a politica externa durante o regime militar

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A política externa durante o regime militar por Fernando de Mello Barreto em 14/04/2014 Cinquenta anos após o seu início e 29 anos depois de seu fim, quão importante é para os dias de hoje saber como a política externa brasileira foi conduzida durante o regime militar? As ações realizadas na época ainda são válidas? O artigo não tem a intenção de responder plenamente a essas perguntas, mas traz algumas reflexões que podem ser úteis para elucidá-las. As ações diplomáticas daquela época não foram uniformes, apesar de algumas características comuns constantes. Fatores internos e externos acarretaram mudanças nas posições internacionais brasileiras entre 1964 e 1985. Portanto, os cinco presidentes do regime militar levaram a cabo políticas externas com algumas diferenças marcantes entre elas, especialmente nos primeiros anos e na segunda metade da década de 1970. Algumas iniciativas do regime militar ainda são eficazes, entre elas a usina hidrelétrica de Itaipu e os acordos de Cooperação Amazônica, a

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A política externa durante o regime militar por Fernando de Mello Barreto em 14/04/2014

Cinquenta anos após o seu início e 29 anos depois de seu fim, quão importante é para os dias de hoje saber como a política externa brasileira foi conduzida durante o regime militar? As ações realizadas na época ainda são válidas? O artigo não tem a intenção de responder plenamente a essas perguntas, mas traz algumas reflexões que podem ser úteis para elucidá-las. As ações diplomáticas daquela época não foram uniformes, apesar de algumas características comuns constantes. Fatores internos e externos acarretaram mudanças nas posições internacionais brasileiras entre 1964 e 1985. Portanto, os cinco presidentes do regime militar levaram a cabo políticas externas com algumas diferenças marcantes entre elas, especialmente nos primeiros anos e na segunda metade da década de 1970. Algumas iniciativas do regime militar ainda são eficazes, entre elas a usina hidrelétrica de Itaipu e os acordos de Cooperação Amazônica, a

cooperação nuclear com a Alemanha e as regras favoráveis aos investimentos externos no Brasil. Fifty years after its start and 29 after its end, how important for the present is to have knowledge of how the Brazilian foreign policy was conducted during the military regime? Are the actions carried out during that period still in anyway valid? This article does not intend to fully answer these questions, but wish to bring up some thoughts that may be useful to elucidate them. The diplomatic actions in that time were not uniform, despite some constant common features. Internal and external factors led to changes in the Brazilian international positions between 1964 and 1985. Therefore, the five Presidencies of the military regime carried out foreign policies with some striking differences among them, particularly between the first years and the second half of the 1970’s. A few initiatives from the military regime are still effective, among them the Itaipu and the Amazon Cooperation agreements, the nuclear cooperation with Germany and rules favorable to external investments in Brazil. Passados 50 anos do início do regime militar, que importância terá para o momento atual conhecer a política externa desenvolvida naquele período? Têm ainda alguma validade as ações empreendidas naquele regime de exceção? Não creio que este artigo possa responder plenamente essas perguntas, mas espero possa trazer reflexões de alguma utilidade para sua elucidação. Em livro publicado em 2006, afirmei que, durante o regime militar, “não houve uniformidade nas ações diplomáticas, embora tenham se apresentado algumas características constantes”.[1] A meu ver, fatores internos e externos levaram a modificações significativas no posicionamento internacional brasileiro no período. Embora este tenha se desenvolvido durante a Guerra Fria – basta lembrar que o Muro de Berlim foi erigido pouco depois do início da “revolução” e derrubado pouco depois de seu final – ocorreram diferenças importantes no plano externo, sobretudo a eclosão das duas crises do petróleo. Houve também mudanças internas relevantes, em especial a ascensão ao poder de ala militar considerada mais nacionalista representada pelos generais que sucederam a Castello Branco, a partir de Costa e Silva. Em consequência, os cinco generais que presidiram o país implementaram políticas externas com importantes discrepâncias as quais gradativamente alteraram profundamente a ação internacional durante o regime. Antes de resumir essas diversas diferenças, caberia lembrar que o regime militar se contrapunha à Política Externa Independente (PEI), formulada e desenvolvida nos governos de Jânio Quadros e João Goulart, entre 1961 e 1964. Alguns dos conceitos expostos pelos formuladores e executores da PEI haviam chocado os meios militares. Como expus em outro livro,[2] Afonso Arinos defendeu aproximação entre Leste e Oeste; auxílio dos países desenvolvidos aos subdesenvolvidos; o fim do colonialismo, mediante eleições; autodeterminação da Argélia e de Angola; aplicação a Cuba do respeito à soberania, baseado no princípio da não intervenção; adoção de política antirracismo principalmente aquele na África do Sul; relações com países de ideologias diferentes e favorecimento da discussão da questão da representação chinesa na ONU. Santiago Dantas propôs relações comerciais com todos os países, inclusive os socialistas e apoio à emancipação dos territórios não autônomos. Hermes Lima afirmou que Cuba tinha o direito de se armar como qualquer país que se

