a política externa norte-americana na guerra fria
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I
FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO
FACULDADE DE ECONOMIA
A POLÍTICA EXTERNA NORTE-AMERICANA NA GUERRA FRIA:
ANÁLISE DA DÉTENTE NO PERÍODO NIXON-KISSINGER.
LUIZ GUSTAVO RAMAGLIA MOTA
Monografia de Conclusão do Curso apresentada à Faculdade de Economia para obtenção do título de graduação em Relações Internacionais, sob a orientação do Prof. Oscar Holme.
São Paulo, 2011
II
MOTA, Luiz Gustavo Ramaglia. A POLÍTICA EXTERNA NORTE-AMERICANA NA GUERRA FRIA: ANÁLISE DA DÉTENTE NO PERÍODO NIXON-KISSINGER, São Paulo, FAAP, 2011, 81p. (Monografia Apresentada ao Curso de Graduação em Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Fundação Armando Álvares Penteado) Palavras-Chave: Guerra Fria – Política Externa, EUA – Governo Richard Nixon – Relações EUA-URSS – Relações EUA-China.
III
RESUMO
A presente monografia diz respeito à política externa do governo Richard Nixon
(1969-1974), com ênfase sobre o contexto de détente ocasionado pela Guerra Fria. A détente
foi responsável pelo relaxamento de tensões entre as duas superpotências do momento, EUA e
URSS, e possibilitou um relacionamento mais cooperativo e amistoso entre os dois Estados.
Sob esse aspecto, atenção será dada aos principais feitos do governo Nixon, como a
aproximação norte-americana com a China, e as negociações de armamentos estratégicos
entre EUA e URSS. O trabalho busca também introduzir a base do pensamento de política
externa dos EUA durante a Guerra Fria, bem como contextualizar o governo Nixon sob a
conjuntura histórica da guerra Fria.
IV
ABSTRACT
The present work refers to the foreign policy of the Richard Nixon Administration
(1969-1974), focusing on the context of détente brought about by the Cold War. Détente was
responsible for the relaxation of tensions between the then two superpowers, USA and USSR,
and permitted a more cooperative and friendly relationship between both States.
In this regard, attention will be given to the main deeds of the Nixon Administration,
as well as the American rapprochement with China, and the strategic arms talks between the
USA and USSR. This work also seeks to introduce the framework of thought to the American
foreign policy in the Cold War, as well as to contextualize the Nixon Administration in the
historic conjuncture of the Cold War.
.
V
SUMÁRIO
Lista de Siglas
Resumo
INTRODUÇÃO.....................................................................................................................p. 1
1. O PENSAMENTO DE POLÍTICA EXTERNA NORTE-AMERICANA
NA GUERRA FRIA..............................................................................................................p. 6
1.1 A Contenção...................................................................................................p. 9
2. PRECEDENTES DA DÉTENTE: OS GOVERNOS KENNEDY,
JOHNSON E O INÍCIO DA COEXISTÊNCIA..............................................................p. 17
2.1 O Governo Kennedy (1961-1963)................................................................p 18
2.2 O Governo Johnson (1963-1969)................................................................p. 27
3. O GOVERNO NIXON E A DÉTENTE....................................................p. 34
3.1 O Novo Cenário Internacional e o “Aprofundamento Filosófico” da
Política Externa Norte-Americana....................................................................................p. 36
3.2 O Surgimento da Détente...........................................................................p. 43
3.3 Os Instrumentos da Détente: A Ligação de Políticas (Linkage) e a
Diplomacia Triangular.......................................................................................................p. 46
3.4 As Iniciativas de Política Externa do Governo Nixon..............................p. 52
3.4.1 Os Estados Unidos e a “vietnamização”.....................................................p. 53
3.4.2 Estados Unidos, União Soviética e as negociações de limitação de armas
estratégicas...........................................................................................................................p. 57
VI
3.4.3 A abertura à China.......................................................................................p. 62
3.5 O Escândalo Watergate, a Renúncia, e o Enfraquecimento da
Détente.................................................................................................................................p. 67
CONCLUSÃO.....................................................................................................................p. 75
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................................................................p. 78
VII
Lista de Siglas
ABM – Mísseis Anti-Balísticos (Anti-Ballistic Missiles);
AP – Aliança para o Progresso (Alliance for Progress);
CSN – Conselho de Segurança Nacional;
EUA – Estados Unidos da América;
JFK – presidente John F. Kennedy;
ICBMs – mísseis balísticos intercontinentais (intercontinental ballistic missiles)
LBJ – presidente Lyndon B. Johnson;
OEA – Organização dos Estados Americanos;
RPC – República Popular da China;
SALT – Conversas sobre a Limitação de Armas Estratégicas (Strategic Arms Limitation
Talks);
SLBM – Mísseis balísticos lançados de submarinos (Submarine-launched ballistic missiles)
URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas;
1
Introdução
O período iniciado ao fim da II Guerra Mundial, em 1945, e que se estende até a
derrocada da União Soviética no final da década de 1980, é comumente conhecido como
Guerra Fria. Trata-se de um momento muito peculiar na História das Relações Internacionais,
caracterizada pela bipolaridade no sistema internacional. Sua origem decorre de que, ao fim
do conflito mundial de 1939-1945, as potências europeias encontravam-se enfraquecidas e
arruinadas, surgindo do pós-guerra apenas dois países em situação claramente favorável: EUA
e URSS. De fato, as antigas potências, como França e Grã-Bretanha, mostravam-se em
declínio, enquanto o futuro político da Alemanha e seus aliados derrotados era incerto. O
único fator que determinava por ora os limites europeus eram as forças militares mobilizadas
pelos Aliados na Europa. Era natural que um vácuo de poder na região resultaria no
desmoronamento da antiga aliança norte-americano-soviética – instituída durante a II Guerra
Mundial –, pois os antigos companheiros de guerra possuíam agora objetivos distintos.
Entretanto, os EUA buscaram inicialmente reorganizar a nova ordem pós- II Guerra de
forma cooperativa e com o auxílio soviético. O presidente norte americano Harry Truman
havia herdado um ambiente internacional fragmentado, mas tinha o intuito de pautar a nova
ordem segundo preceitos de paz e diálogo, evitando o uso da força para resolver conflitos.
Diferentemente deste, a União Soviética de Josef Stalin baseava seus movimentos estratégicos
puramente em termos de Realpolitik. Para Stalin, as tentativas norte-americanas de estabelecer
“princípios de relacionamento” não faziam sentido algum.
É curioso ressaltar como as diferentes percepções de mundo entre os EUA e a URSS
acarretariam o acirramento de tensões entre as duas superpotências. Conforme Hobsbawm, as
origens da Guerra Fria baseavam-se em uma percepção norte-americana equivocada de que o
capitalismo e o liberalismo mundiais estavam ameaçados. Essa interpretação refletia a
preocupação dos planejadores norte-americanos, que esperavam enfrentar uma nova Grande
Depressão no pós-guerra, devido ao fato de que a Europa encontrava-se em ruínas. Isso fez
com que os EUA se preocupassem com um possível conflito, pois a situação precária dos
europeus poderia incitar revoluções sociais por todo o continente (HOBSBAWM, 1995, p.
228).
2
Mas, de modo semelhante, os soviéticos enxergavam a ordem internacional pós-1945
com preocupação. A URSS saíra da guerra com grandes perdas militar e econômica, e não
desejava adotar uma posição ofensiva. O perigo imediato que a União Soviética representava
limitava-se aos espaços onde o Exército Vermelho mantinha forças de ocupação.
Dessa forma, enquanto os EUA preocupavam-se com uma possível hegemonia
soviética, a URSS alarmava-se com a hegemonia de fato norte-americana no pós-guerra
(HOBSBAWM, 1995, p. 230-231).
Para Kissinger (1994), o surgimento da Guerra Fria deve-se, entre outros fatores, a
uma incompreensão mútua entre norte-americanos e soviéticos no que diz respeito às suas
visões de política externa para o mundo pós-guerra. Segundo ele, enquanto os planejadores
norte-americanos buscavam construir a nova ordem mundial em termos de princípios
universais e valores, os líderes soviéticos baseavam suas ações de acordo com uma visão
realista e competitiva das relações internacionais. Esse desentendimento de posições
resultaria, ainda segundo o autor, em um “dilema americano”: os estadistas norte-americanos
não estavam aptos a desafiar Stalin em termos realistas de equilíbrio de poder, pois eram
relutantes em relação a uma nova guerra, além do que não estavam dispostos, por ora, a
arriscar um confronto em defesa da pluralidade democrática na Europa. Essa relutância,
entretanto, fortalecia a posição soviética.
Na realidade, como relata Pecequilo (2003), em 1945 os próprios norte-americanos
não haviam ainda definido qual seria a postura externa do país em relação à URSS. Isso
mudou no governo Truman, responsável por traçar as bases de toda a política externa dos
EUA durante a Guerra Fria. Foi durante esse momento que os EUA delinearam a estratégia
principal de sua atuação em toda a Guerra Fria: a contenção.
A contenção tinha como objetivo principal impedir a expansão da União Soviética e
de sua ideologia, o comunismo. Ela baseava-se na análise da política externa soviética feita
pelo diplomata George Kennan, na qual Moscou orientava-se pelos princípios de antagonismo
entre socialismo e capitalismo, e considerava as sociedades capitalistas como suas opositoras,
destinadas à destruição devido aos seus próprios vícios e fraquezas. Kennan era contrário a
essa visão, acreditando que o socialismo seria derrotado devido a suas contradições internas.
Porém, enquanto este momento não chegava, caberia aos EUA impedir a ampliação do
domínio soviético, que continuaria a ameaçar o sistema internacional com a supressão das
3
liberdades individuais.
Pecequilo (2003) aponta as falhas dessa política, derivadas principalmente de
avaliações equivocadas por parte dos EUA. Ao superestimar a capacidade soviética, os norte-
americanos optaram por uma política essencialmente passiva e defensiva, em um momento
em que o país detinha imensos recursos, como a hegemonia econômica e monopólio nuclear.
Entretanto, conforme Kissinger (1994), uma estratégia mais agressiva também continha seus
perigos: a opinião pública era avessa a uma nova participação americana em novos conflitos,
o Congresso mantinha tradições isolacionistas fortes, e a postura agressiva era contrária à
própria tradição moralista de política externa do país.
Contudo, a hegemonia incondicional dos EUA chegaria ao fim gradativamente: a
URSS obteve a bomba atômica e a bomba de hidrogênio em 1949 e 1953, respectivamente.
Com isso, os EUA perdiam sua supremacia nuclear.
Mas foi a partir da década de 1960 que os EUA passaram a se ver cada vez mais
rodeados de situações delicadas ao seu interesse nacional: embora parecessem surgir
elementos de coexistência no sistema internacional, a URSS alcançava a paridade estratégica,
acirrando a disputa bipolar, e os norte-americanos não conseguiam se livrar da nova
impressão de superioridade soviética na relação entre os dois países.
Essa impressão apenas piorou com o surgimento do processo de descolonização, que
reforçou a ideia da ofensiva soviética no Terceiro Mundo. Com a eleição de John F. Kennedy
em 1960, e sua política de “Novas Fronteiras”, os EUA observaram uma super-extensão de
suas capacidades, com o aumento de novas intervenções nos países periféricos e de gastos no
setor de defesa. Tudo isso contribuiu para o enorme escape de recursos norte americanos. O
resultado, ao fim dessa década, foi o declínio relativo da superpotência norte-americana. Para
complicar ainda mais a posição do país, os custos com a Guerra do Vietnã debilitavam a
economia, e os rumos desse conflito pareciam guiar os EUA a um futuro incerto – que
resultaria na quebra do consenso doméstico e no questionamento da condução da política
externa vigente (PECEQUILO, 2003, p. 187).
Assim sendo, os EUA iniciaram a década de 1970 com forte desgaste de sua posição
hegemônica. A economia nacional apresentava sinais de declínio, com redução na
participação do PIB mundial e endividamento interno. A Guerra do Vietnã permanecia
inacabada, expondo ao mundo a dificuldade americana de lidar com o conflito e minando a
4
sua legitimidade como líder global. Os EUA já haviam atingido o máximo de sua potência.
Seria necessário, portanto, rever suas prioridades e adotar um novo padrão de comportamento
– a détente, que alcançou seu auge no governo de Richard Nixon.
De fato, como demonstra o próprio Nixon (1972), a situação mundial exigia do novo
governo republicano mudanças fundamentais em sua postura global. Os EUA não mais
apoiariam a democracia e a liberdade individual nas regiões “dominadas” pelo comunismo, e
passariam a agir de forma mais limitada e seletiva. Esse recuo refletia a chegada de uma nova
era na história mundial: o fim da hegemonia norte-americana do pós-guerra (AMBROSE,
1993, p.235).
Segundo LaFeber (1996), a détente , ou diminuição de tensão internacional, teve suas
origens em 1967-1968, ao fim do governo Lyndon Johnson, em um momento em que as
tropas americanas sofriam fortes baixas no Vietnã, e seu ápice em 1971-1972, durante o
primeiro mandato de Nixon. E embora Johnson houvesse tentado uma relação de détente com
os soviéticos, dois fatores impediram sua iniciativa: o ataque surpresa dos norte-vietnamitas
em fevereiro de 1968, e a invasão da Tchecoslováquia pela URSS em agosto do mesmo ano.
Durante a década de 1970, a détente foi tanto uma válvula de escape das tensões
mundiais, como uma tática para controlar a emergência da URSS como potência global.
Ao buscar adaptar a posição internacional dos EUA ao novo contexto mundial de
declínio relativo do poderio do país, o governo de Richard Nixon empenhou-se na
negociação, ao invés da confrontação. A ênfase em adotar tal postura era reforçada pelo fato
de que a URSS havia atingido a paridade militar com os EUA.
Como resultado, o governo Nixon balizou suas relações com os soviéticos de acordo
com quatro princípios: julgar a política soviética de acordo com suas ações, buscando
posturas conciliatórias; tentar resolver questões que dividiam os dois países; não estabelecer
nenhuma condição para as negociações, julgando cada uma de acordo com seus méritos
próprios; e estipular a auto-restrição ampla e mútua das duas superpotências (NIXON, 1972).
Assim sendo, com o intuito de estudar a política externa norte-americana durante o
governo de Richard Nixon, mantendo-se o foco na relação de détente entre americanos e
soviéticos, buscar-se-á primeiramente analisar qual era o pensamento de política externa do
país durante a Guerra Fria. Para isso, será necessário explicar o conceito da contenção, uma
vez que ela foi a principal política que guiou os EUA em sua relação com a URSS nesse
5
período. Esse será, pois, o conteúdo do primeiro capítulo do presente trabalho.
Em seguida, será necessário contextualizar o governo Nixon no âmbito da história.
Isso será feito através da análise dos dois governos anteriores ao seu: o de John Kennedy
(1961-1963) e o de Lyndon Johnson (1963-1969). Com isso, será possível compreender o
papel do governo Nixon no âmbito da Guerra Fria. Este será, portanto, o assunto do segundo
capítulo.
Por último, o capítulo três analisará os feitos de política externa do governo Nixon.
Atenção será dada à atuação do presidente Nixon e de seu conselheiro Henry Kissinger, os
dois principais “administradores” da détente.
6
Capítulo 1 – O Pensamento de Política Externa Norte-Americana na Guerra Fria.
A guerra produziu uma redistribuição de poder mais impulsiva do que qualquer período
anterior da história. Entre as nações principais no sistema internacional multipolar pré-
guerra, Japão, Itália e Alemanha foram derrotados e ocupados. Exausta e quase falida, a
antes dominante Grã-Bretanha foi reduzida a uma potência de segundo nível. Derrotada no
início da guerra e liberada por seus aliados, a França sofreu perda ainda maior de status e
poder. O mundo eurocêntrico, devido em grande parte a um processo de auto-destruição,
chegou a um fim inglório. Um novo sistema bipolar substituiu o antigo. Apenas os Estados
Unidos e a União Soviética emergiram da guerra capazes de exercer influência significativa
além de suas fronteiras1.
– George Herring, From Colony to Superpower, p. 596 (minha tradução).
Para que se possa compreender o período histórico da détente, comumente identificada
com os anos de 1969 a 1979, é fundamental, antes de mais nada, introduzir o pensamento
conceitual no qual a política externa norte-americana se pautou durante toda a Guerra Fria: a
contenção. Assim, iniciamos com o imediato pós-II Guerra Mundial, período em que o
conceito da contenção foi elaborado.
Com o fim da II Guerra Mundial em 1945, uma nova configuração de poderes surgiu
no sistema internacional. A Europa, que fora o centro político das relações internacionais por
mais de três séculos, encontrava-se arrasada, economicamente debilitada e politicamente
frágil.
1 The war produced a redistribution of power more sweeping than in any previous period of history. Among the
leading nations in the multipolar prewar international system, Japan, Italy, and Germany were defeated and
occupied. Exhausted and nearly bankrupt, once-dominant Britain was reduced to a second-rank power.
Defeated at the onset of the war and liberated by its allies, France suffered even greater loss of status and
power. The Eurocentric world largely through a process of self-destruction came to an inglorious end. A new
bipolar system replaced the old. Only the United States and the Soviet Union emerged from the war capable of
wielding significant influence beyond their borders.
7
Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, os Estados Unidos despontavam como
grande força no início do pós-guerra: seu território não havia sido fortemente atingido2, nem
estava em ruínas como consequência do conflito mundial.
Ademais, a economia norte-americana despontava como a maior do planeta. Detinham
o padrão de vida mais elevado do que qualquer outro país e mais da metade da produção
mundial – ou seja, os EUA, na esfera econômica, tinham o mundo em suas mãos. E no âmbito
militar, os EUA possuíam arsenal moderno, a melhor Marinha do mundo, domínio do ar, e o
monopólio das bombas atômicas (KENNEDY, 1989, p. 343-344).
Enfim, o país gozava de grande poderio militar, econômico e político, aproveitando-
se também do declínio europeu, o que contribuiu para elevar ainda mais a posição de potência
dos norte-americanos.
Contudo, os Estados Unidos não eram o único país com papel de destaque no imediato
pós-guerra. Assim como eles, a União Soviética havia saído da guerra como vitoriosa, embora
tenha sofrido privações demasiadamente maiores que seus aliados norte-americanos.
Suas fronteiras territoriais haviam sido ampliadas: ao norte, às expensas da Finlândia;
no centro, às custas da Polônia; ao sul, a Bessarábia havia sido recuperada às custas da
Romênia, os Estados bálticos foram reincorporados, e parte da Prússia oriental foi tomada,
junto com um pedaço da Tchecoslováquia; e a oeste e sudoeste da Rússia havia um novo
“cordão sanitário” de Estados satélites3 (KENNEDY, 1989, p. 346).
A União Soviética saíra da guerra enfraquecida. Por isso, os planejadores soviéticos
adotaram uma postura defensiva, desmobilizando suas tropas de 12 para 3 milhões entre
1945-1948 (HOBSBAWM, 1995, p. 229-230).
Embora a vitória na guerra aumentara a influência soviética na região, ela estava
economicamente arrasada, como aponta Paul Kennedy. Segundo ele,
(...) sua base econômica tinha sido muito prejudicada pela guerra – em contraste
com o imperturbado surto de prosperidade dos Estados Unidos. As perdas de
população da Rússia foram terríveis: 7,5 milhões nas forças armadas, 6 a 8 milhões
de civis mortos pelos alemães, mais as perdas de guerra “indiretas” causadas
pelas reduzidas rações de alimentos, trabalho forçado e o enorme aumento das horas
de trabalho, de modo que “no total, provavelmente cerca de 20 a 25 milhões de
2 Com exceção do bombardeio japonês na base militar de Pear Harbor. 3 Polônia, Alemanha Oriental, Tchecoslováquia, Hungria, Romênia, Bulgária, Iugoslávia e Albânia.
8
cidadãos soviéticos tiveram morte prematura entre 1941 e 19454.” (...) Em essência,
portanto, a Rússia de 1945 era um gigante militar e, ao mesmo tempo,
economicamente pobre, deficiente e desequilibrada (KENNEDY, 1989., p. 346-
347).
Diante desses fatos, coube aos vencedores do conflito reorganizar a ordem mundial
pós-1945. Porém, desde logo, percebeu-se que as posições entre os antigos aliados divergiam
em muitos aspectos. Embora inicialmente os Estados Unidos tenham visto essa falta de
consenso como imaturidade política e mau comportamento por parte dos líderes soviéticos –
fatos que os americanos julgavam ser temporários e, portanto, possíveis de serem “corrigidos”
ao longo do tempo –, não demorou para que os planejadores da política externa norte-
americanos percebessem que tais comportamentos não eram causados por mal-entendidos,
mas representavam o pensamento soviético a respeito da política internacional como um todo
(KISSINGER, 1994, p. 426).
Com isso, os EUA se viam em um duplo desafio: reconstruir a ordem mundial,
estraçalhada durante a II GM, assim como encontrar meios para lidar com a URSS que
levassem à sua cooperação na criação da nova ordem (PECEQUILO, 2003, p. 133-134).
Embora o novo presidente dos Estados Unidos, Harry Truman5, tivesse buscado
primeiramente aproximar-se da União Soviética, seguindo os moldes do pensamento dos
“Quatro Policiais”6 de seu antecessor, a atitude conciliatória do presidente foi ignorada pela
intransigência de Josef Stalin. Consequentemente, Truman substituiu a política de Roosevelt
por uma série de coalizões que permaneceram como o cerne da política externa do país por
mais de quarenta anos (KISSINGER, 1994, p. 424).
O início da Guerra Fria deu-se a partir da conscientização de ambos os lados de que
suas visões para o novo ordenamento mundial eram completamente opostas. E para
posicionarem-se melhor em relação a esta nova configuração de interesses, os EUA buscaram
diretrizes que norteassem a sua ação. A principal delas foi a política da contenção.
4 Apud HOSKING, G. A History of the Soviet Union. Londres, 1985, p. 296. 5 O governo do democrata Harry Truman corresponde ao período de 1945 a 1953. 6 Roosevelt acreditava que a nova ordem mundial deveria ser gerida pelos quatro países vencedores da II Guerra Mundial, entre eles, EUA, URSS, Reino Unido e China.
9
1.1 A contenção
Desde a I Guerra Mundial, os EUA já haviam percebido que havia uma relação direta
entre seu progresso interno e a estabilidade mundial, porém não foram capazes de adotar uma
política externa, à época, que refletisse essa realidade (PECEQUILO, 2003, p. 123). Contudo,
após perceber as consequências de seu isolamento no sistema internacional – evidenciados
por duas guerras mundiais –, estava claro que a postura norte-americana deveria mudar.
Além disso, após o desfecho da II Guerra Mundial, o colapso do regime nazista e a
necessidade de preencher o vácuo de poder na Europa acarretaram a desintegração da antiga
aliança. Enquanto Stalin exigia reparações de guerra pelo sofrimento do povo russo, Truman
buscava continuar com a política de Roosevelt de manter os aliados unidos (KISSINGER,
1994, p. 424).
Assim sendo, ao reunir-se com Molotov7 em abril de 1945, Truman, ao deparar-se
com a intransigência soviética, acreditava que conseguiria ainda “corrigir” o comportamento
do até então aliado (KISSINGER, Ibid., p. 426).
Na realidade, a visão de política externa norte-americana, baseada em valores morais e
oposta a equilíbrios de poder, encontrou dificuldades para relacionar-se com a postura
soviética, que enxergava apenas a realpolitik e conflitos de poder como os determinantes das
relações entre estados. Para Kissinger, os EUA viam-se em um dilema, pois,
(...) Nenhum estadista americano estava preparado para fazer o tipo de ameaça ou
pressão (..) às quais a psicologia de Stalin teria requerido. Os líderes americanos não
haviam ainda arcado com a realidade de que quanto mais tempo fosse dado a Stalin
para criar estados de um só partido na Europa do Leste, mais difícil se tornaria fazê-
lo mudar de curso. Ao final da guerra, o público americano estava cansado de guerra
e confrontação, e queria acima de tudo trazer os garotos para casa. Não estava
preparado para ameaçar mais confrontações (...). A unanimidade em resistir a
maiores avanços comunistas era igualada pela unanimidade em não correr mais
riscos militares8 (KISSINGER, 1994, p. 436, minha tradução).
