a política e o 'ensaio sobre o dom' - m. lanna

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  • 8/7/2019 A Poltica e o 'Ensaio Sobre o Dom' - M. Lanna

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    Comunismo ou comunalismo?

    A poltica e o Ensaio sobre o dom1

    David Graeber & Marcos Lanna

    Department of Anthropology Yale UniversityProfessor do Departamento de Cincias Sociais UFScar

    RESUMO: Este artigo aborda o contraste entre uma modalidade de trocaexplicitamente qualificada por Mauss, na dcada de 1930, como comunis-ta e as modalidades agonstica e mercantil. Mauss nunca foi comunista,mas sim um socialista engajado. Como tal, lanou Revoluo Russa seuolhar de etngrafo, sem deixar de considerar sua importncia como experi-mento. V como inspirao do Ensaio sobre o dom o impacto que lhe causa-ram tanto uma visita Rssia comunista no incio da dcada de 1920 comoa Nova Poltica Econmica de Lnin, que reconhecia a impossibilidade deabolio do mercado. Questo implcita do Ensaio a possibilidade de umanova sociedade, na qual o Estado englobaria o mercado, ambos entendidoscomo transformaes lgicas e histricas de formas particulares da ddiva, otributo no caso do Estado.

    PALAVRAS-CHAVE: Marcel Mauss, Comunismo, Estado.

    Para Terence S. Turner, nosso professor.

    No sculo XIX, vrios autores, como Saint-Simon e Herbert Spencer,propunham que a coero estatal no seria eterna, tomando a histriahumana como a transformao das sociedades em direo competioeconmica e aos contratos livremente assumidos entre indivduos. A so-

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    ciologia de Emile Durkheim em boa medida uma resposta a Spencer,

    indicando que o crescimento dos contratos privados, longe de implicaro desaparecimento do Estado, levava-o a intervir como nunca na vidados cidados. Durkheim tambm responde nfase nos acordos e con-tratos individuais presente desde Hobbes e Locke, passando por AdamSmith, at Spencer. A questo do que hoje chamamos socialidade ousociabilidade surge em torno desse debate sobre o Estado e o contrato.A antropologia de Mauss tinha algo a dizer sobre ela, retomando e refor-mulando posturas de Durkheim contrrias ao que, seguindo Dumont(1977), poderamos chamar de variante inglesa da ideologia moderna variante esta que, alis, no deixou de se desenvolver durante o sculoXX e ainda se faz presente neste XXI.

    Mauss se contraps de modo radical e at hoje no devidamenteavaliado aos liberais da poca, criticando um paradigma que reduz avida social a interesses, competies econmicas e/ou manipulaespolticas. Sua idia de relaes sociais substitui a de contrato. Essa idia

    no remeteria a acordos com nossos instintos (e os dos outros) ou comsentimentos e vontades supostamente anteriores aos sociais, mas sima obrigaes, simultaneamente coercitivas (para usar o termo deDurkheim) e voluntrias. Ao mesmo tempo, se a vida social no se re-duz a ganhos, estes no deixam de estar presentes, para Mauss, na formade interesses individuais e coletivos.

    Mauss viu na ddiva ou nas prestaes no mercantis, como elepreferia e veremos a seguir a fonte da vida social simultaneamente ob-

    jetiva e subjetiva. Ao analisar a noo maori de hau, tomou-a comoexemplo de um tema constante que tambm se apresenta no kula, nopotlatch e na Roma antiga: os mecanismos de retribuio obrigatriaembutidos nos prprios dons. Seja nos cobres da Costa Noroeste, sejana lei romana, a pessoa possuda pela coisa. Isso tem levado a antro-pologia a renovar o estudo das relaes entre pessoas e coisas, dando a

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    ambos os termos um sentido mais amplo. O fato de a lei moderna fazer

    rgidas distines entre pessoas e coisas, por sua vez, deve ser relaciona-do a certas teorias modernas como as dos autores mencionados nopargrafo inicial definirem as pessoas psicologicamente com base emmotivaes e interesses prprios, como o desejo de acumular coisas.Ao desafiar o conhecimento moderno, Mauss mostrou que este opunharadicalmente no apenas pessoas e coisas, mas tambm egosmo ealtrusmo. Segue-se da, como veremos, que o ideal moderno-cristo daddiva pura e desinteressada uma noo que no se encontra em qual-quer outra sociedade.

    Mas o Ensaio sobre o dom tambm foi concebido como contribuio teoria socialista. Entre outras questes, Mauss tambm buscava enten-der o apelo popular do socialismo. Como sabido, os trabalhos desse,alm de revelarem amplos interesses, foram em boa medida esboos pre-liminares ou projetos incompletos: a tese sobre a prece, o livro sobre asorigens do dinheiro e outro sobre o socialismo e nacionalismo. S publi-

    cava quando solicitado ou se sentia alguma razo urgente; no caso doEnsaio, essa razo tambm seria poltica. Socialista engajado, Mauss con-siderava seus principais mentores tanto Durkheim como Jean Jaurs, l-der da Seo Francesa da Internacional Socialista (SFIO). Depois daPrimeira Grande Guerra, continuou a trabalhar com o partido e no cor-po editorial de jornais socialistas, tendo sido um dos principais criadoresdo LHumanit. Era ativo no movimento francs cooperativo, tendo fun-dado e administrado com um amigo uma cooperativa de consumidores

    em Paris, tendo assumido muitos cargos e feito viagens a vrias partes daEuropa, baseado nas quais publica reportagens sobre o movimento coo-perativo na Alemanha, Inglaterra, Hungria e Rssia (Fournier, 1994).