sentisse ameaçado e defendeu também seu direito a “levar a cabo sua experiência política”. Na gestão de Evandro Lins e Silva no Itamaraty, o Brasil votou a favor de projeto de resolução no Conselho de Segurança da ONU que convidava Portugal a reconhecer imediatamente o direito de autodeterminação e a independência de seus territórios ultramarinos. Araújo Castro exortou as Potências Nucleares a formalizarem acordos de desarmamento e criticou a estrutura internacional que afirmou não favorecer os países subdesenvolvidos. Contra ideias como estas, o regime militar se oporia, ao menos, nos seus primeiros anos.

A evolução da política externa durante o regime militar Nos primeiros três anos do regime militar, isto é, durante o governo Castello Branco

(entre abril de 1964 e março de 1967), houve política externa autoqualificada de “fidelidade ao Ocidente”. Poderia ser vista como perfeitamente enquadrada em espírito da Guerra Fria de alinhamento contra regimes comunistas.

Essa política atribuiria, sobretudo, prioridade ao relacionamento com os Estados Unidos e de aprovação das políticas daquele país. Um exemplo desta última foi o rompimento de relações com Cuba em 1964, ano em que o Brasil também votaria na OEA a favor de sanções contra Havana. Outro foi o apoio à proposta de Washington de envio de força interamericana para intervir na República Dominicana em 1965. ���O Brasil buscaria, nas palavras do Chanceler Vasco Leitão da Cunha, “melhora das relações com Portugal”, tendo o Brasil, em 1966, votado contra uma resolução da ONU que condenava as políticas portuguesas nas províncias ultramarinas. Aliás, ainda com respeito ao continente africano, o Brasil se absteve na ONU, em 1964, na votação de resolução contra o sistema de apartheid vigente na África do Sul, país que igualmente se opunha ao comunismo. ���Na defesa intransigente dessa política ocidental, o regime manteve cortados os canais diplomáticos com a China continental. No Oriente Médio, reforçou a política de estrita equidistância entre Israel e seus vizinhos árabes. Desenvolvendo política assertiva na América do Sul, Juracy Magalhães assinou com o Paraguay a Ata das Cataratas, documento que previa estudos para o aproveitamento de “recursos hídricos pertencentes em condomínio aos dois países” e dispunha que a “energia elétrica eventualmente produzida” seria dividida entre os dois países. ���Na área econômica, o governo Castello Branco concentrou-se na busca de melhoras de condições para os investimentos estrangeiros. Em matéria de não proliferação nuclear, o Brasil considerou um “ato suicida” a América Latina renunciar às armas nucleares, tendo em conta a posição de Cuba e a crise dos mísseis, e, seguindo essa linha, não assinou inicialmente o Tratado para Proscrição de Armas Nucleares na América Latina. Ainda no plano multilateral, enquanto promovia a cassação de direitos políticos no plano interno, o Brasil não aderiu, em 1966, aos Pactos sobre Direitos Civis e Políticos e sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU.���Uma exceção a essa linha de política ocidental seria a manutenção de relações com a URSS, por razões comerciais. Outra seria a recusa de envio de tropas ao Vietnã apesar dos insistentes pedidos norte-americanos.

