E DO CONFEF

Bruno Gawryszewski1

Tatiane Carneiro Coimbra2

INTRODUÇÃO

O ressurgimento do pensamento liberal ajustado às especificidades daquele

momento histórico da crise do capital provocou mudanças na intervenção política do

Estado. Há um notório movimento de avanço dos interesses privados sobre a esfera dos

direitos universais, como educação, saúde, alimentação, segurança etc., direitos

consagrados como essenciais para garantir um funcionamento “estável” da sociedade.

Nesse contexto, incluímos o acesso aos bens culturais, equipamentos públicos de lazer e

a prática físico-esportiva. O acesso a tais atividades vem, gradativamente, se

restringindo aos estabelecimentos privados ou sendo proporcionado através de políticas

públicas precárias, através de parcerias com o chamado terceiro setor (ONGs,

cooperativas etc.), coadunante com a política de alívio à pobreza e a degradação da

condição humana.

O advento do neoliberalismo e do seu “Estado mínimo” propiciou a ascensão de

novas frações da burguesia. Se, por um lado, a liberalização financeira resultou numa

grande concentração de poder junto ao capital financeiro, a ascensão do setor terciário

da economia deu margem à consolidação de uma burguesia do setor de serviços

(BOITO JR, 1999). Ligada especialmente à exploração de serviços de saúde, educação,

seguros e previdência privada, o crescimento da burguesia de serviços é um resultante

do descompromisso do poder público com os mais elementares direitos sociais,

incluindo o lazer, o esporte e a promoção da saúde através da prática sistemática de

atividades físicas.

Essa investida da iniciativa privada em se apropriar desses direitos vem, por

conseguinte, redimensionando o trabalho do professor de educação física (NOZAKI,

2004). Enquanto até os anos de 1980, o professor de Educação Física no Brasil estava

1 Professor de Educação Física, Mestrando em Educação/UFRJ. Endereço: Escola Nacional de Circo.Praça da Bandeira, n. 4. Rio de Janeiro/RJ. CEP: 20270-150. E-mail; [email protected] Professora de Educação Física, Mestranda em Educação/UFF. E-mail: [email protected]

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predominante caracterizado como um trabalhador assalariado da iniciativa pública ou

privada, a partir de então, sua imagem passa a ser vinculada a um perfil profissional

moderno, “autônomo”, flexível, semelhante a um profissional liberal, manifestada

especialmente na figura fetichizada do personal trainer ou do professor de academia de

ginástica.

Admitindo que as práticas corporais são veículos que podem transmitir esses

valores mercantis, certamente o estabelecimento de valores, saberes, ideologias,

dependem de agentes que organizem esse modus operandi. O organizador terá a

incumbência de conferir coesão e feição ao que essas práticas deveriam desempenhar na

sociedade contemporânea.

OBJETIVO

O trabalho tem por objetivo discutir como a ACAD (Associação Brasileira de

Academias), o seu respectivo sindicato, o SINDACAD, além do CONFEF (Conselho

Federal de Educação Física), são sujeitos que operam, cada um no seu respectivo

âmbito de atuação, os preceitos do neoliberalismo e da reestruturação produtiva do

mundo do trabalho, o que acaba conferindo uma intensa precarização do trabalho do

professor de educação física no campo não-escolar.

METODOLOGIA

A base empírica utilizada para análise dessas hipóteses são as revistas oficiais da

ACAD, do CONFEF e o Documento da Convenção Coletiva de Trabalho firmada entre

o SINDACAD - Sindicato dos Proprietários das Academias-e o SINDECLUBES –

Sindicato dos Empregados em Clubes, Estabelecimentos de Cultura Física, Desporto e

Similares do Estado do Rio Janeiro.

A categorização do CONFEF e da ACAD como “organizadores” e o papel da

imprensa como partido teve como matriz de apoio a concepção desenvolvida por

Gramsci em suas obras. Ao apontar que a sociedade civil é uma das esferas

componentes do Estado, compreendeu que as classes buscam exercer sua hegemonia, se

afirmando por meio de aparelhos privados de hegemonia. O grande avanço de Gramsci

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foi perceber que através do exercício da hegemonia nesses aparelhos privados, uma

fração ou uma classe não-dominante no aparato estatal, poderia dirigir a sociedade no

plano do poder político. A partir desse entendimento, se faz mais claro o papel da

imprensa como partido. A imprensa cumpre uma função de veículo de organização e

difusão de determinados tipos de cultura, articulados de forma orgânica a um

determinado agrupamento social, representando uma ação partidária da imprensa

(GRAMSCI, 1982).