    O incio dos anos 1920, quando escrevia o Ensaio, foi tambm umperodo de intensa participao poltica. Eram os anos imediatamenteseguintes Revoluo Russa, que causou a ciso na Internacional Fran-

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    cesa em partidos comunista e socialista. Mauss nunca foi comunista,

    mas, adepto de um socialismo criado de baixo para cima, por meio decooperativas e sindicatos, no deixou de contemplar a abolio do siste-ma salarial. Isso fundamental, pois, como veremos, pensava na conti-nuidade lgica e histrica entre os sistemas de ddiva e o de assalaria-mento o que significa que a superao da compra e venda do trabalhos poderia ser em direo a um retorno a um sistema de ddivas, dadoinclusive que este comportaria algum tipo de universal sociolgico. Apalavra retorno vai entre aspas por refletir o evolucionismo que aindarondava o pensamento de Mauss2.

    Mauss criticava tanto comunistas como social-democratas por feti-chizarem a poltica e a funo do Estado, que para ele deveria se limitarao provimento de um quadro legal (ou, no falar atual, regulatrio) den-tro do qual os trabalhadores poderiam levar a lei de volta coernciacom a moralidade popular. Os eventos na Rssia nele repercutiram demodo ambivalente. Inicialmente, era um entusiasta da revoluo, tinha

    muitas suspeitas em relao aos bolcheviques. Godelier (1996) o des-creve como um social-democrata antibolchevique, mas isso antes darepublicao dos escritos polticos de Mauss em 1997. Esses escritosaproximam Mauss tanto de anarquistas como Proudhon como de Jaurs.Para Mauss (1923), o projeto de impor o socialismo pela fora era umacontradio em termos, alm de taticamente desastroso. Dizia ele: nun-ca foi a fora to mal usada como pelos bolcheviques. O que antes detudo caracteriza seu terror sua estupidez, sua loucura.

    Mauss sentia repulsa pela noo de uma linha do partido e, apesar dereconhecer a situao difcil do regime sovitico no ps-guerra, conde-nou o desprezo do partido pelas instituies democrticas e pela regrada lei. Mas, se havia um tema comum em suas objees, era seu desgos-to em relao ao utilitarismo dos bolcheviques: sua noo cnica de queos fins justificam os meios, escreveu posteriormente, os fazem medo-

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    cres mesmo como polticos. Apesar dessas denncias, reconhecia a re-

    voluo como um magnfico experimento3

    .O interesse de Mauss se concentra nos procedimentos bolcheviques

    de administrao das coisas e dos homens, publicando vrios artigossobre a significncia da Nova Poltica Econmica de Lnin, anunciadaem 1921. Nesse momento os bolcheviques abandonam tentativas decoletivizao, legalizam um certo comrcio e abrem parcialmente o pasao investimento estrangeiro. Mauss se ope abertura do pas ao capitalestrangeiro a venda da Rssia, como a denominou em artigo em LaVie Socialiste, que para ele provavelmente marcaria o comeo do fimda revoluo (Mauss, 1922). Assim, em 1921, Mauss ora previa o co-lapso da revoluo como iminente, ora se permitia reservado otimismo,sugerindo at que o regime sovitico poderia finalmente se envolver nadireo de um socialismo mais genuno.

    No por mera coincidncia que Mauss publica no mesmo ano oEnsaio sobre o dom e Socialisme et Bolchvisme, duas vias de um mes-

    mo projeto intelectual. Dada a primeira grande tentativa de se criar umaalternativa moderna ao capitalismo, o autor faz frutificar os resultadosda etnografia comparativa crus e pouco desenvolvidos como ele ossabia ser para esboar, ao menos, os contornos de uma alternativa po-ltica mais vivel e razovel. Preocupava-se particularmente com o signi-ficado lgico e histrico do mercado, especialmente depois de o experi-mento russo provar que no seria possvel simplesmente abolir a comprae venda de cima para baixo, mesmo em uma das sociedades menos

    monetarizadas da Europa. No futuro prximo, conclui Mauss, estare-mos de algum modo presos ao mercado (1992 [1925a], p. 188-90). Ain-da assim, deveria haver uma diferena entre o mercado como meratcnica para a alocao de alguns tipos de bens e o mercado como oexistente no Ocidente industrial, auto-regulvel, no sentido dado ao ter-mo por Polanyi (1978), o de um princpio social bsico, determinante

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    do valor que se expressava de modo to evidente no pensamento anglo-

    saxo. Discordando da naturalizao do mercado feita pelos liberais,Mauss se perguntava o que levaria a lgica do mercado a violentar osenso de justia e humanidade das pessoas comuns. Tentava simultanea-mente entender o apelo popular dos partidos socialistas e os programasde bem-estar social, por um lado, e, de outro, examinar a etnografia dis-ponvel para revelar o que poderiam ser padres de justia que relega-vam o mercado a sua funo tcnica para agrupar decises descentrali-zadas, e em que medida este poderia conviver com instituties de tipototalmente diferente, centradas na alegria de doar em pblico; [n]oprazer do dispndio artstico generoso, [n]o da hospitalidade e da festaprivada e pblica(2003 [1925b], p. 299).