No governo Costa e Silva (15 de março de 1967 e 31 de outubro de 1969) houve uma transição entre a política anterior e as próximas, notando-se traços que poderiam ser chamados de mais nacionalistas ou distintos das propostas norte-americanas, ao

mesmo tempo em que havia continuidade de parte das políticas do subperíodo anterior.

As alterações com relação aos Estados Unidos seriam perceptíveis desde o início, quando, ainda na qualidade de presidente “eleito”, Costa e Silva manteve diálogo difícil com o subsecretário de Estado americano Lincoln Gordon durante o qual teria dito a este que não aceitava “ingerências externas”. Problemas com Washington surgiriam já no final de 1967, em razão de entraves para vendas de produtos como café solúvel, têxteis e açúcar. No ano seguinte, o programa de ajuda norte-americana ao Brasil sofreria redução, justificada pelo governo Johnson no aumento de gastos com a guerra no Vietnã. A promulgação do Ato Institucional no 5 naquele ano levou a suspensão de empréstimos estadunidenses.���Algumas iniciativas independentes seriam tomadas, destacando-se, em 1968, a assinatura do Tratado da Bacia do Prata para o desenvolvimento integrado regional; a alteração do limite do mar territorial para doze milhas e os primeiros passos para uma cooperação com a Alemanha Federal. Do ponto de vista de atuação econômica, destacar-se-ia a atuação brasileira na II UNCTAD, quando o chanceler Magalhães Pinto defendeu esquema de preferência comercial para os países em desenvolvimento. ���Por outro lado, permaneceriam em vigor certas linhas de atuação. Em maio de 1968, o Brasil se tornou o único país a votar contra projeto de resolução que condenava todos os regimes coloniais. Ao se dar conta do isolamento, na Assembleia Geral da ONU, alterou seu voto de negativo para abstenção. Mais tarde, juntou-se a Portugal e à África do Sul nos únicos três votos contrários a uma resolução que condenava o governo de Lisboa por não conceder independência a seus territórios. Aliás, com relação ao governo de Pretoria, em que pesasse recomendação internacional em sentido contrário, o Brasil inaugurou voo semanal de Johanesburgo para o Rio de Janeiro. Noutro ato de manutenção de política, no caso a anticomunista, em 1968, o Brasil condenou na ONU a invasão soviética da Checoslováquia, surpreendendo pelo tom da condenação mais forte do que a de vários países ocidentais. ���Em alguns temas multilaterais, a política externa oscilaria entre modificação e continuidade. Assim, em matéria nuclear, o Brasil, de um lado, finalmente assinou, em 1967, o Tratado de Proscrição de Armas Nucleares na América Latina, mas, por outro, opôs-se à assinatura de um Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) nos termos propostos em projeto americano-soviético. Na primeira conferência mundial sobre direitos humanos, realizada em 1968, apesar do aumento da repressão interna, o Brasil aceitou a universalização da questão. No entanto, a diplomacia brasileira foi desautorizada, no ano seguinte, a participar de Convenção Interamericana de Direitos Humanos. ���Essa oscilação ocorreria também quanto ao Oriente Médio. Quando da Guerra dos Seis Dias, o Brasil, que, pouco antes do conflito assinara acordo nuclear com Israel, declarou sua neutralidade no conflito. No Conselho de Segurança não apoiou proposta soviética que condenava Israel e exigia a retirada de áreas ocupadas. Ao longo dos debates, no entanto, a delegação brasileira manifestou sua oposição à conquista de territórios pelo uso da força. Ao final, o Brasil apoiou proposta britânica que determinava o recuo das tropas israelenses.

No Governo Médici (de 31 de outubro de 1969 até 15 de março de 1974), o subperíodo de maior repressão interna, Gibson Barboza avançaria em entendimentos com outros países em desenvolvimento e apontaria modificações no relacionamento com Portugal e suas colônias.