Discussão: quem são os sujeitos analisados.

A ACAD foi criada no ano de 1999 e é uma associação constituída pelos

proprietários de academias, principalmente da cidade do Rio de Janeiro/RJ, cuja sede

está localizada. No entanto a referida associação possui abrangência nacional. É

organizada por uma diretoria, na qual todos os membros são empresários do âmbito do

fitness. Em última instância, a constituição da ACAD como entidade representativa,

nada mais do que reflete a crescente importância econômica do setor de serviços,

resultando no desenvolvimento de uma estrutura organizacional dessa burguesia, que se

constitui como um subproduto necessário à redução dos gastos com direitos sociais,

principalmente na área da saúde e educação.

A referida fração burguesa é favorecida pela estratégia que ocupa na política

neoliberal, pois o imperialismo e todas as frações burguesas presentes no bloco do poder

tendem a pressionar o Estado pela minimização dos gastos sociais, o que colabora,

ainda que, de forma indireta, com a burguesia do setor de serviços (BOITO Jr, 1999).

Não menos desprezível é a contribuição aos empresários da indústria da saúde e da

educação de inúmeros incentivos fiscais e a disputa pelo recebimento das verbas

públicas, o que apenas reafirma a decisiva participação do Estado para sustentar e

manter a estrutura social. Tal elemento sugere que o elevado empenho dos empresários

das academias de ginástica em conceituá-las como espaços de saúde preventiva tem

motivo, o que serve a interesses mercantis alheios à prática das atividades em si.

Apesar da pouca visibilidade para esse ramo da economia nos estudos

acadêmicos, o segmento das academias de ginástica também vem passando por uma

mundialização em seus investimentos, bem como o surgimento de gigantescas cadeias

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corporativas que deslocam seu capital para diversas partes do mundo, configurando-se

como verdadeiras empresas multinacionais como a Les Mills. Fundada em 1997, a

empresa promoveu uma aula simultânea de Body Jam em quatro países no dia 23 de

setembro de 2006, misturando ritmos como salsa, jazz, funk e hip-hop, consolidando a

internacionalização de sua rede (FITNESS BUSINESS LATIN AMERICA, 2006).

Ainda não temos elementos para afirmar que já em curso um estágio de

monopolismo, especialmente no que tange ao primeiro aspecto destacado por Lênin, em

“Imperialismo...”, a concentração da produção e do capital. Contudo, apesar de não se

afirmar a existência de um capital monopolista controlando o segmento das academias

brasileiras, entretanto, a presença de redes de academias no plano interestadual, como a

Body Tech e a Cia. Athletica, indica o fortalecimento e consolidação de uma burguesia

nacional. Diante do recrudescimento econômico desse segmento, a fundação da

Associação Brasileira de Academias (ACAD) foi estratégica para tornar mais

representativa e organizada os interesses corporativos do setor de academias.

A ACAD utilizou como estratégia empresarial a criação do SINDACAD/RIO,

com vistas à realização da convenção coletiva de trabalho, permitida pela legislação

trabalhista brasileira. A associação criou uma comissão jurídica para estudos sindicais,

cujo objetivo foi à criação de um sindicato que atuasse em parceria com a ACAD. De

acordo com as notícias publicadas pela página da associação as vantagens da criação de

um sindicato específico da categoria são: a contribuição sindical obrigatória destinada,

na sua integralidade, a despesas do interesse das academias e a possibilidade da

existência de uma convenção coletiva. Cabe ressaltar que o referido sindicato realizou

uma convenção coletiva de trabalho válida para os anos de 2006 e 2007.

Em indisfarçável sintonia com a ACAD, o CONFEF vem se constituindo em um

instrumento de apoio à consolidação deste setor na economia. A criação de conselhos

regionais e federal caminhou junto com a regulamentação da Educação Física enquanto

uma profissão. Seus defensores propagavam que o reconhecimento e a instauração de

um conselho fiscalizador traria a redenção e o respeito aos professores de Educação

Física, já que apenas profissionais registrados poderiam trabalhar nos supostos campos

exclusivos de atuação da “Educação Física”.