7 Vyacheslav Mikhailovich Molotov foi ministro soviético das Relações Exteriores entre 1939-1949 e 1953-1957. 8(...) No American statesmen was prepared to issue the kind of threat or pressure (…) which Stalin’s psychology would have required. American leaders had not yet come to grips with the reality that the more time Stalin was given to create one-party states in Eastern Europe, the more difficult it would become to get him to change course. At the end of the war, the American public was weary of war and confrontation, and wanted above all to
10
Esse dilema era causado pela própria abordagem de cada um dos países no que diz
respeito às relações internacionais. Os EUA, desde o início de sua república, se pautaram em
buscar valores morais para guiar sua política externa, enxergando-se como um país diferente e
especial ante os demais, com o dever de servir como exemplo para a humanidade
(PECEQUILO, 2003, p. 121-122).
Conforme Kissinger, o enfoque singular de política internacional dos EUA em pautar-
se através de termos morais foi uma consequência do isolamento e proteção naturais
concedidos ao país. Distantes dos conflitos constantes na Europa, e protegidos pela distância,
os “Estados Unidos acharam natural interpretar a segurança concedida a eles pelos grandes
oceanos como um sinal da providência divina, e atribuir suas ações a um insight moral
superior (...)9” (KISSINGER, 1994, p. 32, minha tradução).
Ainda segundo ele, a origem do caráter messiânico da política externa norte-americana
pode ser encontrada na filosofia política de um de seus presidentes, Woodrow Wilson10. Este,
ao justificar o internacionalismo americano em termos de uma ideologia cruzada, advogou
que,
A missão especial dos Estados Unidos transcende a diplomacia cotidiana e a
obriga a servir como um farol da liberdade para o resto da humanidade.
As políticas externas das democracias são moralmente superiores porque os
povos são inerentemente amantes da paz.
Política externa deve refletir os mesmos critérios morais que as éticas pessoais.
O estado não tem o direito de reivindicar uma moralidade separada para si11
(KISSINGER, 1994, p 46, minha tradução).
bring the boys home. It was not ready to threaten further confrontation (…). Unanimity about resisting further communist advances was matched by unanimity about not running any military risks. 9 (...) America found it natural to interpret the security conferred on it by great oceans as a sign of divine providence, and to attribute its actions to superior moral insight (…). 10 Woodrow Wilson foi presidente entre 1913 e 1921.
11 America’s special mission transcends day-to-day diplomacy and obliges it to serve as a beacon of liberty for the rest of mankind.
The foreign policies of democracies are morally superior because the people are inherently peace-loving.
Foreign policy should reflect the same moral standards as personal ethics. The state has no right to claim a separate morality for itself.
11
Por outro lado, a Rússia, ao longo de sua história, sofreu constantes invasões por seus
vizinhos, ataques de povos bárbaros, assim como a ameaça de cerco por países inimigos.
Dessa forma, seus líderes possuíam um instintivo sentimento de insegurança, e valorizavam o
absolutismo, governantes fortes, e uma visão de mundo em termos de disputas de poder
(BRINKLEY, 1992a, p. 252; KISSINGER, 1994, p. 447-451.; NYE, 2003, p. 126).
Dessa forma, não era de se estranhar que houvesse divergências entre os dois países –
embora seria incorreto e simplório afirmar que o surgimento da Guerra Fria se deva somente a
tal fato.
Porém, em 1945, ninguém dentro do governo norte-americano tinha noção de como
seriam o perfil de relações entre EUA e URSS. Até então, a aliança ainda não havia sido
desfeita, tendo sido preservada até a morte de Roosevelt. O padrão foi rompido durante o
governo Truman, e, a partir da segunda metade de 1945 até 1947, o relacionamento
americano-soviético foi se deteriorando gradativamente (PECEQUILO, Ibid., p. 135-136).
É a partir de 1946, contudo, que os EUA passam a enxergar os soviéticos como seus
rivais, ideia esta favorecida pela impressão de um expansionismo soviético sobre o Oriente
Médio e a Europa Oriental. Segundo Pecequilo,
Para a política externa norte-americana, 1946 é o ano-chave da gradativa separação e
do aprofundamento da distância em relação à União Soviética, favorecido pela
impressão de que estava havendo um avanço nas posições deste país em áreas como
o Oriente Médio (além da consolidação do poder na Europa Oriental). No Irã, os
soviéticos tentaram controlar a exploração de petróleo, enquanto na Turquia visavam
o controle do estreito de Dardanelos, influenciando eventos na Grécia. Somados,
esses acontecimentos reforçavam a imagem de que a União Soviética continuava
sendo um poder expansionista e agressivo, ameaçando os Estados Unidos e seus
aliados, não somente ao agregar novos territórios, mas ao deter e propagar uma
visão de mundo diferente da norte-americana, sinalizando a expansão do comunismo
(PECEQUILO, 2003, p. 136).
Portanto, seria necessária uma reação norte-americana visando conter tal avanço
soviético. Contudo, para que isso acontecesse, os EUA teriam de rever seu posicionamento
em relação à URSS. Até então, o presidente Harry Truman relacionava-se com os soviéticos
de acordo com uma visão que George Kennan definiu como “universalista”. Isto é, que
assumia que,
12
(...) se todos os países pudessem ser induzidos a concordar com regras padrões de
comportamento, as perigosas realidades – as aspirações por poder, os preconceitos
nacionais, os ódios irracionais e os ciúmes – seriam forçadas a se retirar atrás de
uma cortina protetora de restrição legal aceitável, e (...) os problemas da nossa
política externa poderiam então ser reduzidos aos termos familiares do procedimento
parlamentar e decisão majoritária12 (apud BRINKLEY, 1992a, p. 491, minha
tradução).
Entretanto, seria ingênuo supor que o complexo funcionamento do sistema
internacional pudesse ser simplificado e reduzido a um mero debate parlamentar. Devido a
esse fato, e percebendo que seu país não compreendia o pensamento soviético, Kennan
buscou alertar seu governo para o fato de que a União Soviética conduzia sua política externa
de forma completamente diferente e estranha aos olhares americanos.
George Frost Kennan, diplomata americano que servira na embaixada de seu país na
União Soviética, Alemanha e Inglaterra, trabalhava em Moscou na época do governo Truman.
Ele havia visto com tensão e preocupação a maneira pela qual os EUA permitiam aos
soviéticos tanta liberdade de ação, apenas pelo fato de terem sido aliados na II Guerra
Mundial. Ele buscou então incitar seu governo a mudar o tratamento dado à URSS, com mais
suspeita e prudência (BRINKLEY, 1992a, p. 252).
Em 22 de fevereiro de 1946, Kennan enviou ao Departamento de Estado um telegrama
de Moscou, no qual ele defendia que os EUA revisassem as bases de sua política externa em
relação aos soviéticos. Por se tratar de um relato extenso, de mais de 8.000 palavras, o
documento ficou conhecido como o Longo Telegrama (the Long Telegram).
Nele, Kennan advertiu seu governo de que os líderes soviéticos, ao contrário dos
norte-americanos, rechaçavam uma possível coexistência pacífica permanente. Como forma
de consolidar sua análise, Kennan citou, logo no início do documento, uma declaração de
Stalin feita a um grupo de trabalhadores americanos, em 1927, na qual o líder soviético dizia
que,
No curso de um longo desenvolvimento de uma revolução internacional irá emergir
dois centros de importância mundial: um centro socialista, atraindo para si os países
que tendem ao socialismo, e um centro capitalista, atraindo para si os países
12 (...) if all countries could be induced to subscribe to certain standard rules of behavior, the ugly realities – the power aspirations, the national prejudices, the irrational hatreds and jealousies – would be forced to reced behind the protecting curtain of accepted legal restraint, and (...) the problems of our foreign policy could thus be reduced to the familiar terms of parliamentary procedure and majority decision.
13
inclinados ao capitalismo. A batalha entre esses dois centros pelo comando da
economia mundial decidirá o destino do capitalismo e do comunismo em todo o
mundo13 (apud KENNAN, 1946, minha tradução).
Portanto, seria imprescindível aos EUA abandonar a tese de que seria possível
estabelecer quaisquer relações harmoniosas com Stalin e a URSS. As implicações do Longo
Telegrama eram claras: o governo Truman deveria mudar sua postura de não-belicosa e
condescendente para uma de paciência e de firmeza.
Logo após a circulação do Longo Telegrama, este foi aceito pela maioria dos
planejadores de política externa do governo americano. E “embora uma mudança de política
não foi publicamente reconhecida, as ações do governo Truman em 1946 refletiram em
grande parte essa nova estratégia de ‘contenção’, como esta passou a ser chamada”14
(BRINKLEY, 1992a, p. 493, tradução minha).
É importante considerar o efeito que Kennan causou à postura de seu governo no trato
com as lideranças soviéticas. Ao descrever a União Soviética como uma força política
intransigente e fanática, ele confirmou a futilidade e até mesmo o perigo em promover
negociações com o Kremlin.
De fato, o governo Truman abandonou a antiga postura conciliatória e adotou uma
linha mais dura e sem concessões. Ademais, como visto acima, as crises decorrentes entre os
EUA e URSS contribuíram para uma visão americana de que os soviéticos eram uma ameaça
expansionista.
Com as crises do Irã15, da Turquia16 e da Grécia17 – todas em 1946 –, houve grande
impressão de que uma guerra era eminente. Quando, em fevereiro de 1947, a Grã-Bretanha
13 In course of further development of international revolution there will emerge two centers of world significance: a socialist center, drawing to itself the countries which tend toward socialism, and a capitalist center, drawing to itself the countries that incline toward capitalism. Battle between these two centers for command of world economy will decide fate of capitalism and of communism in entire world. 14 Though a change of policy was not publicly acknowledged, the actions of the Truman administration in 1946 largely reflected this new strategy of “containment”, as it came to be called. 15 O Exército Vermelho ocupava o norte do Irã ao fim da II Guerra Mundial. A URSS, contudo, se negava a desocupar o território, mesmo diante da oposição dos Aliados. No final, uma série de manobras diplomáticas americanas levou os soviéticos a deixar o Irã. 16 Ao fim da II Guerra Mundial, a URSS exigiu o controle do estreito de Dardanelos (na Turquia). Os americanos se opuseram a essa exigência, e proveram ajuda à Turquia para que ela conseguisse manter o estreito sob seu domínio. 17 A Grécia esteve em guerra civil entre 1946 e 1949. Nesse período, as forças governamentais, apoiadas pelo Reino Unido e pelos EUA, buscaram suprimir as revoltas realizadas pelo Exército Democrático da Grécia, apoiado pelas forças comunistas. A vitória das forças do governo garantiu o apoio grego ao bloco Ocidental.
14
informou ao Departamento de Estado norte-americano de que não tinha mais capacidade de
manter suas forças na Grécia, ficou claro para Truman de que era necessário tomar a iniciativa
para si.
Assim, em 12 de março de 1947, perante uma sessão do Congresso, Truman fez seu
famoso discurso, encorajando os EUA a adotar uma política externa mais ativa:
No presente momento da história mundial quase toda nação precisa escolher entre
modos alternativos de vida. Frequentemente, a escolha não é livre. Um modo de
vida é baseado na vontade da maioria, e se distingue pelas instituições livres,
governo representativo, eleições livres, garantias de liberdade individual, liberdade
de discurso e religião e a liberdade da opressão política. O segundo modo de vida é
baseado na vontade forçosamente imposta de uma minoria sobre a maioria. Ele
reside no terror e na opressão (…). Acredito que deve ser a política dos Estados
Unidos apoiar os povos livres que estão resistindo à tentativa de subjugação pelas
minorias armadas ou pelas pressões externas. Acredito que devemos ajudar os povos
livres a construir seus próprios destinos de sua própria maneira. Acredito que nossa
ajuda deve ser principalmente através de estabilidade econômica e de um processo
político ordenado18 (TRUMAN, 1947).
O pronunciamento de Truman assegurou o apoio do Congresso, bem como um
programa de ajuda no valor de US$ 400 para a Grécia e a Turquia. Assim nascia a Doutrina
Truman, a favor da defesa dos “povos livres”.
A Doutrina Truman revela a importância da política da contenção na Guerra Fria, pois
foi a primeira política de governo embasada nas teorias de Kennan. Ao proclamar que a
defesa dos povos oprimidos pelo totalitarismo era uma preocupação essencial do país, Harry
Truman demonstrou que a contenção era uma máxima no pensamento de política externa
norte-americano.
18 “At the present moment in world history nearly every nation must choose between alternative ways of life. The choice is too often not a free one. One way of life is based upon the will of the majority, and is distinguished by free institutions, representative government, free elections, guarantees of individual liberty, freedom of speech and religion, and freedom from political oppression. The second way of life is based upon the will of a minority forcibly imposed upon the majority. It relies upon terror and oppression (…). I believe that it must be the policy of the United States to support free peoples who are resisting attempted subjugation by armed minorities or by outside pressures. I believe that we must assist free peoples to work out their own destinies in their own way. I believe that our help should be primarily through economic stability and orderly political process”.
15
Ademais, o Plano de Recuperação da Europa (Plano Marshall, 1948)19 foi a segunda
iniciativa concreta e que dava legitimidade para a política de contenção.
Através desses exemplos, pode-se perceber o significado e a importância da contenção
na formulação da política externa norte-americana. Como será visto adiante, essa visão se
manteve nos governos seguintes, embora com algumas modificações.
O governo do republicano Dwight Eisenhower (1953-1961) deu continuidade às
premissas básicas da política de contenção, com alterações superficiais. Essas mudanças não
se referiam aos fundamentos da política de contenção, mas antes aos meios pelos quais ela
deveria ser aplicada.
A nova proposta de Eisenhower era o “novo olhar”: forças militares superiores seriam
utilizadas para fazer frente ao avanço comunista e deter agressões. Para permitir cortes
orçamentários sem que houvesse um enfraquecimento da defesa nacional, o “novo olhar”
fundamentava-se unicamente em armas nucleares – e o secretário de Estado Dulles20
formulou o conceito de “retaliação massiva” pela qual os EUA responderiam à agressões com
armas de sua escolha, inclusive nucleares ( HERRING, 2008, p. 659).
Contudo, o Novo Olhar provou ser uma política muito perigosa, pois poderia levar à
guerra nuclear eminente. Embora as táticas de ameaça do uso de armas nucleares tenham
funcionado na Guerra da Coreia, anos mais tarde, já durante o governo Kennedy, o mundo
reconheceria o perigo do conflito mundial com a Crise dos Mísseis em Cuba.
Outra mudança implementada por Eisenhower foi a expansão dos compromissos dos
EUA aos “povos dominados” pelo comunismo. Contudo, a promessa de libertação foi mais
retórica do que real, como foi possível observar na invasão soviética à Hungria21 (1956)
(PECEQUILO, 2003, p. 175).
Em suma, o governo Eisenhower não alterou a visão de política externa elaborada por
seu antecessor, mas garantiu a continuidade da mesma.
19 O Plano durou quatro anos, e forneceu US$ 13 bilhões aos países da Europa, com a finalidade de auxiliar na recuperação econômica e na reconstrução da indústria. 20 John Foster Dulles foi o secretário de Estado do governo Eisenhower entre 1953 e 1959. 21 Quando a URSS invadiu a Hungria, em novembro de 1956, para por fim às revoltas contra o governo e contra a influência soviética, os EUA pouco fez para condenar Moscou ou demonstrar seu apoio pelos rebeldes. Um fato importante que explica tal atitude é que, na mesma época, irrompeu a Crise de Suez, que exigia maior atenção por parte dos americanos.
16
17
Capítulo 2 – Precedentes da détente: os governos Kennedy, Johnson e o início da coexistência.
Os anos sessenta marcaram o fim de nossa inocência; isso é certo. O que restou a ser
decidido era se nós podíamos aprender com esse conhecimento ou se consumiríamos nossa
substância em nos rebelar contra a realidade de nossa maturidade22.
– Henry Kissinger, White House Years, p. 63 (tradução minha).
Uma vez compreendido o principal conceito teórico que orientou a política externa dos
EUA durante a Guerra Fria, torna-se imprescindível contextualizar este momento dentro de
sua conjuntura histórica. Uma vez que a análise minuciosa da história da Guerra Fria não é o
objeto do presente trabalho, este se limitará a explicar o momento imediatamente anterior ao
início do governo Nixon, referentes aos governos de John F. Kennedy (1961-63) e de Lyndon
B. Johnson (1963-1969). Estes dois governos situam-se, segundo a periodização das fases da
Guerra Fria, entre o final do período de confrontação (1947-62) e o início da coexistência
(1963-69).
Durante esse intervalo de mais de duas décadas, o mundo experimentou situações
críticas, que ameaçaram inclusive a existência da própria humanidade. Foi somente após a
Crise dos Mísseis em Cuba, em outubro de 1962, que os líderes das duas principais
superpotências compreenderam a magnitude da questão nuclear, tomando consciência da
necessidade de se buscar outros meios que não fossem militares para a resolução de suas
divergências.
A tomada de consciência acerca da capacidade de destruição do mundo acarretou,
portanto, o surgimento de uma nova fase na Guerra Fria, pautada pela busca de interesses
comuns e pela auto-preservação. E é esta lógica central – envolvendo o sistema internacional
durante a década de 1960 – que moldou as políticas dos governos Kennedy e Johnson, que
serão analisados a seguir.
22 “The Sixties marked the end of our innocence; this was certain. What remained to be determined was whether we could learn from this knowledge or consume our substance in rebelling against the reality of our maturity.”
18
2.1 O Governo Kennedy (1961-1963)
A década de 1960 foi um momento de intensa ebulição sociocultural nos Estados
Unidos. A juventude buscava maior espaço para criticar valores tradicionais da sociedade,
enquanto que a popularização do rock & roll e o surgimento das músicas de protesto
simbolizavam a inquietação política. A contracultura, representada pelos beatnicks e hippies,
indicava o desinteresse pela política, assim como a descrença em sua integridade. Data
também dessa época a criação das primeiras televisões a cores, assim como o impacto da
mídia em eventos internacionais, servindo como instrumentos de influência política.
Como bem aponta David Reynolds, os anos sessenta foram “(...) anos de liberação de
valores culturais antiquados e da tirania da família patriarcal. Entre os símbolos da mudança
estavam a música rock, as revoltas estudantis e o movimento das mulheres (...)”23
(REYNOLDS, 2000, p. 289, tradução minha).
Representou também a fase do consumismo exacerbado norte-americano, que se
expandiu também para a Europa Ocidental e além. E os principais veículos de popularização
deste modo de vida deram-se principalmente pela televisão, o rádio, e a música rock
(REYNOLDS, ibid, p. 289-295).
Enquanto isso, na arena da política internacional, o mundo caminhava para uma
flexibilização da bipolaridade americano-soviética. Após as inúmeras crises e eventos que
representaram as confrontações entre os dois blocos durante os anos 195024, a Guerra Fria na,
década de 1960, parecia caminhar rumo à sanidade (HOBSBAWM, 1995, p. 239). Embora
mais crises apareceriam durante esses anos,
23 “(…) years of liberation from antiquated cultural values and from the tyranny of the patriarchal family. Among the emblems of change were rock music, student revolts and the women’s movement (…).” 24 A Doutrina Truman (1947), o Plano Marshall (1947), estabelecimento do COMECON (1949) e do Pacto de Varsóvia (1955), a obtenção pelos soviéticos da bomba atômica (1949) e da bomba de hidrogênio (1953), a criação do Tratado do Atlântico Norte (OTAN, 1949), a Guerra da Coreia (1950-55), a intervenção soviética na Hungria (1956) e a crise de Suez (1956) são alguns dos muitos fatos que representaram o sentimento de confrontação entre Estados Unidos e União Soviética durante as primeiras duas décadas da Guerra Fria, quando a competição e a rivalidade entre as duas superpotências existiu de forma intensa.
19
(...) as duas superpotências já não operavam com os princípios da guerra fria dos
anos 1940 e da primeira metade dos anos 1950. A coabitação pacífica, alimentada
pela percepção da capacidade destrutiva que carregavam com seus armamentos
atômicos, e as forças profundas que vieram alimentar os novos movimentos nas
relações internacionais evidenciaram a imperfeição do modelo bipolar (SARAIVA,
2007, p. 212).
O fim do modelo estritamente bipolar sinalizou a possibilidade de uma maior
atuação dos outros atores estatais no sistema internacional. Uma vez que a rigidez bipolar
começava a se desfazer, ela permitiu maior autonomia aos países periféricos, afastando-os
gradativamente das posições ditadas pelas duas superpotências.
As causas do fim gradual da rigidez sistêmica são várias: ambos os líderes dos dois
blocos enfrentavam rupturas internas25, enquanto que o início do processo de descolonização
na Ásia e África acarretou a eventual multilateralização do sistema internacional, com
crescente pressão nos órgãos internacionais por questões de desenvolvimento econômico.
Foi durante o início desta década, entre 1961 e 1963, que os Estados Unidos foram
liderados pelo jovem democrata John Fitzgerald Kennedy.
Nascido em Brookline, Massachusetts, e educado nas melhores instituições de ensino
do país, John Kennedy iniciou sua bagagem política em 1946, quando foi eleito para a
Câmara dos Deputados. Após eleger-se para o Senado em 1952, Kennedy revelou ambições
presidenciais. Candidatando-se para a indicação ao cargo de vice-presidente nas eleições de
1956, foi derrotado. Em 1960, nas eleições presidenciais, enfrentou Richard Nixon, vice do
então atual presidente, Dwight Eisenhower. Venceu a corrida presidencial por uma margem
apertada26, tornando-se presidente dos Estados Unidos.
Para Commager e Nevins, Kennedy conseguiu um feito quase sem precedentes ao
derrotar Eisenhower nas urnas. Isto porque ele removeu o partido dominante do poder em
uma época de paz e prosperidade, superando a pesada desvantagem de ser católico bem como
a imensa popularidade de Eisenhower (COMMAGER e NEVINS, 1986, p. 590).
25 Do lado norte-americano, o presidente francês De Gaulle foi o principal contestador da hegemonia dos EUA. Em relação à União Soviética, deve-se apontar para o começo das divergências entre a URSS e a República Popular da China. 26 Segundo Brinkley (1992a), foi uma das margens mais estreitas da história eleitoral dos EUA. Com base nos dados da John F. Kennedy Presidential Library and Museum, é possível constatar que Kennedy deteve 49,7% dos votos, contra 49,5% de Nixon. Disponível em: <http://www.jfklibrary.org/Research/Ready-Reference/JFK-Miscellaneous-Information/1960-Presidential-Election.aspx>.
20
A eleição presidencial de 1960 foi a primeira a apresentar debates televisionados entre
os candidatos – refletindo as inovações tecnológicas do período. Pode-se dizer que a eleição
de Kennedy foi inovadora per se: ele foi o mais jovem a ser eleito para o cargo, assim como o
primeiro católico. Foi também o primeiro presidente nascido no século XX e, portanto, o
porta-voz e símbolo da nova geração (COMMAGER e NEVINS, 1986, p. 590-591).
No âmbito da política doméstica, o governo JFK tinha como diretrizes principais
instituir um modelo liberal no país, bem como atender aos anseios sociais dos afro-
americanos, que, mais de um século após a emancipação dos escravos, permaneciam como
cidadãos de segunda classe. Kennedy acreditava que a liderança moral dos EUA estava em
risco, como consequência das injustiças cometidas a seus cidadãos negros. Entretanto, tais
mudanças teriam que esperar mais alguns anos para serem realizadas.
No que diz respeito à política externa do governo Kennedy, essa possuía uma
característica distinta da de seus antecessores, qual seja, uma ênfase no Terceiro Mundo ao
invés dos tradicionais aliados na Europa ocidental e Japão (BRINKLEY, 1992a, p. 258). Para
Brinkley, “esta ênfase devia-se não a uma subestimação do significado do ‘Primeiro Mundo’
à segurança dos EUA, mas devido à percepção de que o Terceiro Mundo era
consideravelmente mais vulnerável à subversão comunista”27 (Id., Ibid., p. 258, tradução
minha).
Já em 1958, Kennedy dizia que,
O objetivo de nosso programa de ajuda à América Latina não deve ser o de comprar
aliados, mas o de consolidar um hemisfério ocidental livre e democrático, aliviando
as condições que poderiam fomentar oportunidades de infiltração comunista e
unindo nossos povos com base em (...) padrões de vida em constante crescimento
(Apud COMMAGER e NEVINS, 1986, p. 602).
