a prática de letramento no ensino fundamental em uma escola

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INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 6, Edição número 26, Outubro/2017 a Março/2018 - p 1 CONFINAMENTO E RESISTÊNCIA: O DESAFIO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA Nara Maria Fiel de Quevedo Sgarbi* Marlon Leal Rodrigues** Alexandra Aparecida de Araújo Figueiredo*** RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo compreender os efeitos da memória e dos silenciamentos na valorização ou apagamento da língua indígena nas escolas indígenas do município de Dourados/MS, assim como apontar as implicações de um sistema de confinamento instituído a essa população, diante de posicionamentos de professores indígenas referentes ao ensino da língua materna. Como fonte de análise serão utilizadas redações escritas por professores indígenas de Dourados, participantes do processo seletivo para o vestibular Intercultural indígena de 2010 (UFGD). A fundamentação teórica está pautada nas orientações da Análise do Discurso de linha Francesa e analistas brasileiros nessa vertente, Pêcheux e Gadet(2004), Foucault (2005), Mariani (2004)e Orlandi(1990). Análises preliminares sugerem que as redações apontam para uma insensibilidade institucional diante do conceito de língua para o indígena, indicando um imaginário repleto de deficiências, constituído historicamente como línguas “estranhas, deficitárias”. Logo é a partir desse parâmetro que os indígenas e suas línguas são vistos. Por conseguinte, é a partir desse lugar constituído discursivamente que emerge a imagem do indígena na sociedade. Contudo, apesar de uma busca incessante de apagamento dessas línguas, o discurso indígena indica a partir da memória o valor dessa língua, que é mais que comunicação, é a relação com o divino. Daí a relevância da palavra falada para esse povo e, por conseguinte, a relação entre a escrita e a memória não dialoga uma vez que a escrita no papel se perde com o tempo, enquanto que a escrita na memória é eternizada, até mesmo porque, a voz não é da pessoa que fala, mas sim de Nhanderu Deus -, do mesmo modo, se configura a concepção de ensino aprendizagem. PALAVRAS-CHAVE: Discurso; Educação Escolar indígena; língua indígena. INTRODUÇÃO Partindo da perspectiva de Althusser (1970), ao institui o conceito de aparelhos ideológicos, a Análise do Discurso traz o conceito de assujeitamento. Essa concepção de assujeitamento foi tomada por Pêcheux (1997a, p.311) na formulação de sua teoria sobre a AD, como ele mesmo diz: “os sujeitos acreditam que “utilizam” os discursos quando na verdade são seus “servos” assujeitados, seus “suportes”. Nesse sentido, podemos inferir que o assujeitamento não se constitui fora do ideológico, logo não há discurso neutro ou fora de qualquer interpelação ideológica. Isso posto, o termo ideologia se apresenta para a AD francesa como algo inscrito em práticas discursivas, em sua realidade material: Nem fenômeno emanando do sujeito livre, do sujeito psicológico, nem sistema transcendendo a estrutura válida para todos os homens, as ideologias são, em seu nível, forças sociais em luta. Sistemas e subsistemas mais ou menos coerentes, mais ou menos contraditórios, mas também comportamentos, fantasmas e imaginários sociais, as ideologias não

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INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 6, Edição número 26, Outubro/2017 a Março/2018 - p

1

CONFINAMENTO E RESISTÊNCIA: O DESAFIO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR

INDÍGENA

Nara Maria Fiel de Quevedo Sgarbi*

Marlon Leal Rodrigues**

Alexandra Aparecida de Araújo Figueiredo***

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo compreender os efeitos da memória e dos

silenciamentos na valorização ou apagamento da língua indígena nas escolas indígenas do município de

Dourados/MS, assim como apontar as implicações de um sistema de confinamento instituído a essa

população, diante de posicionamentos de professores indígenas referentes ao ensino da língua materna.

Como fonte de análise serão utilizadas redações escritas por professores indígenas de Dourados,

participantes do processo seletivo para o vestibular Intercultural indígena de 2010 (UFGD). A

fundamentação teórica está pautada nas orientações da Análise do Discurso de linha Francesa e

analistas brasileiros nessa vertente, Pêcheux e Gadet(2004), Foucault (2005), Mariani (2004)e

Orlandi(1990). Análises preliminares sugerem que as redações apontam para uma insensibilidade

institucional diante do conceito de língua para o indígena, indicando um imaginário repleto de

deficiências, constituído historicamente como línguas “estranhas, deficitárias”. Logo é a partir desse

parâmetro que os indígenas e suas línguas são vistos. Por conseguinte, é a partir desse lugar constituído

discursivamente que emerge a imagem do indígena na sociedade. Contudo, apesar de uma busca

incessante de apagamento dessas línguas, o discurso indígena indica a partir da memória o valor dessa

língua, que é mais que comunicação, é a relação com o divino. Daí a relevância da palavra falada para

esse povo e, por conseguinte, a relação entre a escrita e a memória não dialoga uma vez que a escrita no

papel se perde com o tempo, enquanto que a escrita na memória é eternizada, até mesmo porque, a voz

não é da pessoa que fala, mas sim de Nhanderu – Deus -, do mesmo modo, se configura a concepção de

ensino aprendizagem.

PALAVRAS-CHAVE: Discurso; Educação Escolar indígena; língua indígena.

