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1 ] A PRAÇA DO DIABO DIVINO

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A PRAÇA DO D IABO DIV INO

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A PRAÇA DO DIABO

DIVINO

c u r i t i b a

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GUIDO V IARO

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Capa

“Bruxaria” de Guido Viaro (1897 - 1971)

Foto capa

Juliano Sandrini

Projeto gráfico e diagramação

Alessandra Nogueira Saltori

Revisão

Marisa Karam Saltori

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)BIBLIOTECÁRIA RESPONSÁVEL: MARA REJANE VICENTE TEIXEIRA

Viaro, Guido, 1968A Praça do Diabo Divino / Guido Viaro. --

Curitiba : Univer Cidade, 2007p. ; 21 cm

ISBN 978-85-86861-13-0

1. Ficção brasileira -- Paraná. I. Título.

CDD (21ª ed.)B869.35

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A PRAÇA DO DIABO

DIVINO

GUIDO V IARO

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Acordou com a certeza na cabeça. Sonhos ajudaram-no?Idéias que vinham se acumulando há anos: bobagens,invenções, manias, modismo, desejo secreto de ser alguémdiferente. Nem ele, nem eu sabemos o quanto de cada coisaajudava a destruir as dúvidas que ele não tinha.

Mergulho na piscina com os olhos dizendo que ela estácheia d’água, quem acreditará se alguém disser que estávazia? Esse estado de ausência de dúvidas... eu não sei, elenem quer saber.

Amoras vermelhas manchando os dedos durante o caféda manhã, leite branco. Os farelos de pão causam nele umleve desconforto, deve ter feito alguma relação mental comfatos que eu não conheço. Mas a omelete e o suco de laranjalhe fazem bem, sente-se como um cantil cheio d’água,gritando seus barulhos de alegria por estar pleno.

Olhos mostram que esperanças também foram enchidas,a comida ajudou a trazer suas certezas para o mundo material.Eu... eu não sei.

Ele quer encontrar...para quê? Por quê? O que fará seencontrar? É... quando um homem se apaixona por uma idéia,esqueçam as perguntas e as respostas que já existem, asque valem são só as feitas pela idéia amada.

E agora sou eu quem fica melancólico com alguma coisada mesa... as gotas vermelhas de amora no prato, uma natoalha, outra na mão dele... de que parte de mim é que viráessa tristeza?

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Enquanto limpa a boca seus olhos estão ainda mais vivos,o dia se iniciando, a imensa tristeza pronta para ser postaem prática: olha para o mesmo quadro todas as manhãs,montanha com flores... uma bicicleta, ela não está no quadromas em mim, aquela montanha sempre me traz essa idéia.

Será possível que ele encontre o que vai sair para procurar?Pequenos atos de felicidade acompanham sua saída da sala.Nem amassou o guardanapo, como faz todos os dias.

Ei-lo na rua. Pára de caminhar, seus lábios sorriem, aesperança escorre por eles. Vai em direção à lata de lixo, dopróprio lixo. Revira tudo na calçada, examina cada ítem comose fosse parte de um quebra-cabeças. Uma hora depois juntatudo e coloca de novo no latão. Aquilo era apenas lixo.

Isso não o entristece, sua expressão continua sendo aquelade um homem que sabe que está cumprindo seu dever. Umpolicial que, para chegar no culpado, primeiro investiga milpistas falsas. Mas ele não era policial.

Atravessa a rua atento, muito mais atento do que o normal.Eu o acompanho, não sei exatamente porque, talvez tambémesteja sofrendo de falta de dúvidas, e tenha aceitado o fatode que de agora em diante terei de acompanhá-lo.

Ele olha para todos os lados, repara nas pessoas, noscartazes colados nos postes, passa os dedos sobre eles paraver se escondem alguma informação que esteja em alto-relevo.Sente a textura do cimento dos postes. Seus olhos sabemque sua tarefa está só começando.

Do bolso ele tira um pequeno gravador, liga-o para registraros sons a sua volta. Permanece com o braço estendido atéque a fita acabe. Deve estar sentindo dores agora, poismassageia o braço. Caminha um pouco e pára, só seus olhos

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se mexem agora, dão a volta completa dentro das órbitas.A ponta direita do lábio inferior virou para baixo, é o

primeiro leve sinal de desânimo, uma forte respirada e elecontinua a andar, lambe o dedo indicador e o levanta paraverificar a direção do vento. Procura modificar a distânciados passos alternando curtos e longos, agora só longos eagora só curtos. Um na diagonal para a direita e outro para aesquerda, no rosto uma expressão neutra de quem executauma tarefa.

Pára na frente de um ponto de ônibus, procurando nãoser notado, discretamente observa cada uma das oito pessoas,caminha de um lado para outro, depois de oito idas e vindasdá-se por satisfeito e vai para o fim da fila, agora tentaobservar o conjunto das oito pessoas . O ônibus chega e ospassageiros entram, ele os acompanha até a porta e nãoentra. O motorista olha-o sem perguntar nada, ele baixa osolhos. Parece que aquele olhar o perturbou.

Agora caminha decidido, olha para baixo, boca de levedesilusão, pára em frente a uma fonte e fica observando-a,alguns minutos já se passaram e ele parece que estáhipnotizado. Abaixa-se para observar de mais perto a água,que depois de jorrar, escorre pelos azulejos. A ponta dos lábiosvirada para cima: leve alegria, ou recordação boa, ouesperança renovada. Talvez um pouco de cada, ou nada disso,eu não sei.

Os dedos fazem várias experiências com a água e com atextura dos azulejos, a luz, que modifica-se, adiciona algumacoisa às experiências: o sólido-líqüido e o imaterial fazemsuas danças. Os olhos dele enchem-se de prazer por veremduas realidades tão aparentemente diferentes, entenderem-

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se tão bem. Os melhores instantes desde que ele acordou.Não sei o que ele está procurando. Também estou

descobrindo. A água e a luz... gostei da expressão no seurosto, talvez eu tenha tido a mesma enquanto o observava.

Ele levanta-se com os olhos ainda brilhantes e os dedosmolhados. Olha para cima, o céu não tem uma nuvem. Suaboca está curiosa, observa o sol mas ele lhe parece longe,não é nem parente distante daquele com o qual seus dedosbrincaram na água.

A boca mexeu-se em vão e ficou sem respostas, elecontinua a caminhar. O sinaleiro está aberto para os carros,ele interrompe a caminhada, a boca demonstra irritação, nemsinal dos brilhos que os olhos mostravam há pouco. Dá unstrês passos laterais para esperar o tempo passar. Os carrosparam e ele atravessa quase correndo.

Do outro lado da rua continua caminhando em ritmoacelerado, olhando para baixo e demonstrando impaciência.Reparo no poder que ele tem de me influenciar, pois eu tambémjá estou bem impaciente, ele passa por uma fonte onde o solderrete-se todo na água, mas nem percebe, segue reto.

A harmonia que também me tocou, quando ele brincoucom os dedos n’água e na luz, agora me parece uma coisadescartável. Acompanho seu ritmo seguro, o importante éser dedicado e caminhar em direção a um objetivo.

Por que eu tenho de ser assim ?Ele espera que um novo sinal se feche para atravessar

outra rua. Um carrinho de camelô vende toucas, luvas, bolsase chaveiros, o sinal fecha e ele continua ali de pé, encantadocom a combinação de cores. Disfarça para não atrair a atençãodo vendedor que viria lhe oferecer os produtos. Encontra um

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banco a uns cinco metros, e fica olhando de lá, o cor-de-rosachoque combinado com o verde-limão. O amarelo envolvidopelos vermelhos-sangue. O pano de fundo é o cinzento pintadocom faixas brancas.

Sentado no banco com os braços abertos sobre o encosto,ele sorri e balança a cabeça em sinal afirmativo. Respirafundo e volta a olhar para o céu. O vento empurra as primeirasnuvens que quebram um pouco a força direta da luz.

Alguém senta-se ao seu lado, ele imediatamente encolheos braços que estavam abertos. Vejo na sua boca, que eleaguarda alguns instantes para que não fique parecendo queele se levantou só porque o outro chegou. Observa a sola dosapato, não sei se finge ou se realmente encontrou algo deinteressante ali, porque suas sobrancelhas se contraem.

Foi o outro que se levantou antes dele, ele tira o sapatoesquerdo e apalpando com dois dedos, repara que é só umacamada finíssima de borracha que está impedindo que asola se fure. Recoloca o sapato e seu rosto parece matemática:quanto tempo o sapato durou , quanto custará um novo?

Agora está com um dos braços sobre o encosto do banco,o outro sobre o descanso do braço, ele moveu-se um poucopara o canto, para evitar o constrangimento de ter de semexer justamente quando uma outra pessoa chegue. O dedoindicador bate contra a madeira do encosto: um homemprático está nascendo. A língua sai para fora e fica no cantoda boca, um raciocínio lógico está acontecendo. Os olhosfixos no chão me dizem que o importante agora é oencadeamento de idéias e o resultado final delas.

Será que eu não poderia aproveitar esse instante para,digamos assim, ter também as minhas idéias?

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Tira do bolso a carteira e conta o dinheiro, levanta-se, osinal fechado para pedestres faz com que ele novamente tenhade esperar. Mas dessa vez ele espera sem demonstrarimpaciência. Seus olhos parecem em outro lugar, e o corpoaceita a espera que lhe é imposta.

Nunca o vi tão neutro desde o momento em que abriu osolhos hoje. Os músculos da face estão imóveis, os das pernassão ponteiros de relógio, decididos e regulares. Ele entra numaloja de sapatos.

Decido, enfim, ter minhas idéias. Vou acompanhá-lo aquide fora. Vejo-o entrando sem olhar os sapatos da vitrine.Ele conversa com um vendedor e aponta para o próprio pé.Depois senta-se numa cadeira e espera. O vendedor tira ossapatos da caixa e reparo que são iguais aos dele. Ovendedor quer colocar os novos no seus pés, mas ele faz osinal de não com as duas mãos e veste-os sozinho. Agoraele desaparece no interior da loja, enquanto isso aqui fora,eu aproveito e dou uma reparada nos sapatos das pessoasque passeiam pelas ruas.

Ele sai carregando uma sacola e calçando os sapatos novosque são iguais aos antigos. No canto dos lábios um levesorriso de satisfação, no canto dos olhos algo estranho, pareceque eles ficaram mais foscos. Passos mecânicos sempre domesmo tamanho.

Ele pára e senta-se num banco de praça, olhar num pontofixo, mas esse ponto não tem importância, seu olhar é ausente.De repente passa a olhar para os sapatos novos que comprou.Examina as solas, o couro, refaz o laço, apalpa, sente atextura. Mexe o pé dentro do sapato.

Parece que é confortável, mas seu rosto não me diz nada.

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O homem tem seus sapatos novos e ponto final, eu estouaqui olhando-o. Não seria a hora de fazer algumas perguntas?

Ele levanta-se, a expressão de seu rosto muda. Pareceque esse homem perdeu-se, a testa franzida indica dúvida,olha para os lados procurando uma direção, são muitas asque se mostram a ele. Volta a sentar-se, a mão direitaacariciando o sapato esquerdo, mas a cabeça e os olhos ágeisexaminando o que o mundo lhe oferece.

Uma força vibrante vai nascendo do fundo de suas pupilase espalhando-se por seu rosto. Ele está carregando suasbaterias, a cabeça já não se mexe tanto, parece que jáselecionou alguns caminhos possíveis. O pescoço baixa, masos olhos não, ele assume um aspecto de serpente prontapara o bote.

Salta do banco com passos decididos. Caminha até amesma fonte que há algum tempo atrás viu a luz dançar,aproxima-se dela, mas desta vez parece não querer contatocom a água. No bolso procura alguma coisa, acha uma moedaque joga na fonte, dá as costas e agora dá cinco grandespassos e pára. Tira do bolso outra moeda e a colocaexatamente no lugar onde parou. Mais três passos lateraiscom o máximo de abertura de perna que consegue, e outramoeda no exato lugar onde parou.

Não entendo o que ele está fazendo, mas deve ter algumsentido, pois seus olhos voltaram a ter a mesma certeza quetinham quando ele acordou.

Ele procura no bolso e as moedas parecem que acabaram.Então apanha a mesma que tinha posto por último, marca olugar dela com um toco de cigarro que encontrou no chão, ecom mais três passos de um metro coloca a moedinha onde

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tinha parado. Agora caminha com passos normais, toma umadistância para conseguir enxergar as marcações que fez.

Parece satisfeito, agacha-se para observá-las melhor, poissão moedinhas de cinco centavos que ninguém enxerga, emesmo se enxergarem não se darão ao trabalho de se abaixarpara pegá-las. As duas que estão sobre o calçamento e maiso toco de cigarro ele consegue ver bem, a que foi jogadadentro da fonte ele sabe que está lá e a imagina lá, pois como dedo indicador ele faz um sinal de algo saltando e caindodentro d’água.

Sorri, procura um banco para sentar-se e observar, abreos dois braços sobre o encosto do banco. Olha, imagina, vêas pessoas passando pelo meio do sistema que acabou deinventar. Não entendo o que pretende com isso, mas reparoque ele fica bastante excitado quando alguém se aproximade seus marcos, e mais ainda quando alguém passa por cimade algum deles.

Se tivesse chegado o momento de eu ter idéias, eu diriaque o que mais interessa a ele é, primeiro: o movimento daspessoas, segundo: as pessoas, e terceiro: os lugares marcadosno chão. As moedas em si e o toco de cigarro, acho que paraele não tem nenhum valor. Vejo como observa o jeito que aspessoas caminham, prevendo com o dedo indicador oitinerário que farão. Pequenos movimentos de bocademonstrando alegria quando suas previsões se realizam.Estalos de língua quando tomam um caminho que não eraprevisto.

Os acertos acabam sendo em número muito parecido comos erros. Mas isso não o abate e ele parece comemorar maisas vitórias do que lamentar-se pelas derrotas. Corre até uma

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banca de jornais e vejo-o saindo dela com uma bala na bocae a mão cheia de novas moedinhas. Seu rosto é o de umacriança que acabou de ganhar um brinquedo novo.

Quatro novas marcações são feitas, ele corre depressapara o seu banco para observar os resultados, depois de algumtempo repara que não adiantou aumentar o número demarcações, o percentual de sucessos e fracassos permaneceestável. Mais uma tentativa, outra bala comprada com nota,outras moedas colocadas em lugares estratégicos e adecepção: os números não mudam. Com raiva desfaz o laçodo sapato que tinha feito com tanto cuidado.

De laço desamarrado passa chutando as moedas e o tocode cigarro, sem se preocupar onde vão parar. Esvazia o jarroda ilusão nas águas da cidade, caminha pisando no cadarço.Passos estranhos de homem ferido.

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Eu durmo e acordo. Noite sem sonhos. Recobro aconsciência junto com ele. Ainda está mal humorado por causade ontem. E eu não sei... ainda acho que chegará a hora deexigir respostas para as minhas dúvidas.

Ele acordou mas não se mexeu, apenas abriu os olhos econtemplou o teto. Agora levanta-se e veste-se, vai aobanheiro, eu espero do lado de fora. O café da manhã oespera, mas é bem diferente daquele do dia de ontem. Hojeseu corpo inteiro parece dizer “onde foi que errei?”. Seusgestos são curtos e rápidos, gestos mais demorados poderiamdistrair o pensamento.

A língua mexe-se frenética dentro da boca, da mesmamaneira que seu pensamento deve estar tentando varrer amaior área possível. Minha curiosidade aumenta da mesmaforma que minhas dúvidas, será que eu não estou apenasperdendo meu tempo acompanhando esse homem?

Ele está se preparando para sair. Apanha bloco, caneta,várias moedas que estavam guardadas em uma fruteira, pegatambém uns pedaços de giz, um isqueiro, uma pequenalanterna elétrica e um outro caderno cheio de anotações. Colocatudo dentro de uma pequena mochila, a põe nas costas e sai.

O fato de sair assim todo equipado parece lhe encher deconfiança, e acho que talvez ele atribua a falta de sucessopelo fato de ontem ter saído sem nada.

Passa pelo próprio lixo sem reparar na sua existência,segue decidido pelo caminho oposto ao que pegou ontem.No ponto de ônibus apenas espera o ônibus. Não repara em

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nada e seus olhos são exatamente os mesmos dos das outraspessoas da fila.

É o transporte o que ele busca, e o ônibus roda, primeirocheio, depois meio vazio, finalmente restam ele o motoristae o cobrador... ah, eu já ia me esquecendo de mim mesmo.É o ponto final, uma rua sem nada de especial na periferiada cidade, com suas meias-águas, seu anti-pó, alguns terrenosbaldios, cachorros latindo e crianças passeando de bicicleta.

Ele parece saber exatamente para onde está indo, mas aomesmo tempo tenho a sensação de que esse exatamentepode ser qualquer lugar. Caminha três quadras, vira à direita,depois caminha mais três e vira à esquerda, agora diminui avelocidade e a certeza, a mão direita coçando o queixo.

Olha para o céu e para o relógio. Tira a mochila das costas,abre-a, e coloca uma moeda bem no meio de um terrenobaldio coberto de mato, ela desaparece no meio da vegetação.Mas ele parece contente, o fato de não a enxergar não pareceimportante.

Recoloca a mochila nas costas e recomeça a caminhar,as ruas do bairro são todas muito parecidas, mas ele seguedecidido parecendo conhecer cada centímetro. Já deve terandado uns quarenta minutos sem parar. Estamos bem longedo lugar onde ele deixou a moeda.

Ele pára e nós recobramos nosso fôlego. Sem pedir licençabebe água da torneira do jardim de uma casa que não temmuro. Eu o observo, não tenho sede. Ele dá mais algunspassos, vasculha a mochila e tira de lá o caderno que estavacheio de anotações. Anota rapidamente alguma coisa.

Parece que ele não quer que ninguém perceba, mas eureparei que quando ele recolocou o caderno na mochila, sua

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mão escondia entre os dedos uma moeda. Mas não háninguém na rua, de quem ele teria receio? Vejo seu rosto,nele está escrito que não quer que vejam o que está fazendo,boca levemente aberta e a pontinha da língua para fora.

Começa a correr como se estivesse perdendo o ônibus,mas eu vi, ele aproveitou-se dos movimentos de braço dacorrida para, disfarçadamente, deixar cair uma moeda narua. Continuou correndo e nem olhou para trás. Dobrou trêsesquinas e correu até perder o fôlego.

Dessa moeda ele só tem uma idéia aproximada de sualocalização. Mesmo assim, tira o caderno de anotações ereparo que faz um X. As idéias começam a me cutucar, essaespécie de marcação que ele se esforça tanto em fazer, nãoprecisa estar visível, e nem ao menos quem a fez, precisasaber exatamente o lugar onde foi feita. Talvez o X que acaboude fazer no caderno seja um registro de uma dúvida. Oproblema é, se eu raciocino, acabo diminuindo minhacapacidade de observador e descritor dos acontecimentos...mas as coisas não param de acontecer.

Com o fôlego recobrado, ele caminha agora despreocu-padamente, seus passos me dizem que, pelo menos, a partemais importante de sua missão foi realizada, entretanto aindafalta alguma coisa, a sobremesa do jantar. Sua boca temalgo da salivação pela espera do moranguinho com nata.

Ele pega outro ônibus, não é o que o levará para suacasa, está indo para mais longe, as casas vão aumentandoos espaços entre elas e a paisagem vai ficando meio urbanae meio rural. Mas o ônibus está cheio, várias pessoas estãode pé. Ele está sentado, abre a mochila e tira de dentro váriasmoedas, desta vez não tenta escondê-las de ninguém, pelo

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contrário, começa a atirá-las, tenta acertar uma janelinha dooutro lado do ônibus, em cima da cabeça do cobrador. Erra aprimeira, que bate no vidro e cai no chão. Com o segundoarremesso errado atrai a atenção de todos os passageiros.No terceiro erro a moeda ricocheteia na janela e bate nonariz de uma senhora que o olha furiosa.

Ele parece nem notar os comentários e os olhares dereprovação. Na quarta tentativa ele acerta a janelinha e amoedinha voa para fora do ônibus. Era isso que ele queria,talvez tenha sido sua sobremesa. Puxa imediatamente acampainha para descer.

Caminha até encontrar uma área desocupada com matocrescido. Senta-se bem no meio do capinzal, coloca suamochila de lado e parece que está disposto a esperar. Nãosei o que poderia esperar, mas suas mãos apoiadas para tráse seu lábio mostrando resignação me informam que a esperaserá longa.

Acompanho-o. Duas horas depois, confesso que estouvivendo o pior momento desde quando acordamos ontem demanhã. Sinto-me inútil, minha curiosidade já não é tãogrande, mas minha insatisfação é enorme. Como voudescrever um homem que espera, especialmente um comoele, que pode esperar o que nunca virá, ou que pode até nemestar esperando, apenas parou de agir. Direi que ele moveu aperna para cá, o braço para lá, que piscou tantas vezes, quesuspirou, mas que continua esperando. A uma certa alturanão terei mais nada a descrever, e terei de começar a inventarhistórias para contar.

Uma esperança no ar, ele começa a vasculhar a mochila.A noite chegou e é escura. Ele pega um objeto, é o isqueiro,

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ele o acende. Em seguida deita-se na relva que está molhadapor causa do sereno. Deitado de barriga para cima, com osolhos fixos no céu escuro sem estrelas, levanta os braçospara cima até a altura da cabeça e acende o isqueiro, acende-o e apaga-o.

Eu poderia dizer que ele estava criando suas própriasestrelas. Sorriu como em nenhum instante anterior, era umsorriso de quem está sendo acolhido. Mas talvez eu estejaenganado e ele não esteja nem preocupado com estrelas.Talvez ele esteja apenas esperando por um beijo de boa noite.

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Parece que as coisas estão sendo estabelecidas.Solidificam-se desta forma: eu devo observar as atitudes delee descrevê-las. Mas por que e para quem? E quem é essehomem, afinal de contas?

O que iniciou-se anteontem pela manhã de maneira natu-ral, foi enrigecendo-se, até hoje parecer que assim semprefoi. Mas minhas dúvidas aumentam, e são como rachadurasnessa estrutura de concreto.

O que é sólido deve continuar sendo, até que um dia nãoo seja mais, enquanto isso as rachaduras vão fazendo seutrabalho. Uma delas me diz o óbvio “este homem estáprocurando alguma coisa”.

Nova manhã, novo café da manhã, ônibus, nada de es-pecial, nenhum sinal, nenhuma marcação, um homem nor-mal em um dia comum. Não carrega nenhum apetrecho hoje,desce no centro da cidade e caminha.

Talvez tenha desistido de encontrar o que procurava, outalvez seja um dia de folga nessa tentativa. Ele entra numparque de diversões, é de manhã e o parque está praticamentevazio. Mudo de opinião: parece que depois de entrar no parqueele sabe exatamente para onde está indo. Caminha decididoaté um brinquedo que chama-se “Caminhão de bombeiros”.São uns pequenos trilhos de uns quinze metros com unscaminhõezinhos vermelhos, a criança deve subir ali e andarnesses veículos até umas casinhas que têm no alto umasluzes acesas imitando um incêndio. Depois de percorrer opequeno trecho, deve-se disparar o canhãozinho de água

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contra a luz até que ela se apague. Durante todo o trajetouma música de ação acompanha o caminhãozinho, e quandofinalmente consegue-se apagar a luz, o que se escuta sãopalmas.

Ele chega e fica observando uma menina de cinco anosque faz o percurso junto com sua mãe. Na verdade observacom um interesse médio, como se aquilo fosse uma simplescuriosidade. Talvez eu tenha me enganado quando achei queele soubesse exatamente onde estava indo dentro do parque.

Mas de repente parece haver um problema com obrinquedo, o canhãozinho de água pára de funcionar e a luzque simula o incêndio apaga-se. A criança e a mãe saem dobrinquedo e dois técnicos começam a inspecioná-lo para veronde está o defeito.

É nesse instante que o homem modifica-se. Tira do bolsouma pequena câmera fotográfica, que eu nem tinha percebidoque ele tinha pego, e sem perder nenhum segundo, fotografao trabalho dos técnicos. Seu rosto denuncia seu medo deperder qualquer detalhe. Ele nem se preocupa em disfarçaro que faz e, para a estranheza dos técnicos, aproxima-sedeles para fotografar todos os mínimos detalhes. Fotografatambém, uma a uma, suas ferramentas.

Alguns minutos depois o brinquedo volta a funcionar. Ointeresse do homem desaparece na hora, ele senta-se numbanco para observar as mais de cem fotos que fez com seuaparelho digital. Parece contente com o resultado, sorri comocriança que ganhou presente.

Minhas dúvidas-rachaduras parecem se movimentar noconcreto-estabelecido: ele parece que sabia que aquelebrinquedo encrencaria naquele instante. Eu tinha achado-o

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tão despreocupado, que nem julguei importante mencionaras olhadas no relógio que ele dava a cada quinze minutos.Percebi que o que interessava mesmo não era o brinquedoem si, nem quem o estava usando, mas parece que o queera importante, era saber que ele iria quebrar entre tal e talhora, e documentar quais peças quebraram e o que foiutilizado para o conserto. Ele bem que poderia ter perguntadoaos operários, mas desde a manhã de anteontem não o vifalar com ninguém. Nem quando comprou seu sapato novoe eu o observei de fora da loja, só o que o vi fazer foi gesticularpara os vendedores.

Mas isso não vem ao caso, também não tenho certeza deque ele saberia que o brinquedo quebraria, mas se eurealmente tivesse, e se as fotos servissem para comprovaralguma teoria, começo a ficar bastante inclinado em acreditarque ele descobriria o que, como e onde haveria essa quebra,através das estranhas experiências que realizou nos últimosdois dias.

Esqueci de mencionar também sua expressão no exatomomento que o caminhãozinho de bombeiros quebrou, seusolhos arregalaram-se e sua boca abriu-se, numa demonstraçãode que alguma emoção forte estava acontecendo dentro dele.Emoção que ainda não tinha ficado bem claro se era positivaou negativa, mas que certamente era profunda.

Mais uma rachadura aparece no concreto duro em queestou me tornando: as coisas começam a se encaixar, essamáquina fotográfica que eu não sabia que estava carregando,sua tentativa, ontem, de correr para disfarçar onde jogaria amoeda. Esse homem sabe que eu o acompanho.

Me parece que quanto mais sólido um objetivo é, também

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mais frágil ele é, porque as forças internas, que mantém oobjeto unido, são menores do que as forças nascidas de suasrachaduras e que agem para destruí-lo.

Sou maior do que acho que sou. Mas mesmo assim nãotenho nenhuma resposta a dar. Observo, descrevo e duvido.

O que ele fará com aquelas fotos, elas poderão ser ofechamento do círculo, a razão pela qual ele colocou todasaquelas moedas, acendeu o isqueiro, e até a razão pela qualele chutou longe as moedas no primeiro dia, quando seusexperimentos não pareciam estar dando certo. Tudo aquilopode ter sido dissimulação. Sabendo que estava sendoobservado e, principalmente, que seus atos estavam sendodescritos, ele pode ter desejado esconder seu segredo, dandopistas falsas e camuflando as verdadeiras.

Outra possibilidade, ainda mais complicada e de maisdifícil comprovação: ele não era criador de nenhuma teoria,mas um instrumento, era um fusível numa vasta rede elétrica,agindo por impulsos energéticos. E essa grande rede deenergia é que o colocou no lugar e na hora em que o brinquedoiria falhar e o fez documentar o porquê da quebra.

O acompanho, ele segue a passos rápidos, sei perfeita-mente onde está indo... vai imprimir as fotos que tirou.Acertei. Eu o espero aqui do lado de fora, não sei porquemas não quero escutar o som de sua voz. Não sei porquetambém, mas acho que ele apenas gesticula e não fala nada.Daqui vejo seus braços se moverem mais do que onecessário... mas deve ser minha imaginação.

Uma meia hora depois ele sai com o envelope nas mãos.Olhos ansiosos e passos que querem chegar logo em casa.

Vai para o escritório, acende a lâmpada, examina-as uma

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a uma. Para mim elas não dizem nada. Fotos de fusíveis, decabos, dos rolamentos que impulsionam os pequenoscaminhões. Ele organiza-as todas sobre a mesa e apanhaseu caderno de anotações. Com a ponta da língua saindopara fora da boca e o olhar de quem tem pela frente a missãomais difícil de sua vida, ele as observa e vai comparandocom as anotações de seu caderno.

Gotas de suor começam a escorrer por sua testa, suaboca às vezes demonstra pequenas alegrias e às vezesdescontentamentos. Mas seus olhos não param, estãoobsessivamente centrados em sua missão. Duas horastranscorrem e ele não mudou de posição. Se aquilo não éalgo verdadeiramente importante, tenho certeza de que pelomenos ele acha que é.

Mais duas horas passaram, agora já são quatro horasolhando para aquelas fotos. Confesso que nessas duasúltimas, fiquei mais olhando para o relógio da parede do quepara ele.

Enquanto olhava para o relógio, que se mexia e faziamuito mais barulho do que o homem, algumas sensaçõesme atravessaram, é difícil descrever, e sinto que se começarestarei encerrando as descrições que faço, já há três dias,desse homem. Então nem vou começar, mas digo que foraminstantes estranhos, momentos que minha consciênciatrabalhou de uma forma diferente.

Volto meu foco para o que realmente interessa, cinco horasjá se passaram, ele agora está com algumas fotos nas mãos edeixou outras sobre a mesa, encostou-se na cadeira e cruzouas pernas.

O cansaço invade seus olhos. Ele põe as fotos que tinha

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sobre a mesa. Seus olhos encaram o relógio. Ele suspira. Olhanovamente para as fotos, dessa vez sem tocá-las. Inclina ocorpo sobre elas e gotas de lágrimas começam a molhá-las.

Um misto de tristeza, sentimento de fracasso e de ódiopor si mesmo surge no meio do vermelho de seus olhos. Seusofrimento é maior do que a alegria que teve quando ocaminhãozinho de bombeiros quebrou. Passa a mão sobreas fotos e o caderno, age como alguém que está pensandoem rasgar tudo. Mas não faz nada. Vai tomar um banho, epude ouvir quando soluçava embaixo do chuveiro.

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4.

A noite de sono parece tê-lo acalmado, e ele toma o caféda manhã olhando para algumas fotos, sem o desespero deontem . Seus olhos são os de um homem que quer recomeçaruma grande tarefa que não foi bem executada.

Mas enquanto come um ovo mole, de repente ele pára esua expressão muda. Ele também tem rachaduras internas,está dividido. O lábio de baixo recolhido me diz que ele estádesanimado, que não sabe por onde e nem se deve prosseguir.

As rachaduras não respeitam fronteiras e acontecem emqualquer lugar sem distinção. Ele está se preparando parasair, mas se das outras vezes eu tinha dúvidas que ele poderiaestar dissimulando sentimentos e intenções, agora não tenho,ele realmente não sabe para onde ir. Cada ato do seu corpoé lento e sem certezas.

Ao sair de casa vacila entre a esquerda e a direita e acabaindo reto. Atravessa uma rua sem olhar se vinham vindocarros, chega a uma grande avenida. Parece mais tranqüilopor ter de seguir apenas numa direção.

Os barulhos e os pequenos eventos do dia-a-dia vãoacontecendo à sua volta. De início ele parece nem perceberque existe um mundo ao seu redor. Mas aos poucos as duasbolhas isoladas de vida vão se comunicando. Quando menospercebe ele já está incluído na bolha maior, sem ter percebidoo instante em que houve a mudança.

Olha para os lados reparando nos prédios e nas pessoasque conversam, no barulho dos carros e na quantidade decoisas que estão para vender. Olha para os lados muito mais

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do que os outros. A essa altura o vermelho desapareceutotalmente de seus olhos e deixou um espaço vago para queali renasça algo. Seus passos já recobraram a firmeza e elenão é mais um barco à deriva.

Do jeito que olha para as pessoas, para os objetos, possodizer que não fica difícil de adivinhar, que ele tentará refazero que vinha tentando nos últimos dias. Talvez esteja pensandono que possa ser corrigido ou ampliado. Talvez nesse exatoinstante, apenas caminhando pelas ruas e observando, elejá esteja prosseguindo com suas experiências sem que euperceba. Pode ter encontrado uma maneira mais sutil e menosfísica de fazer suas marcações. Pode ser até que elas nãosejam mais necessárias, e talvez tenham sido elas a causado fracasso.

Especulações sem base, acompanho-o, é bem verdadeque ele parece mais animado. Ele pára e senta-se num banco,braços abertos sobre o encosto, quem o vê agora não poderiaadivinhar o estado em que ele estava ontem à noite. Tranqüilo,observa a vida acontecendo ao seu redor. A bolha de vidaencanta-o com seus barulho, e ele nem percebe que estácontido nela.

Tira alguma coisa do bolso, são as fotos de ontem , olha-as com a expressão de quem olha alguma coisa envelhecidaque não tem mais serventia. Levanta-se, vai até uma lixeirae as joga fora. Volta a sentar-se. Agora parece ainda maisdescontraído e seu comportamento, pela primeira vez desdeque comecei a acompanhá-lo, é idêntico ao das outraspessoas que passam pela rua.

Ele levanta-se e caminha, nada o distingue dos outros,pode ser auto-sugestão, mas até no aspecto físico ele passou

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a se parecer mais com os outros. Tenho de prestar atençãose não quiser perdê-lo na multidão.

Sigo-o, ele não anda nem depressa nem devagar, nãoparece ansioso nem alegre, nem pensativo, nem esperançosoe nem triste. Olha para as moças que cruzam seu caminho,pára numa vitrine e olha os preços de camisas. Caminhamais um pouco até outra praça e novamente senta-se.

Bem em frente de onde ele sentou tem um grande relógiode rua. Novamente começo a sentir aquela sensaçãoestranha... uma rachadura daquelas que podem derrubar umprédio... movimentando-se e aumentando, vida dentro doconcreto morto.

O relógio vai mexendo seus três ponteiros, cada um delesparece que é uma parte da minha consciência, mas tambémcada um deles divide-se em mais três e de novo em outrostrês... e essa divisão continuará até não sei onde, e cada umdesses não sei quantos ponteiros divididos, leva um poucode minha consciência com ele.

Somos tantos que é difícil tentar nos exprimir numa sóvoz. Mas isso é apenas um pequeno detalhe, o que érealmente estranho não é isso.

O choque entre o que está acontecendo, o que jáaconteceu, o que acontecerá mas já aconteceu, o que jáaconteceu e continua acontecendo, o que está acontecendoe reflete-se no acontecido e no que está por acontecer,espelhos refletindo, memórias recordando-se, imagenssobrepostas, sensações umas em cima das outras. Estranhomundo contido no fundo de um relógio. Pequeno símboloredondo de tudo isso. Rolha de um oceano sem fim.

Tenho de olhar para o outro lado, o sinaleiro que, de verde,

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passa a amarelo e vermelho. Não estou aqui para destruirprédios. Sou um narrador cujo personagem... onde está ele?Não reparei que ele tinha ido embora, não pode estar muitolonge.Vou até o ponto de ônibus... lá está ele, sinto-mealiviado, não quero perdê-lo. Tenho de me lembrar que eleestá usando camisa amarela e calça marrom, assim não oconfundo com os outros.

No ônibus ele parece mais um homem que volta do trabalho,fisionomia de fim de dia e nada mais. Olhar hipnotizado pelomovimento e pela paisagem. Olhares curtos e dissimulados paraos outros passageiros, que retribuem da mesma maneira.

Mergulhado na bolha cotidiana de imagens e idéiasrápidas, a viagem de ônibus passa mais depressa, tanto quedepois de quarenta minutos sentado, nenhum sinal de tédioatingiu seu rosto. Desce e caminha para casa, já é noite. Derepente pára de andar, suspeito que esteja novamentequerendo fazer suas marcações, ou sei lá como devo chamaraquilo. Mas a parada é rápida, e é claro o que significa, eleesqueceu-se de alguma coisa.

Acompanho-o até um supermercado, ele compra pães,ovos, queijo e suco de laranja. Passa pelo balcão doscongelados, reparo que não quer comprar nada ali, mas afumaça gelada do balcão o refresca e ele tem prazer comisso. Discretamente até levanta um pouco a cabeça para queseu pescoço receba mais vapor frio. Com um leve sorriso elecontinua empurrando seu carrinho.

As luzes claras, mas que não forçam a vista, a músicaambiente suave, e as cores alegres dos produtos criam umabolha ao seu redor, e ele passeia pelo supermercado por maisde vinte minutos sem desejar comprar mais nada.

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Um pequeno momento de felicidade? Um pano molhadona testa num dia de calor? Cimento fresco jogado no buracode uma rachadura? Não sei, não estou aqui para julgar nada.

Caminha tranqüilo para casa carregando suas compras. Masontem, mais ou menos nesse horário, muitas lágrimas escorriampor seu rosto. Para onde é que foi tudo aquilo? Lembro-me dassuperposições que moram no fundo do relógio. Lembro-metambém que isso não é da minha conta. Mas essas idéias agorase parecem com coceiras que não conseguimos controlar efazem força para aparecerem em qualquer canto aleatório...lágrimas de ontem... sorriso nesse instante... esperança morta,ontem escorrendo para o amanhã e empossando-se no hoje.

Coço-me e as idéias param. Ele abre a garrafa de suco delaranja e dá um gole sem parar de andar. Chegando emcasa arruma a cozinha, prepara um lanche, assiste um poucode televisão, toma um banho e vai para o quarto. Nada quede maneira alguma pudesse representar algo além do próprioato em si. Sem representações nem dissimulações.

No quarto deita-se na cama e apanha um livro para ler,consigo ver o título “A vida que escolhi para mim”. Reparoque o livro está bastante desgastado, cheio de anotações ede trechos sublinhados. Ele lê com uma caneta em uma dasmãos, pronto para novas anotações.

Uma coisa que achei estranho é que não é citado nenhumautor para o livro, a capa possui apenas o título e o número1386, na lombada apenas o título e mais nada. Sem orelhasnem explicações na última capa.

Mas acho que deve ser assim mesmo, homens estranhosdevem ler livros estranhos. Estranho mesmo é se fosse ocontrário.

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Acordamos juntos, ele de muito bom humor e eu com olivro que ele estava lendo ontem fixado no meu pensamento.Diria até, que no momento em que ontem à noite perdemosjuntos nossas consciências, até recobrarmos hoje pela manhã,posso até estar sendo meio precipitado em dizer isso pois étudo muito vago, mas diria que a idéia desse livro e minhasdúvidas a respeito dele, existiram nesses momentos em queeu não estava existindo.

Não é lógico, alguém que existe para descrever continuarexistindo nos momentos em que nada descreve. Mas umaleve memória, como uma luz distante encoberta por umadensa bruma, subsiste. Lembro-me de algo que flutuava,não era nada sólido, uma sensação, uma idéia, não sei comodescrever. É vida brotando onde antes nada existia. Não seise isso é bom é mal ou é neutro. Mas é uma mudança.

E falando em mudar, tomei umas decisões, não vou maisdescrever seu dia-a-dia inteiro, detalhe por detalhe, comovinha fazendo até então. Não tem sentido eu ficar contandoos pequenos detalhes do café da manhã ou outras miudezascotidianas. A partir de agora serei um narrador-editor, observotudo, e o que eu julgar que tem importância e é significativo,descrevo.

Sei do perigo disso, principalmente em se tratando de umhomem como ele, o que existe de mais importante, de repentepor uma falta de sensibilidade minha poderá ficar de fora. Eposso acabar escolhendo um monte de detalhes semimportância que, julgo, formam seu retrato. Vou tentar manter

5.

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minha percepção mais atenta possível para esse lado menosaparente da vida. Mesmo assim muita coisa vai se perder.