Deve-se observar que a atenção de Kennedy para o Terceiro Mundo corresponde a um
entendimento de que o sistema internacional nos anos 1960 era diferente e mais complexo do
que aquele do início da Guerra Fria. Muitos países foram criados durante esse período,
alargando a base de nações “subdesenvolvidas” no mundo e com isso alterando a composição
das Nações Unidas. Kennedy, ciente da importância dessas mudanças no sistema
27 “This emphasis was due not to any underestimation of the ‘First World’s’ significance to U.S. security, but to the perception that the Third World was considerably more vulnerable to communist subversion”.
21
internacional, buscou ganhar a amizade desses novos Estados, de modo a influenciar os rumos
da Guerra Fria. De acordo com Herring,
A ascensão do Terceiro Mundo mudou dramaticamente a composição das Nações
Unidas e alterou o equilíbrio de poder na Assembleia Geral. Em 1961, os líderes
neutralistas Nehru, Nasser, Sukarno, Tito, e Kwame Nkrumah de Gana convocaram
em Belgrado a primeira Conferência dos Países Não-Alinhados com a intenção
declarada de limitar os efeitos da Guerra Fria sobre o resto do mundo. (…) A ênfase
colocada sobre o Terceiro Mundo pelos combatentes da Guerra Fria [EUA e URSS]
revelava suas convicções de que o resultado daquele conflito poderia ser decidido
pelo que ocorresse lá [no Terceiro Mundo]28. (HERRING, 2008, p. 711).
Ademais, diferentemente dos governos anteriores, Kennedy preferia usar de meios
econômicos – em vez de recursos militares – para atingir os interesses norte-americanos no
Terceiro Mundo.
Ao optar por uma “diplomacia econômica”, o governo Kennedy esforçou-se para criar
instituições de combate ao subdesenvolvimento da periferia mundial, assim como usar do
poderio econômico americano para ganhar a simpatia dos países subdesenvolvidos. Segundo
Brinkley,
Era esperado que os esforços americanos para tirar as nações do Terceiro Mundo da
pobreza conquistariam os ‘corações e as mentes’ dos povos carentes ao redor do
mundo e dessa forma tornar a ação militar contra as guerrilhas comunistas
desnecessária. Assim, Kennedy criou programas como o Corpo da Paz (Peace
Corps), um grupo de voluntários americanos que organizavam projetos de saúde, de
educação, e agrícola no Terceiro Mundo; Comida pela Paz (Food for Peace), que
distribuía produtos agrícolas americanos em áreas pobres; a Agência pelo
Desenvolvimento Internacional (Agency for International Development), que
administrava ajuda econômica a países subdesenvolvidos; e, mais importante, a
Aliança para o Progresso (Alliance for Progress), que ofereceu US$ 20 bilhões para
a América Latina por um período de dez anos, sob a condição de que as nações
28 “The rise of the Third World dramatically changed the makeup of the United Nations and altered the balance of power in the General Assembly. In 1961, neutralist leaders Nehru, Nasser, Sukarno, Tito, and Kwame Nkrumah of Ghana convened in Belgrade the first Conference of Non-Aligned Countries with the declared intention of limiting the effects of the Cold War on the rest of the world. (…) The emphasis placed on the Third World by Cold War combatants bespoke their conviction that the outcome of that conflict could be decided by what happened there”.
22
recipientes passassem por reformas domésticas liberais29 (BRINKLEY, 1992a, p.
259, tradução minha).
Dessa forma, acreditava-se que ao combater a pobreza e a desigualdade – fatores que
impulsionavam a adoção de regimes comunistas –, os EUA estariam impedindo o surgimento
do comunismo nesses países, e, portanto, não seria necessária a distribuição de armas e de
recursos militares. Entre os instrumentos usados para tal feito, o principal foi, sem dúvida, a
Aliança para o Progresso30.
No que diz respeito à conjuntura internacional, Kennedy liderou seu país durante o
momento de apogeu da hegemonia dos EUA, que McCormick descreve como o “triunfo do
internacionalismo americano” (MCCORMICK, 1995, p. 125). Segundo ele, isso correspondeu
à criação de um “sistema-mundo livre”, com base na instituição da Comunidade Econômica
Europeia31 (CEE, 1957) e nas medidas de liberação econômica por parte do Japão. Ou seja,
(...) a economia mundial eliminou um de seus maiores obstáculos ao fluxo
de bens e de capital entre os países centrais, e entre estes e as áreas periféricas
ligadas às suas moedas. A formação da CEE, a universalização das conversões
monetárias pelos países capitalistas centrais, e a resolução da crise do dollar gap
para a Europa e Japão marcaram o florescimento do internacionalismo pós-guerra32
(MCCORMICK., 1995, p. 126, tradução minha).
29 “It was hoped that American efforts to lift Third World nations out of poverty would win the ‘hearts and minds’ of destitute peoples around the world and thus make military action against communist guerrillas unnecessary. Thus Kennedy established such programs as the Peace Corps, a group of American volunteers who organized health, educational, and agricultural projects in the Third World; Food for Peace, which distributed American agricultural products in distressed areas; the Agency for International Development, which administered economic aid to underdeveloped countries; and, most important, the Alliance for Progress, which committed $20 billion to Latin America over a ten-year period on condition that the nations receiving aid undergo liberal domestic reforms” 30 A Aliança para o Progresso (Alliance for Progress) foi anunciada por Kennedy em 13 de março de 1961, e assemelhava-se a um Plano Marshall voltado para os países do hemisfério americano. Em agosto, o governo dos EUA comprometeu-se com US$ 1 bi durante o primeiro ano e mais US$ 20 bi durante a próxima década. O auxílio econômico deveria ser acompanhado de reformas fundamentais e democracia política nos países da região. Embora ela tenha gerado grandes esperanças nas Américas, ela não gerou grandes resultados: do lado norte-americano, a AP sofria de uma liderança fraca, burocracia e falta de administração. Seu fracasso deveu-se aos seus objetivos irrealistas: pretendia reestruturar a América Latina, politica e economicamente, em apenas dez anos (HERRING, 2008, p. 716-719). 31 A Comunidade Econômica Europeia (CEE) ou “Mercado Comum” foi criada com a assinatura do Tratado de Roma (1957). O objetivo da CEE era a “livre circulação das pessoas, das mercadorias e dos serviços entre os Estados-Membros”. Disponível em <http://europa.eu/about-eu/eu-history/1945-1959/index_pt.htm> 32 “(...) the world economy eliminated one of the major impediments to the flow of goods and capital between core countries, and between them and the periphery areas tied to their currencies. The formation of the EEC, the universalization of free convertibility by capitalist core countries, and the resolution of the dollar gap crisis for Europe and Japan all marked the flowering of postwar internationalism.”
23
Em relação aos atritos e crises entre os EUA e a URSS, a questão que gerou maior
preocupação durante todo o governo JFK foi Cuba. De fato, os norte-americanos tiveram que
lidar, pela primeira vez em toda a Guerra Fria, com uma crise gerada pela URSS na esfera de
influência americana. Cuba revelou o desejo dos soviéticos em desafiar abertamente os EUA.
Até então, estes consideravam como ameaça principal a questão da Alemanha e de Berlim
Ocidental.
Em 1959, com a Revolução Cubana, “a ascensão de Fidel Castro em Cuba e sua
aproximação em direção à União Soviética trouxe a Guerra Fria para o quintal dos EUA”
(HERRING, 2008, p. 686, tradução minha). O medo de que o comunismo pudesse estender-se
para o resto da América Latina fez com que os EUA usassem sua capacidade econômica,
militar e política para derrubar Castro e, se tal fato não se realizasse, ao menos isolá-lo
definitivamente. Assim, os EUA romperam relações diplomáticas com a ilha, aplicaram-na
um embargo comercial, e planejaram um golpe de estado contra Castro. Este último
fracassou, e o fiasco da Baía dos Porcos tornou-se uma humilhação para Kennedy. Ao mesmo
tempo, o líder soviético Nikita Khrushchev33 considerou Kennedy um presidente fraco, e que,
portanto, poderia ser pressionado.
Esse foi o início do que ficaria conhecido como o incidente mais perigoso de toda a
Guerra Fria: a Crise dos Mísseis em Cuba. Em maio de 1962, Khrushchev persuadiu Castro a
aceitar 60 mísseis de alcance médio e intermediário, assim como 42 mil soldados. O grande
erro de Khrushchev foi supor que as armas poderiam tornar-se operacionais antes que os EUA
as detectassem (HERRING, 2008, p. 720).
Khrushchev tinha em mente uma concepção muito mais ampla. Os mísseis em Cuba
faziam parte de uma estratégia geopolítica na qual a URSS buscava adquirir maior paridade
estratégica com os EUA, que seria útil nas disputas sobre Berlim e também em diversas outras
negociações (DOBRYNIN, 1995, p. 71-73). O líder soviético argumentava que, se a URSS
tinha que se preocupar com mísseis na Turquia34, os EUA passariam a sentir incômodo
semelhante.
Entretanto, a ação soviética gerou graves repercussões. Aviões U-2 norte-americanos
descobriram as bases de lançamento em 14 de outubro de 1963. Rapidamente, Kennedy
33 Nikita Khrushchev foi o secretário-geral do Partido Comunista da URSS entre 1953 e 1964. 34 Os EUA possuíam mísseis instalados no sul da Itália e na Turquia, e que foram removidos no acordo final que colocou fim a Crise dos Mísseis.
24
instaurou o Ex Comm35 para debater quais seriam as reações de seu país. Em 22 de outubro, o
presidente anunciava a quarentena de todas as armas ofensivas sendo transportadas para Cuba.
No dia seguinte, Khrushchev enviava mensagem à Kennedy, na qual dizia que considerava a
ação americana uma interferência nos assunto domésticos cubanos bem como uma tentativa
de controlar águas internacionais (DOBRYNIN, 1995, p. 72-73).
No final, Khrushchev cedeu à negociação com Washington: os EUA se
comprometeram a não invadir Cuba e remover os mísseis da Turquia, enquanto a URSS
retiraria os mísseis de Cuba assim como seus agentes militares.
A principal consequência da Crise em Cuba foi evidenciar aos EUA e à URSS que o
conflito nuclear deveria ser evitado a qualquer custo, pois poderia colocar um fim à toda
humanidade. Embora Kennedy tenha sido considerado o grande vencedor do embate, ambos
conscientizaram-se da necessidade de reduzir os atritos. Foi, portanto, um divisor de águas na
Guerra Fria, sucedido por uma fase de coexistência mútua entre as superpotências.
Outra grande consequência foi o enfraquecimento da ordem bipolar, com revoluções
internas em ambos os blocos de poder (WALKER, 1993, p. 185). Segundo Herring,
O principal resultado geopolítico da crise dos mísseis foi acelerar o colapso da
bipolaridade. Por volta de outubro de 1962, os Estados Unidos e seus aliados
europeus já estavam claramente divididos a respeito de questões econômicas e
estratégicas. (…) Os europeus duvidavam cada vez mais que os Estados Unidos
usariam armas nucleares para os defenderem e procuraram adquirir as suas (…). O
mito de um “bloco” sino-soviético estava também severamente exposto. Os chineses
denunciavam o “aventurismo” de Khrushchev em provocar a crise dos mísseis e o
“capitulacionismo” em acabar a crise, e, nos fins de 1962, a disputa velada entre as
duas potências comunistas tornou-se pública36 (HERRING, 2008, p. 724-725,
tradução minha).
Outro tema importante durante o governo Kennedy foi o impressionante aumento de
gastos no setor de defesa, o que, por sua vez, elevou a intensidade da corrida armamentista
35 O Executive Committee (Comitê Executivo) foi formado pelos principais conselheiros de JFK para planejar a resposta do governo norte-americano durante a Crise dos Mísseis. 36 “The major geopolitical result of the missile crisis was to accelerate the breakdown of bipolarity. By October 1962, the United States and its European allies were already sharply divided on economic and strategic issues. (…) The Europeans increasingly doubted that the United States would use nuclear weapons to defend them and sought to acquire their own (…). The myth of a Sino-Soviet “bloc” was also starkly exposed. The Chinese denounced Khrushchev’s ‘adventurism’ in provoking the missile crisis and ‘capitulationism’ in ending it, and in late 1962 the long-hidden dispute between the two Communist powers burst out into the open.”
25
entre americanos e soviéticos. Eleito com um discurso que criticava Eisenhower por ter
permitido que os soviéticos alcançassem a paridade estratégica, o governo de JFK promoveu
o maior aumento de gastos no setor de defesa em toda a história do país (PECEQUILO, 2003,
p. 181).
Durante seu governo, a corrida armamentista alcançou dimensões colossais,
concomitantemente permitindo que os EUA aumentassem e modernizassem seus arsenais,
mas também transferindo recursos de setores prioritários da economia, o que aumentou, em
médio prazo, os déficits orçamentário e federal (PECEQUILO, 2003, p.181-184).
Na realidade, já havia nos EUA, desde o final dos anos 1950, uma grande campanha
pública que advogava a favor do incremento de gastos no setor militar, alertando contra a
“brecha de mísseis”37 (missile gap) e que concluía que deveria haver um aumento de 50% no
orçamento militar, além de um programa de abrigos nucleares estimados em US$ 25 bilhões
(MCCORMICK, 1995, p. 128-129).
Uma das principais promessas eleitorais de Kennedy foi justamente combater o missile
gap. Ao tornar-se presidente ele favoreceu o complexo industrial-militar, que teve então uma
posição de centralidade em seu governo, ampliando sua influência e espaço na política
externa dos EUA, especialmente no setor de defesa (PECEQUILO, 2003, p. 181-187).
Assim sendo,
O (...) governo Kennedy não ofereceu nenhuma resistência à campanha de
militarização. (...) O governo democrata deu um salto nos gastos militares em 15%
em seu primeiro ano (...). Por volta de 1963, o orçamento militar situava-se em US$
56 bilhões (40% maior que o maior dos orçamentos de Eisenhower) e os mísseis
balísticos intercontinentais tinham mais do que dobrado para quase quinhentos38
(MCCORMICK, 1995, 130, tradução minha).
37 “Uma grande campanha feita por americanos influentes defendia um drástico aumento em gastos militares, em ambos os sistemas nuclear e convencional. Ambos os Relatório Gaither da Fundação Ford no fim de 1957 e o Relatório dos Irmãos Rockfeller da Fundação Rockfeller em 1958 sustentavam que um incremento militar soviético havia estabelecido superioridade em mísseis balísticos de longo alcance (a notória ‘brecha de mísseis’) e que o sucesso soviético ao colocar o primeiro satélite em órbita (Sputnik em 1957) haviam criado uma clara liderança na corrida espacial. Eles concluíam que (...) os EUA deveriam aumentar o orçamento militar em 50% e iniciar um programa de US$ 25 bilhões em abrigos nucleares” (MCCORMICK, Ibid., p. 128-129, tradução minha). 38 “The (...) Kennedy administration offered no resistance to the militarization campaign. (…) The Democratic administration jumped military spending 15 percent in its first year (…). By 1963, the military budget stood at $56 billion (40 percent bigger than Eisenhower’s biggest) and ICBM’s had more than doubled to nearly five hundred”.
26
Outra mudança de rumos implementada durante o governo Kennedy refere-se às
diretrizes estratégicas. Até então, em seus atritos com a União Soviética, os EUA usavam as
ameaças nucleares39 e a retaliação massiva em caso de possível confronto. Diferentemente de
Eisenhower e Dulles40, John Kennedy não considerava ameaçar os países comunistas do
Terceiro Mundo e seus aliados com devastação nuclear. Ao contrário, ele defendia que os
combatentes insurgentes destes países fossem enfrentados com medidas limitadas de contra-
insurgência. Os EUA iriam somente escalar seu compromisso militar caso os comunistas o
fizessem primeiro (BRINKLEY, 1992a, p. 259).
Essa política ficou conhecida como “resposta flexível”41 (flexible response), e resultou
na criação dos Boinas Verdes42 (Green Berets), no fortalecimento de unidades leves de
combate, treinadas para lutar em teatros não-europeus e contra guerrilhas, e no aumento de
atividades da CIA em países do Terceiro Mundo (BRINKLEY, 1992a, p. 259-260).
A razão fundamental da adoção da estratégia de Resposta Flexível foi explanada por
Walt Rostow43, em uma declaração sobre a Política de Segurança Nacional,
Nós somos frequentemente pegos em circunstâncias onde nossa única resposta
disponível [contra insurgências comunistas] é tão desproporcional à provocação
imediata que seu uso traz o risco de escaladas indesejáveis ou custos políticos sérios
para a comunidade livre. Esta assimetria torna atrativo aos comunistas aplicar
pressões limitadas debilitantes sobre nós em situações onde nós achamos difícil
impor sobre eles um preço equivalente por suas intrusões. Nós devemos, portanto,
expandir nosso arsenal de contramedidas limitadas, abertas ou encobertas, se
quisermos de fato fazer da fomentação de crises, profundamente construída na
ideologia e nos hábitos de trabalho Comunistas, uma ocupação não-lucrativa44
(Apud BRINKLEY, 1992a, p. 259, tradução minha).
39 O brinkmanship foi uma tática esboçada por Eisenhower e consistia em ameaçar os soviéticos com a utilização de armas nucleares nos confrontos entre as duas superpotências em suas áreas de influência. Embora tenha funcionado na Guerra da Coreia, era uma estratégia perigosa, como depois se percebeu em Cuba (1962), pois poderia levar de fato ao enfrentamento direto (PECEQUILO, 2003, p. 174). 40 John Foster Dulles foi Secretário de Estado sob o governo Eisenhower (1953-1961). 41 O termo “resposta flexível” (“flexible response”) foi cunhado pelo General Maxwell D. Taylor – representante militar especial de Kennedy – em seu livro The Uncertain Trumpet (1959). 42 As Forças Especiais do Exército dos EUA, também conhecida por Boinas Verdes, são uma força de operações especiais, que tem como foco combater em teatros de guerra não-convencionais, além de outras funções, como o resgate de reféns e ações anti-terroristas. 43 Walt Rostow era presidente do Conselho de Planejamento de Política (Policy Planning Council) do Departamento de Estado, e principal arquiteto das políticas de Kennedy para o Terceiro Mundo. 44 “We are often caught in circumstances where our only available response [to communist insurgencies] is so disproportionate to the immediate provocation that its use risks unwanted escalation or serious political costs to the free community. This asymmetry makes it attractive for Communists to apply limited debilitating pressures
27
Pode-se observar, portanto, que sob o governo de Kennedy, as iniciativas tomadas
para lidar com crises e questões exteriores sensíveis aos EUA foram feitas sob esta fórmula:
inimigos com baixa capacidade seriam combatidos na mesma intensidade, na tentativa de não
escalar o conflito e, com isso, atrair a atenção da potência soviética, o que poderia resultar em
possível guerra. Ao enfrentar rivais com capacidade nuclear, contudo, a estratégia era outra.
Nessas situações, seria utilizada a estratégia de contra-força (counterforce strategy), na qual
as armas nucleares seriam usadas para destruir as bases militares do oponente – poupando,
com isso, o bombardeio de cidades. Para o secretário de Defesa Robert McNamara45, essa
tática seria um incentivo para conter o inimigo de bombardear cidades americanas
(BRINKLEY, 1992a, p. 351).
A lógica subjacente a esse complexo pensamento de defesa norte-americano era
simples: evitar o uso de armas nucleares. Kennedy era um crítico contundente da doutrina de
retaliação maciça de Eisenhower, pois esta era ao mesmo tempo perigosa e imprevisível, pois
“comprometia os EUA a lançar um ataque nuclear sobre a União Soviética em caso de
provocação Soviética em qualquer lugar do mundo” (BRINKLEY, 1992a, p. 350, tradução
minha).
Com a trágica morte do presidente antes do término de seu mandato, o vice-presidente
Lyndon Johnson foi inesperadamente elevado à posição de líder do país.
2.2 O Governo Johnson (1963-1969)
O assassinato de John Kennedy por Lee Harvey Oswald, em 22 de novembro de 1963,
colocou fim ao governo JFK de forma abrupta e chocante. Em seu lugar assumiu Lyndon
Baines Johnson, o então vice-presidente.
upon us in situations where we find it difficult to impose on them an equivalent price for their intrusions. We must seek, therefore, to expand our arsenal of limited overt and covert countermeasures if we are in fact to make crisis-mongering, deeply built into Communist ideology and working habits, an unprofitable occupation”. 45 Robert Strange McNamara foi secretário de Defesa entre 1961 e 1968, nos governos de Kennedy e de Lyndon Johson.
28
Lyndon Johnson era texano, nascido na pequena cidade de Stonewall. Elegeu-se para a
Câmara dos Deputados em 1937. Em 1948 foi eleito para o Senado. Ele foi, sem dúvida, um
dos maiores estrategistas legislativos da história americana (BRINKLEY, 1992a, p. 243).
Anatoly Dobrynin considera-o um mestre da política doméstica, que buscou unir a nação com
seu projeto da Grande Sociedade46 e com a legislação pelos direitos civis (DOBRYNIN, 1995,
p. 115).
De fato, Johnson mostrava interesse pelas mesmas causas que seu antecessor. Sob seu
governo, os EUA aprovaram o Civil Rights Act (1964), que baniu a discriminação com base
no sexo e na raça (REYNOLDS, Ibid., p. 311). Johnson possuía grande habilidade em obter
consenso e persuadir o Congresso, tanto que sob seu mandato quase todos os programas
legislativos originais de Kennedy foram aprovados (COMMAGER; NEVINS, 1986, p. 620).
Entretanto, o novo presidente não detinha a paixão de seu antecessor pela política
externa. Com uma evidente falta de experiência no assunto, LBJ decidiu manter as premissas
elaboradas durante o governo Kennedy, apoiando-se em seus conselheiros – especialmente
em McNamara e Dean Rusk47 (HERRING, 2008, p. 730).
No âmbito do hemisfério americano, Johnson manteve a mesma obsessão de Kennedy
em relação a Cuba. Em 1964, os EUA pressionaram a OEA com o objetivo de isolar Havana,
impondo sanções econômicas e, por fim, expulsando-a do órgão. Ademais, o governo Johnson
participou – aberta ou veladamente – de intervenções em diversos países da região, como no
Panamá (1964), na República Dominicana (1965), além do assassinato do guerrilheiro
argentino Ernesto “Che” Guevara na Bolívia (1966).
A grande questão de política internacional envolvendo o governo Johnson refere-se ao
cada vez maior envolvimento americano na Guerra do Vietnã, sem que se fosse possível
identificar uma estratégia clara de vitória.
O conflito, que teve origem no processo de descolonização da Indochina, deu-se
inicialmente entre as forças nativas, que desejavam a independência, e a França, potência
colonizadora. Para os EUA, materialmente falando, o Vietnã não significava muita coisa: não
possuía grandes recursos naturais nem servia como base militar. Contudo, três governos
seguidos já haviam se comprometido a derrotar as forças comunistas: o governo Truman
apoiara a França; Eisenhower encorajara a criação de um governo em Saigon, violando os
46 A Grande Sociedade (Great Society) era um conjunto de reformas domésticas proposta por Johnson, sendo que a eliminação da pobreza e o fim do preconceito racial eram seus dois principais objetivos. 47 Dean Rusk foi secretário de Estado entre 1961 e 1969, sob os governos de JFK e LBJ.
29
Acordos de Genebra de 195448; e Kennedy havia elevado o auxílio militar prestado às forças
do Vietnã do Sul (BRANDS, 1993, p. 88-91).
Segundo Martin Walker, a perigosa aproximação dos EUA com a questão do Vietnã
teve como causa a ambivalência da política norte-americana, relutante em arriscar o prestígio
dos EUA caso fosse derrotado, e igualmente relutante em abandonar um aliado. Uma vez que
os planejadores políticos não entravam em consenso, isso permitiu uma maior influência dos
militares na questão (WALKER, 1993, p.195-197).