    O nexo entre a ambio socialista de Mauss e o Ensaio se evidenciano fato de que este demonstra que em sociedades no modernas, comoa Roma e a ndia antigas, o mercado estava presente, mas, para usar anoo de Dumont, englobado pela ddiva. O caso moderno apresenta-

    ria uma inverso, em que o mercado adquire precedncia ou autonomia(Polanyi, 1978; Dumont, 1977). J a NEP de Lnin, inspirao impl-cita do Ensaio e preocupao dos escritos polticos, pode ser entendidacomo um retorno ou uma reproduo de perodos histricos em que omercado no esfera autnoma, mas reduzido sua instrumentalidade.Ainda que recuperado por Lnin, tal ocorre em um contexto em que omercado sovitico englobado por uma centralizao que Polanyi(1978) denominaria redistributiva.

    Esse aspecto do Ensaio tem sido obscurecido pela prpria discussodas formas mais competitivas e as mais aristocrticas da troca de ddi-vas. Isso nos deixa a questo de como relacionar e compatibilizar o socia-lismo de Mauss e sua nfase em formas diferentes de aristocracia, espe-cialmente as maori, kwakiutl e romana. Relembrando o plano geral doEnsaio, Mauss comea com o que chama prestao total, que caracte-

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    rizaria, por exemplo, trocas entre metades em muitas sociedades austra-

    lianas e americanas, nas quais dois lados de uma aldeia dependem umdo outro quanto a comida, servios militares e rituais, parceiros sexuais,danas, festas, gestos de respeito e reconhecimento etc. Mauss poste-riormente alargou a noo de prestao total de modo menos especu-lativo e mais emprico. Em aulas no Institut dEthnologie em Paris, en-tre 1935 e 1938, fala em prestaes totais ou reciprocidade totalcomo direitos que na maioria das sociedades existiam principalmenteentre famlias e indivduos particulares:

    Inicialmente havia um sistema que denominarei de prestaes totais. Quan-

    do um Kurnai australiano se encontra no mesmo acampamento que os

    pais de sua esposa, ele no tem o direito de comer qualquer pedao de caa

    que traz seus afins tomam tudo, o direito deles absoluto. A reciprocida-

    de total, o que chamamos comunismo, mas praticado entre indiv-

    duos. Em sua origem, commercium vinha com connubium, casamento se-

    gue a comrcio e comrcio a casamento. [...] O erro fundamental consisteem opor comunismo e individualismo. (Mauss, 1947, p. 104-5)

    Chamou a ateno de Mauss, e de tantos antroplogos depois dele, anatureza das obrigaes que freqentemente acompanham o casamen-to. Um melansio que precisasse de uma canoa nova poderia contar como marido de sua irm e o povo deste: como aquele lhes havia dado umamulher, estaria em crdito, e seus devedores o retribuiriam, seja de acor-

    do com um princpio de repagamento, seja simplesmente em respostas suas necessidades. Mas notvel que em relao a essas obrigaesque Mauss faz uso do termo comunismo, como se este fosse uma moda-lidade ou em termos evolucionistas, um estgio pr-agonstica dasprestaes. Argumentava que seria um grande erro assumir que o co-munismo primitivo ou de outro tipo seria uma questo de proprie-

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    dade coletiva. Em primeiro lugar, porque propriedades pessoais de algum

    tipo sempre existiram Mauss acreditava que os revolucionrios moder-nos caam no absurdo quando imaginavam poder aboli-las (cf. Mauss,1920, p. 264; 1924, p. 637). Em segundo, mesmo quando alguma pro-priedade possuda por um grupo, ela raramente administrada demo-craticamente. Mauss pensava assim em um tipo de comunismocom uma base individual, social e familial (1947, p. 104-5), mas nonegava a importncia de relacion-lo a desigualdades sociais.

    Esse argumento tem sido pouco considerado, ou mesmo obscureci-do. Como Mauss, muitos tomam intuitivamente algum tipo de comu-nismo ou igualdade primitivos, talvez por certa tendncia ideolgica pararomantizar a propriedade coletiva e/ou imaginar que as sociedades daddiva tm algum tipo de administrao mais perfeita. Essa seria a raizde interpretaes de antroplogos importantes, como Pierre Clastres (cf.Lanna, 2005). Mas, com os dados etnogrficos disponveis na poca,Mauss no deixou de buscar o entendimento da prestao total em rela-

    o existncia de aristocracias locais e de ttulos que circulavam juntocom os princpios de acesso terra e distribuo de bens, mulheres, pa-lavras, cerimnias, visitas etc. Esse mesmo ponto fica implcito na an-lise de Lvi-Strauss das sociedades a casas, cujos exemplos paradigmti-cos, alis, so exatamente aquelas sociedades nas quais o Ensaio se baseia(romana, kwakiutl, maori4). Assim, importa estudarmos os ttulos e asformas de dons que Mauss no pode analisar no Ensaio.