INTRODUÇÃO

Partindo da perspectiva de Althusser (1970), ao institui o conceito de aparelhos

ideológicos, a Análise do Discurso traz o conceito de assujeitamento. Essa concepção de

assujeitamento foi tomada por Pêcheux (1997a, p.311) na formulação de sua teoria

sobre a AD, como ele mesmo diz: “os sujeitos acreditam que “utilizam” os discursos

quando na verdade são seus “servos” assujeitados, seus “suportes”. Nesse sentido,

podemos inferir que o assujeitamento não se constitui fora do ideológico, logo não há

discurso neutro ou fora de qualquer interpelação ideológica. Isso posto, o termo

ideologia se apresenta para a AD francesa como algo inscrito em práticas discursivas,

em sua realidade material:

Nem fenômeno emanando do sujeito livre, do sujeito psicológico, nem

sistema transcendendo a estrutura válida para todos os homens, as ideologias

são, em seu nível, forças sociais em luta. Sistemas e subsistemas mais ou

menos coerentes, mais ou menos contraditórios, mas também

comportamentos, fantasmas e imaginários sociais, as ideologias não

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‘flutuam’ no céu das ideias, são práticas inscritas em realidades materiais, em

instituições, em aparelho, alguns servindo mais que outros aos mecanismos

da reprodução do assujeitamento ideológico. (MALDIDIER; NORMAND;

ROBIN; 1994, p. 90. In: ORLANDI, 1994).

As palavras expostas remetem a uma definição que concerne a Althusser, no que se

refere ao funcionamento da ideologia, principalmente por meio dos Aparelhos

Ideológicos de Estado (AIE). Nessa mesma perspectiva, tem-se a tese fundamental de

que “(...)a ideologia interpela o indivíduo em sujeito” (ALTHUSSER, 2001, p.97),

indicando, assim, nesse caso, uma determinação ao sujeito por meio de mecanismos que

reproduzem simbolicamente ou não a ideologia.

Nessa perspectiva, "ideologia" pode ser entendida como um conjunto de representações

as quais predominam em uma determinada classe inserida na sociedade, assim, pelo ato

de existir várias classes, há várias ideologias em confronto. Portanto, a ideologia não é

a visão geral de toda uma sociedade, mas a visão de mundo de determinada classe e a

maneira como representa essa sociedade, o que desencadeia a ideia de a linguagem ser

imposta pela ideologia, pois não há uma relação linear entre as representações e a

língua, ficando a cargo das condições de produção essa definição.

Nesse sentido, as condições de produção (CP) entendidas como um complexo de

relações sócio históricas determinantes das formações sociais estão atreladas à

ideologia, ou seja, às lutas de classe. Logo, toda representação de valores e crenças de

um sujeito são resultantes desse embate ideológico de um contexto “x”. Assim, do

mesmo modo que essas representações possuem caráter fluido, de continum, as

condições de produção não são diferentes.

(...) as condições de produção do discurso não se mantêm; apenas os

enunciados se repetem parafrasticamente em um processo de reelaboração

(tenso, instável, dinâmico), à medida que se incorporam outros valores

determinados pelo próprio movimento e pelas condições materiais e

históricas. (RODRIGUES, 2007, p. 43).

Essa dinamicidade das CPs e o retorno de determinados enunciados são produtos da

história, assim sendo ao orientar que o discurso é efeito de sentidos entre os

interlocutores é possível apontar que não há comunicação por meio de códigos neutros;

a produção de sentido de um discurso passa por uma espécie de filtro das Formações

Ideológicas que determinam constantemente os dizeres. Nessa direção, Pêcheux indica

que:

Um dos aspectos materiais do que chamamos de materialidade ideológica...

as formações ideológicas comportam ... uma ou várias formações discursivas

interligadas que determinam o que pode e deve ser dito (articulado sob a

forma de uma arenga, um sermão, um panfleto, uma exposição) ... a partir de

lugares no interior de um aparelho ideológico e inscrita numa relação de

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classes ... toda formação discursiva deriva de condições de produção

específicas. (PÊCHEUX, 1990, p. 166-167).

Isso implica em dizer que as Formações Discursivas são produtos das Formações

Ideológicas, as quais só podem emergir a partir das relações entre as classes, portanto o

sujeito não é livre para escolher o que vai dizer, considerando que o enunciado é

determinado pela Formação Discursiva que ao se identificar o constitui enquanto

sujeito. Por conseguinte, ele simula sem se dar conta para que seu discurso apareça

como único. Esse processo é o que Pêcheux (1990) assenta como forma-sujeito, em que

realiza a incorporação - dissimulação dos elementos discursivos, mesmo que de maneira

imaginária, visando ao efeito de unicidade.

Isso é o que acontece com os professores indígenas durante o processo seletivo, sujeitos

do discurso sobre educação escolar, via forma-sujeito eles vão até ao espaço em que

circulam esses saberes científicos, se apropriam desses saberes, buscando sempre

dialogar com a mesma Formação Discursiva, materializando, assim, o discurso que está

na ordem, ou seja, o que pode ser dito dentro daquela conjuntura; é pois ,quando

acontece essa identificação do sujeito enunciador com o sujeito do saber que, aí se

produz o sentido.

A mesma forma-sujeito do discurso sobre educação escolar pode, ao materializar esse

saber, ocupar posições distintas dentro do mesmo discurso, ora com o saber considerado

científico, pois visa ao contexto acadêmico, assim, concordando sempre com o que

julga ser o que o outro quer ouvir, ora na posição contrária ao enfatizar qual o modelo

de educação que almeja.