Hajime Nozaki analisa que a regulamentação da profissão se constituiu em uma

estratégia coadunante com o projeto neoliberal. A defesa da regulamentação esteve

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preocupada à conquista do emergente mercado das práticas corporais, mercado este com

enorme contingente de exército de reserva.

o mercado de trabalho torna-se uma noção ideológica que visa adaptar otrabalhador às condições de mais alta precariedade e servir aos interesses docapital, que depende da intensificação da exploração para continuar sereproduzindo (Nozaki, 2004, p.167).

Desse modo, a noção de regulamentação não levou em conta em nenhum

momento a exploração do sistema capitalista à classe trabalhadora e ao descaso quanto

ao trabalho docente nas escolas públicas. Operando sob a lógica do mercado de

trabalho, institui-se o ideário de que o professor deve vender sua força de trabalho para

o capital. Por isso, Nozaki defende que “mundo do trabalho, compreendido enquanto

confronto da relação entre capital e trabalho, torna-se mediação central de análise para o

combate à idéia absoluta de profissão regulada pelo mercado” (idem, ibid., p.169).

Vários indícios nos levam a perceber a aproximação institucional entre ACAD e

CONFEF/CREF. A parceria alcança o seio da sociedade política, conforme demonstra a

edição 21 (set-out/04) quando menciona que “Atuamos firmemente em Brasília, em

parceria com o sistema CONFEF/CREFs, para defender nossos direitos no Congresso e

no Executivo Federal...” (p.4).

O presidente da ACAD ainda afirma que a associação auxilia o sistema

CONFEF/ CREF, realizando campanhas para que todos os professores que trabalham

nas academias sejam credenciados. Djan Madruga ainda destaca a aproximação da

ACAD com o CREF1.

Também gostaria de destacar nossa aproximação com o CREF- 1, do Rio deJaneiro, na pessoa do seu presidente, Ernani Contursi, com o qual dispomosde uma verdadeira parceria operacional. Mantemos um encontro mensal detrabalho, num exercício que pode ser aplicado para todo o sistema. Indicamosum dos conselheiros na atual gestão, o nosso ex-presidente Pedro Aquino,que é profissional de educação física e advogado com grande experiência emgestão de academias no Brasil (Madruga, 2004, p.16).

No Rio de Janeiro foi desenvolvida uma parceria entre as academias e o CREF-

1 com apoio do CONFEF, na qual as academias são isentas de pagamento da taxa de

filiação ao conselho, desde que todos os seus funcionários sejam registrados. A

intenção é de que tal fato ocorresse em todo o Brasil.

Feito os devidos esclarecimentos sobre os sujeitos analisados neste trabalho,

identificamos três estratégias levadas adiante no intuito de precarizar o trabalho do

professor de Educação Física no campo não-escolar. A primeira diz respeito a difusão

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da noção de empregabilidade como requisito necessário para a procura e conquista de

uma ocupação remuneratória. Outra estratégia levantada é ressignificação da função

docente para profissional liberal como estratégia de “modernizar” o sentido da atuação e

a identidade do professor de EF enquanto profissional de educação. Por fim, foi

discutido as iniciativas de perfil político-jurídico mais diretas, especialmente no que

tange às relações trabalhistas.

RESULTADOS

1) Difusão da empregabilidade

Em tempos de “crise do emprego”, “fim da centralidade do trabalho” e “busca

de oportunidades e autonomia” e, principalmente, constatando que o mercado de

trabalho não mais ostenta a outrora imagem de ofertas ilimitadas de vagas, a

empregabilidade implicou na construção de relações cada vez mais fragilizadas para os

indivíduos. Não se trata mais apenas de educar para o emprego, mas também, para a

(provável) situação de encontrar-se desempregado.

Adentrando o universo da imprensa do Conselho, não causa surpresa que, logo

na primeira edição (dez/01), a matéria “A regulamentação e as academias” faça jus ao

rótulo de organizador do capital atribuído ao CONFEF. A matéria não apenas exalta a

confiabilidade que a regulamentação trouxe para o mercado das academias, como

propaga a necessidade de que o professor se ajuste às demandas de atributos e requisitos

definidos pelo mercado. Na visão do Conselheiro do CREF-1, Écio Nogueira, professor

empregável é aquele que consiga “[...] unir um excelente conhecimento da área

específica (conteúdo) a um bom marketing pessoal (forma), a fim de alcançar qualidade

profissional exigida pelo mercado” (CONFEF, 2001, p.18).