    Ao falar nos kurnai, Mauss tentava mostrar que seria possvel um sis-

    tema comunista individualista, definido pelas prestaes totais e nopelas necessidades um termo muito mais caro ao funcionalismo doque a Mauss , que no poderiam ser preenchidas sem retribuies.Esse comunismo exemplificado por Mauss pelas relaes entre maridoe mulher kurnai, nos quais cada lado tem direitos sobre o outro. Neces-sitamos mais reflexes a respeito da igualdade e/ou desigualdade dos di-

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    reitos criados nesse tipo de troca. A reciprocidade engloba mesmo o

    roubo legalizado de um objeto entre os Kurnai, pois estes supem queuma mulher fora dada anteriormente ao roubo. Haveria assim roubosmais ou menos legtimos, estes ltimos mais sujeitos a retaliaes doque os primeiros. Dito de outro modo, o objeto roubado seria umaforma de retribuio.

    Retornando ao Ensaio, este mostra como a reciprocidade tambmpode assumir uma forma mais competitiva. Aos sistemas de troca ago-nstica, Mauss props, de modo talvez inadequadamente generalizador,o rtulo de potlatch, nome de trocas competitivas particularmente dra-mticas que tinham sido recentemente documentadas na costa noroesteda Amrica do Norte. Essas difeririam da competio capitalista por sebasearem em premissas opostas, no acumular, mas dar o mximo poss-vel. No podemos, entretanto, tomar esse fato como expresso do des-prezo indgena por posses materiais, mas sim como prova de que o senti-do da posse depende do contexto simblico e sociolgico. Talvez mesmo

    o fundamento de dar um potlatch ou no potlatch seja no tanto o es-tabelecimento de superioridade, mas incorporar uma pessoa de uma casaa outra (no caso kwakiutl, de um numayma a outro cf. Lanna, 2001).

    Essa forma de ddiva dominou ainda sociedades aristocrticas comoos celtas antigos, os germnicos ou a ndia vdica. Gradualmente, entre-tanto, ainda que de modo sempre diferente em cada caso, o dinheiro ouaquilo que o prprio Marx definira no primeiro captulo de O Capitalcomo troca mercantil (envolvendo a venda definitiva e, assim, a aliena-

    o de bens que no mais eram vistos como enredados no doador) leva-ram a troca agonstica a ser eclipsada por um etos de acumulao pelaacumulao. Desejos e tendncias aquisitivas, a nosso ver, seriam desen-volvidos paralelamente ao incremento das prprias trocas. Esse incremen-to redundaria assim tanto em maior diviso do trabalho (como pressupu-nham autores como Adam Smith e Rousseau) como no desenvolvimento

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    de sentimentos aquisitivos, o individualismo possessivo, enfim. A esse

    incremento quantitativo das trocas corresponderia ainda uma transforma-o qualitativa da forma agonstica do dom em troca mercantil. A aliena-o de bens e pessoas aumenta medida que o volume de trocas mercan-tis cresce. A maioria das sociedades do mundo antigo ou mesmo o Brasilcontemporneo, com sua repblica muito peculiar (cf. Lanna, 1995) articulava de algum modo essas modalidades de troca. Em alguns locaisonde era possvel mercadores acumularem fortunas, os ricos no deixa-vam de ser considerados os tesoureiros de seus concidados (Mauss,2003 [1925b], p. 298), de quem se esperava ou se exigia, nas liturgiasgregas, por exemplo a distribuio de sua riqueza em projetos civis.

    Surge a questo: quais so as origens da concepo de interesse indi-vidual, e como ela contamina o tecido social? Diferentes autores comoSahlins (1988) e Alain Caill (1994, p. 10-2), este um dos fundadoresdo Mouvement Anti-Utilitariste dans les Sciences Sociales(MAUSS), apon-tam a resposta na direo do papel do cristianismo. Aristocratas e gran-

    des homens romanos ainda mantiveram parte de um etos de generosi-dade magnificente: doavam prdios e jardins pblicos, disputavam paraserem padrinhos de jogos e competies etc. Mas o sentido dessa assis-tncia poderia ter algo de enganador: um hbito aristocrtico, por exem-plo, era o de espargir moedas de ouro e jias para uma multido para sedivertir com a correria que se seguia. Teorias crists da ddiva se desen-volveram em reao a prticas como essas. A verdadeira caridade na dou-trina crist no poderia se basear em estabelecimento de superioridade,

    nem na obteno do favor de outrem, assim como a doutrina probe odesejo de ser superior e, em ltima anlise, qualquer motivao egosta.