As relações com os Estados Unidos voltariam a ser mais fluidas, uma vez que o Brasil contaria com o apoio do governo de Nixon que coincidiu no poder com o de Médici. Problemas bilaterais, tais como a oposição norte-americana à extensão brasileira de seu mar territorial e sua retirada do Acordo Internacional do Café seriam minimizadas. Assim, ao visitar Washington, Médici propôs esforço para que as políticas fossem convergentes sem pretensão a uma “coincidência em todos os casos”. Afirmou que os Estados Unidos sabiam que sempre encontrariam no Brasil “um aliado leal e competente”. De fato, haveria retorno da cooperação, em áreas como sensoriamento remoto e rastreamento de satélites.

O relacionamento com a Europa apresentaria alguns avanços com relação a iniciativas tomadas no subperíodo anterior, tais como a cooperação técnica com a Alemanha Federal e algumas novas, em especial entendimentos para um acordo comercial com a Comunidade Econômica Europeia e o estabelecimento de relações com a República Democrática Alemã. Este último ato constituiria outra modificação da posição do regime militar de manter relações com países comunistas.

No tocante à África haveria evolução da posição brasileira com relação ao regime segregacionista de Pretória. O Brasil copatrocinou, em 1969, projeto de resolução na ONU que pedia a proibição de entendimentos econômicos e financeiros com aquele país. Contraditoriamente, porém, em 1972, assinou com o governo sul-africano um memorando de entendimento sobre transporte aéreo e outro para evitar a dupla imposição de tributos. Quanto a uma revisão da política em relação a Portugal e suas colônias. Gibson Barboza afirmou a Marcelo Caetano que Portugal deveria conceder autonomia e independência política aos territórios africanos. Opôs-se a que o Brasil vendesse veículos blindados ao governo português porque este poderia utilizá-los para reprimir revoltas nas suas colônias. Em relevante iniciativa, o chanceler brasileiro visitou nove países da África e excluiu expressamente do roteiro territórios portugueses naquele continente. Finalmente, em fevereiro de 1974, o Brasil aderiu ao princípio de autodeterminação dos povos nos últimos territórios africanos ainda sob regime colonial.

No plano regional, Gibson Barboza empreendeu esforços diplomáticos para encontrar entendimento com a Argentina que se opunha ao projeto brasileiro-paraguaio de aproveitamento hídrico do Rio Paraná que alegava ser-lhe prejudicial. Por alguns momentos, bem-sucedido e, não obstante as dificuldades com o governo de Buenos Aires, o Tratado de Itaipu foi assinado em 1973 com governo de Assunção. Ainda no plano regional, destacou-se, de um lado, o imediato reconhecimento pelo Brasil do governo de Pinochet, no Chile, que se impôs por um sangrento golpe militar; e, de outro, a tenacidade com que a diplomacia brasileira buscou aproximação dos países amazônicos. Teria relevo também a iniciativa pioneira de Gibson Barboza de visitar a América Central e o Caribe. Com relação a Cuba, o governo manteve o mesmo tratamento com o regime de Havana iniciado em 1964.

Na Ásia, outra modificação de política externa, em comparação com o início do regime, seria o aumento das exportações para a China continental, em 1973, apesar de o Brasil não manter relações diplomáticas com Pequim. Também no Oriente Médio haveria importante alteração de política. A partir de 1970 cresceram as importações brasileiras de petróleo do Iraque, país para o qual o Brasil passou a exportar serviços, inclusive de exploração daquele produto pela Petrobras. No início de 1973, Gibson Barboza visitou Egito e Israel. Após o conflito de Yom Kipur, o Brasil enviaria duas

missões aos países árabes para garantir suprimento de petróleo e evitar que o país fosse incluído entre os que sofreriam embargo. Como houvesse cobrança de clareza na posição brasileira quanto ao conflito entre Israel e seus vizinhos, no início de 1974, Gibson Barboza declarou, sem mencionar a política de equidistância, que o Brasil favorecia a desocupação de todos os territórios ocupados por Israel.