Tomei essa decisão não por preguiça ou por estar achandotedioso meu trabalho, escolhi esse caminho porque já nãotenho todo o espaço da minha consciência dedicado somentea ele, com o tempo parte desse espaço foi sendo preenchidopor mim mesmo, idéias que foram brotando e que estão sedesenvolvendo. Não tenho escolha, tenho de concentrar adescrição, mesmo sabendo que perderei material importanteque poderá fazer falta.

Estou dividido e esse é um caminho sem volta, ambos oslados lutarão por sua sobrevivência e ampliação.Tenho degerenciar essa briga da forma mais equilibrada possível. Nessatentativa, optei por mudar o tempo verbal da narrativa, dopresente para o passado. Não teria sentido fazer um resumono presente, mesmo que... a velha história do relógio... masvamos deixar isso de lado por enquanto.

Então vamos aos fatos ocorridos no dia de hoje: eu poderiadizer que hoje foi um dia banal, o de menos importânciadesde que comecei a acompanhá-lo. De manhã ficou emcasa lendo o jornal e assistindo televisão, percebi que elenão conseguia assistir a nada por mais de alguns segundos,estava sempre mudando de canal. Preparou o próprio almoçoe saiu, pegou o mesmo ônibus de sempre e foi para o centroda cidade. Lá caminhou bastante, sentou-se demoradamenteem bancos de praças, tomou um sorvete, observou as pombasque comiam pipocas jogadas por crianças no chão. Voltou acaminhar e a descansar, no final da tarde pegou o ônibuspara casa. Foi aí que talvez tenha acontecido o único instanteno qual, em meu julgamento, possa existir alguma coisa de

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diferente, um momento digno de menção, que eu não sei oque significa, mas que pode significar algo.

Novamente ele foi ao mesmo supermercado de ontem.Só que dessa vez não comprou nada. Ficou passeando peloscorredores coloridos, andava devagar, refrescou-se no balcãodos congelados, experimentou um queijo que era oferecidopor uma demonstradora de produtos, ao contrário de ontemolhou mais para as pessoas que estavam fazendo compras,e o ponto em que quero chegar é justamente esse, o quediziam seus olhos: não sei se embalados pelo ambienteartificialmente agradável, os olhos dele estavam cheios desolidariedade pelos consumidores. Mas é difícil explicar...não era uma solidariedade profunda de quem está no mesmobarco durante uma grande tempestade. Era alguma coisasuperficial, fica mais fácil eu descrever com expressões queele poderia ter dito enquanto olhava aquelas pessoas: “quebom que você está fazendo compras, eu também estou”, “se precisar passar eu posso puxar meu carrinho para o lado”,“você não sente uma pontinha de alegria quando vê aquantidade de produtos que nós temos à nossa disposição”,“nós temos tempo , o ambiente é agradável , fique à vontade, eu espero você pegar o produto que deseja”, se quisesse eupoderia continuar inventando mais algumas dezenas de frases,todas nessa linha.

Mas não foi exatamente essa superficialidade que eu acheique poderia estar escondendo algo. Ao mesmo tempo emque ele era superficial, notei que muito sutilmente em seuolhar, escondido num canto fundo dos olhos, havia uma pontade ironia que parecia saudável e pronta para se desenvolver.Mas ela não era visível a não ser para um bom observador de

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olhos. Para um observador mediano, nada distinguiria aquelapessoa das dezenas de outras que estavam ali somente parafazer compras.

Será então que aquele espírito que experimentava e seemocionava, concentrou toda sua energia criadora nessebrilho distante de uma ironia que quer se manifestar? Podeser que a onda que arrebentou na praia esteja voltando parao mar e preparando seu retorno.

Depois do supermercado ele voltou para casa, preparouuma refeição ligeira, assistiu meia hora de televisão e foi parao quarto, continuou lendo aquele livro com o qual eu... o mesmolivro de ontem. Uma coisa acho importante citar, eu repareique ele lia uma página, depois avançava várias procurandoalgo quase no final do livro, fazia isso sistematicamente comcada página que fosse lendo. Era como se houvesse anecessidade de, para se compreender o que se estava lendo,haver uma confirmação do que tinha sido lido num futuro damesma história. Foi essa a estranha impressão que tive. Seuma página falava de um casamento, ele verificava se os netosdo casal recém casado existiriam, ou não.

Isso me trouxe de novo à mente aquelas sensações queos relógios costumam trazer, mas procurei me controlar etentar fazer com que a lógica comandasse minha consciência.Primeiro perguntei, será que é isso mesmo que ele estáfazendo? Se fosse um livro técnico, ou algum outro tipo delivro que não um romance, poderia haver uma outraexplicação. Mas consegui dar uma olhada nas páginasinternas, era um romance clássico dividido em capítulos.Depois me perguntei, em sendo essa sua maneira de ler,qual era seu objetivo com essa técnica? Poderia esse seu

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método ser utilizado não somente para a leitura de romances,mas também para outros propósitos? E se isso fosse verdade,será que ele já não estaria utilizando-se dele?

Minha mente voa, enquanto deve apenas olhar e descrever.As perguntas, dúvidas e bifurcações se multiplicam. Mas nãoquero me alongar descrevendo o dia dele. Depois de ler porcerca de uma hora utilizando seu método ele apagou as luzese foi dormir.

Para ele, então, a última página de um livro é sempre apágina central. Mas quais são minhas evidências que essesistema não é apenas uma mania ou uma brincadeira. Aúnica coisa que sei, é que nada nem ninguém pode modificar-se tão rapidamente. Ou ele nunca foi o que achei que fosse,ou ele nunca deixou de sê-lo.

Seu sistema de leitura pode ou não representar algo maisalém da leitura em si. Mas isso também não tem muitaimportância.

Quanto espaço sobrará para ele no futuro de minhadescrição? Cada vez mais ocupo comigo esse espaço, gostariade usar seu método e olhar algumas páginas à frente, mesmoque elas ainda não tenham sido descritas e nem escritas.Talvez mais para a frente ele nem exista mais e eu mesmotenha assumido o centro das atenções. E como senhor criador,pode ser que para aliviar minha consciência de usurpador,eu dê a ele como prêmio de consolação algum personagemfictício e secundário.

Só que eu não quero me tornar um ditador, nem querotomar o que não é meu, vou procurar me controlar. Ele terátodo o espaço que for possível, e por mais que eu acrediteem minhas apreciações, não vou tomá-las como verdades

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absolutas. Vou tentar ser mais compreensível com o queparece sem sentido em suas atitudes.

Respeito seu método de leitura, ele criou um novo livrodentro do livro. Se leio uma página a cada três, ou leio três epulo uma, também crio outro livro.

Nesse momento volto para o tempo verbal presente, éque ele dorme, eu deveria renascer somente quando eleabrisse seus olhos amanhã, ou então deveria passar a noiteinteira descrevendo seus movimentos na cama, dizendo seele ronca ou não. Não sei, sinto que estou deixando de serquem sou, me modifico, e à noite, quando eu deveria nãoexistir, vou existir na região brumosa que comecei a freqüentardesde ontem. Olhando-o dormir sei que estou me enca-minhando para lá, o que as brumas escondem nessa noiteeu não sei.

Será que algum dia vou conseguir descrever o que vejoquando estou lá, usando o tempo verbal presente?

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6.

Eu tinha razão, ninguém muda assim tão rapidamente, aironia que vi nos olhos dele, naquela noite, foi o primeirosinal concreto de que ele estava apenas recobrando suasforças para continuar sua busca.

Então continuemos com minha tarefa descritiva: pelamanhã foi a pé até uma papelaria próxima de sua casa ecomprou algumas cartolinas de cores diferentes. Fez umlanche rápido em uma lanchonete e voltou para casa.Seusolhos gritavam trabalho, seu corpo movia-se com energia evontade. Apanhou o caderno de anotações, o livro quecostuma ler à noite, uma pasta que eu não conhecia, cheiade papéis soltos, desenhos e anotações, várias canetascoloridas e uma tesoura. Começou então a consultarfreneticamente suas anotações. Seus olhos vibravam,mexiam-se com uma energia que eu não conhecia.

Primeiro começou a escrever números e letras em umafolha de papel sulfite, depois recortou as cartolinas e começoua transcrever nelas esses números e letras. Era sempre umnúmero entre duas letras, como A5J. Passou boa parte datarde consultando suas anotações e fazendo essas marcações.No final da tarde as cartolinas acabaram e ele saiu correndopara comprar mais. Acho que sua pressa não era devida anenhum prazo que deveria cumprir, mas à ansiedade quetinha em realizar sua tarefa.

Desta vez comprou mais de trinta folhas grandes, brancas,amarelas e vermelhas. Chegando em casa continuou otrabalho no mesmo ritmo frenético. A noite chegou e ele

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esqueceu-se de jantar, só tinha olhos para seu trabalho.Acabou adormecendo na sala sem ter terminado suasmarcações, lá por volta da meia-noite.

Pronto. Cumprida minha tarefa de relator, agora tenhoalgumas observações a fazer: ou o que esse homem estátentando fazer é uma coisa importante, ou pelo menos eleacha que é. Será que não seria também a missão de um bomnarrador, investigar e conhecer o assunto que estádescrevendo? Porque senão a coisa fica muito pobre,parecendo notícia velha de um jornal amarelado.

Minhas investigações seriam sempre baseadas emopiniões, preconceitos e conceitos que trago dentro de mim,e que surgem sem que eu suspeite suas origens, afinal decontas minha consciência originou-se há apenas alguns diasatrás. Posso, sem querer, estar perpetuando idéias e desejosque conscientemente não os tenho. Em todo caso acho queé um risco que vale a pena. É melhor tentar alguma coisa,do que não tentá-la devido a algum possível futuro problema.

Então aqui está a minha teoria: esse homem é um obser-vador de aranhas. Isso mesmo, ele estuda principalmenteseus movimentos, e para isso tem de saber como é que elasconstroem suas teias. Não quero ser petulante, mas essafigura de linguagem expressa bem a idéia que quero transmitir.As aranhas seriam as pessoas, e a teia seria a vida. Os pontosem que os nós da teia se entrelaçam seriam os acontecimentos,os pontos em que os fios correm paralelos seria o cotidiano.Mas o mais importante de tudo é como a aranha move-se deum canto para o outro. Naquele dia em que fez experiênciascom moedas na praça, tentando adivinhar o caminho poronde as pessoas passariam, talvez ele ainda não tivesse

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entendido o movimento, ou estivesse usando padrões decomportamento mais simples, que não refletiam acomplexidade da verdadeira teia.

Seu objetivo final é bastante ambicioso, ele quer descobrircomo é que a vida funciona, e como é que o homem move-se dentro dela.

No dia em que ficou alegre porque pôde prever a quebrado caminhãozinho de bombeiros, ele deve ter, depois de muitoestudo, acertado bem em cima de um nozinho (acontecimento)que, do ponto de vista linear de consciência, ainda não tinhaacontecido. A velha história dos relógios. Isso deve tê-loenchido de alegria e também de sonhos de poder. Não seiexatamente o que depois deixou-o triste, se as fotos provaramque o caminhãozinho quebrou por alguma outra razão quenão aquela que ele tinha previsto, ou talvez ele tenha achadoque tudo não tenha passado de uma coincidência.

Acho que quando tenta-se descobrir segredos que nuncaninguém conseguiu, é muito difícil confiar em si mesmo, achoque ele acabou subestimando seus méritos, e por um curtoperíodo desistiu de tudo. Depois voltou ao ataque com todasas suas forças. Talvez tenha recobrado a energia criativadurante o período que dormia, e que para mim estavatemporariamente inacessível.

Não sei se o que ele deseja é ou não possível, e mesmose for, não sei se está acessível ao seu alcance ou ao dequalquer outra pessoa. Seria como descobrir onde foi dado oúltimo ponto do grande tapete persa e ir desfazendo nó pornó, mas ao mesmo tempo memorizando cada nó para depoispoder reconstruir o tapete inteiro para se ter onde pisar.

De qualquer maneira lá está ele, dormindo profundamente

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sobre seu sonho. Nesse exato instante, aproveitando-se damaior flexibilidade de movimentos que os sonhos dão, ele deveestar atravessando continentes e épocas, perguntando a sábiose a cientistas por onde deve continuar, qual o melhor caminho?Talvez receba como resposta alguns símbolos que, se aindaconseguir lembrar-se quando acordar, passará a manhã todatentando interpretá-los. E talvez eles lhe sejam úteis.

Acho que por hoje já falei bastante dele, inclusive de seuspossíveis sonhos. Ontem à noite mencionei minha provávelida para uma “região brumosa”, não quero fazer um paraleloentre ela e os sonhos, para os homens é normal e saudávelsonhar. Para um narrador isso é algo que simplesmente nãodeveria acontecer. Os elefantes não foram feitos para voar enem os leões feitos para viver debaixo d’água. Um narradorque freqüenta regiões que não sejam as que deveria descrever,é como um leão correndo no fundo do oceano.

No caso das deduções sem prova que fiz a respeito doesforço do homem com suas pesquisas, isso até pode serjustificável, pois com um conhecimento maior sobre suasidéias, seria possível pintar um quadro mais fiel dopersonagem, desenhando-o com mais profundidade.

Mas no caso de um narrador começar a ter momentos deausência, em que perde completamente todo o vínculo como personagem, isso representaria o fim do narrador e o fimdo personagem. É por isso que tento ao máximo evitar essas“regiões brumosas”, que seriam o equivalente aos sonhosnos homens. Mas se não for possível fugir delas, pelo menostento não falar das visitas noturnas que fiz.

Hoje eu gostaria de abrir uma única exceção e falar deonde fui ontem à noite sem querer ter ido. Não sei porque faço

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isso, talvez para me aliviar, prometo que será a última vez.Nesse meio as coisas não estão sujeitas a seqüências lógicas,então após um período em que não me lembro de nada,minha primeira recordação sou eu saindo de um subterrâneoescuro e subindo uns degraus em direção à superfície.

Chegando lá é noite, mas estou em uma cidade bemiluminada, na verdade a iluminação é estranha, não existemlâmpadas nem postes, toda luz vem dos milhares deluminosos de néon. Então o escuro da noite se mistura comas cores fortes do néon, possibilitando que eu enxergue poronde estou caminhando, mas fazendo com que essaluminosidade torne tudo ainda mais irreal.

Continuo agora com o tempo verbal presente, porque eledará um toque de realidade no que tem tão pouco dela.

Estou no oriente, não sei precisar a época, talvez iníciodo século vinte, vendedores de água oferecem seu produtoaos transeuntes numa língua que não entendo. Caminho semsaber para onde vou, a cidade é movimentadíssima,espetáculos de teatro de bonecos, barbearias, lojas de tabaco,de alimentos em conserva, casas de chá, homens oferecendopeças de seda, mulheres oferecendo seus corpos, muitobarulho e muita agitação.

Bicicletas, automóveis e cavalos disputam o apertadoespaço das ruas com as pessoas e o bonde elétrico. Algunsocidentais bem vestidos tomam chá em cafés com vista paraa rua. Um grande rio divide a cidade em duas, numa dasmargens existe uma longa calçada, e parece que é ali que avida social acontece. Moças orientais passeiam em grupo,vestidas com roupas que são a última moda na Europa, elascruzam com trabalhadores braçais, que estão terminando

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suas jornadas e caminham lentamente para suas casas.Vejo tudo de um ponto de vista privilegiado, porque

aparentemente ninguém me enxerga, então estou mais livrepara reparar nos detalhes. Noto as gotas de suor na testa damoça bem vestida, o movimento que ela faz com seu lencinhode seda para limpá-las. Até agora essa sensação tem sidoboa. Entro nos bordéis e me delicio com cenas engraçadas,observo as cozinhas dos restaurantes, reparo quando ocondutor do bonde elétrico tira um sanduíche que trazia nobolso, dá uma mordida rápida e o guarda de novo.

O condutor então tira algo do bolso... não gosto dessaimagem, mas não tive tempo de desviar o olhar, esse objetosempre me traz uma confusão mental... tirou do bolso umrelógio, levantou o braço e olhou as horas.

Não sei como é que funcionam as coisas nesse mundoque vivo nesse instante, não sei se também aqui as pessoaspodem se auto-sugestionarem a respeito de algumas coisas,mas está me parecendo que a partir do instante em que vi omostrador daquele relógio, as coisas começaram a mudar.Comecei a perder um pouco da minha mobilidade e a sentircansaço, de vez em quando parece que vejo algumas pessoasolhando fixamente na minha direção.

De qualquer modo não é ruim estar aqui, cada esquina éuma nova descoberta, alguém vende espetinhos de escorpiãoassados, uma criança come uma estrela do mar, assoprandouma de suas pontas que estava quente.

Que mundo rico e diferente, e essa cidade deve ser sóuma, entre outros milhões de possibilidades de visitas queessas “regiões brumosas” oferecem. Sei que tudo o que pareceexcessivamente perfeito esconde um lado proporcionalmente

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negro. Mas aproveito enquanto o que vejo são só luzes,mesmo que elas sejam vermelhas e roxas e que não deixemnada nítido.

Aqui volto para o tempo verbal do passado. Oacontecimento que se sucedeu seria difícil demais de serdescrito no presente, envolveu sensações e surpresas tãoabsurdas que é preciso um distanciamento, pelo menostemporal, para que se possa ser compreendido.

Eu caminhava por uma rua quando de repente avistei umsalão para fumadores de ópio, era do tipo conhecido como“ópio com flores”, o que significava que você poderia fumarópio acompanhado por moças que o ajudavam a preparar ocachimbo e assistiam ao seu transe. Pensei que teria deconhecer aquilo, mesmo havendo ali uma possibilidadegrande de eu também conhecer o lado negro do mundo emque estava vivendo.

Entrei e logo de cara notei a diferença, todos me olhavam,eu tinha uma forma física. Não fiquei nem um pouco ansiosopara saber qual ela era, e procurei me manter afastado dosespelhos. Uma moça vestida com um quimono de seda todocolorido, muito colorido mesmo, cores tão vivas nunca viigual, veio me explicar o funcionamento da casa. Disse-lheque queria experimentar. Ela me disse que eu teria de pagarprimeiro. Nesse mundo noturno a última coisa em quepensamos é dinheiro, já estava me lamentando, quando enfieia mão no bolso, eu nem tinha reparado que tinha um, e láestavam os 1386 dinheiros que ela tinha me dito ser o preçoda sessão de fumo de ópio.

Essas coincidências a essa altura me deixaram bastantedesconfiado, e comecei a me lembrar da teia de aranha, os

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locais onde ficam os nós. Será que se a teoria do homemestiver certa, ela funcionaria também aqui deste lado?

Decidi relaxar e aproveitar o que o lugar me oferecia, haviauma espécie de divã largo com almofadas roxas, onde osfreqüentadores ficavam deitados fumando seus cachimbos,e onde as acompanhantes, normalmente sentadas ao ladodeles, os ajudavam e observavam seus transes. A coisa nãoera bonita de se ver, havia fregueses bem vestidos que emtranse se urinavam todos, as assistentes faziam barreirasde almofadas para que a urina não molhasse outros clientes.Também pude observar quando uma dessas assistentesroubava a carteira do bolso de um fumante que estavacompletamente drogado, e de olhos abertos via tudo sempoder reagir.

Para não ter de contemplar por mais tempo essas cenashorríveis, resolvi mergulhar de vez na piscina do ópio. Nemsei se aquilo que fumei era mesmo ópio, pois a moça quepreparava meu cachimbo misturava várias substâncias, pós,pedacinhos sólidos de alguma coisa, e por último uma gotaverde de um produto que ela tirou de um conta-gotas.

A primeira sensação que tive foi muito boa, um grandealívio de todas as minhas preocupações, todas me pareceramcoisas secundárias e sem importância. Também senti no meucorpo, que eu acabava de conhecer, uma ótima sensação debem-estar. Pela primeira vez reparei nas mãos que tinha,nas pernas, na barriga, sentia-me bem comigo mesmo. Masapesar disso não quis me olhar no espelho que estava próximo.

Mas isso passou depressa e comecei a me sentir muitomal, primeiro foi uma sensação horrível, parecia que eu tinhaficado entalado em algum buraco subterrâneo que começava

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a ser inundado e eu iria me afogar.No meu momento de maior desespero essa sensação

termina, tenho alguns instantes de paz e o que recomeça éainda pior, parece que a droga vasculhou meu interior,encontrou meus maiores medos e agora se divertia me fazendosofrer. Talvez ela estivesse puxando minha teia e me vendousar minhas patas para tentar me segurar nos fios.

Eu me senti como um relógio quebrado que anda paratrás, avança sem controle para frente e depois fica parado.Eu não estava encarando o que mais temia, tinha me tornadoo meu maior temor. E ainda um, que não obedece a lógica,que não sei como lidar.

Sentia que o oceano do tempo me pressionava com todoseu imenso peso, e eu era uma pequena rolha que tentavaconter a avalanche que desabaria sobre a humanidade, euque era imperfeito em cada partícula que me compunha, emcada idéia que tinha, e que mesmo dentro de minhaimperfeição, às vezes me tornava perfeito e por isso mesmoainda pior.

Me senti o único responsável por uma grande tragédia, odesabamento do tempo sobre o homem, a maldita rolha-relógio que deixou a eternidade desfazer todos os nós edestruir todos os fios das teias das vidas humanas. A mortenão resolveria meu caso, porque minha sensação de culpaera tão grande que eu desejava viver para sofrer.

De certa forma eu também não teria mais nada a temer,tudo o que viesse a me acontecer seria lucro. Decidido, levantei-me do divã e fui me olhar no espelho. Um misto de sentimentosduelaram para ver quem gritava mais alto e conseguia vencera luta pelo meu controle. Acho que brigaram tanto que

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acabaram se anulando, e foi um rosto absolutamente neutroo que enxerguei no espelho. Vi o rosto dele, o homem queobserva aranhas.

Era ele, mas suas feições eram orientais, tinha olhospuxados, pele amarelada, mas eu o reconheci na hora.

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7.

Pronto. Desabafei. Agora cumpro minha promessa e nãotoco mais nesse assunto. O dia dele foi assim: acordou elogo quis recomeçar o trabalho. Mas notei que, por ter dormidono chão, estava com dores no corpo. Então descansou umpouco numa poltrona antes de iniciar o trabalho, tomou duasaspirinas num grande copo de leite e voltou à sua batalha.

No final da manhã tinha terminado de recortar e marcaras cartolinas. Preparou uns sanduíches e ia comendoenquanto trabalhava. Estendeu sobre o tapete um grandemapa da cidade. Apanhou as fichas com os códigos e emcada uma delas colocava uma pequena etiqueta com umlocal que retirava do mapa. Não sei qual era o critério queligava cada quadradinho de papelão a uma específica esquinaou a uma praça. Mas para ele, esses critérios, existissem ounão, eram bem claros, ele foi muito rápido nesse serviço.

Lá pelas três da tarde ele terminou, então tirou de umtubo de papelão uma grande folha de papel vegetal. Quandovi o que tinha ali dei um pulo de alegria, rapidamente mecontive porque sei que não devo demonstrar meussentimentos, o que havia desenhado na folha eram linhaspontilhadas ligando os pontos da cidade onde deveriam sercolocados os cartões coloridos que ele tinha passado amanhã marcando.

Essas linhas por vezes corriam paralelas, outras vezes secortavam, mas o conjunto de todas elas formava algo muitoparecido com uma teia de aranha. Nesse instante imagineias milhares de aranhas que iriam atravessar diariamente os

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pontos marcados, sem terem noção de que estavamrealizando algo que...

Acho que na verdade ele não prevê que uma determinadapessoa participará de um determinado acontecimento, massim que alguém assumirá aquele posto de participantenaquele específico evento, isso é o que suponho. O que nãoentendo é como ele chega aos números e lugares, deve haverno seu caderno alguma espécie de cálculo matemático.

Em todo caso, ele examinou por mais de uma hora aquelecomplicado gráfico, sobrepôs essa grande folha de papelvegetal em cima do mapa da cidade, e por mais de uma horaficou conferindo os endereços do mapa com aqueles quetinha anotado nas etiquetas que estavam coladas nos cartõescom os códigos.

Terminado isso foi comer. Lá pelas seis da tarde repareique ele estranhamente tomou um comprimido para dormir.Às sete da noite estava dormindo. Não entendi essa suaatitude, e o fato de eu não ter o que fazer assim tão cedo, meabriu um espaço para desenvolver uma suspeita que se iniciouhá alguns dias.

Alguns fatos que embasam minha suspeita:1. Esse homem, além de não trabalhar, não tem nenhuma

outra atividade, nem televisão ele consegue ver por muitotempo, ou está dormindo, ou está comendo, ou está mexendocom seus papéis e marcações. O que não é uma atividaderemunerada.

2. Ele não conhece ninguém. Vive sempre sozinho, nãofala com ninguém. Até hoje, o telefone de sua casa não tocounenhuma vez.

3. Até hoje só o ouvi dizer uma palavra, foi uma vez em que

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comprou um sorvete, e ele nem ao menos disse “um sorvete”,disse apenas “sorvete” e apontou com o dedo o que queria.

Eu me pergunto se ele não é apenas alguma espécie deretardado mental que consegue ocupar-se da sua própriahigiene e alimentação, talvez recebendo alguma pensão ouajuda de parentes, e que distrai-se com seus papéis epassatempos, numerando cartelas, desenhando mapas efazendo brincadeiras com moedas e isqueiros. E eu achandoque ele está descobrindo algo importante.

Talvez a verdade possa ser uma mistura das duas coisas.Ele pode ser um desses deficientes mentais que têmhabilidades enormes para alguma coisa.

Minhas suspeitas tiveram de parar lá pelas três horas damanhã. Ele acordou e arrumou todo seu material na mochila.Outra surpresa, ele tem uma motocicleta, amarrou na garupao que não coube na mochila e saiu pela madrugada. Logotrês quadras de sua casa fez a primeira parada. Conferiu omapa e colou um dos cartões com fita adesiva em uma árvore.

Antes do dia nascer ele já tinha terminado de colocartodos os cartões. Voltou para casa contente. Foi até a geladeirade onde tirou uma garrafa de champanhe, encheu uma taça,mas só deu um golinho.

Revejo aqueles meus pensamentos sobre se ele temproblemas mentais, acho que ele não é um deficiente, masalguém que vive absolutamente escondido dentro de simesmo. O mundo exterior é quase um estranho para ele, e étalvez utilizando-se da independência de ser um quaseestrangeiro, que ele pode mais livremente perceber comofunciona o mundo, e a partir daí tentar esquematizá-lo emsua teoria.

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Mas minha grande curiosidade é, digamos que o que elepretende provar fosse verdadeiro, e ele tivesse sucesso emsuas tentativas, o que um homem como ele desejariaconseguir com seu esforço? Desejaria alguma espécie derecompensa pessoal? Mas do que serviria essa recompensapara uma pessoa que leva uma vida como a dele?

Ou desejaria ajudar a humanidade em algum aspecto?Mas como um homem como ele conseguiria transformar umconhecimento teórico em alguma coisa que na práticaajudasse o ser humano?

Nos dois casos não vejo saída nenhuma, é por isso quequando o vi às sete horas da manhã, sozinho na cozinha desua casa com aquela taça de champanhe perdendo o gás,meu coração se encheu de compaixão. Sei que não possome deixar levar por sentimentos, então procurei esvaziarminha mente de tudo, não consegui.

O fato é que depois de dar um golinho no champanhe,ele não tinha expressão nenhuma no rosto, também não seise ele estava comemorando mesmo alguma coisa, se seutrabalho tinha terminado ou se era só mais uma etapavencida. Se ele ainda iria precisar esperar os resultados dasmarcações, seu rosto não dizia nada. Eu não sabia o quepensar e essa dúvida até que foi boa para mim pois me ajudoua acabar com a compaixão que estava sentindo por ele.

Mas depois a coisa toda mudou, ele foi para a sala eficou sentado por mais de uma hora sem fazer nada, sememitir nenhum som. Comecei a ficar com raiva dele,principalmente porque em certos momentos eu tinha aimpressão de que ele estava olhando diretamente para mim.Aquilo me incomodou muito e cheguei a pensar em

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simplesmente abandoná-lo. Mas quais seriam as conse-qüências de um eventual abandono? Pelo menos por enquantoquero continuar existindo, então agüentei tudo, pacientemente.

Meu martírio terminou de repente, quando ele tirou umamoeda do bolso e jogou em minha direção, se levantou e foiligar a televisão para ficar mudando de canal a cada dezsegundos. Uma idéia me ocorreu, será que ele não estáeditando o filme que deseja ver com o controle remoto? Dezsegundos de noticiários seguidos de mais dez segundos defilme, no final de meia hora ele criou algo tão estranho quantoele próprio. Algo parecido com seu método de leitura.

Aqui aconteceu algo de que me envergonho, ele passoumais tempo do que de costume diante da televisão, e sempremudando sem parar de canal. Já estava há mais de duashoras assim quando aconteceu, perdi a consciência enquantoele ainda estava consciente. Foi a primeira vez que issoaconteceu e estou embaraçado, não sei o que ele fez noperíodo em que estive fora, pode ter recomeçado a trabalharsua teoria, pode até ter chegado a importantes conclusões,ou recebido a visita de alguém e conversado com essa pessoacontando um pouco de sua vida.

Muita coisa pode ter acontecido, mas mesmo que nadade importante tenha se passado, esse buraco em branco nasminhas descrições jamais poderá ser tapado e ficará parasempre como um sinal do meu desleixo.

Quando recobrei a consciência já era noite e ele preparava-se para dormir. Desta vez não pegou seu livro para ler. Deitoue dormiu, e eu observei toda sua noite de sono.

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8.

Pelo menos, se minhas ausências forem inevitáveis, quedaqui para frente elas correspondam ao mesmo período emque ele estiver ausente. Porque se começarmos a desencontrarhorários, isso será o meu fim e também o dessa descrição.

Ele acordou muito cedo e parecia ansioso, caminhava deum lado para o outro e olhava bastante para o relógio. Davaa impressão de que estaria esperando por algo. Ficou nessaagonia até as nove horas da manhã, quando pegou suamotocicleta e começou a percorrer todos os pontos em quetinha deixado suas marcações. Ele parava, dava uma olhadase o cartão ainda estava lá e seguia para outro ponto. Nãotrazia nenhuma anotação dessa vez, e sabia de cabeça alocalização de todos os pontos, que eram muitos e por vezesbem distantes entre si.

Fica cada vez mais afastada aquela teoria de que ele seriaum deficiente mental. Ele sabe exatamente o que quer e temum propósito claro em cada um de seus atos.

Voltou para casa por volta do meio dia e preparou seualmoço. Estava sereno, sua fisionomia me dizia que ele tinhaterminado uma parte de sua tarefa e agora relaxava por unsinstantes, juntando forças para a parte mais importante.

Depois do almoço foi para frente da televisão, só quedessa vez diminuiu bastante a velocidade com que trocavade canal, ficava até três minutos sem mudar. Mas percebipor seus olhos que ele estava longe dali, as imagens nadalhe diziam, eram apenas luzes coloridas e música de elevador.

Ele acabou cochilando na frente da televisão por uma

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meia hora, e pela primeira vez vi o controle remoto ter umpouco de paz e apenas um canal ser mostrado por um bomtempo. Acordou sobressaltado e olhou no relógio. Vi por suafisionomia que aquela meia hora de sono não estava prevista,e que tinha sido considerada perda de tempo. Foi até obanheiro, lavou o rosto e apressado correu para ver suasanotações e mapas.

Agora sepulto de vez a possibilidade da deficiência mental.Ele abriu um saco plástico que guardava embaixo de sua cama,lá dentro havia diversos cadernos, mapas, folhas com desenhose milhares de fotografias. Num dos cadernos pude ver queentre cada uma das páginas havia uma folha de árvore, ecada uma delas era de uma árvore de um ponto onde eletinha deixado suas marcações. Havia fotos das casas em voltados pontos marcados, das árvores da rua em cada uma dasestações, de folhas caídas no chão e de pessoas passandopróximas aos pontos marcados em diversos horários do dia.Fotos dos locais sob chuva, sol e até de passarinhos que vivempor lá. Havia junto das fotos, uma caixinha com algumas penasde passarinho e até com as cascas de um ovinho.

Muitos desenhos também, páginas inteiras retratando arede elétrica das ruas estudadas. Outra caixinha etiquetadacom fragmentos de calçadas e asfalto. Um pacote inteiro,que deveria ter dentro uns dez cadernos estava etiquetadocomo “cálculos matemáticos”. Muitos outros objetos,chupetas de nenê, moedas, um sapato velho, uma meia,restos de propaganda política, uma lata de leite condensadovazia, tudo isso também estava etiquetado como “objetosencontrados”, e cada um trazia o endereço, a data e o horáriode quando tinha sido encontrado.

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Mas o que mais despertou minha curiosidade foi um sacoplástico preto, que não deixava ver seu conteúdo, e que estavaetiquetado como “estudos das possibilidades”. Muitos outrospacotes estavam classificados em código. Vi diversospequenos pedaços de madeira com a etiqueta AKHA 1, depoisvi uns vidrinhos pequenos, que aparentemente estavamvazios, classificados como AKHA 2.

Todo esse material parece ter sido coletado ao longo deanos, vi um caderno que me parece ser o mais velho detodos com a data de vinte anos atrás. É o trabalho de umavida o que está ali.

Após revirar tudo, pegou somente três cadernos comanotações, e guardou todo o resto embaixo da cama, pudever que ele guardava ali também um pequeno microscópio.

Com esses três cadernos nas mãos, e mais o mapa dacidade e a folha de papel vegetal com as anotações dos pontosmarcados, ele trabalhou por mais de dez horas seguidas semnenhuma interrupção. Os cadernos eram escritos numamistura de letras e números, por vezes eu pescava algumapalavra solta ou expressão que apareciam ali, “voltagem”,ou “possibilidade nula”, mas aquele código parecia ser feitopara que só ele mesmo entendesse.

Ele trabalhava com agilidade, comparava dados entre ostrês cadernos, conferia localizações no mapa e na folha depapel vegetal que estava sobreposta a ele. Em seguidaescrevia em um bloco em branco algumas observaçõesreferentes ao que tinha pesquisado, essas observações eramescritas nessa língua mista de números e letras, de vez emquando aparecia alguma palavra.

Pelas suas expressões parecia que o trabalho ia muito

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bem, ele nem se importava em ficar sem comer, tinha alitoda a nutrição de que precisava. Talvez ele esteja vivendoos dias mais importantes de sua vida. Está esperando algogrande, e tenho certeza que de uma maneira ou outra issoacontecerá, nem que seja sob a forma de uma grandedecepção.

Ele não dormiu sobre seus papéis. Mesmo exausto teveenergia para guardá-los cuidadosamente, e recolocar os trêscadernos que tinha tirado do pacote que estava embaixo dacama, exatamente no lugar de onde os tirara. Reparei quena borda de cada caderno havia uma anotação sobre a ordemem que deveriam ficar.

Completamente exausto foi até a cozinha, encheu umataça de champanhe e com muito esforço bebeu-a. Reparei,por sua expressão, que beber champanhe àquela hora e como cansaço que estava tinha sido uma obrigação. Talvez fosseaté um ritual ou algum código que anunciasse o vencimentodaquela etapa. Arrastou-se até o quarto e dormiu quaseimediatamente.

O que dizer de uma pessoa assim? Sei que eu não deveriadizer nada, mas as coisas desde o início não seguiram seucaminho tradicional. E agora, nem se eu quisesse conseguiriavoltar para ele. O que foi feito não se muda mais, e o caminhovai sendo construído conforme avançamos, eu e ele.

Descobri que ele vem trabalhando em seu projeto há pelomenos vinte anos, desde muito novo então, pois ele nãoparece ter nem quarenta anos. Descobri que ele construiusua própria teia de idéias de uma maneira muito maiscomplexa do que eu imaginava, e que talvez esteja vivendoos momentos decisivos na comprovação de sua teoria.

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Não descobri qual deve ser o produto final que provaráque ele está certo, mas acho que não estou longe disso.

Digo que ele é um homem inteligente, que descrêcompletamente dos valores sobre os quais nosso mundo foiconstruído, e que muito cedo buscou um caminho alternativoa esses valores .

É possível que ele seja um egoísta e que esteja fazendotudo isso só pensando em si mesmo. É possível também queseja um idealista e que esteja doando sua vida para ahumanidade.

Ele é metódico e, apesar de não parecer, é muitoorganizado. Isolou-se completamente do mundo paraconseguir ter a liberdade de vê-lo de longe, sem receberinfluências, com isso foi perdendo até a capacidade de falara própria língua materna, balbucia palavras-chave quandoelas são absolutamente necessárias. E isso prolongou-se pelaescrita, reparei que nos primeiros anos seus cadernos tinhamlongas descrições escritas. Com o passar do tempo as palavrasforam sendo substituídas por códigos de letras e números.Arriscaria até o palpite de que ele pensa de maneira diferente.

Seu mundo é diferente do mundo dos outros em váriosaspectos, talvez em todos eles. Momentos tristes pode serque não signifiquem perdas ou decepções, e a felicidade, àsvezes, pode ser para ele um fardo muito tedioso de sercarregado.

Às vezes no lugar de descrever, eu gostaria de perguntar,é muito mais simples, e eu satisfaria meus instintos, quepartindo do nada, só cresceram durante esse período emque o acompanho. Já sei até a pergunta que faria para ele,seria uma só:

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Caro homem, cujo nome desconheço, mas sobre cujasintenções começo a ficar familiarizado, caso consiga descobrircomo é que funcionam as teias de aranhas, o que significamos nós e por onde é que elas caminham, gostaria de saber sevocê nunca se perguntou onde é que as teias são fixadas?

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9.

Ontem à noite... bem, eu prometi que não tocaria maisno assunto e não vou fazê-lo... só gostaria de dizer que ontemà noite fui muito, mas muito mais longe do que aquela cidadeoriental que fui na outra noite. Felizmente nossas saídascoincidiram e recobrei a consciência uma meia hora antesdele. Foi bom porque pude ver que seus últimos momentosde sono foram bastante agitados. Revirou-se de um lado parao outro e até balbuciou algumas palavras que não conseguientender. Claramente havia algo em seu sonho que operturbava muito.

Acordou e, de pijamas mesmo, foi diretamente lidar comseus papéis. Primeiro passou cerca de uma hora consultandocadernos e escrevendo em código em folhas soltas. Depoisvoltou para o quarto e foi vasculhar embaixo de sua cama.Notei que é ali que está seu tesouro, a parte mais valiosa deseu material.

De um outro saco preto que eu ainda não tinha visto, eletirou um maço de fotografias de pessoas. Eram homens emulheres de todas as idades, crianças e bebês. O que percebifoi que as fotos eram feitas em lugares públicos, e tambémque eram fotos tiradas sem que as pessoas percebessem,provavelmente com uma lente de longo alcance.

Quando vi esse maço de fotos, suspeitei o que ele iriafazer com elas, alguns segundos depois e minhas suspeitastinham se confirmado, ele estava espetando-as com alfinetesno mapa da cidade, em cima dos pontos em que as linhascriadas por ele se cruzavam. Agora as aranhas tinham rostos.

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Preciso raciocinar um pouco para não me perder: se estoucerto no começo do meu raciocínio, então ele estádesvendando a maneira como a vida funciona, as marcaçõesque fez pela cidade são os pontos de encontro de fios, oulugares onde devem acontecer eventos, acontecimentos... ascenas da grande peça.

Eu poderia contra-argumentar que as cenas acontecemem todos os lugares o tempo todo, não existe nenhum pontovago onde não haja alguma espécie de nó. A grande teia temfios invisíveis e sutis que costuram toda a realidade. É muitofácil indicar um ponto, lá algo estará acontecendo e mesmoque não haja ninguém, lá haverá uma coruja quieta pousadaem algum galho, ou haverá a brisa molhando a relva.