É diante dessa representação da realidade, que é transmitida pelo discurso, de uma

educação capaz de resolver todos os problemas sociais, que transita o sujeito indígena, o

qual mediante a simulação pode aplacar o sentimento de não ser reconhecido, não se

sentir pertencente a um determinado grupo social, dessa forma, é pelo simulacro que se

constitui o sujeito que deseja ser.

Vale lembrar que o lugar que o sujeito ocupa na sociedade é decisivo no seu dizer, por

isso o indígena, ao se referir à educação escolar, se apoia em textos oficiais, como o

RCNEI, a Constituição Federal, entre outros, na tentativa incessante de se identificar

com determinados saberes, se inscrevendo em uma Formação Discursiva, com o

objetivo de passar a ocupar, não mais o lugar de sujeito empírico, sem voz, mas sim o

lugar de sujeito do discurso.

1. CONFINAMENTO E RESISTÊNCIA

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Quem está submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso, retoma por sua

conta as limitações do poder; fá-las funcionar espontaneamente sobre si mesmo;

inscreve em si a relação de poder na qual ele desempenha simultaneamente os

dois papeis; torna-se o princípio da sua própria sujeição. (FOULCAULT, 2005,

p. 168)

O discurso como complexo social deve ser compreendido como uma junção entre

linguística e contexto sócio-histórico visto que é essa exterioridade a qual permite o que

pode e deve ser dito e, principalmente, que produz o efeito de sentido de acordo com as

condições de produção.

Dessa forma para compreender os discursos da atualidade em relação à educação

escolar para a população indígena, torna-se necessária uma retomada à história

construída em torno da questão. O ideal seria poder retomar essa história a partir do

ponto de vista de ambas as partes envolvidas, porém, em se tratando de luta de classes

em que as relações se dão entre “descobridor e descoberto”, “civilizado e selvagem”, as

mesmas não acontecem de maneia tranquila; a história considerada como digna de

sistematização e ocupação em lugares de destaques, como nos documentos oficiais, é a

história a partir dos relatos do “civilizado”. O intercâmbio nessa situação não acontece,

pois o outro, o diferente, sempre foi/é representado de forma pejorativa, não humana,

não normal, assim não há troca, precisa ser excluído, silenciado, apartado do nós.

Nessa direção, o que se tem, também, sobre a história da educação voltada aos

indígenas é decorrente da concepção de educação do não índio. Logo, durante todo

processo histórico, desde a colônia, a organização da educação escolar voltada aos

indígenas serviu como instrumento de imposição, seja de valores, crenças, mas,

principalmente, de negação de suas identidades.

Os instrumentos de imposição utilizados pelo Estado, colonizadores e missionários

iniciaram em 1549 com a chegada do primeiro governador-geral Tomé de Souza ao

território nacional, juntamente com os jesuítas, os quais tinham como líder, Manuel de

Nóbrega. A história ainda nos afirma que dentre os principais objetivos para a

colonização estava a expansão da fé católica, ato que se concretizava por meio da

catequese.

Assim, a catequização realizada a partir da educação formal, constituía barreiras no

sentido de invisibilizar os valores indígenas, visto pelos europeus como não adequados,

negativos, fomentando, assim, espaços para a implementação de outros valores,

considerados positivos. Essa educação formal desestabilizava todo pilar de sustentação

da cultura indígena, pois tanto a língua, quanto a religião são os alicerces dessa cultura e

passaram a ser desqualificadas. Nesse caminho, Mariani aponta que:

ao se impor a língua portuguesa para os índios, está se impondo também

uma língua com uma memória outra: a do português cristão submisso ao

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Rei. Ensinar português aos índios objetivando a catequese é silenciar a

língua e a memória de outros povos. Assim, no silêncio imposto pela

colonização, a imposição de uma língua camufla a heterogeneidade e

contribui para a construção de um efeito homogeneizador que repercute

ainda hoje no modo como se concebe a língua nacional no Brasil.

(MARIANI, 2004, p. 96, grifos nossos).

Logo, as ações missionárias centravam-se na conversão ao cristianismo e na

pacificação, pois era preciso tornar os índios dóceis para que pudessem aceitar as ordens

de desenvolvimento do trabalho braçal, dessa forma os discursos de inferioridade

cumpriam o papel de silenciar essa população, fazendo com que acreditasse apenas nas

vontades do colonizador, como sugere a narrativa de um professor1 indígena de

Dourados/ MS.

[SD-1] Antes da chegada do Europeus aqui no continente Americano. A educação

indígena eram diferente dos europeus. Depois da chegada dos colonizador mudou esse

sistema, colonizador fez colégio para alfabetizar, catequizar e ensinar a cultura dos

europeus. Aprender a falar a língua do colonizador e converter índios para á igreja

católico. Ser como branco. Que objetivo o colonizador fez colégio para os índios, mudar

cultura deles, transformar como branco, negar suas maneira de ser, deixar de ser índio.

Não estava a buscar o interesse dos índios mas sim dos brancos. (índio guarani).

O processo discursivo exposto pode ser interpretado a partir do conceito de Formação

Imaginária proposto por Michel Pêcheux (2001, p. 82) visto que é uma série de

formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem, cada um a si e ao

outro, a imagem que eles fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro.

