a potência da recusa – algumas lições ameríndias

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  • 7/26/2019 A potncia da recusa algumas lies amerndias

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    vol. 13, n. 1, jun 2013, p. 163-182Dossi Espetculo: Recusa

    A potncia da recusa algumas lies amerndias

    Renato SZTUTMAN1

    Eu me recuso a ser.No asilo da no-gente.

    Me recuso a viver.Com o lobo regente.

    Marina Tsvetaieva, versos Tchecoslovquia (1939)

    Sabemos que seremos expulsos daqui da margem do rio pela Justia,Porm no vamos sair da margem do rio.

    Carta-manifesto dos Guarani Kaiow, setembro de 2012

    Resumo

    Visando discorrer sobre temas presentes no espetculo Recusa, este ensaio faz com que certosacontecimentos histricos encontrem-se com as reflexes de Pierre Clastres, autor de A sociedadecontra o Estado, sobre a recusa amerndia do poder poltico coercitivo e sua escolha pela liberdade.Parte, em seguida, para algumas consideraes sobre a leitura dessas ideias por Gilles Deleuze eFlix Guattari, que propem estender o sentido da recusa indgena para o nosso mundo (ocidental,moderno, capitalista), vislumbrando possibilidades de criao e resistncia. Reencontra, por fim, o

    tema amerndio nos escritos de Clastres sobre a metafsica dos ndios Guarani e nas reflexes de Lvi-Strauss sobre o dualismo em perptuo desequilbrio como antdoto da identidade.

    Palavras-chave: recusa; dualismo; povos amerndios; criao

    Recusa, o espetculo, estreou em outubro de 2012 num momento delicado para

    os povos indgenas. Na mesma poca, um coletivo de ndios Guarani Kaiow, da

    comunidade Pyelito Kue e Mbarakay (Mato Grosso do Sul), divulgava uma carta-mani-

    festo, protestando contra a ineficcia da justia federal em lhes assegurar o direito

    ocupao de seu territrio tradicional s margens do rio Hovy, ineficcia que acaba porcorroborar com uma ao genocida levada a cabo h dcadas por agentes do agrone-

    gcio e seus aliados. A carta-protesto terminava com um atestado de desalento:

    Sabemos que no temos mais chance em sobreviver dignamente aqui emnosso territrio antigo, j sofremos muito e estamos todos massacrados emorrendo em ritmo acelerado. Sabemos que seremos expulsos daqui damargem do rio pela Justia, porm no vamos sair da margem do rio. Comoum povo nativo e indgena histrico, decidimos meramente em sermos

    1 Renato Sztutman professor do Departamento de Antropologia da Universidade de So Paulo e autor do livro

    O profeta e o principal(Edusp/FAPESP, 2012).

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    mortos coletivamente aqui. No temos outra opo. Esta a nossa ltimadeciso unnime diante do despacho da Justia Federal de Navirai-MS.

    Esse desalento chocou o Brasil, disparando uma campanha nas redes sociais, no

    livre de antagonistas engajados com preconceitos e interesses anti-indgenas. Refletia,

    contudo, no a ameaa de um suicdio coletivo, como foi interpretada por muitos, mas

    a recusa existencial de viver num mundo em que no h lugar para outros mundos

    que no aqueles baseados no desenvolvimento econmico e no poder do capital, a

    recusa de viver num mundo sem liberdade, sob ameaa contnua de violncia fsica

    e moral.2Recusa ativa que indica o no conformismo e a iminncia da luta. Os povos

    Guarani, espalhados na imensido da bacia do Prata e suas cercanias, tm resistido

    mais de 500 anos ao avano do nosso mundo ocidental, moderno, capitalista.3

    Viveram ao nosso lado na periferia de nossas cidades, nas beiras das estradas,

    nos litorais de maneira quase imperceptvel, sem abrir mo de suas escolhas ticas

    que dizem respeito s relaes humanas e s relaes com o ambiente, bem como de

    sua predileo pela mobilidade, pela livre circulao em um espao aberto, que hoje

    lhes privado. Depois de tantos anos de expropriao e extermnio, parecem ter se

    tornado finalmente mais visveis para ns que, aos poucos, tentamos compreender

    suas recusas.

    Na semana em que assisti pela primeira vez a Recusa, a bilheteria estavadestinada ao povo Guarani Kaiow. E, terminado o espetculo, os dois atores no

    se furtaram a alertar o pblico sobre a campanha que estava se desenhando. Sensi-

    bilidade e compromisso em relao recusa dos Guarani Kaiow e de outros tantos

    povos indgenas, que os brasileiros to pouco conhecem, algo que bem poderia

    definir o espetculo Recusa. No por acaso, este se inspirou em uma notcia de jornal

    de 1998, que falava de outro massacre e de outra recusa, a de um povo os Piri-

    2 Spensy Pimentel, estudioso e engajado na luta dos Kaiow, reconhece nessa leitura do suicdio coletivo

    os ecos da epidemia de suicdios que tem acometido jovens kaiow em diferentes partes. Segundo ele, isso

    se deve ao confinamento excessivo desses grupo. Busca-se reverter esse quadro a partir do crescimento dos

    movimentos articulados para a recuperao das terras. Nesse sentido, escreve Pimentel (2012), acampamentos

    como o de Pyelito no so signos de desesperana e sim de esperana, so uma reao dos indgenas

    indiferena e morosidade dos brancos no que se refere a devolver-lhes o que lhes foi tomado apesar de,

    no papel, com a Constituio de 1988, o pas ter assumido um compromisso pblico de regularizar as terras

    indgenas. Para acessar a carta-manifesto dos Kaiow, ver link: (http://desinformemonos.org/2012/10/decretem-

    nossa-morte-coletiva-e-nos-enterrem-todos-aqui-dizem-guarani-kaiowa-da-comunidade-de-pyeblito-kue/)

    3 Os Guarani compreendem trs subgrupos: Mby, Chirip e Kaiow. Espalham-se para alm da bacia do Prata,podendo ser encontrados em regies as mais diversas da Amrica do Sul, como o piemonte andino da Bolvia e

    o sul do estado do Par.