No subperíodo, mais do que noutros, o Brasil teve que reagir aos efeitos externos diretos de confrontos internos entre as forças armadas repressoras e os setores violentamente opostos ao regime. O Itamaraty teria que tratar de questões tais como sequestros de diplomatas estrangeiros e acusações (fundadas) de tortura no país. Nesse campo dos direitos humanos, apesar de relutância inicial, o Brasil participou da Conferência Interamericana de Direitos Humanos, mas teve participação meramente de “natureza técnica”, deixando de aderir à Convenção respectiva. Em 1970, o governo anunciou que recusaria autorização para o Conselho Interamericano de Direitos Humanos apurar no território brasileiro denúncias de torturas.

Ainda no plano multilateral, a delegação brasileira votou a favor de resolução que reconheceu a RPC como a única representante da China naquela organização; defendeu a extensão brasileira do mar territorial até 200 milhas e vinculou o tema da proteção do meio ambiente ao do desenvolvimento. O embaixador Araújo Castro (que havia sido ministro de Estado durante a PEI) declarou na ONU que o Brasil se recusava a aceitar qualquer espécie de medida internacional que não levasse em conta o “direito de cada país de explorar livremente seus próprios recursos naturais”, que tentasse “impor ou reforçar soluções em questões que fossem da competência soberana de cada país”, ou não levassem em conta “as condições peculiares dos países em desenvolvimento”. Em matéria de desarmamento, afirmou que o TNP constituía o ponto mais alto da política de “congelamento do poder mundial”. Expressou a ideia de que as superpotências se opunham “tenazmente a toda e qualquer tentativa de reforma ou revisão da Carta de São Francisco, a qual procuraria tornar imóvel e estático o quadro político-estratégico de 1945”.

Do ponto de vista de atuação econômica externa, destacou-se a posição brasileira, exposta por Gibson Barboza em 1970, de alterar profundamente as regras do comércio internacional. Defendeu, nesse sentido, o estabelecimento de preferências para os países em desenvolvimento. Dois anos depois, já passava a defender “uma ordem econômica mais equitativa”.

No governo Geisel (entre 1974 e 1979), houve nítida inflexão da política externa, de tal ordem que o ministro do Exército, antes de renunciar, acusou o governo de ter abandonado “os objetivos da Revolução”.

As relações bilaterais com os Estados Unidos sofreriam oscilações fortes em cinco fases distintas: (a) as relações se desenvolveriam de maneira fluida no final do governo Nixon; (b) foram apenas corretas durante o governo de Gerald Ford; (c) passaram a enfrentar dificuldades com o advento do governo Carter; (d) alcançaram seu momento mais crítico em 1977 em razão do acordo nuclear com a Alemanha e das críticas estadunidenses de desrespeito aos direitos humanos no Brasil (com o consequente rompimento do acordo militar); (e) os atritos se atenuariam entre 1978 e 1979.

Na América Latina, foram crescentes as dificuldades no relacionamento com a Argentina em razão do diferendo sobre o aproveitamento hidrelétrico do Rio Paraná. Por outro lado, o maior êxito diplomático brasileiro no subperíodo seria a conclusão

do Tratado de Cooperação Amazônica, que Geisel chamaria de “pacto de não internacionalização da Amazônia”. Com respeito à questão de sanções a Cuba, o Brasil se absteve na votação de resolução sobre o tema na OEA.

Com a Europa, destacar-se-ia a assinatura, em 1975, do acordo sobre cooperação nuclear com a República Federal da Alemanha. Com Portugal, o relacionamento sofreria rápida mudança após a Revolução dos Cravos ocorrida naquele país em 1974, tendo sido o Brasil o primeiro país a reconhecer o novo governo. O governo brasileiro reconheceria também os novos países de expressão portuguesa que se tornariam independentes, inclusive o governo de Angola, que recebia apoio militar de Cuba. Seria essa outra significativa mudança na política externa do regime militar.