Nesse Jogo de imagens são refletidas as imagens que se fazem do seu próprio lugar e do

lugar do outro. Logo, os discursos não se caracterizam por simples trocas de

informações entre A e B, mas em efeitos de sentidos entre seus interlocutores, que são

constituídos a partir das relações de poder inerentes aos seus lugares sociais.

E é nessa relação de poder que muitas ações direcionadas ao ensino para indígenas

foram empregadas. Assim, outros propósitos nessa direção de “atender” às

especificidades da comunidade indígena reaparecem, tanto no momento em que o

Estado busca sistematizar políticas indigenistas, quanto na sutileza de mascarar a real

situação ou, ainda, atenuar a imagem do país perante a sociedade mundial.

1Sequência discursiva é um recorte retirado de redações realizadas por professores indígenas participantes

do Processo Seletivo para a Licenciatura Intercultural Indígena de 2010, oferecido pela Universidade

Federal da Grande Dourados/UFGD. As referidas redações são parte dos arquivos documentais do Projeto

Investigações em Linguística Aplicada: entre Política Linguística à Educação Bilíngue – O caso dos

Tekohá Kuera no MS, aprovado e financiado pela CAPES/MEC/INEP por meio do edital destinado ao

Observatório da Educação Escolar Indígena, 2009. A fim de atender as prerrogativas éticas da pesquisa,

foram omitidas as identificações dos autores das redações.

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Um dos momentos na história em que se demonstra essa tentativa de buscar a prestação

de assistência aos indígenas foi a criação do Projeto SPI - Serviço de Proteção aos

Índios- em 1910, o qual nas colocações de Orlandi (1990, p.61),“(...) é, na verdade, um

serviço de controle do índio e de proteção ao branco, ou melhor, de alguns brancos”.

Contudo, sob os ideais positivistas, o referido projeto de integração desse índio à

sociedade nacional, tinha como base pacificá-lo e torná-lo civilizado, pois assim

atenderia a demanda da expansão capitalista uma vez que os índios eram vistos como

entrave para o desenvolvimento econômico e anteciparia uma questão que, segundo a

lógica positivista, a história inevitavelmente faria.

O processo de integração era realizado por meio do trabalho e da escola, entendidos

como mecanismos de disciplinarização, pois os índios eram “violentos”, “selvagens” e

precisavam ser “tratados”, enquanto o não índio só seria violento, caso houvesse

resistência. Ainda sobre os papeis atribuídos ao SPI, Orlandi (1990) defende que o

mesmo pode ser percebido como um programa de apagamento da população indígena,

pois tinha a função de:

(...)gerenciar os conflitos entre índios e brancos, dando ao branco o poder

de controle tento em sua dimensão efetiva quanto retórica, ou seja, a

função de dar sentido aos conflitos, ao contato etc. isso é: o branco é quem

possui esse saber e esse discurso. É ele que diz o que é o conflito e como

resolvê-lo. (ORLANDI, 1990, p. 63, grifos nossos)

Isso indica um processo de silenciamento dessa população, na/da história, pois só há

possibilidade de veiculação de um discurso, apenas uma versão da história e,

principalmente, de um sentido das representações de mundo.

Nesse caminhar, o discurso colonizador continua reproduzindo seus sentidos, os quais

não são fixos, pois estão atrelados às condições que lhes permitam suas

ressignificações, ou seja, se constituem sempre em relação a um já dito; são esses

discursos

Ainda sobre os posicionamentos do SPI, Segundo Gomes (1991, p.85), “(...)o índio era

digno de conviver na comunhão nacional, embora inferior culturalmente e é dever do

Estado dar-lhe condição de evoluir lentamente a um estágio superior, para daí se

integrar à nação”. É nesse momento que o índio passa a ter o direito de preservação de

suas tradições, segundo a concepção de política indigenista, em que o Estado fica

incumbido de lhe prestar proteção. Agora tudo relacionado ao índio, como educação

escolar, fica ordenado que seja realizado dentro das aldeias, com o objetivo maior de

fortalecer o convívio tribal. Entretanto, os interesses em atender ao campo econômico

eram visíveis na elaboração de políticas dirigidas à população indígena.

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O desenvolvimento econômico estava ameaçado pelos “selvagens”, era preciso criar

condições de ocupar as regiões consideradas “desabitadas”, assim era necessário

avançar, mesmo que de forma violenta, dependendo da reação dos não civilizados, pois

a violência só existiria caso houvesse resistência, o que justificaria o “crime”.

Apesar desse novo modelo de tutoria “humanista”, a qual tinha como base “tratar” o

índio que resistia às imposições, a mesma pode/deve ser entendida como reducionista

uma vez que aparenta contemplar a diversidade cultural desses povos e o extermínio

não explícito. Outro indício de reducionismo está na questão da língua, ou seja, do

ensino bilíngue que não era considerado, pois naquele momento histórico as autoridades

não entendiam essa questão como sendo de relevância frente ao número reduzido de

falantes por comunidades, assim não justificava a elaboração de materiais didáticos e a

preparação de professores para atenderem às mesmas, assim a escola se constitui como

mais um “componente no processo de silenciamento”.

Já com a criação da FUNAI - Fundação Nacional do Índio -, em 1967, o que era

desconsiderado passa a ser o cerne de uma nova política indigenista; se inicia uma etapa

de valorização da diversidade linguística dos indígenas e a utilização das línguas

indígenas no processo de alfabetização, juntamente ` indução para aquisição da língua

portuguesa.