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    pkura que, diferentemente dos povos Guarani, escolheram no manter contato conti-

    nuado com a sociedade brasileira.4A notcia falava de dois indivduos, que sobrevi-

    veram ao massacre de seu povo e que, aps certo tempo fugindo dos mal tratos dos

    brancos, acabaram por buscar contato. Um deles, Tucan, encontrava-se muito doente,

    sendo submetido a tratamento mdico na cidade de Jiparan, estado de Rondnia.

    O outro, Mande, manteve distncia. Quando Tucan terminou o tratamento, encon-

    trou seu irmo e, juntos, desapareceram novamente na mata. Recusaram o contato,

    como muitos outros povos que permanecem isolados na Amaznia. Em 2013, os

    Piripkura no se sabe ao certo qual o nmero dos sobreviventes ainda aguardam

    pela demarcao de suas terras, permanecendo vulnerveis a aes de fazendeiros

    e madeireiros. Enquanto isso, continuam recusando o contato com a Funai e mesmo

    com outros povos, como os Gavio, de quem, alis, vem o nome piripkura, que na

    lngua desses inimigos significa borboleta, modo pejorativo de se referir a este povo

    que est sempre se escondendo e perambulando pela floresta.

    A situao dos Piripkura poderia ser aproximada de muitos outros povos.

    Por exemplo, dos Mashco Piro, da Amaznia peruana, situao que o antroplogo

    britnico Peter Gow (2011) designou como isolamento voluntrio ao intencional,

    baseada na recusa de qualquer relao social com o mundo dos brancos, no qual

    muitas vezes esto inseridos outros povos indgenas. Mas o isolamento voluntrio

    apenas uma das formas, e talvez uma forma extremada dada a iminncia de tamanha

    violncia, de uma recusa ativa, que se manifesta, por exemplo, nas reivindicaes

    dos diferentes povos que se aglutinam nos canteiros da hidreltrica de Belo Monte

    (sudeste do Par) ou no profundo desalento dos Guarani Kaiow, que declararam

    desistir da vida nesse mundo.

    A ideia de uma recusa ativa foi, alis, o grande tema perseguido pelo antroplogo

    francs Pierre Clastres, ao longo das dcadas de 1960 e 1970, quando as foras do

    capital avanavam de modo gritante sobre as florestas sul-americanas, ameaando

    a sobrevivncia fsica e moral das mais diversas populaes indgenas. Mas Clastres

    no falava simplesmente na reao dos ndios ao contato com os brancos, falava sim

    de uma resistncia primeira, uma resistncia a todo poder de unificao, de subordi-

    nao e de coero. Eis o sentido da sociedade contra o Estado, assunto sobre o qual

    gostaria de falar nas prximas pginas, extraindo algumas de suas consequncias.

    4 Os Piripkura so um povo de lngua tupi-kawahib tupi-guarani como os Guarani que costumava circular na

    regio de fronteira dos estados de Mato Grosso e Rondnia.

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    *

    * *

    Clastres afirma que as sociedades indgenas so sociedades contra o Estado.

    Isso no significa que elas so sociedades sem Estado leitura que faria o argumentodo autor recair tanto no evolucionismo (a simplicidade de tais organizaes), quanto

    no romantismo (os ndios desconhecem toda forma de poder). Isso significa que elas

    recusam no exatamente o Estado, tal como o conhecemos em suas formas modernas,

    um Estado inventado na era moderna, mas sim a possibilidade de um poder unificado e

    unificante, capaz de subordinao e de coero (ao violenta). Recusa-se aquilo que

    se (re)conhece; recusa-se aquilo que se pode ser, ou vir a ser. Recusa-se, por exemplo,

    um pacto fustico, a promessa de um mundo desenvolvido e em crescimento, que temcomo preo o sacrifcio de certas relaes, tanto as relaes interpessoais como aquelas

    estabelecidas com o mundo natural. Em suma, as sociedades indgenas seriam, para

    Clastres, contra o Estado na medida em que evitam a formao de um poder separado

    e transcendente em relao ao tecido das relaes sociais. E isso significa que elas

    refletem sobre os perigos dessa separao e dessa transcendncia.

    Em uma coletnea de tradues, reunindo poemas de diferentes pocas e lugares,

    Augusto de Campos cunhou a expresso poesia da recusa. Para ele, possvel tomara recusa como postura potica. Como escreve Paul Valry sobre Mallarm: o trabalho

    severo em literatura se manifesta e se opera por meio de recusas: pode-se dizer que

    ele medido pelo nmero de recusas (apud Campos 2006:15). Na coletnea orga-

    nizada por Campos, encontram-se, de modo destacado, poemas do grupo de poetas

    russos Aleksandr Blok, Ossip Mandelstam, Sierguei Iessienin, Vladimir Maiakovski

    e Marina Tsvetaieva, entre outros que, de alguma maneira, apoiaram a revoluo

    de 1917 e, apesar disso, foram duramente perseguidos pelo Estado sovitico, umavez que sua criatividade parecia fugir do endurecimento poltico vigente.5No final da

    dcada de 1970, Clastres uniu-se a pensadores como Claude Lefort e Cornelius Casto-

    riadis, ambos ex-integrantes do grupo marxista Socialismo e Barbrie, para fundar a