Contra esse meu argumento ele poderia afirmar que os nósindicados por ele seriam acontecimentos de maior relevância.Acontecimentos que sempre envolveriam pessoas e quedeixariam marcas nas vidas dos envolvidos. Novamenteentraríamos no terreno do relativo, o que é relevante? O quenão é? Com o eterno jogo de conseqüências que a vidaapresenta, o que é relevante pode passar a não ser e vice-versa. E os eventos têm de ser absolutos e não relativos. Esseé um outro argumento que ele também não conseguiria rebater.

Agora, com essas fotos colocadas nos lugares que forammarcados, ele poderá ir além, poderá dizer quais atoresencenarão aquele acontecimento. E se isso provar-severdadeiro eu não terei contra isso nenhum argumento.

Terminou as marcações das fotos lá pelas duas da tardeainda vestindo pijamas. Parece que venceu outra etapaimportante na sua programação, pois depois que enfiou oúltimo alfinete, foi invadido por uma paz que nunca vi igual.

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Foi muito diferente dos momentos de alegria pelos quaiso vi passar, neles ele estava tão agitado quanto nos instantesde tristeza, agora seus movimentos eram como uma brisasobre as águas de um lago.

Isso me fez desconfiar que talvez o que ele temesse quepudesse dar errado já tivesse passado, agora nada maispoderia perturbar os acontecimentos que ele previra, elesestariam sendo gestados e só o que tinha a fazer seria esperar.Ele tinha decifrado a equação do jogo de conseqüências eagora poderia saber dos resultados antes que eles fossemoficialmente anunciados pela vida.

Tomou o banho mais longo que já o vi tomar, colocou suamelhor roupa e foi de motocicleta para o centro da cidade,deixou a moto num estacionamento e reparei no estranhamentodo rosto do manobrista, que não deve estar acostumado a verpessoas com uma impressão de paz tão profunda no rosto.

Caminhou pelo centro da cidade espantando com seu meiosorriso quem cruzava com ele. Parou no último lugar que euimaginaria que uma pessoa com aquela expressão pararia.Entrou num imenso, escuro e lotado fliperama. Mas aagitação, o barulho e as luzes que piscavam parece que nãotinham efeito nenhum sobre ele. Os esbarrões e a espera nafila para comprar as fichas também não modificaram seuestado de paz.

Parece que só um tipo de máquina o interessava, otradicional fliperama de bolinhas. Esperou pacientemente umadas máquinas vagarem, aproximou-se dela, apalpou o visor,observou atentamente as pontuações prometidas e as corescom que eram pintadas cada parte do mostrador, sem muitaforça atirou a primeira bolinha. Sem estar ainda familiarizado

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com o manejo da máquina, ela caiu onde não deveria . Suaexpressão não se alterou, ele ainda tinha cinco bolinhasdisponíveis.

Com a segunda bolinha um pouco mais de sucesso, elaatingiu uns obstáculos laterais e o marcador de pontos saiudo zero. Depois com a haste que ele mexia apertando umbotão, conseguiu jogar a bolinha bem para cima e ela foisendo rebatida de um lado para outro, luzes e barulhosconfirmavam que ele estava assinalando pontos. O marcadorchegou a onze mil e a bolinha escorreu entre as duas hastessem que ele pudesse fazer nada.

Ainda restavam quatro bolinhas, ele olhou para o marcadorde pontos, depois viu qual era o recorde daquela máquina,que era de oitocentos e vinte e sete mil pontos. Deixou asquatro bolinhas paradas e foi embora. Tomou um sorvete edepois voltou para o estacionamento para pegar sua moto.

No caminho para casa percebi que num determinadomomento ele vacilou e diminuiu a velocidade da moto comose estivesse indeciso. Acho que talvez tenha passado porsua cabeça um início de suspeita, uma vontade de ir verificaros locais onde iriam acontecer os eventos antes que elesacontecessem. Mas ele seguiu em frente rumo à sua casa.

Quando chegou em casa reparei que sua expressão jánão era a mesma, ele tinha começado a duvidar da paz quesentira. A necessidade de se preocupar com alguma coisa semanifestara, seu lábio de baixo sobreposto ao de cimamostrava isso.

Foi para a frente da televisão, e dessa vez não deixavamais de três segundos em cada canal. Passei uma hora muitonervosa observando-o. De repente desistiu da televisão e foi

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olhar para as fotos que estavam colocadas sobre os pontosmarcados no mapa. Reparei então, que cada alfineteatravessava mais de uma foto, às vezes duas, às vezes atécinco. Pela lógica, seriam as pessoas envolvidas no mesmoevento. Pessoas que poderiam morar em lugares distantesda cidade, ou até nem morar nela, pessoas que poderiamnão ter nenhum ponto em comum, nem idade, neminteresses, nem sonhos, mas que estavam ligadas por essefio secreto que teoricamente tinha sido descoberto.

Mas não digo mais nada, as fotos agrupadas podemsignificar outra coisa, falei de lógica, mas a pergunta é: quallógica? A minha, a dele, ou uma lógica absoluta (se isso existir).A lógica dele parece ser muito mais refinada e sutil do que aminha. As trovoadas não trazem necessariamente chuva.

Outra enorme surpresa, ele retirou os alfinetes eembaralhou todas as fotos de olhos fechados. Depois começoua recolocar os alfinetes nos grupos de fotos. Reparei quepelo menos a primeira foto, nos pontos que eu me lembrava,tinha mudado. Também a quantidade já não era mais amesma. Depois que fez isso sua expressão passou de agoniadaa neutra.

Novo xeque-mate na teoria que eu estava construindosobre ele, tudo o que pensei que ele estava fazendo foi porágua abaixo. Ele está concordando com minha primeiraafirmação, em qualquer lugar e a qualquer hora a vidaacontece e o acaso é que a comanda. Tinha sido vencido poruma tarefa grande demais para ele.

Mais um pouco de televisão, dessa vez dez segundos emcada canal e caminhou para o quarto à procura da ausência.

O mais estranho foi que ele pulou de uma serenidade

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absoluta para um estado de dúvida e acabou desistindo detudo sem ao menos verificar os resultados daquilo pelo qualtanto lutou. Isso não faz nenhum sentido, talvez seja maisuma pista falsa, tinha me esquecido de que ele desconfia daminha existência, talvez até tenha certeza dela.

Ele é esperto, pode ser que tenha anotado a verdadeiraordem das fotos em algum lugar, ou então que saibaexatamente quais embaralhou em cada montinho, e adisposição final sempre tenha sido essa de agora. A expressãoneutra do rosto seria só mais um disfarce.

Ele pode estar esperando alguma coisa, um sinal, umadata, um horário, enquanto isso pode ser que não queira queninguém se meta com suas coisas, e talvez por isso façasempre o oposto do que esperam que faça.

Suspeito dele da mesma maneira que ele suspeita de mim.

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10.

A ausência não veio me procurar ontem à noite, o que medeixou bastante contente. Procurei então aproveitar essetempo que espero que, de agora em diante, continue existindo.Pretendo utilizá-lo da maneira mais útil possível.

Tentando antecipar algum possível movimento dele,decorei as fotos e a ordem delas, nas dez primeiras marcaçõesa partir da casa dele. Estou familiarizado com os rostos, epoderei eventualmente usar essas informações que duvidoque ele desconfie que eu tenha.

Depois da memorização ainda tive tempo de observar seusono, que me pareceu tranqüilo demais para alguém queacabou de desistir de um projeto que lhe consumiu vinteanos de vida.

Minhas suspeitas de que ele vive dias de espera ganharamforça, ele passou a manhã verificando a moto, fez o motorfuncionar várias vezes, trocou o óleo e verificou a bateria. Elequer ter tudo pronto para, se necessário, partir de repente.

Percebi que deu uma passada por onde estão o mapa e asfotos, e de canto de olho observou se estava tudo exatamentecomo ele havia deixado. Ele está preparando o bote.

Mas o que poderia estar esperando? Como seria esse sinalque o avisaria que os eventos começaram a acontecer? Ecomo eles aconteceriam, um por vez, todos simultaneamente?E que tipo de acontecimentos seriam?

Passei o dia inteiro me remoendo com dúvidas e incertezas,cheguei a ter raiva dele por saber disfarçar e dissimular tãobem suas intenções. Mas no final da tarde o ditado provou-

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se verdadeiro, nenhum crime é perfeito. Ele lanchava ecomeçou a fazer desenhos de objetos que não conheço numguardanapo, percebi que aquilo era um truque para desviarminha atenção do que realmente interessava.

De repente a tinta da caneta acabou e ele foi até o quartobuscar outra, abriu a gaveta da mesinha de cabeceira e pegouuma caneta. Foi aí que reparei que ao lado do despertadorhavia um calendário, e que o dia de amanhã estava discre-tamente circulado em vermelho, e mais discretamente ainda,escrito a lápis, havia um horário: 15 horas.

Aquilo só poderia marcar o início dos eventos. Eles teriamhora exata para começar. Voltei para a sala todo contente,assisti-o desenhar objetos que não existem. Tive toda apaciência do mundo, e porque não dizer, até um pouco depena dele.

Ainda não tinha certeza de nada, mas tudo estava casandoperfeitamente, a verificação da moto, todas essas tentativasde despiste ocorridas nos últimos dois dias, seu comportamentoainda mais estranho e esses desenhos sem sentido que fez elogo abandonou.

De repente uma outra idéia me ocorreu: será que naverdade ele quer que eu esteja presente? Justamente paradocumentar todo seu esforço. Bolou todo esse estratagemapara que eu acreditasse que ele não saberia que eu estarialá. Dessa maneira eu não me sentiria conduzido por ele eteria muito mais espontaneidade e liberdade em minhasdescrições.

Isso é até possível, mas se for verdade não vou fazer nadapara evitar meu comparecimento amanhã no início doseventos. Meu pensamento evolui de maneira estranha, já

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estou dando como absolutamente certo que os eventoscomeçarão amanhã às quinze horas.

Caso tudo se confirme, tenho uma suspeita sólida de queo coração de sua teoria está guardado dentro daquele sacopreto que ainda não vi aberto e que está etiquetado como“estudo de possibilidades”e também tenho algumas suspeitassobre aquele livro que ele costuma ler à noite. Para dizer averdade suspeito que ele mesmo seja o autor, e que aqueleromance não passe de um monte de códigos disfarçados deobra literária. Seria uma maneira esperta de todas as noitesrever e estudar tudo que precisaria ser relembrado semdespertar nenhuma suspeita.

Como nenhum crime é perfeito, se ele tivesse criado umescritor fictício e posto seu nome na capa, eu jamais teriacomo desconfiar de suas leituras noturnas.

Conforme o dia foi se aproximando de seu fim ele foificando cada vez mais agitado, ia verificar a motocicleta,voltava para a sala e ligava a televisão, ia para a cozinhabeber água, voltava a ver a moto. Tudo indicava que amanhãseria o grande dia.

No fim da tarde uma surpresa, ele escreveu um longotexto, não pude ler o que estava escrito, mas vi que erampalavras e não somente letras e números. Ele escreveu numcaderno e logo o guardou embaixo de sua cama. Fiqueitentando descobrir o que seria, talvez a formulação final desua teoria, talvez a peça do quebra-cabeças que faltava eque, conhecendo-o um pouco, sei que apesar de ser escritoem palavras, elas podem querer dizer outra coisa além deseus meros significados.

Lá pelas nove horas da noite ele tomou um comprimido

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para dormir. Tive longas horas para especulações e reflexões:primeiro quis violar um pouco a primeira lei de minhaexistência – refleti sobre um assunto que não era o objeto dadescrição. Perguntei para mim mesmo e continuo meperguntando – aproveito a deixa para mudar o tempo verbalpara o presente – se estou narrando a vida desse homemmisterioso, se essa é minha única obrigação e minha únicarazão de existir, quem disse que as coisas devem ser dessamaneira? Quem criou essa lei de vida e morte? E a maisimportante das perguntas: a quem servem os meus serviços?

Quem são vocês, homens ou mulheres misteriosos queprecisam de alguém como eu? O que vocês fazem com asinformações que eu lhes passo? Para mim, a vida do homemque descrevo, comparada às vossas vidas, é algo coerente esem contradições, entendo seus objetivos e métodos, masvocês... uso o plural por força do hábito, mas posso estarprestando meus serviços para apenas uma pessoa. Tambémé por vício de linguagem que digo homens e mulheres, vocêpode não ter sexo, ou pode ter um que desconheço.

Há até a possibilidade que você simplesmente não exista.Que meu trabalho e existência tenham sido originados poruma força aleatória, como o resultado de um choque de duasbolas de bilhar, por algum tempo uma delas é impulsionadacom força para alguma direção. Mas a força de seu impulsooriginal não existe mais, é limitada, tem direção que podeser prevista e só faz diminuir de intensidade.

Por isso, essa liberdade que acho que venho conquistando,talvez seja algo que pudesse já estar contido no momentoem que percebi estar consciente. Sou então tão livre quantoposso ser. Meu livre arbítrio é a possibilidade que tenho de

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explorar, ou não, toda a liberdade que já me pertence, masnunca de ir além de seu tamanho verdadeiro.

Sou o elo que une duas dimensões. Minha dúvida é se aminha liberdade teria o tamanho suficiente para me fazeratravessar para qualquer um dos dois lados. E essasdimensões que me usam como elo, serão elas as últimas, ououtros elos existirão que levarão a dimensões mais distantese depois outros elos ainda, e mais mistério, e mais não saber-se por quê ?

As regiões brumosas, onde a consciência muda de forma,me fazem acreditar que minha importância não é tão grandequanto eu julgo, há muita corrente pela frente, mas cada elosempre julga-se o mais importante.

Imagino se amanhã às três da tarde eu o acompanho, etudo o que ele previu acontece. Suas especulações provam-se uma teoria sólida que funciona em todas as situações. Eledescobre exatamente como funciona a vida e o papel dasconsciências dentro dela. Daí percebo que se uma coisafunciona bem em uma dimensão, por que com algumasadaptações não funcionará bem em outras. Poderei entãoromper meus elos internos, alargar minha liberdade até ondevá meu desejo, descobrir o que existe além da mais distantesdas regiões brumosas. Talvez descubra que a maior das teiasnão é a que tem os fios mais longos, mas sim a que tem osfios mais finos.

Especulações de quem assiste alguém dormindo navéspera do dia mais importante de sua vida. E quanto a mim,teoricamente, o dia mais importante da minha vida será quandoeu terminar minhas descrições, e que coincidentemente seráo dia em que deixarei de existir.

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Gostaria que essas duas datas não coincidissem, quehouvesse ainda alguma existência depois da realização domeu maior objetivo. Nem que fosse para cultivar memóriasda glória atingida, recordações que só fariam distanciar-sedia a dia, ficando menos claras e mais apagadas. Mesmoque fosse para viver na ilusão de que meu objetivo alcançadoserá sempre algo importante, ainda assim não gostaria determinar junto com a realização de meu maior feito.

Mas, no meu caso, quais seriam minhas opções? Tornar-me um fantasma de uma descrição completa, uma idéia quevalendo-se de algum eventual sinal de reticências, tentasseprolongar e dar rumo indefinido à narração, ou então quetentasse voltar ao princípio da história, tentando formar umcírculo sem fim e acreditando que a eternidade mora lá?

Isso seria mumificar o defunto e acreditar que, porque ocorpo não irá se deteriorar, então a vida continua. Pior doque descrever minhas visitas às regiões brumosas, seriaalguém que, nas minhas condições, criasse expectativas esofresse decepções. Isso seria perder a própria identidade enão adquirir outra, tornando-se um híbrido no meio de algumlugar que desconhece. Algo como um chinês albino vagandopelo meio das tribos de pigmeus africanos.

O sol do dia mais importante da vida desse homem estánascendo, hoje quero caprichar e pintar o retrato mais fielpossível desse dia.

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As luzes foram ganhando forças aos poucos na batalhacontra a escuridão. Lentamente, pelos cantos, as cores foramse formando, o marrom escuro foi amarelando e tornou-sedourado, os raios de sol pálidos começaram a atravessar oazul-escuro cada vez mais claro. A grande bola amareladaapontou no horizonte e foi ganhando espaço e força. A partirdaí a escuridão não demorou a morrer. O dia tinha nascido.

Por enquanto ele ainda dorme e pelas expressões de seurosto, não sonha. Não está em lugar algum, está desligado,suas funções vitais acontecem, ele está lá. A luz vai dandoum jeito de invadir seu quarto, começa pelos cantos, os raiosde sol descem até o chão e, devagar, começam a subir emdireção à sua cama.

Como ele está fora, não está em lugar algum, não suspeitaque em alguns minutos os raios de sol irão beliscar seus doisolhos, e pronto, a consciência voltará imediatamente de ondeesteve.

Seu nariz já está iluminado, lá fora as pessoas caminhamapressadas para o trabalho. A luz sobe um pouco mais eseus olhos se abrem. Olham para cima, piscam, as mãossobem até eles e os esfregam. Ele boceja sem mover o corpo.Está de volta.

Levanta o tronco para observar o relógio e deita-senovamente. Já está vivendo o dia mais importante de sua vida.Parece que despertou cedo e tem tempo de sobra até que precisese levantar, por enquanto continua deitado na mesma posiçãoem que acordou. Chegou até a fechar os olhos novamente, mas

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dessa vez percebi claramente que, sob as pálpebras, ele estavaconsciente e seu cérebro funcionava a todo vapor. Acho quedevia estar planejando as atividades do dia.

Tomou um impulso e levantou-se. Vou pular aqui osdetalhes pequenos e vou colocá-lo já vestido tomando umaxícara de café. São sete horas da manhã e hoje ele escolheutomar só café puro sem nenhuma comida para acompanhar.

Em virtude de hoje, possivelmente, ser o dia maisimportante de toda a narração, depois que ele terminou axícara de café, estamos no tempo presente.

E hoje é um presente mais presente que os outros.Caminha de um lado para o outro como uma fera na jaula.

Parece que tudo que tinha para fazer já foi feito e agora, emteoria, só tinha de esperar pelo horário marcado. Essas últimasduas horas estão sendo as mais estressantes de toda anarração. Seus olhos são os de um tigre faminto e feridopreso em um cubículo. Por uns instantes escolho olhar parao relógio, que me irrita menos do que ele.

Agora ele muda, vai examinar as fotos, cuidadosamenteapanha os montinhos e envolve cada um deles com elásticos,essa é a ordem certa... coloca os montinhos no bolso dacamisa. Consigo reparar em alguns dos rostos. Um senhorde cinqüenta e poucos anos, de cavanhaque e careca, umrapaz de vinte anos com uma grande cicatriz na testa, umamenininha loira de três ou quatro anos, uma mulher muitogorda de cabelos vermelhos... foi o que consegui memorizar,essas eram algumas das fotos que estavam por cima nosmontinhos. E o que significaria ser a foto de cima, seria apessoa que deflagraria o evento, a que teria o papel maisimportante no acontecimento?

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Ele voltou a se comportar como o tigre agoniado, achoque está com medo que tudo dê errado... mas e a carta queo vi escrevendo ontem... não quero e nem posso especular...mas não será uma carta de despedida caso nada dê certo?

Os minutos se arrastam cada vez mais devagar, e vãodestruindo meus nervos com seu movimento. Estou a pontode explodir, abandonar tudo, voltar para de onde vim... masfalta tão pouco...vou agüentando. Ele vai verificar a moto,isso me alivía um pouco, liga o motor e acelera bastantedentro da garagem que vai se enchendo de fumaça. Saitossindo de lá, volta para a sala e continua sua rotina defelino ferido. Na cozinha apanha uma cebola inteira e a cortaem duas metades. Come uma e deixa a outra sobre a mesa.

Disfarce? Loucura? Ou apenas um almoço rápido e exótico?Reparo que faz o maior esforço possível para disfarçar a expressãode agonia que a cebola lhe traz. Vai para o quarto e de dentrode uma gaveta tira dois relógios de pulso, parece estar seequipando, são os detalhes finais para o grande momento.

Quatorze horas, com os dois relógios, um em cada braço,ele senta-se bem em frente ao grande relógio de parede dasala. No bolso as fotos e na mão a chave da moto. Não tirapor nenhum segundo os olhos do relógio, para não me irritarainda mais faço o mesmo que ele, e o tempo até que fluimais tranqüilo.

Quatorze horas e cinqüenta e sete minutos. Sua cabeçapula do relógio de parede para os relógios de pulso, comparatambém os horários dos dois com o relógio maior. Pareceque tudo caminha bem, a sincronia perfeita parece animá-lo, e ele agora já parece um animal que descobriu um buracopor onde fugir de sua jaula.

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Quatorze horas e cinqüenta e nove minutos. Sua línguasai para fora da boca e começa a se movimentar, ele estánervoso, reparo que seus dedos do pé movem-se dentro dossapatos, suor escorre do seu rosto. Olhos fixos nosmostradores dos relógios de pulso.

Quinze horas, é deflagrado o início dos acontecimentos,eu estava certo... ele caminha rapidamente até a garagem esai a toda velocidade de moto... na verdade ainda não possodizer com toda certeza que estava certo.

Ele corre muito e atravessa os sinais vermelhos. Parecenão se importar com qualquer perigo. Será que já sabiaantecipadamente que naquele instante e local nenhum veículocortaria seu caminho?

Chega num dos pontos que eu já tinha visto em uma dasfotos, é uma esquina banal com algumas árvores, duascasinhas de madeira e uma cobertura de ponto de ônibus.Pára a moto bem na esquina, verifica os dois relógios depulso e tira do bolso o primeiro macinho de fotos. Reconheçoo senhor cinqüentão careca de cavanhaque, reparo nas outrasfotos que estavam encobertas pela dele. Havia um homemmoreno de mais ou menos quarenta anos com uma camisaazul, um senhor de mais de setenta anos de boné e muitoqueimado de sol, e um baixinho com menos de um metro emeio, essa informação estava escrita na borda da foto dele.

De repente, um carro saindo de ré da garagem de umadas casas é atingido na traseira por um ônibus que vinha emalta velocidade. O carro roda duas vezes e sobe em cima dacalçada, muito próximo de onde ele tinha parado a moto, naverdade a menos de vinte centímetros. Dois minutos depoiso senhor cinqüentão da foto sai de dentro do carro, está

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meio zonzo, mas não está ferido.O homem de quarenta anos e camisa azul desce do ônibus

e pergunta ao outro se está bem, ele dirigia o ônibus, o cobradortambém desce e examina os estragos no carro e no ônibus, eleé o baixinho da foto. Todos estão atordoados, não há nenhumpassageiro no ônibus, provavelmente o motorista estavaapressado para recolher o ônibus e ir para casa.

Ninguém ainda havia decidido que atitude tomar, quandoum velho sorveteiro empurrando seu carrinho aproxima-sedo local do acidente para ver os estragos. A aparição dessevelho encerra as razões pelas quais o homem deveria aindapermanecer naquele lugar. Uma rápida conferida nas quatrofotos e a moto já estava rumando a toda velocidade para umoutro ponto da cidade. Seus olhos e sua boca pareciam comos de uma fera que escapou da jaula e agora persegueobstinadamente a presa que lhe matará a fome.

Não parou em nenhum sinal vermelho, muitos carrosestiveram próximos de se chocar com a moto, mas nadaaconteceu. Ocorreu-me a idéia de que ele mesmo tambémpertenceria a essa série de acontecimentos previstosmatematicamente para acontecer, e como em seus cálculosnenhum acidente com sua moto tinha sido identificado, entãoele não corria nenhum risco.

Não importava a velocidade que corresse, nem aquantidade de imprudências, aquele homem naquele diaestaria cientificamente imune a acidentes. Pois sendo elequem verificaria a ocorrência dos eventos, se ele não estivesselá, eles ficariam sem comprovação, o jogo de conseqüênciasseria modificado, muita coisa que deveria acontecer acabariadeixando sua existência apenas na possibilidade. O mundo

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inteiro, para sempre, seria modificado. Os eventos iriamacontecer, e ele não poderia ser impedido de comprová-lospor nenhuma força existente. Nesse dia, caso minhas suspeitasse comprovassem, esse homem seria absolutamente imortal.

Ele faz o inesperado: pára em um sinaleiro. O verde vem,mas ele continua parado olhando para seus dois relógios depulso. Os carros buzinam para que ele se mova, e acabamdesviando dele. O sinaleiro fecha novamente e um carroemparelha ao lado de sua moto. Reconheço a mulher gordade cabelos vermelhos. Ela mexe no rádio do carro, o sinaleiroabre e ela segue adiante. Ele toma o sentido oposto ao damulher, a toda velocidade. No seu rosto a mesma expressãoobsessiva de quando completou o primeiro evento.

Talvez um evento não precise ser algo grandioso, talvezas linhas invisíveis que constroem a vida e se cruzamescolham maneiras muito diferentes para representar nós domesmo tamanho, talvez as coincidências sejam fios que seenroscam. Ele parece estar sabendo o que faz, e continuanão se preocupando com os carros que atravessam muitopróximos à sua frente.

Diminui bastante a velocidade, está num bairro residencialcom ruas bem largas, começa a andar em círculos em frentea uma casa, sempre olhando para seus dois relógios de pulso.De repente a moça de cabelo vermelho, que eu já tinha vistonuma foto, sai chorando da casa em frente à qual ele andavaem círculos. Atrás dela vem um homem que deve ser seumarido, ela xinga-o, ele pede perdão, ela chora. Diz que quersumir, que não merecia aquilo que ele fez para ela. Omotociclista pára de andar em círculos, ela aproxima-se delee pede para que ele a leve embora, quando vai subir na

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garupa ele arranca a toda velocidade. Por que aquelescírculos? Mais um evento cumprido.

Não será tudo uma armação, pessoas contratadas porele? Dias observando-o em atividades misteriosas que mesugeririam a acreditar que ele iria tentar o que está tentando...eu predisposto a acreditar e só esperando pelas confirmações...então ele se torna o centro da história, o herói romântico queconsegue vencer todas as barreiras para realizar seus feitos.

Minhas dúvidas aumentam, e já não me surpreendoquando vejo a menina loirinha de três ou quatro anos, queeu tinha visto na foto, participando de mais um eventoinesperado e que aparentemente seria impossível prever.

Enquanto não estiver mais seguro de que não estouservindo a outros propósitos que não os de descrever algoque acontece naturalmente, não vou mais mergulhar decabeça em descrições minuciosas... os mais diferentes tiposde eventos aconteceram até o final do dia. Ele parou a motoe com uma caneta foi assinalando as fotos que já tinhamparticipado dos acontecimentos. Demonstrou clara, e bastantecenicamente, que tinha terminado. Beijou as fotos e jogou-as todas para o alto.

Desconfiei ainda mais dele, ele parecia estar fingindoalegria. Um sorriso forçado de alguém que parece estarencobrindo alguma coisa. Depois dessa cena, tomou ocaminho de casa, voltando a conduzir a moto com cuidado.

Quando chegou em casa não estava nem alegre nem triste,esse homem neutro não parecia alguém que tinha conseguidoprovar uma teoria em que tinha trabalhado por vinte anos.Também já não se parecia mais com o fingido de algunsminutos atrás. Nada parecia lhe importar muito.

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Lembrei-me da longa carta que ele tinha escrito ontem,ele parece que também se lembrou e foi procurá-la. Queimou-a. Em alguns pedacinhos que sobraram pude ler as palavras“método” e as expressões “a todo custo” e “para todo osempre”.

Acho que teria sido melhor eu ter esquecido esses restosmal queimados, eles só colocaram pontos de interrogaçãodentro de outros que já existiam.

O que seria a carta? Algo que ele queria dizer caso suateoria não se provasse verdadeira? Um testamento de umexperimentador fracassado?

Idéias e mais idéias borbulham dentro de mim, sei queessas bolhas podem me destruir e a todo o resto. Mas já meconformei com minha condição e vou criando auto-justificativas para aceitar o borbulhamento de idéias.

Será que esse homem já não teria superado a necessidadede se alegrar com suas conquistas? Será que ele, conseguindover como funciona a “máquina do relógio da vida”, nãopercebeu que vitórias e derrotas são como os movimentos deum pêndulo, e por isso encara as coisas com frieza?

O sorriso artificial seria um resquício da época em queainda acreditava em pares de opostos... não sei... se tudo oque aconteceu hoje fosse verdadeiro, eu estaria descrevendoa vida do homem mais poderoso de todos os tempos.

E em sua imensa glória de descobridor da chave de todosos segredos, ele agora prepara um sanduíche... instantes atrásele mudava os canais de televisão a cada cinco segundos.

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Desisto. Isso mesmo, acabo de abandonar o barco, poucome importam as conseqüências. Logo que acordou ele começoucom suas esquisitices, mapas, gráficos, em seguida tirou no-vas fotos de um saco preto que guarda embaixo da cama. Foiquando percebi que isso poderá ser um círculo sem fim, nemimporta mais se o que ele faz tem ou não alguma importância,a verdade é que a partir de hoje, minha missão de descreverseu cotidiano se tornaria totalmente inútil.

Eu repetiria descrições e daria cada vez mais opiniõessobre o que achasse que estava certo ou errado. Tambémestaria sempre desconfiando dele, acharia que tudo nãopassava de uma encenação, e eu seria apenas um fantochemanipulado.

Se minha opção se provar um suicídio, seria o de alguémpraticamente morto. Observo-o riscando palitos de fósforose apagando-os com um sopro, já está terminando a segundacaixinha, depois numera-as e guarda-as no saco plásticodebaixo da cama. Fico feliz em ter tomado essa decisão.

Mas e agora, o que faço? Não tenho a menor idéia, nãoconheço ninguém que já tivesse tido uma experiência comoa minha, aliás, quantas pessoas eu conheço... somente uma.Se fosse para inventar uma existência pessoal para mim, euteria de me basear na única existência que conheço... então,de uma certa maneira, o ciclo recomeçaria.

Se não quero me tornar alguém igual a ele, então paraonde vou? Não conheço nada além dos lugares que descrevi,não sei para quem faço minhas descrições... mas acho que

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se eu me calar, simplesmente deixarei de existir. Fato quenesse instante não tenho a independência para dizer se éalgo bom ou ruim. Mas o que tenho a perder se eu pelomenos tentar continuar existindo de uma maneira diferenteda que fiz até hoje?

Então vejamos o que tenho: da única pessoa que conheçodecidi manter distância, dele e de sua maneira de viver.Conheço alguns poucos lugares em que o acompanhei, nesseslugares vi muitas pessoas... meu caminho é o único queconsigo enxergar... devo voltar nesses lugares e começar adescrever a vida de outras pessoas. O risco que existe é setodas as pessoas forem mais ou menos iguais a ele.

Sei que não são, se comportam de maneira diferente, secomunicam... mas não falo das cascas exteriores... meu medoé... será que no fundo todo mundo não busca, de maneirasdiferentes, as mesmas coisas que ele buscou? Ele seria só ohomem mais honesto e direto do planeta, os outros seriamembromadores que enganam até a si próprios, sem nem aomenos saberem o que buscam. Mas todos estariam atrás dadescoberta de como funciona o esqueleto invisível da vida.

Caso isso fosse verdade, por enquanto é só uma suspeitapouco provável, eu novamente cairia no círculo do qual estoutentando escapar, então minha única saída seria me calarpara não mais existir. Mas nunca saberei essa resposta senão tentar. Eu realmente não tenho nada a perder.

Acho que tenho de mudar a maneira de narrar, com elefui submisso demais, aceitei como um carneirinho obedientetudo que me foi imposto, e foi essa mediocridade que acabougerando minhas dúvidas, minha revolta e meu abandono.Eu poderia ter tentado amarrar minhas opiniões junto com a

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narração, e não fiz, separei as coisas, dividi o que não deviaser dividido... ou então minhas dúvidas poderiam teracompanhado as descrições, a afirmação e a negação juntasfortaleceriam cada palavra e dariam à história uma consistênciabem maior. Quantos pontos de vista usei... disse sempre “elefoi...” “ele fez”, fui pobre... pequeno... mas as dúvidas e orompimento são sinais de que posso dar muito mais do quedei... mil e um narradores transformados em apenas um... umnarrador com olhos de aranha... sei lá, são tentativas semcertezas... tiros no escuro de onde vim, livro fechado.

Amores por idéias... suspeito que tudo se resuma a isso,idéias que mudam de nomes e consistências... arma carregadae eu, de olhos vendados, apalpo até encontrar o gatilho, escolhoaleatoriamente uma direção e disparo... não vejo nada... nãoescuto nem o barulho do disparo... mas eu atirei.

Vou para lá, para aquela praça Santos Andrade, que eleia bastante, ficava sentado nos bancos... onde hoje tantosoutros estão... escolho alguém, vários, todos que estão aqui,narro a história de um de dois e de todos, misturo tudo enarro misturas variadas... um com o todo, dois em um...descrevo a história de todos a partir dos olhos de umapessoa... ou então digo o que todos pensam de um indivíduo.Escolho o olho direito de um homem e o olho esquerdo deuma mulher, e a partir desse ponto de vista revelo o mundoque descubro.

Mundos muitos... mares... eu antes bebia água de umacaneca e reclamava que ela escorria pelo canto da boca.Agora me faltarão milhões e milhões de bocas.

Umas esquisitices umas manias... esqueço osquestionamentos... descrevo tudo o que ele faz, quantos

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movimentos faz com a escova de dentes, os tempos exatosde seu sono e banho, a exata posição com que o garfo entrana comida... ele será minha vida... me protegerá de estaralgum dia sozinho no lugar que estou... praça SantosAndrade... oceano, gentes e olhos, eu sem saber por ondecomeçar, a água me invadindo... mas nesse instante eusabendo que não tem mais jeito... mesmo que queira nãotem mais volta... é mergulhar no algo diferente... enfiar acabeça dentro dos olhos vesgos da vida.

Começo de olhos fechados, ponto de vista cego, sentindoa praça, barulhos, risada, salto alto batendo madeira na pedra.Odores e vento leve com poluição. Adiciono o tato, o frio doscanos das coberturas de ônibus, o pinicante da grama, aaspereza da casca dos velhos pinheiros... vento e um cheirode pipoca quentinha... pequeno cheiro de fatias de bacon quevêm misturadas com a pipoca... pedras geladas do chão,mulher de salto protegida desse frio, nem percebendo que eleexiste... pensa em outra coisa, é um dos oito mil olhos de umaaranha, seus pensamentos estão longe. Mesmo com meusolhos fechados para diminuir as influências do mundo externosobre minha descrição, mesmo assim cada instante é a escolhade um caminho e a negação de muitos outros... escolho cheiros,tato, pessoas que imagino... maquio a narração anterior comcamadas superficiais de diversidade, no galinheiro voucontinuar tentando contar a história de galinha por galinha.

Não são, então, as imagens que evitam que eu narre essapraça de maneira diferente, sou eu mesmo. Fui criado nãosei por quem nem com qual propósito, mas o fato é que soulimitado a uma compreensão linear do tempo e do espaço, eprincipalmente de mim mesmo. Pelo que observo, as pessoas

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na rua também são assim, mas talvez eu tenha uma vantagemsobre elas, o fato de eu não ter uma existência física, pelomenos acho que não tenho, me dá mais mobilidade e maispossibilidades de mudanças.

Como, então, eu poderia me auto-definir? Acho que esse éo primeiro ponto, sem saber quem sou não posso criar retratosaprofundados da realidade. Sou o narrador literário que cansou-se de seu personagem e resolveu abandonar a descrição quefazia... até aí é fácil… isso é muito vago... sou a concentraçãode uma mente coletiva... quase isso... sou o instrumento queessa mente coletiva usa para exprimir-se... sou um pouquinhode algumas pessoas e também de todas as pessoas que jáexistiram. Suco condensado de laranjas espremidas e outrasque, apodrecidas, deixaram escorrer seu sumo para me criar.Mas como eu existem muitos, talvez até, todo mundo queexista um dia prove da minha condição... primeiro virandoidéia, depois idéia espremida.

Não sei se respondi adequadamente, mas tem uma outrapergunta desesperada querendo resposta: e sendo assim, oque devo fazer? Essa pergunta é fácil, só tenho uma coisa afazer: descrever. Se quero fazer isso sem me sentir a marionetede uma só pessoa, então tenho que estar aberto a ser umaidéia que mantém cores diferentes, cores das idéias-mãe,transformando-as mas não destruindo-as, tudo viverá emminhas palavras. Nada será destruído completamente etambém nada ficará totalmente intacto: uma sopa de caldogrosso que alimenta e faz crescer.

Estou tentando me conhecer e a todos aqueles que meconstroem... a partir daí posso me dissolver na praça SantosAndrade, escorrendo pelas árvores, pedras e homens.

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Sou o fim começando, homem doido doente do olharparado, ira: relógio batendo-amor, pedras refletindo o solamarelo, uma coruja solitária que voa na madrugada, uminsone que a observa de um dos prédios que envolvem apraça... em seis anos ele se lembrará dela... chute na barrigada mulher... coruja-solidão seis anos bicando as orelhas e onariz... no sexto ano chute forte na barriga... faca da cozinhana mão... acalmando-se...mulher chorando no chão... facajogada longe... caminhada solitária pela praça escura damadrugada.

Lágrimas cristalizadas de crianças de vinte anos atrás-praça: miserável glória, escuro de dia numa noite iluminada.Árvores mortas fingindo-se de vivas, períodos confusos,esperas angustiantes, alegrias fugazes, gordura, cocô decachorro, artesanato, maloqueiros dormindo em caixas depapelão, ir e vir de ônibus, de pastas escolares, de taxistas,desocupados, crentes, pombos, velhos de bengala eadolescentes saltitantes. Bundas jovens rebolando suasfuturas velhices.

Substância invisível que amarra todos os pontos de vistae todas as épocas , meus esforços para descrevê-la vãogradualmente aumentando, vou sendo permeado porbarulhos, opiniões e sensações que não sei de onde vêm.

Ai... não aquele... sexo... frio... quanta gente morta... umapipoca doce... pra onde eu vou... eu queria saber pra ondeeu vou puta que pariu... não me venham com respostinhasidiotas como para o céu... para o lado de Jesus... eu estoudesesperada, ele disse que o filho não é dele... vontade queme dá é de me jogá debaixo dum ônibus... e depois pensarque esse terreno baldio há mais de trezentos anos atrás foi

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uma praça chamada Santos Andrade, junto dela havia umgrande cemitério de almas chamado universidade... me ajude,vamo cortando essa mata, um dia esse capão vai ser umapraça... sorvetes nesse frio nem pensar... as coisas vão seconstruindo sozinhas, mesmo que a gente não queira, a gentedepois acredita que construiu ou destruiu alguma coisa... ohomem de olho doido e parado atravessa a praça, sorri eninguém sabe do quê.

Uma música alta se ouve no meio da praça, próximo aochafariz central... rádio grande com música ruim o velho queleva o poodle pra passear destrói em pensamento o rádio, odono do rádio destrói em pensamento o poodle.

Chuva deixando reflexos e molhando os bancos... o homemdo olhar doido e doído senta-se no banco bem em frente aochafariz, olhar parado nas águas que voam, nem reparanaquelas que caem. Noites amarelas e brancas, coresmentirosas que alternam-se tentando enganar o escuro, vidaque deve permanecer acesa a qualquer custo. Sempre sim,positivo, dia, alegre, hoje, certo, muito, claro, bom... sempredesse jeito escondedor dos escuros, dores, noites, negativos,tristes, poucos, maus...

Falo da praça-mistura, que só o homem com um olhotorto (e apenas um olho) é que consegue enxergar. Praçaservida por uma rede elétrica, rede etérica, rede histérica,rede mistérica, rede misérica... redes entrelaçadas capturandoos peixes-consciências que por ela atravessam. Peixes com esem pernas, que pulam com grandes passadas, ou arrastam-se com muito sofrimento em busca de uma substância naqual eles possam viver mais confortavelmente.