O professor Álvaro Romano é apresentado na 20ª edição da Revista (jul/06)

como um modelo, dotado de qualidades pessoais que são apresentadas como uma

receita de seu sucesso profissional em que, segundo o próprio, se destacariam “o

carisma, a visão, a dedicação e, principalmente, o investimento pessoal e profissional no

projeto” e que “o registro profissional abriu portas e deu muita credibilidade ao meu

trabalho aqui nos Estados Unidos” (CONFEF, 2006, p.25).

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O perfil profissional comumente propagado nas revistas é o flexível,

empreendedor e “autônomo”. Respaldam essa opinião os coordenadores de curso de

graduação da Universidade Estácio de Sá e da UniABEU na edição 17 (set/05). No caso

do primeiro coordenador, que é conselheiro do CREF-1, se os profissionais não se

mantiverem constantemente atualizados, serão ultrapassados por outros e completa que

“[...] a população está cada vez mais exigente” (CONFEF, 2005a, s/p). É operada uma

transferência de responsabilidade dos empresários, que, de fato, são aqueles que

controlam e definem o perfil profissional desejado para si, para a população, uma

definição inócua e abstrata.

O fenômeno fetichizado da figura do personal trainer é exaltado com grande

destaque na edição 15, sendo objeto de matéria de capa e entrevista. O texto introdutório

explica que o treinamento individualizado, antes privilégio de atletas, personalidades e

empresários, estaria se popularizando e se tornando uma tendência. Mais do que

nenhuma outra, a atividade do personal trainer simboliza os tempos do prestador de

serviço e empreendedor, em que o profissional precisa gerir o seu próprio negócio. A

meta a ser alcançada é a satisfação plena do aluno, com vistas de que este se sinta

constantemente estimulado a continuar praticando a atividade e atingir bons resultados

(CONFEF, 2005b).

Seguindo essa linha, mais uma vez o Professor Álvaro Romano é apresentado

como exemplo de sucesso no campo da Educação Física. Com uma proposta tão

inovadora e diversificada, o texto endossa de que é “a prova de que o mercado é

diversificado e que basta olhar com cuidado para achar novos nichos” (CONFEF,

2005b, p.6). Os bons ventos continuam a soprar quando a revista apresenta o quão

diversificada foi sua carreira como personal (preparação física de atletas, escolas de

samba, artistas, Corpo de Balé). E assim, decreta que “mercado não falta, basta saber

procurar” (p.6).

Contudo, em relação aos direitos trabalhistas ou até contratos de prestação, o

entrevistado pela revista passa longe dessa opinião ao declarar que “Eu,

particularmente, não tenho contrato com ninguém. Com isso, eu não tenho nenhum

rigor por parte do aluno e por minha parte” (idem, ibid., p.6). O profissional

“autônomo” e flexível é sacramentado pelo CONFEF.

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O mercado é elevado à condição de balizador central da sociedade, não sendo

motivo de análise crítica e cinicamente apresentado como componente natural da

regulação das relações de trabalho, ocultando-se o desemprego estrutural vivenciado

nos tempos atuais. Aliás, é sintomático da relação institucional entre o Sistema

CONFEF e o Capital, que mesmo os dados e análises apontando da dificuldade para um

trabalhador estabelecer uma carreira profissional, o mercado, ainda assim, é celebrado

por oportunizar diferentes ramos de atuação.

Portanto, sobre o caráter da revista, concordamos com Ian Nascimento ao

criticar que a visão do CONFEF. “A visão individual e meritocrática está

constantemente presente em seus conteúdos, além da perspectiva empresarial que deve

caminhar com os profissionais da área” (Nascimento, 2007, p. 45).

2) Ressignificação da função docente

A percepção de que a profissão docente vem perdendo seu prestígio e passa por

inúmeras dificuldades materiais e simbólicas é recorrente nas leituras dos principais

periódicos brasileiros. No cotidiano das escolas são comuns as reclamações dos

professores a respeito dos baixos salários, das péssimas condições de trabalho, das

amplas jornadas em sala de aula, do desinteresse dos alunos e da própria categoria

docente. Essa situação adversa vivida pela profissão já circula como clichê na opinião

pública que, entretanto, parece oscilar entre uma solidariedade passiva (“de fato,

ganham muito pouco...”) e a aceitação de que a categoria é demasidamente grevista e

não se preocupa verdadeiramente com os seus estudantes, ecoando a imagem difundida

pela grande mídia, pelos organismos internacionais e pelo próprio Estado que, por

ocasião de greves e movimentos contra medidas governamentais, acusam os docentes e

seus sindicatos de corporativistas e inflexíveis.