    5 Campos v na poesia de Marina Tsvetaieva uma recusa tica. Fora da URSS, viveu a invaso da Tchecoslovquia

    pelos alemes. De volta URSS em 1939, seu marido foi executado pelo governo stalinista, e sua filha presa. Ela

    acabou suicidando-se. Escreve Campos: Sem encontrar um lugar, quer direita, quer esquerda, Tzevataieva

    recusou o mundo, como antecipara em seu poema, para ir ao encontro de seus parceiros de inconformidade:Iessienin, Maiakovski. Aps o degelo, a desestalinizao, a glasnost, a histria novamente os reunir no mais alto

    patamar da poesia russa moderna (2006, p. 149).

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    revista Libre. Entre as propostas dos editores, estava a crtica ao totalitarismo sovi-

    tico e o vislumbre de um marxismo mais humanista e libertrio, bem como de novas

    alternativas para pensar a poltica e a democracia (A antropologia surgia ento como

    elemento provocador, suscitando a imaginao de novas alternativas e apontando

    caminhos para a libertao).6

    Para Clastres, mais especificamente, o socialismo, ao apoiar-se to fortemente

    em uma burocracia estatal, nada mais faria do que reafirmar a lgica de qualquer

    Estado, aquela que opera pelo sacrifcio de todas as diferenas em nome de uma

    unidade artificial, imposta pela fora fsica e, inevitavelmente, pela Diviso entre domi-

    nantes e dominados. Segundo Clastres, todo Estado seria um rgo etnocida e, nesse

    sentido, assassino de possveis. preciso insistir que ele no toma o Estado como

    instituio com limites precisos. Com relao a esse etnocdio, Clastres (2004) entrev

    a continuidade entre a ao dos Estados, do mercado em expanso (a globalizao)

    e das empresas de normalizao pedaggica ou converso religiosa. Todas essas

    foras agiriam conjuntamente no sentido da homogeneizao do mundo, da reduo

    das diferenas a uma unidade, que de fato a figura do poder coercitivo. A recusa

    libertria de Clastres poderia, enfim, encontrar-se com a recusa dos poetas russos

    traduzidos por Campos: seu compromisso antes de tudo com a negao de um

    poder aniquilador dos possveis e, assim, com a criao de multiplicidades (no seu

    caso, a multiplicidade das comunidades amerndias, que dizem no ao Um).

    O problema do Estado socialista, aponta Clastres, que ele reincide na Diviso

    da sociedade. Acima da sociedade estaria posto um aparelho de Estado, operando

    por tributos e pela exigncia de obedincia. Crtico de um marxismo cannico, Clas-

    tres argumenta que o Estado no resultado direto da desigualdade econmica, do

    trabalho alienado, antes a desigualdade poltica que, para ele, obriga a desigualdade

    econmica. Para haver Diviso, antes preciso que algum seja obrigado a trabalhar

    para outrem, e isso seria, no limite, um ato voluntrio. Clastres toma como apoio a

    interrogao de Etienne de la Botie, em pleno sculo XVI: por que os homens aceitam

    obedecer a outro homem? Por que abrem mo de sua liberdade? Como escreve o

    autor do Discurso da servido voluntria(1548), o ato de abrir mo da liberdade

    um ato livre; no entanto, e paradoxalmente, uma vez perdida, a liberdade no poderia

    6 Os textos de Lizot, Sahlins e H. Clastres publicados nos primeiros nmeros da Librecumpriam justamente essa

    misso de colocar em risco categorias como produo, trabalho, morte, guerra etc.

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    ser recuperada, o que se perde seria de fato a prpria natureza humana. Segundo

    Clastres, La Botie escreve o Discursono momento da Conquista, do encontro do

    Ocidente com os povos da Amrica, sobretudo os canibais e anrquicos Tupi da

    costa brasileira. La Botie buscaria na imagem do mundo livre indgena o escopo de

    sua crtica sociedade monrquica e desigual vigente na Frana de sua poca. Nas

    palavras de Clastres:

    Mas como poderia esse jovem que, ao interrogar-se com tanta seriedade sobrea servido voluntria, sonhava com a sociedade anterior ao mau encontro,como poderia ele no ficar impressionado com a imagem que, havia j longosanos, os viajantes traavam desses povos inteiramente novos, selvagensamericanos sem f, sem rei, sem lei, povos em que o homem vive sem lei,sem imperador e cada um senhor de si mesmo? (2004, p.170)

    Para Clastres, a recusa do Estado, da relao de poder antes de tudo a vontade

    de liberdade, liberdade da qual abrimos mo. Estudar as sociedades indgenas seria

    uma maneira de compreender como elas funcionam de modo a impedir o Estado.

    Seria tambm um modo de questionamento sobre a natureza do Estado, da relao

    de poder. Como ele mesmo escreveu, questionar-se sobre a origem do Estado ao

    mesmo tempo refletir sobre o seu fim, sobre a sua abolio. Contudo, Clastres jamais

    analisou a sociedade moderna, dizia-se etnlogo, estudioso das sociedades ind-

    genas, sociedades contra o Estado. A pulsao maior de sua obra est em extrair da

    experincia dessas sociedades uma lio importante: o Estado, o poder coercitivo

    no uma necessidade, no o resultado do desenvolvimento social; seria possvel,

    sim, viver fora do esquema do Estado, ainda que seus perigos do poder de mando

    e obedincia, da coero, da diviso social possam ser reconhecidos em toda parte.