Nessa noite falsa um sonho atravessa a praça, alguém

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dorme... e sua realidade agora são três formas de cerâmicaazulada com chaminés de barro, fornos crematórios parapessoas pobres, o corpo é inteiro cremado e a família tem dedar um jeito na cabeça. No preço está incluída uma sacolinhade plástico vermelho para a família levar embora sua cabeça.Também está incluído um vôo num pequeno aviãozinhovermelho para que a família possa jogar as cinzas sobre apraça Santos Andrade. Não serão aceitos atiramentos decabeças, nem será permitido que ela seja enterrada na praça.

Num dia cinzento chovem cinzas de mortos sobre ascrianças que brincam na praça... atravesso, ou não sei seseria melhor dizer, atravessa-se para outra esfera... reparoque de agora em diante as coisas precisarão cada vez menosde minhas intervenções e fluirão... pensamentos atra-vessando a praça colidem-se, criam terceiras idéias...amanhã eu vou falar tudo para ela... furo o disgramado noolho, diabo vesgo... pra que estudar esse monte de bobagensque não vão servir para nada... ontem eu sou aquele quenão repara em nada... vulto escondido nas sombras dasestátuas... mulher exibida orgulhosa de sua juventude...inglória... incauto João montão de ódio de Maria... sonhado-melhorado-ganhado-disgramado-amanhã... amanhã...emprego bom vale transporte... doce de presente sem queela espere... gente rica deve de ser feliz... enjôo na fila-canseira-demorada... um eu e dois tus e três eles e quatronós de marinheiro que não consigo desatar, amarras que ocapeta fez na minha vida... velho desdentado e fedorento...estudantes e estudantes... está tudo tão bem, tenho deagradecer a Deus... novena no Perpétuo Socorro que gritadesesperado porque não sabe porque existe toda essa

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montanha de ossos e de intenções de existir para virar ossono centro da carne... daí a gente salga bem, põe umbucadinho de limão, e deixa uns dez minuto, pra meia-noitedo meu último aniversário, azar, seja o que... o azar quiser...ou a sorte grande: moça boa, bom emprego e agora essabonequinha que é a alegria da casa subterrânea onde moravao homem que não queria ser homem pois achava que serhomem era feio e triste, bicho salgado pelos canos de esgotoque pingam dentro de sua pogilgacasa, pele amarronzada,sujo-esverdeado, deu-se o nome de Azulão um céu dessesdá até alegria na gente, vontade de ver aviõezinhos vermelhoscortando o azul-Marinho era guardador de carros na praça:escrevo poesias com o dedo nos carros sujos, nada de: lave-me... às vezes um viva-me ou morra-me, ou deuse-me oudiabe-me, cada corridão, filho da puta, chute, caí e quebreio joelho, puxo a perna até hoje... você está bem mas penseno amanhã, pense no futuro, arrumar uma moça decente,fazer uma poupança... só acreditando e lutando é que ascoisas boas acontecem, acontecer é a vírgula no existir, ondano mar da vida... olhem lá, aquele cara jogando moedas nochão e depois olhando para elas como se fossem se mexer...Paulinho cheradôzinho de cola, ele é odiado pelos hippiesmaconheiro que vende artesanato... célebro distruído ele falade trás pra frente... as letra , as palavra e as idéia.

“Vamo pegá esse putinho?”“Uma surra...”“Eu queria era apagá o vagabundo de vez mas vamo

primero dá uma surra pra vê se ele aprende... moça bonitaolhe os brinco os colar, dá uma paradinha aqui eu nãomordo... fumo sim, mas não faço mal pra ninguém... é só

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pra dexá as idéia mais livre... volta volta pro teu celularzinhosua burguesinha... pode chamá os guarda...”

“Algum problema companheiros, a moça...”“Num mexi com ninguém, nóis somo tudo trabalhador,

tamo suando pra ganhá nosso pãozinho...sou pai de família,aquela ali é minha mulher...”

O loque tá triste porque as moeda dele não saíramandando, jogô longe, cata lá, tem um e cinqüenta, tomaraque o loque volte amanhã... é amanhã é dia vinte e três, diade prova e eu ainda não estudei nada, vou virar a noiteestudando, olha aquele neguinho escrevendo com o dedo nasujeira do carro : “Estude-me”.

“Fome pra come... mefo pra meço... cola... laco...lacozinho qué... chero... cherinho... leite-telei... poco...chero... mulher na estáuta...”

“Cuidado que esses pivetes drogados têm a força de trêshomens, eles têm sempre uma faca escondida.”

Plic, plic, plic, plic, grama sentindo pinguinhos, nariz daestátua de bronze ganha gota de garoa... pressinha, estalonegativo de língua... hippies recolhendo artesanato... e eu, onarrador que já soltou-se um pouco mais, achando que possoesfarelar-me na realidade e amarrá-la com meus átomosgrudentos... posso ser a cinza-sonhada que impregna os petit-pavês sugando deles sua essência e voltando para recomporum corpo à prova de fogo.

Brisa, brisa, uns ramos secos dos pinheiros que caem,calçamento brilhoso e escorregadio, sombrinhas e pressa,luz que cai, pipoqueiros fecham seus carrinhos e guardamseus radinhos, as pombas já sumiram há muito tempo,trânsito confuso, relâmpago aparece entre os prédios, tem-

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poral, o chafariz inútil jorrando água, táxis alaranjadoscontentes... fim de noite molhada mas calma, barulho desapato pisando nas poças, pombas apertando-se nosburacos das árvores e nas marquises dos prédios.

“Nossa vida é o caminho morro acima... descemos omorro arrastados para baixo pelo tempo... mas tambémsubimos... engraçado, e quando chegamos é que olhamospara o caminho percorrido... estamos no alto e não há maispara onde subir... sentimos que já descemos até ondepoderíamos... olhamos para nós, para o pouco que há noalto do morro... e daí o que acontece é sempre o mesmo,gritamos e escutamos o eco que nos responde : agora eumorro...”

“Você só quer destruir, eu quero construir um futuro quetenha alguma coisa... sólida... nada te seduz, você vivenessa eterna fuga de alguém que não ama nem detestanada... eu te amo, mas sinto da tua parte uma indiferençaque me fere, às vezes gostaria que você dissesse que meodeia, contra isso eu poderia lutar, mas contra a indiferençafico de mãos vazias...”

“Que horas você termina teu trabalho?”“As hora num passa, é essa varreção que acaba com as

minhas costa, num tenho mais saúde, um home na minhaidade tinha de tá cuidando dos neto e num pudia ficátomando chuva nos corno... eu sempre tive medo dessascoisa, pra dizê a verdade pro sinhô eu achei isso sempreuma bobage, mais agora tomei corage, essas dor num dámais... vô fazê a cirurgia com o home que recebe o dotorFritz, ele corta e ocê nem sente dor, uma cunhada minhatava desenganada, ele tiro da barriga dela um tumorzão do

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tamanho de um frango assado, hoje tá vendendo saúde.”“É amanhã... de amanhã não passa, te juro... antes eu

tinha dado o prazo máximo de abril, o tempo foi passando...a filha de quinze anos, o emprego da mulher... sempre tinhadesculpa... odeia a mulher... não suporta mais dormir aolado dela... não quer magoar... sair na boa... nosso futuro...eu aluguei o apartamento... nosso apartamento, as coisasdele todas lá, mas ele na casa da mulher e da filha dequinze anos... ela não pode sofrer... mas eu posso... noitessem dormir... molhada de lágrimas, lâmina na mãopasseando pelo pulso, caixa inteira de comprimidos paradormir... idéias de carta jogando toda culpa nele... pesopara ele carregar pelo resto da vida... ou duas semanas detristeza e acaba arrumando outra igual a mim pra ficarenrolando.”

“Sou fraco... foi isso que ele me disse quando pus elecontra a parede... sou fraco e escolho a segurança... amovocê mas prefiro ficar ao lado do meu lar. Filho da putadesgraçado mentiroso... vai ver tua família de merda...mando bombom envenenado pra tua mulher... vai chorarno caixão de tua filha virgem-puta. Desgraçado me destruiu,pisou... nunca mais vou gostar de ninguém... vou fazer oshomens sofrerem...essa praça me agonia, mas não tenhovontade de ir para casa, pra junto das coisas do porco...”

“Tem tudo pra dar certo, o pontinho é bom, limpinho,perto de ponto de ônibus e escola... uma coisa pra família...sanduíche, sorvete, cervejinha, nada de pinga pra não juntámaloquero... tenho a máquina de fazê picolé, as criançalevam os pai e as mãe... fecho cedo... cansei de bar... agente fica penando até as três da manhã pra recebê

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cinqüenta centavos de uma pinga... a bebadaiada pidindotudo fiado.”

MENSAGEM PARA VOCÊ:SEI QUE FUI FRACO. MAS CONTINUO TE AMANDO.

“A mulher loca jogou o celular na fonte, entra lá e vê sepega, a gente seca ele e vende... troca aí com os malandropor algum bagúio. Chora muié, chora que nóis tamo rindo astuas custa... dá o bicho aqui que nóis racha a grana.”

“Eu que peguei, o negócio é meu... tô todo molhado nessefrio...”

“Ô irmão, mais fui eu que vi... num qué dá tudo bem, ascoisa tem volta... o mundo vira todo dia de cabeça pra baxoe nóis continua dentro dele...”

“Não vivemos, acontecemos como todo o resto... o verboviver é mais uma supervalorização semântica de mais umacontecimento corriqueiro do universo. As coisas acontecem...as agulhas vão perfurando o eterno pano escuro... são agulhasque furam, mas não podemos ver o outro lado, de onde elasvêm, então descofio que elas sejam as mesmas agulhas queteceram o tecido, e que agora o atravessam.”

“É muito fácil e muito confortável o teu mundinho... muitasmoças podem se sentir atraídas por tuas palavras bonitas.”

Tenho de ficá esperto, num vô dormi hoje na marquise dauniversidade... me bandeio pra otro lugar... num vô morrêpor causa de um celular que num tá nem funcionando...conheço papo de malandro véio... ele é perigoso... tatuagede presídio... amigo dos cana... pode inventá história... tôde mudança...

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“Não vendi quase nada... eu fiz essas cocada pra pagá apensão que moro, é o primero dia, ganhei dezesseis real,tirando as dispesa eu andei o dia todo por causa de uns oitoreal... vô tentá amanhã... esses prédio de escritório, seconsegui entrá lá é mais fácil vendê... tenho de ficáescondendo de fiscal... quem tem um carrinho de pipoca éque é feliz. Fiscal respeita, só lida com criança e família...vive cheio de pombo em volta.”

“Aquela ali, tá vendo, toda estranha e maquiada, jáexperimentou conversar com ela... aquela mulher é de outroplaneta, vive num mundo alucinado, é engraçado, porquenão parece louca de nascença, parece que foi ficando... nãoria, senão ela encarna na gente e não larga mais.”

“Putinhos queridos, eu sou a Ontem, embrulho depresente de natal da infância rasgado... onde andarão todosaqueles embrulhos, hein, hein... vocês não sabem nem sepreocupam com isso... posso ver que são um bandinho dedespreocupadinhos.

Papéis embrulhados, reciclados, amontoados, dinheiros,anteontens, doces caseiros, festivais de homologação açúcar-canto, moinhos de vento em bolos... grandes coisasadocicadas, livres de amargos-picles, azuis esverdeados-escuros, potes difíceis de alcançar, baleiros que fazem barulhoquando giram. Vocês e eu e os outros... aqueles que não sãonem serão... amargos paladinos do palato... narizesescorrendo nas mangas escolares... todos eles e eu e os cortesque me fiz com cacos de espelho. Maduros mamõesapodrecendo nas madrugadas... geladeiras inúteis... revistasque desperdiçam papel... onde estão, vocês ainda não meresponderam, seus putinhos despreocupadinhos, onde estão

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os papéis de presente que embalavam os brinquedos dasnossas infâncias? Papais Noéis em trenós, meninas loirinhasde cabelos cacheados, simpáticos sapos de olhos grandes,ursinhos marrons de olhos mortos... distrações sutis e ascoisas mudam... alguém, em segredo, leva embora os papéisque embrulhavam nossos presentes... piscada de olhosinimiga... teatro com contra-regras rápidos... sorrisossuspirosos do mistério sem entendimento... não precisamnem dizer... já entendi... sei que chega.”

Grau após grau a praça vai se resfriando, mãos passandopelos braços, mãos no bolso, friozinho aumentando, corposcontraídos, e eu... aquele que finge não existir e que não seimporta com frio nem chuva, aproveito minha independênciapara descrever o que vejo... quem sabe anoto alguma coisano caderno amarelo... páginas em branco, na última páginauns rabiscos de idéias que surgem antes de dormir, e tambémum número de telefone. Somo todos os algarismos e chegoao nove, parece que nove quer dizer alguma coisa relacionadaa sucesso ou coisa que o valha... as páginas da frentecontinuam em branco, e se o nove for sucesso mesmo, restasaber se é sucesso o que eu quero. Eu quero é não sofrer...mundo doente feito por pessoas doentes, a solidão da saúde,o saudável passa a se sentir mal diante de tantos doentes, eacaba arrumando um jeito de adoecer.

Escrevendo estou tentando manter-me saudável, mesmoque passe a ser reconhecido como alguém doente. O difícil édar o pontapé inicial... o que realmente tenho a dizer... faloque as pessoas são doentes e que não sabem que são... digoque tenho sensibilidade para enxergar esse desequilíbrio...ou digo mais, que tenho a solução para esse problema.

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Não sei se o desequilíbrio que enxergo... acho sim que eleexiste... mas talvez o melhor fosse se render a ele... talvezcombatê-lo... mas não sei como, não tenho nenhuma receitapronta. Então escrevo cheio de dúvidas... não sei se nesseinstante eu deveria estar nessa praça com esse caderno amarelonas mãos, escrevendo... ou se haveria algum outro caminho.

Na verdade sou um egoísta e só o que quero é não sofrer...e a doença dos outros me incomoda, por isso tento criar ummundo artificial com pessoas saudáveis, ou ao menos pessoasque estejam buscando suas curas.

Frio e garoa aumentam e eu aqui sem saber para ondevou, cheio de dúvidas, enquanto todos parecem ter a certezade que agora o importante é caminhar depressa para fugirdo frio e da chuva.

Caderno em branco começando a ficar molhado,melancolia... não consegui curar ninguém, hoje à noite asferidas abertas dos doentes ficarão roçando no meu corpo,o cheiro dos podres invadirá meus sonhos... vô ligá pra elaamanhã, maió gata loira... convidá pa i no som, dançámúsica lenta... num tem uma qu’escape... ela é bonita etambém é crânio... tá fazendo cursinho, diz que vai tentáfaculdade de dentista, trabáia de secretária de um dentista...pá essas moça fina eu num digo que sô motoboy... trabáiona ária de transporte logístico... num tô mintindo... coisalinda, educada, essa é pa casá... pedi um vale hoje e fui naAmericana, calça nova, olha só o sapato, perfuminho doimportado... meu cunhado imprestô o carro pro fim desemana... tenho de devorvê de tanque cheio... mais vale apena... tô até nervoso, acho que ligo pra ela lá pelas duasda tarde... o negão tá apaxonado quem é que vai acreditá...

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até teus olho tão brilhando diferente... vai fundo véio... essascoisa boa da vida a gente tem de aproveitá mesmo... senãodepois viramo um bando de véio triste que deixaram a vidapassá em branco... não sei se tô apaixonado, mais queromuito conhecer ela melhor... vamo vê amanhã, de repenteligo e ela me dispensa...

“Saco grande de pipoca saindo por cinqüenta centavos...olha a sobra, tá quentinha ainda... um real leva três pacotegrande.”

“Um pra mim.”“Dois pra mim.”“O senhor embrulhe todo o resto que vou levar... tenho

um real e mais... aceita uma troca por umas cocadas quesobraram da venda de hoje?”

“Me dá só as cocadas que tá bom demais...”Eu naquele quarto de pensão com esse monte de

pipocas... ainda tenho que prepará as cocada pra amanhã...que desânimo... ridícula criança-véia morando num quartinhoe comendo sua pipoquinha... que tristeza, grande vontadede tomá formicida... as manhã num tem mais graça... sóque tem umas coisa que não se enxerga, que continuaempurrando eu pra frente, continua não me dando corage decomprá o formicida ou de me jogá debaxo dum ônibus...pensão, a palavra já me dá um vazio, esse frio, a garoagelada... o home nem quis o real que ofereci pra ele... achoque nem queria as cocada, virei as costa, deve de tê jogadono lixo... num é a precisão de dinhero que amoleceu o coraçãodele, tá cheio de maloquero pidindo pipoca de graça praele... o moço viu que eu tô cheia de tristeza... um buracãosem fundo no peito, que deve dá pra vê até nos meus óio...

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vontade de sentá no chão, mesmo com chuva e frio, e ficápra sempre sentada, sem se mexê, sem fazê nada... o moçopercebeu o jeito que tô... quem é que vai se aproximá demim desse jeito... todo mundo tem medo de buraco grande...as noite as vez cura nóis, os sonho, a gente acorda diferente,as coisa muda um poco, o sol aparece, as vez a gente esqueceque ontê mesmo queria se matá... minhas pipoquinha tãogostosa, minha janta... amanhã é dia de férias... caminháno centro, chupá sorvete, olhá os passarinho no PasseioPúblico... esqueço as tormenta de hoje... durmo... vô sonháque acabô essa dor miserávia na cabeça, esse buracão vazio...“miseraviozinho mal educado vai infiando a mão na minhapipoca, filho duma cadela sarnenta, os polícia bem que po-dia dá fim nessa raça de maloquero cheradozinho de cola...a tia ficô braba... cuidado tia que a gente te fura, nóis temofaca, revórvi, ispada, temo até canhão... pegamo e despoisdamo tiro na tua bunda mole e despois fazemo umchurrasquinho com tua carne véia... a tia tá chorando... nãoloca não faça isso... a desgracida jogo todas as pipoca nochão e pisô em cima”... a chuva aumentou... o céu tádesabando... todo mundo apertadinho debaixo dos pontosde ônibus... luvinhas de lã saindo das bolsas... os faróis acesosdos ônibus mostram a velocidade com que os pingos d’águacaem... sinto o cheiro de suor e chuva, o desejo de encerraresse dia o mais rápido possível está escrito nos rostos daspessoas... talvez para mim também seja o melhor a fazer...ainda tem lugar que está aberto, mas ninguém mais vai quererme atender agora, hoje fiz tudo o que pude, visitei mais dequarenta lugares, uns trinta nãos e mais umas dez promessasde examinar meu currículo... e qualquer coisa a gente entra

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em... não vou me desesperar, é ir tentando dia após dia,esquecer os nãos... as contas, o espelho, esquecer até oque começo a pensar de mim mesmo... obstinadamentecontinuar... essa gente toda que espera o ônibus, eles estãofazendo isso, continuando... todo mundo não faz senãocontinuar... a chuva vai diminuindo... amanhã vaiamanhecer nublado e meio frio... mas eu irei bater em trinta,quarenta, cinqüenta portas... vou me oferecer... façoqualquer serviço, sou honesto, educado, boa aparência, semantecedentes criminais, esforçado, quero crescer, souexperiente, trabalhador, inteligente, criativo... não, criativoacho que deixo de lado, inteligente só falo em último caso...tenho tantas qualidades que... nem vou pensar nisso... achuva parando, acho que vou a pé pra casa, assimeconomizo a passagem de ônibus.

Gente, gente, chuva, barulho, árvore, folhas caídas,passarinhos escondidos, minhas asas molhadas, barulho,galhos caindo, movimentar, secar as asas voando, gente medo,gemedo... gemedo... mexer-voar... mexendovoando-árvore...mexendovoandoárvore... silêncio-tranquilo... silequilo...silequilo... árvore grande... árvorende...

“Mãe, olha ali no galho aquela coruja de olho amarelo,agora ela voou...”

“Não, deve ser outro tipo de pássaro, coruja aqui nãoexiste.”

Eu tentei, tentei mas não consegui escrever nada, temdia que a coisa não acontece, não adianta forçar... essasenhora toda molhada... tá abraçada no ferro da coberturade ônibus como se fosse numa pessoa... o rosto dela tá todo

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molhado, mas acho que ela andou chorando... encosta aboca no ferro... olha para as gotas que escorrem da coberturae caem nas poças d’água que se formam no asfalto escuro...ali há muitos livros... ou pelo menos um grande livro... olhosque um mau escritor definiria como “sem esperança”... nãosei se sou bom ou mau escritor, mas sou um esforçado-cavocador-tentador, então não me contento com “semesperança”, esvaziados, alheios à vida, desencantados,soturnos, nada ainda descreve bem os olhos dessa mulher...desgostosos, trágicos, desapegados, destruídos, mortos,destroçados... não é fácil não ser um medíocre, porque “semesperança”, ainda é melhor que todo o resto.

Não desisto... não preciso de uma definição exata: olhosde esmeralda enterrada, enterralda esmerada... enterradaesmerdeada esverdeada... enterrada esverde-água... enteadaex-verde-água... brincalhão-bobão, covardinho... fácil rir dosoutros... invento algo para mim... sou o que... um merdoso...um merdroso pensadoiro... cavocador de fossa de esgoto...bosteiro que só cava em lugar molinho... molenga moloso,molusco incrustado no fundo das fossas sépticas... merdungomerdoso-olheiro-olhoso-oleoso, suador de excrescênciascriadas por mim – processador de sabores e histórias – demim tudo escorre para o chão e é engolido pela terra-fazedorade poças inúteis mijadora das calças – é um pouco de tudoisso o que sou.

Mulher desgraçada com a boca no cano da cobertura deônibus...você me fez ir para casa com um nó na garganta...teus olhos são podres, eles não têm esperança.

...se fizer sol domingo a gente podia fazer um churrascolá em casa... convidar o pessoal... rachamos as despesas

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com todo mundo... é, só que pra mim sobra a trabalheira dearrumar tudo, enquanto isso você fica roncando de barrigapra cima... não, eu te ajudo, não se preocupe... da outra vezvocê também disse que me ajudava e oito da noite já tavadormindo de bêbado no sofá da sala, e eu fiquei até onzehoras limpando a casa... tá bom então não fazemos porcarianenhuma de churrasco, ficamos o domingo todo assistindotelevisão e aproveitando nossa maravilhosa felicidadedoméstica... engraçadinho, enfie tua ironia no rabo, se nossavida é um inferno é por tua causa, nunca conheci ninguémmais egoísta que você, e esses churrasco que você inventacom aquele bando de bêbados são uma mentira, você menteque somos um casal, mente que é feliz, mente e mente, eunão participo mais disso... tá bom, tudo bem, você é quevive num mundo bem verdadeiro, adora teu trabalho, tratatodo mundo com sinceridade, em casa está sempre pensandoem coisas construtivas, você é realmente um grande sucesso...não te agüento mais, não sinto mais nada por você, nemódio, que já senti bastante, agora você é só um chato queestá sempre querendo me atrapalhar qualquer atitude queeu tome, acho que tem muita inveja de mim...

“Mãe, por que o homem e a mulher estão brigando?”“É coisa de gente grande?”“Mas toda gente grande briga desse jeito?”“Só os que não têm Jesus no coração.”“Se eu tiver Jesus no coração, quando for grande, daí eu

não vou brigar, como é que faz pra Jesus entrar no coraçãoda gente?”

...volte pra tua casa, que não é mais minha, façachurrasco todos os dias o dia inteiro, beba até morrer, eu

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vou embora, não preciso de nenhum chato insignificantebloqueando minha vida... você não sabe o peso que tiradas minhas costas, obrigado por essa notícia que esperavaouvir há tempos, nunca quis te dar um chute na bunda esempre fui te suportando porque senão eu saberia o teatroque você armaria, se fazendo de vítima, usando minhafamília contra mim, como foi você que tomou a iniciativaeu me sinto aliviado, só de saber que nunca mais precisareiescutar tuas reclamações, é uma nova vida que começa...mas não pense que as coisas vão ficar por isso mesmo,agora teu negócio é na justiça, pensão e tudo mais, vai tecustar caro ter estragado minha vida...

“Mamãe porque eles não deixam Jesus entrar dentrodeles?”

...você chegou no ponto que sempre te interessou, a vidapra você é só dinheiro para comprar porcarias inúteis, cremespara as rugas, você tá bem judiadinha, do jeito que tá vai terque fazer umas dez plásticas pra depois tentar arrumar umoutro trouxa que caia no mesmo conto do vigário.

“Mamãe, o que é conto do vigário?”...gente, gente, gente... pássaro escondido, galho

molhado-luz-gente-barulho-cansada-pousar-confusa-medo-gente-chuva-barulho: voando-voando-olhos vermelhos depomba-fome-cansada-voar-quero pousar...

“De novo, você não viu ali mãe, a coruja de olho amareloque te falei...”

“Hoje você tá insuportável, fique quietinho até a gentechegar em casa, senão vou te botar de castigo.”

Acho que para mim de hoje em diante as coisa tantofaz... tristeza é toda eu... encostada nesse ferro frio meu dente

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começô a doê... mais essa ainda... dor por tudo que é canto...chuva parô... essas poça d’água escura que as pessoa móiaos pé... isso é tão triste. Fazê o que? Fico sentada num bancomoiado da praça...espero num sei o que... se for pr’otro lugáas coisa num muda, é dor doída no espírito e no dente... souum dentão comido que dói... esse tabulero de vendê cocada...jogo fora... dô um jeito de agüentá as dor e amanhã começoas venda de novo... num sei de mais nada... queria só é paráde sofrê... tô toda moiáda, quexo batendo... vô me arrastáaté a pensão... dormindo a dor diminui.

Sim não... aquela lá... vinte e dois pacote de salgada...amanhã cedinho no escritório... um baita dum soco nas fuça...cola ronhedi pra colacherá... árvoregentepousácansadafome...êta bicho bonito... essas luvinha esquenta mesmo as mão...tô preocupada com a vó, ela parece que desacorçoô da vida...vão levá uns três gol amanhã, tá valendo uma grade decerva... eu me cuido, se pego piazão sozinho de noite, eusento em cima do trinta e oito, pede pra ir longe já desconfio,se se engraçá apago o vagabundo e jogo no rio... absurdo,na minha época isso não existia, as mulher era tudo maisrecatada, não era essa putaiada de hoje em dia... Deus dátudo conforme prantâmo, se prantâmo só erva daninhacoiêmo só disgracera... tô tão feliz ultimamente, sem razãonenhuma, tudo me parece perfeito, quando dou uma garfadade comida o gosto dela me parece a melhor das coisas, outrodia até me emocionei... só não estrague teu bem-estar como medo de perdê-lo...pare de chorá, menino chato, a mãenão tem dinhero pra ficá comprando bobage, nóis somo gente

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pobre... gente estranha que pensa de maneira diferente dade todo mundo, o que pra nós é A, pra eles é B, talvez até Aequivalha a algum número ou um objeto qualquer, eles vivemem outro planeta, mas aparentemente levam uma vidaparecida com a nossa, tem suas casas e rotinas, mas é nospequenos detalhes que aparecem as grandes diferenças.Conheço um tipo desses, é contador, pai exemplar de trêsfilhos, bom marido e sem vícios, leva uma vida absolutamentepacata e previsível. Exceto por um pequeno detalhe, todasas madrugadas, do dia 17 para 18 de cada mês, ele acordaexatamente cinco minutos antes das três horas, apanhaembaixo da cama uma lata de azeite de oliva que comprouno mesmo dia e vai até a geladeira, abre a porta, retira tudoque há lá dentro e coloca a lata. Não fecha a porta, senta-sesem camisa na frente da porta aberta que expele vapor gelado,e fica assim até exatamente cinco minutos passados das cincoda manhã. Nesse horário retira a lata, recoloca tudo o queestava na geladeira e vai para o quarto dormir, antes põe alata embaixo da cama. No dia dezoito a única mudança emseu cotidiano é, além de eventuais resfriados, uma paradaem algum terreno baldio distante para jogar a lata de azeitede oliva.

Essas pessoas, que são muito difíceis de reconhecer poistomam sempre muitos cuidados para não serem identificadas,não são loucas, não tem nenhum desequilíbrio psiquiátrico,elas tomam essas atitudes por razões lógicas, e têm objetivosa atingir com elas. São trabalhadores incansáveis de suascausas, e desconfio que consigam se reconhecer entre si.

Sempre quando vejo alguém fazendo alguma coisaabsolutamente inútil, que não trará benefícios ou malefícios

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pra ninguém, desconfio que possa se tratar de um deles.Mas na quase totalidade dos casos, após um exame um poucomais apurado, descobre-se alguma espécie de interesse.

Os desinteressados também têm seus interesses, mas achoque o que os diferencia de todo o resto, não é somente queeles sejam secretos e obedeçam a uma ordem quedesconhecemos, mas principalmente que eles são vento...que se mexe e balança as folhas das árvores. E o interessedeles, não é nem propriamente o vento, nem o movimentodas folhas, mas sim o conjunto de tudo. E como força-vento,esse tipo diferenciado de desejo, muda de direção, deintensidade, interage com árvores, pessoas, bichos, objetos,com a chuva, com outras rajadas de vento, e em cada umadessas relações cria novos resultados de múltiplas mãos.

...gente não... gente não... gentão... tranqüilo... nãobarulho... não medo-tranqüilo-eu... árvores e escuridão...arvoredão... bato asas... batasas molhadas-cansadas... semgente... sem perigo... semigo... cansadafecharolhos...tranqüilas asas quentinhas...

Eu fico olhando ela dormindo ao meu lado... vou para asala e olho a praça vazia... o relógio vai dando voltas e eusempre acordado, reparando nos detalhes das coisas... bibelôsque decoram a sala de estar, o calendário do mês passado, obarulho do motor da geladeira... bebo água, mais do quepreciso, ligo a televisão bem baixinho, mas ela logo mechateia... respiro fundo porque sinto um pouco de falta dear... como uma maçã pela metade, o relógio do forno demicroondas vai me informando do tempo que passa... não

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tenho sono... começo a sentir uma irritação crescente contracada objeto do apartamento... o motor da geladeira desliga,está calor, abro um pouco a porta para me resfriar... o cheirode comida invade toda a cozinha... na sala, pela primeiravez reparo de verdade na decoração do apartamento, ela meparece um moderno que envelheceu rápido... será que eutambém não sou assim... tenho de tomar alguma atitude,porque nesses dias de insônia, é normalmente a essa horaque pensamentos tristes e negativos começam a me invadir.Vejo lá embaixo os lixeiros trabalhando na madrugada.

Com cuidado entro no quarto e apanho uma muda deroupa, visto-me na sala e desço, uma caminhada, um poucode ar, o porteiro da madrugada acorda sobressaltado, peçodesculpas, não explico nada, ele que pense o que quiser.

Ainda está totalmente escuro, os lixeiros partem e eu soua única pessoa da praça, pelo menos a única acordada, reparoque existem várias silhuetas sob as marquises e até ao ladodo chafariz. Vou sentar num dos bancos como se hoje fosseum domingo de sol, foi uma boa idéia ter descido um pouco,as pombas estão todas encolhidas nos seus cantos sobre osgalhos das árvores, dormem apertadas umas contra as outras.Poucos barulhos, uma moto potente acelera a todavelocidade, mas o ruído chega fraco porque vem de longe.Escuto o apito de algum vigia, baixinho o zumbido de rádioque deve ser de algum taxista... uma brisa quebra um poucoo calor estabelecido, continuo fazendo o mesmo que dentrodo apartamento, reparo nos detalhes... começou a clarear,acho essa hora a mais triste do dia, mas aqui fora estouprotegido dos pensamentos sombrios... pelo menos emparte... um instante raro, nenhum ruído, só o dia chegando...

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Aquela mulher que dorme comigo todas as noites... assimmesmo é que eu deveria chamá-la... eu não a conheço...fingimos um para o outro uma intimidade que não existe,somos dois peixes que estão fisicamente próximos, mas cadaum mora dentro de seu próprio aquário... não estou dandopassagem a pensamentos negativos, é meu instante dehonestidade... ela tem tanta culpa quanto eu dessa situação...não sei se é toda ou nenhuma... na verdade eu deveria meperguntar porque nós vivemos juntos, e dormimos todas asnoites, faça frio, faça calor, na mesma cama, todas asrespostas tradicionais para essa pergunta me parecem vaziase fáceis de rebater... às vezes fico olhando para ela enquantodorme, e daí é que minha dúvida aumenta, por que nósestamos nesse lugar?

Os primeiros trabalhadores começam a atravessar a praça,os passarinhos já acordaram e fazem barulho como seestivessem no meio da mata, será que eles também não seperguntam por que estão aqui?

A luz e o barulho agora aumentam rapidamente, a cidadeestá acordada, é preciso se apressar, os patrões, o dinheiro,a comida, bocejos, ônibus, caras de sono, o dia começamesmo quando escutamos a primeira risada... hoje vai fazersol... o cansaço está chegando, é o sono estragado dosinsones, tenho de resistir a ele. Espero mais um pouco, tomoum banho frio e vou trabalhar...

“Cocada, tem da branca e da preta, vamo lá freguês, pracomeçá o dia docinho, aceito vale transporte, um vale duascocada...”

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Essa hora num dianta, cedinho ninguém compra nada,compra um poco despois das déiz e despois do armoço...mais eu que num ia de ficá chorando e infiando caraminholana cabeça... ontê foi triste, se a gente trabáia esquece depensá nessas disgracera... e tem muitas dela que é nóismesmo que ponhamo na nossa cabeça... vô me esgüeláberrando “cocada”, ando o dia todo, chego na pensão indatenho de prepará as de amanhã, despois desmaio e já é otrodia... é assim que as coisa funciona... dia lindo hoje... ascoisa é assim, onte pensando em tomá veneno, hoje já maisanimadinha, é que nem a chuvaiada que caiu e agora esseceuzão bonito sem nuve. As coisa nunca são de um jeitosó... as coisa são de tudo que é jeito... nas noite a gentechora e nas manhã a gente ri... e as vez acontece o contrário...

“Da preta e da branca, a cocadinha pr’adoçá o dia...”“A senhora tome cuidado que essa praça tá cheia de pivete

ladrão. Eu mesma já fui assaltada duas vezes.”“Brigada moça... já conheço esses cheradozinho de cola...

mas ele me respeita, num mexe comigo não... a moça numqué compra uma cocadinha pra me ajudá?”

“Depende do que você quer fazer com o computador, eumonto ele do jeito que você quiser, se quiser tenho uma placade som e imagem que você pode pôr qualquer jogo, baixarvídeos grandes, fazer o diabo, e não custa muito caro...”

“Você vai pensar que eu sou um adolescente bobo, masessa idéia eu já tenho há um bom tempo... na verdade sóquero um computador que seja bem rápido, tem umas coisasque quero testar... faz mais de um ano que venho

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trabalhando numa fórmula... uso computadores de amigosou vou em alguma lan house... mas agora não dá mais,preciso ter meu próprio computador, tenho os programas quepreciso que pirateei via internet... tô querendo desenvolvêum programa meu... é um lance difícil mas acho que tôpróximo de fechar, só faltam uns detalhes...

Como é que as coisas funcionam. Meu programa vairevelar isso... tipo assim, se tô a fim duma guria do colégio,o programa vai me mostrar os caminhos com maioreschances matemáticas pra conseguir ela... e isso se der certo,vai valer para tudo, as maiores possibilidades matemáticasde conseguir um emprego, de como ganhar mais dinheiro,de onde e quando estar para que as coisas boas aconteçamcom você... e isso é só o começo, o programa poderá serutilizado de muitas maneiras, pra acabar com a fome, comas guerras, com tudo de ruim... sei que isso parece umsonho de criança... preciso de um computador muitorápido... vendi prancha de surf, skate, juntei mais umapoupancinha que tinha desde criança... eu acredito nisso,ainda não tenho nenhuma prova concreta, mas tenho todasas equações na cabeça, revisei tudo centenas de vezes, nãotem como dar errado... sei que isso pode ser uma coisaperigosa... Santos Dumont se matou porque usaram o aviãoem guerras... eu apreendi com a história, não voudecepcionar o mundo...”

“Liguei pr’aquela gata que tinha te falado, ela foi superjóia comigo, conversamo bendizê uma hora... marquemode eu passá na casa dela amanhã de noite... tava pensandoem levá ela direto no som... mas depois pensei que lá a

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gente não consegue conversá direito... gatinha dessas devegostá de lugar fino, tipo uma lanchonete.”

“Com licença mocinhos , desculpe interromper a conversade vocês... que devia estar bem interessante pelo queescutei... queria saber se os dois poderiam me ajudar aencontrar meu brinquinho encantado... eu perdi agorinhamesmo... deve estar por aqui ou ali...ou até nesses fundõesde mares escuros e traiçoeiros. É um brinquinho pequenino,do tamanho de um grãozinho de arroz, talvez ainda menor,da largura de um fio de cabelo... se vocês me ajudarem, nãose preocupem, eu saberei gratificar muito bem... um docepara cada... dois... uma caixa grandona de doces para cadaum. Deixe-me explicar como o meu brinco é, melhor dizercomo ele funciona, porque ele às vezes é, e às vezes não é,sei o que vocês devem estar pensando – essa bonita jovemsenhora tem problemas mentais – mas não os culpo por isso,vocês apenas estão vibrando em um nível inferior ao meu,por isso é preciso que eu explique melhor sobre meu par debrincos sumidos, eles existem sim, mas são encantados, nesseinstante eles não estão existindo, mas quando foremencontrados passarão a existir. Não se animem porque a coisaé bem mais complicada do que isso, às vezes eles estão naminha orelha, todos os enxergam, mas naquele momentoeles continuam não existindo, outras vezes, mesmo sumidoseles existem... aparência não diz nada rapazinhos, os mistériosdos meus brincos estão escondidos fundo... vamos, meajudem a encontrá-los.”

...damo cavalo loco nas véia, nos véio, tiramo tênis depiá e se bandeamo lá pros lado do Passeio... em seis, sete,

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cada um corre prum lado, os guarda não faiz nada... depoisnóis leva os baguio pro véio sapatero... e ele dexa nóis piradouns par de dia... saída de colégio de rico... pegamo os piazinhode bosta de oito ano...enchemo de porrada e ranquemo ostênis bonito... depois o véio vende na loja dele... nóis mocaos bagúio robado nesses buraco com tampa de ferro... ládrento é cheio de fio... tem uns loque que corta esses fio pravendê pra ferro-véio... uma veiz um piazinho cherado foi cortáe morreu de choque...vi quando os polícia tirô ele, tavadurinho e saía uma baba branca da boca... coisa nojenta...eu num mexo com fio... as vez no frio já me enfiei nunsburaco desse, fico quietinho...as vez vem umas kombi comuns cara que pergunta se tenho pai e mãe, se vô pra escola,se quero morá numa casa, tomá banho quente, jogá futebol...uma vez fui e fiquei três dia... otros piá invocaro comigo equisero me batê... nunca mais vortei...na rua a gente se vira...aprende a ficá esperto... num gosto desse crente que fica napraça xaropeando as idéia dos piá... o crente diz que sei láquem vai salvá a gente... os pecado, salvá, pecado, essescrente são muito chato... uma veiz infiei um caco de vidro nabunda de uma véia que me encheu as paciença... depoisgritei assim pra ela “cadê os cara que salva, hein?”.

...de hoje não passa, estou tão cheio de idéias, o difícilmesmo é escrever a primeira linha... a primeira perguntaque tenho de fazer é, o que eu quero dizer com o que vouescrever? Se não tiver nada a dizer, não tenho por que escrever,mas esse não é meu caso, sei que tenho algo a dizer, masnão encontro a ponta do novelo de lã. Se tentasse resumir

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em duas linhas tudo o que quero que meu texto transpire...acho que diria que escrevo para me aliviar das coisas quenão gosto. Mas esse é um motivo bastante mesquinho, meufuturo livro irá exalar meus rancorezinhos contra tudo queacho que não é bom, então escrevo somente para criar ummundinho controlável por mim, mudo as coisas no papelpara não ter de mexer com elas na vida... mas tem um montede coisas de que não gosto que tenho certeza de que não sãocoisas boas, se eu pelo menos falar delas, já é melhor do quenão fazer nada.