Uma educação bilíngue era almejada no intuito de facilitar o processo de integração à

sociedade nacional, pois o ensino da língua materna era usado como ponte de transição

para o ensino da língua portuguesa, porém logo após aquisição dessa última não se

falava ou pouco se falava a língua materna.

Um dos grandes desafios da FUNAI em implantar a educação bilíngue foi a falta de

materiais sistematizados na língua indígena os quais viabilizassem esse ensino; o que

ocorreu foi que em 1970, com o auxílio do SIL - Summer Instituteof Linguistics-, que

contava com especialistas na área da linguística, capazes de apreender e descrever as

línguas indígenas, teve início a elaboração de gramáticas e cartilhas que permitiram a

preparação de docentes da FUNAI e missões religiosas para a alfabetização na língua.

Desse modo, o Estado passa a financiar essa educação bilíngue desenvolvida pelo SIL e

juntamente repassa as responsabilidades de toda educação escolar indígena também a

esse órgão.

A partir da Constituição de 1988 foram previstas garantias aos indígenas referentes à

educação escolar específica e diferenciada, assim, nos artigos 210, 231 e 232 são

assegurados direitos vinculados às especificidades dos povos indígenas, como a garantia

de utilização de línguas maternas e processos próprios de aprendizagem pelas

comunidades indígenas (§ 2º do art. 210); o reconhecimento da organização social,

costumes, línguas, crenças e tradições dos índios bem como os direitos originários sobre

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as terras que tradicionalmente ocupam (art. 231),além da legitimidade jurídica dos

índios e suas comunidades como defensores de seus direitos e interesses (art. 232).

Por esse viés, o que era proibido passa a ser objeto central das políticas para os povos

indígenas. Nesse sentido, o Estado, agora, busca desempenhar o papel de orientador das

discussões no intuído de atender aos interesses dessa população. Logo, dentre as

atribuições do Estado, a mais significativa está em incentivar o uso das línguas

indígenas na escola, o que era proibido até 1988, esse talvez tenha sido, ou seja, um dos

maiores desafios da educação escolar para essa população, pois as mesmas prerrogativas

sistematizadas em documentos oficiais, não se efetivaram, ainda no dia a dia, no século

XXI, indicando assim, uma eficácia ideológica dos discursos dominantes.

Nessa perspectiva, "ideologia" pode ser entendida como um conjunto de representações

as quais predominam em uma determinada classe inserida na sociedade, assim, pelo ato

de existir várias classes, há várias ideologias em confronto. Portanto, a ideologia não é

a visão geral de toda uma sociedade, mas a visão de mundo de determinada classe e a

maneira como representa essa sociedade, o que desencadeia a ideia de a linguagem ser

imposta pela ideologia, pois não há uma relação linear entre as representações e a

língua, ficando a cargo das condições de produção essa definição.

Nesse sentido, as condições de produção (CP) entendidas como um complexo de

relações sócio históricas determinantes das formações sociais estão atreladas à

ideologia, ou seja, às lutas de classe. Logo, toda representação de valores e crenças de

um sujeito são resultantes desse embate ideológico de um contexto “x”. Assim, do

mesmo modo que essas representações possuem caráter fluido, de continum, as

condições de produção não são diferentes.

(...) as condições de produção do discurso não se mantêm; apenas os

enunciados se repetem parafrasticamente em um processo de reelaboração

(tenso, instável, dinâmico), à medida que se incorporam outros valores

determinados pelo próprio movimento e pelas condições materiais e

históricas. (RODRIGUES, 2007, p. 43).

Essa dinamicidade das CPs e o retorno de determinados enunciados são produtos da

história, assim sendo ao orientar que o discurso é efeito de sentidos entre os

interlocutores é possível apontar que não há comunicação por meio de códigos neutros;

a produção de sentido de um discurso passa por uma espécie de filtro das Formações

Ideológicas que determinam constantemente os dizeres. Nessa direção, Pêcheux indica

que:

Um dos aspectos materiais do que chamamos de materialidade ideológica...

as formações ideológicas comportam ... uma ou várias formações discursivas

interligadas que determinam o que pode e deve ser dito (articulado sob a

forma de uma arenga, um sermão, um panfleto, uma exposição) ... a partir de

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lugares no interior de um aparelho ideológico e inscrita numa relação de

classes ... toda formação discursiva deriva de condições de produção

específicas. (PÊCHEUX, 1990, p. 166-167).

Isso implica em dizer que as Formações Discursivas são produtos das Formações

Ideológicas, as quais só podem emergir a partir das relações entre as classes, portanto o

sujeito não é livre para escolher o que vai dizer, considerando que o enunciado é

determinado pela Formação Discursiva que ao se identificar o constitui enquanto

sujeito. Por conseguinte, ele simula sem se dar conta para que seu discurso apareça

como único. Esse processo é o que Pêcheux (1990) assenta como forma-sujeito, em que

realiza a incorporação - dissimulação dos elementos discursivos, mesmo que de maneira

imaginária, visando ao efeito de unicidade.

2. DISCURSO E RESISTÊNCIA

O direito deve ser visto como um procedimento de sujeição, que ele

desencadeia, e não como uma legitimidade a ser estabelecida. Para mim, o

problema é evitar a questão da soberania e da obediência dos indivíduos que

lhe são submetidos e fazer aparecer em seu lugar o problema da dominação

e da sujeição. (FOUCAULT, 2009, p.182).