    Nas palavras de Clastres, as sociedades primitivas so sociedades da recusa do

    Estado, sociedades contra o Estado:

    A ausncia do Estado nas sociedades primitivas no uma falta, no porqueelas esto na infncia da humanidade e porque so incompletas, ou porqueno so suficientemente grandes, ou porque no so adultas, maiores, simplesmente porque elas recusam o Estado em sentido amplo, o Estadodefinido em sua figura mnima, que a relao de poder. (2003, p. 237)

    Clastres substitui o sem Estado, prprio das interpretaes dos antroplogos da

    primeira metade do sculo XX, que tomam as sociedades primitivas sob o signo da

    ausncia, pelo contra o Estado, perfazendo assim uma espcie de revoluo coper-

    nicana. O Estado deixa de ser uma necessidade inerente a todo processo social. Dife-

    rentemente, ele se inscreve como uma possibilidade, que pode ser recusada ativa-

    mente. Nesse sentido, as sociedades indgenas re-conhecem a relao de poder, o

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    ponto que elas resolveram negar a sua irrupo. Ao longo de seus escritos, Clastres

    destaca dois mecanismos do contra o Estado: o mecanismo da chefia esvaziada de

    poder e o mecanismo da guerra, que impede a unificao.

    Clastres identifica uma filosofia da chefia indgena que no nega a constituio

    de um lugar para a relao de poder; o ponto que esse lugar esvaziado por um ato

    de recusa. Haveria sempre um chefe que representa o seu grupo, mas ele seria desti-

    tudo de poder de mando e coero. Seria tido, no mais, como um prisioneiro do grupo.

    Se o chefe indgena muitas vezes agraciado com um privilgio que o destaca dos

    demais a poligamia isso faz com que ele adquira uma imensa dvida em relao

    ao seu grupo, dvida que dever ser paga por meio de seus dotes mais fundamen-

    tais: a capacidade de apaziguar conflitos, a generosidade (distribuio de alimentos e

    riqueza) e, por fim, o dom da oratria. O chefe no pode, em suma, bancar o chefe,

    tornando-se autoritrio, pois se o fizer ser destitudo de seu lugar, ser abandonado

    pelos seus. Mas se este chefe mesmo destitudo de poder, por que a insistncia na

    instituio da chefia? Porque o grupo precisa do chefe, j que ele quem o apresenta.

    O ponto que se ele no cumprir bem essa funo, dever ser destitudo. A partir do

    encontro com o chefe guayaki Jivukugi, Clastres conclui para o mundo indgena:

    O poder, encarnado pelos chefes, no a autoritrio, no no sentido de

    que essas sociedades primitivas teriam ainda grandes progressos a fazerpara chegar a se proporcionar uma verdadeira instituio poltica (quer dizer,semelhante que se encontra em nossa prpria civilizao), mas no sentidode que essas sociedades selvagens recusam, por um ato sociolgico eportanto inconsciente, deixar seu poder tornar-se coercitivo. Os chefes soimpedidos de utilizar sua funo para fins pessoais; eles devem velar paraque seus desgnios individuais no ultrapassem jamais os interesses dacomunidade, esto a servio do grupo, so seus instrumentos. Submetidosa seu controle permanente, os lderes no podem transgredir as normas quefundam e subtendem toda a vida social (1995, p. 69-70).

    A sociedade contra o Estado tambm uma sociedade para a guerra, guerra

    compreendida como mecanismo de fragmentao social, garantia da autonomia dascomunidades em detrimento de um processo de centralizao do poder de deciso.

    Segundo Clastres, o ideal de vida social para os povos indgenas aquele que se

    d em comunidades pequenas e autnomas, fortemente fundadas nas relaes de

    parentesco e afinidade. , portanto, um ideal de disperso, e no de centralizao.

    Afinal, essas sociedades no deixam nenhuma figura do Um destacar-se do corpo

    social para represent-la, para encarn-la como Unidade (2004, p. 255). Os textos

    de Clastres sobre a guerra so fortemente inspirados por sua experincia etnogrficana dcada de 1970 entre os Yanomami, povo no qual a dinmica dos conflitos est

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    diretamente associada a um ideal de disperso e averso centralizao poltica.7

    Clastres inverte o argumento de Hobbes, para quem a instituio do Estado se daria

    contra a guerra (de todos contra todos). Para Clastres, a guerra (no exatamente de

    todos contra todos, pois sempre necessrio distinguir inimigos e aliados) pode ser,

    ao contrrio, contra o Estado. Ele distingue a guerra primitiva da guerra de conquista:

    diferentemente desta, interessada na expanso territorial e na subordinao de outras

    populaes, aquela tem por objetivo a garantia da liberdade, por isso sua violncia

    localizada, jamais ocorrendo em escala ampliada. O famoso exemplo da guerra tupi-

    namb, descrita no sculo XVI, atesta este ponto: as expedies guerreiras tinham

    por objetivo no a rendio de todo um grupo, ou a apreenso de escravos, mas a

    obteno de um ou poucos cativos para serem domesticados e ento devorados.

    Como concluir mais tarde Eduardo Viveiros de Castro (1986), a guerra tupi teria como

    finalidade a vingana, a relao com o inimigo, e essa vingana tambm a recusa da

    identificao consigo prprio.