Para romper com o suposto corporativismo e inflexibilidade da categoria

docente frente às mudanças do “mundo globalizado” compreendido aqui como uma

ideologia, os governos lançaram mão de reformas neoliberais com o objetivo de

enfraquecer os profissionais da educação. Certamente, uma das medidas de maior

impacto na vida dos professores foi a generalização de mecanismos de remuneração por

desempenho, em geral aferidos pelo número de estudantes aprovados, em detrimento de

contratos salariais por carga-horária e qualificação. Por esses meios, os governos podem

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reajustar parcialmente a parte variável da remuneração em detrimento do vencimento

básico, aumentando a vulnerabilidade dos professores e o poder relativo da

administração governamental.

A ascensão, mesmo que tardia em comparação com outros países na América

Latina, do neoliberalismo como ideologia dominante condutora da política de Estado, se

constitui em um fator determinante para o apontamento dessa reestruturação do trabalho

docente. Diferentes autores têm se ocupado em examinar o problema, como Oliveira

(2004) que vê na reestruturação educacional dos anos 90, assentado em conceitos como

produtividade, excelência e eficiência uma centralização nos professores como

principais agentes responsáveis pelo sucesso ou fracasso de um programa educacional.

O professor, diante da série de novas exigências da escola, tomaria para si

responsabilidades além da conta de sua formação, o que reforçaria um sentimento de

desprofissionalização, onde o ato de ensinar não seria mais tão importante assim.

Leher e Barreto (2003) afirmam que está em curso um esvaziamento deliberado

do trabalho docente. Esse esvaziamento tem se materializado através de deslocamentos

semânticos em que o papel do professor, tratado como uma tecnologia, procura ser

minimizado ou até mesmo substituído. Assim, o trabalho docente pode ser reduzido a

“atividade/tarefa docente”. O professor seria a “tecnologia” a ser substituída ou

minimizada, por meio da intensificação do uso das tecnologias de informação e

comunicação (TIC), como o uso de softwares, teleaulas, apostilas, gravação em áudio e

o ensino à distância.

Kuenzer (1999), ao fazer uma crítica à formação aligerada e de baixo custo,

denomina esses professores como tarefeiros, na medida em que são estimulados a

serem meros divulgadores dos conhecimentos e das tendências do mercado.

Lançamos o olhar para a específica situação do professor de Educação Física.

Este se encontra imerso a uma avalanche de estímulos para que “modernize” sua

imagem, adequando aos mundo contemporâneo (e, por assim dizer, precário). A coluna

do Presidente do CONFEF na edição 10 (dez/03) faz uma ode à nova imagem do

Profissional de Educação Física. Faz questão de ressaltar a mudança do professor

formado por um viés sacerdotal para o prestador de serviços. Por isso, recomenda que

“Ser empreendedor é fundamental” (STEINHILBER, 2003, p.3).

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Outra contribuição nesse sentido vem através do interlocutor do Sistema

CONFEF/CREFs, Juarez Nascimento, em que podemos observar o discurso do

empreendedorismo presente na educação física.

Nesta nova era, o profissional de Educação Física assumiria um novo papelna sociedade, deixando de lado a posição cômoda e estável de assalariado daadministração pública ou de um organismo privado. Ocupará o seu espaço seimpondo como um profissional liberal, gerenciando o seu própriodesenvolvimento no mercado de trabalho (Nascimento, 2002, p.66).

Um outro elemento importante a ser analisado é a estratégia gerencial para

obter o envolvimento do trabalhador com a empresa, envolto sob o padrão toyotista que

suscita um envolvimento participativo do funcionário, mesmo que permaneça nos

marcos do trabalho alienado e estranhado, especialmente dentro dos chamados Círculos

de Controle de Qualidade (CCQ), onde são instigados a discutir seu desempenho e

propor soluções para o bom andamento da empresa, convertendo-se em um importante

instrumento da apropriação do saber-fazer intelectual para o capital (ANTUNES, 1999).

Atualmente está presente no discurso da Educação Física, que o professor das

academias de ginástica deve ser mais do que um trabalhador da academia, e sim um

colaborador. Podemos confirmar tal afirmativa, ao analisarmos o discurso proferido por

Edson Brum, palestrante do II Congresso da ACAD.