No Oriente Médio, o Brasil buscaria forte aproximação dos países árabes produtores de petróleo, em especial Iraque, Arábia Saudita e Kuwait. Nesse contexto, modificaria sua política com relação ao conflito árabe-israelense. Apoiou resoluções sobre o direito dos palestinos à autodeterminação e à soberania; sobre o reconhecimento da Organização para a Libertação da Palestina como único representante legítimo do povo palestino; e sobre a concessão àquela entidade de status de observador permanente na ONU. Votou também a favor de resoluções de condenação de Israel por destruir uma cidade nas Colinas do Golã e de reafirmação da soberania permanente sobre recursos naturais existentes nos territórios árabes ocupados. Numa das ações mais polêmicas, votou a favor de resolução que considerava o sionismo uma forma de racismo.

Na Ásia, estabeleceria relações com a República Popular da China, apesar da resistência de setores militares conservadores. Com respeito à África, o país passou a priorizar os objetivos de “descolonização”, condenou o apartheid, e apoiou a concessão de ajuda às novas nações daquele continente. Apoiou a autodeterminação da Namíbia e a transferência do poder na Rodésia à maioria negra.

Em matéria de direitos humanos, o Brasil se absteve em resolução na OEA sobre a situação dos direitos humanos no Chile. Com apoio de outros países, conseguiu derrotar uma proposta estadunidense de tornar obrigatória uma visita da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA a cada Estado-membro. Ainda no plano multilateral, o Brasil votou a favor de resolução que ressaltou que todos os Estados tinham direito de levar adiante programa de utilização da energia nuclear em prol do desenvolvimento econômico. Em iniciativa voltada a marcar a presença internacional brasileira, o Brasil aderiu ao Tratado da Antártida.

A atuação econômica externa brasileira vinculou-se à crise energética, às propostas dos países em desenvolvimento para a criação de uma Nova Ordem Econômica Internacional e à crescente dívida externa.

No governo Figueiredo (Entre 1979 e 1985), houve uma atenuação de políticas tomadas no subperíodo anterior, embora conservadas suas linhas básicas. Houve, sobretudo, melhora no relacionamento tanto com os Estados Unidos quanto com a Argentina.

Com os Estados Unidos o relacionamento bilateral evoluiu positivamente embora não tanto durante o último ano do governo Carter, quando, por exemplo, o Brasil não aderiu ao embargo de venda de grãos à União Soviética proposto por Washington. As relações melhoraram com o governo Reagan que coincidiu com a maior parte do governo Figueiredo. Passariam, então, por um momento mais colaborativo, ainda que não livre de divergências de opiniões, sobretudo no tocante a ações do governo de

Washington em terceiros países, em especial em El Salvador e em Granada. Foram criados grupos de trabalho entre os dois governos, um dos quais sobre energia no âmbito do qual foram possíveis entendimentos na área nuclear que dissiparam divergências anteriores. As relações melhoraram a ponto de ser assinado um memorando de entendimento para cooperação na área militar industrial.

Também com a Argentina a gestão de Saraiva Guerreiro seria exitosa, pois logrou reaproximação com o governo de Buenos Aires após resolução da questão fluvial. Esse fato facilitaria um dos melhores momentos do titular do Itamaraty, isto é, quando da difícil definição da posição brasileira com relação ao conflito das Malvinas entre Argentina e Reino Unido. Ainda com respeito à América do Sul, o Brasil atuou como um dos países garantes do Protocolo do Rio de Janeiro para encontrar solução para o grave conflito ocorrido entre Peru e Equador em 1981. Com relação a Cuba, o governo reconheceu haver “tom mais moderado” de Fidel Castro, mas não reatou relações diplomáticas com Havana.

No tocante à Europa, houve continuação do programa nuclear com a Alemanha Federal e a manutenção do bom relacionamento com o Reino Unido, apesar do apoio brasileiro à reivindicação brasileira às ilhas Malvinas. Com o Leste europeu, o Brasil ampliaria suas relações com a União Soviética e com a Polônia, país que se tornaria devedor dos já debilitados cofres públicos brasileiros.