Ainda sob a perspectiva inerente à relação de poder, exercida entre os protagonistas

sociais e, principalmente, considerando a institucionalização de verdades, nessa seção

discorreremos a respeito da relação entre os discursos jurídicos e o modelo de educação

escolar indígena.

Aqui vale destacar que a abordagem sobre o conceito de poder se instaura nas

orientações de Foucault, dessa forma, transitaremos entre as duas posições ocupadas

pela conceituação de poder defendida pelo autor: o conceito de poder, ora poderá, então,

se relacionar ao saber, vinculado a um saber/verdade, ora, como prática social, ou seja,

micro - poderes exercidos por várias práticas sociais.

Nessa direção, considerando as práticas jurídicas como exercícios de poder e como

essas práticas veiculam uma vontade de verdade, as SDs analisadas nessa seção vão

evidenciar como as “verdades” se materializam nos discursos dos professores indígenas.

Vamos a elas:

[SD-2] Educação, de acordo com a constituição Federal da Lei de 1988 artigo 231 e

232, a educação para nós povo indígena se tornou muito mais ampla e exigida como

um ensino diferenciado e de qualidade. Na minha aldeia educação escolar por anos

anteriores fez muita falta, pois não se ensinava de acordo como ensino próprio do nosso

povo Guarani Kaiowá que foi se deixando, deichando até mesmo quase sendo

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esquecido. Mas com a Constituição começou ter ensino diferenciado, conhecimento

intercultural do povo Brasileiro.

Nessa SD o sujeito indígena é norteado pelo já dito jurídico da Constituição Federal de

1988, nos artigos 231 e 232. Isso nos indica que o saber jurídico é um saber-poder,

garantido aos enunciadores os quais possuem o conhecimento jurídico e exercem o

poder por meio da verdade jurídica. Logo, o discurso de Lei é entendido e reproduzido

como o ideal de educação escolar e, assim, se concretiza como “receitas” para uma

sociedade com base na teoria do direito.

Ora, essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão, apoia-se sobre um

suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um conjunto

de práticas..., ela também é reconduzida, mais profundamente sem dúvida, pelo modo

como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e

de certo modo atribuído. ... Penso, igualmente, na maneira como as práticas

econômicas, codificadas como preceitos ou receitas, eventualmente como moral,

procuraram, desde o século XVI, fundamentar-se, racionalizar-se e justificar-se a partir

de uma teoria das riquezas e da produção; penso ainda na maneira como um conjunto

tão prescritivo como o sistema penal procurou seus suportes ou sua justificação,

primeiro, é certo, em uma teoria do direito, depois, a partir do século XIX, em um saber

sociológico, psicológico, médico, psiquiátrico: como se a própria palavra da lei não

pudesse mais ser autorizada, em nossa sociedade, senão por um discurso de verdade

(FOUCAULT, 2009, p.17-19).

Percebemos que os preceitos para o funcionamento social são reforçados, como

explicitado no trecho, “Mas com a Constituição começou ter ensino diferenciado,

conhecimento intercultural do povo Brasileiro”, mesmo sendo contraditório à

realidade das escolas indígenas.

Isso porque, segundo a pesquisa de CANDADO (2015), em relação à educação escolar

indígena no município de Dourados, por mais que apresente alguns avanços, todas as

atividades, nesse sentido, têm se mostrado insuficientes para a efetivação de uma

educação escolar diferenciada e de qualidade, como se afirma acima na SD. O ponto

principal da não efetivação da Lei está exatamente na não contemplação da língua

materna indígena nos espaços escolares, nem falada, nem escrita.

Contudo, mais uma vez aqui é preciso destacar as condições de produção desse discurso

indígena, pois o mesmo está sendo avaliado por não índios, e principalmente, é preciso

relevar que o indígena almeja a um lugar que historicamente não é seu, nesse sentido,

mesmo percebendo as falhas das instituições jurídicas, é preciso afirmar que as mesmas

funcionam como segue na SD:

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[SD-3]. Até a década de 90 a educação indígena teve pouco avanço. Com a Lei da

constituição teve grandes melhoras, hoje a educação é globalizado com a educação

tradicional do nosso povo. Agora os educadores falam a língua indígena, facilitando o

ensino. O ensino bilíngue teve avanço, mas para uma educação voltado para a

comunidade indígena precisa construir juntos a maneira de ensinar, construindo

junto com lideranças.

A partir do conhecimento atual da realidade escolar indígena do município, é possível

afirmar que no trecho “hoje a educação é globalizado com a educação tradicional do

nosso povo” há uma vontade de verdade instituída legalmente.

Contudo, ao expor que há uma educação escolar em que o global e o tradicional se

articulam, se concretiza a eficácia ideológica de um intradiscurso legal no enunciado do

professor. Pela história da educação é possível inferir que essa relação do global e do

local é uma questão ainda com muitos desafios para se efetivar, por vários motivos,

porém o mais relevante é a falta de capacitação de professores para lidar com esse

“novo”.

Trazendo essa reflexão ao contexto indígena, isso se torna ainda mais complexo.

Primeiramente, por se tratar de uma cultura centrada na oralidade, logo, a cultura letrada

não possui o mesmo significado para os indígenas. Outra questão, tão relevante quanto a

primeira, são os desafios para trazer esse “tradicional” para escola.