Uma nova terminologia pelos empresários que buscam sucesso naprodutividade de seus negócios: COLABORADOR. Está “out” oempregador que considera seus funcionários meros cumpridores de tarefa,que chegam no horário e não faltam. As empresas estão valorizando aquelesprofissionais comprometidos, integrados, motivados através de treinamento,que identificam com os objetivos propostos e que contribuem com novasidéias, prontos a colaborar em qualquer situação, em todos os setores.(BRUM, 2005, p.26).

A adesão e o comprometimento dos professores de Educação Física são vistos

como fundamentais para se conseguir efetivar o planejamento administrativo da

academia. Como destaca o artigo assinado por Brum na revista da ACAD (mai/jun.

2005) veiculado na edição 25, o autor enfatiza que

as empresas estão valorizando aqueles profissionais integrados,comprometidos, motivados através de treinamentos, que se identificam comos objetivos propostos e que contribuem com novas idéias, prontos acolaborar em qualquer situação, em todos os setores (idem, 2005, p.13).

Sob essa noção de vínculo empregatício, os funcionários seriam supostamente

peças-chave para o sucesso da empresa. Reconhecido como colaborador, ele tenderia a

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trabalhar com mais motivação, precisar menos de supervisão e contribuindo com idéias,

por vezes, surpreendentes para o melhor funcionamento da empresa. Os colaboradores

precisam estar bem-informados e cientes do planejamento e da estratégia da empresa e

estão sempre dispostos a auxiliar o companheiro de trabalho, mas ciente de que não

basta apenas executar bem a sua tarefa, mas é imprescindível estar atento às

necessidades e expectativas do aluno/cliente.

3) Ação nas relações trabalhistas

Compreendemos que o fenômeno da precarização do trabalho, não é exclusivo

da Educação Física, e se relaciona com a forma como a qual produzimos a nossa

existência. Qualquer relação de trabalho, sobre o solo do desenvolvimento capitalista é

precarizada devido à própria lógica inerente ao sistema, onde uma pequena parcela da

população detém os meios de produção e a grande maioria, não os possuindo, se vêem

obrigados a vender sua força de trabalho para garantia da própria existência e de seus

familiares. O capital, na busca incessante por obter mais lucros tende a exaurir as forças

físicas, intelectuais e psicológicas do trabalhador até ao máximo, constituindo uma das

formas de precarização do trabalho. O capitalista força os operários a prolongar o

máximo possível a duração do processo de trabalho, para além dos limites do tempo de

trabalho necessário à reprodução do salário já que é justamente esse excedente de

trabalho que proporciona a mais valia (MARX, 1990).

No entanto cada etapa de acumulação capitalista possui uma forma particular de

exploração e precarização do trabalho. Na atual fase de seu desenvolvimento, podemos

identificar a flexibilização dos contratos de trabalho, a terceirização, o desemprego

estrutural, a diminuição de postos efetivos de trabalho, o declínio do número de

carteiras assinadas e o ataque aos direitos dos trabalhadores historicamente

conquistados, como: férias, décimo terceiro salário, licença saúde e maternidade e

aposentadoria como sendo alguns indícios de relações de trabalho altamente

precarizadas.

As lacunas existentes na consolidação das Leis do Trabalho (CLT) abrem

precedentes para o aumento da precarização do trabalho do professor de Educação

Física, bem como de qualquer outro trabalhador, pois no Artigo 58-A admite contratos

por tempo parcial, desde que esses não ultrapassem o limite de 25 horas semanais

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trabalhadas. Dessa forma os empresários das academias de ginástica contratam

professores por tempo parcial e quando assinam a carteira de trabalho o faz por um

valor muito baixo, também amparado pela mesma lei, que permite que: empregados

contratados por tempo parcial tenham suas carteiras assinadas com valor inferior ao

salário mínimo, respeitando o salário horário da categoria.

A revista n° 20 da ACAD (mar/abr.04) publicou uma matéria intitulada de:

Contrato por tempo parcial: aplicação e vantagens, a qual se baseia na CLT para

esclarecer a cerca do contrato por tempo parcial. A matéria reitera sobre a legalidade do

contrato, das férias proporcionais, bem como da possibilidade, nestes casos, da

remuneração mensal, com valor inferior ao salário mínimo federal (ABREU, 2004). O

diretor jurídico da ACAD esclarece que o contrato por tempo parcial só pode ser

realizado caso haja uma cláusula específica na convenção coletiva da categoria.