Assim, na década de 1950, os EUA se comprometeram a garantir a sobrevivência de
um estado não-comunista no Vietnã. A ênfase dada a um país de importância estratégica
duvidosa baseava-se na então influente teoria dos dominós – em que a derrota do Vietnã para
o comunismo produziria o aumento do controle comunista em todo o Sudeste Asiático,
ameaçando aliados importantes dos americanos, como a Coreia do Sul e o Japão. Ou seja, a
queda de um “dominó” no sudeste asiático (Vietnã) levaria à queda de todos os outros,
ampliando a hegemonia comunista na região e enfraquecendo a credibilidade dos EUA
(PAINTER, 2001, p. 66; REYNOLDS, 2000, p. 274-275).
Isso explica o aumento contínuo de tropas americanas no Vietnã: 685 “conselheiros
militares” em 1961; 18.000 em 1963; 125.000 em julho de 1965; 184.000 em janeiro de 1966
(WALKER, 1993, p. 195-197).
A partir do início da década de 1960, a Frente Nacional para a Libertação do
Vietnam49 passou a vencer inúmeras batalhas e controlava mais da metade do território do
Vietnã do Sul. Como resposta, os EUA enviaram mais tropas. Entretanto, os norte-americanos
se negavam a invadir o Vietnã do Norte, com receio de uma possível intervenção chinesa
(PAINTER, 2001, p. 66-68).
Ao fim da década, o dreno econômico causado nos Estados Unidos pela guerra era
significativo, elevando a inflação e o déficit orçamentário. Ademais, nenhum aliado europeu
havia enviado tropas para auxiliar os EUA, e a impopularidade do conflito crescia entre a
sociedade americana, fragilizando o consenso doméstico acerca da política externa.
48 A Conferência de Genebra de julho de 1954 pôs fim aos aproximadamente 75 anos de domínio francês sobre a Indochina e deu origem a três Estados: Camboja, Laos e Vietnã. Este último foi formalmente dividido ao longo do 17º paralelo. Tal divisão tinha a finalidade de ser temporária até as eleições nacionais em 1956, onde seria decidida a liderança do país (REYNOLDS, 2000, p. 271-273). 49 A Frente Nacional para a Libertação do Vietnam era composta de combatentes sul-vietnamitas que lutaram ao lado do exército do Vietnã do Norte. Eles eram conhecidos como vietcongues.
30
Para piorar a situação, o governo do Vietnã do Sul, além de autoritário e corrupto, não
tinha quaisquer políticas econômicas, dependendo inteiramente do apoio financeiro prestado
pelos EUA.
Para Johnson, interessado principalmente na política doméstica de seu país, o apoio do
Congresso era essencial para viabilizar seus objetivos políticos. Temendo que os congressistas
conservadores – que dominavam comitês importantes dentro do Congresso – prejudicassem
suas prioridades legislativas, o presidente optou por não dramatizar a guerra, buscando reduzir
a importância do conflito. O custo da guerra era financiado por empréstimos governamentais,
uma vez que o presidente se negou a elevar impostos, com medo de que isso pudesse gerar
atritos com o Legislativo (REYNOLDS, 2000, p. 280).
A grande oportunidade de Johnson surgiu com o incidente do Golfo de Tonquim, em 2
de agosto de 1964. Nesse dia, durante uma missão secreta de vigilância e espionagem no
Golfo de Tonquim50, o navio de guerra USS Maddox foi atacado por três lanchas torpedeiras
norte-vietnamitas. O destróier americano, com apoio da força aérea, venceu os vietcongues.
Nos Estados Unidos, o incidente causou grande agitação política. Uma vez que o USS
Maddox estava aparentemente em águas internacionais, os EUA acusaram os vietcongues de
agressão, de violação da Carta da ONU e do Direito Internacional. O presidente Johnson usou
esse pretexto para conseguir do Congresso uma resolução que permitia um maior
envolvimento de seu país no conflito. Conforme a Resolução do Golfo de Tonquim, aprovada
pelo Congresso em 7 de agosto de 1964,
(...) Considerando que os Estados Unidos está auxiliando os povos do Sudeste
Asiático a protegerem sua liberdade e não tem nenhuma ambição territorial, militar
ou política na região, mas deseja apenas que esses povos devem ser deixados em paz
para resolver seus próprios destinos segundo suas vontades: Agora, portanto, seja
Resolvido pelo Senado e Câmara dos Deputados dos Estados Unidos da América
reunidos em Congresso, que o Congresso aprova e apóia a determinação do
Presidente, como Comandante Chefe, em tomar todas as medidas necessárias para
repelir qualquer ataque armado contra as forças dos Estados Unidos e para prevenir
futuras agressões (Congress of the United States, Tonkin Gulf Resolution, 1964).51
50 O Golfo de Tonquim está situado na costa do Vietnã, no Mar da China Meridional. 51 “(…)Whereas the United States is assisting the peoples of Southeast Asia to protect their freedom and has no territorial, military or political ambitions in that area, but desires only that these peoples should be left in peace to work out their own destinies in their own way: Now, therefore, be it Resolved by the Senate and House of Representatives of the United States of America in Congress assembled, That the Congress approves and
31
Como se pode ver pelo teor da resolução, o Congresso permitiu a Johnson “tomar
qualquer medida necessária” para por fim ao conflito, dando a ele, portanto, um aval
permanente na condução do país na guerra. Logo, o Legislativo abriu mão de seu importante
papel de controlar o presidente e de declarar guerra, o que fez com que a Guerra do Vietnã
permanecesse um conflito não declarado (REYNOLDS, 2000, p.283).
Com a anuência da Resolução do Golfo de Tonquim, o número de militares
americanos no Vietnã era, ao final de 1967, de impressionantes 500.000 homens. Contudo, o
próprio governo parecia não possuir estratégias claras de como vencer a guerra, utilizando-se
da contagem de corpos dos inimigos para indicar o grau de sucesso da missão.
Diante disso, o público americano tornou-se cada vez mais cético em relação à atuação
de seu governo na Indochina. Muitos fatos justificavam essa apreensão: existiam evidências
de atrocidades por parte dos soldados americanos, e de corrupção do governo do Vietnã do
Sul. Enquanto isso, o uso de drogas por tropas americanas desmoralizadas e a opressão à
população civil vietnamita demonstravam a precariedade da situação (BRINKLEY, 1992a, p.
245-246).
O governo americano, em resposta à desconfiança de sua população quanto aos rumos
da guerra, buscou assegurá-la de que estava em controle da situação e de que a vitória estava
próxima. Em novembro de 1967, o presidente afirmou que “de forma geral nós estamos
fazendo progresso”, e o general Westmoreland, responsável pela condução militar da guerra,
disse que “o fim [do conflito] começou a aparecer em vista” (apud REYNOLDS, 2000, p.
283-284).
Essa imagem confiante foi desmentida abruptamente com a chamada Ofensiva do
Tet52, em 1968, iniciada no feriado vietnamita de 31 de janeiro.
O ataque realizado pelas forças armadas norte-vietnamitas pegou Washington e Saigon
de surpresa. A investida militar do Vietnã do Norte deu-se em cinco das seis maiores cidades
do sul; em 36 de 44 capitais provinciais; e em dezenas de pequenas cidades. O objetivo da
ação era eliminar as unidades de combate sul-vietnamitas e promover uma sublevação da
população local.
supports the determination of the President, as Commander in Chief, to take all necessary measures to repel any armed attack against the forces of the United States and to prevent further aggression”. 52 A Ofensiva do Tet se refere ao ataque surpresa orquestrado pelas forças vietcongues em fevereiro de 1968, e recebeu esse nome pelo fato de que as ações militares foram iniciadas no grande feriado nacional vietnamita, o Tet, que representa o ano-novo no Vietnã.
32
Contudo, a Ofensiva do Tet não foi forte o suficiente e nem gerou uma revolta entre o
povo. Na realidade, ela revelou-se uma grande derrota militar para Hanói, com baixas
estimadas em aproximadamente 30.000 homens. Em poucas semanas os EUA e o Vietnã do
Sul tinham a situação sob controle.
Porém, do ponto de vista político, a Ofensiva foi um sucesso, ao mostrar que as
afirmações anteriores do presidente Johnson não correspondiam à realidade. O simples fato de
que as forças norte-vietnamitas pudessem organizar tamanha ofensiva militar, após anos de
atuação norte-americana, indicava que a guerra estava longe de chegar ao fim (PAINTER,
2001, p. 68).
Desmoralizado, severamente criticado e exausto, o presidente Johnson tomou uma
atitude corajosa e radical em 31 de março de 1968: anunciou a interrupção parcial dos
bombardeios norte-americanos, a ser seguida de uma interrupção total assim que negociações
sobre o fim da guerra fossem retomadas. Também indicou que não enviaria mais reforços
significativos ao Vietnã, e que não participaria das eleições presidenciais em outubro
(KISSINGER, 1994, p. 672). Embora tenha permanecido como presidente por mais dez
meses, sua carreira política estava acabada.
Após uma semana do discurso de Johnson, o Vietnã do Norte, enfraquecido pelo
desastre militar do Tet, concordou em negociar acordos de paz em Paris.
Enquanto isso, nos Estados Unidos, a situação doméstica era crítica. A continuação da
Guerra do Vietnã, além de debilitar economicamente o país, causou grandes protestos
populares. O apoio doméstico constante demonstrado pela população americana durante todo
o pós-guerra parecia não mais existir. Em seu lugar, questionamentos e a quebra do consenso
a respeito dos compromissos externos do país. Conforme Kissinger,
Durante toda a era pós-guerra, os americanos tinham respondido aos apelos de seus
líderes a fim de auxiliar sociedades distantes. Na difícil prova do Vietnã, o
excepcionalismo americano – a crença na aplicabilidade universal dos valores
americanos –, que tinha conferido tamanho momentum na reconstrução pós-guerra,
começou a voltar contra si mesmo e adotar um tipo de política moral de terra
arrasada. Com a elevação das baixas, a crítica da política externa americana
deslocou-se da contestação sobre a efetividade da política para o questionamento da
sua necessidade – de um ataque sobre o mérito do aliado vietnamita dos Estados
33
Unidos para a contestação do mérito dos Estados Unidos, não apenas no Vietnã, mas
globalmente53 (KISSINGER, 1994, p. 668).
Com isso, a própria formulação da política externa do país passava a sofrer ameaça,
pois sua legitimidade, antes reconhecida pela sociedade, era agora disputada e criticada.
Ademais, a sociedade americana vivia um momento de tensões sociais e políticas que
enfraquecia ainda mais a capacidade externa do país.
Entre 1964 e 1968, revoltas em guetos haviam ceifado a vida de dezenas de pessoas
em Los Angeles, Detroit, e Newark.
Em 4 de abril de 1968, Martin Luther King Jr., defensor dos direitos civis e políticos
dos afro-americanos, e símbolo de uma geração, foi assassinado. Dois meses depois, em 5 de
junho, Bobby Kennedy, ilustre figura política e possível candidato à eleição presidencial, foi
baleado em Los Angeles.
Era como se os Estados Unidos estivessem sob uma forte convulsão doméstica.
A eleição presidencial de 1968 refletiu a fragilidade doméstica e externa do país:
durante a Convenção Nacional do Partido Democrata, multidões se formaram para protestar
contra a guerra e contra a má atuação do partido – e foram duramente combatidos pela polícia.
A situação dos EUA durante a passagem da década de 1960 para a de 1970 refletia o
que Martin Walker (1993) chamou de os “gêmeos terríveis”: a Guerra do Vietnã e os conflitos
domésticos. Dessa forma, o próximo presidente teria que lidar com duas questões de suma
importância: retirar o país do Vietnã, restabelecendo a coesão doméstica quanto às suas ações
externas, e, da mesma forma, encontrar uma resposta para a crescente insatisfação e
descontentamento da população.
53 “Throughout the postwar era, Americans had responded to their leaders’ appeals for sacrifice in order to assist distant societies. In the crucible of Vietnam, America’s exceptionalism – the belief in the universal applicability of American values – which had conferred such momentum on postwar reconstruction, began turning on itself and adopting a kind of moral scorched-earth policy. As casualties mounted, the critique of American foreign policy shifted from challenging the effectiveness of the policy to questioning the necessity for it – from an assault on the worthiness of America’s Vietnamese ally to challenging the worthiness of America, not just in Vietnam but globally as well”.
34
Capítulo 3 – O Governo Nixon e a Détente.
Richard Nixon tomou posse em janeiro de 1969 após um dos anos mais turbulentos na
história recente dos Estados Unidos, marcado por assassinatos, revoltas raciais, protestos
estudantis, uma incapacitante crise do ouro e um sangrento impasse no Vietnã do Sul. Muitos
americanos comuns haviam votado em Nixon porque ele representava a estabilidade e
respeitabilidade à moda antiga, em tempos desconcertantes e desordenados. Mas enquanto
ele contemplava os desafios dos anos 1970, da agitação no campus e do uso de drogas à
ascensão de crimes e crescente inflação, Nixon poderia ser perdoado se tivesse um tremor de
trepidação. Profundamente arraigados na cambiante paisagem social e cultural dos anos
pós-guerra, a resolução desses problemas estava além do escopo de qualquer homem. Visto
que eles já haviam consumido as ambições de seu predecessor Lyndon Johnson, parecia
haver toda chance de que eles também frustrariam Nixon. O último presidente a enfrentar tão
enormes desafios fora Harry Truman; ameaçadoramente, sua presidência havia terminado
em corrupção, paralisia, e impopularidade recorde.54
– Dominic Sandbrook. Salesmanship and substance: the Influence of Domestic Policy and
Watergate, p. 85 (tradução minha).
Em 1968, durante o último ano do governo Lyndon Johnson, era notável o
descontentamento da população norte-americana com os rumos de seu país. A Guerra do
Vietnã, principal alvo das críticas domésticas, continuava, sem que um final a ela fosse
possível de ser imaginado. Após janeiro, com a Ofensiva do Tet55, ficava claro que os
Vietcongues ainda detinham força e moral para permanecer guerreando, enquanto que os
Estados Unidos pareciam perdidos e sem estratégia. 54 “Richard Nixon took office in January 1969 after one of the most turbulent years in recent American history, marked by assassinations, race riots, student protests, a crippling gold crisis and a bloody stalemate in South Vietnam. Many ordinary Americans had voted for Nixon because he stood for old-fashioned stability and respectability in bewildering, disorderly times. Yet as he contemplated the challenges of the 1970s, from campus unrest and drug use to rising crime and soaring inflation, Nixon could have been forgiven a shudder of trepidation. Deeply rooted in the changing social and cultural landscape of the postwar years, these problems were beyond the scope of any one man to solve. Since they had already consumed the ambitions of his predecessor Lyndon Johnson, there seemed every chance that they would frustrate Nixon too. The last president to face such enormous challenges had been Harry Truman; ominously, his presidency had ended in corruption, paralysis, and record unpopularity.” 55 Ver a nota 52.
35
Hubert Humphrey, o vice-presidente de Johnson e escolhido para disputar a
presidência pelo Partido Democrata, se encontrava na difícil posição de defender as duras
críticas direcionadas ao governo Johnson e propor ações para retirar seu país da guerra na
Indochina. Ademais, Humphrey tinha que lidar com um partido dividido, pois havia outros
dois candidatos disputando a nomeação: Bob Kennedy56 e George Mcgovern57. Kennedy, que
era então o favorito para disputar as eleições, foi assassinado, facilitando a vitória de
Humphrey na convenção do partido, em agosto. Contudo, ele não havia vencido nenhuma das
primárias anteriores, acirrando as disputas internas entre os Democratas.
A própria convenção Democrata, em que Humphrey foi escolhido como candidato,
demonstrou a caótica situação dos EUA durante esse momento, com brigas violentas entre os
manifestantes anti-guerra e a polícia.
A severa crítica por parte significativa da população às políticas do presidente Johnson
dificultava a candidatura de Humphrey e criava oportunidades para o Partido Republicano,
que havia escolhido Richard Nixon como seu candidato.
Na realidade, poucos imaginavam que Richard Milhous Nixon poderia ter algum papel
importante nas eleições de 1968. Após ter sido derrotado nas eleições presidenciais de 1960
por John F. Kennedy, e na corrida pelo governo da Califórnia em 1962, acreditava-se que
Nixon chegara ao fim de sua carreira política.
Entretanto, não foi isso o que se sucedeu.
Nixon, nascido em Yorba Linda, Califórnia, ficara realmente abatido e angustiado com
as duas derrotas sucessivas em 1960 e 1962, e chegara mesmo a dizer que abandonaria a
política (DALLEK, 2007, p. 29-30). Mas após um breve momento de depressão, ele retomou
um antigo plano: tornar-se presidente.
A questão central na eleição de 1968 era, sem dúvida, o Vietnã. Enquanto Humphrey
pretendia continuar a política de Johnson, envolvendo ações militares combinadas com
negociações paralelas, Nixon prometia por em prática um “plano secreto para acabar com a
guerra”. Ao final, Nixon foi eleito presidente, a 5 de novembro de 1968, em uma vitória
apertada (43.4% contra 42.7%) sobre seu adversário (AMBROSE, 1993, p. 225).
56 Robert Kennedy foi senador (1965-1968) e secretário da Justiça do governo JFK, e defendia melhoras nos direitos civis e uma postura menos agressiva dos EUA na política externa, como sua plataforma para a eleição de 1968. 57 George S. McGovern foi deputado federal (1957-1961) e senador (1963-1981) e tinha como sua plataforma principal a retirada imediata dos EUA do Vietnã.
36
Com a vitória, Nixon herdava também pesados desafios e obrigações. Cabia a ele
arquitetar a retirada do país de uma guerra sangrenta e aparentemente interminável, lidar com
problemas econômicos que começavam a surgir, como a elevação do desemprego e a inflação,
buscar apaziguar a nação, que estava com os ânimos acirrados, e também enfrentar os perigos
externos: o avanço militar soviético e sua crescente influência sobre o Terceiro Mundo e
sobre a Europa, e um sistema internacional mais complexo do que no início do pós-guerra.
Assim, após mais de vinte anos de Guerra Fria, a situação em que os Estados Unidos
se encontravam representava, sem dúvida, um desafio enorme.
3.1 O novo cenário internacional e o “aprofundamento filosófico” da política externa
norte-americana.
Ao tomar posse em 20 de janeiro de 1969, Richard M. Nixon iniciava seu governo
diante de um complexo desafio: restaurar a auto-estima do país, que se encontrava em baixa, e
traçar novas diretrizes para a atuação externa de seu governo. Não havia dúvidas de que o
foco principal deveria ser o Vietnã, e em como retirar os EUA daquele conflito. Para isso,
Nixon declarava ser importante chegar à “paz com honra”, ou seja, uma paz que refletisse o
peso dos EUA como potência mundial e que, portanto, não significasse uma retirada imediata,
que resultasse na queda do governo de Saigon.
Além disso, os EUA tinham que buscar novos meios para aplicar a política de
contenção contra os soviéticos. Em agosto de 1968, apenas quatro meses antes do início do
governo Nixon, as tropas do Pacto de Varsóvia58 haviam invadido a Tchecoslováquia. A
intervenção soviética fora justificada através da Doutrina Brezhnev59.
Não bastasse isso, a URSS era responsável por fornecer enormes quantias de
armamentos para o Vietnã do Norte – revelando a complexidade da questão, pois envolvia
não somente os atores regionais e os EUA, mas outras potências, como a URSS e a RPC.
58O Pacto de Varsóvia era um tratado de defesa mútua, criado em 1955, e que tinha como seus países-membros os Estados comunistas do bloco soviético. 59 A Doutrina Brezhnev pregava que os soviéticos tinham o direito de intervir em qualquer país do bloco comunista para “salvá-los” do “imperialismo global” (LAFEBER, 1997, p. 256-257).
37
A URSS havia também alcançado a paridade estratégico-militar com os EUA,
erodindo a superioridade nuclear norte-americana. A União Soviética construíra sua bomba
atômica em 1949, quatro anos após o bombardeamento de Hiroshima, enquanto a bomba de
hidrogênio fora obtida em 1953, nove meses depois dos EUA (HOBSBAWM, 1995, p. 226).
O regime de Leonid Brezhnev60 fomentou um programa de armamentos com elevados
gastos no setor militar. A medida fora tomada na sequência da Crise dos Mísseis em Cuba,
pois os soviéticos sentiram-se humilhados e seus líderes prometeram nunca mais sofrer
tamanha derrota. A única forma para isso, conforme os líderes da URSS, seria incrementar a
capacidade militar soviética.
Assim, a URSS planejou um fortalecimento militar que desafiasse a superioridade
estratégica norte-americana. Além de desenvolver uma forte Marinha, os gastos com despesa
militar, entre 1965 a 1970, foram ampliados em aproximadamente 40%. A partir de 1965, os
soviéticos já detinham mísseis balísticos intercontinentais61, causando grandes danos à
capacidade de retaliação dos EUA (PAINTER, 2001, p. 60).
Mas existiam outros desafios na esfera internacional aos quais o governo Nixon teria
que responder.
A Europa e o Japão, países que tiveram grande parte de seus parques industriais
destruídos na II Guerra Mundial, haviam se recuperado economicamente, graças ao apoio dos
EUA por meio do Plano Marshall62. Todavia, o fortalecimento econômico japonês e europeu
passava agora a ameaçar a hegemonia dos EUA, pois acirrava a competição por mercados.
Enquanto isso, o dólar estava fragilizado, sendo que sua estabilidade dependia cada vez mais
da disposição dos bancos centrais europeus de não trocar seus dólares por ouro
(HOBSBAWM, 1995, p. 238).
Para tornar a situação dos EUA no mundo ainda mais complexa, a ONU havia
triplicado seus membros desde o pós-guerra – resultado do movimento de descolonização.
Estes novos países mostravam-se desinteressados com os valores ocidentais, preferindo seguir
passos diferentes.
60 Leonid Brezhnev foi secretário-geral do Partido Comunista Soviético entre 1964 a 1982. 61 Mísseis Balísticos Intercontinentais (intercontinental ballistic missiles, ICBMs) são mísseis de longo alcance (mais de 5.500 km) geralmente usados para carregar armas nucleares. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Icbm>. 62 Ver a nota 19.
38
Dessa forma, no início de seu governo, Nixon encontrava seu país em uma nova e
declinante crise do poder americano (BRINKLEY, 1992a, p. 385). Percebendo que seu país
passava por um momento de dura transição, e de que a hegemonia incontestável do EUA não
mais existia, Nixon buscou adaptar a política externa a esta nova condição de
enfraquecimento relativo. Ademais, outra questão importante para o presidente era combater a
crescente pressão doméstica contrária a um maior envolvimento do país em questões
internacionais. Assim,
No momento em que Nixon tomou posse, a política externa dos EUA já estava clara
em sua mente. Incomodado pelo o que ele viu como um ressurgimento do
isolacionismo nos Estados Unidos como consequência do Vietnã, ele estava
determinado a encontrar um caminho para seu país se “manter no mundo, e não...
deixar o mundo”. Ironicamente, para esse Cold Warrior [Nixon], o objetivo
essencial era facilitar uma era de coexistência pacífica com as grandes potências
comunistas63 (HERRING, 2008, p. 765, tradução minha).
Portanto, Nixon preocupou-se em manter ativa a atuação externa dos EUA, buscando
combater – inclusive de forma ilegal – aqueles que se opusessem à sua visão.
Para auxiliá-lo na condução da política externa ele nomeou, em dois de dezembro de
1968, Henry Kissinger para o cargo de conselheiro de segurança nacional da presidência.
Kissinger, um alemão judeu que fugira da ameaça nazista nos anos 1930-1940 e que
encontrara refúgio nos EUA, era um acadêmico brilhante e uma das maiores autoridades
intelectuais americanas no âmbito das relações internacionais. Suas ideias e pensamentos se
tornaram famosos nos EUA com a publicação de vários livros sobre temas de política
internacional e de relações exteriores, e os governos Kennedy e Johnson o haviam tornado um
de seus conselheiros, embora ele não tivesse exercido muita influência nesses dois governos.
O envolvimento de Kissinger com a política se deu a partir de 1955-1956, quando ele
foi convidado por Nelson Rockefeller64 a trabalhar como diretor de projetos na fundação
deste. Uma vez que Rockfeller tinha intenção de se eleger para a disputa presidencial de 1960,
63 “By the time Nixon took office, the outlines for a fundamental reorientation of U.S. foreign policy were already clear in his mind. Troubled by what he saw as a resurgence of isolationism in the United States in the wake of Vietnam, he was determined to find a way for his country to “stay in the world, not… get out of the world”. Ironically, for this old Cold Warrior, the essential goal was to facilitate an era of peaceful coexistence with the major Communist powers.” 64 Nelson Rockefeller, republicano, era governador de Nova Iorque (1959-1973).