Colocamos como desafio visto o grande conflito religioso existente nas aldeias

indígenas, pois a presença das igrejas evangélicas não permite essa articulação. Nessa

direção, o tradicional, o sagrado para o indígena é visto como profano, “coisas do

demônio”, não há diálogo nessa questão. Assim, não há avanço, não há uma educação

bilíngue, considerando que a língua indígena possui relação intrínseca com as crenças.

A língua não é apenas comunicação, mas sim ligação com o divino, dessa forma falar a

língua indígena é também ressaltar suas crenças. Assim, no trecho “mas para uma

educação voltado para a comunidade indígena precisa construir juntos a maneira de

ensinar”, o que foi afirmado anteriormente se desfaz, ratificando o proposto por

Pêcheux (1995) em seu texto, “ Só há causa naquilo que falha”, ou seja, a língua

“manca” e é nesse momento que o sujeito se coloca diante dos acontecimentos.

Logo, por mais que o sujeito tente sustentar um discurso filiado à formação discursiva

jurídica, há um momento que ele falha, pois entende que não há educação escolar

indígena desvinculada do tradicional, da língua, das crenças.

Para a Análise do Discurso pechetiana há um já dito que sustenta todo o dizível, diante

disso o sujeito indígena diz o que o outro quer ouvir, contudo, por meio da linguagem

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não consegue esconder sua resistência ao que está imposto, visto ser um sujeito

constituído na e pela linguagem, assim é um sujeito divido.

E é assim que a discussão sobre a questão da educação escolar indígena produz

significados sustentados em um imaginário histórico que confirma o trabalho da

memória discursiva na produção dos efeitos de sentidos. Isso porque, como indica

Mariani (2003), a memória histórica possui o papel de fixar um sentido sobre os demais.

Assim, permite a homogeneização das representações sociais. Nessa direção, Pêcheux

indica que:

A memória discursiva seria aquilo que, em face de um texto que surge como

acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais

tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos

transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em

relação ao próprio legível.” (PÊCHEUX, 1999, p. 52).

Isso implica em apontar que todo discurso se constitui a partir de uma memória e do

esquecimento de outros discursos. Logo, a homogeneização das representações sociais é

naturalizada. No caso da educação escolar indígena é preciso evidenciar como os

discursos inerentes à mesma emergiram e ainda permanecem produzindo sentidos.

[SD-4]. Antigamente os indígenas não se preocupavam com a educação dos brancos.

Não tinham a necessidade de serem instruídos através de escola e universidades. (índio

guarani).

O enunciado explicita a questão dos deslizamentos de sentidos, pois a construção “não

se preocupavam com a educação”, adquiriu outros sentidos, diante das condições sociais

em que vivem os índios na atualidade, assim esse “não se preocupar” perdeu espaço

para, ou outros efeitos de sentido como, “desinteressado, que não se esforça”. Ele indica

que não havia essa necessidade de instrução acadêmica, pois tinham outros recursos

suficientes para seu modelo de ensino/aprendizagem, contudo, o que temos

discursivamente nesse sentido se reduz somente à sentença de que os índios não são

capazes.

Isso em nenhum momento diminui a eficácia dos discursos de imposição, mas permite

perceber as brechas que possibilitam ao sujeito desidentificar-se às formações

discursivas que determinam o que pode e deve ser dito.

é porque o ritual é sujeito a falhas que o sujeito pode se contra -identificar

com os saberes de sua formação discursiva e passar a questioná-los. Da

mesma forma, é porque o ritual está sujeito a falhas que o sujeito do discurso

pode desidentificar-se com a FD em que estava inscrito para identificar-se

com outra FD. (INDURSKY, 1997 – 2000, p. 9-10).

O que a autora propõe é que o ritual instituído por determinadas FDs não se configura

apenas por discursos semelhantes, os mesmos podem ser contraditórios. Por mais que

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isso não ocorra de forma consciente, ou seja, ao se desidentificar de uma FD, e se inserir

em outra, isso não acontece automaticamente, nesse processo de transição os resquícios

são inerentes, permitindo erupções de acordo com as condições de produção. E assim,

por mais que o sujeito não partilhe totalmente de uma FD, ele pode utilizar-se da

mesma, como na SD abaixo.

[SD-5] A constituição defendeu a escola indígena, deve preservar e conservar cultura,

língua, crenças e tradições e para o seu patrimônio e ter parcerias com demais órgão

público para as escolas indígenas cresça com ensino de qualidade. Aí tem o RCNEI que

diz como educação indígena precisa ser. Então somo cidadão brasileiro querem o ser

tratado de acordo com a Lei manda, com igualdade ai teremos educação mais

avançada.

O que se depreende da SD é o reflexo do discurso VERDADEIRO, herança da

modernidade, onde os dizeres foram estabelecidos a partir de um saber instituído pela

Ciência, distinguindo o que deve ou não, ser verdade. “(...) as grandes mutações

científicas podem talvez ser lidas, às vezes, como consequências de uma descoberta,

mas podem também ser lidas como a aparição de novas formas na vontade de verdade”.

(Foucault, 2005, p,16).

A premissa jurídica da Constituição Brasileira no Art. 5º institui que “Todos são iguais

perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos

estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à

igualdade, à segurança e à propriedade. ” e isso se articula de forma clara com o

enunciado indígena: “Então somo cidadão brasileiro queremo ser tratado de acordo

com a Lei manda, com igualdade ai teremos educação mais avançada”.