Com respeito à África, o Brasil daria forte atenção à cooperação, mas a situação financeira do país não permitiria recursos para concedê-la como desejado. Firmou, no entanto, acordos diversos, em especial com os países de expressão portuguesa. Guerreiro visitou vários países africanos, manifestou posição favorável à independência da Namíbia e condenou ações da África do Sul contra Angola, país com o qual estabeleceu colaboração petrolífera. Figueiredo tornou-se o primeiro presidente brasileiro a visitar a África.

No Oriente Médio, destacar-se-ia a forte aproximação do Iraque (inclusive nuclear) e, por outro lado, os problemas com o governo líbio a respeito do pouso no Brasil de um avião daquele país com destino à Nicarágua. Quando de ataque israelense a reator nuclear no Iraque, o Brasil qualificou o ato de “contrário à paz”. As dificuldades econômicas que o país atravessava impediram maior aproximação da Ásia, embora tenham sido efetuadas tentativas de maiores contatos sobretudo com a China e o Japão.

No plano multilateral, o Brasil tomou posição cada vez mais firme em temas tais como o apartheid na África do Sul e os direitos dos palestinos. Na OEA, a delegação brasileira atuou em apoio ao Grupo de Contadora que buscava solução regional (não estadunidense) para a crítica situação na Nicarágua, onde lutavam tropas leais a Somoza contra rebeldes sandinistas. No campo dos direitos humanos, a melhora do quadro interno (revogação da Lei Falcão, sanção da Lei da Anistia, retorno de asilados, abertura política e surgimento de novos partidos políticos) permitiu a adoção de posições externas mais abertas, como foi o apoio na OEA ao “fortalecimento dos sistemas democráticos de governo” e “ao pluralismo ideológico”. Em matéria de desarmamento e não proliferação nuclear, o Brasil continuou a defender sua não adesão ao TNP, bem como seu direito de criticar tal instrumento, o que fora colocado em dúvida por ser mero observador das discussões entre os membros plenos do Tratado.

A atuação econômica externa estaria voltada para o problema do endividamento

externo agravado pelo choque da segunda crise do petróleo. Na busca de excedentes comerciais, o Brasil se tornou mais incisivo nas críticas no GATT a medidas de salvaguardas e outras impostas contra países em desenvolvimento. A crise levava também à aproximação de outros países latino-americanos igualmente endividados e à formação da ALADI, que substituiu a ALALC com apoio brasileiro. Em 1982, após a moratória mexicana, Figueiredo tornou-se o primeiro presidente brasileiro a comparecer pessoalmente à Assembleia Geral da ONU, quando tratou da “gravidade da situação internacional”. Criticou as “grandes potências” cuja política econômica estava “destruindo riquezas sem nada construir em seu lugar”. Opôs-se a que o GATT incluísse regras sobre comércio de serviços e políticas de investimento.

Balanço da política externa no regime militar Caberia, neste ponto, indagar se a política externa no regime militar apresentou “algumas características constantes”. Em meu livro enumerei alguns elementos que constituíram linha de ação comum a todo o período. Notei a preocupação constante em resguardar a soberania nacional, como evidenciado em ações tais como a extensão do mar territorial; a busca de cooperação para a defesa da Amazônia (contra possíveis tentativas de sua internacionalização); a procura de autonomia energética (elétrica e nuclear); a recusa de adesão ao TNP e a adesão ao Tratado da Antártida. Enumerei três projetos econômico-diplomáticos iniciados e concluídos durante o regime militar que refletiram essas preocupações: o acordo com o Paraguay para a construção de Itaipu; o acordo nuclear com a Alemanha e o Tratado de Cooperação Amazônica. Observei, por fim, que traços fortes dessa preocupação com a soberania nacional podiam ser identificados durante o período militar também nas reações contrárias às tentativas internacionais relativas a direitos humanos, controle populacional ou proteção ambiental. No balanço final que apresentei do período ressaltei que o Brasil se manteve distante de conflitos internacionais (não enviou tropas ao Vietnã e sua ação militar se limitou à liderança de força interamericana na República Dominicana); aproximou-se de seus vizinhos (inclusive da Argentina no último subperíodo); assegurou a cooperação amazônica; ampliou as exportações para além das fronteiras ideológicas; neutralizou as ações argentinas contrárias à construção de Itaipu; manteve o fornecimento de petróleo pelos países árabes e resistiu às pressões americanas contrárias ao acordo nuclear com a Alemanha. A ação arriscada de reconhecimento precoce da independência de Angola se viu beneficiada posteriormente pela vitória final do movimento que a declarou. Teve a diplomacia brasileira atuação diplomática ponderada durante o conflito das Malvinas e exerceu ativa intermediação naquele havido entre Peru e Equador.