39
Kissinger imaginava que, caso aquele fosse eleito, ele poderia ser convidado a participar do
futuro governo (DALLEK, 2007, p. 48-50).
Contudo, foi apenas mais tarde, durante o governo Nixon, que Kissinger tornou-se
influente na formulação de política externa dos EUA.
Juntos, os dois foram os principais responsáveis por estruturar e guiar a nova forma
pela qual os Estados Unidos atuariam no âmbito das relações internacionais.
Pode-se dizer que a conjuntura internacional confrontada pelo governo Nixon (1969-
1974) apresentava inúmeras possibilidades e oportunidades: o governo anterior já havia
limitado o número de tropas no sudeste asiático; a China estava em atrito com a URSS em
torno de suas fronteiras; e a paridade militar soviética era confrontada por suas dificuldades
econômicas, que poderiam torná-la mais dependente do Ocidente. Ou seja, era muito provável
que qualquer candidato eleito em 1969 apresentasse mudanças significativas na política
externa dos EUA, dada a citada conjuntura.
Entretanto, o fato de os principais articuladores serem Richard Nixon e Henry
Kissinger trouxe dois novos elementos para a equação: Nixon combinava rigidez ideológica
com pragmatismo político. De fato, durante grande parte de sua carreira política, Nixon usou
o repúdio ao comunismo como forma de arregimentar capital político entre seus eleitores. Ele
era conhecido como um vigoroso Cold Warrior.
Do outro lado, Kissinger, grande estudioso do equilíbrio de poder europeu nos séculos
passados, compreendia o mundo como o resultado dos interesses distintos dos Estados. Cabia
aos EUA, segundo ele, definir melhor quais eram os seus interesses.
A parceria Nixon-Kissinger tornou viável uma nova estratégia que combinava
flexibilidade tática com estrutura e coerência, enquanto se esquivava de fixações de curto
prazo ou rigidez ideológica (GADDIS, 1982, p. 274-275).
Tanto Kissinger quanto Nixon acreditavam que a política de contenção de George
Kennan65 só renderia efeito se fosse modificada ao longo do tempo. Tornara-se improvável
para os EUA manter uma superioridade estratégica em relação à URSS, uma vez que esta,
desde 1962, construía seu arsenal nuclear de forma a alcançar a paridade, assim como já
detinha forças navais avançadas. Kissinger e Nixon reconheciam o trunfo soviético, porém
concluíram que não seria necessário manter a liderança estratégica, mas que a “suficiência”
65 Ver o capítulo 1.
40
nuclear seria o bastante para garantir a segurança norte-americana. Ambos entendiam que
derrotar os soviéticos era um objetivo inatingível no momento. Ao invés disso, os EUA
deveriam buscar modificar a atitude do rival (BRINKLEY, 1992a, p. 386).
Segundo Kissinger,
A estratégia de contenção do período anterior havia projetado os EUA para a linha
de frente de todas as crises internacionais; a retórica explosiva do período Kennedy
havia determinado objetivos que estavam além das capacidades físicas e emocionais
dos EUA. Como resultado, a honradez americana estava se transformando em ódio
próprio, e a crítica da super-extensão em abdicação66 (KISSINGER, 1994, p. 707,
tradução minha).
Isso ocorria pelo fato de que os EUA tinham perdido a noção do tipo de ordem
internacional que deveriam buscar. A coerência conceitual desaparecera, de modo que muitas
decisões tomadas durante os governos anteriores haviam sido feitas de forma ad hoc, sem
relação com um objetivo maior. Segundo Jeremy Suri, o problema não era o poder americano
em si, mas a forma pela qual estava sendo utilizado. Kissinger acreditava que as antigas
fórmulas sobre a contenção precisavam ser renovadas (GADDIS, 1982, p. 276; SURI, 2008,
p. 67).
Contudo, é importante esclarecer que a détente não foi uma tentativa de alterar ou
eliminar a política de contenção elaborada no imediato pós-II Guerra. Embora Nixon e
Kissinger estivessem cientes de que o sistema internacional passara por mudanças
significativas, eles não discordavam das bases da contenção, mas somente dos meios pelos
quais ela deveria ser aplicada. Como aponta George Herring,
Em busca da détente, Nixon e Kissinger não abandonaram a contenção. Melhor
dizendo, eles esperavam, através de negociações em questões-chave, criar ligações
que iriam permitir a eles influenciar o comportamento soviético em outras áreas. (...)
Eles viam a détente não como um fim em si mesma, mas antes, nas palavras de
Nixon, como um meio de “minimizar confrontação em áreas periféricas e prover, ao
menos, possibilidades alternativas nas grandes áreas.” Eles esperavam que isso lhes
66 “The containment strategy of the early postwar period had projected America into the front line of every international crisis; the soaring rhetoric of the Kennedy period had set goals that were beyond America’s physical and emotional capacities. As a result, American righteousness was turning into self-hatred, and the criticism of overextension into abdication”.
41
permitiria gerir o poder soviético e assim fazer a URSS aceitar a ordem mundial
emergente67 (HERRING, 2008, p. 771, tradução minha).
Para Kissinger, era imprescindível que os EUA realizassem um “aprofundamento
filosófico” de sua política externa. Para que isso ocorresse, tornava-se necessário se
conformar com três condições: reconhecer o poder multilateral no mundo, para que fosse
possível adotar percepções flexíveis de interesse, contanto que um equilíbrio de poder geral
fosse mantido. Em segundo lugar, deveria eliminar da política externa ilusões sobre a natureza
da ordem internacional, aceitando que conflitos e a desarmonia são suas características –
adotando, portanto, uma perspectiva realista68 das relações internacionais. Por último,
reconheceriam seus limites (GADDIS, 1982, p. 276-277).
Ou seja, o país procuraria um novo tipo de inserção internacional, mais seletiva e
limitada, atenta ao interesse nacional (PECEQUILO, 2003, p. 192-193). Desse modo, o
governo Nixon buscaria reduzir a influência que o conflito ideológico exercia na relação entre
as duas superpotências, e substituí-lo por uma posição mais pragmática. A visão externa dos
EUA seria mais realista, e a atuação do país daria maior importância para os aspectos
geopolíticos do mundo. Os EUA passariam a ver seu rival comunista não mais sob a ótica
exclusiva da rivalidade ideológica, e sim sob o escopo das relações interestatais – sendo que a
URSS, como todo Estado soberano, perseguia interesses próprios no sistema internacional.
Conforme Nixon,
Nós procederemos com os países comunistas na base de um entendimento preciso
sobre o que eles buscam no mundo, e portanto sobre o que nós podemos
razoavelmente esperar deles e de nós. (...) A política dos Estados Unidos será,
portanto, não empregar negociações como um fórum para injúrias da Guerra Fria, ou
debate ideológico. Nós iremos considerar nossos adversários comunistas primeira e
principalmente como nações perseguindo seus próprios interesses (...) Nós os
julgaremos segundo suas ações, assim como esperamos que sejamos julgados pelas
67 “In pursuing détente, Nixon and Kissinger did not abandon containment. Rather, they hoped through negotiations on key issues to create linkages that would enable them to influence Soviet behavior in other areas. (…) They viewed détente not as an end in itself but rather, in Nixon’s words, a means to “minimize confrontation in marginal areas and provide, at least, alternative possibilities in the major ones.” They hoped it would enable them to manage Soviet power and thus get the USSR to accept the emerging world order.” 68 É interessante observar que essa inclinação realista durante o governo Nixon é um ponto fora da curva na história da política externa norte-americana. De fato, desde sua independência, em 1776, os EUA revestiram suas relações externas com traços idealistas e moralistas, justificando sua atuação no mundo como uma forma de “buscar o bem maior”, ou “em nome da liberdade”. Portanto, não é difícil compreender os motivos pelos quais a política externa de Nixon sofreu tantas críticas – tanto de conservadores como de liberais.
42
nossas. Acordos específicos, e a estrutura de paz que eles ajudarem a criar, virão de
acomodações realistas de interesses conflitantes69 (NIXON, 1970, p. 102, tradução e
grifo meus).
Tal atitude, na qual se buscava estabelecer um equilíbrio de poder com os soviéticos, de forma
a iniciar um relaxamento da tensão entre ambos, levaria a um novo padrão de comportamento
entre as duas superpotências: a détente (PECEQUILO, 2003, p. 189-193).
Palavra de origem francesa cujo sentido se traduz em “calma, relaxamento,
tranquilidade”, a détente significava a tentativa de mover-se rumo a uma nova ordem mundial
em que a estabilidade resultaria não do confronto de interesses, mas de uma evolução nos
“hábitos de restrição, coexistência, e cooperação” (GADDIS, ibid., p. 282-283). Segundo
Pecequilo, a détente partia da premissa de que a URSS alcançara um poderio global: havia
atingido a paridade estratégica, continuava ampliando sua capacidade militar e investia
pesadamente nos conflitos periféricos. A détente seria usada como forma de dar tempo aos
EUA para reconquistar seu poder diante dos rivais, sem a necessidade de confrontá-los
(PECEQUILO, 2003, p. 193). Desta forma, os EUA estariam adiando um confronto direto
com os soviéticos, com a vantagem de que, ao prolongar tal conflito, estariam se
beneficiando, pois os recursos exigidos para estender a Guerra Fria eram mais custosos à
URSS. Tal visão pode ser compreendida na análise sobre a política externa feita por
Kissinger,
Em nossa visão, quanto mais a confrontação soviética com o Ocidente era adiada,
mais inadministrável se tornaria a tarefa de manter unido o Império Soviético,
especialmente visto que seus problemas políticos eram agravados por estagnação
econômica. Em outras palavras, Nixon acreditava que o tempo estava do lado dos
Estados Unidos, e não do mundo comunista70 (KISSINGER, 1994, p. 714, tradução
minha).
69 “We will deal with the Communist countries on the basis of a precise understanding of what they are about in the world, and thus of what we can reasonably expect of them and ourselves. (…) It will be the policy of the United States, therefore, not to employ negotiations as a forum for cold-war invective, or ideological debate. We will regard our Communist adversaries first and foremost as nations pursuing their own interests (…). We will judge them by their actions as we expect to be judged by our own. Specific agreements, and the structure of peace they help build, will come from a realistic accommodation of conflicting interests”. 70 “In our view, the longer the Soviet confrontation with the West was delayed, the more unmanageable would become the task of holding together the Soviet Empire, especially since its political problems were compounded by economic stagnation. In other words, Nixon and his advisers believed that time was on the side of the United States, not of the communist world.”
43
De modo a tornar clara a nova orientação norte-americana, o presidente Nixon
proferiu um discurso, em 25 de julho de 1969, na ilha de Guam no Pacífico, especificando
quais seriam as balizas de atuação do país. Este discurso ficou conhecido como a Doutrina
Nixon (ou Doutrina de Guam), e refletia o “aprofundamento filosófico” sugerido por
Kissinger.
A Doutrina Nixon71 afirmava que os EUA continuariam comprometidos com os
tratados anteriormente firmados; que proveriam a defesa das nações aliadas ameaçadas por
potências nucleares, assim como daquelas cuja sobrevivência fosse vital para o país. Porém,
em casos envolvendo agressões não-nucleares, entenderia que o país diretamente ameaçado
deveria assumir a responsabilidade primária de sua defesa. (KISSINGER, 1994, p. 708).
Portanto, a Doutrina Nixon significava que os EUA reconheciam sua nova posição de
enfraquecimento relativo no sistema internacional e procuravam se ajustar a essa nova fase,
estabelecendo limites de atuação externa e relegando funções aos seus aliados. Era também
um produto da nova visão realista, pela qual o país deveria reduzir tanto seus adversários
quanto seus compromissos mundiais (BRINKLEY, 1992c, p. 80).
A Doutrina Nixon foi posta em prática de forma clara na Guerra do Vietnã, onde
Nixon buscou retirar as forças americanas do conflito e transferir o ônus militar para as forças
do Vietnã do Sul72.
O significado maior da Doutrina Nixon é que, após passar pelos “anos de ouro” da
liderança norte-americana nos anos 1950, e estender seus compromissos de forma ilimitada na
década de 1960, os EUA reconheciam enfim que era necessário rever suas prioridades e
comportamentos internacionais (PECEQUILO, 2003).
3.2 O surgimento da détente
É interessante apontar os fatos que tornaram a realização da détente possível durante o
governo Nixon. Segundo ele, “o fim do mundo bipolar abre a essa geração uma oportunidade
71 Foi anunciada com foco original nos países asiáticos, porém pode-se perceber que ela é aplicável a todos os aliados dos EUA de forma geral. 72 Essa política de retirada gradual ficou conhecida como “Vietnamização” (“Vietnamization”).
44
única de criar uma nova e duradoura estrutura de paz” (NIXON, 1972, p. 3). Tal afirmação
revela que seu governo estava ciente de uma diminuição da rigidez bipolar no sistema
internacional e buscaria ampliar relações com novos atores, de forma a criar uma ordem
internacional mais estável.
Contanto, é errado pensar que a détente tenha surgido no governo Nixon como um
“fruto” das ações elaboradas durante – e somente – esse período. De fato, a détente foi um
momento da Guerra Fria em que as duas superpotências buscaram o relaxamento de tensões
em consequência do entendimento mútuo de que um enfrentamento poderia acarretar em
tragédia nuclear para ambos – fato que foi quase comprovado com a Crise dos Mísseis73.
Portanto, é relevante apontar que a détente foi parte de um processo histórico, que tem
suas origens antes do início do governo Nixon. Conforme LaFeber, “as sementes” da détente
foram plantadas em 1967-1968, e “floresceram” a partir do governo Nixon. Para esse autor, a
partir do governo Johnson já houvera tentativas de se utilizar da détente para reduzir as
tensões na guerra do Vietnã, mas sem muito sucesso. (LAFEBER, 1997, p. 252).
Como aponta Pecequilo, os Estados Unidos na década de 1970 entraram em um
processo de declínio econômico e desgaste da posição de líder global. Assim, o
enfraquecimento relativo dos EUA no sistema internacional pode ser visto como o principal
fator relacionado com a détente, uma vez que o fim da pax americana obrigou o país a rever
sua posição no mundo. Além disso, Nixon e Kissinger foram os dois atores que perceberam
esse fato e tomaram ações efetivas para reposicionar os EUA no mundo. Por isso, o governo
Nixon corresponde ao auge da détente – de forma que o seu colapso se dá quando o governo é
enfraquecido, principalmente com o escândalo de Watergate (PECEQUILO, 2003, p. 186-
188).
Deve-se dizer que Nixon e Kissinger utilizaram-se de diversos fatos para estabelecer
uma relação de détente com os soviéticos. A evidência irrefutável do antagonismo Sino-
Soviético permitiu aos EUA se aproximarem da RPC, concomitantemente induzindo a URSS
a uma maior aceitação da détente. A ruptura entre a RPC e a URSS possibilitou aos EUA
reduzir seus gastos militares sem perder credibilidade como protetor do Primeiro Mundo, ao
mesmo tempo em que este conflito levou a União Soviética a concentrar suas forças militares
no norte da Ásia, diminuindo sua capacidade de fazer guerra na Europa e de contribuir para
73 Ver o capítulo 2, seção 2.1.
45
revoluções na periferia do sistema internacional (GADDIS, 1982, 284-285; MCCORMICK,
1995, p. 172-173).
Além disso, Dobrynin (1994) aponta outros fatores que levaram os soviéticos a
considerar a détente como um conceito importante e útil para as relações americano-
soviéticas. Segundo ele, o líder soviético Brezhnev tinha fortes convicções sobre a
necessidade de melhorar relações com o Ocidente. Suas razões eram que: a guerra nuclear
tornara-se inaceitável, como ficou demonstrado pela crise dos Mísseis; o enorme peso dos
gastos militares que era sentido por ambas as superpotências; o processo de aproximação
soviética com a Europa Ocidental (e especialmente com a República Federal da Alemanha)
tornaria-se de difícil realização caso os EUA tentassem obstruí-lo; e uma melhora nas relações
EUA-URSS consolidaria a liderança de Brezhnev no seio da União Soviética (DOBRYNIN,
1995, p. 191-193).
Segundo Kissinger, havia a existência de uma convergência de interesses temporária
no relaxamento de tensões entre EUA e URSS, considerando-se que: o equilíbrio nuclear
parecia aproximar-se de uma estabilidade; os EUA necessitavam de espaço para respirar para
que fosse possível retirar-se do Vietnã; e a URSS enfrentava tensões com a China
(KISSINGER, 1994, p. 711-713).
Outro ponto interessante a ressaltar é a importância que a crise econômica global –
iniciada a partir da crise monetária de 1971 – teve na promoção de uma relação de
coexistência mútua, embora este ponto seja frequentemente ignorado nas discussões sobre a
détente. Mccormick aponta para o fato de que,
Em termos puramente econômicos, a Rússia não era hostil a um maior papel do
ocidente nas economias da Europa Oriental. A sua intervenção de 1968 na
Tchecoslováquia não podia apagar a realidade contínua de que a Europa Oriental
queria colocar fim à sua dependência da União Soviética e promover sua própria
modernização econômica. A Rússia, por sua vez, certamente não era adversa a
reduzir o enorme dreno econômico que suas “colônias” do COMECON lhe
causavam. Ademais, analistas econômicos soviéticos acreditavam que investimentos
ocidentais tornariam as economias da Europa Oriental mais eficientes e auto-
sustentáveis. (...) Eles concluíram que somente uma produção de larga escala,
especializada para o mercado mundial, poderia trazer eficiência verdadeira para a
Europa Oriental. A solução, portanto, seria abrir o COMECON ao comércio
ocidental financiado por banqueiros ocidentais. A importação de engenharia e bens
de capital promoveria a indústria do bloco oriental, enquanto que a necessidade de
46
exportar para pagar pelas importações e empréstimos forçaria maior eficiência por
parte dos administradores do estado e dos trabalhadores74 (MCCORMICK, 1995, p.
168, tradução minha).
Na realidade, o problema jazia nas esferas política e militar, pois a URSS temia que a
penetração econômica ocidental gerasse também uma de cunho político que reorientasse a
Europa Oriental com o ocidente. Isto geraria grande insegurança para os soviéticos, que os
levou inclusive a colocar em prática a Doutrina Brezhnev, com a invasão da Tchecoslováquia.
Este fato foi resolvido pela détente: os EUA aceitavam a Doutrina Brezhnev, assim
como a hegemonia político-militar soviética na Europa Oriental; este foi o preço a ser pago
para penetrar economicamente na região (MCCORMICK, 1995).
Assim sendo, a convicção por parte dos EUA e da URSS de que uma relação menos
conflitante entre as duas superpotências traria benefícios para ambos os lados tornou possível
um relacionamento baseado na negociação e na cooperação. A partir daí, os EUA buscariam
negociar com os soviéticos de forma a atingir seus objetivos de política externa, entre eles:
encontrar a maneira menos dolorosa de sair do Vietnã; reduzir a ameaça de guerra nuclear
entre EUA e URSS através do SALT; realinhar os EUA e seus aliados de forma a preservar o
status quo e satisfazer seus interesses; aumentar o espaço de manobra dos EUA em relação a
seus aliados através da normalização de relações com a URSS, e dessa forma consolidar seu
papel coordenador no âmbito da confrontação Leste-Oeste (DOBRYNIN, 1995, 194-195).
Daí a afirmação de Nixon: “acomodar interesses nacionais conflitantes através de negociação,
ao invés da confrontação” (NIXON, 1972, p. 4, tradução minha).
3.3 Os instrumentos da détente: a ligação de políticas (linkage) e a diplomacia triangular.
74 “In purely economic terms, Russia was not hostile to an enlarged Western role in Eastern European economies. Its 1968 intervention in Czechoslovakia could not erase the continued reality that Eastern Europe wanted to end its dependence on the Soviet Union and promote its own economic modernization. Russia, for its part, certainly was not averse to reducing the enormous economic drain that its COMECON “colonies” made on it. Moreover, Soviet economic analysts believed that Western economic inputs could make Eastern European economies more efficient and self-supporting. (…) They concluded that only large-scale, specialized production for a world market could bring true efficiency to Eastern Europe. The solution, therefore, was to open COMECON to Western trade financed by Western banks. The import of engineering and capital goods would upgrade Eastern bloc industry, while the necessity of exporting to pay for the imports and loans would force greater efficiency on state managers and workers.”
47
Na tentativa de implementar sua política externa de acordo com os moldes da détente,
o governo Nixon utilizou-se de dois mecanismos curiosos nas negociações com a União
Soviética: a ligação de políticas (policy linkage) e a diplomacia triangular. Embora tais
instrumentos tenham sofrido severas críticas durante seu governo, ambos foram essenciais
para tornar as relações entre soviéticos e americanos mais estáveis. Enquanto a ligação de
políticas permitiu moldar o comportamento soviético, restringindo-o e tornando-o mais
“responsável” – de acordo com o entendimento americano –, a diplomacia triangular utilizou-
se do antagonismo sino-soviético para auferir ganhos diplomáticos com a URSS,
concomitantemente atraindo a China, até então isolada das grandes questões internacionais,
para o cerne dos acontecimentos mundiais.
A ligação de políticas (policy linkage) foi um dispositivo utilizado pelos EUA durante
o período de détente como tentativa de modificar o relacionamento entre as duas
superpotências. Funcionou como mecanismo de correlação de políticas e iniciativas
diplomáticas, visando a cooperação entre ambos. No longo prazo, seu objetivo era encontrar
pontos sensíveis à aproximação que tornassem a URSS dependente dos EUA: seja através do
comércio, ao se explorar as dificuldades soviéticas em suprir bens e comida à sua população e
ter acesso a tecnologias mais desenvolvidas do Ocidente; ou através dos acordos sobre
limitações de armas estratégicas (PECEQUILO, 2003, p. 194-195).
Esse mecanismo de correlação de políticas deve sua criação a Henry Kissinger, que a
desenvolveu como meio de interagir os diversos campos de negociação entre americanos e
soviéticos, com o objetivo de tornar possível a cooperação. Contudo, a ligação de políticas
também foi usada pelos EUA para tirar vantagem das posições soviéticas, o que nem sempre
gerou bons resultados.
Nixon e Kissinger buscaram encorajar a União Soviética a participar de forma
“responsável” na política mundial através de uma combinação de acordos estratégicos e
econômicos – ligando (linking) o comportamento soviético desejado pelos americanos a
promessas de benefícios econômicos e de maior prestígio internacional (BRINKLEY, 1992c,
p. 79). O linkage significava que, para os EUA, um melhoramento das relações americano-
soviéticas dependeria de se alcançar progresso em diferentes áreas de negociação entre as
partes, e não apenas em uma delas. Simultaneamente, os EUA procuravam moldar a atitude
soviética para que agissem de forma mais “responsável” nos conflitos internacionais. Tal
48
afirmação pode ser confirmada por Kissinger:
Na visão do novo governo [Nixon], havia diferenças reais entre os EUA e a URSS e
estas diferenças deveriam ser reduzidas para que houvesse um genuíno relaxamento
de tensões. Nós estávamos, eu disse, preparados para conversar sobre a limitação de
armas estratégicas. (...) Nós iríamos também julgar os propósitos da União Soviética
pela sua disposição em mover-se adiante em uma frente ampla, especialmente por
sua atitude no Oriente Médio e no Vietnã. Nós esperávamos a restrição [restraint]
soviética em pontos problemáticos ao redor do mundo75 (KISSINGER, 1979, p. 145-
146, tradução minha).
Dessa forma, os EUA utilizavam as negociações com a URSS como contrapeso para
impedir uma atuação soviética que fosse agressiva e contrária aos interesses dos EUA. Por sua
vez, a URSS concordava em restringir sua atuação no plano internacional, pois recebia em
troca incentivos econômicos e comerciais dos americanos.