    *

    * *

    A concepo de guerra como mecanismo contra a unificao e a favor das

    autonomias locais foi especialmente discutida por Gilles Deleuze e Flix Guattari no

    Tratado de nomadologia: a mquina de guerra, nono plat dos Mil Plats (Capita-

    lismo e Esquizofrenia II). Deleuze e Guattari sofisticam a proposio de Clastres, que

    parecia restrita s ditas sociedades primitivas, tornando a mquina de guerra uma

    mquina abstrata uma fora ativa e tambm um conceito capaz de povoar o

    novo universo da filosofia. Como escreve Viveiros de Castro (2011), os autores de Mil

    Plats transformam a sociedade contra o Estado em um conceito universal, algo que

    pode ser buscado em ns mesmos. No referido plat, os autores prestam uma home-

    nagem a Clastres, colocando-lhe, contudo, uma questo: que Estado este que

    surge de um s golpe transformando de maneira irreversvel as sociedades primitivas

    em sociedades divididas? Em linhas muito gerais, Deleuze e Guattari argumentam

    7 Clastres (2004) escrevia que os Yanomami eram a ltima sociedade primitiva. Com efeito, ele os conhecia

    num momento em que parte de sua populao ainda no havia sofrido os impactos mais terrveis das epidemias

    e dos conflitos com os garimpeiros. Para uma histria desses impactos e de uma outra recusa, agora formuladaem termos de xamanismo, ver o livro fascinante escrito em co-autoria por Davi Kopenawa e Bruce Albert (2010),

    que de fato o relato da vida deste primeiro autor, habitante da serra do Demini, Roraima.

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    que h algo de evolucionista na ideia de que existe uma diferena de natureza entre

    sociedades contra e sociedade com Estado. Para eles, preciso pensar em termos

    de coexistncias (entre regimes de signos ou processos maqunicos) e causa-

    lidades reversas (contrrias ideia de uma flecha do tempo unvoca) e, para tanto,

    valeria pensar a sociedade contra o Estado no em termos de um tipo de formao

    social, mas sim como um conjunto de foras e vetores que podem existir de maneira

    dominante ou recessiva em todas as formaes sociais.

    Para Deleuze e Guattari, o primitivo ou selvagem no poderia ser um tipo de

    sociedade, mas um processo maqunico, que pode agir sobre o nosso mundo, ainda

    que de maneira menos evidente. Em vez de sociedade contra o Estado, eles fazem

    referncia a mecanismos coletivos de conjurao, mecanismos de recusa do Estado,

    ou melhor, da forma-Estado, uma segmentaridade dura, que traduz processos de unifi-

    cao, de dissoluo das diferenas, de produo de espaos hegemnicos. Note-se

    que a conjurao, a recusa, implica, para os autores, uma ideia de antecipao, isto

    , para recusar algo preciso antes imagin-lo, prefigur-lo. Nesse sentido, resistir

    conhecer qui mimetizar o inimigo.

    Deleuze e Guattari fazem render a mquina de guerra clastriana, ultrapassando

    o quadro sociopoltico traado por Clastres. Para eles, os mecanismos inerentes aos

    processos polticos tambm o so quando se trata do pensamento em sentido mais

    amplo. nesse sentido que um pensamento nmade ou guerreiro contrape-se a

    um pensamento estatal, rgio, ao mesmo tempo em que pode coexistir com ele. Para

    Deleuze e Guattari, seria mesmo possvel subtrair do (nosso) pensamento um modelo

    de Estado, traando linhas de fuga. Como escrevem em Mil Plats, a essncia da

    mquina de guerra recusa do Estado em seu sentido mais abstrato, mas tambm de

    uma axiomtica mundial expressa pelos Estados (a tal globalizao do mercado e do

    capital) o traado de uma linha de fuga criadora, composio de um espao liso

    (1997, p. 109). Uma linha de fuga aquilo capaz de dissolver esquemas hegemnicos,

    de redirecionar os fluxos de maneira imprevisvel, isto , criadora. Deleuze recupera

    essa ideia de linha de fuga em seus Dilogoscom Claire Parnet:

    Fugir no renunciar s aes, nada mais ativo do que uma fuga. ocontrrio do imaginrio. tambm fazer fugir, no necessariamente osoutros, mas fazer alguma coisa fugir, fazer um sistema vazar como se furaum cano (1998, p. 49).

    Ou ainda:

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    O grande erro, o nico erro, seria acreditar que uma linha de fuga consisteem fugir da vida; a fuga para o imaginrio ou para a arte. Fugir, porm, aocontrrio, produzir algo real, criar vida, encontrar uma arma (idem, p. 62).

    Linhas de fuga dizem respeito a processos de criao criao de grupos de

    pessoas (no caso da poltica), criao de conceitos (no caso da filosofia), mas tambmcriao artstica. No caso da citao acima, Deleuze faz referncia literatura, mais

    especificamente a literatura anglo-americana aqui podemos traar um paralelo com

    a poesia da recusa na qual se engaja Augusto de Campos. Para Deleuze, o processo

    criativo por definio um devir-outro, um devir-minoritrio. Clastres, antroplogo

    e filsofo, que aspira a uma filosofia poltica por meio do dilogo com o pensamento

    dos povos que estuda, tambm um escritor. Veja-se o cuidado e o interesse que ele

    alimenta em relao linguagem de seus textos: linguagem ensastica que recuperaum certo gnero retrico que antecede o estilo discursivo da filosofia moderna,8mas

    sobretudo, a linguagem que se oferece como antdoto da coero, como se pode

    observar na fala dos chefes indgenas, que no enunciam mandos, mas sim a cele-

    brao da vida comum, que a prpria celebrao da linguagem no como signo,

    mas como valor. Ou nos cantos de seus xams, que efetuam um devir no humano,

    divino ou animal. Voltando meditao de Deleuze sobre o processo criativo implicado

    na escrita literria: poderamos arriscar e dizer que, assim como nos cantos xam-nicos indgenas, aos quais tomam emprestado a palavra dos outros (espritos, deuses,

    inimigos, animais etc.),9escrever [outro modo de dispor da linguagem] traar linhas

    de fuga, que no so imaginrias, que se forado a seguir, porque a escritura nos

    engaja nelas, na realidade, nos embarca nela. Escrever tornar-se [ devir], mas no

    de modo algum tornar-se escritor. tornar-se outra coisa (idem, p. 56).