    Mas seria possvel dizer que os cristos so mais difceis de se enten-der do que os romanos, inclusive para Mauss: deixaram de lado prticasredistributivas, mas no a ideologia da generosidade. Distribuem acimade tudo palavras. So ainda um pouco como os brmanes, tal como ca-

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    racterizados no Ensaio: doadores de servios religiosos e recebedores de

    prestaes materiais (pensamos aqui no apenas nas oferendas s vriasigrejas crists, mas nos variados tipos de senhores cristos, como os pa-drinhos cf. Lanna, 1995). Os cristos so assim herdeiros dos brmanesno sentido de desenvolver uma retrica da caridade e da pureza relacio-nada a trocas desiguais. Por outro lado, as sociedades crists divergemdas dos brmanes, dos aristocratas romanos, dos Kurnai e de todas asoutras exatamente por sua idia de caridade absoluta, que no requere-ria qualquer retribuio quantitativa. A pura caridade crist difere dacaridade pura brmane por este se assumir como qualitativamente su-perior. No toa que a idia da caridade absoluta, da ddiva materialque no requer retribuio, um fantasma que persegue antroplogosocidentais. J lembramos Pierre Clastres como um exemplo eloqente:a sua no troca de palavras, mulheres e bens entre chefia e sociedadeprimitivas no deixa de ser ddivas supostamente unilaterais ou momen-tos de circulao mercantil. Mas ela se expressa perfeitamente tambm

    no free giftde Malinowski, assim como na interpretao das sociedadescom prestaes totais como mais perfeitas e talvez at mesmo comocomunistas, como faz Mauss.

    Seja l como for, ao pressupor a possibilidade da caridade desinteres-sada, a retrica crist parece negar uma lio fundamental de Mauss, auniversalidade da reciprocidade5. No mnimo, fazer uma boa ao colo-ca algum em melhor posio aos olhos de Deus e melhora suas chancesde obter a salvao eterna. Poderamos comparar isso s observaes de

    Parry (1986) sobre a ndia, sugerindo que a emergncia de religiesuniversalistas se liga ao ideal de ddivas impossveis de serem retribu-das. Para o isl, ver Dresch (1998).

    O ideal moderno da ddiva, assim, torna-se o negativo, o espelho docomportamento de mercado, mas seu reflexo o de uma miragem, deuma impossibilidade: um ato de pura generosidade desembaraado de

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    qualquer interesse.Certamente no essa a noo de Mauss da ddiva.

    Em outras palavras, a especificidade da idia da graa, no sentido al-trusta, no nega a universalidade da proposta de Mauss. Mas, como osmembros do MAUSS insistem, isso no significa que as pessoas deixamde praticar outras formas, mais ou menos crists, de dom: no capitalis-mo, as coisas esto constantemente mudando de mos, sem retorno ex-plcito ou imediato e sem acordo quanto futura retribuio. Isso tantopela circulao mercantil ou no. Na verdade, argumenta o MAUSS, asociedade moderna no poderia funcionar (ou, preferiramos dizer, exis-tir) sem ela. A ddiva se tornou a face oculta da modernidade (Nicolas,1991): oculta porque sempre se pode produzir alguma razo para se dizerque qualquer ddiva particular (dinheiro dado a crianas, presentes decasamento, doaes de sangue ou a programas governamentais, jantarespara colegas ou parceiros de negcios, conselhos a amigos ou as horasque passamos ouvindo os problemas de algum) no na verdade ddi-va nenhuma. Mas isso tambm ocorre em outras cosmologias no mo-

    dernas nesse sentido, a ddiva sempre oculta. Assim tambm ocorrena teoria social (pensamos, por exemplo, naquilo que os economistaschamam de externalidades). O resultado, como coloca Godbout, uma cincia que fala de laos sociais sem usar as palavras a eles associa-dos na vida cotidiana: entrega, perdo, renncia, amor, respeito, digni-dade, redeno, salvao, compaixo, tudo que est no mago das rela-es entre pessoas e que alimentado pelo dom (1998, p. 220-21).

    No mundo anglfono, o MAUSS foi praticamente ignorado. L, os

    que gostam de pensar em si mesmos como engajados na teoria crtica devanguarda vieram a ler Mauss por intermdio de Jacques Derrida, queem Donner le Tempsexaminou o Ensaio para descobrir que surpresa! que as ddivas, enquanto atos de generosidade pura e desinteressada,so logicamente impossveis. Mauss no s demonstrara isso como jtinha criticado Malinowski por no perceb-lo. Mas o que fundamen-

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    tal e infelizmente escapou ao MAUSS, ao menos at hoje, que as rela-

    es mercantis, assim como os tributos que formam o esqueleto do Es-tado, eram para Mauss formas ou transformaes da ddiva (cf. Lanna,2000). H quem pense que existe algo chamado discurso ocidentalque incapaz de se referir a nada alm de si mesmo. Mas mesmo aque-les entre ns que acreditam que a antropologia de fato possvel, fre-qentemente, no percebem que Mauss no lidava primariamente comdiscursos e sim com princpios morais que ele sentia serem em algumamedida incorporados tanto na prtica como na alta teoria de todasassociedades. A interpretao de Mauss do fato social de Durkheim im-plicava entend-lo como ou talvez mesmo transform-lo em princ-pio moral.

    Assim, se nas sociedades examinadas por Mauss, j mencionadas, nofaz sentido distinguir generosidade e interesse individual, nossa pr-pria perspectiva que assume que ambos devem estar em conflito. Essaera uma razo para Mauss evitar o termo ddiva ao falar de outras

    sociedades, preferindo prestaes. Porm, e aqui crucial entender ocontexto poltico, Mauss no estava apenas tentando descrever como algica do mercado, com suas distines rgidas entre pessoas e coisas,interesse e altrusmo, liberdade e obrigao, tornou-se caracterstica dassociedades modernas. Ele no analisa a simples presena do mercado(que sempre se manifesta diferentemente, seja na ndia antiga, seja naNEP de Lnin), mas de toda uma cosmologia, que poderamos deno-minar moderna, que se define por meio dele. Mais ainda: alm de ana-

    lisar o que era novo na histria humana, Mauss buscava uma perspecti-va mais universal.