Um exemplo disso foi a negociação do SALT: como forma de encorajar as
negociações, Nixon facilitou a venda de trigo e outros grãos aos soviéticos. Isso foi feito
porque as negociações, iniciadas em 1969-1970, se encontravam em ritmo lento, devido à
dificuldade de se chegar a um consenso sobre os sistemas nucleares ofensivos. Nixon isentou
a exportação de trigo e outros grãos para a URSS da lista de itens que requeriam a aprovação
prévia do Departamento de Comércio. Assim, em novembro de 1971, o governo norte-
americano aprovou a venda de grãos para os soviéticos no valor de US$ 136 milhões. Neste
mesmo ano, as negociações do SALT apresentaram um avanço significativo (DOBRYNIN,
1995, p. 211-216).
Outro exemplo significativo do favorecimento econômico à URSS diz respeito à
concessão pelos EUA do status de Nação Mais Favorecida76 aos soviéticos. Pode-se observar,
portanto, que os EUA buscaram aprimorar as relações com os soviéticos através de
75 “In the view of the new Administration there were real differences between the United States and the Soviet Union and these differences must be narrowed if there was to be a genuine relaxation of tensions. We were, I said, prepared to talk about limiting strategic weapons. (...)We would also judge the Soviet Union’s purposes by its willingness to move forward on a broad front, especially by its attitude on the Middle East and Vietnam. We expected Soviet restraint in trouble spots around the world”. 76 O princípio da Nação Mais Favorecida refere-se ao parágrafo 1 do artigo 1° do Acordo Geral de Bens e Tarifas (GATT – General Agreement on Tariffs and Trade), que diz que “(...) qualquer vantagem, favor, privilégio ou imunidade cedido por qualquer uma das partes contratantes a qualquer produto originado ou destinado a qualquer outro país deve ser dado imediatamente e incondicionalmente a produto similar originado ou destinado aos territórios de todas as outras partes contratantes”. Disponível no site da Organização Mundial de Comércio, <http://www.wto.org/english/docs_e/legal_e/gatt47_01_e.htm>
49
negociações sobre assuntos substantivos e concretos, de forma ampla e interligada,
envolvendo temas diversos.
Conforme Dobrynin, as relações EUA-URSS tinham atingido, em 1973, um nível de
harmonia nunca antes obtido na era do pós-guerra. Contudo, a ligação de políticas na esfera
comercial seria danificada pela emenda Jackson-Vanik77, que ligava concessões comerciais à
URSS com um relaxamento de suas políticas domésticas. Brezhnev não poderia aceitar tal
demanda, pois isto significava ceder à interferência dos EUA nos assuntos domésticos
soviéticos.
Outro aspecto importante na relação entre norte-americanos e soviéticos diz respeito à
diplomacia triangular, que envolveu a aproximação dos EUA com a China. Os dois países não
mantinham relações amistosas desde a vitória dos comunistas chineses na guerra civil de 1949
e de sua participação na Guerra da Coreia (KISSINGER, 1994, p. 719).
O motivo da aproximação incentivada pelos EUA foi o conflito envolvendo soviéticos
e chineses na fronteira entre as duas nações ao longo do Rio Ussuri na Sibéria. Na realidade,
os atritos sino-soviéticos já ocorriam há alguns anos, mas os EUA, cegos pelo preconceito
ideológico, falharam em avaliá-los como uma oportunidade estratégica. Tal fato só foi
percebido durante o governo Nixon, que considerava que os EUA deveriam incluir a China
em suas opções diplomáticas. Para Nixon, excluir os chineses significava limitar a atuação
internacional americana, fato que seria prejudicial aos interesses do país (KISSINGER, 1994,
p.720-721).
Conforme Kissinger, o despreparo da diplomacia soviética contribuiu para a iniciativa
americana. Os diplomatas soviéticos mostraram-se ansiosos em consultar Washington sobre
qual seria a posição dos EUA a respeito dos conflitos sino-soviéticos nas fronteiras – questão
que os EUA havia mostrado pouca importância. A insistência soviética em descobrir
informações sobre uma questão de pouco significado para os americanos fez com que estes
suspeitassem dos motivos reais dos questionamentos. Os EUA passaram a desconfiar, então,
de que eles teriam sido elaborados como parte de um possível ataque soviético à China. Para
Kissinger,
A ânsia soviética sem precedentes de consultar Washington a respeito de uma
questão em que os Estados Unidos não haviam indicado nenhuma preocupação
77 A emenda Jackson-Vanik foi proposta pelo senador Henry Jackson, do estado de Washington. Essa emenda, adotada em 1974, condicionava a concessão do status de Nação Mais Favorecida aos soviéticos à mudança de sua política migratória. Com isso, o Congresso dos EUA buscava pressionar a URSS a liberalizar sua política de imigração dos refuseniks (judeus soviéticos) (DOBRYNIN, 1995, p. 266-270).
50
especial fez com que nós nos perguntássemos se as instruções não teriam sido
destinadas com a finalidade de preparar o terreno para um ataque soviético na China.
Essa suspeita foi reforçada quando os estudos de inteligência norte-americanas (...)
revelaram que as escaramuças ocorreram invariavelmente perto de grandes bases de
abastecimento soviéticas e longe de centros de comunicações chineses – um padrão
que se esperaria apenas se as forças soviéticas fossem de fato os agressores. (...)
Uma intervenção militar soviética na China sinalizaria a mais séria ameaça ao
equilíbrio de poder global desde a crise dos mísseis cubanos. A aplicação da
Doutrina Brejnev na China significaria que Moscou iria tentar subjugar o governo de
Pequim da mesma forma que a Tchecoslováquia havia sido obrigada no ano
anterior78 (KISSINGER, 1994, p. 721-722, tradução minha).
Kissinger revela que, “originalmente, nós não pensávamos que a reconciliação fosse
possível. Nós estávamos convencidos de que os chineses eram fanáticos e hostis. Mas (...),
tanto Nixon como eu acreditávamos na importância de uma abertura com a República Popular
da China” (KISSINGER, 1979, p. 187, tradução minha). O primeiro vislumbre de uma
possível mudança em relação com a China ocorreu após os eventos de agosto de 1968 – a
invasão soviética na Tchecoslováquia. Enquanto que, nos protestos de 1956 na Polônia e na
Hungria, os chineses atuaram como conciliadores, desta vez sua resposta foi uma condenação
à URSS. Existia um desentendimento ideológico entre a RPC e a URSS, assim como
crescente desconfiança – Krushchev recusara a cooperação nuclear no fim da década de 1950;
os ataques ideológicos chineses contra soviéticos aumentavam; e em 1959 a URSS cessou
toda a ajuda econômica aos chineses (Id, Ibid, p. 205-206).
Kissinger aponta que o governo Nixon tinha a intenção de se aproximar dos chineses,
mas não sabia ainda quais seriam os meios utilizados. Segundo ele, uma das primeiras e
importantes medidas tomadas foi a de não considerar publicamente a China como força
instigadora da Guerra do Vietnã – os americanos já enfrentavam o problema soviético, e não
precisavam de mais um inimigo. A partir de 1969, após os confrontos fronteiriços sino-
78 “The unprecedented Soviet eagerness to consult Washington on an issue with respect to which America had indicated no particular concern caused us to ask ourselves whether the briefings might not be designed to prepare the ground for a Soviet attack on China. This suspicion became reinforced when American intelligence studies (…) revealed that the skirmishes invariably took place near major Soviet supply bases and far from Chinese communications centers – a pattern one would expect only if the Soviet forces were in fact the aggressors. (…) Soviet military intervention in China would signal the most serious threat to the global balance of power since the Cuban missile crisis. The application of the Brezhnev Doctrine to China would mean that Moscow would try to make the government in Beijing as submissive as Czechoslovakia’s had been obliged the previous year. (…) the risk could not be run.”
51
soviéticos na ilha de Damansky/Chenpao, os EUA perceberam que tinham diante de si um
problema e uma oportunidade. Conforme Kissinger:
O problema era que uma invasão soviética de grandes proporções sobre a
China poderia derrubar (...) o equilíbrio geopolítico (...) no mundo (...). A
oportunidade era que a China poderia estar pronta a entrar novamente na arena
diplomática e isso exigiria que ela suavizasse sua hostilidade contra os EUA. Em
tais circunstâncias, a ameaça chinesa contra muitos de nossos amigos na Ásia iria
diminuir; ao mesmo tempo, ao evocar a preocupação soviética ao redor de seu longo
perímetro asiático, poderia também abrandar pressões sobre a Europa79
(KISSINGER, 1979, p. 203-204, tradução minha).
Com isso, o surgimento de um novo “triângulo estratégico” contribuiria em muito para
os interesses nacionais norte-americanos. Contudo, para que os EUA conseguissem criar tal
triângulo, seria necessária muita precaução e uma análise intensa sobre os acontecimentos que
estariam por vir. Dessa forma,
Caso nós agíssemos de forma muito rápida ou óbvia – antes que a Revolução
Cultural tivesse sido concluída –, os chineses poderiam rejeitar nossa proposta. Se
nós nos movêssemos muito devagar, poderíamos alimentar os chineses com
suspeitas de uma maquinação soviético-americana (...)80 (KISSINGER, 1979., p.
203-204, tradução minha).
Para tanto, o presidente Nixon tomou medidas decisivas no mesmo ano, deixando de
lado todas as questões que compunham o até então diálogo sino-americano e concentrando-se
a partir daí na questão ampla sobre a atitude da China em relação a um diálogo com os EUA.
Para implementar o triângulo estratégico, Nixon lançou uma série de medidas unilaterais em
julho de 1969: eliminou a proibição da viagem de americanos para a RPC; possibilitou que
americanos trouxessem da China mercadorias de valor inferior a US$ 100; e permitiu a
exportação limitada de grãos para a China. Tais medidas eram simbólicas e expressavam a
boa vontade em dialogar com os chineses (KISSINGER, 1994, p. 722).
79 “The problem was that a full-scale Soviet invasion of China might tip (…) the geopolitical (…) equilibrium in the world (…). The opportunity was that China might be ready to reenter the diplomatic arena and that would require it to soften its previous hostility toward the United States. In such circumstances, the Chinese threat against many of our friends in Asia would decline; at the same time, by evoking the Soviet Union’s concerns along its long Asian perimeter, it could also ease pressures on Europe.” 80 “If we moved too quickly or obviously—before the Cultural Revolution had fully run its course—the Chinese might rebuff the overture. If we moved too slowly, we might feed Chinese suspicions of Soviet‐ American collusion (…).”
52
Contudo, caso houvesse perigo real de um ataque soviético na China em 1969, não
haveria espaço de tempo suficiente para manobras americanas complexas baseadas em
medidas graduais. Por isso, Nixon tomou a medida mais ousada de seu mandato ao alertar a
URSS de que os EUA não se mostrariam indiferentes caso houvesse um ataque à RPC. Sem
levar em conta as atitudes imediatas da China em relação ao seu país, Nixon considerou a
independência chinesa indispensável para o equilíbrio global, e considerou o contato
diplomático com Pequim essencial para a flexibilidade diplomática americana. Para
Kissinger, esse ato exemplifica o retorno do EUA ao reino da realpolitik (KISSINGER, 1971,
p. 723).
Ao renunciar ao conluio com os dos dois gigantes comunistas, os EUA estimularam
ambos a melhorar relações com os americanos, servindo também como um aviso contra a
continuação das hostilidades. Os contatos diplomáticos sino-americanos foram retomados em
Varsóvia, em dezembro de 1969. Em fevereiro de 1972, eles assinaram o Comunicado de
Xangai, que serviu como um guia para as relações sino-americanas durante a próxima década.
Assim sendo, os EUA conseguiram implementar o novo triângulo estratégico, contribuindo
para uma relação mais estável entre as superpotências, ao envolver a China na arena
diplomática. Intimidada com um possível “cerco” chinês e americano, a URSS passou a agir
de forma mais receptiva à détente, atendendo, portanto, aos interesses da política externa de
Nixon e Kissinger. A revolução diplomática causada pela reaproximação entre EUA e China
teve, portanto, efeito profundo na correlação global de forças (KENNEDY, 1989, p. 389).
3.4 As iniciativas de política externa do governo Nixon.
Embora a década de 1970 tenha sido um período caótico e de incertezas para os
Estados Unidos, isso não impediu que o governo Nixon empreendesse diversas ações no
cenário internacional. Considerando-se um grande estadista internacional e com experiência,
Nixon quis mostrar ao público americano sua grande perícia no campo das relações
internacionais. Junto a Kissinger, o presidente arquitetou várias iniciativas, com ênfase nas
negociações sobre a limitação de armas estratégicas com a URSS, e também em relação ao
53
papel da China. Ademais, o governo Nixon atuou na Europa e no Oriente Médio. Sua atuação
no Terceiro Mundo foi tímida, e somente ocorreu quando os conflitos locais puseram em risco
o avanço do comunismo na região.
Entretanto, estava claro que a Guerra do Vietnã era a questão mais sensível para os
EUA. Com grande oposição doméstica à guerra, Nixon teria que orquestrar a retirada de seu
país do Vietnã. Contudo, pretendia retirar-se de forma “honrosa”, significando que não
abandonaria o governo do Vietnã do Sul aos comunistas.
3.4.1 Os Estados Unidos e a “Vietnamização”
A Guerra do Vietnã (1955-1975) prolongava-se há mais de dez anos no momento em
que Nixon tomou posse, e o público americano estava cansado do conflito, impressionado
com o total de baixas americanas, e economicamente exausto com os custos da guerra.
Conforme Dallek,
Pesquisas de opinião mostrando uma erosão contínua do apoio à guerra tornou
Nixon receptivo a expandir os esforços de paz. Apenas cerca de um terço do país
continuava a ver a guerra como vital para a segurança nacional dos EUA, com mais
de 50 por cento declarando-a um erro. Um levantamento da Harris feito em julho de
1969 revelou que 71 por cento dos americanos queriam que o presidente retirasse
100.000 tropas do Vietnã até o fim do ano. Com relação ao manuseio da guerra
realizado por Nixon, somente 38 por cento deu a ele nota positiva (...). Estava claro
para Nixon que se ele não encerrasse o envolvimento dos EUA no conflito nos
próximos três anos, ele estaria presidindo um governo arruinado com chances tão
baixas de ser reeleito quanto as de LBJ em 196881 (DALLEK, 2007, p. 149-150,
tradução minha).
81 “Opinion polls showing a continuing erosion of support for the war made Nixon receptive to expand peace efforts. Only about a third of the country continued to see the war as vital to U.S. national security, with more than 50 percent declaring it a mistake. A Harris survey in July 1969 showed that 71 percent of Americans wanted the president to withdraw 100,000 troops from Vietnam by the end of the year. As for Nixon’s handling of the war, only 38 percent gave him positive marks (…). It was clear to Nixon that if he did not end U.S. involvement in the conflict over the next three years, he would be presiding over a ruined administration with as little prospect of being reelected as LBJ had in 1968.”
54
Portanto, enquanto Nixon não atuasse para por fim à guerra, a sua política externa –
assim como suas chances de reeleição – seria prejudicada. Contudo, como bem lembra Jeremi
Suri, embora a maioria da população se opusesse à Guerra do Vietnã após 1968, apenas uma
pequena parte era a favor de uma retirada imediata e incondicional (SURI, 2008, p. 71). Como
disse Kissinger, “nós não podíamos simplesmente sair de um empreendimento envolvendo
dois governos, cinco países aliados, e 31.000 mortos como se estivéssemos trocando um canal
de televisão” (apud SURI, p. 71).
Conforme Ambrose (1993), os Estados Unidos tinham quatro opções para lidar com o
conflito:
1. Se retirar do Vietnã e terminar a guerra, o que não era nada fácil, frente à falta
de cooperação de Hanói quanto a um acordo de paz;
2. Continuar com as políticas de Johnson, que já estavam desacreditadas e não
haviam dado certo;
3. Entregar o ônus do conflito aos sul-vietnamitas. Essa opção tinha grande
apelo, pois evitava a derrota americana e diminuiria a pressão doméstica
exercida pelos grupos de paz;
4. Utilizar armas nucleares, o que nunca havia sido tentado, e que resultaria em
grande oposição interna, além de não fazer sentido militar, uma vez que a RPC
ou a URSS poderiam retaliar.
Nixon optou pela terceira alternativa, e anunciou o plano de “Vietnamização” da
guerra, que significava que o conflito não seria mais combatido com soldados americanos,
mas com as tropas do Vietnã do Sul – ou seja, os EUA “vietnamizariam” o conflito. Os norte-
americanos continuariam a prover apoio aéreo e naval, assim como armamentos.
Contudo, a atitude de Nixon frente à guerra era diferente de seu antecessor. Ele estava
certo de que uma atitude muito pacifista seria ruim para os interesses dos EUA, pois
incentivaria Hanói a aumentar sua proposta durante as negociações de paz. Por isso, o
presidente adotou uma postura combativa. Ademais, Nixon enxergava outros oponentes a
combater além dos vietcongues: o Congresso e a opinião pública, no âmbito doméstico, que
possuíam, a seu ver, visões de curto prazo e errôneas, e o governo do Vietnã do Sul, no
55
âmbito externo, que prejudicava as negociações de acordo de paz (NGUYEN, 2008, p. 185-
186).
Nixon também buscou o auxílio da União Soviética para por fim à guerra. Utilizando-
se da ligação de políticas82 (linkage), ele pressionou a URSS para que esses amenizassem a
postura obstrucionista dos norte-vietnamitas nas negociações de paz, em Paris. Assim, Nixon
condicionou o aumento das relações comerciais americano-soviéticas à resolução do conflito
(HERRING, 2008, p. 766).
Embora, a princípio, Nixon e Kissinger pensassem que a resolução do conflito se daria
nos seis primeiros meses da presidência, tal fato não ocorreu, frustrando a ambos. Já em
fevereiro de 1969, Nixon ordenou o bombardeamento intenso e secreto do Camboja. Em
fevereiro de 1970, o mesmo ocorreu no Laos. O motivo para tais ações era interromper o
fluxo de suprimentos que alimentavam os vietcongues e o exército do Vietnã do Norte, e que
vinham do Camboja e do Laos (a Trilha de Ho Chi Minh). Enquanto isso, em Paris, as
negociações de paz não avançavam.
A decisão do presidente de expandir a guerra ao Camboja e ao Laos causou protestos
domésticos, como as passeatas nos campi e a revitalização do movimento anti-guerra. Na
Universidade de Kent State, em Ohio, quatro estudantes foram mortos pela guarda nacional,
intensificando o furor das manifestações. O Senado, desafiando o presidente, colocou fim à
Resolução do Golfo de Tonquim83. Essa medida, embora simbólica, revelava que o Congresso
buscava retomar seu papel na política externa. Uma emenda propunha o corte de fundos para
as operações no Camboja, porém ela foi rejeitada pela Câmara (HERRING, 2008, p. 769).
O que permitiu a Nixon ignorar a pressão doméstica temporariamente, possibilitando
uma atuação mais dura no Vietnã, foi que ele realizou medidas que atraíram grande apoio
popular. Ele revogou o recrutamento militar obrigatório em fevereiro de 1972, além de reduzir
as tropas americanas de aproximadamente 500.000 para 20.000. Assim, ao diminuir o número
de mortes de soldados americanos, Nixon angariou o apoio da população. Isso permitiu a ele
enfraquecer o movimento anti-guerra e acalmar a opinião pública (SANDBROOK, 2008, p.
91-93; AMBROSE, 1993, p. 237).
Em março de 1972, um contingente de aproximadamente 15.000 soldados do Vietnã
do Norte cruzou a zona de desmilitarização e iniciou uma forte ofensiva contra Saigon, que
82 Ver capítulo 3, seção 3.3. 83 p. 30.
56
ficou conhecida como a Ofensiva da Páscoa (Easter Ofensive). Nixon respondeu a essa
ofensiva em maio, quando ordenou o bombardeamento da região, assim como a minagem do
maior porto norte-vietnamita, o de Haiphong (NGUYEN, 2008, p. 199; HERRING, 2008, p.
793).
Em dezembro, Nixon iniciou o chamado Bombardeio de Natal (Christmas Bombing),
fazendo de Hanói a cidade mais fortemente bombardeada da história das guerras84. O forte
ataque aéreo incentivou Hanói a retornar às negociações em janeiro de 1973 (AMBROSE,
1993, p. 247).
Em 23 de janeiro de 1973, foi assinado o Acordo de Paris sobre o Fim da Guerra e a
Restauração de Paz no Vietnã. As forças americanas deixaram o Vietnã em 31 de março de
1973. O acordo de paz não produziu nem a paz nem a “honra” que Nixon tanto se referia.
A guerra no Vietnã continuou, dessa vez sem a presença dos EUA, sendo que tanto o
Vietnã do Norte quanto o do Sul violaram o cessar-fogo e buscaram fortalecer suas posições
militares e estratégicas.
Enquanto isso, o Congresso buscou reforçar sua posição de oposição ao conflito: em
fins de junho aprovou uma emenda requerendo a cessação imediata de todas as operações
militares na Indochina até 15 de agosto. O Legislativo também aprovou a Lei de Poderes de
Guerra (War Powers Act). Essa lei passou a obrigar o presidente dos EUA a informar o
Legislativo dentro de 48 horas sobre o uso das Forças Armadas no exterior, e retirá-las em
sessenta dias, caso não houvesse o apoio do Congresso (HERRING, 2008, p. 803).
Dessa forma, em abril de 1975, após vinte anos de guerra, o Vietnã do Sul acabou
derrotado pelas forças do Norte e dos vietcongues. Saigon foi renomeada como a Cidade de
Ho Chi Minh. O Vietnã era novamente um só país, reunificado.
A vitória das forças comunistas no Vietnã e a derrota americana para um país de
“quinta categoria” (conforme dizia Kissinger) teve grandes efeitos para a moral dos EUA. De
fato,
No período do Vietnã, os Estados Unidos foram obrigados a encarar seus limites.
Pela maior parte de sua história, o excepcionalismo americano tinha proclamado
uma superioridade moral que era apoiada pela abundância material da nação. Mas no
84 “Já no final de 1966, a quantidade de bombas lançadas contra o Vietnã excedia a de todo o teatro de operações do Pacífico durante a Segunda Guerra Mundial. Antes que a guerra terminasse, os Estados Unidos lançariam sobre o sudeste da Ásia o triplo das bombas lançadas durante todo o período de duração da Segunda Guerra Mundial” (COMMAGER e NEVINS, 1986, p. 611).
57
Vietnã, os Estados Unidos se viram envolvidos em uma guerra que se tornou
moralmente ambígua, e na qual a superioridade material americana era grandemente
irrelevante.85 (KISSINGER, 1994, p. 700, tradução minha).
No final, o término da Guerra do Vietnã resultou no que muitos autores denominaram
de “síndrome do Vietnã”, na qual os EUA, a partir de então, passou a mostrar grande
relutância e precaução em se envolver em questões externas de possível risco elevado. Passou
a se fortalecer, dentro do país, uma corrente que pregava a atenção à situação interna e o
abandono de questões exteriores.
Além disso, a retirada do Vietnã representou a primeira derrota militar dos EUA em
sua história, e abalou sua credibilidade de superpotência no mundo. Neste momento, já era
possível ouvir que os EUA estavam “em declínio”.
3.4.2 Estados Unidos, União Soviética e as negociações de limitação de armas estratégicas
A questão dos armamentos militares e estratégicos foi considerada de grande
importância para ambos os lados do conflito bipolar desde o início da Guerra Fria. O
monopólio das armas nucleares detido pelos Estados Unidos foi rompido em 1949, quando os
soviéticos explodiram sua bomba atômica. A partir de então, houve a preocupação mútua
acerca de uma possível guerra nuclear e seus efeitos devastadores.
É necessário, antes que se inicie a discussão histórica das negociações de armamentos
entre norte-americanos e soviéticos, contextualizar o papel das armas nucleares durante a
Guerra Fria, uma vez que elas foram uma das principais preocupações no âmbito das
negociações de redução e limitação de armas.
Segundo Joseph Nye (2003), até 1945, as armas nucleares ainda eram vistas como
uma extensão das capacidades militares convencionais e, portanto, não apresentavam uma
85 “In the Vietnam period, America was obliged to come to grips with its limits. For most of its history, America’s exceptionalism had proclaimed a moral superiority which was backed by the nation’s material abundance. But in Vietnam, America found itself involved in a war which became morally ambiguous, and in which America’s material superiority was largely irrelevant.”
58
lógica própria. Nye afirma, inclusive, que os armamentos nucleares de então não causavam
danos significativos maiores do que o uso de armas convencionais86. Além disso, o
armamento dos EUA era pequeno: 2 bombas nucleares em 1947, e 50 em 1948.