Em junho de 2006 o SINDACAD/RJ e o SINDECLUBES/RJ aprovaram uma

convenção coletiva de trabalho, na qual a cláusula 4ª versa a cerca do contrato por

tempo parcial, facultando os empresários das academias de ginástica à realização do

referido contrato desde que a jornada de trabalho não exceda 25 horas semanais. O

parágrafo 6°, do documento, faculta a redução da jornada de trabalho, cujos contratos

são em regime de tempo parcial. A redução da jornada de trabalho se dá em função da

extinção de turmas em decorrência da baixa freqüência em aula. O parágrafo 7° autoriza

a instituição do sistema de bancos de horas para os trabalhadores em tempo parcial.

(DOCUMENTO DA CONVENÇÃO / 2006)

A cláusula 6° estabelece o banco de horas para todos os trabalhadores das

academias, reiterando que o excesso de horas de trabalho em um dia pode ser

recompensado pela diminuição em outro dia respeitando o prazo de um ano (Ibid).

O parágrafo 1° da cláusula 11° estabelece que a participação nos lucros das

empresas deve relacionar-se com os critérios de produtividade.

No que concerne à remuneração dos trabalhadores, o documento estipula um

piso salarial na cláusula 3°, para os trabalhadores, cujo contrato de trabalho é em tempo

integral, e na cláusula 4°, um piso para os contratos em tempo parcial, a serem fixados a

partir de 1° de maio de 2006, sendo válido para os anos de 2005 e 2006 para as

respectivas funções:

b) Instrutores de atividades físicas: instrutor de Ginástica Localizada , de stepde alongamento, de RPG, de musculação, de Hidroginástica de Fisioterapia,

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de Bicicleta In Door, de Spinning,de RPM, de Jump Fit, de Fitball:Instrutores Desportivos: Instrutor de Natação, de Futebol,de Basquet, etc;Instrutores de Artes Marciais: Intrutoir de Katatê, de boxe, de Jiu-Jitsu, deCapoeira, de Tae-Kwen-Do, de Kung-Fú de Box Tailandês, dew Judô, de lutaGreco-Romana, de Krav-Magá; Instrutores de Dança; Instrutor de Dança deSalão, de Jazz, de Balet, de Lambaeróbica, de Forró, de Tango, de DançaFlamenca ;Instrutores de Yoga; Instrutor de Power Yoga de Ashtnga Yoga,de Hatha Yoga;... fica estabelecido o piso salarial de R$380,00 (trezentos eoitenta e reais) (Convenção coletiva de trabalho, 2006, p.3)

Cláusula 4°: Contrato em tempo parcial

Parágrafo Primeiro: Quando o empregado contratado estiver inserido nasfunções do item “b”, possuir graduação em instituição de ensino superior,estiver devidamente registrado em seu respectivo conselho de profissão, e forcontratado sob regime de tempo parcial, fica estabelecido o piso de hora/aulade R$ 2,80 (dois reais e oitenta centavos) (IBID.: p.3).

Cabe ressaltar que ainda no ano de 2004, antes mesmo da formalização do

SINDACAD, que viera a ocorrer em 2005, o sindicato já propunha um piso salarial,

para o ano de 2004 e 2005 para as mesmas funções descritas no documento da

convenção, com salários semelhantes, ainda propunha o contrato por tempo parcial nos

mesmos termos aprovados pela convenção.

CONCLUSÕES

Concluímos que é na burguesia do âmbito do fitness que visualizamos de forma

mais contundente a mercantilização das práticas corporais.

Sabido que o sistema do capital se baseia na alienação do controle dos

verdadeiros produtores, os trabalhadores, este o faz degradando o trabalho à mera

condição de fator material de produção. Contudo, como o trabalho é quem de fato é o

sujeito real da produção, o capital necessita incutir uma natural ordem das coisas. Caso

contrário, tal processo de produção seria extinto, assim como o capital. Para obter tal

êxito, o capital utiliza suas personificações para construir um arcabouço ideológico que

sustente a imposição de seus imperativos objetivos.

No caso específico do referido trabalho, o capital personificado na figura da

ACAD, SINDACAD e CONFEF, incute nos trabalhadores da área da educação física, a

ideologia da empregabilidade e da ressignificação do trabalho docente. Com vistas a

manter, bem como elevar suas taxas de lucro, o capital, aumenta sem precedentes a

precarização do trabalho da educação física.

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