    Ao olhar para o mercado, para o Ocidente, para a sua Frana enfim,Mauss conscientemente evitou exatamente aquilo que vem sendo rele-vado (e revelado) pelo programa do MAUSS: estudar a importncia daddiva na sociedade capitalista. Evidentemente, esse programa atual e

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    tem grande relevncia. Entretanto, se Mauss poderia facilmente ter es-

    tudado fenmenos como o Natal ou o consumo conspcuo burgus, en-tre outras formas de dons de sua sociedade nativa, preferiu, de modosimilar a Marx, privilegiar a especificidade da sociedade capitalista. Ofoco de sua reflexo entender essa especificidade contra o pano de fun-do da universalidade das prestaes (totais-comunistas, agonsticas etc.),da circulao no mercantil. Poderamos at dizer que ele buscava expli-car por que tantas pessoas, particularmente tantos dos menos privile-giados membros da sociedade capitalista, condenavam ou repudiavammoralmente essa sociedade (ou no). Por que, por exemplo, instituiesque insistiam na rgida separao entre produtores e seus produtos secontrapunham a intuies comuns a respeito da justia? Em resumo,Mauss buscava desvendar o fundamento moral, como ele dizia, danossa e de qualquer outra sociedade. A concluso do Ensaio fala em con-flito entre uma moralidade universal e o desenvolvimento do comrcio,da indstria e da lei, dado o desejo, suposto por Mauss, dos produto-

    res seguirem a coisa que produziram. Tudo se passa como se os produ-tores inapelavelmente reconhecessem que deram/venderam seu trabalhosem compartilhar dos lucros. Estaria Mauss, baseado em um reconheci-mento mais ou menos consciente das conquistas tericas do prprio es-tudo sobre o dom, tirando concluses apressadas, transferindo de modosubstantivo a inalienabilidade da circulao de trabalho que constatouem outras sociedades ao caso capitalista? Caso afirmativo, isso s refor-aria a pertinncia da conhecida crtica de Lvi-Strauss (1950): Mauss

    generalizaria inadequadamente a ideologia nativa (neste caso, uma srieincrivelmente geral de ideologias que pensam toda a circulao com baseem algum grau de inalienabilidade).

    Seja l como for, h aqui, sem dvida, um eco de Marx. Trata-se deduas teorias da alienao, mas ambas fazem a mesma questo: comopoderia, seja o produtor de Mauss, seja o trabalhador de Marx, deixar-

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    se alienar, ter seu trabalho to completamente apropriado pelo capi-

    talista? Certamente Marx foi alm de Mauss ao oferecer uma respostado por que o reconhecimento da explorao capitalista efetivamente nose generaliza, apesar de a postura marxista ter-se revelado excessivamen-te otimista quanto possibilidade de superao ideolgica e prtica daexplorao capitalista. Ao mesmo tempo, argumentos maussianos pode-riam ser lanados contra a conluso do Ensaio, dado que as relaesmercantis se particularizam exatamente por uma maior alienabilidade como observado acima, com Marx, discutvel supor que os produ-tores capitalistas desejem ir com a mercadoria. E a existncia dessaalienao do trabalho que marca a circulao mercantil em relao no mercantil.

    A questo a se analisar aqui a da existncia de uma teoria da aliena-o em Mauss. J indicamos que o Ensaio muito mais uma reflexosobre a inalienabilidade entre bens e pessoas. De todo modo, a teoria deMauss deriva de uma tradio diferente da dialtica hegeliana, a da his-

    tria jurdica clssica, segundo a qual uma propriedade alienada quan-do todos os direitos nela incorporados so desligados de um possuidor eincorporados a outro. Particularmente para as classes trabalhadoras fran-cesas, que no haviam se afastado totalmente de uma condio anteriorcamponesa e artes, na qual a terra circulava menos como mercadoria(cf. Polanyi, 1978), haveria algo profundamente errado nisso. Mauss ten-tava entender o que seria, assim como tentava entender por que a legis-lao da previdncia social poderia parecer correta se se inspira no se-

    guinte princpio: o trabalhador deu sua vida e seu trabalho coletividade,de um lado, a seus patres, de outro (2003 [1925b], p. 296), e dessemodo merecia mais, uma seguridade em vida contra o desemprego, adoena, a velhice e a morte, tanto por dar algo to valioso como pordar algo que no beneficiara s o patro, que alis j colaborara em seupecnio, mas tambm toda a comunidade, representada aqui pelo Es-

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    tado. Caracterizar-se-ia assim na previdncia um socialismo de Estado

    j realizado (id.).Em relao ao assalariamento, sua resposta, muito diferente da de