O que restou da política externa do regime militar Dadas as modificações da política externa do início ao final do regime militar, não é de se admirar que muitas ações diplomáticas tenham tido continuidade. Em muitos aspectos, várias das medidas propostas durante a PEI haviam sido adotadas, tais como o apoio à descolonização; o respeito à soberania de Cuba; a adoção de política contra o apartheid da África do Sul; a aceitação de relações com países de ideologias diferentes; e o favorecimento da representação chinesa na ONU. Não é de se admirar, portanto, que – como notei alhures[3] – o primeiro governo civil, em 1985 não tenha anunciado modificações relevantes à política externa em relação ao final do regime militar. Ao contrário, Olavo Setubal declarou, ao tomar posse como chanceler, que

encontrara no Itamaraty “uma comunhão de ideias”, o que considerou ser uma condição básica para que pudesse ser dada “continuidade às melhores tradições de solidariedade e universalismo legadas pelo barão do Rio Branco”. Na realidade, porém, haveria sim alterações significativas da política externa após o final do regime militar: o desenvolvimento de atuação internacional desimpedida em matéria de direitos humanos; o reatamento de relações diplomáticas com Cuba; o reingresso do Brasil no Conselho de Segurança da ONU como membro não permanente; a renúncia brasileira a explosões nucleares; a intensificação de medidas em favor da proteção do meio ambiente; e a assinatura do TNP. Tendo em vista tantas modificações profundas ocorridas ao longo das décadas seguintes, o que restou de relevância das ações diplomáticas do período militar? Se examinarmos o que ocupa a agenda diplomática brasileira atual, a grande maioria dos grupos e acordos dos quais o Brasil faz parte foram criados ou deles o país passou a participar desde a re-democratização (MERCOSUL, CPLP, BRICS, G20, CELAC, entre muitos outros). Que restou, pois, dos 21 anos de política externa do regime militar? Poder-se-ia tentar enumerar algumas poucas iniciativas ainda presentes. Do ponto de vista de atuação econômica externa, poderia ser mencionada a manutenção de regras favoráveis ao capital estrangeiro no Brasil; do ponto de vista regional, destaca-se a vigência dos Tratados de Itaipu e de Cooperação Amazônica. Embora com percalços, seguiu vigente o programa nuclear iniciado com a Alemanha, bem como a participação do Brasil como membro do Tratado da Antártida. Note-se ainda a recorrência da ideia expressa por Araújo Castro sobre a resistência a “qualquer reforma ou revisão da Carta de São Francisco” que mantém “imóvel e estático o quadro político-estratégico de 1945”.

Notas [1] Os Sucessores do Barão 1964-1985, Fernando de Mello Barreto, São Paulo: Editora Paz e Terra, 2006. ↑ [2] Os Sucessores do Barão 1912-1964, Fernando de Mello Barreto, São Paulo: Editora Paz e Terra, 2001. ↑ [3] A Política Externa após a re-democratização, Fernando de Mello Barreto, Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2010, Tomo I. ↑ / .box-txt ESTA MATÉRIA FAZ PARTE DO VOLUME 22 Nº4 DA REVISTA POLÍTICA EXTERNA