Contudo, foi a partir de 1952 – quando a bomba de hidrogênio foi testada pela
primeira vez –, que ocorreu uma “revolução nuclear”. Isso se deu pelo fato de que a bomba-H
baseava-se na energia de fusão87 e, portanto, permitiu a “miniaturização” dos armamentos
nucleares, tornando possível acumular grandes quantidades de poder destrutivo em pequenos
espaços, como na ponta de um míssil balístico. Esse fato dramatizou a guerra, pois tornava
possível uma guerra absoluta, com destruições de grande intensidade. Esse momento marcou
também a inviabilidade do uso dos armamentos nucleares, pois os estragos militares eram
desproporcionais aos fins políticos (HOBSBAWM, 1995, p. 227; NYE, 2003, p. 135-138).
Para Kissinger, “o dilema nuclear final era que, mesmo depois de todo o
fortalecimento, os arsenais nucleares eram empregados, basicamente, para dissuadir ataques
nucleares, e nada mais” (KISSINGER, 2000, p. 121).
Portanto, o único fato que impedia que uma guerra nuclear ocorresse era a certeza de
que, caso uma das superpotências iniciasse um ataque, a outra revidaria, causando uma
destruição mútua. Essa situação ficou conhecida como MAD (mutually assured destruction,
ou destruição mútua certa), ou seja, o uso de armas nucleares resultaria na destruição de
ambas as superpotências, bem como grande parte do mundo.
Mas a lógica do MAD dependia ultimamente do pressuposto da racionalidade, isto é, o
país “A” não usaria armas nucleares, pois compreendia logicamente que se o fizesse, o país
“B”, que também possuía a mesma arma, retaliaria, e o resultado final seria a destruição
mútua.
Entretanto, em alguns momentos da Guerra Fria, tal racionalidade pareceu se exaurir.
Um desses momentos foi a Crise dos Mísseis em Cuba88 (1962). Nesse período de treze dias,
o mundo quase experimentou uma catástrofe nuclear, que só foi evitada no último momento.
86 Por exemplo, Nye afirma que o bombardeio incendiário de Dresden, durante a Segunda Guerra Mundial, matou mais pessoas do que o ataque nuclear a Hiroshima. 87 A combinação (fusão) de núcleos é uma fonte de energia muito maior que a fissão (divisão do núcleo, base da bomba atômica), liberando, aproximadamente, quatro vezes a energia por grama liberada na fissão do urânio 235 (235U, usado nas bombas atômicas). 88 Ver capítulo 2.
59
Dessa forma, os EUA e a URSS estavam cientes da enorme importância a respeito de
acordos sobre seus armamentos nucleares. Ademais, a Crise dos Mísseis serviu para enfatizar
a urgência dessa questão.
A respeito das negociações de armas, é interessante a frase do embaixador soviético
nos EUA durante a Guerra Fria, Anatoly Dobrinyn, de que,
Tem sido frequentemente dito que as intermináveis iniciativas, discussões, e
negociações sobre desarmamento representaram o barômetro mais confiável da
fundamental relação americano-soviética; quando os tempos estavam bons, as
negociações sobre o controle de armamentos seguia em frente, caso contrário elas
eram obscurecidas pelo interesse próprio e pela suspeita89 (DOBRYNIN, 1995,
p.146, tradução minha).
Portanto, com o desfecho da Crise dos Mísseis, os líderes de então – John Kennedy e
Khrushchev – concordaram em assinar um tratado que banisse os testes nucleares. Assim, o
Tratado de Banimento Limitado de Testes Nucleares (Limited Test Ban Treaty) foi assinado
em 25 de julho de 1963, entre EUA, URSS e Inglaterra, e entrou em vigor em outubro de
1963. Esse tratado impedia os testes nucleares feitos na atmosfera, no espaço e embaixo da
água, porém nada dizia a respeito dos testes realizados no subterrâneo. A consequência foi
que a corrida armamentista entre EUA e URSS continuou. O Limited Test Ban Treaty foi o
primeiro acordo de controle de armamentos feito pelos EUA e URSS (PAINTER, 2001, p. 57;
BRINKLEY, 1992a, p. 262-263).
Mais adiante, durante o governo Johnson, houve a realização de mais dois tratados a
respeito de armas nucleares: o Tratado de Uso Pacífico do Espaço90 (1967) e o Tratado de
Não-Proliferação Nuclear91 (1968).
Embora o presidente Johnson tenha buscado uma relação de détente com a URSS,
através de negociações sobre limitação de armamentos, dois fatos tornaram a tentativa
improdutiva: a Ofensiva do Tet, em fevereiro de 1968, que fragilizou a posição de Johnson
89 “It has often been said that the interminable disarmament initiatives, discussions, and negotiations represented the most reliable barometer of the fundamental Soviet-American relationship; when times were fair, talks on arms control moved ahead, otherwise they were clouded by self-interest and suspicion.” 90 O Tratado de Uso Pacífico do Espaço (Treaty on Outer Space) é o principal instrumento que rege o direito internacional espacial. Entre suas principais normas, o Tratado proíbe que Estados instalem armas nucleares no espaço, além de estabelecer o uso pacífico dos corpos celestes e do espaço. 91 O Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP) tem como objetivo impedir que os países não detentores de armas nucleares possam obtê-las. Para isso, aqueles países. Além disso, o TNP busca promover o uso pacífico da tecnologia nuclear.
60
frente ao público americano, e a invasão soviética da Tchecoslováquia, em agosto. O ataque
soviético ocorreu no mesmo momento em que os EUA e a URSS se preparavam para uma
conferência a respeito da diminuição das armas estratégicas, o que fez com que Johnson
cancelasse o encontro (LAFEBER, 1997, p. 256).
Durante o governo Nixon, o objetivo maior foi estabelecer um tratado sobre a redução
de armas estratégicas (SALT) e que regulasse também os mísseis anti-balísticos. Contudo, no
início de seu governo não houve grande interesse nessas questões. Em 1969, em seu primeiro
ano como presidente, Nixon estava mais preocupado em chegar a uma solução para a Guerra
do Vietnã.
Somente no fim do ano os EUA e a URSS concordaram em começar a discussão sobre
o SALT. Ele deveria começar em 3 de novembro, em Helsinque e Viena. No ano seguinte, em
1970, os EUA não demonstraram grande interesse no SALT, e as conversas não progrediram
(DOBRYNIN, 1995, p. 201-208; KISSINGER, 2000, p. 123).
Em 1971, após dois anos sem progresso significativo, as conversas sobre o SALT
recomeçaram. Nixon tinha ambições de que um bom resultado nesse tema pudesse
incrementar suas chances de reeleição no ano seguinte.
A questão do SALT envolvia dois tipos diferentes de forças estratégicas:
1. Sistemas ofensivos de armas nucleares;
2. Sistemas defensivos de mísseis anti-balísticos.
O impasse ocorreu em relação ao primeiro grupo, que envolvia uma grande variedade
de armas. Outros fatos que dificultavam um consenso nesse assunto eram as diferentes
estruturas de forças nucleares entre os dois países: enquanto a URSS dependia de mísseis
pesados baseados na superfície, os EUA possuíam uma “tríade” composta de mísseis lançados
da terra, do ar e de submarinos (DOBRYNIN, 1995, p. 211-212).
Além disso, vários novos tipos de mísseis estavam sendo desenvolvidos no período.
Uma dessas inovações era o MIRV (multiple independently targetable reentry vehicle). Ele
permitia que um único míssil disparasse várias ogivas, que podiam ser miradas em diferentes
alvos (PAINTER, 2001).
Kissinger explica de forma clara e interessante os impasses nas negociações. Para ele,
o primeiro desafio era definir “igualdade” – que seria usada para estabelecer os parâmetros
61
entre as forças americanas e soviéticas. Isso se tornava difícil pelo fato de que “as forças
nucleares dos dois lados foram desenvolvidas com base em divergentes tecnologia e conceito
de segurança” (KISSINGER, 2000, p.123). Outro desafio era que,
O problema conceitual em qualquer negociação sobre controle de armas é que seu
resultado nada mais é do que uma fotografia instantânea de uma equação estratégica
e tecnológica de rápida evolução. Os dois lados tinham que encontrar um modo de
não apenas contabilizar o equilíbrio existente de forças, mas também manter a
relação acordada durante um período em que a corrida armamentista mudava do
plano quantitativo para o qualitativo (KISSINGER, Ibid, p.124).
Assim, a evolução tecnológica constante dos armamentos militares significava, sem
dúvida, um difícil obstáculo para as negociações, uma vez que a limitação quantitativa que
poderia ser acordada pelos negociadores se tornava obsoleta com os avanços qualitativos
impulsionados pela tecnologia.
Finalmente, após árduas rodadas de negociação, o tratado SALT foi assinado, em maio
de 1972, na conferência de Moscou. Ele envolvia dois acordos: um permanente, que limitava
a defesa com mísseis balísticos a dois silos em cada país; e outro provisório, que congelava o
desenvolvimento de mísseis ofensivos nos níveis existentes (esse acordo tinha o prazo de
cinco anos, de 1972 a 1977) (KISSINGER, 2000, p. 126).
Tabela 1 – Os limites impostos pelo Tratado SALT nas forças estratégicas dos EUA e
URSS.
EUA URSS
Lançadores ICBM 1.000 1.618
Lançadores SLBM 710 740
Total de Lançadores de Mísseis 1.710 2.358
Bombardeiros pesados 525 140
Total de Lançadores Estratégicos 2.235 2.498
Total de Ogivas de Guerra 1.710 2.358
1972
(FONTE: KISSINGER, 2000, p. 128)
Como se pode ver, em termos quantitativos, a URSS obteve uma “vantagem”:
62
permaneceu com uma quantidade maior de mísseis estratégicos. Contudo, os EUA detinham
ampla vantagem qualitativa: “qualquer que fosse a desigualdade numérica em lançadores de
mísseis, ela era largamente compensada pela vantagem americana em ogivas múltiplas e em
bombardeiros pesados” (KISSINGER, 2000, p. 127).
Kissinger repudia as críticas sofridas de opositores internos, de que o governo Nixon
havia permitido a superioridade soviética, e aponta que,
A desigualdade numérica em lançadores de mísseis não tinha sido ‘garantida’ pelos
nossos negociadores no SALT, mas estabelecida unilateralmente pela JCS92 e pelos
secretários da defesa de dois governos dos dois partidos, antes mesmo da concepção
do SALT. Colocando de forma mais simples, os EUA pararam de fabricar mísseis
adicionais porque nossos mais graduados funcionários da defesa estavam convictos
de que a segurança do país deles não mais precisava. (KISSINGER, 2000, p. 126-
127)
Kissinger refere-se ao fato de que foram os próprios órgãos burocráticos dos EUA que
decidiram limitar o número de ogivas, pois perceberam que o avanço tecnológico de seu
arsenal permitia tal medida.
Ambrose aponta para o fato de que o SALT foi o primeiro acordo sobre o controle de
armamentos feito pelos EUA desde o começo da Guerra Fria. Contudo, uma vez que o SALT
não incluía os MIRV em sua discussão, o autor conclui que o tratado possuía falhas graves,
embora tivesse grande importância simbólica (AMBROSE, 1993, p. 231).
Com a conclusão do SALT, a relação entre EUA e URSS teve um grande avanço. A
conferência de Moscou, onde foi assinado o SALT, foi considerada um sucesso por ambos os
lados. Para os soviéticos, a convenção mostrava que a coexistência pacífica parecia ser o
único caminho entre os dois países. De modo semelhante, os EUA garantiram, com o sucesso
das negociações, o fortalecimento da détente. Para Nixon, particularmente, o SALT era um
ganho político que poderia ajudá-lo em sua reeleição.
3.4.3 A abertura à China
92 Junta de Chefes de Estado-Maior (JCS)
63
A década de 1970 representou uma série de dificuldades aos Estados Unidos: sua
posição relativa no sistema internacional se enfraquecera, a Guerra do Vietnã continuava sem
um fim claro, e estava cada vez mais difícil conter a União Soviética. Foi a partir dessa lógica
que os EUA decidiram estender relações com a China.
Acreditava-se que uma aproximação com a China abalaria os soviéticos, auxiliaria no
fim da Guerra do Vietnã e permitiria um equilíbrio estável na ordem internacional.
Como visto anteriormente, a iniciativa americana em relação à RPC tinha como
objetivo criar um “triângulo estratégico”93, em que as três partes – EUA, URSS e RPC –
estariam envolvidas nas principais questões internacionais.
É interessante observar que Nixon considerava uma reaproximação com a China antes
mesmo da presidência. Durante a década de 1960 ele havia viajado à Ásia e estudado a China.
Os atritos sino-soviéticos fortaleceram sua percepção de que o bloco comunista não era mais
unificado como antes (MACMILLAN, 2008, p. 108). Já em 1967, em uma edição da revista
Foreign Affairs, Nixon escrevera que os EUA deveriam se aproximar da China (DALLEK,
2007).
Os atritos entre soviéticos e chineses tiveram início na década de 1960. Entre 1961 a
1971, o número de tropas soviéticas na fronteira entre China e URSS mais do que triplicou,
assim como houve um aumento significativo de aeronaves e mísseis voltados para a China.
Em outubro de 1964 e junho de 1967, a RPC obteve sua bomba atômica e sua bomba de
hidrogênio, respectivamente. Isso intensificou a pressão militar sobre a URSS, que precisava,
a partir de então, focar suas defesas em relação à capacidade nuclear chinesa, assim como à
ocidental (PAINTER, 2001, p. 61).
Em 1969, uma série de confrontos entre a China e a URSS se deu ao longo do rio
Ussuri na Sibéria. Esse fato não passou despercebido pelos EUA, que buscaram impedir uma
guerra entre as duas potências comunistas.
Como aponta Margaret MacMillan,
A relação entre as duas grandes potências comunistas nunca havia sido uma relação
fácil, em parte pelas razões cultural e histórica, e em parte porque os comunistas
chineses representavam um desafio à dominação soviética do movimento comunista
93 Ver capítulo 3, seção 3.3.
64
mundial. No momento em que Nixon se tornou presidente, Mao94, e o que havia
sobrado do establishment de política externa em Pequim, estavam cada vez mais
começando a enxergar a União Soviética como uma ameaça mais imediata que os
Estados Unidos. A invasão da Tchecoslováquia e a Doutrina Brejnev os alarmaram
profundamente95 (MACMILLAN, 2008, p. 116).
Segundo Kissinger, o que possibilitou uma aproximação entre os EUA e a RPC, foi a
invasão soviética da Tchecoslováquia, que causou pânico entre os chineses, que se viam
ameaçados pela Doutrina Brejnev.
Portanto, tanto os EUA quanto a RPC perceberam que uma reaproximação entre eles
seria vantajosa para ambos. Enquanto os americanos entendiam que um maior envolvimento
com a China poderia melhorar a posição do país na Guerra do Vietnã e em relação com os
soviéticos, os chineses também tinham inúmeras razões para desejar uma melhor relação com
os EUA. A RPC entendia que diminuir tensões com os EUA os permitiria receber ajuda
econômica, importações americanas e tecnologia – essencial para o crescimento econômico.
Ademais, a China também buscava uma confirmação de seu status como potência mundial
(HERRING, 2008, p. 775).
O problema principal era encontrar meios de buscar tal reaproximação, visto que os
dois países não mantinham relações diplomáticas desde 1949, e consideravam os nacionalistas
chineses de Taiwan como a “verdadeira” China. Como aponta Kissinger,
Por vinte anos, havia existido um virtual isolamento e hostilidade ideológica,
pontuado pela guerra na Coreia na qual soldados americanos e chineses se
combateram ferozmente. Conversas bilaterais tinham sido iniciadas entre os oficias
consulares dos Estados Unidos e da República Popular da China em 1954, em
Genebra; essas foram elevadas para o nível diplomático em 1955 e mais tarde
movidas para Varsóvia. (...) Isso era tudo96 (KISSINGER, 1979, p. 191-192).
94 Mao Zedong, líder da RPC entre 1943 a 1976. 95 “The relationship between the two great communist powers had never been an easy one, partly for cultural and historical reasons, and partly because the Chinese communists represented a challenge to Soviet domination of the world communist movement. By the time Nixon became president, Mao, and what was left of the foreign policy establishment in Beijing, were increasingly coming to see the Soviet Union as a more immediate threat than the United States. The invasion of Czechoslovakia and the Brezhnev Doctrine deeply alarmed them.” 96 “For twenty years, there had been virtual isolation and ideological hostility, punctuated by the war in Korea in which American and Chinese soldiers fought ferociously against each other. Bilateral talks had been begun between consular officials of the United States and the People’s Republic of China in 1954 in Geneva; these were raised to the ambassadorial level in 1955 and later moved to Warsaw. On September 10, 1955, an agreement was reached on repatriation of some nationals. And that was all.”
65
Uma das primeiras ações de Nixon para alterar essa situação foi direcionar o Conselho
de Segurança Nacional a iniciar um estudo sobre as políticas americanas em relação à China e
possíveis abordagens alternativas. O Memorando 14 do CSN, produto desses estudos,
afirmava que era de interesse dos EUA melhorar sua relação com a RPC (MACMILLAN,
2008, p. 118-119).
Nixon buscou também sinalizar o interesse dos EUA em se aproximar com os
chineses. Entre os gestos americanos, é possível citar:
O término da patrulha de navios da Marinha americana no Estreito de Taiwan,
ordenado por Nixon ainda em seu primeiro mês de governo;
O fim das patrulhas regulares exercidas pela 7ª Frota da Marinha no Estreito de
Taiwan;
O discurso público feito pelo Secretário de Estado, William Rogers, no qual
dizia que os EUA tomariam a iniciativa em restabelecer relações normais com
a China;
O relaxamento das restrições comerciais entre China e EUA;
O uso do termo “República Popular da China” por Nixon, feito em público, em
outubro de 1970. Nixon foi o primeiro presidente americano a usar essa
expressão – o que significava uma ação simbólica e que não passou
despercebida pelos chineses.
A remoção das restrições especiais nos passaportes americanos para viajar à
China, em março de 1971.
Essas medidas reduziram as tensões existentes entre os EUA e a RPC.
Ademais, Nixon buscou o apoio de outros países, como a Romênia, o Camboja e a
França, para que servissem de mediadores entre os EUA e a China.
Mas foi apenas durante sua viagem ao Paquistão, em 1969, que Nixon obteve sucesso.
O ditador paquistanês, general Yahya Khan97, mantinha relações amigáveis com a RPC, e
serviu de ponte para a reaproximação dos EUA com a RPC. Através de um pedido de Nixon,
97 Yahya Khan, terceiro presidente do Paquistão, entre 1969-1971.
66
Yahya Khan contatou os líderes chineses a respeito do interesse americano em estreitar
relações.
Outro evento marcante que contribuiu para a aproximação sino-americana foi o que
ficou conhecido como a “diplomacia do ping-pong” (ping-pong diplomacy). Esse fato teve
origem quando,
O time de tênis de mesa americano estava competindo no Japão no início de 1971. A
inadvertência às vezes possui um papel vital na diplomacia. Quando um jogador
americano, em iniciativa própria, fez um gesto amigável a um participante chinês,
Pequim erroneamente percebeu tal ato como um sinal oficial e respondeu
convidando o time americano à China. A visita atraiu uma horda de jornalistas e a
atenção mundial (...). O primeiro ministro Zhou En-lai disse ao time americano que
eles haviam “aberto as portas para os contatos amigáveis.” (...). A diplomacia do
ping-pong abriu caminho para visitas de estudantes, eruditos, e repórteres. Nixon
aboliu um embargo comercial de longa data sobre a China. Zhou deu continuidade
ao convidar oficiais de alto nível dos EUA para visitar a China para discussões
abertas98(HERRING, 2008, p. 777).
A visita do time de tênis de mesa dos EUA ocorreu entre os dias dez e 17 de abril de
1971, e eles foram os primeiros representantes oficiais americanos a visitar a China desde
1949. A “diplomacia do ping-pong” significou um grande avanço nas relações sino-
americanas, e facilitou a aproximação entre os dois países.
Em dois de junho de 1971, os EUA receberam uma mensagem do embaixador
paquistanês, na qual dizia que o primeiro ministro chinês Zhou En-lai convidava Henry
Kissinger a visitar seu país e preparar a futura viagem do presidente Nixon (MACMILLAN,
2008, p. 121).
Um mês depois, Nixon já anunciava que visitaria a China a convite de seus líderes.
98 “The U.S. table tennis team was competing in Japan in early 1971. Inadvertence sometimes plays a vital role in diplomacy. When an American player on his own initiative made friendly gestures toward a Chinese participant, Beijing mistakenly perceived another official signal and responded by inviting the U.S. team to China. The visit drew a horde of journalists and worldwide attention (…). Prime Minister Zhou En-lai told the U.S. team that they had “opened the doors to friendly contacts.” (…). Ping-Pong diplomacy opened the way to visits by students, scholars, and reporters. Nixon scrapped a long-standing trade embargo on China. Zhou followed by inviting a top-level U.S. official to visit for open-ended discussions.”
67
A viagem de Nixon à China foi um grande sucesso. Acordos comerciais e de amizade
foram assinados, houve troca de diplomatas, e os obstáculos para a entrada da RPC na ONU
foram removidos99.
Para MacMillan, “a abertura com a China transformou a Guerra Fria de bipolar para
algo muito mais complexo e teve um grande papel em trazer a China de volta para a
comunidade das nações100” (MACMILLAN, 2008, p. 122).
O efeito dessa abertura com a China foi a emergência de uma relação estratégica
triangular, que pegou a URSS de surpresa e fez com que os soviéticos fossem obrigados a
adotar um comportamento mais amistoso e de acordo com os interesses dos EUA. Caso
contrário, a URSS corria o perigo de se ver isolada, aproximando a China e os EUA de uma
forma indesejada. Assim, o principal trunfo da aproximação norte-americana com a RPC foi a
de moldar o comportamento soviético. Ademais, possibilitou a reaproximação diplomática
entre China e EUA, durante o governo de Carter.
3.5 O escândalo Watergate, a renúncia, e o enfraquecimento fim da détente.
O governo Nixon foi, desde seu início, excessivamente centralizador e sigiloso. O
presidente enxergava a mídia e a opinião pública como inimigos que buscavam deslegitimá-lo
perante a sociedade. Além disso, considerava o Congresso Nacional como um empecilho a
seus grandes planos de política externa. Para ele, o Legislativo possuía visões de curto prazo e
não deveria se intrometer no campo das relações exteriores. O presidente não confiava no
Congresso, e isso explica sua obsessão em manter segredos e em evitar vazamentos
(DOBRYNIN, 1995, p. 198-199; SANDBROOK, 2008, p. 87; SURI, 2008, p. 70).
Nixon também não acreditava que o Departamento de Estado devesse exercer um
papel relevante em seu governo. Segundo ele, cabia ao presidente traçar a política externa do
país, sendo que o Departamento de Estado deveria limitar-se em conduzir a parte burocrática. 99 Pouco tempo depois, a ONU admitiu a RPC como membro, assim como concedeu a ela assento permanente em seu Conselho de Segurança, enquanto a República da China (Taiwan) foi expulsa do órgão mundial (BRINKLEY, 1992a, p. 387; PAINTER, 2001, p. 73). 100 “the opening to China transformed the Cold War from a bipolar one into something much more complex and did much to bring China back into the community of nations.”
68
Como forma de retirar a influência desse órgão, Nixon nomeou William Rogers como seu
secretário. Rogers, um antigo amigo do presidente, foi escolhido exatamente pelo fato de não
deter grandes conhecimentos sobre o assunto. Era a primeira vez na história dos EUA em que
um secretário de Estado era nomeado pela sua ignorância em política externa (LAFEBER,
1997, p. 260).
Dessa forma, Nixon conseguiu centralizar o comando da política externa, dividindo-o
apenas com Kissinger, no que ficou conhecido como a “presidência imperial”. A maneira pela
qual o presidente exerceu seu cargo, centralizando decisões ao extremo e buscando de todas
as formas possíveis alcançar seus objetivos, acabaria por levá-lo ao seu ocaso (GADDIS,
1982, p. 275).