Só que daí me transformo num daqueles doutrina-dorezinhos que querem convencer as pessoas... mesmo queseja verdade aquilo que quero transmitir, não acho que sedeva querer convencer ninguém de nada apenas comopiniões... sempre existirão os contra-argumentos e daícomeça a discussão, prós e contras... não é isso que quero...não vou começar nada enquanto não souber exatamente...mas pode ser que só descubra o que quero quando começara escrever, se ficar esperando por um caminho pronto esinalizado, eu estarei justamente tentando convencer aspessoas das coisas em que acredito. Tem tanta coisa aomeu redor querendo que eu fale delas, mas tenho queescolher uma em que eu acredite no que estou dizendo...pessoas, acontecimentos, o mundo interno de cada um, omundo coletivo, a natureza, o fantástico, uma mistura detudo isso... nada me apaixona nem me dá vontade deescrever a primeira palavra... tudo parece que já foi feito eeu estaria somente repetindo de maneira piorada. Ficoolhando para as pessoas e uma idéia vai levando à outra,as coisas se embaralham e eu estou sem saber para onde

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ir. Reparando nos detalhes sem conseguir identificá-los comorepresentantes do todo.

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Como estou indo até agora? Será que melhorei e me soltei,ou fui embaralhando tudo que fui vendo e escutando? Masnão seria essa a tarefa de alguém que se dispõe a narraralguma coisa? Ou será que deste modo eu não estariasimplesmente me anulando, para deixar que o que é narradose sobreponha à narração? Será que existe uma vida coletivaformada pelo conjunto de todas as vidas e idéias individuais?Ou será que se eu descrevesse apenas uma vida, não estariadescrevendo todas? Será que falando de alguém que nãoexiste, eu não estaria fazendo-o existir? E falando de alguémque exista, eu estaria imortalizando-o?

Caso isso seja verdade, qual o sentido de dar vida eimortalizar? A quais fins serviriam essa habilidade? O que euestaria perpetuando ou criando junto, além da figura queestivesse descrevendo? Com que forças desconhecidas euestaria colaborando sem perceber?

O que eu poderia fazer por aqueles que sofrem, além derelatar suas dores? Será que tenho alguma missão, ou apenasdevo existir? E para continuar existindo, será que a únicamaneira seria continuar descrevendo o que vejo? Quem émais importante, os que descrevo ou eu? Nesse exato instanteeu também não poderia estar sendo descrito por alguém? Eesse alguém por outro, e assim até o infinito? Então, se possoestar dos dois lados do muro, não poderiam todos tambémexercer essa dupla função? Eu não poderia ser um tolo queacha que tem uma capacidade, uma missão e que não possuiexistência física, enquanto os outros poderiam estar me

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enxergando como algo tão palpável como uma cadeira e comas mesmas capacidades dela?

Será que não estou me preocupando demais comigomesmo e me esquecendo do principal? Um meio termo nãoseria o melhor caminho? Ou será que esqueço-me de mimmesmo e passo a existir naquelas vidas que descrevo? Nãoserão as vidas que conheci parecidas com a minha, cheiasde um mistério duvidoso, de uma dor espalhada e de umadesesperança desconfiada dos pequenos sucessos?

Enxergar a própria vida com olhos de outra pessoa, nãoserá isso que falta aos homens e mulheres a quem observei?Ajudar que cada um desenvolva essa capacidade de se vercom olhos de outros, não será essa a principal função donarrador? Um mundo onde cada um não dependesse somentede seu ponto de vista para viver, não seria um mundocompletamente diferente do de hoje? Aumentando oentendimento de si próprio, não aumentariam as chances deum melhor entendimento universal? Não seria esse homemhipotético, que guarda um olho atento fora de si, o próximopasso lógico na evolução humana?

Essa suave sobreposição de contrários e complementos,essas esperanças que misturam-se com desilusões, a memóriaem todas suas manifestações, o sentir-se vivo temendo amorte, o existir no tempo, o existir-se escorrendo sem parar...o que é tudo isso? Como foi que chegamos até aqui, e qual éa seqüência disso? Haverá uma seqüência, ou estamosplantados num oceano sem bordas? E depois que esse oceanosecar, para onde tudo irá? Não terão todas as coisas,obrigatoriamente, uma seqüência? Se antes não havia olhos,por que não poderão haver outros que hoje ainda não existem?

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A sutil e discreta sensação de estar-se vivo, conseguirdescrevê-la, não seria a realização maior de qualquernarrador? Não seria, talvez, um objetivo no qual se poderiamirar, mas que permaneceria inatingível? Não seria a vidafeita de uma substância tão volátil, que não conseguiremosjamais aprisionar idéias que a definam, e muito menospalavras que a descrevam?

Não seria a vida feita para ser sentida e não entendida? Afunção do narrador, não seria a de um humilde e imperfeitoretratista que tenta, recolhendo as sobras a que tem acesso,pintar algo que longinquamente guarde semelhança com oque sonha descrever? Não poderia haver um paralelo entre onarrador e o homem de ação, talento e vontade, que dormee sonha, e que tenta em vão durante o sonho construir algode sólido que existirá também quando ele estiver acordado?

E esse gás imaterial construído de realidades diferentes,substância que tudo invade, queiramos ou não, invisívelmatéria que anima tudo... essa vida que aconteceacontecendo, recorte negro no céu escuro, maior dos brancosconfundindo-se com a mistura de todas as cores, esse eternopara sempre, sempre vivendo, sempre morrendo e vivendode novo... não será essa força o cimento que sustenta arealidade, e não seremos todos, em maior ou menor grau,borrifados por seus vapores?

Os vivos, não serão aqueles que nesse instante estãomolhados por gotas dessa substância? E assim sendo, nãoserá o mais vil, inútil e nocivo ser humano vivo, muito maisimportante do que o maior dos homens já morto? Não serãonecessários olhos externos para se enxergar essa situação defora, e poder responder o que é que vale mais? Existirão, no

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fundo, mais e menos, sim e não, e todos os pares de opostosque constituem o mundo dos que não têm olhos alternativosfora de suas cabeças?

Devo continuar minha narração? Será que eu tambémnão precisaria de olhos externos que ajudassem a me localizarmelhor? Devo eu me entristecer com as desgraças queacontecem nas vidas que acompanho? Ou alegrar-me comas vitórias cotidianas que escuto contarem? Deve haveremoção na minha narração? Devo me considerar uma pessoa,e agir como se assim o fosse, enquanto transmito o que ouvi?Dando livre curso às emoções, não estaria eu interferindo,misturando algo que é meu e até então desconhecia, com oobjeto narrado? De qualquer forma, mesmo que não coloqueminhas emoções na narrativa, será que ela já não estariacontaminada com camadas minhas que desconheço?

Será que no fundo, mesmo sem saber, não importa o queeu esteja narrando, eu não estaria sempre contando minhaprópria história, mas me utilizando de símbolos queaparentemente não têm nada a ver comigo?

Nesse caso, eu não seria um desmemoriado que vive nummundo sem espelhos e busca a todo custo descobrir-se,precisando formar uma imagem qualquer para basear suaexistência?

Caso isso seja verdade, e no fundo todos meus esforçosfossem somente em função de mim mesmo, se um diadescobrisse realmente quem sou, o que faria com essainformação?

Como seria meu futuro? Meu objetivo primeiro teria sidoatingido, o que me sobraria? Será que eu ficaria contemplando-me no espelho até o dia em que ele se quebrasse, levando

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junto e para sempre minha imagem? Será que realmentepreciso de uma imagem? Como é que consegui existir atéaqui sem tê-la e sem ao menos questionar-me sobre ela?

Lembro-me de um sonho que tive onde enxergava-me,não seria eu tentando descobrir-me? Já que falei de símbolos,não poderia ser essa virtual imagem minha, um símbolo deuma porção de outras realidades que ali estariam semanifestando?

Tudo poderia ser uma grande representação, as coisasnão precisariam dizer somente o que mostram, nem aspalavras o que os dicionários definem, deste modo, minhatarefa não seria muito maior do que aparenta?

Eu não estaria correndo num grande campo minado, ondealgumas explosões matam e outras espalham flores? Comosaberia onde pisar? O que faria se morresse? O que faria comas flores que voariam ao meu redor? Se a morte é o fim, oque aconteceria com as vidas que reguei com minhasdescrições? Será que elas acabariam junto comigo, ou seráque arrumariam uma maneira de encontrar um substituto econtinuar existindo?

Não sei quase nada, para que então prosseguir no meio dodesconhecido? Não seria mais fácil simplesmente aquietar-me?

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...eu já ouvi uma história parecida, até com endereço, eé aqui pertinho da praça, numa casa grande na rua XV, massó um bobo pra acreditar nisso...

...é nesse lugar mesmo, e pode botar fé que é verdade,eu já vi o homem, quando você conhecê-lo não irá maisduvidar... ele leva uma vida normal, parece até que trabalhaem alguma repartição pública, só que durante uma parte dotempo ele é...

...fantasma, diga logo, você realmente acredita nisso?

...você está colocando palavras na minha boca, mas talvezseja isso mesmo, como poderia chamar alguém que consegueatravessar paredes e desaparecer... mas não quero dar umtoque de mistério a esse assunto, esse sujeito precisa serestudado, tudo pode ser explicado pela ciência.

...claro que pode, a ciência explica teu caso com umapalavra: mentira.

...é muito fácil não abrir os olhos para o novo, a ciêncianunca teria evoluído se sempre tivesse rejeitado o que atéentão era desconhecido... esse cidadão pode ser um pioneiroe ter descoberto uma técnica que no futuro pertencerá atodos.

...claro, mas para acreditar num fato desses são precisoprovas, você o viu atravessando alguma parede?

...sim, quer dizer, quase isso... eu ouvi muitas pessoassérias que juram já ter visto... mas não é só isso, uma vez ovi sozinho sentado numa sala de espera de um médico,apenas dois segundos antes não havia ninguém na sala, e se

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ele tivesse vindo pela porta eu teria ouvido passos... devo terperdido de vê-lo atravessar a parede por uma fração desegundo.

...prova concreta então não tem nenhuma?

...faz tempo que estou pensando nisso, pode ser que essehomem nem se importe com sua capacidade, talvez sejaalguém distraído que não percebeu que as outras pessoasnão têm seu dom, já pensei em fazer-lhe uma visita eperguntar diretamente sobre sua condição...

...se você realmente for me avise que quero ir junto.

...ele poderia negar-se a falar no assunto... por outro lado,alguém em sua condição deve se sentir solitário... se oabordasse com honestidade, sem dissimular meus objetivos...pode ser que ele me mostrasse como tudo funciona... a partirdesse instante o mundo inteiro estaria mudado.

“Fique quietinha que o ônibus não vai demorar... se vocêse comportar direitinho a mamãe vai contar historinha...”

“Conta historinha, conta, eu vô ficá bem quietinha.”“Tá bom... vô te contá uma história daqui da praça

mesmo, uma vez há muito tempo atrás quando a mamãenem tinha nascido ainda, apareceu no meio da praça, láperto do chafariz, um buraco. Tinha uns três palmos de largurae uns três de fundura. E o buraco ficou um bom tempo lá,todo mundo já conhecia ele e desviava, às vezes alguémpunha uns galhos dentro para que quem caminhasse pelapraça não tropeçasse.

Um dia alguém decidiu que o buraco deveria ser tapadoe foi o que fizeram. Só que na manhã seguinte ele reapareceu,

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desta vez um pouco maior. Foi tapado uma, duas, oito vezese na oitava vez voltou como uma cratera.”

“Mamãe, o que é cratera ?”“É um buraco muito grande, que é difícil de enxergar o

fundo. Daí o pessoal que tapava o buraco percebeu que elessó estavam piorando a situação. Decidiram ficar uns diassem tapá-lo. O estranho é que ele começou a diminuirdevagarzinho. Eles mediam o buracão e viam que todas asmanhãs ele estava um pouquinho menor.

Aconteceu uma coisa engraçada, que na época dividiu acidade em duas, algumas pessoas queriam deixar que oburaco continuasse diminuindo naturalmente, outras queriama todo custo tapá-lo. Muito debateu-se antes de se tomaruma decisão, enquanto isso o buraco continuava a amanhecersempre um pouco menor do que na noite anterior.

Isso acabou dando força para o pessoal que não queriatapá-lo. Os outros protestaram e acusaram os rivais decovardes, de não amarem sua cidade. O buraco continuavadiminuindo. Muitas pessoas que antes tinham escolhido queo buraco fosse tapado, agora já achavam melhor que odinheiro não tivesse sido gasto inutilmente. Principalmenteporque todas as tentativas de tapá-lo tinham sido frustradase só fizeram aumentá-lo.

Passado mais algum tempo, o buraco tinha diminuídoaté o tamanho que apareceu pela primeira vez. Passaram-semais alguns dias, mas o buraco tinha parado de diminuir.Ficou do mesmo tamanho, todo mundo o conhecia, os galhosde árvore não deixavam que ninguém tropeçasse nele. Elepassou a ser considerado algo inevitável.

A cidade que antes tinha ficado dividida em dois grupos,

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agora estava unida em torno de uma pergunta: por quê?Todas as tentativas de explicar resultaram em nada. A

verdade, é que simplesmente não se sabia a resposta. Ascrianças e os cientistas usaram todas suas habilidades, masdepois de algum tempo acabaram desanimando e aceitandoque aquele era um buraco que não admitia ser tapado, oburaco inevitável.

Mais tempo se passou e, como todo mundo estavaconformado que aquele buraco teria de existir, a populaçãoacabou simplesmente esquecendo-se dele. Ele era só maisum buraco na cidade.

As pessoas nascem, viram criancinhas como você, depoisficam grandes que nem a mamãe, vão envelhecendo e umdia morrem, mas a vida não pára, enquanto uns estãomorrendo tem sempre gente nascendo. Homens que não eramnem nascidos na época em que o buraco apareceu, agoracomeçavam a se perguntar por que ele nunca tinha sidotapado. Escutavam as velhas histórias sobre os fracassos dasgerações anteriores, e atribuíram o insucesso à falta detecnologia dos mais antigos.

Cheios de auto-confiança e aparelhos de sondagemsubterrânea, taparam duas, cinco e oito vezes. Mesma coisa,mesma história, a cidade dividiu-se novamente, o tempo dediscussão fez novamente o buraco diminuir, até voltar a seutamanho inicial, depois veio a dúvida sem respostas e oesquecimento.

Durante esse segundo período de esquecimento aconteceuuma coisa engraçada, o buraco foi tão esquecido que alguémacabou plantando umas sementes nele, e hoje, não sei seposso dizer que ele não existe mais, ou se essa situação é

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temporária, mas ele ficava exatamente onde está aquelaarvorezinha que dá frutinhas vermelhas.”

“E aí, gostou da história?”“Num sei mãe, achei meio complicada... será que eu não

sô buraco também?”“O ônibus chegou, sobe rapidinho.”

Futebol. A desculpa que dei para sair de casa a essa horada noite. E ela ainda acreditou, mas pior que ela sou eu, quetenho de inventar uma mentira qualquer para não ter de dizerque só vou descer do prédio e ficar sentado em um banco depraça, provavelmente olhando pro próprio prédio. Ela sabeque sempre detestei futebol e não seria aos quarenta e seteanos que começaria a gostar, acho que se eu tivesse dito queestava saindo para ir ver uma amante ela reagiria com amesma indiferença.

Mas no fundo minha atitude foi pior, para que ter deinventar justificativas falsas, não é nem pela mentira em si,mas pelo medo inconsciente que tenho, deve ser algumacoisa mal resolvida que vem da infância... covardia... oproblema é esse maldito horário, comemos alguma coisa eligamos a televisão, telejornal, novela, nem durante oscomerciais trocamos duas palavras, às vezes saio da sala evou até a janela, fumo um cigarro e olho a praça.

É um ritual cotidiano de infelicidade... sou tão culpadodisso quanto ela... às vezes me dá vontade de gritar, de jogara televisão pela janela, ou então de tentar conversar e proporalgo diferente, uma mudança de atitude... mais uma provade que sou covarde. Por outro lado eu estaria tentando colar

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os cacos de um vaso quebrado. Talvez coragem de verdadefosse sair pela porta e nunca mais voltar nem dar nenhumasatisfação, aí sim estaria sendo corajoso, abandonandocatorze anos de vida em comum onde consegui juntar algumdinheiro, que teria de ser abandonado. No fundo é para issoque é necessária a coragem. Começar tudo de novo na minhaidade e saber que ela ficou com tudo o que é meu, e quelogo estará dividindo minhas coisas com um vagabundoqualquer.

Se fosse só por ela eu não precisaria de muita coragem,iria embora agora mesmo. Também não quero aquelasseparações cheias de briguinhas, advogados, isso eu nãosuportaria.

Qual o caminho que me resta? Descer todas as noites eficar sentado no banco da praça esperando que a luz da salase apague para poder voltar para casa? Que saída pobre einfantil... mas é meu alívio, essa brisa da noite, ouvir o barulhodos ônibus mais de perto, ver o fim do movimento, mais umdia vencido... quantas dessas pessoas que esperam pelosônibus será que vivem situações parecidas com a minha?Será que nenhuma... será que sou o maior dos covardes? Ofracassado medroso que joga fora a própria vida com medode tomar uma atitude que sabe bem qual é.

Mês passado, enquanto vivíamos aquelas duas horasmortas diante da televisão, por várias vezes tive vontade dechorar, senti um nó na garganta, e até achei queestrategicamente o choro poderia ser bom, porque é meioinevitável que as lágrimas despertem no outro pelo menosum pouco de compaixão, que pode ser verdadeira ou não,isso pouco importa, e essa compaixão ou falsidade

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facilitariam o início de um diálogo.Mas nem para chorar fui bom, até tentei ajudar pensando

em coisas tristes, mas as lágrimas não vieram, transformeitudo num grande suspiro de irritação, que acho que ela nempercebeu, pois assistia à novela e lixava as unhas ao mesmotempo. Fui para a janela e fumei meia carteira de cigarro.Nesse dia fiquei imaginando o que o oitavo andar faz com ocorpo humano. Imaginei-me estatelado no asfalto escuro emolhado, ou então amassando algum carro estacionado. Nãosei porquê, joguei o resto da carteira de cigarros pela janela.

As duas horas mortas me trazem diariamente muitasidéias, nada criativo ou produtivo, fico reparando em comoela envelheceu, como vai perdendo dia a dia sua beleza enão substituindo-a por nada. Os anos levam o frescor dapele, mas no caso dela não deixaram nada comocompensação, nenhuma sabedoria, experiência de vida, elame parece a mesma jovem de vinte anos que conheci hávinte e cinco anos atrás, mesma imaturidade, mesma preguiçapara aprender algo diferente. Só que os atrativos que meiludiram estão todos indo embora, vou ficando só com a piorparte. Mas se eu quiser e for masoquista o suficiente, tenhocerteza de que ela não tomará nenhuma atitude para impedirque os próximos trinta anos sejam uma repetição diária epiorada do que temos hoje.

Mas o fato de eu ter descido pra passar um tempo sozinhona praça... isso também está dizendo que eu sei que está nahora de tomar uma atitude... nem que seja decidir que nãotenho coragem de fazer nada e, conscientemente, escolher irlevando as coisas do jeito que estão mesmo.

Esses são instantes só meus... momentos em que não

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preciso fazer nada de prático... trabalhar, me divertir... sequiser fico aqui sem pensar em nada, nem meu futuro precisodecidir... sou eu sendo e ponto final. Sem relações,amarrações, sem conseqüências... nessa hora fico contentepor não ter tido filhos, se tivesse o embrulho seria ainda maior,as culpas, os jogos de empurra, tudo seria mais complicado.Acho que talvez se conseguisse me enxergar de fora, minhasituação não seria tão complicada quanto me parece, a gentesempre aumenta muito os nossos dramas e diminui o dos outros.

Separação. Seria a lógica resposta de um observadorneutro. Umas dores de cabeça, uns tempos meio perdidospor não ter mais o que me fazia sofrer... depois o tempofazendo seu trabalho de cicatrizador, uma vida nova sendocristalizada. Só que é nessa nova vida que mora o perigo...tudo bem, digamos que decida me separar e agüente bem obaque que sempre vem, eu teria de mudar meu interior paraque a próxima vida que virá não seja uma repetição da antiga.Uns detalhes diferentes, mas o mesmo esqueleto básico desofrimento e auto-punição.

Não posso me esquecer dela, não posso tambémsimplesmente pensar só em mim. Ela deve sofrer no mínimo omesmo que eu, deve ter seus momentos de lágrimas, deve sermais eficiente no choro, só que mais honesta porque não tentausá-lo para atingir seus objetivos. Se tivesse uma maneira deentrarmos num acordo verdadeiro, de acordarmos a parteadormecida que há em mim e nela... ela sofre, a luz da salaainda acesa e ela, dia após dia, assistindo aos mesmos programasimbecis, desconfio que em muitos momentos ela esteja ausente,a televisão torna-se apenas uma caixa de luzes e barulhos e elaviaja por um mundo melhor, talvez tenha idéias muito

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parecidas com as minhas, pode ser que o que impeça nossacomunicação verdadeira sejam detalhes pequenos. Pode serque estejamos de costas para o paraíso maldizendo nossodestino e o que teríamos a fazer seria simples...

Tenho pena de nós dois, mas tenho de avaliar essesentimento, a raiva às vezes pode ser benéfica, não querome tornar um velhinho cheinho de peninha de sua velhinhaenrugadinha. Se é tão complicada assim a comunicação,então azar, adeus paraíso e vamos tentar outra vez, virar amesa, sem pena, cada um cuidando de suas dores e rancores.Azar. Sorte, sei lá, está ficando frio... ela foi dormir. Vou voltarpra casa, deitar-me ao lado dela, ela estará distante de mim...mas vou tentar sonhar que está próxima.

“Faltam dez minutos para as duas horas da manhã, atemperatura é de catorze graus, faz um friozinho lá fora masa sua rádio do coração vai aquecer você, nosso companhei-rinho da madrugada, nossos amigos vigias, motoristas detáxi, pessoal do turno da madrugada nos hospitais... vocêque não consegue dormir, você que está vivendo momentosdifíceis, a vida é assim mesmo, nós caímos mas temos dedar a volta por cima... vamo falá de alegria, de coisa boa,qué coisa melhor do que um coração apaixonado, isso mesmo,“Araújo e Arantes” cantam para você...”

Eta musiquinha xarope, essa falação das rádia eu pudiafazê, já sei direitinho as conversa mole, toda noite ouvindoas mesma papagaiada , isso que é trabáio bão , ficá lá noquentinho falando o que vié na têia e despois inda ganhá umsalarião, e diz que os pião inda recebe um montão de carta

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de muié bonita, que gosta da vóiz e despois fica imaginandocomo é a cara. Meu pobrema é o istudo que pricisa ter, temque falá todas as palavra certinha, meus piá tão na escola,escreve bem direito, fala os esse no fim das palavra, vão têum futuro mió que o do pai deles. Num vão precisá de ficá anoite toda vigiando prédio, inda arriscado de entrá bandidopra robá os rico e quem leva chumbo sô eu. Pra mim o pió éficá acordado de noite e tê que dormi de dia, num durmobem, pego no sono lá pelas oito e antes do meio-dia já tôacordado, passo o dia intero meio zonzo, as veiz sinto fomede leão, as veiz fico só na base do café, o médico da firmadisse que tô com pobrema de pressão, açúcar alto, eu sei lá,como as coisa que gosto, falô pra eu caminhá uma hora pordia, eu lá vô ficá andando em roda que nem esses paiáço decarção que fica lá no Passeio Púbrico... inda mais ansimzonzo e sonado do jeito que fico de tarde? Eu não... armoçoà vontade, como até leite condensado de sobrimesa, despoisfico vendo televisão, as veiz lá pelas quatro hora eu tiro umasonequinha rápida, tô barrigudo sim, mais quero vê um homede cinqüenta ano que não tá, só esses véio da televisão quefaz cirurgia na barriga pra tirá fora as banha.Os fío tudoestudano, risca até argum deles virá dotô, devogado, diputado,delegado, se fô assim vô ficá bem contente. A muié chiaquando eu digo que queria que um fío meu virasse um desseshome que fala na rádia, diz que isso num é profissão, quedeve de sê tudo maconhero e pinguço, cheio de quenga pracima e pra baxo. Num sei, nunca conheci nenhumpessoarmente, mas acho que deve de sê um serviço bom praburro, conseguí falá toda noite pra tanta gente, e falá o quequisé, dizê as suas opinião, e despois ficá no meio daquela

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montoera de disco e podê escuitá a música que quisé. Devede dá pra fazê bastante amizade, as pessoa fica ligando pralá a noite toda. Se num deu pra mim por causa da farta deistudo, nosso sinhô Jesus Cristo , que me protege todas asnoite contra a bandidagem, vai jogá suas bença na minhafamíia e um dos fío vai sê faladô da rádia. Imagino o meuorgúio no primero dia que iscuitá a vóiz dele. Acho que eusaía falando pra todo mundo, soprava meu apito e quemaparecesse eu mostrava o radinho com meu fío drento.

Meu fío vai mudá as rádia, na madruga é só ou contandoos crime de morte que aconteceu ou falação de crente e aquelascoisa de tirá capeta do corpo. As veiz tem umas musiquinha,mais é só aquelas música que gente rica gosta... se um dia elechegá a falá, ele vai inventá umas coisa nova. Podia misturámúsica com istória, dá umas informação útil pros agricultor,pros criador de porco, de galinha, pros profissionar damadrugada... tem tanta coisa que dá pra fazê pra aumentá asidéia, dexá a cabeça mais isperta... a rádia a gente não vê, tásó drento das imaginação... se o home fosse falando umascoisa pra gente i imaginando, uns acontecimento, despoismisturá isso com umas cor diferente, despois misturá tudocom uns barúio que ele faz lá, mais nóis num sabe o que é. Iadá um nó nas nossa idéia, mas ia sê uma coisa bonita, nóis iapor uns minuto pensá de um jeito diferente, saí um poco dessacoisa chata tudo iguar de todo dia, asfarto, sinalero, carro,salário, lei, patrão, ladrão, revórve, médico, barúio, sono ruim,cartero, ônibus, futebor, tudo sempre a mesma porcaria, asidéia ripitindo todo dia elas mesma, ripitindo as coisaiguarzinha... se as idéia pode mudá as coisa em vorta acabaque nóis muda também.

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Embaxo da santa tá cheio de biête de mega-sena, já tenteide tudo, os aniversário, os númuro das casa, das praca doscarro, da indentidade, até númuro que apareceu no sonho.Inda num chegô minha veiz, se Jesus num quisé tarvez nuncachegue, mais vô continuá tentando, dois trêis conto porsemana num vai fazê farta. Se ganho encho umas sacola dedinhero e vô direto na rádia – dotô cum todo respeito, querocomprá tua rádia, se fartá vô em casa e trago mais umassacola pro sinhô.

Se pobre num sonhá vai me sobrá o que? No mundo dosmeu sonho, as pessoa num trabáia de noite e nem tem queacordá cedo... as pessoa nem precisa trabaiá do jeito que agente conhece o trabáio, as pessoa trabaiando menos ia detê mais tempo pras idéia nova, e dessas idéia é que ia aparecêum jeito das pessoa num ficá tão revortada com a vida pornum podê comprá as coisa que a televisão mostra, e tambémum jeito dos rico num passá a vida toda priucupado cummedo de perdê suas riqueza. Sem essas agonia que tá portodo canto, as pessoa ia dá mais risada e sê mais feliz. Euóio pras pessoa e vejo um marzão de agonia, mesmo quandoelas tá rindo, a risada delas é carregada duma tristeza que táespaiada por todas as pessoa. Mais isso num é o que Deusqué, isso vem de dexá que nossas idéia se apodreça drentodo ônibus, que elas vire porcaria nas espera e nas papagaiadada televisão e da rádia. Daí uma fruta podre vai podrecendoa otra e pronto, vivemo numa caxa de fruta podre... nossasidéia fede e nem pudemo fazê nada que num seje fedorento.

Pra saí dessa caxa podre, só usando as idéia, elas paredenum segura, num tem diputado, nem lei nem nada, atravessaquarqué coisa, elas são poderosa. As veiz fico meio cabrero,

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se acreditá ansim numa coisa dessa num é pecado. O padresempre diz que devemo louvá o senhô acima de quarquécoisa, só que acho que ele também teve suas idéia, e foi comelas que mudô as coisa. A bíbria eu num intendo nada, pramim parece fala de gringo... que que adianta ficá repitindouma coisa sem intendê nada.

O dia tá manhecendo... nessa hora que num tá nem craronem iscuro me bate um vazio no peito, num sei expricá,despois que o sol nasce o ruim passa, deve de sê uma horafeita pra num ficá tentando tê muita idéia.

O home do andar oito saindo de novo... tem esse otrocabocro que fica lá fora andando de um lado pro outro... táme dexando cabrero.

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Fui interrompido. Estava indo muito bem, tinha começadoa sentir-me como o leito de um rio, e as águas estavam fluindoatravés de mim. Águas, vida, fragmentos de vida e de morte,matérias de todas as concentrações energéticas meatravessavam, e acho que eu também as atravessava. Percebientão, como uma história pode se parecer com uma pedra,um desejo com o ontem, e a luz com um homem. Sob oponto de vista de um leito de rio as coisas se parecemimensamente. Creio que depois do meu esforço inicialinfrutífero, acabei cavando um buraco de onde as primeirasgotas de um olho d’água começaram a brotar, meu esforçono fundo acabou não sendo tão infrutífero assim, daí o fio deágua foi aumentando e minando as bordas, fazendo comque o buraco do leito também aumentasse. Mas acho quefui um instrumento de um processo que estava se iniciando,não é que tenha sido interrompido, eu mesmo escolhi parar,não conseguiria deixar a vida me atravessar quando... nãosei me exprimir direito, se continuar vou acabar dizendobobagem.

O homem estranho avistado pelo vigia do prédio enquantoo sol nascia, era ele. Sua presença me incomodou bastante,e me fez imediatamente lembrar de quem sou, coisa quetemporariamente tinha esquecido. Tirei das águas que corriamlentamente, seu sustentáculo, aquele mundo dissolveu-se nonada e eu renasci de dentro dele.

Voltei modificado, devo ter assimilado comportamentosdas pessoas com quem convivi, sinto que estou mais emotivo,

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com todas as cargas positivas e negativas que o termo traz.Humanizei-me, devo ter herdado memórias de todos os tipos,das vidas que conheci.Como um ser sujeito a emoções, ganhoresponsabilidades extras, não posso deixar-me conduzir porelas e permitir que afetem outras pessoas que nem suspeitamque elas existam.

Não nego que senti muita raiva quando o vi. Pareceu-meque meu período de liberdade tinha terminado e que eu teriade voltar a acompanhá-lo, ou ele a me acompanhar. Depois,refletindo melhor, cheguei à conclusão de que as coisas nãosão bem assim, mas também não deixam de ser um poucoassim. Não preciso ser uma sombra, mas também não tenhocomo ignorá-lo. Foi através dele que eu passei a existir.

Ele também me pareceu modificado. Seu comportamentoera o de uma pessoa normal, talvez de alguém que estivesseesperando alguma coisa... não sei bem explicar, antes porvárias vezes ele tinha tentado parecer normal, mas sempredeixava um detalhe escapar. Agora ele era apenas mais umrosto na multidão, mesmo que não houvesse quase ninguémna rua. Se ele não se confundia com outros, se confundiacom a própria cidade. Diria que ele se parecia com algumpequeno vagabundo do centro, que esperava por algumapequena oportunidade.

Todo seu corpo falava a linguagem de um pequenomalandro, braços abertos sobre o encosto do banco, pernasesticadas, sapato deixando um dos calcanhares de fora,botões da camisa abertos até pouco acima do umbigo e umcigarro em cima da orelha. Língua passeando por cima dasgengivas, boca fazendo estalos, olhos muito abertos e atentospara aquela hora da manhã. Como alguém poderia mudar

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tanto? Seria esse um disfarce de alguém que continuavaaplicando suas teorias, ou ele simplesmente tinha se cansadode tudo e agora queria ter uma vida, o que até então nãoexperimentara?

Observei-o por alguns minutos e ele continuava com seustrejeitos, à espera da grande pequena oportunidade. Observei-me também e, quase sem perceber, notei que já estavanovamente envolvido com ele. Algumas pessoa passaramperto dele, o dia estava começando, a primeira risada foidada, as pessoas falavam... as mesmas que antes tinhamfluído suas vidas através de mim... só que agora parece quehavia uma barreira entre eu e elas. Como se escutasse asvozes distantes e abafadas que vêm do fundo de um rio, onublado e opaco, uma memória velha prestes a seresquecida... só ele me prendia a atenção, só ele parecia estarsubmerso na mesma substância que eu.

Eu tinha mudado de sintonia, estava diferente, o que antesparecia o centro do meu ser, agora era... nada. Gostaria desaber como é que acontecem essas mudanças... como isso étão imensamente estranho. Será que não é mais ou menosassim o que acontece quando as pessoas... não, chega deespeculações.

Agora que a raiva, a surpresa e a estranheza-curiosidadeforam controladas, percebo que ele realmente deve estaresperando alguém, porque olha para todos que passam. Seráque casou-se e sua esposa trabalha de noite... isso seria amaior das simplificações. E as respostas para todas asperguntas, o diário do dia de amanhã, isso não podesimplesmente ter desaparecido de sua cabeça. Ele não podeter se transformado num pacato cidadão de bem, ou em um

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batedorzinho de carteiras, talvez possa ter acontecido comele algo parecido com o que aconteceu comigo... pode serque ele esteja em outra sintonia, o sonho de ontem tornou-se tão interessante quanto uma específica fruta podre queestá debaixo de uma montanha de frutas podres.

Estou aprendendo coisas novas todos os dias... sãocamadas que vão se sobrepondo, e sempre sobre a última éque deverá ser assentado o próximo tijolo que nos constrói,páginas viradas, cada uma é a mais importante de todasnaquele instante.

Mas é aí que eu me confundo mais, a dúvida aumenta ejá não sei mais nada, nem quem sou, nem onde piso, nem oque devo fazer... e o instante, o momento do acontecimento...o que é isso afinal? Se cada camada que nos constrói é ligadaa um instante particular, que como ela também jáempalideceu, e com todas as que virão pela frente tambémacontece o mesmo, então nós todos, coisas, pessoas, tudo oque existe, não seríamos grandes receptáculos ocos que vãodia a dia enchendo-se com camadas de sua própriadestruição? E essa fatia do grande tempo único chamadainstante, não seria dessa substância que é feita a morte? Avida também... o instante acontece e com ele acontecemos,as muitas pequenas vidas que a ele se amarram morremjuntas, e num grande fardo de pedra vão nos preenchendo.Quando enche-se o receptáculo, ele afunda e desaparece naságuas do tempo-rio-eterno, dissolvemo-nos... é isso, é meupalpite pelo menos...

O sol já nasceu completo, a praça está cheia, a vidaacontecendo. Observo isso como um cenário distante e semimportância. Ele continua sentado em seu banco e movendo

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seu corpo de pequeno malandro para cá e para lá. O dia vaiacontecendo e ele espera um acontecimento. Levanta-se, ereparo que caminha como um malandro, todo cheio degingado, o pescoço move-se para todos os lados em buscade uma oportunidade qualquer... ele é outra pessoa.

Reparo no seu ritmo, não foi apenas seu gestual que mudou,cada movimento seu está dentro de um outro tempo, que àsvezes é mais rápido e às vezes mais lento do que antigamente,mas que obedece o resto do conjunto de seu comportamento.O malandro é alguém atento à oportunidade, finge-se dedistraído e desinteressado, mas está sempre atento ao que avida lhe oferece. Disfarçando, ele acaba conseguindo o quenormalmente desdenha, e descartando o que fingia desejar.

Uma idéia daquelas que me bombardeiam: não seriamtodas as pessoas que existem, malandras? Claro que comdiferentes cores, velhos engravatados, adolescentes tatuados,militantes politizados, moçoilas casadouras, capitalistasselvagens... não estariam no fundo todos disfarçando seusinteresses para capturar suas oportunidades... e assim sendo,todo mundo, até os que aparentemente são mais desapegadosde seus destinos individuais, não estariam , do nascimento àmorte , usando todas suas energias somente em benefíciopróprio? Todos os atos em que as energias individuais fossemusadas pelo coletivo, não seriam uma maneira de disfarçarinteresses individuais, que através dessa pretensagenerosidade, acabariam revertendo-se para quem ospraticou? Um egoísmo disfarçado de generosidade...

Esse individualismo, não seria em si nem bom nem mau,seria apenas uma força natural que faz a vida progredir. Damesma maneira que uma flor não se preocupa com outra, o

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homem também, no fundo, não se preocuparia com seusemelhante. Esse individualismo sob o ponto de vistaevolucionário é um grande sucesso, principalmente para oser humano. Com todas as catástrofes, guerras, e disputasque o “cuidar só de mim” trouxe, trouxe ainda mais vida. Sevivemos nessa epidemia humana que cobre todos os cantosda Terra, é porque cada um procura com todas suas forçascuidar o melhor possível de si mesmo. O homem então, émuito mais parecido com os corais submarinos, ou com asjoaninhas do que aparenta, as diferenças seriam superficiais,diante do que precisaria ser feito para que ocorresse umareal mudança.

O mais honesto dos homens seria aquele que descontariado que chama-se de amor, todo o instinto de preservação daespécie e toda a pressão social. Descontaria de todos os tiposde relações humanas, o medo da morte e da solidão. Detoda a generosidade ele diminuiria a necessidade dereconhecimento e gratidão. De todas as grandes idéias daarte e ciência ele deduziria o desejo de fama e o de eternizar-se. Com o que sobrasse de todas essas subtrações, se é quesobraria alguma coisa, com essas pobres lâminas de madeiraque seriam deixadas como sobras, ele então construiria suamoradia.

Idéias que explodem aqui e lá... como eu mesmo disse,preciso de equilíbrio, um pouco de racional, um pouco deemocional e um pouco de instinto, o deixar-se ir sem lutarcontra aquelas forças que me construíram... acompanhando-o, aquele pequeno vagabundo irônico... reparo que seu andarmalemolente e seu requebrar de ombros estão cheios de umaironia corporal, escuto baixinho “...estou aqui, pedaço dividido

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do todo, carninha auto-regada, montinho de fibras móveisquerendo viver, vou mexer-me de modo engraçado, devo serpatético, pequeno, esquecido, provisório, as coisas são tãograndes, o espaço é grande, o tempo imenso, vou ser maisengraçadinho ainda, todo sexualizado, escorregadio,espertoso, bagre ensaboado, desse jeito eu acabo me achandoengraçado, rio de mim mesmo, esqueço um pouco os medos,ironizo minha pequeneza.”

Esse malacozinho espertalhão ginga pela praça, olha asmoças, flerta com as flores, muda de banco, agora mascachicletes lentamente, consegue fazer bola e ploc... puxa coma língua o chicletes para dentro da boca. Dia intenso, vai evem no máximo, sol já esquentando, ele aproveita o refrescoda brisa, camisa aberta, olhos de quem sabe das coisas... apele sendo levemente esquentada pelo solzinho crescente,suspiro de que bom, estou vivo, acertei, sou esperto, quepena que isso não é para sempre...

Sua boca transmite uma alegria tristonha, um vouaproveitar enquanto é tempo, mas e depois? Boca dúvida:será que eu... no fundo mesmo tenho tanto medo, mas quealternativas tenho, o negócio é continuar sendo do jeito quesou... ironizando também os que não são como eu – fui euquem pegou a estrada certa, a de vocês está cheia de árvoresescuras, sombras, bifurcações e setas que indicam para osdois lados – meu caminho é mais ensolarado, só lá pelo fimda tarde é que as sombras começam a chegar, enquanto issoaproveito o sabor do sol queimando os pelos do meu braço,aproveito os caquizeiros carregados de frutos moles que melambuzam o queixo e o nariz.