    Mas Deleuze nos lembra que toda linha de fuga assim como toda mquina

    de guerra to libertria quanto perigosa: tanto capaz de desfazer um esquema

    como conduzir a uma linha de abolio (autodestruio, derrotismo, niilismo). Ele se

    pergunta, ainda em vista da literatura: como fazer para que a linha de fuga no se

    confunda com um puro e simples movimento de autodestruio? (Idem, p. 54). A

    converso da linha de fuga em linha de abolio implica o divrcio da recusa com a

    criao, a transformao de uma recusa ativa em uma recusa reativa, autofgica.

    8 Goldman (2011), por sua vez, sugere que Clastres recupera o estilo aforismtico de um filsofo como Nietzsche.

    9 Ver, nesse sentido, Viveiros de Castro (1986) e Cesarino (2013).

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    *

    * *

    Escrever, criar , portanto, devir-outro. E toda recusa seria, antes de tudo, a recusa

    da identidade, da univocidade. Esse ponto nos permite traar novamente o paralelo entreo devir na literatura anglo-americana e aquele que salta dos cantos e pensamentos xam-

    nicos de diferentes povos indgenas. So de imenso valor os escritos de Clastres a um

    s tempo curtos, precisos e poticos sobre a metafsica dos povos guarani, com quem

    ele conviveu, tanto nos bosques paraguaios como nos arredores de uma metrpole como

    So Paulo (onde, alis, lecionou em 1974). Clastres encontrou nos mitos, nos cantos e

    nas exegeses dos xams mby guarani toda uma metafsica singular, capaz de dester-

    ritorializar certezas da filosofia ocidental. (Com isso, ele antecipava a grande revoluometafsica proposta pela antropologia de Eduardo Viveiros de Castro, ele tambm um

    estudioso de povos de lngua tupi-guarani.) Clastres encontra entre os Guarani Mby o

    que Deleuze e Guattari chamariam de uma mquina de guerra do pensamento: no caso,

    uma metafsica que recusa a identidade e o princpio da no contradio (contrapondo-se

    metafsica do Ser arquitetada na Grcia Antiga na contracorrente de muitos pensadores

    pr-socrticos) e impele ao movimento, efetuando uma crtica da condio humana em

    nome da possibilidade de um devir divino, alcanvel na busca de uma terra sem mal.Os xams mby, a quem poderamos chamar sbios ou mesmo filsofos, dizem que os

    homens habitam uma terra imperfeita e que teria se tornado ainda mais, com a chegada

    dos brancos (Juru). Para tanto, seria preciso buscar uma terra sem mal, habitadas pelos

    seres divinos, com quem se teria perdido a comunicao num tempo mitolgico. Essa busca,

    tambm a busca por um estado de perfeio ou completude (aguyje), poderia ser dada

    no espao por meio de migraes e busca de novos territrios ou no ritual por meio de

    uma tica corporal (fazer o corpo leve pela dana e pelo canto). A imperfeio da terra emque os homens habitam seria dada, segundo os xams guarani, pelo fato de que as coisas

    em sua totalidade so Uma, o Um se revelando como figura do Mal. Clastres escreve:

    Desgraa da existncia humana, imperfeio do mundo, unidade ao mesmotempo que fenda inscrita no mago das coisas que compem o mundo: eiso que recusam os ndios Guarani, e eis o que os levou em todos os temposa procurar outro espao, para l conhecer a felicidade de uma existnciacurada de sua ferida essencial, de uma existncia desdobrada sobre umhorizonte liberto do Um. (2003:189)

    Em seguida, pergunta-se pelo que poderia ser esse no-Um desejado pelosGuarani. Sugere, ento, que a resposta desses ndios afasta-se da resposta dos

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    antigos gregos: Mas se se encontra [entre estes] a insurreio ativa contra o Imprio

    do Um, no todavia o Mltiplo que afirmado pelos Guarani, pois eles no desco-

    brem o Bem, o Perfeito na dissoluo mecnica do Um (idem, ibidem).

    Para os Guarani, sugere Clastres, o Um seria toda coisa corruptvel, tudo que se

    mantm sob o signo do finito. A terra imperfeita seria o reino do incompleto, espao do

    finito, campo de aplicao rigorosa do princpio de identidade, que alega que homens

    no so e nem podem ser deuses. Mas os Guarani preferem dizer que so homens e, ao

    mesmo tempo, deuses. A linguagem que separa homens e deuses seria uma linguagem

    enganadora, pois est subordinada s formas do Um e da identidade. Na regio do

    no-Um, a terra sem mal, todos so homens e deuses, portanto o Dois sobrepe-se ao

    Um. Clastres resume aqui o que haveria de mais central nessa metafsica

    O Mal o Um. O Bem no o Mltiplo, mas o Dois, ao mesmo tempo o ume seu outro, o dois que designa verdadeiramente os seres completos. Yvymar-ey [terra sem mal], destinao dos ltimos homens, no abriga maisdeuses: somente iguais, deuses-homens, homens-deuses, tais que nenhumdentre eles se diz segundo o Um (idem, p.191).