Embora Nixon tenha sido o primeiro presidente, desde 1853, a tomar posse sem
maioria em ambas as casas do Congresso101 – o que significava uma grande desvantagem
política –, ele não mostrava interesse algum em cooperar com o partido de oposição
(SANDBROOK 2008, p. 86). No âmbito doméstico, o presidente costumava vetar legislações
que o desagradavam e sequestrar fundos para diversos programas. Enquanto isso, no campo
das relações exteriores, Nixon costumava tomar decisões à revelia do Legislativo – como nas
invasões do Laos e do Camboja, realizadas secretamente, bem como em sua viagem à China,
além dos foros de negociação criados com o Vietnã do Norte, nas negociações de paz, e com a
URSS, nas negociações do SALT (AMBROSE, 1993, p. 242; DOBRYNIN, 1995, p. 200-
201;).
Após tomar posse, em 1969, em uma vitória acirrada, Nixon estava ciente de que
precisava consolidar um amplo apoio doméstico caso quisesse se reeleger, em 1972. Uma vez
que ele havia vencido a disputa presidencial por meros 0.7%, e seu índice de aprovação no
começo de governo era de apenas 59%, Nixon tinha como seu objetivo superior a reeleição.
Até mesmo os grandes momentos de sua presidência, como a viagem à China e as
negociações com a União Soviética, foram realizadas de forma a atrair a atenção do público
norte-americano, e, com isso, aumentar sua popularidade.
101 O Partido Republicano possuía 187 assentos na Câmara dos Deputados contra 248 dos Democratas, enquanto no Senado os Republicanos tinham 42 lugares em oposição aos 58 do Partido Democrata.
69
Durante a eleição presidencial de novembro de 1972, Nixon enfrentou o democrata
George McGovern102. Embora Nixon tenha vencido facilmente, com mais de 60% dos votos,
sua equipe de campanha usou de todos os meios – inclusive ilegais – para garantir a reeleição.
O cúmulo dessas ações ocorreu quando um grupo de ex-agentes da CIA invadiu o
quartel-general do Partido Democrata no hotel Watergate, em Washington D.C., para instalar
escutas telefônicas e fotografar documentos, com a finalidade de garantir a reeleição de
Nixon. Durante uma segunda invasão, na madrugada de 17 de junho de 1972, eles foram
detidos. O que parecia um caso sem importância foi tomando grandes proporções quando as
investigações revelaram o envolvimento dos altos escalões do governo Nixon. Esse caso
passou para a história como o escândalo Watergate, e culminaria com a renúncia do
presidente – a única em toda a história dos EUA.
O escândalo que colocou um fim abrupto ao governo Nixon parecia, a princípio, uma
tentativa de furto sem grande relevância. Mas desde o início de seu segundo mandato, o caso
Watergate se tornou presente nos assuntos políticos do país, até se transformar na grande crise
que impossibilitou a atuação de Nixon no âmbito internacional e o degradou na esfera
doméstica.
Em 1973, um comitê do Senado passou a investigar o caso Watergate, e ficou claro
que aquilo não se tratava de uma mera “tentativa de assalto”, mas fazia parte de um esquema
muito maior, envolvendo várias figuras importantes no governo. Conforme Herring,
O escândalo que fez o governo se ajoelhar estava se desdobrando mesmo quando
Nixon celebrava sua inauguração. O que oficiais de alto nível inicialmente
rejeitaram como uma “tentativa de roubo de terceira-classe” – uma invasão em
junho de 1972 do Comitê Nacional Democrata no elegante hotel Watergate e seu
complexo de apartamento, em Washington – se transformou, no verão de 1973, em
uma exposição total de abuso de poder presidencial. Os ladrões foram julgados e
condenados em janeiro de 1973, justo quando o governo estava decidindo uma
agenda ambiciosa de segundo mandato. A ligação deles com o comitê de reeleição
do presidente, os esforços em silenciá-los através de pagamentos, e o perjúrio de
testemunhas-chaves foram logo expostos. Por volta de março, o conselheiro da Casa
Branca, John Dean103, avisou sobre um “câncer...próximo à presidência.” Em abril,
102 McGovern era considerado um político radicalmente liberal, o que explica sua derrota expressiva para Nixon, em 1972. 103 John Dean era conselheiro de Nixon, e considerado o principal responsável na tentativa de encobertar o escândalo Watergate.
70
os principais assessores de Nixon, Bob Haldeman104 e John Ehrlichman105 foram
forçados a se demitirem em uma tentativa falha de salvar o presidente. Um comitê
de investigação do Senado e os intrépidos repórteres do Washington Post, Carl
Bernstein e Bob Woodward, apareceram com revelações sensacionais, tais como as
tentativas falhas de encobrimento do governo, escutas telefônicas em jornalistas e
em alguns dos principais conselheiros de Kissinger, pagamento de suborno a
testemunhas, e roubo do escritório do psiquiatra de Daniel Ellsberg106, responsável
por vazar os Documentos do Pentágono. As audiências televisionadas hipnotizaram
o público. As gravações de conversas na Casa Branca ligaram o presidente mais
ainda ao caso Watergate e expôs a nação a uma personalidade muito distinta do que
se espera de um presidente: nervoso, mesquinho, profano, vingativo. No fim de
abril, os índices de aprovação de Nixon ainda beiravam 60%; até agosto, eles
haviam caído rapidamente para 31%. Sua imagem estava irreparavelmente
manchada. Como seus adversários no Congresso se aproximavam de um
impeachment, a maior parte de seu tempo e energia foi devotada à sua sobrevivência
política107 (HERRING, 2008, p. 801-802, tradução minha).
Através das evidências encontradas pelos comitês legislativos e por jornalistas, ficou
claro que o presidente estava envolvido no escândalo, e quando ele se negou a entregar as
fitas que gravavam suas conversas na Casa Branca, parecia não haver mais dúvidas de seu
envolvimento.
104 Harry Robbins "Bob" Haldeman era o chefe de gabinete de Nixon, e foi considerado culpado por seu envolvimento no escândalo Watergate. 105 John Ehrlichman era o conselheiro e assistente presidencial para Assuntos Domésticos de Nixon. Foi considerado envolvido no escândalo Watergate. 106 Ellsberg foi o responsável por vazar os Documentos do Pentágono (Pentagon Papers) – que revelavam a inépcia do governo dos EUA durante a Guerra do Vietnã – para a imprensa. Ao fazer isso, ele atraiu o ódio do presidente Nixon, que buscou incriminá-lo. 107 “The scandal that brought the administration to its knees was unfolding even as Nixon celebrated his inauguration. What top officials initially dismissed as a “third-rate burglary attempt – a June 1972 break-in at Democratic National Committee in Washington’s posh Watergate hotel and apartment complex – grew in the summer of 1973 into a full-fledged exposé of presidential abuse of power. The burglars were tried and convicted in January 1973 just as the administration was setting an ambitious second-term agenda. Their ties to the president’s reelection-committee, efforts to silence them through payoffs, and the perjury of key witnesses were soon exposed. By March, White House counsel John Dean warned of a “cancer…close to the Presidency.” In April, Nixon’s top aides Bob Haldeman and John Erlichman were forced to resign in a failed effort to save the president himself. A Senate investigating committee and intrepid Washington Post reporters Carl Bernstein and Bob Woodward turned up sensational revelations of such thing as the administration’s failed cover-up, wiretapping of journalists and some of Kissinger’s top advisers, payment of hush money to witnesses, and burglary of the office of “Pentagon Papers” leaker Daniel Ellsberg’s psychiatrist. The televised hearings mesmerized the public. Tape recordings of White House conversations tied the president more closely to the Watergate affair and exposed the nation to a distinctly unpresidential persona: nervous, petty, profane, vindictive. As late as April, Nixon’s approval ratings were still around 60 percent; by August, they had plummeted to 31 percent. His image was irreparably tarnished. As his congressional foes closed in for impeachment, most of his time and energy was devoted to his political survival.”
71
Em 24 de julho de 1973, a Suprema Corte ordenou que Nixon entregasse as fitas e os
documentos, durante o caso EUA versus Nixon. As fitas apresentadas por Nixon estavam
incompletas e adulteradas, o que resultou na perda do apoio público e partidário. De forma
semelhante, o presidente rejeitou as intimações do Comitê do Senado e do Comitê Judiciário
da Câmara (COMMAGER e NEVINS, 1986, p. 638).
Para comprometer ainda mais a posição de Nixon, o vice-presidente, Spiro Agnew,
estava também sob investigações, suspeito de aceitar propinas quando era governador de
Maryland. Ele acabou renunciando ao cargo, e serviu para denegrir ainda mais a posição de
Nixon.
Em 31 de julho, os congressistas apresentaram moção formal para impedir
(impeachment) o presidente por “altos crimes e contravenções”. Nixon era acusado de estar
envolvido no escândalo Watergate, de ordenar o bombardeamento secreto do Camboja, de
sonegar impostos, de sequestrar verbas do Congresso, e de abuso do poder.
Enquanto isso, os índices de aprovação de Nixon decresciam rapidamente. Em julho,
eram de 39%, e após outubro – quando Nixon demitiu o procurador Archibald Cox108 – eram
de 27% (SANDBROOK, 2008, p. 96).
Outra questão diz respeito à obsessão de Nixon em evitar “vazamentos” de seu
governo, usando de meios ilegais para impedir que informações sigilosas fossem descobertas.
Com isso, o governo utilizou de suas agências de inteligência e de segurança nacional para
fins políticos. Como apontam Commager e Nevins, essas agências,
Invadiam arquivos particulares, punham escutas em telefones de repórteres e
arranjavam ataques contra manifestantes contra a guerra, enquanto sua parte
executiva efetuava ampla campanha de espionagem política, implantava agentes
provocateurs para incitar os radicais a adotarem atividades ilegais, simulava provas
contra oponentes políticos e usava o Serviço de Receita Interna para molestar
políticos (COMMAGER e NEVINS, 1986, p. 636).
O presidente chegou ao ponto de criar os “encanadores” da Casa Branca (White House
“plumbers”), cuja missão era impedir que a mídia tivesse acesso às informações confidenciais
do governo (ou seja, buscavam impedir os “vazamentos” da Casa Branca).
108 Archibald Cox foi o advogado escolhido para ser o promotor especial do escândalo Watergate. Ele foi nomeado, em maio de 1973, pelo Departamento de Justiça, com a função de investigar o escândalo. Contudo, ao exigir de Nixon as gravações feitas na Casa Branca, o presidente demitiu-o, ampliando, com isso, a crise política.
72
A onda de escândalos que atingiu a presidência em seu segundo mandato de governo
resultou no enfraquecimento progressivo do presidente e na incapacidade de governar
efetivamente. Uma vez que a intensidade dos escândalos aumentavam, o presidente passou a
focar todos os seus esforços na tentativa de impedir que Watergate corroesse seu governo –
algo que ele não conseguiu.
Dessa forma, como aponta Dominic Sandbrook, o caso Watergate exerceu um impacto
negativo em três áreas do governo Nixon: na instituição da presidência, no colapso do Vietnã
do Sul e no declínio da détente (SANDBROOK, 2008, p. 98).
Em relação à figura do presidente, os escândalos abalaram a confiança do público em
relação ao seu líder, e levaram à sua renúncia.
No que diz respeito ao segundo item, a Guerra do Vietnã e a derrota de Saigon, o
escândalo Watergate afetou de forma geral a condução efetiva da política externa do governo.
Especificamente na questão do Vietnã, o enfraquecimento de Nixon teve o efeito de fortalecer
a posição do Congresso, que visava acima de tudo extrair os EUA da guerra.
No âmbito geral, o Watergate fez com que Nixon perdesse o controle da política
externa, fazendo de Henry Kissinger o ator principal. Esse foi talvez um momento singular na
história norte-americana, em que um assessor presidencial obteve domínio total sobre a
formulação das relações exteriores do país, sem a observância do papel do presidente.
Contudo, a crise doméstica atrapalhou a posição externa do país, como pode ser visto
nas negociações de armas estratégicas com Moscou – que falhou em chegar ao SALT II –, e
em outras crises internacionais, como o conflito árabe-israelense. Conforme Dobrynin, “ao
enfraquecer Nixon, Watergate fortaleceu as forces contrárias à détente. Elas tornaram
virtualmente impossível para Nixon e Kissinger conduzir negociações sérias com Moscou
sobre um novo acordo SALT” (DOBRYNIN, 1995, p. 311).
Por último, deve-se dizer que o caso Watergate foi responsável por enfraquecer a
détente, que estava intimamente associada com a pessoa de Richard Nixon. No momento em
que Nixon ficou associado a casos de abuso de poder e de corrupção, a détente foi
sucessivamente atacada como uma política imoral.
É importante lembrar que a détente nunca fora capaz de arregimentar consenso
interno, sendo acusada de ir contra a tradição dos EUA. Mas embora ela fosse atacada tanto
por conservadores quanto por liberais, Nixon e Kissinger estavam prontos a defendê-la,
73
julgando-a necessária para o país. Contudo, no momento de fragilidade do governo, a détente
ficou sob pesados ataques (PECEQUILO, 2003, p. 196). Assim, “como o ‘realismo’ amoral
de Richard Nixon e Henry Kissinger demonstrou, as políticas não conseguem sobreviver
indefinitivamente sem alguma base nos princípios mais queridos de uma nação109”
(HERRING, 2008, p. 6).
Para Sandbrook, Nixon e Kissinger foram “maus vendedores”, isto é, não
conseguiram “vender” a détente para o público americano:
O ponto fraco óbvio de Nixon e Kissinger em termos de política externa e questões
domésticas, de fato, não era que eles estavam muito preocupados com a arte de
vender a détente, mas que eles simplesmente não eram bons nisso. (...) no caso da
détente, o apoio público se mostrou efêmero, e em 1976 Kissinger estava sendo
criticado de todos os lados. Claramente Watergate foi um fator crucial aqui, mas é
um indício de culpa, para Nixon e Kissinger, de que a détente não havia se
enraizado. Uma abordagem mais aberta em política externa poderia ter ganho um
apoio público mais amplo e duradouro, mas então isso teria requerido arquitetos
completamente diferentes. (...) isso foi parcialmente culpa deles; e na análise final,
foi sua maior falha110 (SANDBROOK, 2008, p. 100-101, tradução minha).
Em 8 de agosto de 1974, o presidente Nixon fez sua última aparição em TV nacional,
momento no qual anunciou sua renúncia. Em seu lugar governaria o vice-presidente recém-
escolhido por Nixon, Gerald Ford111.
Com o fim do governo Nixon, a détente chegava também ao seu ocaso. Atacada por
liberais como imoral e considerada por conservadores como uma forma de permitir a ascensão
comunista, a détente não teria mais o apoio do presidente para defendê-la – e, de fato, a saída
de Nixon impulsionaria seu fim.
Sozinho no papel de defensor das políticas do governo Nixon, Kissinger não foi capaz
de combater a pressão crescente contra a détente. Embora um grande intelectual e estrategista,
109 “As Richard Nixon and Henry Kissinger’s amoral ‘realism’ demonstrated, policies can not survive indefinitely without some foundation in the nation’s cherished principles.” 110 “The obvious weakness of Nixon and Kissinger in terms of foreign policy and domestic affairs, in fact, was not that they were too preoccupied with salesmanship, but that they were simply not very good at it. (…) in the case of détente, public support proved ephemeral, and by 1976 Kissinger was being assailed on all sides. Clearly Watergate was a crucial factor here, but it is an indictment of Nixon and Kissinger that détente had put down such shallow roots. A more open approach to foreign policy might have won broader and more enduring popular support, but then that would have required completely different architects. (…) this was partly their own fault; and in the final analysis, it was their greatest failing.” 111 Ford era o líder da minoria Republicana na Câmara dos Deputados, antes de se tornar o vice-presidente de Nixon, em 1973. Ford foi presidente entre 1974 e 1977.
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ele não estava acostumado com os debates políticos e aparições públicas. Ademais, a falta de
consenso era muito forte, o que contribuiu para o “esquecimento” da détente.
Embora Gerald Ford, durante seu governo, tenha tentado dar continuidade às políticas
de seu antecessor, o seu apoio pela détente foi logo atacado por ambos os partidos. Durante a
eleição presidencial de 1976, o candidato democrata Jimmy Carter considerou a détente uma
imoralidade, enquanto Ronald Reagan, disputando com Ford a nomeação pelo Partido
Republicano, culpava a détente pela perda da supremacia militar norte-americana
(HERRING, 2008, p. 828-829).
Por fim, pode-se concluir que a paranoia de Nixon por segredos e informações
sigilosas, além da centralização excessiva de seu governo, contribuíram para a dissolução da
détente e para a renúncia do presidente. O uso de todos os meios possíveis para alcançar seus
objetivos produziu o resultado que ele tanto buscou evitar.
Os métodos que eles usaram para lidar com o crescente dissenso doméstico
passavam por cima da Constituição e conduziu diretamente em Watergate e no fim
da presidência de Nixon. Seus frequentes comportamentos bizarros, produto de
inseguranças profundas e revelado ao mundo nas gravações de Nixon, às vezes
levantou sérias questões sobre a capacidade deles em exercer tais funções. Por fim,
eles produziram o próprio resultado que buscaram evitar, desilusão popular maciça
em relação ao envolvimento global 112 (HERRING, 2008, p. 809, tradução minha).
Assim, em um breve período de tempo – menos de uma década –, a détente nasceu,
floresceu e se esvaiu. Fortemente associada com o governo Nixon, ela não durou muito tempo
após a saída de seu principal representante. Sem conseguir se arraigar nos valores americanos
de política externa, a tentativa de uma vertente fortemente realista nas relações internacionais
dos EUA não teve êxito, e chegou ao fim.
112 “The methods they used to deal with rising domestic dissent trampled on the Constitution and led directly to Watergate and the demise of the Nixon presidency. Their often bizarre behavior, the product of profound insecurities and revealed to the world in the Nixon tapes, at times raised serious questions about their fitness for office. Ultimately, they produced the very result they sought to avoid, massive popular disillusionment with global involvement and a marked turning inward. This, rather than a generation of peace, was their principal legacy”.
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CONCLUSÃO
O governo Nixon representou um período de aproximadamente cinco anos (1969-
1974) nos quais os EUA estiveram sob diversas pressões – internas e externas. No âmbito
doméstico, o país vivia um período de constantes manifestações de sua sociedade, seja na
busca de reivindicações sociais, seja na tentativa de retirar seu país da atuação desastrosa no
exterior (como no Vietnã).
Se no plano político os EUA pareciam estar sofrendo fortes ebulições, a sua situação
econômica, por sua vez, estava se esfriando. Em comparação com sua situação há vinte anos
atrás, os EUA nos anos 1970 tinham sofrido um grande declínio. Não mais detinham metade
de toda a produção mundial, nem exauriam de uma economia vigorosa e pujante. Enquanto
isso, outros atores, como a Europa e o Japão, aumentaram significativamente sua participação
no comércio mundial.
Diante dessa conjuntura desfavorável, Nixon se viu obrigado a atuar. Na política,
procurou ignorar a oposição, o Legislativo, a mídia e a sociedade. Acreditava que esses
setores enxergavam somente um pedaço da complexa realidade em que o país vivia, e que
cabia ao presidente tomar as decisões, fato pelo qual fora eleito. Isso criou mal-estar e
desentendimentos, e Nixon acabou sendo taxado como “presidente imperial”. Ao mesmo
tempo, a obsessão de Nixon em centralizar decisões e vencer seus adversários acabou gerando
a crise do Watergate, responsável pela sua renúncia e o fim de seu governo.
No que diz respeito à situação econômica, o presidente declarou a Doutrina Nixon, na
qual os EUA reduziriam o escopo de seus compromissos externos, uma vez que não detinham
mais os mesmos recursos de antes.
Ademais, Nixon retirou os EUA do Vietnã, embora tal medida não tenha sido nem
honrosa, nem pacífica, como queria.
Quanto à situação externa, o governo Nixon viu ruir diante de si os pilares construídos
no início do pós-II Guerra, pelo ex-presidente Truman, que deveriam auxiliar a posição de
liderança dos EUA na ordem internacional pós-II Guerra. A URSS avançara a sua capacidade
militar, alcançando os EUA, e a ascensão de diversos novos estados no sistema internacional
pareciam colocar a liderança norte-americana em xeque – ainda mais quando os líderes
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americanos tiveram a impressão de que o Terceiro Mundo era influenciado pela URSS.
Para enfrentar os desafios de uma nova época, o governo Nixon teve que reinventar a
maneira pela qual os EUA atuavam no mundo. A política de contenção foi adaptada para
funcionar em uma nova conjuntura, na qual os EUA não detinham as mesmas capacidades
como tivera na sua fase áurea, nos anos 1940-1950. A resposta criada pelo presidente e Henry
Kissinger foi a détente, que significava a tentativa de conter os soviéticos por outros meios,
sendo estes as negociações pacíficas e o diálogo. Particularmente, havia a necessidade por
parte dos EUA em mostrar a détente como algo em que a URSS deveria enxergar com apreço,
como sendo de seu interesse. Se ambos as superpotências tratassem a détente como uma
relação especial e importante a aos dois, então, segundo os líderes americanos, a URSS agiria
de uma forma aceitável aos interesses dos EUA.
O que se buscou com a détente, portanto, foi influenciar as atitudes soviéticas
conforme desejado pelos EUA.
Mas, obviamente, tal situação não ocorreria simplesmente pelo fato de que os EUA a
desejavam. Foi necessário repensar e reformular o pensamento de política externa do país.
Nesse aspecto, a influência de Henry Kissinger foi significativa. O “aprofundamento
filosófico” da política externa norte-americana deu-se com base em um pensamento realista
das relações internacionais. O país passou a agir de forma mais atenta aos seus interesses no
mundo e à sua capacidade de atingir tais interesses.
Com isso, Nixon e Kissinger obtiveram as respostas para implementar a détente.
Primeiramente, os EUA passaram a negociar com a URSS de forma integrada,
interligando (linkage) os diversos temas da pauta de negociação. Desse modo, deixaram claro
que, caso os soviéticos atuassem contra os interesses norte-americanos em um foro, os EUA
fariam o mesmo em outro. Esse instrumento de integração de políticas tinha o intuito de
influenciar a URSS a se comportar de forma mais amistosa, uma vez que isso traria vantagens
a ambos.
Os EUA também se aproveitaram do conflito sino-soviético para estreitar relações
com a República Popular da China. A finalidade dessa iniciativa foi criar um triângulo
estratégico, de forma a introduzir a China nas questões de relevo internacional. Ao se
aproximar da RPC, Os EUA conseguiram moldar o comportamento soviético para um de
menos hostilidade, uma vez que, caso a URSS se mostrasse agressiva em relação à China,
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corria o risco de se ver isolada contra dois gigantes: EUA e PRC.
Ao adaptar o pensamento de política externa para um mais realista, atento aos
interesses nacionais, e buscando uma nova forma de relação com os soviéticos, o governo
Nixon enfrentou diversas críticas. Tanto conservadores como liberais se opuseram à détente,
os primeiros denunciando uma atitude covarde de Nixon, e os últimos taxando a détente de
imoral. De fato, a nova postura realista do governo Nixon batia de frente com a tradição de
política externa dos EUA, sempre pautada em valores e ideais. Ao ignorar essa situação,
Nixon e Kissinger criaram muitos inimigos no governo.
Além disso, a forma pela qual Nixon governava – muitas vezes escondendo fatos do
Congresso e da população – gerou inimizades e desconfiança. Esse fator é importante para
explicar sua queda, pois com a descoberta do escândalo de Watergate, seus opositores
políticos, que eram muitos, não pouparam esforços em retirá-lo do poder.
Assim, ainda no meio de seu segundo mandato, Richard Nixon foi obrigado a
renunciar ao cargo, o que causou grande impacto doméstico, e foi responsável por enfraquecer
a détente. Vista como imoral e contrária às tradições dos EUA, a détente sofreu outro duro
golpe quando ficou associada à Nixon, sinônimo de corrupção e virulência em Washington.
Portanto, não é difícil perceber o motivo pelo qual a détente se esvaiu logo após a
queda de Nixon. O próximo presidente, Gerald Ford, continuou a utilizá-la, mas, durante a
disputa eleitoral com Jimmy Carter, sofreu duras críticas. A détente acabou extinta, como
política, já no governo Carter, e foi esquecida por completo a partir de então.
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