Ele move-se, mesmo quando está sentado alguma parte

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de seu corpo está se mexendo. Parece até que é medo deficar parado... desejo de desviar de algum objeto que o poderiaatingir... foge-se...

Então o malandro cruza as pernas, muda a posição dosbraços, dos quadris, levanta-se e caminha um pouco, volta asentar-se. É o balé do medo da imobilidade... desconfio deque idéias o ficar parado possa lhe aproximar.

Os dedos dele agora trabalham rapidamente com o chicleteque tirou da boca, rolam-no de um lado para outro até queperca a aderência, com a goma de mascar morta nos dedosele brinca com ela, transformando-a em uma esfera perfeita.Vai espremer a esfera embaixo do banco de praça como todosfazem... no meio do caminho pára, dessa vez todo seu corpopára, seus olhos raciocinam. Ele posiciona a bolinha em cimada unha do polegar e com a ajuda do dedo indicador, atira-alonge. Ela cai a uns três metros dele, bem próxima aos pontosde ônibus. As pessoas passam próximas à bolinha que ficoumeio esmagada no chão.

Seus olhos mudam, reparo que está ansioso, por instantesdeixou de ser um malandro e voltou a ser um estatístico,matemático, um louco... ele quer saber quem e quandoalguém pisará na bolinha, sua boca modifica-se conforme ospés aproximam-se dela, e repousa quando os pés passamlonge. Ele levanta-se para observar mais de perto, encosta-se no ferro do ponto de ônibus e tenta disfarçar seu tremendointeresse, só olhando para o chiclete quando alguém caminhana direção dele. Finalmente alguém pisa-o.

Será que tudo é como uma grande goteira, onde pingosidênticos escorrem pela calha, depois formam poçasestagnadas que evaporarão e um dia voltarão a chover e

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escorrer como gotas idênticas? Será que o que parece algodiferente não seria apenas uma fase que não corresponde aoinstante que vivemos, do mesmo processo repetitivo?

Controlo-me porque estou a um passo de perder oequilíbrio, não gostaria de entrar novamente naquele jogo demistérios e descobertas que levam a outros mistérios. Pelaprimeira vez me ocorre a idéia de tentar me comunicar comele, mas a coisa não é tão simples assim, o que eu poderiadizer a ele... quem diria que sou, talvez ele até já saiba e eunão precise dar explicações. Não sei se poderia perguntar-lhe alguma coisa ou então sugerir, talvez dissesse: “carosenhor, se desejas enfiar o dedo no joguinho da vida, porquenão o faz de vez, agüentando todas as conseqüências, achoque possuis muitas qualidades e que está no bom caminho,mas falta algo ao senhor, não entendo o porquê de suas pausasquando estás próximo de galgar mais um degrau, não sei seisso é parte de alguma estratégia, ou se é pura falta de auto-confiança. É sempre mais fácil realizar uma tarefa quandotemos o olhar externo de alguém que procura nos corrigir oserros, não tenho essa pretensão. Mas nesse caso, tens virtudesdemais e defeitos tão pequenos, que eu me sentiria um grandeomisso se não te dissesse isso: seqüência, é disso queprecisas.”

É o que penso, e acho que estaria sendo útil se o dissesse,mas não sei... as conseqüências de uma eventualcomunicação minha com ele são desconhecidas, mesmo queele já saiba de minha existência, isso não modificaria nada.Eu poderia estar interrompendo para sempre os caminhosmeus e dele, estaria criando um terceiro, que não sei qual é,talvez nos fundíssemos, talvez apenas derretêssemos...

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As gotas d’água seguem escorrendo pela goteira, ele olhapara o chiclete amassado com os mesmos olhos que antesolhava para as moedas atiradas no chão. A malandragem, aginga, o corpo flexível e irônico, foram máscaras de carnavalque agora caem. Os jogos recomeçaram, nunca pararam,talvez eles existam apenas para serem jogados, semnecessidade de se obter uma resposta ou se atingir uma meta,as gotas formam poças e se evaporam... depois dessaconstatação talvez eu volte para a praça e suas históriasentrelaçadas, depois eu mesmo acabarei gotejando em minhaprópria poça até que ela se evapore.

Da mesma maneira que disse que o que falta a ele éseqüência, pode ser que isso, ou algo parecido, seja o quefalte em mim. As coisas acontecem... continuamacontecendo, o que nele chamei de seqüência, em mimpode ser falta de ousadia, medo de desaparecer, medos,comodidades, avanço, mais nada além do conforto, falta-me o tentar atravessar os muros sólidos, o grande desafiomaior, falta-me, existo mas sou fraco. Pensando bem, nãosão apenas os atos das pessoas e até mesmo de seres comoeu que são como gotas d’água numa goteira, as pessoas eos seres também o são, por sua vez, gotas elas mesmas,ele é igual a mim e eu sou igual a qualquer outro. Todosnós seguimos pingando rumo à poça d’água estagnada e àevaporação.

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Não tenho outro caminho. Depois que o diálogo com ohomem surgiu como idéia, qualquer outra escolha seria umafuga infantil, um esconderijo fácil, mas mentiroso. Tenho deseguir adiante, esquecer os medos, que agora percebo seremmaiores do que sabia. Eles estão lá, me dizendo coisashorríveis nos ouvidos... tentam me impressionar com vozessombrias cheias de ecos e gritos estridentes. Mas raciocinandoum pouco, mesmo as mais pesadas ameaças não são nadamais do que deixar de existir. Pensando friamente, eesquecendo os efeitos vocais inventados para assustar, qualseria o problema em não mais existir?

Os olhos externos que nos enxergam sem participaremde nossos atos, são sempre nossos melhores conselheiros. Ebaseado nessa visão isenta, que me deixa claro que não existiré tão natural quanto existir, e que esse era o gigante entretodos meus medos, então resolvo sem vacilar, interpelar ohomem que venho acompanhando nesses últimos dias:

“Escute-me aqui, eu sou aquele que te acompanha háalgum tempo, não sei dizer exatamente quanto, mas vi teuesforço em busca de teus objetivos, suspeito quais sejameles, mas não tenho certezas. Invado um terreno que não édestinado a mim, essa comunicação normalmente não deveriaestar existindo... mas as coisas acontecem...”

“Eu...eu...desculpe-me, tenho a voz murcha porque nãosou de muitas palavras... na verdade não sei o que te dizer,não sei se me surpreendo, se o fizesse com muita ênfase nãoestaria sendo honesto, pois sempre alimentei uma leve

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suspeita de que você pudesse existir e estar agindo, não seise o recebo de braços abertos ou o repudío e o mando voltarpara o lugar de onde nunca deveria ter saído... diga-me oporquê desse contato.”

“Não estou em melhor situação que você, talvez eurealmente devesse ter ficado no meu lugar, talvez eu sejaapenas um invejoso que te viu buscar algo grande e tambémquis fazer o mesmo. Posso até estar querendo unir forçascom você para ver se juntos conseguimos chegar mais longe.A grande verdade é que não sei... simplesmente isso.

Não quero te metralhar com perguntas a respeito dos teusprojetos e descobertas, essas eventuais respostas por maisinteressantes que fossem, dadas de mão beijada desse modo,acabariam perdendo todo o valor que têm.”

“Eu... continuo não sabendo o que te dizer, escuto tuavoz mas não te vejo, onde é que você fica, o que é você...não sei exatamente o que te perguntar, mas tenho maisperguntas a fazer do que respostas a dar.”

“Sei o que deve estar passando por tua cabeça, as mesmasperguntas sobre meu ser, já as fiz a mim mesmo... nãoconsegui descobrir nada. Conheço mais de ti do que de mim...e nem sobre você cheguei a alguma conclusão. É tudo tãoimensamente confuso... como se eu estivesse dirigindo umcarro vendado... quando decidi entrar em contato contigoacelerei o veículo, o máximo que podia, só para ver no quetudo ia dar.”

“Você deve saber que tua decisão de entrar em contatocomigo não modificou, radicalmente, só a tua existência comotambém a minha. Você tomou uma decisão por mim.”

“Isso é verdade... talvez tenha sido precipitado, eu tenho

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o direito de me arriscar o quanto quiser, mas os outros...espero que não te prejudique, é fácil dizer isso agora, lamentoque a situação seja irreversível. Acho que de agora em dianteestaremos para sempre associados.”

“Você não tinha esse direito, você me matou. Quem iráexistir, de hoje em diante, não será o mesmo que nasceu ecresceu, que acreditou em coisas boas e em grandesbobagens, sonhou e chorou. A partir de hoje sou outra pessoa,que mesmo que possa ser melhor que a anterior, não o serápor seu esforço e nem pela seqüência natural dosacontecimentos. Virei uma planta com as raízes arrancadas.”

“Se nossa convivência de agora em diante será inevitável,não acha que poderíamos tentar esquecer as diferenças...”

“Esquecer que você me destruiu e me fez renascer comoum apêndice seu...”

“Não será um apêndice, nós teremos a mesmaimportância, talvez até eu me torne um apêndice teu... estoufalando daquilo que desconheço, mas não sei por que... achoque mesmo que tivesse sido mais cauteloso, e refletido queminha decisão mudaria não somente a minha, mas tambéma tua existência, mesmo assim acho que nosso contato eeventual fusão eram coisas que iriam acontecer de umamaneira ou de outra, independente de quaisquer vontadespessoais.”

“Justificativas são fáceis, ainda mais como você mesmodisse – estou falando de algo que desconheço – mas tambémnão quero viver em conflito, se as coisas são assim, o queposso fazer? A matemática... eu acreditei nela, como vocêdeve ter percebido... agora, nesse instante, ela me parecetão... pequena. Ou talvez seja o contrário... ela é tão grande,

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que o que toquei foram apenas sombras que julguei seremsólidas. Me sinto tão imensamente pequeno.”

“Você é um felizardo, construiu tua crença, e se ela éverdadeira ou não pouco importa. Você plantou tuassementes e elas por vezes brotam das maneiras que menosesperamos... mas só brotam se um dia forem plantadas.Mas analise a minha situação, não sei de onde venho nempara onde vou... sou obrigado a plantar uma semente quedesconheço de que planta seja... posso, sem saber, ser umsabotador que está espalhando ervas daninhas quedestruirão árvores sólidas... não sei a que senhor sirvo, masnão posso deixar de servi-lo.”

“Eu posso me tornar tua semente nociva... eu que sonheie achei estar tão perto desse sonho bom... mas você veio eme acordou, me arrastou para um presídio móvel que meacompanhará de hoje em diante. Talvez a liberdade que euachava que tivesse fosse outra ilusão, eu apenas não tinhaainda encontrado as barras da cela.

Disse que desconheces teu senhor... talvez você tambémseja uma vítima, e teu livre-arbítrio seja tão real quanto minhaliberdade. Acreditou estar tomando a decisão de entrar emcontato comigo, mas na verdade apenas obedecia a ordensdo senhor que desconheces.

Se isso for verdade é a ele que devemos questionar...”“Aparentemente minha decisão é de minha inteira

responsabilidade... mas não sei... você pode ter razão...existem tantos estados mentais, e às vezes eles mudam tãorapidamente, se misturando com desejos e recordações,tornam-se noites nubladas onde nada é claro e as poucasluzes movem-se nos dando pistas falsas... sem falar das

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ausências de consciência, quando viramos barco à derivanum mar agitado. É bem possível que existam grandesbrechas, que possam ter sido usadas para que eu fosseconduzido sem ter percebido... mas se isso for verdade e eusentir a necessidade de me livrar dessa força que me comandasem que eu perceba, o que poderei fazer? Não sei como soucomandado, nem quem me comanda, nem que intenção temem fazer isso... não sei nem ao menos porque devo lutarpara ser independente.

Caso consiga descobrir se há realmente alguém que mecomanda, e quem ele é, será que ele também não poderiaestar obedecendo, sem saber, a forças que desconhece, eessas forças obedecendo a outras?”

“Eu tinha tantos planos, todos anotados ao longo de anosem cadernos... eu considerava-me o homem com a vida maisbem resolvida que já conheci. Gostava de observar os outrospara me sentir superior, ironizava as pequenas felicidades, osesquemas pré-estabelecidos de vidas corretas e confortáveis.Todos achavam que eu estava jogando minha vida no lixo e euachava exatamente a mesma coisa de todo mundo.

Agora sinto-me como se tivesse perdido o chão, minhascertezas viraram pó, começo até a invejar todas aquelas vidasque sempre desprezei, olhando em volta vejo que as pessoascontinuam com suas pequenas certezas imprimidas nos olhos.

Talvez essas forças superiores, se elas realmente existirem,gostem de desestimular os que buscam diferenciar-se dosoutros. Quando alguém começa a distinguir-se dos iguais e ater certezas e esperanças que não são as da maioria, entãoeles vêm com um grande balde de água fria... talvez tenhammedo de concorrência.”

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“Finja que não existo e continue tua vida normalmente,eu me calarei, arrumarei um jeito de dar um destino qualquerà minha existência, procurarei o máximo possível não influirna tua. Quando você está alegre e sorri, quando realiza umdesejo ou acha que está no caminho certo para concretizarteus sonhos, nessas horas por acaso você fica pensando namorte? É claro que não, o homem arrumou uma maneira deesquecer-se cotidianamente da própria morte, fingindo queela nunca chegará, os pensamentos de morte que conseguematravessar essa defesa são mínimos em relação aos que porela são evitados. Faço o mesmo comigo, crie essa defesacontra minha existência, finja que sou tua segunda morte.”

“O problema é que sinto-me enfraquecido, minha vontade,minhas certezas, tudo diminui, não terei mais o mesmo desejode combater as dificuldades, e desse jeito enfraquecem-seaté minhas defesas contra a morte. Ela fica mais presente,circulando cada ato meu, que sempre virá acompanhado dapergunta: se vou morrer, qual é a importância de fazer ounão alguma coisa? Além do que, vai ser muito difícil esquecerque qualquer eventual realização minha, pode ser apenas aobediência de um desejo de alguém que nem ao menos seiquem é.”

“Continue. Teu caminho é a minh... é tua única opção...”“Não quer que a corrente seja quebrada, e para isso precisa

de mim... depois acho que vai querer que eu também criemarionetes que possa manipular, e que minhas marionetestambém criem... posso me tornar o perverso elo enfraquecidoda corrente que deliberadamente rompe-se e todos perdemseus poderes.”

“Faça o que quiser, não tenho medo de ameaças. Sou tão

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comandante desse jogo quanto você. Olhe para essas pessoasque passam a teu lado. O que você me diz delas? Para ondeeu, você e todas elas estamos caminhando? Dê-me algumaresposta mais concreta do que quem vai pisar quando e onde,ou onde estará uma pessoa em determinado horário, me digao que é a vida, como funciona, para que serve, como podemosespremê-la para que dela saia mais suco. Fale-me dos tijolosque nos constroem, do conjunto desses tijolos, me expliqueo que é não existir, o que é não existir mais, o que é nuncater existido, me fale do desejo, do sonho, de como eles podemconstruir e destruir. Me explique porque o todo sempre acabadividindo-se e depois voltando a unir-se. Por que faz isso,por que não permanece sempre sendo o todo? Por que dá-sea esse trabalho? Me fale do tempo, que como tudo divide-separa destruir e une-se quando quer construir.

Me esclareça sobre esses miseráveis buracos sem fundoe sem respostas. Enfie tua cabeça na escuridão e volte de lácom algumas respostas. Dissolva-se em busca delas, resolvaos enigmas mesmo que as respostas para eles sejam teu fim.Espero de ti a mesma grandeza que espero de mim.”

“É muito fácil alguém na tua condição dizer para alguémna minha condição – dissolva-se – eu tenho meus pequenosprazeres, meus hábitos, eles me dão segurança... sei quedeve achar graça disso e sentir-se muito superior, mas foigraças às minhas pequenas manias que construí uma baseemocional para explorar as idéias que desejei. Olhe em voltade mim, você acha que essas pessoas todas conseguem irmuito além de um cotidiano previsível, acha que teriamalguma possibilidade de pelo menos tentarem decifrarqualquer mistério da vida?

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Existe sim uma distinção entre eu e os outros. Negá-la,para dizer que todos têm potenciais iguais, seria trabalharcontra o desenvolvimento humano. A natureza não é uniformee nenhuma força que tenha origem nela pode ser.

Você fala dos meus pobres usos de minhas descobertas,ou pelo menos tentativas de descobertas... eles são apenasum início de caminho, mas de um caminho que poderá levarmuito longe. Ninguém seria tão burro e mesquinho a pontode dedicar os esforços de toda uma vida somente para fazeradivinhações sem sentido. Aquilo é para ser somente o início,e mesmo assim posso te garantir que para chegar ondecheguei meu esforço foi sobre-humano. Renunciei a quasetodos os prazeres e interesses mundanos, coloquei cem porcento de mim, de certa forma acabei dissolvendo-me nesseesforço. Se tivesse dado um pouco mais de mim, meu corpoe mente teriam entrado em colapso e eu não teria chegado alugar algum.

Te garanto que foram todos teus questionamentos sobreas grandes questões da vida que me impulsionaram e mederam força para continuar meu caminho.

Eu desejava, caso ficasse provado que o que tinhadescoberto funcionava sempre, e não houvesse nenhumapossibilidade matemática de que tudo não passasse decoincidência, eu desejava seguir adiante, e prosseguirtentando responder as grandes perguntas que a vida nos faz.”

“E por que não continua? Se insinuar que a minhaintromissão destruiu todas tuas possibilidades de ir maislonge... vamos, não desista, eu poderia te ajudar... não meuse como desculpa.”

“Sobre aquilo que você tinha dito de desaparecer, e eu

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continuar como se nada tivesse existido, não creio que sejapossível... a não ser que houvesse uma fusão, você sedissolveria dentro de mim e passaria a existir de formadiferenciada, me influenciando sem me comandar. Não seiexatamente o que aconteceria, eu me tornaria narrador demim mesmo e dos outros, mas de uma certa forma seria aomesmo tempo o objeto da narração e o criador da história.Assumiria todos os papéis possíveis e os misturaria criandoum que ainda não existe. Seria o homem vivo que vive oinstante, seria esse mesmo homem do mesmo instante até omomento de sua morte, e seria também todo o tempo quehouve antes do seu nascimento e também a eternidade quehaverá após sua morte. E seria tudo isso simultaneamente.Um homem realidade-personagem-enredo-narrador-autor, ummisturando-misturado, um dissolvente-dissoluto, cimentoinvisível que deixa de pé as vidas e histórias, conexõesmágicas que o cérebro e a realidade fazem, motor secretoque faz a rosa desabrochar e o doente fechar seus olhos.

Mas minha grande dúvida é se eu não estaria querendomisturar duas coisas que nunca serão uma só. Arriscando-me a criar um monstro doentio que destruiria o que maisbrilha em cada um dos ingredientes que o compõe. Misturainsossa que não serve a nenhum propósito... deságuo emdúvida novamente, preciso restabelecer minhas reservas depersistência e obstinação.”

“Restabeleça-se. Te garanto que sou náufrago do mesmomar de dúvidas que você. Mas temos de escolher uma direçãoe nadarmos, com isso só teremos a ganhar, o que podeacontecer de pior é continuarmos como estamos.”

“Tudo me parece tão estranho. Pode ser que... pode ser

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que você não exista, e que tua voz venha do fundo de minhaconsciência. Minha camada mais profunda estaria dizendopara mim mesmo: mude, junte os cacos, emende as realidadestodas, amarre as partes que não estão conectadas... não sei,tua voz me parece tão clara e tão distinta da minha. Talveztenha enlouquecido e esteja entrando em curto-circuito. Nãosei no que acreditar. Me voltam à memória os anos debruçadossobre minhas idéias, e também tudo o que abandonei parame dedicar a elas, tudo isso foi lambido pela língua molhadado tempo, pelos sabores das recordações, as revoltas e alegrias,lágrimas de todos os tipos, quanta dúvida tive, quanto esforço,quantas milhares de noites sonhadas, mal dormidas. Quantosbanhos observando a água descendo pelo ralo, e fazendoanalogias com forças físicas e espirituais. Quantos momentosprosaicos, de onde sempre procurava extrair algo maior doque momentos prosaicos. Talvez depois dos meus quinze oudezesseis anos eu não tenha vivido um instante sequer emque eu não tenha procurado, de uma maneira ou de outra, dara ele uma utilidade.

Sei que qualquer poeta medíocre diz que as coisasimportantes estão contidas nos momentos aparentementesem finalidades práticas. Sabia disso enquanto me esforçavapara acumulá-los, até concordava com essa idéia, mas aomesmo tempo procurava desafiá-la, contrariando-a. Sou umobstinado, e se viver até os noventa anos não creio que haveráum só instante que não tentarei transformar em algo útilpara a confirmação das idéias em que acredito... mesmosabendo que nesse ponto os bons e os maus poetasconcordam. A função é não ter função, o que não deixa deser uma função.

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Buscadores como eu passam suas vidas martelando umaúnica pedra, que não vai mostrando por fora nenhum sinalde fraqueza, os músculos que levantam a marreta vão seenfraquecendo e o homem que martela vai sentindo seutrabalho inútil e seu esforço vão... mas enquanto conseguirlevantá-la continuará a marretar a mesma pedra. Nos seusúltimos anos de vida, quando já não conseguir mais levantá-la, procurará pelo menos raspar a superfície da pedra com oferro da marreta... e a pedra continuará com a mesmaaparência do primeiro dia em que foi martelada.

Talvez o que me falte seja um pouco de mudança, maispoesia e menos matemática, ou então amarro as duas criandoa poemática, gastar um pouco do que acumulei durante todaa vida.

No fundo não importa quem seja essa voz que me fala, sevem de dentro ou de fora, não importa a mim nem saber seestou louco ou não... o importante é que existe essa voz comquem dialogo... voz que me fez pensar no oposto do quesempre fui.

Se eu me perguntasse, o que fui? Não sei o que poderiaresponder, diria com facilidade no que acreditei e o que fizpara confirmar minhas crenças, mas o que fui... simplesmentenão sei responder essa pergunta. Talvez dissesse, trabalheipara que os outros fossem... esqueci-me de mim... não, essaresposta não é verdadeira... todos os esforços que fiz forampor mim mesmo.

Não quero pensar que fui aqueles cadernos amareladoscheios de fórmulas e anotações que guardo debaixo da cama.Cabelos embranquecendo, vigor físico diminuindo... às vezesolho para essas moças que passam com suas barrigas de

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fora e sinto vontade de ir para casa e queimar todos meuspapéis, poderia até queimar a casa junto para que nenhumarecordação sobrasse. Depois viveria uma vida carnal repletade prazeres animalescos, se alguém me perguntasse sobremeu passado inventaria qualquer desculpa... chegaria ao fimtendo conhecido dois mundos diferentes... sentindo-me duasvezes estrangeiro.

As barrigas à mostra me tentam só até um certo ponto,logo lembro-me que elas estão próximas aos ovários, e queas curvas são apenas artifícios biológicos para facilitar areprodução, são os genes arrumando maneiras publicitáriaspara melhor vender seus produtos. Daí acaba tudo caindono velho jogo darwiniano, a seleção do melhor espécime.Quando meu raciocínio chega a esse ponto esqueço-me dasbarrigas à mostra e lembro-me dos meus sacos pretos cheiosde cadernos com anotações.

Se é difícil dizer o que fui é muito fácil definir o que nãofui, não fui tanta coisa que não sei nem por onde começar,mas se tivesse de escolher o que, de tudo, menos fui, diriaque não fui um falador. Minha boca mexeu-se muito maispara mastigar do que para falar. De tudo o que pensei, amaior parte escrevi e quase nada falei, e muita coisa queapenas pensei acabou perdendo-se nos buracos da memória.

Mas o que mais me faltou foi verbalizar palavras, conversarcom os outros, escutar suas histórias e esperar a vez de contaras minhas. Desperdiçar palavras deixando que a linguagemconstruísse caminhos inúteis, que um dia somariam suasinutilidades formando teias que poderiam servir a mim ou aoutros. Deixar as palavras ecoarem, combaterem-se... faltou-me o bate-boca, o xingamento, o elogio, o comentário fútil, o

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grito de revolta, o som cortando o silêncio, a mistura dasletras saída do cérebro, transportada pelas cordas vocais ederramada no mundo. Desprezei os tijolos de idéias cantantes,eles sempre me pareceram dispensáveis, menores e vulgares.Mas existem coisas que o papel não comporta, que não setraduzem se não forem faladas.

A palavra falada é um fio invisível que une memória,emoção e raciocínio. Tudo o que já foi escrito, por mais geniale até musical que seja, não tem o brilho particular de umafrase banal dita sem pretensões. A fala é o verdadeiro legadoda grande maioria dos homens, suas vozes são suasassinaturas. O grito, provisório e passageiro, é uma metáforada vida humana.

Participei parcialmente da vida, resolvi dispensar umaparte importante dela. Mas de agora em diante, se decidissecomeçar a falar, sobre o que falaria? Talvez seja tarde demaise meus caminhos já estejam interrompidos. Ninguém iriaagüentar as descrições de minhas idéias, eu estaria apenasreproduzindo de maneira oral os meus textos escritos, issonão é falar. Na fala, ultimamente andei reparando bastantenela, as pessoas contam histórias, ironizam, maldizem,interrompem o outro, perguntam, respondem, negam-se aresponder, elogiam, xingam e até calam-se. No meu caso,que permaneci a vida toda ausente, devo soar como alguémque decorou um texto e o está repetindo.

Antes de praticar com os outros, talvez fosse melhorensaiar comigo mesmo. Uma conversa com meus botões,sem grandes argumentações, uma oração onde sou o fiel eo Deus.

Palavra esturricada desgracida: renascida, voz de mim

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falando alto, do meu dentro para o fora do todo. Teus ouvidosgrandes escutando eu, o fundo de meu fundo. Marca desangue e veias impressa em pedra, grito fóssil, desespero-amor, foi o que ficou quando três milênios depois, encontraramregistrado nos ares que respirei, meus gritos de vida.

Um Ah, Oh, Ih com o frio que senti, dores representadaspor vogais abertas. Perguntas feitas na noite: você sente omesmo que sinto? Medo? Respostas: quantas vezes pergunteiisso? Perguntas repetidas para respostas iguais. Ela émaravilhosa, mas ele é um nojento, a palavra abrindo asportas para os sentimentos, ódio e amor usando-a paraavançarem e imporem-se.

Palavra servindo de escadaria para o mundo das idéias: oentusiasmado jovem contando a outros suas idéias. Elasamarrando o funcionamento do mundo, elas sedimentandoas possibilidades de evolução.

Primeiro dia de aula para crianças de sete anos: digam oque pensam, com todos os prejuízos que isso possa lhescausar, continuem dizendo o que pensam. Quando for difícilde falar experimentem gritar.

Segundo dia de aula: faladores de bobagens, não deixemde falá-las, mas não falem só elas. Tem tanta coisa para serdita, mas dêem descansos periódicos para suas línguas, e nãose esqueçam que é sempre bom que haja orelhas por perto.

Terceiro dia de aula: xingamentos, blasfêmias, promessas,mentiras, verdade, sonhos... pratiquem isso em casa eamanhã tragam exemplos para a escola.

Lei aprovada pela câmara dos deputados: fica instituídaa partir de hoje a figura do “Falastrão Público”, pessoa quecaminhará pelas cidades gritando suas idéias, frustrações e

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medos. Essa pessoa terá como missão incentivar o surgimentode outros faladores.

Lei aprovada pela santíssima igreja católica: fica a partirde hoje modificada a imagem do inferno cristão, ao invésdas eternas chamas, caldeirões e diabos, o inferno agoraserá um claustro com voto de silêncio.

Prática. De que adianta imaginar-me falando se só eu meescuto? Que toda a praça me ouça. Tantos loucos já vi gritandopalavras que ninguém entende, posso ser mais um deles, outalvez eles não fossem loucos. Escutem o que eu tenho a dizer,mesmo que não tenha nada... vibro minhas cordas vocais,sou girafinha desajeitada tentando ficar de pé. Não sei falardireito, estou aprendendo, perdi muito tempo, tenho um marrepresado dentro de mim, minhas comportas estão se abrindopara inundar a praça Santos Andrade. Vocês irão conhecer osescondidos de mim, escutem-me, escutem-me, adoro dizeressa palavra. Não me olhem com essas caras de quem engoleo que quer dizer, me chamem de louco, débil mental, nãoengulam nada para depois acabarem se engasgando.

Eu estou mudando, sou um homem atravessando umafronteira, vou me tornar um não sei quê... experimentar umapitadinha de morte, viver uma vida que não é a minha, paraisso é preciso coragem, você tem coragem?

Minha voz fraca começa a falhar... sempre fui um quietinhovivendo do lado de dentro de mim... estou gritando assimpara todo mundo ouvir porque preciso me exercitar, depoisquero ter conversas individuais com cada um de vocês, querosaber se têm coragem porque têm medos, ou se... ou sei láo que, vocês me dizem o que quiserem, terei meus grandesouvidos amorosos irmanados com minha língua e cérebro.

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Agora reparo que quando escuto minha própria voz, acaboirrigando meu próprio raciocínio, de uma maneira que nãoacontecia quando eu era calado. Com as idéias floridas comonunca, nessa nova estação primavera-faladora, ocorre-me quetalvez eu tenha começado a falar, e criado toda essa série dejustificativas e até exagerado a importância da fala... apenasporque não sei exatamente para onde estou indo e nemconheço o ser que estou me tornando... essa fusão eu-ele-eles-lugar-pontos de vista-nós-tempos-sonhos-regiõesmentalmente nebulosas-possibilidades-matemática... e maisum montão de outras coisas, algumas até sem nome, queacabarão entrando na grande mistura, para esse estadodiferenciado-encantado-alucinado-cotidiano. Talvez eu tenhapercebido que precisarei muito de uma voz para que possagritar por socorro.”

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Capítulo dezessete. Vamos ser claros, até aqui osacontecimentos foram divididos e etiquetados, e aqui inicia-se a última parte. A partir de hoje não haverá mais necessidadede divisões, o que acontece acontecendo é uma grande fusão.Todas as águas inundaram os continentes, unindo-se.

Camadas subterrâneas do meu ser, seres misteriosos deexistência suspeita, acontecimentos raros e invisíveis, brisasque escondidas balançam as árvores nas madrugadas,desejos diurnos e noturnos, lágrimas, ontens, esperanças eamanhãs, isso tudo e muito mais coisas que desconheço...tudo isso está se fundindo, e esse caldo incandescente querse manifestar, espalhando suas gotas brilhantes de materialque, se ainda está líquido, quando atinge alguma superfíciemodifica-a com a queimadura e depois com a solidificaçãodas gotas douradas.

Gritos de desespero, não meus, mas da vida que habitaem mim, e que é a mesma vida de todas as outras pessoasque estão ao meu redor. Só há um homem no mundo, e essehomem está na praça Santos Andrade, também poderia dizerque só existe uma praça no mundo, que agora é o palcodesse único homem, é nela que ele vai falar, contar, escutar...vamos considerar que ele seja eu e o que eu falo é o que elediz... vamos considerar também que, apesar de eu ser umamistura tão grande de coisas tão diferentes, todas essas coisasestão muito bem derretidas e me formam de maneirauniforme. Não há nenhum pedaço mal dissolvido pedindoindividualmente por seus interesses.

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Em resumo, sou o que sou e é isso que sou. Quando criançaeu era daquelas que gostavam de enfiar o dedo em tomadas,continuei fazendo isso até hoje. Curioso, quis descobrir as coisasgrandes, as pequenas me davam sono e continuam dando,quase tudo me dava e dá sono. A maioria das coisas e pessoasé tão imensamente chata e sem graça, são só repetições compequenas variações. As tomadas escondem mistérios dentrodelas, o próprio choque elétrico é um deles, coisa invisível,dor estranha, tem até um pouco de humilhação na sensação...mas não é uma coisa chata, é diferente.

A escola me despertou uma grande revolta, aquilo erauma imensa perda de tempo, nada tinha a ver comaprendizado, aprendíamos somente a nos tornarmos pessoasque causem sono nos outros. E todos juntos dormiríamos deolhos abertos, caminhando e conversando. Revoltei-meespecialmente porque mesmo os que percebiam isso nãofaziam nada para não se entregar ao sistema.

Com treze anos abandonei o cemitério de vivos que era aescola, tinha o espírito irrequieto como nunca, e não queriagastar minhas energias somente reclamando dos espíritosadormecidos fabricados pela escola. Queria voltar a enfiarmeus dedos nas tomadas, e se possível a mão inteira. Viviadentro da biblioteca pública, lendo e pesquisando, desdeliteratura infanto-juvenil até fascículos semanais sobreeletrônica, os anos foram passando e eu continuei minharotina diária de estudo autodidata. Aos poucos fuiabandonando a literatura e me fixando mais nas áreascientíficas. Devorava livros sobre física, eletromagnética,matemática, astronomia, geologia. Enquanto isso meus paisacreditavam que eu continuava freqüentando a escola, eu

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sempre consegui ludibriá-los com boletins falsos cheios denotas boas.

Mas foi na matemática que eu percebi que se localizavaminha tomada particular, através dela é que eu poderiadescobrir porque levava choques elétricos, e como elesfuncionavam. Mergulhei diariamente em todos os livros queconsegui por mais de dois anos. Nada me interessava maisdo que aquilo. Nos finais de semana ficava no meu quartoestudando, no começo meus pais acharam bom porque euera um menino estudioso, depois viram que eu não queriasaber de mais nada além daquilo, tive de freqüentar umapsicóloga. Eu a detestava, respondia somente o que achavaque ela queria ouvir. Em dois meses consegui me livrar delacom um diagnosticozinho de que eu era um rapaz normal,mas que deveria abrir mais meu mundo. Consegui fingir quetinha os mesmos interesses dos rapazes da minha idade,simulei algumas saídas sábados à noite. Arrumava-me todoe ficava na rua, escolhia uma que fosse bem iluminada,escondia meus livros e cadernos fora de casa, e continuava aestudar sob as luzes dos postes. No dia seguinte dizia quetinha ido a alguma festa.

O que me fascinava na matemática, era que eu tinhacomeçado a descobrir através dela, relações entre coisas queaparentemente nada tinham em comum. Comecei a sentir-me importante, de vez em quando passava em frente a minhaantiga escola e via meus ex-colegas de longe, eu os achavabobos e pequenos. Nesses dias reforçava a certeza de quetinha escolhido o melhor caminho, e de que estava envolvidoem algo realmente grande.

Eu seria um dos grandes nomes da ciência, e mais do

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que isso, seria o criador da nova ciência, aquela que provariaa relação entre todas as coisas que existem. Passei a lermenos e escrever mais, comecei primeiro descrevendo ocaminho teórico de minhas idéias, esses foram os primeiroscadernos que escrevi e até hoje os considero os mais valiosos.

O segundo passo foi mais difícil, depois de tudo explicadona teoria, havia a necessidade prática, números e equaçõesque demonstrassem que a teoria funcionava de verdade. Perdium ano inteiro sem qualquer sucesso, foram oito cadernosanotados com tentativas que não funcionavam. Não sabiamais o que fazer, pensei em desistir de tudo e voltar para aescola, pensei em sumir, viajando pelo mundo de carona.

No final do primeiro ano, numa tarde em que eucaminhava sem destino pelo centro da cidade, ouvi alguémdizendo uma frase “Dos dois foram um só...” depois elecontinuou, mas não sei por que, aquele trecho ficou na minhamemória. Dois dias depois, folheando meu último caderno,cheguei no conjunto de equações que não funcionavam,lembrei-me da frase, e de brincadeira testei a equação,utilizando apenas a primeira parte dela. A coisa funcionou,eu tinha conseguido, o mundo tinha me dado o empurrãofinal que eu precisava, e agora eu tinha uma arma poderosaem minhas mãos. Mais poderosa ainda, porque ninguémsuspeitava que eu possuía.

Depois de ter ganho de presente do mundo essa pistaque me levou à minha conquista, um dia, sem eu saber deonde e nem como, veio-me à mente a seguinte frase “O mundodá e o medo tira.”. Percebi que aquilo era algo que tinhaaparecido para ser divulgado, era o mundo querendo falaratravés de mim, seria minha retribuição às forças físicas que

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tinham me auxiliado em minha busca. Nas madrugadas pinteidezessete muros com a frase. Todos de grande visibilidade,em alguns deles a pintura durou uns bons anos.

Retribuído o favor, eu teria muito trabalho pela frente, aessência matemática provava-se verdadeira, mas apenas elanão serviria para grande coisa. Primeiramente eu teria dedecidir o que fazer com aquilo. Sempre fui ambicioso egostaria de dar à descoberta a maior utilidade possível, resolvinão me precipitar para chegar a uma resposta.

Dei-me umas férias de todo o estudo. Resolvi esquecer osnúmeros e as preocupações que não me deixavam em paznem durante o sono. Foram dois meses em que fui exatamenteigual a qualquer jovem da minha idade. Fui a bares, a boates,conheci moças e até tive dois rápidos namoros que duraramduas semanas cada um, mas que me pareceram dois anos,pois elas eram apenas duas pequenas repetições de umestereótipo feminino de classe média. Mas tirando essa parte,durante esse período me diverti muito, principalmente comas cervejas e chops que tomei. Antes eu só tinhaexperimentado o gosto e tinha achado horrível, mas adorei oefeito. A primeira vez que me embriaguei, me lembro quedisse que aquela era a melhor sensação que já tinhaexperimentado, e que a partir daquele dia me embriagariatodos os dias. E de fato, nesses dois meses de intervalo,acho que só em um ou dois dias eu não me embriaguei. Nãobebia outra coisa, o bom da cerveja era que o efeito passavarápido e no dia seguinte eu acordava bem disposto.

No final desses dois meses, que era um prazo que eutinha pré-estipulado, a conclusão a que cheguei foi nenhuma.O que tive foi uma grande vontade de continuar naquela vida

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por mais tempo. Decidi prolongar as férias por mais um mês.No final da primeira semana dessa prorrogação, minhaconsciência começou a pesar. O que eu estava fazendo? Tinhaconseguido, tão jovem, descobrir um segredo que poderiamudar os destinos da humanidade, e estava lá, egoisticamenteusufruindo de alguns prazerezinhos e esquecendo do maisimportante.

Acabei na mesma hora com a folga e iniciei um períodode recolhimento interior completo, procurava com todasminhas forças encontrar uma utilidade para o que tinhadescoberto. Os dias foram passando, mas o que parecia ge-nial na teoria, não demonstrava ter qualquer aplicação prática.Foi talvez o período mais difícil da minha vida, senti-medeprimido, achei que tudo o que tinha feito não teria nenhumvalor, a não ser como curiosidade matemática.

Estava numa encruzilhada, ou largava tudo, ou combatiacontra o que se revelava um adversário muito maior do queparecia inicialmente. Foram dias de longas caminhadas, horasde pensamento, examinei todas as possibilidades, espereipor pistas simbólicas colocadas no meu caminho. Nadaapareceu. O mundo escureceu.

Andava o dia todo, saía cedo para simular que estava naescola, e apenas esperava as horas passarem. Às vezes,quando fazia sol, deitava-me no gramado do Passeio Públicoe dormia umas duas horas. Quando chegava em casa perdiao sono. Foi aí que começou meu vício em comprimidos paradormir. Passei anos dependente deles. Acordava cada vezmais cansado e precisava de doses cada vez maiores paraobter o mesmo efeito.

Num desses dias em que estava encostado numa árvore

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do Passeio Público, o vento trouxe até a mim um folhetopromocional. Era uma propaganda de um cursinho pré-ves-tibular, mas tinha também a frase “Deus seja louvado”,explicava-se no panfleto que era uma escola de base católica.O que me chamou a atenção foi que o folheto tinha voadoaté a mim dobrado, inicialmente só tinha conseguido ler duaspalavras “Deus” e “didático”. Achei que finalmente a vidatinha me mandado uma de suas pistas, e seria por ali que eudeveria prosseguir.