    A terra sem mal seria, pois, o lugar do no-Um, do devir, e a ela se poderia chegar

    seja pela migrao no espao, seja pelas atividades rituais, fortemente ancoradas na

    palavra dos cantos, que abusam de metforas para se comunicar com os deuses. Aqui

    nos deparamos, contudo, com o desalento de muitos povos guarani, como os GuaraniKaiow, com quem abrimos este ensaio. A eles tm sido privada a experincia mais

    importante, que a da mobilidade, da circulao num espao aberto devido a um

    processo de expropriao da terra e de confinamento. Mas a resistncia dos Guarani,

    lembra Clastres, antes de ser poltica e territorial no sentindo mais moderno desses

    termos metafsica, pois seu territrio e sua poltica so, antes de tudo, existenciais,

    para lembrar uma expresso cara a Flix Guattari. Os Guarani resistem ao mundo dos

    juru para poderem viver a sua experincia de devir, convertem esse devir em arma

    poltica e no o contrrio. Pensam-se, assim, como os ltimos homens, os ltimos a

    poderem se comunicar com os deuses, a recusar a terra m e imperfeita.10

    *

    * *

    10 O tema da busca da terra sem mal, que encerra todo um profetismo, e do desalento guarani diante da

    impossibilidade da desejada mobilidade foi tratado de maneira magistral por Hlne Clastres (1975).

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    Recusa do Um. Elogio do Dois. O tema refletido na metafsica guarani que

    se revela em mitos e cantos xamnicos, mas tambm em exegeses nas quais esses

    sbios indgenas se aproximam de um discurso propriamente filosfico ecoa em

    outros cantos das Amricas. Nesse momento, seria preciso passar dos escritos

    singelos e poticos de Clastres sobre os Guarani para a grandeza das Mitolgicasde

    Claude Lvi-Strauss, que culminam com uma reflexo sobre o pensamento dualista

    dos amerndios. Fao referncia ltima das pequenas Mitolgicas, Histria de

    Lince, e, mais especificamente, a seu eplogo, A ideologia bipartida dos amerndios.

    Ao longo do livro, Lvi-Strauss recupera o mito tupi-guarani dos gmeos desiguais,

    mito cuja verso guarani reproduzida e discutida por Clastres emA fala sagrada. Em

    linhas muito gerais, esse mito conta a histria de um par de gmeos, humanos primor-

    diais que modelam o mundo tal como o conhecemos. Em muitas verses, so filhos

    da mesma mulher, porm com pais diferentes, um deles, o grande demiurgo que aban-

    dona a terra, o outro, um personagem enganador, muitas vezes encarnado na figura

    do Gamb. Em muitas verses, aparecem como Sol e Lua, o primeiro caracterizado

    pela sua constncia, o segundo, pelo seu carter desastrado. A me dos gmeos

    devorada pelas onas ancestrais, que resolvem ento criar as crianas. Descobrindo a

    causa da morte da me, estes planejam vingana, que culmina na transformao das

    onas ancestrais (que eram gente) em animais propriamente ditos. Da em diante, os

    gmeos seguem em busca do pai-demiurgo e vo criando tudo o que h no cosmos.11

    Apenas essa parfrase bastaria para nos darmos conta de que essa mitologia veicula

    uma filosofia que afirma que tudo no mundo foi feito a partir de um princpio dual, e esse

    dualismo carrega em si uma certa dose de assimetria, ou melhor, instabilidade. Nega-se

    aos gmeos a perfeita identidade. Em vez disso, eles aparecem como desiguais, antit-

    ticos, porm complementares. Em suma, essa mitologia encerraria em si mesma uma

    espcie de elogio da diferena, e recusa da identidade. Lvi-Strauss ressalta a recorrncia

    desse mesmo tema mitolgico ao longo de todo o continente americano, passando do

    Brasil Central Amaznia, e desta ao noroeste da Amrica do norte. Escreve Lvi-Strauss:

    Companheiros, gmeos ou no, desigualmente dotados fsica ou moralmente,vivem as mesmas aventuras e cooperam entre si. O mais inteligente oumais forte conserta os erros ou impercias do outro, e at o ressuscita, seele morrer vtima de sua prpria incapacidade: assim, Pud e Pudler dosKrah, Kri e Kam dos Bakairi, Mri e Ari dos Bororo, Dyoi e Epi dos Tukuna,Makunama e Pia dos Karib etc. (1993, p.205)

    11 Para uma anlise desse mito a partir de verses kaiow, ver Pimentel (2008).

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    Ao final de Histria de Lince, Lvi-Strauss reconhece a proliferao de mitolo-

    gias que trazem a figura dos gmeos, em outras regies que no as Amricas, e se

    pergunta se estamos, enfim, diante de um trao universal ou de uma particularidade

    amerndia. Com efeito, a gemelaridade est em toda parte. No entanto, Lvi-Strauss

    distingue duas frmulas: de um lado, aquela que toma a figura de gmeos de sexo

    oposto como origem da humanidade por meio de um ato incestuoso (ele faz refe-

    rncia mitologia do Rigveda indiano); de outro, aquela que toma a figura de gmeos

    de mesmo sexo que se revelam pelo seu carter antittico. No que diz respeito a

    essa ltima frmula, Lvi-Strauss distingue ainda duas solues, comparando o mito

    grego de Castor e Polux aos mitos amerndios sobre a gemelaridade. O ponto de

    partida muito semelhante: Castor e Polux so gmeos, filhos de pais diferentes: o

    primeiro filho de Tindaro de Esparta (um mortal), o segundo, de Zeus (divindade

    suprema que se apresenta Leda, uma mortal, sob a forma de um cisne). Castor

    morre, causando desalento a Polux. Diferentemente dos mitos tupi, em que o irmo

    desastrado morre vrias vezes e ressuscitado pelo outro irmo, e esses ciclos tecem