Ao analisar, não somente a conjuntura atual da comunidade indígena, mas todo o

processo histórico desse povo, afirmar que se tem uma Lei que os ampare é,

minimamente, uma discrepância. Enumeremos pela sequência indicada pela referida

Lei: direito à vida; aqui podemos indicar a pesquisa divulgada pelo Conselho

Indigenista Missionário (CMI), com o relatório de Violência Contra os Povos Indígenas

no Brasil – dados de 2015-, indicando o Estado do MS como o mais violento, onde

foram registrados 51 casos de violência, sendo 25 assassinatos de índios.

A partir dessas pontuações podemos responder ao quesito referente ao direito à

segurança. Na sequência, destacamos a questão da Liberdade: aqui podemos pontuar o

processo de confinamento iniciado ainda durante a atuação do Serviço de Proteção do

Índio (SPI), em 1910 e que permanece até o momento. No quesito “igualdade” as

indicações anteriores as sequentes são suficientes para responder. Em se tratando ao

direito à propriedade os noticiários das mídias locais são expressivos e reveladores:

“Barraco é destruído em reintegração de posse de área ocupada por indígenas”.

(douradosnews, 06/07/2016).

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O exposto até aqui busca evidenciar a eficácia dos discursos vistos como verdades, a

procura por efetivação das mesmas, e, principalmente, como são reproduzidos até

mesmo por aqueles que não são favorecidos por esses discursos. Nessa seção, ainda é

possível perceber como os discursos estão atrelados em FDs, e, por conseguinte, como

essas FDs são porosas, passivas de falhas, como toda atividade realizada pela

linguagem.

Isso nos faz perceber a AD como uma possibilidade de transitar por caminhos não

tranquilos, não estáveis, mas necessários para se compreender os ditos e não ditos.

Perceber que o que está sendo dito só é possível porque há um já lá, e que há uma

relação entre Formação Ideológica e Formação Discursiva e que o produto dessa relação

se efetiva nas Formações Discursivas as quais determinam o que pode e deve ser dito,

interpelando o indivíduo em sujeito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As considerações até aqui nos indicam que estamos diante de sujeitos marginalizados,

silenciados historicamente, contudo, considerando, ainda, as organizações e

reivindicações da comunidade indígena, não só em busca por uma educação escolar de

acordo com sua realidade, mas também em busca relacionada às questões territoriais, é

possível afirmar que há resistência e deslizamento de sentidos.

Contudo, de acordo com a AD, para que os sentidos se configurem há necessidade de

uma relação entre sujeito, forma-sujeito e, em especial, a identificação desse sujeito à

determinada formação discursiva. O sujeito que enuncia é determinado pelo lugar do

qual está inserido, pela história que o atravessa e pela exterioridade que o cerca. É a

partir dessa configuração de um sujeito dividido que os sentidos escapam, deslizam e

sempre podem se tornar outro. Porém, é preciso ressaltar que essa relação se faz de

forma inconsciente, ou seja, o sujeito que enuncia não percebe toda essa rede que

compõe seu discurso, como indica Pêcheux (1988 [1975], p.163) “(...)o sujeito se

constitui pelo ‘esquecimento’ daquilo que o determina”.

Por consequência, pode-se inferir que tanto o sujeito, quanto a forma-sujeito indígena

são processos constituídos na e pela história. As representações são projeções feitas

pelos protagonistas na e pela história as quais determinam o lugar de A e B. isso é o que

Pêcheux (1995) denomina como formação imaginária que está relacionada a outras

categorias como antecipação, relação de força e relação de sentido, todas manifestas

durante o processo discursivo.

Assim, a antecipação propicia idealizar a figura mental do interlocutor, logo se

configura a representação imaginária, a qual determina as condições de produção

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indicando as estratégias discursivas utilizadas. Diante dos lugares sociais ocupados

pelos interlocutores são estabelecidas as relações de forças, ou seja, pelo menos em

teoria, o sujeito que ocupa um lugar social de maior prestígio e poder, possui maior

força no processo discursivo. No que se refere às relações de sentido, essas se

estabelecem nas interdiscursividades com outros textos visto que não há discurso

isolado.

Nesse sentido, é preciso compreender os desencontros de sentidos que marcaram a

educação escolar voltada à sociedade de cultural oral e, ainda, pôde-se perceber o início

de todo o processo de silenciamento de um povo por meio da não valorização de sua

língua. A história nos indica a falta de sensibilidade do homem ao impor outra cultura,

outras crenças, outra língua a outro homem: tirar a língua do povo guarani/kaiowá foi e

é tirar a alma desse povo, pois o conceito de língua para eles vai além de processo de

comunicação, é a ligação com o divino, a relação com a mãe terra, com a natureza.

Assim, as análises sinalizam para uma não estabilização dos discursos, por mais que aja

uma ideologia a qual procura a cristalização das imagens e lugares sociais, é preciso

considerar que os sujeitos dos discursos são sujeitos da linguagem, logo são constituídos

por contradições e falhas.

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*Pós Doutora – Professora da UNIGRAN-Centro Universitário da Grande Dourados-.

**Pós Doutor –Professor da UEMS-Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul-.

***Doutoranda- UNIOESTE -Universidade Estadual do oeste do Paraná-.