Comecei então a tentar decifrar o que “Deus didático”poderia significar. Uma hora de análises não me levou a lugaralgum. De repente sorri, não sei porque tive a intuição deque a palavra “didático” não queria dizer exatamente o quesignifica. Resolvi dividi-la em sílabas di-dá-ti-co. Depois pegueia palavra “Deus” e dei a ela o significado de energia. Em seguidacomecei a relacioná-la com as sílabas, começando pelo final“co”, era evidente a interpretação: aliar-se, co-participar dela,a energia interagindo com todo mundo. Depois “ti”, você, aenergia unindo-se ao outro, formando um elo com todos aquelesque não são vocês mesmos. Em seguida “dá”, a energiafornecendo-se e espalhando-se, cada um sendo um pouco dela,uma manifestação divina.

A última sílaba, ou primeira, porque comecei pelo final,me parecia a mais difícil, “di” não queria dizer nada, nãoencontrava uma maneira de encaixá-la na seqüência deraciocínio que até ali tinha sido satisfatório. Foi quandoobservei um velho mendigo revirando uma lixeira em buscade latinhas. O estalo veio na hora, como é que algumaspessoas mais humildes diziam “eu dei”, “eu di...”, “di”representava a energia que era dada por cada um de nós

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individualmente, diferente do “dá” pois essa já é a energiaque o outro dá, o segundo passo. A coisa ficou toda muitoclara na minha cabeça, eu estava diante de uma seqüêncialógica. A energia surge no eu, e por ele começa a espalhar-se“di”, em seguida chega até os outros nesse processo dedifusão “dá”, depois ao terceiro, aquele que está mais longedo eu, mas que é a seqüência lógica da transmissão energética“ti”, e finalmente chegando até todos, unindo todos na grandecorrente, amarrando os que são diferentes, dissolvendo asdiferenças e a si próprio “co”.

Fiquei muito contente com minha interpretação e segurode que ela era verdadeira. Aquilo tinha sido mais um presenteque o mundo tinha me dado, mas por outro lado colocavaainda mais responsabilidade nos meus ombros.

Resolvi me dar mais um período de férias antes de atacarnovamente minhas questões, a diferença é que agora teria maissubsídios, saberia melhor em que direção deveria ir. Deveriapartir do que está separado e caminhar em direção à união.

O que aconteceu foi bem diferente do que eu previa, aresponsabilidade pesou-me demais e procurava sempre adiaro final das férias. Bebia o dia inteiro e à noite me enchia decomprimidos para dormir. Para encurtar a história, depois deum ano meus pais me internaram numa clínica dereabilitação, que na verdade era um hospício.

Passei dois anos convivendo com loucos, descobri que amoeda corrente dentro do hospício eram tocos de cigarro.Tinha um velho, que todos chamavam de milionário, eleestava internado há dezessete anos e tinha juntado milharesde tocos de cigarro que guardava em sacos plásticos pretosembaixo de sua cama. Outra vez, teve um louco que chegou

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para mim e disse que queria me mostrar uma coisa que sabiafazer. Acompanhei-o até o pátio, ele levantou a tampa de umbueiro e com a própria tampa ficou batendo no buraco egritando, de lá saíram duas enormes ratazanas, ele asperseguiu a toda velocidade, conseguiu chutar uma delasque ficou atordoada, aproveitando-se disso ele a pegou namão e arrancou sua cabeça com uma dentada.

Saí do hospício. Os remédios que tomei tinham me deixadomais calmo e não sentia vontade nenhuma de beber, paradizer a verdade não sentia vontade nenhuma de nada. Meupai me deu uma casa e uma renda mensal suficiente para euviver modestamente enquanto não arrumava um emprego. Operíodo do hospício e a medicação mudaram-me muito, eunão tinha abandonado meu projeto, mas passei mesesdominado por uma grande vontade de não fazer nada.Alimentava-me, assistia alguns minutos de televisão, às vezescaminhava uma meia hora pelo centro da cidade e depois iame divertir em fliperamas. Chegava em casa sempre cedo, liaalguma coisa, jantava e ia dormir, meus problemas de insôniatinham acabado, e acho que nesses dias meu maior prazerera ir me deitar, pegava no sono quase que instantaneamentee dormia muito bem.

Numa dessas excelentes noites de sono, tive sonhos dosquais não me recordo, mas que sei que foram importantes,germinei durante toda a noite, meu passado ressurgiaalimentado por fontes novas, algumas até desconhecidas.Eu acordei e as coisas iniciaram, ou melhor, continuaram...

Capítulo dezessete. Deveríamos dizer na verdade capítulos

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dezessetes, quem dividiu, pensou, viveu, contou e escreveufomos muitos, às vezes sob a forma de um, às vezes não,mas sempre muitos, na verdade diríamos que somos todos.Não existe uma só pessoa no mundo que não tenhaparticipado, de alguma forma, em algum trecho dos dezessetecapítulos. Podemos ir mais longe e adicionar também animaise plantas, pedras e sentimentos, tudo participou.

Grande festa-congraçamento das coisas atravessadas poropiniões, que são como ondas de rádio interferindo emtransmissões, frases soltas que se encaixam exatamente ondedevem: um casal discute e outras duas pessoas caminhamem sentido contrário, uma palavra que dizem, no exatomomento em que se cruzam, é a solução para a discussãodo casal.

Às vezes são frases que se somam, às vezes que sesobrepõe, ou então nada é dito, é apenas alguma coisa queacontece e os que estão de olhos mais abertos percebem. Àsvezes é só o vento, ou o nada, um sorriso, um foguete queestoura, uma risada...

“Sabe qual é a diferença entre um jovem e um velho?”“Não, qual é papai ?”“O jovem chora homens médios com grandes lágrimas, e

o velho, quando chora, derrama umas poucas lágrimas porqualquer um.”

Abandonando o que tinha antes, sinto o processo de fusãoe dissolução, nada acontece de uma hora para outra, oenvelhecimento caminha silencioso, todos os dias, e todo oresto segue o mesmo esquema... desapareço-me e torno-me

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outros, viverei neles? Serão eles apenas novas formas deapresentação de minha personalidade? Pouco importa, poucoimportamos, seguimos pela estrada modificando-nos... euquero o balão de elefante, mamãe... chega, você já ganhoumuito presente... mas eu quero e quero... ela disse que nãobeija no primeiro encontro e eu vou respeitar, já não tô maisem idade de aventurinha, tô sentindo que chegou a minhahora, família, filhos, uma casa bem decorada, acabô a coisade virá noite, bebidarada, ressaca, tem uma hora que issocansa. Não vô dizer que foi ruim, foi bom e me divertibastante, porque já farreei bastante é que vô ter um bomcasamento. Os que casam cedo e não aproveitam a vida najuventude, depois viram esses cara cheio de amante,inventando desculpa pra ir na zona e até atrás de travesti.

Coisas acontecendo, a grande esfera de existir não párade girar, aqui na Praça única onde um único homem, umúnico homens existe... nós todos acontecendo, a sutil costurainvisível entrelaçando os fatos, parte de mim-nós-todos assisteao que a vida nos apresenta, outra parte quer saber comosão feitas as apresentações. Um olho no ator e outro atrás dopalco, mas as divisões não terminam por aí, tem gentedistraída num canto da praça que nem sabe que está havendouma apresentação, tem outros que sabem mas escolhem ficardando pipocas para as pombas, e outros ainda que assistemà peça mas não entendem o que ela quer dizer, nãoconseguem amarrar cena com cena, nada parece ter sentido.

As células homens são muitas, todas muito parecidas emuito diferentes: o sol na pele é meu único contacto com opatrão, o papai do céu, velhinho barbudo, é a mão quentedele que qualquer um pode apertar, deito no banco e sua

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mão me cobre inteiro, fico vendo luzes amarelas e vermelhas,é meu lado humano pondo para fora pensamentos negativos,de canto de olho vejo os poodles brancos da cor que eu quiser...a mão quente do senhor me deixa calmo e seguro, vejo ochafariz brilhando, o céu azul com duas nuvens brancas...

Moléculas-meninos andam de bicicleta em volta dochafariz, crianças adoram círculos, talvez seja pelo fato deelas estarem mais próximas da época em que tudo era circu-lar e não existiam ângulos. Conforme vamos envelhecendo aquantidade de círculos diminui e o número de ângulosaumenta. As crianças divertem-se, o sol torna suas cabeçasdouradas, as mães estão sentadas em bancos e conversamentre si, de vez em quando uma olhada e uma palavra derepreensão... palavra ligeira, o sol acalma os adultos, a luzmolha os rostos e corpos revelando virtudes e defeitos, óculosde sol disfarçam os olhares, crianças cansadas sentam-seem círculos na grama, os grandes pinheiros da praça têmseus galhos cheios de pássaros que cantam.

Velhos de paletó não parecem sentir o calor, boinas osprotegem do sol, sentados com uma das mãos segurandouma bengala, lentos, movimentos rígidos... criançadescansada passa pedalando a toda velocidade, velho encolheos pés e olha para ela.

Luz vai diminuindo lentamente, verde da grama vaiganhando tom mais forte, verde vida criado pelo sol começaa morrer. Muita luz ainda pela frente... hora em que todas ascores ganham seus mais bonitos tons... os velhos e seusrelógios, eles verificam quanta luz ainda resta. O calor diminui,e os velhos que antes já não o sentiam, agora preocupam-secom o frio.

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Estranho: camadas de noite sobrepõe-se ao dia de sol,outras de dias nublados e chuvosos também misturam-se,são os instantes acontecendo ao mesmo tempo. As pessoasque participam dessa mistura confundem suas silhuetas comas de desconhecidos. As praças estão acontecendo, nenhumadelas parece se incomodar com a presença da outra. Asdiferentes luminosidades causam um efeito estranho, sombrasda noite no meio de um sol escaldante de meio-dia. Às vezesem um mesmo banco estão sentadas duas pessoas, uma foi,ou está lá de dia, e a outra de noite.

Fronteiras invisíveis que não conseguem deter a substânciafluida que tudo atravessa... a graça da pomba encolhendo-se para dormir.

Praça-célula da existência, de ti nunca precisarei sair,mesmo que queira, daqui não existe saída, nem nada dolado de fora, praça-eterna, és célula e corpo de um organismodo tamanho do todo. Mas você engana, é relativamentepequena e os olhares desatentos não te dão muita atenção,é só mais uma em uma cidade, muitas outras maiores emais bonitas os desatentos poderão citar. Mas o que importa,no fundo, são os homens e mulheres de atenção, elesperceberão que todas as mais belas praças do mundo sãoapenas um grão de areia perdido, em comparação com oque pode ser enxergado nessa praça.

“Que noite fria , vô tê de manhecê na praça, só enroladoem cobertor e com café quentinho.”

“E eu saio de casa mesmo só quando tem esse sol bonito.Sou viúva e dava aulas de piano, moro naquele prédio alto

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ali, tive depressão, tomo antidepressivos, mas num dia bo-nito desses a gente tem de sair.”

“Vida de vigia é ruim feito o diabo, se tivesse estudo eutava dormindo debaxo das coberta bem quentinha.”

“Depois que meu marido morreu eu continuei ainda poruns dois anos a dar aulas de piano, um dia no meio de umaaula uma aluna errou um exercício, me fez uma pergunta eeu simplesmente não tive vontade de responder, fiquei qui-eta até que ela fosse embora da minha casa sem entendernada. Todas as minhas vontades tinham terminado de umahora para outra, eu tinha simplesmente secado, tanto, quenem chorar eu conseguia.”

“Fico com as mão congelada, esses dia elas tava doendomuito, bem nas junta, fiquei treis hora pra sê atendido nopostinho, despois desesti inda tinha um montão de gente naminha frente e era tudo doente grave. Essas dor nos dedotão me tirando a alegria, tenho certeza que elas começaropor causa dessa friage da noite. A muié feiz umas luvinhapra mim, mas num dianta, a dor parece que vem de dentrodos osso.”

“De professora de música eu tinha me transformado emprofessora de silêncio, e depois no próprio silêncio. Às vezesficava olhando para o teclado do piano, para a decoraçãoanos sessenta do meu apartamento, tudo meio envelhecido,depois me olhava no espelho, meu cabelo pintado, minhaspálpebras caídas, meu rosto sem viço, mais do que tristezaeu sentia um enorme desânimo... passei tardes inteirassomente olhando para as teclas brancas e pretas, idéias semimportância se alternando e eu sem energias para encerraressa situação.”

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Quando se completa oitenta anos é meio que obrigatóriouma olhada para trás e uma reflexão sobre o que já aconteceu.Pouca coisa virá pela frente, e o que vier não deve serinteressante como o que já passou. Deste modo minha vidapassa a ser o passado. Felizmente estou em razoáveiscondições físicas e mentais para minha idade, assim possofazer um balanço isento das dores de um corpo doente.

Meu grande erro, vou direto a ele, pois esse assuntoocupou quase todas minhas energias da juventude, e é oque de mais importante aconteceu na minha vida, foi ter meatido muito mais ao espetacular, mas superficial, emdetrimento do silencioso mas duradouro.

Os pequenos sucessos de previsões de eventos atravésde uma fórmula matemática que eu tinha criado, desviaramminha atenção do que era mais importante, a criação de umsistema onde esses eventos fossem cíclicos, pouco importandoquem participasse deles.Dei mais importância aos atores deuma determinada montagem teatral, do que ao texto quepoderia ser re-encenado indefinidamente. Depois perdi anostentando encaixar o que não tinha encaixe, buscando umamaneira de amarrar meu sistema personalista com algo nobre.É óbvio que fracassei.

Se tivesse aquela energia mental com a experiência dehoje... se...

Desilusão... ela também um dia acaba. Eu ainda era jovemquando desisti de minhas tentativas matemáticas de mudaro mundo e parti para o caminho oposto. Aos quarenta e doisanos iniciei minha carreira de poeta. Na verdade não seimesmo se busquei o caminho oposto, tudo o que escrevi atéhoje está repleto da idéia de desvendar os segredos da vida.

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Em trinta e oito anos publiquei quatro livros, os amigos dizemque gostam e que é para eu seguir em frente e não desistir.Não existe desestímulo maior para quem escreve do que ouvirisso. Paguei pelas quatro edições com o dinheiro queeconomizei a vida inteira, tenho material para mais um livroque ainda desejo publicar. Recebi alguns elogios e até algunsprêmios provincianos. Já fui magoado, já odiei, mas hoje emdia não me incomodo mais com a falta de resultados demeus livros. De qualquer maneira, sempre que posso douuma passada na biblioteca pública e vejo se algum deles foiemprestado, na saída, sem que as bibliotecárias vejam,coloco-os na prateleira reservada aos livros mais lidos. Nodia seguinte, se passo por lá, eles foram emprestados. Senão fizesse isso eles podem passar dois, três anos sem queninguém os empreste.

Disse que sou poeta, na verdade não me considero não,sou apenas alguém que se utiliza da poesia para divulgaçãodas idéias em que acredita. Casei-me tardiamente, ela erauma boa pessoa, mas logo no começo percebi que apenasser uma boa pessoa não era uma razão suficiente para queeu quisesse viver com alguém. O casamento durou só cincomeses e quando terminou senti um grande alívio. Eu noteique, casado, perdia um tempo precioso com obrigaçõescotidianas. Naquela época, muito mais do que hoje, eu achavaque não poderia desviar um centímetro do meu objetivoprincipal de vida, que era a descoberta e a difusão das idéiasem que acreditava.

Sempre tive uma renda razoável proporcionada poraluguéis, isso talvez tenha me acomodado, e acabei nuncabuscando ganhar dinheiro de outras maneiras. Não que eu

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ache que o trabalho dignifica, a maioria deles são rotinasburras que sugam a vida sem dar nada em troca. Mas nomeu caso, eu nunca iria trabalhar em algo que não gostasse,e se encontrasse algo que me sentisse bem fazendo... ocontato com outras pessoas, o simples fato de se estarproduzindo alguma coisa, isso poderia ter me aberto caminhosque permaneceram fechados.

Fui fechado e provinciano, poderia ter tentado divulgarminhas idéias de uma maneira mais contundente, artigospara jornais, dando palestras, viajando e conhecendo pessoascom idéias parecidas, não fiz nada disso. Fui um homempacato, que talvez até tenha se envergonhado de seus feitoscom medo do ridículo.

Mas não quero gastar minhas poucas energias comarrependimento, todo mundo na minha idade deve encontrarmuito mais coisas erradas do que certas no caminhopercorrido. E para as certas nunca nos atribuímos inteiramenteos méritos, elas são sempre frutos de uma seqüência, daqual apenas continuamos o curso natural dos acontecimentos.

Arrependo-me de não ter escrito mais, mesmo sempublicar, eu só teria ganho, outros horizontes mentaispoderiam hoje estar abertos. Não sei se é tarde, mas nosúltimos três anos nunca escrevi tanto, mesmo que às vezestenha de lutar contra uma imensa sensação de estar sendoridículo.

No mais, acho que o que é parecido na vida de doishomens é sempre imensamente maior do que o que édiferente. As aparências são sinônimo de mentira, se soubessedisso na juventude as coisas teriam sido diferentes. Mas ofato é, que se fôssemos todos jovens e sábios, o mundo seria

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outro... seria um mundo em que os velhos olhariam o caminhopercorrido sem um nó na garganta... não tenho medo damorte, antes de nascer eu também não existia, qual é oproblema de voltar ao mesmo estado?

Sempre restam alguns apegos, que na hora da transiçãotornam a coisa um pouco espinhosa, mas deve ser como ochorinho da criança quando leva a vacina... passa... some.

Meu último livro está quase pronto, são pequenos poemasescritos nos últimos três anos, acho que é meu melhortrabalho. Mas o que me impulsiona a terminá-lo e publicá-lo, não é sua qualidade literária e nem ao menos as idéiasque nele estão contidas, o que me dá forças é o fato de estarfazendo, plantando alguma coisa, e pouco me importandose essa semente brotará ou será pisoteada por alguém. É aprimeira vez na minha vida que planto sem me importar comresultados, e isso já é um grande feito. Talvez o maisimportante de minha vida. O livro morre, mas o ato de escrevê-lo sobrevive.

A grande teia da vida é muito mais complexa do que eupoderia sonhar, ela esconde pistas falsas, para compreendê-la melhor precisamos de humildade, desprendimento edesapego. Todas minhas pequenas experiências bemsucedidas da juventude podem não ter passado de umapequena e falsa teiazinha inserida no meio da grande teia.Justamente para que pessoas cheias de desejos e ambiçõesachem que descobriram chaves secretas e morramacreditando nisso.

Hoje minhas águas serenaram, não tenho mais as grandesondas que se arrebentam na praia, sou uma lagoa cuja brisafaz as águas docemente molharem as pedras da borda. E

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acho que se desvendada, a teia da vida parece-se muito maiscom uma lagoa do que com o mar.

A vida é velha, é a essa conclusão que chego, as energiasda juventude são forças em desequilíbrio que conforme vamosnos aperfeiçoando, vão desaparecendo. Mas o mundo diz ocontrário. E daí? Esse mundo é tão permanente quanto aflorada do ipê.

Grande flor prateada: serena.Formas doídas encobrindo a paz.Dúvida é pedra atirada por criança nas águas.Inveja da corrida e do sorriso: medo.

E medroso é o último estágio antes da paz. Nesse aspectoo medo não é negativo, porque indica que algo se move nointerior daquela pessoa. Ela continua sua busca.

Para um bom observador os medos são menores, porquequem presta atenção nas coisas repara que elas sempre serepetem, são como os cenários de fundo dos desenhosanimados dos anos sessenta. Então não dá para perder noitesde sono, os ciclos vêm e vão. O bom observador também nãose ilude com conquistas grandiosas ou perdas retumbantes,são os ciclos mostrando o velho disfarçado de novo. Acho queos desinteressados estão menos sujeitos às repetições, o fatode eles realizarem algo sem esperar nada em troca, de umacerta maneira, enfraquece o processo repetitivo.

Eu plantei uma semente,mas ela não brotou,alguém me viu plantando e plantou dez,

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nenhuma delas brotou,mais dez pessoas o viram plantando...

Que engraçado, me surgem na mente umas imagens, umhomem velho, repleto de teias de aranha dentro da boca,nos buracos do nariz, nas orelhas e no rosto. A vida foi tecendosuas teias em cima dele, até dentro de seus olhos surgemduas pequenas teiazinhas. Uma imagem irônica, talvez umsímbolo. Uma boa idéia para a capa do livro.

Restos, cacos que se dissolvem na realidade falante quequer se expressar. Somos muitos condensados em um só,uma espécie de fantástico homem selvagem emendador dedestinos. Vozes de todos que saem de uma só boca. Homemfundamental postado bem no centro da praça fundamental,marco zero do existir. Homem-mito sujeito às grandesquestões humanas, mas que não consegue se livrar do imensocotidiano banal. Soldado condecorado que questiona o valorde suas medalhas, atira-as no chão e depois apanha-as sujasde lama... não sabe se deve recolocá-las no peito.

Ele decide colocá-las sobre um banco de praça, enquantonão tem certeza do lugar que elas merecem. Depois disso,na condição de mito e fraco, ele olha ao redor, localiza-se.Repara em todas as outras pessoas que atravessam a praça,questiona-se se todas elas tem os mesmos tipos de dúvidasque ele. Chega à conclusão que os outros ou já resolveramas dúvidas que o inquietam, ou ainda não as tiveram. Observaolhos despreocupados, outros alegres, alguns deprimidos eagoniados, mas nenhum que demonstre algo parecido com

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seu estado interior. Sente-se sozinho, pisca os olhos e a praçaestá vazia, só ele e a praça.

Sente-se como o pulmão vivo de um lugar que é vivo-morto. Passeia lentamente pela praça, observa os pinheiros,os gramados, o calçamento, e chega até o chafariz, que alémdele é a única coisa que se move. Vê a água que jorra semparar, e depois cai na base da fonte e some no ralo. O solestá encoberto e a luz difusa deixa as sombras pouco nítidas,misturando-se entre si. Enquanto olha para a água não pensaem nada. Cansado de ficar de pé senta-se em um banco,continua não pensando em nada. Continua sendo pulmãovivo, coração que bate, sangue que flui... mas seus olhospararam de piscar.

Seu cérebro volta a funcionar, lembra-se das grandesdúvidas que teve há alguns instantes atrás, era umaconsciência solitária procurando esclarecer-se. Olha para suasmãos pernas e braços, levanta-se e vai até a fonte ver oreflexo trêmulo de seu rosto nas águas. Não chega a nenhumaconclusão, um instante de decepção no olhar, um instantepassageiro, que some deixando-o novamente neutro.

Um homem puro no meio do mundo, sua essênciaexistindo no tempo e espaço, nenhum mínimo sinal de desejo,esperança, decepção, nenhum resquício de qualquer tipo deemoção. O homem no seu instante de eterno, apenasacontecendo em um tempo que não iria incomodá-loenquanto ele permanecesse assim. O espaço também estavairmanado a essa integração homem-tempo, os limites da praçaSantos Andrade expandiram-se até o infinito, cada objetoaumentando de tamanho quantas vezes fosse necessário paraque houvesse a fusão perfeita das três realidades.

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Esse estado durou algum... não podemos qualificar assim,digamos que esse estado existiu, depois deixou de existir,mas ao mesmo tempo nunca deixará de existir. Uma coisanão elimina a outra.

O homem piscou, não estava mais sozinho na praça, aspessoas e a vida aconteciam por toda parte, ruídos, fala,passos e o chafariz jorrando água. Seu pensamento foiimediatamente atravessado por todas essas impressões, seusouvidos, olhos e nariz serviam de tubulação para levarinformação ao cérebro. As idéias aconteciam de maneiraencadeada e contínua, progredindo para um lado, depoisfazendo um desvio para o outro conforme o material quechegasse ao cérebro fosse modificando-se. Seu maior focode atenção foram as pessoas, reparou nas maneiras decaminhar, nos suspiros de tédio dos que esperavam os ônibus,no leve sorriso de quem caminha sozinho e diverte-se comalguma recordação, nos olhares vagos para o horizonte, nasfisionomias emburradas, nas gargalhadas fáceis, nos olhosdesejosos, na pequena felicidade do pipoqueiro que vê trêsfregueses chegando ao mesmo tempo, no olhar atento dopequeno engraxate tentando identificar quem usa sapato...

Todo seu ser foi invadido por uma imensa onda, umtsunami devastador que expulsou de dentro de si todo o resto.Não sabia exatamente porque nem o que o tinha invadido,mas ele tinha se tornado uma grande bomba, aquelasubstância estava armazenada em seu interior, mas ele estavapronto para explodi-la por todos os cantos, inundando todaa praça. Ele não tinha controle sobre ela, e em forma líquidaa substância transbordava por seus olhos.

Esqueceu-se completamente daqueles momentos em que

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procurava respostas para suas grandes dúvidas. Suas respostasagora estavam escritas de maneira clara nos olhos de todas aspessoas. Na verdade, não eram respostas, pois não havia maisperguntas, era uma grande sensação de participar da mesmarealidade. Cada pessoa era um pouco dele mesmo, cada alegriaera sua e cada tristeza também o feria.

Esse homem acabou novamente piscando os olhos, equando abriu-os novamente a praça estava vazia. Mas eleainda estava repleto daquela imensa energia interna que oirmanava com todos os homens. Entristeceu-se, poisprecisaria de outros olhos para derramar a força que por eletransbordava. O sol agora brilhava e derramava luz por todosos cantos, ele podia enxergar bem a praça mas não vianinguém. De repente, ao longe, ele avista uma silhueta quese aproxima. Não consegue identificar, mas alegra-se por nãoestar completamente só.

O vulto aproxima-se, é uma mulher. Ela tem grandes olhosde uma cor que ele não consegue identificar, uma cor, quemuito mais do que o branco, parece conter todas as outras. Asubstância que o inunda agora parece em ebulição, todo oresto desaparece e só os olhos dela existem. A praça esconde-se, o homem desaparece e dele só sobram os olhos, eles gritam,eles vazam, todos os outros olhos foram reunidos nos daquelamulher. Ela é o resumo de todas as outras pessoas, o mito decarne e osso, a estátua de bronze sujeita à morte.

Do fundo de uma memória que está se apagando, elelembra-se vagamente de umas medalhas que condecoravamseu peito, se ele não fosse agora apenas um par de olhosriria dessa recordação... essa lembrança acaba desaparecendojunto com todas as outras.

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Aproxima-se ainda mais do par de olhos da mulher, deperto repara que no fundo deles, também está em ebulição amesma substância que ferve em seu interior.

Os quatro globos oculares aproximam-se, encostam-se epressionam-se uns contra os outros. As substâncias internaspressionam de dentro para fora. De repente a explosão. Osolhos deixam de existir, só o que existe agora é o rio de lavaincandescente que havia dentro deles. Uma fusão profunda.

Depois dela a praça reaparece, um pouco diferente do quesempre foi... essa lava que uniu os dois, destruindo-os, cristalizou-se pelos ares... camada invisível que existe sem ser percebidae que carrega fragmentos do que os dois se transformaram.

Luzes, sol e pássaros, o dia na praça amanheceu um poucomais cheio disso. Namorados passeiam de mãos dadas,encantados com a promessa de felicidade que a naturezalhes faz.

Eu observo tudo ao meu redor, dormi bem, tomei umbom café da manhã, caderno amarelo na mão, estou prontopara escrever... não há desculpas possíveis. Gente de todo otipo passando, pequenas histórias, qualquer ponta do novelode lã é suficiente para que eu comece a desenrolá-lo.

“O sinhô me adescurpe a curiosidade, eu trabáio naqueleprédio da isquina, vejo sempre o sinhô sentado com teulivrinho amarelo na mão, o sinhô é fiscar da prefetura?”

“Não. Eu trabalho em outra área, venho aqui sempreporque quero escrever... um livro, mas até hoje não conseguicomeçar... faltam idéias.”

“Ah, mas o sinhô tá falando com a pessoa certa, tô cheia

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das idéia, conheço um montão de causo que o sinhô podeiscrevê.”

“Me conte então.”“É tudo coisa simple de gente da roça, mais é coisa que

diverte as criança e dexa os adurto com os ovido isperto nasnoite em roda das foguera... conto pro sinhô a istória de umhome que era assim que nem o sinhô, era escrivinhador deistória, já tinha iscrito uns par de livro, era conhecido e davainté intrevista na televisão.

Um dia o home começô a iscrevê um otro livro, tinhaumas idéia na cabeça e começô a passá pro papel. Umascoisa muito isquisita começaro a acontecê, o home achô quepodia de sê umas coincidença e num deu bola. Só que ascoisa continuaro aconteceno, e o home começô a ficá bastanteassustado. Mais também viu que se as coisa continuasseaconteceno, ele podia virá um home muito poderoso.

Na istória dele tinha um cara que era corajoso, afundauma canoa e quase se afoga. Ele tinha iscrito essa parte eessa coisa cabô acontecendo com ele uns dia despois. Umaspaja pra frente ele iscreveu que o home do livro dele ia ganháno jogo do bicho, num é que aconteceu a mesma coisa cumele, macaco na cabeça.

O home resorveu tirá a cisma, ficô matutando o que podiasê a coisa mais difícia do mundo pra acontecê, daí resorveuiscrevê umas paja ponhando essa coisa, só pa tirá de veiz acisma que tava incasquetando ele.

A istória contecia numa fazenda cortada por uns par derio. O home iscreveu que num desses rio dois barquinho, umvermeio e o otro marelo iam batê, e o vermeio ia virá, arguémia ajudá a acudi as trêis moça bonita que ia caí na água.

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Mais foi só ele pará a caneta que bem em frente dele osbarquinho bateu e ele teve de ajudá as muié. Despois dissoele tinha certeza, as coisa que ponhasse no papér conteciade verdade. Ele começô a iscrevê todas as coisa que gostava,muierada, carrão, barco, dinhero...

Uns par de mêis de festarada, mas despois as coisacomeçô a perdê a graça, era tudo fácir demais... ele ficôtriste, resorveu pará de iscrevê enquanto num pudesse inventáumas istória mais interessante, as coisa alegre já tinha iscritotodas e tava de saco cheio delas. Só que num ia sê bobo deiscrevê coisa triste porque elas iam acontecê pra ele.

Pensô nas escoia que pudia fazê... iscrevê uma istória queconta a istória dum home que acontecia cum ele as coisa queiscrevia, mais que despois conseguiu terminá com essa coisado capeta. Pensô também em iscrevê a istória dum home quenum é alegre e nem triste, e que passa a vida toda tranquilão,nada dexa ele incomodado, nem com os nervo exprodindo,um home sem emoção. As duas idéia num animaro o home,que achô que elas num ia resorvê o pobrema.

Daí o home teve uma otra idéia, ele ia iscrevê uma istóriasem gente. A istória ia tê ventania, chuvarada, grama moiada,chero de chuva e de terra seca, árvore, e todos os tipo denatureza, só que num ia de tê uma viva arma, nem home,nem muié, nem criança, nada...

Achô boa a idéia, ficô pensando o que ia acontecê, numconseguiu descobrí. Resorveu de quarqué jeito que tinha queiscrevê essa istória sem gente... os pessoar simple da roçachamava essa istória de - O home que virô vento.”

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“Eu já te disse, enquanto você não começar a ser dizimistaas coisas não se resolvem, pode confiar, eu também nãoacreditava, dizia que a pastorada malandra só quer enricaràs custas do povo troxa... e é verdade que tem uns pastorque não são flor que se cheire, mas o negócio é que se vocêdá dez por cento do que ganha, Jesus conserta a tua vida.Você sabe o estado que eu tava, quase pensando em me jogádebaxo do ônibus, cheia de dívidas, marido bêbado e violento,tomando cinco tipo de comprimido, dor nos rim, insônia,cansaço, até visage me apareceu, ouvia voz, tudo dava errado,se chegava no ponto de ônibus, ele tinha acabado de sair, seia no restorante voltava com desinteria. As coisa num ia prafrente, era que nem carro velho, pobreza só atraia maispobreza... um dia minha cunhada me falou assim – vamo lá,faça isso por mim, se você não gostá nunca mais te peço –entrei na igreja e comecei a chorá sem pará, não sei o quefoi, parece que uma mão invisível tinha tocado na minhacabeça. O Senhor tinha me acolhido nos seus braço. Nuncasenti nada tão bom, fiquei mais de uma hora ajoelhadachorando. Depois vieram os irmão e me acolheram, nuncatinha sido tratada tão bem. Passei a colaborá com o dízimo,minha vida mudô, paguei todas as minhas dívidas, meumarido tá fazendo tratamento nos Alcoólicos Anônimos,arrumei um emprego que ganha o dobro que ganhava antes,me sinto bem, não tive mais dor e nem problema de saúde,durmo a noite toda e só tenho sonho lindo.

Por isso te digo pra deixá esse mundo de desgraça, é tudoilusão, essas propaganda de televisão, os político, o dinhero,a bebida de álcool, tudo isso só serve pra levá a gente procaminho do sofrimento, uma vida desgraçada, cheia de dor,

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raiva, se você tivesse a idéia de como é meu coração hojeem dia, me sinto leve, é uma vida abençoada.

Só tem dois caminhos na vida, o da dor e o do Senhor...vem pro meu lado... você não vai se arrepender...”

“Crente idiota, se quiser dê teu dinheiro pros pastorespicaretas, mas para que tentar levar mais gente pro caminhoda ignorância. Não existe Senhor, Jesus, é tudo enganação.Morreu, acabou e pronto. Não tem paraíso, inferno, porcarianenhuma. Ninguém vai te salvar, ninguém vai te ajudar, teudinheiro só ajuda os picaretas a comprarem rádios, redes detelevisão, financiarem deputados, é tudo uma imensaenganação, gente ruim que se vale da fraqueza dos outrospra ganhar dinheiro.”

“Ah. Ah. Ah. Chega. Chega. Eu tô precisando de ajuda.Agonia grande... tristeza, tem alguém aí que seja casado eque não... nem raiva, simplesmente não sinto nada pelamulher... ela é um objeto que ocupa espaço e não temnenhuma função, mas minha vida está completamenteamarrada a esse grande objeto inútil. E não é só isso, sefosse, uma separação resolveria o problema... parece queesse objeto inanimado contaminou todo o resto da minhavida, não adianta eu simplesmente jogá-lo no lixo, outrosaparecerão sob novas formas. Vivo uma vida infeccionadapor esse peso morto, e a culpa dessa infecção nem é dela...ela também é vítima, eu devo ser a geladeira estragada davida dela.

Alguém tem uma resposta para me dar? Ou as coisas sãoassim mesmo e ponto final? Já tive vontade de tudo, a últimafoi de destruir tudo, os objetos do apartamento, móveisroupas, até minhas coisas, deixar tudo em pequenos pedaços,

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e quando ela chegasse eu a olharia sem nenhuma emoçãono rosto, nem raiva, nem tristeza, talvez então ela entendesseo que sinto.

A luz de nosso apartamento se apagou de novo,pontualmente no mesmo horário, quantas milhares de vezesmais terei de assistir a essa cena aqui da praça. A geladeiratoda colada de ímãs com telefones úteis... o horário da novela,o relógio de parede marcando as meias horas, as reuniões decondomínio, os bom dias e as perguntas sobre futebol paraos porteiros, as gratificações natalinas, todo aquelemaravilhoso espírito de união humana de final de ano, obarulho da máquina de lavar roupas, o salão de festas comseu regulamento, o maldito elevador... como odeio o elevador.

Manias vazias de uma rotina burra que só conduz aosofrimento, e ninguém faz nada contra isso. Ninguémquestiona essa vida imbecil. Supermercados com cartões defidelidade, caixas perguntando – é débito ou crédito? –vontade de responder – não, é o fim – filas, produtos,estacionamentos, tudo sendo empurrado, mil maneiras de teenganar enfiando a fome, o sexo, o medo, o amor, qualquercoisa no meio para justificar que teu objetivo de vida deveser comprar e comprar – se você comprar esse sabão em póestará dando um centavo para os miseráveis que passamfome – pronto, você já poderá dormir em paz porque Jesusnão te castigará porque você é bonzinho. Regras e mais regras,e culpa para aqueles que não as cumprem. É preciso sercalmo, é preciso obedecer, consumir. Se você sente-se umpouco desconfortável, terá opções de compras um poucodiferentes que acalmarão teus pequenos desconfortos.

As doses de medicação social são administradas conforme

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a sensibilidade dos pacientes, para os menos sensíveis dosescavalares, para os sensíveis doses menores repetidas maisvezes, mas que no fundo acabam tendo o mesmo efeito. Osalternativos contribuem tanto quanto a classe média maisalienada para o reforço desse sistema de vida que nósmesmos nos impusemos. É importante não colocar a culpaem nenhuma força alienígena, cada um, com sua omissão,é responsável pelo sustento desse sistema de vidaempobrecido que levamos.

O casamento, no meu caso, foi a gota que me feztransbordar... nunca mais vou acender aquela luz que acaboude se apagar, luz pálida, pior que a escuridão. As almas serecuperam como os fígados, se damos-lhe uma trégua dadestruição diária, logo elas voltarão a ter brilho.

Olhem lá para cima, vejam o oitavo andar, o prédio não éruim, sei que muitos de vocês adorariam morar lá. Cada objetoque existe no apartamento está contaminado, é uma pequenacidade radioativa. O cinzeiro, o porta copos, as toalhas, tudoaquilo ao longo dos anos foi colaborando para eu estar hojeaqui, gritando num ponto de ônibus para pessoas que nãoconheço.

Pode ser que eu continue carregando meu fardo desofrimento para onde quer que eu vá, e que ela e oapartamento sejam apenas uma das materializações dessefardo. Pode ser, mas pelo menos vou fazer uma tentativa...minha chave jogo no bueiro e para lá não volto.”

Praça cheia de disgracera sofrida, lágrima escorrendo pelocano do revólver enfiado no fundo da boca. Noite-dia-seco-

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molhado, gotas pingando dos galhos dos pinheiros. Vidaescondida nas minhocas dos canteiros, pombas com frio ecoruja solitária da madrugada, alegres passarinhos cantantesnas manhãs ensolaradas, cachorros bem cuidados e mendigosmaltrapilhos, vendedorezinhos sem troco, artesanato semvalor, droga batizada, viaturas de polícia novas, meninosonhando em ser policial.

Vida e vinda, ida, partida, batida, ardida, divertida,enxerida, ferida, extrovertida, controvertida, dolorida,consumida, exaurida, desprovida, descabida, dividida,distinguida, desmilingüida, destruída... caminho e não vejo...droga, droga, fissura, faca, grana, droga, polícia, bolsa,carteira, bufunfa, maluco pros maluco dá bagulho, lata vaziacaximbão, locão-paraizão, porrada, sangue, dor, boné etênis pros locão , pedrinha pequena e fissura grandona,cartera e corrida, locura, sem fome nem sede, pedrada naviatura e corrida, trapo escondido nos buraco de luz eesgoto, colchão velho e cobertor fedorento... banho nafonte, guria loca fica fácil, pedra marrom, andá em bando,todo mundo saindo de perto, medo... locão ficô devagar,as coisa parece tudo boa, acaba os barulho, a pressa,mundo devagar bem gostoso, praça de pedrinha branca eárvore grande, cheia de esconderijo. Malucaiada, vem asvez gente da prefetura, mulher fala de futuro, banho, cama,cabelo cortado, futebol profissão... pedra e praça e pronto,banho na fonte e futebol com tampinha de garrafa.Máquina de tirá foto, gringo, corrida, três pedra grande,doidera, velho branquelo arranhô meu pescoço, lavo naágua da fonte, de noite tem lua cheia nela...