    a epopeia criadora dos gmeos que seguem em busca do pai-demiurgo, no mito grego

    Polux implora ao pai Zeus que ressuscite o irmo. O resultado disso que Polux passa

    a dividir a imortalidade com Castor, ambos permanecendo meio ano no Hades, meio

    ano no Olimpo. Como aponta Lvi-Strauss, essa diviso simtrica da imortalidade os

    torna um par de idnticos, ao passo que no caso amerndio o que temos uma inces-

    sante dualidade, um dualismo em perptuo desequilbrio, altamente criativo e criador.

    A diferena dos gmeos amerndios, tal como expressa na mitologia, seria, segundo

    Lvi-Strauss, a mola mestra tanto da cosmologia como da sociologia desses povos:

    nada pode ser Um, tudo Dois.12

    Se a mitologia do velho mundo busca na figura dos gmeos de mesmo sexo

    uma soluo, seja de igualdade (Castor e Polux), seja de extrema rivalidade (Rmulo

    e Remo, Caim e Abel); a mitologia do novo mundo estaria pautada em uma recusa da

    identidade. A identidade seria a um estado provisrio, que no pode durar. Reencon-

    tramos a com a filosofia ou metafsica da mitologia e suas exegeses apontadas por

    Clastres: o Dois emerge como problema alternativo oposio grega entre o Um e o

    Mltiplo. Os amerndios buscariam nesse dualismo em perptuo desequilbrio uma

    12 Uma discusso do argumento de Lvi-Strauss sobre esse dualismo em perptuo desequilbrio, bem como

    da possibilidade de extrair da mitologia filosofias polticas, pode ser encontrada em Perrone-Moiss (2011).

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    lio para o mundo, algo que no estaria desvinculado de uma recusa ativa, recusa da

    identidade, que tambm a da unificao, da reduo ao Um, supresso das diferenas.

    Muitos antroplogos se ocuparam do problema do dualismo amerndio, e isso

    ocorreu pelo simples fato de que se trata aqui de um problema propriamente amerndio,

    problema que invade, como j ressaltado, tanto a cosmologia, como a sociologia e

    mesmo a poltica desses povos. David Maybury-Lewis (1989), estudioso dos povos j

    e bororo do Brasil Central, povos conhecidos por proliferar em suas aldeias pares de

    metades sociolgicas e cerimoniais, escreveu certa vez que o dualismo como ideo-

    logia empresta-se enquanto instrumento eficaz de controlar a entropia que advm das

    situaes de intenso contato com o mundo dos brancos. Em poucas palavras, para

    ele, o dualismo pode ser tomado como resistncia. Maybury-Lewis cita o exemplo dos

    povos Xavante e Kayap, ambos de lngua j, que no cessam de criar novos pares de

    metades de carter sociolgico e poltico para lidar com desafios postos pela presena

    dos brancos. Com suas metades, eles reduziriam a desordem a princpios antitticos,

    porm complementares, como o fizeram no tempo do mito os gmeos criadores, da

    mesma maneira em que evitariam uma excessiva polarizao, que poderia culminar em

    certa forma de dominao.

    O dualismo , portanto, pea central da recusa existencial e ativa a que tenho me

    referido neste ensaio. No por acaso, ele se empresta como forma primordial de um

    espetculo como Recusa. Como na mitologia, vemos pares se desdobrar incessante-

    mente: os dois atores so tambm os dois personagens mitolgicos que criam o cosmos

    amerndio, e que se replicam na histria: dois ndios Piripkura, os gmeos criadores dos

    Krah, Pud e Pudler, outro par mitolgico de heris antitticos (desta vez, contados

    pelos ndios do lavrado de Roraima), Pi e seu irmo desastrado, mais conhecido como

    Macunama, heri sem nenhum carter, como o chamaria Mrio de Andrade. Recusa

    termina com outra figura incontestvel do dualismo amerndio: o par de danarinos e

    cantores mascarados karaj que, juntos e apenas juntos, personificam um espritoijas

    ou aruan. Osijasou aruanso os ancestrais dos humanos, vivem no mundo suba-

    qutico e, graas aos xams, podem ser trazidos terra e alimentados, fornecendo

    poderes criativos e procriativos, sem os quais a vida social se tornaria invivel. Os

    ijasou aruanso responsveis, portanto, por vrios nveis de criao, da criao de

    pessoas criao de conhecimentos e coisas; e para que eles atuem preciso cantar e

    danar, algo que s se faz possvel com um par, jamais com uma s pessoa.

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    Assim dizem e fazem os Karaj (Iny) da ilha do Bananal. Assim parece se desdo-

    brar uma recusa propriamente amerndia, recusa da identidade que ganha, como to

    bem sugeriram Lvi-Strauss e Clastres, verses metafsicas, estticas, ticas e (socio)

    polticas. Recusa, lio amerndia, que pode ser reencontrada em ns mesmos, como

    to bem sugeriram Deleuze e Guattari. Pois uma recusa ativa sempre um ato de

    resistncia, sempre um ato de criao. Recusa, assim, a prova de que essas tantas

    recusas podem ainda emocionar o espectador de um mundo de tantas concesses

    como o nosso. Recusafaz com que experimentemos em ns mesmos a recusa dos

    outros, unindo assim uma proposta esttica a um compromisso tico e poltico.

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