    Marx, foi a de que este uma forma miservel e empobrecida de contra-to6.Isso porque, como vimos, a forma elementar do contrato social ,para Mauss, precisamente comunista, a prestao total, do tipo kurnai7.Vimos tambm, entretanto, que ainda resta aos antroplogos reavaliaresse aspecto do pensamento de Mauss e indicar os limites (ou no) des-se tipo de abertura da ddiva, assim como o grau de igualdade criadopela reciprocidade total entre os prprios Kurnai australianos. Emoutras palavras, no sabemos ainda qual igualdade l existe nem qualsua relevncia sociolgica. Sabemos, entretanto que, na relao salarial,o trabalhador d parte dele mesmo, mas recebe em troca dinheiro, algosem a mesma qualidade total. Por isso nos permitimos voltar o olharpara a realidade capitalista. Vimos ainda que, dada a inalienabilidade dacirculao mercantil, para Mauss haveria algo inerentemente sacrificial

    no apenas em cada dom (cf. Lanna, 2000) algo que seus comentado-res, e os antroplogos em geral, preferiram obscurecer , mas tambmno assalariamento, na compra e venda de trabalho.

    Alguns comentadores de Mauss chegaram a tomar a concluso doEnsaio como inconsistente em relao ao resto do texto. Outros, comoDouglas (1990), chegaram a descart-la sem a terem compreendido real-mente, ao menos no nos termos que colocamos aqui. verdade que aconcluso soa tentativa, em parte porque Mauss aborda ali a poltica,

    mas no para a audincia proletria com a qual estava acostumado. Aconcluso dos poucos momentos em que Mauss se sente obrigado acombinar seu lado acadmico e aquele engajado, algo que sempre evita-ra cuidadosamente. Realmente, h ali sugestes idiossincrticas, comoo chamado de volta a um etos em que a nica desculpa para acumularriquezas seria redistribu-las, no qual os ricos seriam considerados nova-

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    mente tesoureiros da comunidade uma sugesto que interessan-

    temente no aparece em seus escritos polticos.Seria fcil descartar a concluso do Ensaio como resposta inadequada

    e desajeitada a Marx. Algumas crticas marxistas ao Ensaio importam,como a falta de uma teoria do valor e o fato de no abordar a produoem sociedades pr-industriais, ainda que fosse para mostrar como esta englobada pela troca. Ao mesmo tempo, o tema da inalienabilidade apre-senta uma crtica fundamental antropologia de cunho marxista. Se aalienao ocorre cada vez que um objeto muda de mos, Mauss nos lem-bra de que a produo de objetos no acaba no cho da fbrica. Maisainda, parece sugerir que algum grau de mistificao e explorao podeser um aspecto de processos criativos que no so nem marginalmenteto perigosos como seu oposto, a reduo das relaes sociais a algumtipo de clculo objetivo. Foram reduces desse tipo que levaram Mauss,em seus escritos polticos da mesma poca em que escrevia o Ensaio, acriticar os marxistas soviticos e at mesmo a vislumbrar o fim do regi-

    me em seu utilitarismo extremo, no qual percebeu corretamente a pre-sena da lgica do mercado ligeiramente transposta e, sentimo-nos ten-tados a dizer, combinada de modo muito especfico com redistribuiesno mercantis centralizadoras. Nesse sentido, as semelhanas entre mar-xistas e liberais so impressionantes, algo que Dumont tentou desenvol-ver em Homo Aequalis. Seria possvel argumentar que a Escola Sociol-gica Francesa a mais importante alternativa a ambos.

    Por outro lado, se Marx faz uma crtica brilhante ao capitalismo, seu

    trabalho se complementa pelo de Mauss exatamente por este apresentarum outro socialismo. Mauss no se debruou diretamente sobre a din-mica do capitalismo, mas era esse seu objetivo na medida em que pen-sava o mercado, o Estado e o trabalho assalariado como transformaeslgicas e histricas do dom. Por outro lado, tentava decifrar a possibili-dade de relaes sociais que pudessem existir alm do capitalismo. A

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    posio socialista de Mauss era muito mais prxima da de Proudhon ou

    da de anarquistas que acreditavam que idias e instituies capitalistaspoderiam ser a base tanto de uma crtica moral do capitalismo como derelaes sociais que pudessem vir depois dele, porque, argumentava, elasno se definem simplesmente por sua funo na reproduo capitalista,mas haveria necessariamente nelas algo que j existia antes do capitalis-mo e que continuar existindo depois dele. Esse algo seria o dom ou,como posteriormente refinou Lvi-Strauss, a reciprocidade. Marx, porsua vez, via o proletariado como a verdadeira classe revolucionria porser absolutamente negada pelo capitalismo e que assim s poderia selibertar negando a totalidade como um todo, criando algo radicalmentenovo que no poderia ser imaginado ou descrito de dentro do sistemaatual. Em uma palavra, Mauss no pretendeu entender o sistema capi-talista como uma totalidade, mas sim alcanar suas formas elementares.Ironicamente, seria possvel argumentar que foi Marx quem as encon-trou em seu conceito de mercadoria e em seu entendimento do proces-

    so de acumulao de capital como mercantilizao.Se as concluses do Ensaio so tentativas, por outro lado, Mauss sa-bia estar trabalhando com material inadequado, dado que a prtica sis-temtica da etnografia apenas surgia. Entretanto, esse no mais o caso.O problema hoje parece ser o oposto: a literatura sobre o Massim, aNova Zelndia ou a costa noroeste da Amrica tornou-se to vasta queseria quase impossvel para um no especialista retrat-la com justia.Recentemente houve algumas tentativas de retorno a esses exemplos e a

    reavaliao das concluses de Mauss, notavelmente por Annette Weiner(1992) e Maurice Godelier (1996), ambos compartilhando uma pers-pectiva terica semelhante (para uma crtica brilhante da primeira cf.Valeri, 1994). Weiner e Godelier so especialistas em Melansia, e seusresultados foram menos bem-sucedidos na medida em que se afastavamdessa rea. Como j deve estar claro, dizer apenas que o dom incorpora

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    parte do doador deixa muitas questes sem resposta. Resta-nos retornar

    mais uma vez s anlises tericas e etnogrficas de Mauss sobre as relaesentre interesse e generosidade, liberdade e obrigao, pessoas e coisas.