Praça cheia de tudo, para que servem meus livros e essas

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apostilas do vestibular? Se tivesse dinheiro iria viajar pelomundo, só para depois descobrir que todos os lugares sãoiguais, as apostilas dizem que são diferentes. Mulheres, amola do mundo, mostrando pra todos que são as proprietáriasdo futuro desse tipinho de mundo em que vivemos. Umafêmea ou um macho, cada um pode se comportar ou nãoconforme uma mulher de fachada, toda leiloeira de seus benssexualóides, ou como um homem do mesmo tipo, todobonzão, provedorzão e respeitadorzão. Duas grandes mentiraspara manter as coisas como são.

As pessoas são estranhas, e comportam-se dessa formadurante parte do tempo, vestindo e guardando personalidades,isso dá muito trabalho – agora vou ser fêmea lasciva, agorafilhinha boazinha, agora uma super-profissional, volto a serputona que se leiloa pela melhor oferta, filhinha tão queridinhaque ajuda as criancinhas – depois misture-se a todas essasmudanças, bastante culpa e arrependimentos, frustraçõespor não se ter atingido os melhores preços nos leilões, raivapor se ter perdido tanto tempo fingindo-se de boazinha,cansaço e desânimo por ter de tantas vezes mudar depersonalidade, pressões sociais: seja jovem, magra, respeiteas leis, reproduza-se, consuma, acredite, seja cidadã... é umpeso maior do que qualquer homem ou mulher pode suportar.

De que valem essas porcarias dessas apostilas, elas sãoa condensação de tudo o que não quero ser. Por que tenhode sofrer para conseguir atingir um outro estado de sofrimentomuito maior “nós te daremos a dor, mas não se preocupe,junto com ela você receberá a devida anestesia”.

Química orgânica, física, biologia, álgebra, cinco matérias,vamos ver... não deu, tiro a álgebra fora e deixo só quatro,

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desse jeito consigo rasgar... pronto, agora eu deveria jogar opapel rasgado na lixeira, de preferência naquela que estámarcada para papéis, dessa forma eu estaria colaborandocom a natureza e uma árvore a menos precisaria serderrubada... vai na fonte mesmo minha papelada inútil, praficar boiando n’água e as pessoas verem minha revoltaacontecendo no meio da praça. Vão ver que tem muito lixoque bóia no meio dos enfeites... todo mundo me olhandocom cara de “que feio, menino mimado sem educação”, sefalarem alguma coisa dou um chute em qualquer um, atévelha vai levar uma bicuda na bunda se abrir a boca...

...eus todos dissolvidos nessas praças, nossos muitosmundos rastejando, se beijando, se chutando e se ignorando.Não seria Deus, apenas De-eus, uma palavra que quer dizerque “é o que pertence aos múltiplos eus”? Nesse caso sóexistiria mesmo um Deus, pois só existe um “eus”, esse grupomúltiplo de personalidade única que freqüenta a grande praça.Diabo, poderia ser a forma contraída de “dia bom”, onde ospecados do “eus” acontecem, dessa forma o que originalmenteé bom, passa a ser mal pois faz com que o que é consideradoo bem infinito caia em tentação. Nessa lógica então, Deus éo maior dos fracos e o Diabo o grande injustiçado, e nós nostornamos fracos porque nossas grandes esperanças estãodepositadas em cima da fraqueza.

E quando, em um dia bom, o “eus” passeia pela grandepraça, acontece o embate entre bem e mal, que na verdade,ao contrário do que se diz por aí, está espalhado por todos oslados, cada átomo está envolvido por um pouco dos dois, enão há uma só molécula que seja absolutamente boa ou má.

A luta nunca pára de acontecer e obedece a um padrão

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repetitivo constante. As vitórias e derrotas de cada lado sãopequenas batalhas na grande guerra universal. Véustransparentes e sobrepostos encobrem a máquina do relógioque trabalha desde sempre, absoluta e eterna, ignorandocompletamente os dramas que se passam na superfície, damesma maneira que nós ignoramos os dramas que se passamdentro de um formigueiro.

Os eus fundem-se num único grande eu, visitante únicoda grande praça que, em um dia bom, começa a ser tentadopela luminosidade, pelo brilho das cores e o cantar dospássaros. As formas ilusórias fazem com que o grande eúnico eu procure aproveitar as tentações oferecidas por esseglorioso dia bom.

A disputa não cessa, ela não teve começo e não terá fim,os pequenos começos e finais são só ilusões de ótica, miragensde luz em um belo dia bom. No palco-praça a encenaçãoperpétua acontece sem interrupções, os atores vão sendosubstituídos e reencenando a peça.

O descobridor é um personagem clássico. Mais sensíveldo que a maioria, logo percebe a sobreposição de véus semi-transparentes que encobrem algo que não deve ser visto.Então, com todas suas energias, começa a querer furar essesvéus para descobrir o que tem por baixo. Perfura uma camada,duas, três, mas sempre há mais uma debaixo, às vezes logona primeira se dá por satisfeito e diz que o que há por baixodo véu é outra camada de véu e ponto final. Mas às vezessegue perfurando camadas até morrer e acaba não chegandoa conclusão alguma.

Com seus barulhos, regularidade, com suas falsasirregularidades que existem para tornar o sistema ainda

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mais perfeito, a máquina continua, enquanto em vão oscuriosos procuram desvendar seus segredos, tentamatravessar todos os véus para fotografar seu coração...todos cumprindo exatamente o papel que devem cumprir,os conformistas e os rebeldes. Cada um à sua maneira ecom a mesma importância, estão colaborando exatamentepara o mesmo fim.

A praça amanhece de novo, os ônibus começam o ir e vir,as pessoas circulando apressadas, nós todos nos olhando econtando para nossos interiores a respeito dos outros, cadaum é dois, ou mais, eus e eles, duplos, visões... amanhãeu... ele... todo mundo... nós todos... as moedas jogadas nochão, eu vi aquele homem jogando moedas no chão... eutumém vi, o pião deve é de sê muito do rico, ô intão numbate bem da cachola... e despois fica oiando pra elas cumcara de que tá isperando que elas vorte andando pro borsodele... cum tanta gente passando necessidade. Avôa curujabonita, os home diz que é sinar de azar, pra mim é sorte, oszóio amarelo me oiando...

gente... gente... medo... barulho... gente... medo...árvore... árvore... vôo-vou-vôo-vou... longe... árvore...

Acontecendo como uma vela que queima, não sei porqueessa frase me apareceu na cabeça... o mundo pertence aosexóticos... segundo pensamento que me atravessa sem quesaiba de onde vem. Bom sinal, quebra no pensamentoencadeiadozinho do dia-a-dia, arroz com feijão sem feijão,

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que comanda minha cabeça.Praça, dia bom, ensolarado, sem nada para fazer, grande

céu azulado só com uma nuvem-carneirinho passeandodevagar. E eu de óculos escuros, negando as cores, se océrebro está bem disposto, deixo os olhos se exercitarem,nem que o sol tire deles uma lágrima. No mais, é ver a vidadesfilar na minha frente e esperar para ver se ela tem algumacoisa para me dizer. Pelo jeito tem, pois já me deu duaspistas hoje.

Vou pegar uma corzinha com esse sol... gostoso o calorna minha pele, óculos escuros... como foi que eu pude? Nesseinstante eu estou acontecendo, a conexão exata da chamacom o pavio... emprego... que engraçado, olhando todas essaspessoas que passam de um lado pro outro, a primeira palavraque me vem à cabeça é essa... é uma pressazinha deobrigação misturada a um leve desânimo, uma levíssimasatisfação de pelo menos ter um, e uma grande vontade deque o dia acabe logo, para poder ir para casa esperar pelopróximo dia de trabalho.

Eu estou empregando-me na função de ser banhado pelosol e observar os outros, que cheiram e se parecem comempregos. Eu também devo me parecer com alguma coisa,acho que pelos olhares que recebo daqueles que se parecemcom empregos, o que eles devem enxergar em mim é aexpressão “bicha velha”. É engraçado, isso me lembra umatirada do meu tempo de criança “sou, mas sou feliz, muitomais isso quem me diz”.

Tranqüilidade, será que essa palavra tem plural? Se tiver,é isso mesmo que desejo a todos vocês, que sintam o queestou sentindo agora. Não imaginava que eu fosse assim tão

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pele... o sol me queimando e eu todo sendo esse contato daluz com o calor e a carne. Fico reduzido a uma gostosasensação, moro num útero do tamanho da praça, estouabsolutamente seguro, sem preocupações, apenas sou.

Olhos fechados para que o útero se torne ainda maisconfortável e sem distrações. Raios amarelos atravessamminhas pálpebras e o alaranjado que enxergo vai movendo-se e formando figuras... é isso aí... é isso aí...

O som da gaita do vendedor de picolé... esforço grandepara abrir os olhos... delícia de infância, mistura de somcom gosto... vou querer o mais colorido, um roxo que brilhacom a luz do sol, explosão de cor e memória... sou, mas soufeliz, muito mais isso... gosto de oito anos, um filme mepassando pela cabeça, cenas gloriosas e recordações de comoelas terminaram... ir e vir... fechando os olhos experimentoas cores com gosto, um misto de amora, pitanga, uva,morango e framboesa, um verde misturou-se com as coresque enxergo. Delícia é a palavra que deve ser dita, maisnenhuma. Delícia e silêncio, delícia é silêncio... eu meescutando, ao redor os barulhos da praça , molduras do meuquadro. As buzinadas são as incrustações de mau gosto quedecoram a moldura... mas eu sou quadro colorido, cheio detintas e formas, eu me sentindo combinação de cores queformam outras, forma viva num momento de vida.

Instantes... instando, agora, nada mais, sem nada quenão seja sendo eu no meio de um eterno sem bordas... agora,agorando-sendo-instantesempre... sol na pele e eu nomundo... mundando... estando... flutuando... voando comos pés no chão, estando em dois lugares ao mesmo tempo,sou só aparência sentada no meio da praça... outros também

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são eu... sorvete e espera... pipoca e passeio... caminho decasa e do trabalho... lugar de dormir e descobrir: sonhos.

Os lugares são construídos de sonhos bons e maus quese misturam e se materializam em tijolo e concreto...apartamentos seguros para quem tem medo de cair dasalturas, proteções contra sonhos maus, caminho de floresque invade a noite dos que dormem na praça, esparramandocheiros que só existem no sono.

Eu sou aquele cuja missão é descrever, sou o dissolutonão totalmente dissolvido, restos de mim existem comobolhas, sou o que aceitou existir em outros, o generoso egoístaque extrai as melhores partes da vida e da morte, mas quenão sabe o que fazer com elas. Sou o viciado em “regiõesbrumosas”, pouca responsabilidade, sou o responsávelacompanhante de um homem que não sei quem é. Perdi-o,esqueci-me do que tinha descrito, as memórias devempertencer à parte minha que já se dissolveu. Sou bolhaefêmera que enche-se para estourar. Um ônibus pára, omotorista desce para esperar os passageiros entrarem, façoo que sei fazer , descrevo seus instantes: deve ter unscinqüenta anos, é mulato, meio calvo e barrigudo, a camisaazul quase não comporta sua barriga, tem um palito no cantoda boca. Sai do ônibus cansado, não está irritado mas umpouco desanimado. Senta-se num ferro que protege ogramado, é desconfortável, só dá para agüentar uns segundos.

Olha para os lados, mas não para a fila de passageirosque entram em seu ônibus, ela parece lhe lembrar que otrabalho está só começando. Diria que ele já é motorista hádezessete anos e faz diariamente essa linha há pelo menostrês. Diria que tem três filhos adolescentes e sua esposa

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trabalha em casa e vende bijuterias e panos de prato navizinhança. Diria, também, que ele ronca muito, e nos finsde semana freqüenta um bar que fica próximo de sua casa.Bebe só cerveja e gosta de jogar sinuca. Diria que mêspassado chamou a filha mais velha de puta, ficou uma semanasem falar com ela, mas depois pediu desculpas com lágrimasnos olhos. Nessa semana, correu mais do que devia com oônibus e quase causou dois acidentes.

Isso são tudo invenções minhas, não o observei mais doque alguns instantes e nunca o tinha visto antes. Começo amisturar funções, não obtive nenhuma resposta para asminhas perguntas, aquelas coisas de para quem é quedescrevo... então começo, com o pouco de mim mesmo queme resta, e enquanto minha bolha pessoal não explode,começo com essas experiências... diria que ele tem maisnove anos de vida, não se cuida, bebe... agora repara numamoça bonita que entra em seu ônibus, olha para baixo, vejoque sabe que não tem mais idade para que as moças bonitasolhem para ele. Sabe que está gordo e que não tem dinheiro,suas chances são nulas.Olha para o outro lado, para os outrosônibus que vão chegando... relógio e suspiro.

Mexe a boca em sinal de impaciência. Eu diria que eleacha que em algum ponto de sua vida cometeu algum erro,por ação ou omissão, que o colocou na situação em que estáhoje: não é feliz. Gostaria de dizer para os filhos nãocometerem os mesmos erros que ele, mas o problema é queele não sabe quais foram. Não atribui à falta de dinheiro suasituação, acha que mais dinheiro poderia ajudar mas não otornaria mais feliz. Esse mistério do erro o incomoda, ele nãoé velho e talvez ainda tivesse tempo para corrigi-lo, a dúvida

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leva à angústia e ela ao bar.Afoga seus momentos livres em bebida, jogo e conversas

banais. Não é realmente amigo de nenhum de seus colegasde diversão, considera-os todos uns fracassados, que nemao menos têm a noção disso. Ele pelo menos sabe quecometeu um erro qualquer, só não sabe qual foi.

Gosta de fazer churrasco, mas não das pessoas que suamulher convida quando ele faz, acha-as todas arrogantes,pequenos comerciantes ou funcionários de banco, que seacham superiores a ele por ele ser motorista de ônibus.

De sua mulher e de Deus ele tem desconfianças parecidas.Ela tem muito tempo livre e sempre faz questão de convidarpara qualquer celebração, natal, ano novo, aniversários, umviúvo de uma amiga sua que morreu de câncer no seio. DeDeus dava pra dizer algo parecido, ele também tem muitotempo livre e nunca atendeu a nenhum pedido dele, semprerecebeu tudo do bom e do melhor, velas, orações, novena,crisma, batizado, e até agora não devolveu os agrados...aqui estou exagerando e maquiando o que ele pensa sobreDeus, mas a essência é mais ou menos essa – ele já nãose incomodaria mais de tornar-se um descrente. Tambémnão se incomodaria de se separar, não o faz porque achaque provavelmente não encontraria nada melhor, masprincipalmente pelo trabalho que isso daria... é melhor deixaras coisas como estão.

O ônibus já está cheio e é hora de partir, mas ele semprefica uns dois minutos a mais sentado, mesmo que não estejafazendo nada, é sua maneira de ser arrogante. Entra no ônibusbem devagar e recomeça... outro ônibus chega e outromotorista de camisa azul desce... agora as coisas estão

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misturando-se, sinto vontade de tirar moedas do bolso e jogá-las em alguns pontos da praça, quero fazer marcações queservirão para decifrar... é, eu tentei mas não deu, a coisa émuito mais complicada do que parece, mas tentei, isso já éalguma coisa... antes dele sair de casa eu estava prestes ame jogar pela janela, não agüentava mais o trem-fantasmapsicológico que o apartamento tinha se tornado. Quando eledescia pra ficar sem fazer nada de noite na praça, eu apagavaas luzes e ficava observando-o pela fresta da cortina. O fatode ele precisar ficar sozinho numa praça na frente da própriacasa veio me deixando tão deprimida, magoada, comecei asentir nojo de mim mesma. Queria pular bem quando eleestivesse lá, sozinho, não fazendo nada, olhando pro nada,de repente via uma boneca caindo do seu prédio. Ia ver e erasua mulher em pedaços, daí ele poderia voltar em paz para oapartamento, poderia ficar de noite em casa sem ter quedescer. Uma boneca destruída sujando toda a praça.

Ele acabou salvando minha vida, me sinto aliviada, nãoresolvi o que me angustiava mas pelo menos tenho ar pararespirar, acho que era nesse banco que ele se sentava. Dápra ver direitinho a luz da sala... coitado, nesse instante nãotenho raiva dele, deve ter sofrido bastante, talvez tanto quantoeu. Espero que encontre um caminho, espero que não voltemais e nem ligue para dar desculpas, quanto aos bens e ascoisas dele pode mandar alguém vir buscar, se quiser oapartamento não vou me opor, mas desconfio que não vaiquerer nada, abandonou tudo que lhe trazia sofrimento. Talvezeu devesse fazer o mesmo, vender, me mudar, inventar umoutro destino, ainda é tempo.

Imagino-me caindo pela janela e me esborrachando no

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chão, talvez eu caísse em cima daqueles táxis ali... mas agoraacabou, eu e ele conseguimos nos libertar, pelo menos achoisso, só espero não carregar para a nova vida os esqueletosapodrecidos que criei ali no apartamento. Quebra deparadigma, nova eu, é dia claro e a luz... a luz tudo invade,ele segue o caminho dele, ela segue o dela.

“Com licença, desculpe incomodar a senhora... é que, senão quiser é só... não quero vender nada... eu, há uns temposatrás comecei a sentir uma necessidade grande de meexpressar, queria escrever alguma coisa, tentei muito, saíasempre de casa com meu caderno, sentava em algum bancode praça e tentava colocar alguma coisa no papel. Tentava.Porque não conseguia, era mais difícil do que pensava... essasituação começou a me agoniar, de um lado o desejo de meexpressar, de outro a impossibilidade. Comecei a ficar nervosoe pensei em desistir, e canalizar esse meu desejo de expressãode outra forma. Mas eu sabia que se fizesse isso estariaerrando, porque no fundo sinto que esse é meu caminho.

Há uns três dias atrás, quando eu menos esperava,consegui começar, no dia seguinte escrevi também e ontemcontinuei. Percebi que depois de começar a coisa flui commais facilidade.

O que eu queria saber da senhora é se... sei que é estranhoisso, mas para mim é muito mais fácil mostrar esse texto paraum estranho do que para um conhecido... preciso que alguémme escute... se eu estiver te chateando paro na hora...”

“Te escuto com prazer.”“Vou ler para você porque escrevo à mão e minha letra só

eu entendo, mas é um pouco comprido, já te disse, se quisereu paro na hora, é só me dizer...

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Um espelho com dezessete reflexos apareceu no meio dapraça Santos Andrade. Não sabemos sua origem nem suafunção. As pessoas acharam que aquilo era alguma instalaçãoartística e os artistas, que era alguma obra incompleta daprefeitura. Ninguém acertou, e até hoje não foi descoberto odono e a função do estranho objeto.

Não eram dezessete espelhos, era apenas um, mas queproporcionava dezessete reflexos de qualquer objeto que seposicionasse na sua frente. No início, quem mais interessou-se pelo objeto foram as crianças, que se divertiam enxergandocoisas que nunca tinham percebido. Depois, alguns jovenscomeçaram a ver que havia algo de especial ali, e que aqueleespelho que apareceu um dia, pregado num dos pinheirosda praça funcionava como uma espécie de caleidoscópio.Mas ao contrário do modelo tradicional, não eram pedaçosde uma imagem que moviam-se formando desenhos e novasimagens, mas sim imagens inteiras que compunham-se paracontar histórias, criando vínculos entre pessoas que não seconheciam e fazendo um mundo que ainda não existia surgirdo nada.

Mas essa novidade não se espalhou muito, ficou sendoum privilégio de poucos, não que eles tivessem escondidodos outros, o espelho estava lá para quem quisesse vê-lo,mas é que ele simplesmente não despertava mais do queuma leve curiosidade nas pessoas que passavam. As criançaspuxavam seus pais pelos braços para a frente do espelho eos pais esperavam com impaciência que as criançasterminassem de se divertir com os muitos reflexos.

Os adultos que perceberam que ali havia um potencialenorme, tornaram-se freqüentadores diários do espelho. Eles

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sabiam que ali estava algo com uma possibilidade muitomaior do que o cotidiano nos oferece, não sabiam como essepotencial seria aplicado e nem qual a possível função prática.Na verdade, eles gostavam mesmo era de ficar em frente aele, compondo destinos, histórias, deixando que osacontecimentos virtuais encadeados pelo espelho desfilassemdiante de seus olhos. E todo dia as histórias mudavam, nãohavia repetições, aquele objeto era uma máquina anti-rotina.

Mas era muito mais do que isso, a deformação de imagenscriava uma sensação mental de ausência de tempo e deconexão de coisas que aparentemente pareciam inconciliáveis.No décimo sétimo reflexo essa sensação de irrealidade eraainda maior, e a graduação de tons, dos mais para os menosrealistas, dos outros reflexos, embaralhava de maneirasaudável a percepção de quem contemplava o espelho,abrindo caminhos mentais que antes estavam fechados.

Caminhos escuros que dão medo à maioria das pessoas,percursos onde a luz é a própria escuridão, e tanto fazcaminharmos de olhos abertos ou fechados, pois o queenxergamos não necessita de retina. Não estou querendo sermetafórico nem arrogante, é que não precisa mesmo, talvezo verbo exato não seja ver, o verbo sentir talvez fosse melhor,ou uma mistura dos dois ver-tir, porque é mais ou menosisso, é participar de uma outra ordem de acontecimentos,sem as amarras da seqüência de fatos e nem da lógica formal.Mas ao mesmo tempo com uma sensação de realidade quediferencia completamente de um sonho, o que sente queminicia-se por esses caminhos.

Em todos os dezessete reflexos, o que emoldura as imagensque se entrelaçam é o petipavê do chão da praça. Essa

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moldura única realça ainda mais as diferenças entre osconteúdos dos reflexos, mas torna-se imperceptível, quandoalguém depois de olhar o espelho por algum tempo, entraem seu mundo diferenciado.

Alguns outros lugares e objetos às vezes também aparecemrefletidos, as ruas ao redor da praça, os prédios, os pontosde ônibus, os telefones públicos, mas é sempre a figurahumana que, olhando-se no espelho, torna-se o ponto centrala partir de quem tudo vai se desenrolar.

Com o homem que se olha no espelho com sinceridade evontade de enxergar, o caleidoscópio gira com velocidade, asimagens vão se entrelaçando e rompendo seus laços, nada épermanente, o belo transforma-se em feio e volta a ser belo.As coisas circulam em vários eixos, mostram seus interiores,conectam-se, expelem-se... o pipoqueiro passa a vendermilhares de pequenas pombas vivas do tamanho de pipocas...essa é uma imagem do décimo segundo reflexo... os desejosrefletem e mulheres atravessam a praça nuas.

Podia ficar aqui narrando dezenas ou centenas deesquisitices que aparecem nesses reflexos. Mas estariaextraindo-as de seus contextos, na verdade todas elas têmconexões com outras, e um sentido.

Não me apresentei, eu sou uma das pessoas que olho-me diariamente no espelho, e que por isso acho que jáconsegui expandir meu universo mental. Tudo o que poderiater sido dito com palavras já disse, mas não conseguitransmitir nada daquilo que senti. O tamanho da abertura émuito maior do que minhas palavras alcançam. Mas tento,do meu jeito, dizer um pouco mais sobre o espelho dedezessete reflexos.

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É mentira. Talvez em duas palavras tenha dito mais doque em todo o resto. A mentira é enorme, porque toda amaneira mental como encaramos a vida, é tão pequena erestrita que pode tranqüilamente ser classificada dementirosa.Vivemos então num conto de fadas mental quereinicia-se diariamente, medos, desejos, medos, desejos,morte, desejos, morte, esses são os personagens do nossogrande conto da carochinha. Mas eles nunca se apresentamcom as mesmas fantasias, sempre modificam o figurino, ocenário, ou uma ou outra fala do texto, modificaçõesinsignificantes, qualquer observador mediano percebe quese trata sempre da mesma peça.

O que os reflexos me mostraram, foi que podemosreescrever essa peça, não encenar nada, encenar uma peçadiferente por dia, podemos destruir o texto, embaralhá-lo,encenando somente as páginas ímpares ou saltando de trêsem três, e que por isso não teremos resultados piores e nemmelhores do que o nosso velho conto da carochinha. Masque não precisamos ser escravos de apenas uma maneirade existir.

Eu narro os fatos como narram aqueles que no espelhosó conseguem enxergar um reflexo. Velho jogo encadeado deidéias e palavras, uma maneira mentirosa de narrar... as coisassão diferentes, acontecem ao mesmo tempo, aqui vai umatentativa de te mostrar isso:

Coroa fuçadeira sentadona no banco da praça, sou opervertido imundo, estou me esgo-tando nesse mundo,escorrendo em direção aos teus desejos envelhecidos,envilecidos, anoitecidos, querendo ser divertidos, de mim, ocú e a uretra do mundo ganhará merda e mijo, desloca-se a

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consciência e a guimba de cigarro do chão é apanhada porum gari – que dor miserável nas costas, fisgada de dormir demau jeito – travesseiro ortopédico de oitenta e nove reais,três vezes de trinta e cinco... cinqüenta e um anos nas costas,um luxinho na vida tenho direito – alguém passa distante,quase não refletindo, idéias longínquas que só resvalam noespelho... acordar cedo e ter uma conversa séria com ele...setenta e dois reais, acho que hoje bati meu recorde... reflexospróximos: a gente emenda a sexta e pode passar quatro diasna praia... outros acontecendo, explodindo, pipocas quepulam: diaba suja, mãe de santo puta, enfie teu São Jorgeno rabo, que a espada dele te rasgue o reto, bruxa, tuasmaldade não pega em mim, eu tenho proteção divina. Moeda,moeda, moeda, sete, passos, pés, pessoas pisando, eu sendoo mais útil dos homens, descobrindo todos os segredos, chegados sofrimentos, eu o salvador, vida de merda e daí? Sacrificoa minha pelas bilhões que existem e virão... gênio,descobridor, nada importa, quero silêncio, discrição, vidinhapacata e o mundo melhorando sem saber que eu ajudei... omundo que engula minha glória, sou uma grande pista falsa,quem me observa pode estar se esquecendo do principal...sou outros, moeda: pé exatamente onde previ – matemática,o mundo é dos barulhentos, mas são os silenciosos que devemmudá-lo.

Olhos fechados: luzes azuis, verdes, outro mundoindependente, em dias de bebedeira rostos pavorosos cheiosde detalhes me olhando e encenando representações: futuroprovável? Jogos de cartas com cenas do próprio futuro, oitode copas com a própria imagem dentro de vinte anos, ás de

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espadas com o próprio enterro, jogo tenso com parceirosdesconhecidos e desconfiados.

Amor-explosão, necessidade de mil olhos derramandolágrimas – mundo inteiro entrado-entrando em mim, equerendo sair por algum buraco... por todos explodo-mundo,imundo emporcalho tudo... eu não agüentando ser o fiocondutor de toda a vida – grande amor absurdo, big-bangdos big-bangs, bang-bang entre o eterno e o finito... pode vir,eu te desafio e te aceito, eu agüento teu peso, o que é seraniquilado? Bomba atômica feita da glória-vida: amor-nuclear,semente expandida à eternidade, olho-olhar e pronto, o amor-todo me esmagou e já não existo mais, passei a ser umindependente. Imagem que não reflete em nenhum espelho.

Homem fim, homem finado, fingindo-se de nada, anti-acontecendo-se no agora do contrário, anti-vida, anti-sexo,os pés virados para dentro e colocados nos lugares das mãos– mundos começando onde os outros terminam – mas aomesmo tempispaço acontecendexistindo, dúvida cerebral nacivilização sem corpo que se reproduz por desejos do espírito.Homem enterrado, enterrando, plantando, plantado...homem mulher que dá cria e cria, mulher com pinto ehomem amamentando três bebês em seus dois seios.Desejos confundidos e misturados, dedo na torneira retevetanto a água – cano explodido do desejo inundando toda apraça, espelho boiando no rio do desejo e refletindo o céuazul sem nuvens.

Aquele lá, o que não sou eu, aquele que nunca fui nemnunca serei, o mistério misterioso de não ser alguém quenão eu mesmo. Dúvida que escorrega e aumenta, grandemistério... como será que é ser os outros? Homem corajoso e

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desafiador, tenta por um dia mergulhar no mar vedado aqualquer um de nós, resolve ser os outros, desbrava um fundode mar escuro com criaturas nunca vistas. Esqueceu-se dapressão das águas, nunca mais voltou , continua passeandopela praça, sendo os outros, vários ao mesmo tempo:

“Amanhã aconteceu que ele está... completem essa frase,vocês que agora são eu!”

Virou também a coruja que aparece na praça, bichodesconfiado... gente... árvore ... voar... gente... árvore.

Reflexo primeiro, camada superficial: que absurdo, ondeestá a família desse senhor? Vê-se que é bem vestido, deveter família, alguém que se responsabilize por ele... vocêsficariam felizes de verem o pai de vocês comendo umcamundongo na praça? Ele responde a pergunta dela, naverdade nunca a viu, e nem a escutou perguntando, mas éuma dessas coincidências de reflexos que se encaixam...

Famílias nós temos... são um só... árvore... gente...ratinhocorrendo da minha fome... voar atrás do rato cinzentinho...chutoe engulo, ponho dentro do meu bico... famílias nós temosmuitas... somos pais de todas as pessoas, vamos levar comidapara as corujinhas pequenas...

Misturas refletidas: ele mente. O que quer é controlar tuavida, te fazer de fantoche, amor o cacete, é um egoísta,responsabilidade nada, é esse tipo de homem que bate emata mulher, os chorões, os que falam que vão se matar, sópensam neles mesmos, você é um bem social que eles foramcondicionados a conquistar, não dá para ter pena e cairnaquela conversa fiada de – eu te amo então me perdoe... sepudessem eles encomendavam alguém para te espionar vintee quatro horas por dia e fazer um relatório completo de todas

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as tuas atividades... um detetive, ou sei lá quem, que contariacada detalhezinho de tua vida, com esse relato em mãos eleiria se deliciar, sentir-se teu proprietário, iria acabar querendote testar, mandando alguém para tentar te seduzir, só paradepois poder ler no relatório se você cedeu ou não.

...tenho tantas memórias, eu com três anos de idadepasseando com meus pais de bexiga na mão... manhê queropipoca, quero doce, a bexiga da menina, quero aquela...manhê... mãe o que aconteceu com aquele instante, ondeestou aquela eu pequena que não deixou de existir? Eu mortajá estou acontecendo... mãe, as mães deveriam saberresponder essas perguntas... onde está aquela bexiga queeu tive naquele dia... quieta sem responder... de onde estásdeve saber essas respostas, deves assistir a todas as cenasao mesmo tempo. Vou te fazer uma pergunta bem difícil deresponder, tem só uma palavra, vê se se esforça e responde:agora?

...antes, antes eu era outro... tempo e lambada da vidame endureceu, sô homem calejado, experiente, boi amansadoà custa de chibata, não me dexo iludí... sô homem vividonesses caminho dos dia e noite... uma casa e uma mulherrespeitosa... pai de família... ninguém passô necessidade...chegado num respeito mais do que numa religião...da minhavida sei eu, num gosto de gente enxerida e nem de palpiteiro...tenho pro meu sustento e pro dos meus... num devo nadapra ninguém, nunca pedi dinheiro emprestado e sempre digonão quando me pedem, até pra amigo íntimo já recusei serfiador... durmo a noite toda... consciência limpa... nome queassino com gosto... venho aqui na praça toda sexta-feira ànoite pra encontrar com um rapazinho de dezessete anos ...

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A PRAÇA DO D IAB O DIV INO

nós vamo num hotel aqui perto, eu pago pra ele cuspir naminha cara... depois ele me mija inteiro e enfia uns caquinhosde vidro na minha pele, só nos lugares que não ficam àmostra... antes.

Amido de luz, coisa translúcida, inodora... mortosrenascidos dialogantes, amor-amarrador-costurante:realidade, cola, unidor dos separos-noite, cores misturantesrefletentes no espelhando agorista, agorante, agourado,agoniado, agosto, com céu claro e frio forte, noite de geadagelada na praça pelada... incosta incostadinho, joga ospapelão por cima, os corpo junto num dá frio, nóis vamo ficajuntinho a noite toda, vô dormi e sonhá que te tenho amor eque nóis mora numa casa grande e quentinha, cheia decobertor e com as comida mais gostosa... me abraça forteque tá frio... posso te pedi pra tentá sonhá que me tem amor?

...um dia catástrofe, o pior dia na vida de uma pessoa,atravessa a praça Santos Andrade tentando encontrar alguémem quem ele possa se manifestar... do outro lado, caminhandoem sentido oposto, vem vindo um dia glorioso, o melhor diana vida de alguém, ele também está à procura de uma pessoaque possa ser usada por ele, e usufruir de seus prazeres... osdois dias passam pelos pontos de ônibus, observam aspessoas sentadas nos bancos, ninguém parece estarperfeitamente apto para recebê-los, os rostos todos indicamvalores medianos... quando se aproximam do chafariz central,os olhos de ambos brilham, sentados um quase em frente aooutro, estão dois homens, o dia glorioso e o dia catástrofe osidentificam, e sem perderem tempo mergulham em suasentranhas – o dia escurece e o sol brilha como nunca, apraça divide-se com a glória e a tragédia de cada um deles...

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os olhos de ambos brilham como pedras valiosas, a dorderrama lágrimas, a felicidade só brilhos. Um deles encolhe-se recusando o mundo, o outro expande-se chamando-o paradentro de si.

No instante único os opostos estão frente a frente, não seenxergam, mas a praça sente suas energias... dor e felicidadeexalam suas faíscas compensando suas diferenças. A dorquer deixar de doer nem que tenha de deixar de existir, afelicidade grita por vida, mais vida, em todas suas formas,luz, pássaros, gente, barulho...

Os homens , que não se conhecem, vêem o dia de seusmaiores altos e baixos chegar a seu final, o sol se põe e osono consegue diminuir um pouco a intensidade de seussentimentos... os sóis rodam e rodam ao redor da praça,que vai conhecendo luzes e escuridões, os copos vazios vãose enchendo com as águas das chuvas, e os que estavamcheios vão se esvaziando com a evaporação natural da água.

Os mesmos homens voltam a sentar-se frente a frente,não suspeitam que um dia ambos tinham sido escolhidospor razões parecidas, mas opostas... o dia está lindo, océu azul vai se tornando azul-marinho, o sol vai se pondo,ficando encoberto pelos prédios, mas alguns raiosdourados conseguem escapar dos grandes blocos deconcreto e encobrem os dois homens, que agora maisuma vez têm algo em comum, só que desta vez a forçaque os une tem sentido único. Envolvidos pela língua deluz e pelo calor do fim de tarde, eles fecham os olhos enão pensam em nada.

A praça luta, todos os atos são esforços iguais... osorriso, os passos, o troco da pipoca, o dedo apontando a

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coruja... luta cotidiana... a paz dissolve as necessidadesdos movimentos... no meio da praça sento-me e não memovo mais, não colaborarei mais com a luta... a vida temoutras manifestações além dela... derretem-se as formas,o sol me cega os olhos, mas isso não me incomoda,esqueço-me de mim e de todo o resto, fujo da correnteencantada dos pensamentos, que trás sempre amarrada aela o tempo... sou-sendo, nada mais é preciso, os outrosnão importam, eles só importarão quando unirem-se amim, daí eles não serão mais os outros... é só uma questãode tempo, de eles se cansarem de arrastar o tempo edecidirem abandonar a luta... é o caminho natural, todosum dia passarão por ele... esperneamos quando crianças,lutamos para conquistar as coisas quando adultos, masdepois as coisas vão se acalmando... primeiro começamosa rir de algumas coisas que nos matamos para conquistar,depois o número de coisas de que rimos vai aumentando,por último rimos de nós mesmos, nesse estágio já estamosbem próximos de atingir o ponto em que não queremosmais luta... começamos a procurar um lugar onde possamossentar e contemplar o derretimento do que antes nosfascinava.

Meu nome é... eu não tenho nome, sou uma coruja, averdadeira coruja solitária da praça Santos Andrade, eugostaria de dizer algumas palavras (essa introdução atribuídaa mim, foi traduzida, pois não penso da maneira como estáescrito acima, as corujas pensam diferente, repetem idéiase as misturam):

Gente, gente, medo, morte, comida... eu eu eu ... voandoalto muito alto, eu sumindo atrás dos prédios... ar frio

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molhado, gente, cor, dia, noite noite dia... árvore... eu morte-não fugir, acordar, comer, dormir, fugir-morte-não, fugir,acordar-lembrar lugar longe: coruja cabeça homem, voandocom cabeça de homem-comer e voar esconder, barulho,sozinha, pássaros, sozinha, homem, comer, árvore, medo,morte, dormir, acordar, comer, morte-medo, comer... eu...voar... escuro... tranqüilo... grande-escuro-tranqüilo... euvoar... morte... homem... noite grande tranqüila... diabarulho-medo... procura-comida... camundongo-morte-morto... olho parado-fome-acabado... escuro-escuridão-vôo-voando-acontecendo... noite... lembro-camundongocomendo coruja... muito rato comendo olho... voando umolho, uma asa... noite difícil... dia-duas asas-dois olhos-rato morto-barulho... homem, passarinho, sonho-sono-sonhando-acontecendo... coruja corujando, escondendo,desaparecendo, solidão escura... homem-morte-vida-medo-balançando, barulhando, bagunçando... coruja quieta... olhogrande fechado-dia... amarelão-olhão noite-lua-amarelada-ensolarada, dedo apontando gente enxergando, noite boa,gente-silêncio, ratinhos-comida-morta-coruja-sozinha... olhogrande olhando escuro... gente pouca nas noitesescuras...vôo pras árvores... casa-toca-lugar dormi... pombavoando embora... sono sonhado coruja-uja... asa molhada-seca... cor-uja... voa... pombo, pombo e pombo-cor-uja...lugar ocupado... vôo vôo vôo, noite escura, asa cansada,comida acabada... vôo embora... atrás das matas... outrascorujas... medo-morte... medo-homem... vôo vôo vôo econtinuo voando... praça-mata-morte... vôo... outros, outros-vôo... ratos-comidas... eu-coruja... dia-nascendo-luz-luz-luz... vôo solitário-prosseguindo... medo... voando para a

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mata... mata, luz clara, sol-bonito... praça-sonho-noite...mata-verde... mata-bicho... noite escura... sem homem...sem lua... olho amarelo-vejo... bolas amarelas-aparecem-somem... outra coruja.

O texto continua acontecendo, não seria propriamenteum texto, mas sim um textando gerundierno acontecedorimorredouro, circulatório, esferical, e ele é totalmentecosturativo, retrocedor, entrelaçante, amarrativo. Umaexperiência textual, tem sexual, temporal, guardachuval,diabólico-divina, espírito-sântica, puta que pariuíca,eternóide, superficial, bobinha, relapsa, gostosa, triste,doentinha, gulosa... uma grande glória de verão gelado,testículo cortado para enganar a fome... amor odiento, carroroubado, batido, puta-porca fuçando no chiqueiro, anãosendo vestido para o enterro... caixão com espaçosobrando... vida grande cheia de pregos que incomodam...dores-atrizes reclamando suas vezes, praça, praça e praça.P-raça humana, raça-existência, raça... raça vamos lá nãodesista... não desistam nunca... grosso...fino, todoscontinuem dos jeitos que são-sabem-querem... de todos osjeitos p-raça humana...

E é isso, foi o que escrevi nesses últimos três dias.Desculpe ter incomodado a senhora por tanto tempo comessa leitura.

Me permita só uma pergunta, o que a senhora achoudos nossos textos?”

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O MAIS HONESTO dos homens seria aquele que

descontaria do que chama-se de amor, todo o instinto depreservação da espécie e toda a pressão social. Descontariade todos os tipos de relações humanas, o medo da morte eda solidão. De toda a generosidade ele diminuiria anecessidade de reconhecimento e gratidão. De todas asgrandes idéias da arte e ciência ele deduziria o desejo defama e o de eternizar-se. Com o que sobrasse de todasessas subtrações, se é que sobraria alguma coisa, comessas pobres lâminas de madeira que seriam deixadas comosobras, ele então construiria sua moradia.