    Notas

    1 Este artigo uma tentativa de trabalho colaborativo luz dos escritos e do exem-plo de Marcel Mauss. Inspirados por influncias acadmicas e polticas semelhan-

    tes , ainda que no sem divergncias , os autores buscaram em seus trabalhosindividuais (Graeber, 2001; Lanna, 1995) construir um dilogo entre Mauss eMarx, que aflora aqui. A idia inicial deste artigo foi apresentar aspectos que consi-deramos importantes do trabalho de Mauss que vm sendo pouco privilegiadospor seus inmeros comentadores.

    2 Hoje poderamos refrasear isso. Com Karl Polanyi, outro socialista crtico ao co-munismo, poderamos at argumentar que, nos casos sovitico e chins, o socialis-mo criado por cima pode ser entendido como sistema redistributivo, isto , atransformao de sistemas no mercantis (ou de ddivas, entendidas no sentido

    mais amplo de prestaes) em um caso baseado na figura do czar e em outro nafigura imperial.

    3 Dizia: Desde Marx os socialistas evitaram cautelosamente construir utopias e de-senhar planos para sociedades futuras. Ao contrrio, sempre advogando a teseapocalptica geral do tomar a administrao das coisas, deixaram vagos, porqueimprevisveis, os procedimentos coletivos dessa administrao. Como poderia essarevoluo suprimir a administrao dos homens pelos homens? O que poderiaemergir de toda essa efervescncia moral, desse caos poltico e econmico?

    No importa quo irreligioso meu socialismo e quo pouco respeito me inspi-ram os primeiros atos dos bolcheviques a dissoluo da Assemblia Constituinte,o Tratado de Brest-Litovsk , eu no posso me dissociar deles. Moscou parecia amuitos de ns o que ela permanece sendo para muitas pessoas, mesmo aqui, umsanturio incubador do prprio destino de nossas idias (Mauss, 1992 [1925a],p. 173).

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    4 O caso trobriands no est distante desses trs, pois, como mostra Viveiros de

    Castro (1990; 1993), seu casamento patrilateral uma abertura a uma possveltransformao na direo do cognatismo.5 Isso talvez merecesse ser relacionado importante sugesto de Dumont (1977, p.

    153), nisto seguindo Marx, de que h uma afinidade profunda entre o Estadodemocrtico moderno e a religio crist [...]. Esse Estado no reconhece a religio,mas a pressupe [...] ao nvel da sociedade civil [...]. Isso assim porque o Estadodemocrtico, de um lado, e a religio crist, de outro, so expresses diferentes damesma coisa, a saber uma certa etapa do desenvolvimento do esprito humano,na qual, segundo Marx, Cristo seria o mediador entre os homens e a divindade,

    enquanto o Estado, o mediador entre os homens e sua no divindade.6 A viso de Mauss difere da de Marx por este enfocar totalidades (a diferena entre

    trabalho abstrato e concreto, os custos sociais de reproduo em relao ao exce-dente produzido significando explorao etc.), ainda que o faa de um ponto devista individualista (cf. a crtica de Dumont, 1977). Mauss se atm a instituiesmais particulares, como os contratos (estes, como vimos, com ele ganham sentidomenos amplo do que tinham para os filsofos contratualistas). Marx conclui que arelao salarial uma forma de troca desigual que parecia justa do ponto de vistados trabalhadores, que no poderiam captar a viso global da a eficcia ideolgi-

    ca do capitalismo. Mauss se interessava pela questo de os salrios no necessaria-mente parecerem moralmente justos aos participantes dos contratos. Marx salientacomo esse contrato particular, ou mesmo todos os contratos, derivou da lgicaburguesa e toma os adeptos de Proudhon que desejavam criar contratos livres,comunistas ou anrquicos como indulgentes em relao lgica pequeno-bur-guesa qual ele to consistentemente se ops.

    7 Note-se que essa posio, expressa em suas aulas no Institut dEthnologie na se-gunda metade dos anos 1930, no significa necessariamente um passo frente doEnsaio; ao contrrio, para pelo menos um de ns, significaria uma volta confu-so, tipicamente durkheimiana (cf. Lvi-Strauss, 1944), entre forma lgica e histo-ricamente elementar (como se os Kurnai fossem elementares em ambos os senti-dos, mas sabemos hoje que eles no o seriam em nenhum dos dois).

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    utes in the case of State.

    KEY-WORDS: Marcel Mauss, Communism, State.

    Aceito em novembro de 2005.