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A POLÍTICA DE FRONTEIRAS DA UNIÃO EUROPEIA. Do arranque adiado à centralidade progressiva Nuno Piçarra * Sumário: I. Introdução. II. Os antecedentes da política de fronteiras da União Europeia. III. Do Acto Único Europeu ao Tratado de Amesterdão: a política de fronteiras da União Europeia sob a égide da cooperação intergovernamental. IV. O Tratado de Amesterdão e a comunitarização da política de fronteiras da União Europeia: impacto e desenvolvimentos. V. As novas etapas. I. Introdução Com a entrada em vigor do Tratado de Amesterdão, em 1 de Maio de 1999, a União Europeia (UE ou União) tornou-se um espaço de fronteiras internas abertas que, desde 30 de Março de 2008, abrange o território de vinte e dois Estados-Membros, prolongando-se ainda pelo de quatro Estados não membros. Tal constitui uma concretização essencial do objectivo, acrescentado por aquele tratado ao artigo 2.º, quarto travessão, do Tratado de Maastricht (TUE), de “manutenção e desenvolvimento da União Europeia enquanto espaço de liberdade, de segurança e de justiça, em que seja assegurada a livre circulação de pessoas, em conjugação com medidas adequadas em matéria de controlos na fronteira externa, asilo e imigração, bem como de prevenção e combate à criminalidade”. A supressão dos controlos de pessoas na passagem das fronteiras internas da UE implica, nada mais, nada menos, do que a “colocação em comum” dos territórios dos Estados-Membros e, por conseguinte, da respectiva segurança interna – com todo o impacto que isso produz nas suas identidades de Estados-Nações soberanos 1 e, por reflexo, na identidade da própria UE. * Professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. 1 Tal como observou Max Weber, em termos que se tornaram clássicos, o Estado-Nação construiu-se para garantir a segurança de todos no interior do seu território, constituindo o controlo das fronteiras que erigiu simultaneamente uma barreira contra as ameaças e os perigos exteriores e um símbolo da soberania interna; cf. Emmanuelle Dardenne, “Immigration et asile: des nouvelles compétences pour la Communauté?” in Mario Telò e Paul Magnette, De Maastricht à Amsterdam. L’Europe et son nouveau traité, Bruxelas, 1998, p. 163.

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A POLÍTICA DE FRONTEIRAS DA UNIÃO EUROPEIA.

Do arranque adiado à centralidade progressiva

Nuno Piçarra*

Sumário: I. Introdução. II. Os antecedentes da política de fronteiras da União Europeia. III. Do Acto Único Europeu ao Tratado de Amesterdão: a política de fronteiras da União Europeia sob a égide da cooperação intergovernamental. IV. O Tratado de Amesterdão e a comunitarização da política de fronteiras da União Europeia: impacto e desenvolvimentos. V. As novas etapas.

I. Introdução

Com a entrada em vigor do Tratado de Amesterdão, em 1 de Maio de 1999, a União

Europeia (UE ou União) tornou-se um espaço de fronteiras internas abertas que, desde 30

de Março de 2008, abrange o território de vinte e dois Estados-Membros, prolongando-se

ainda pelo de quatro Estados não membros. Tal constitui uma concretização essencial do

objectivo, acrescentado por aquele tratado ao artigo 2.º, quarto travessão, do Tratado de

Maastricht (TUE), de “manutenção e desenvolvimento da União Europeia enquanto espaço

de liberdade, de segurança e de justiça, em que seja assegurada a livre circulação de

pessoas, em conjugação com medidas adequadas em matéria de controlos na fronteira

externa, asilo e imigração, bem como de prevenção e combate à criminalidade”.

A supressão dos controlos de pessoas na passagem das fronteiras internas da UE

implica, nada mais, nada menos, do que a “colocação em comum” dos territórios dos

Estados-Membros e, por conseguinte, da respectiva segurança interna – com todo o

impacto que isso produz nas suas identidades de Estados-Nações soberanos1 e, por reflexo,

na identidade da própria UE.

* Professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. 1 Tal como observou Max Weber, em termos que se tornaram clássicos, o Estado-Nação construiu-se para garantir a segurança de todos no interior do seu território, constituindo o controlo das fronteiras que erigiu simultaneamente uma barreira contra as ameaças e os perigos exteriores e um símbolo da soberania interna; cf. Emmanuelle Dardenne, “Immigration et asile: des nouvelles compétences pour la Communauté?” in Mario Telò e Paul Magnette, De Maastricht à Amsterdam. L’Europe et son nouveau traité, Bruxelas, 1998, p. 163.

O potencial integrador do objectivo de “manutenção e desenvolvimento” da UE

enquanto espaço de liberdade, segurança e justiça (ELSJ) é tal – de mais a mais, sob a

égide do método comunitário2 desde 1 de Maio de 1999 – que explica não só que dois

Estados-Membros (o Reino Unido e a Irlanda) tenham negociado o direito de “ficar fora”,

mas também que a construção desse espaço tenha sido progressiva, à medida que cada um

dos restantes Estados-Membros demonstre ter tomado as “medidas adequadas” para nele se

integrar (faltando actualmente tal demonstração relativamente a Chipre, à Bulgária e à

Roménia). O potencial integrador do ELSJ explica ainda, embora de forma à primeira vista

paradoxal, que quatro Estados não membros da UE (a Islândia e a Noruega, por um lado, a

Suíça e o Liechtenstein, por outro) tenham sido atraídos para esse espaço, renunciando

parcialmente a um dos símbolos mais visíveis da sua soberania interna que é o jus

includendi et excludendi.

É o Acto Único Europeu (AUE) que marca formalmente o nascimento da política

de fronteiras da UE, ao acrescentar ao Tratado de Roma (TCE), em Fevereiro de 1986, o

artigo 8.º-A (ulteriormente artigo 14.º), onde se define o mercado interno como “um espaço

sem fronteiras internas no qual a livre circulação das mercadorias, das pessoas, dos

serviços e dos capitais é assegurada”.

Todavia, as fortes divergências de interpretação a que este preceito deu azo entre os

Estados-Membros fizeram com que a implementação dessa política ficasse em grande

medida adiada até à entrada em vigor, em 1 de Maio de 1999, do Tratado de Amesterdão.

Ao aditar, por um lado, ao TCE o artigo 62.º – que confere expressamente ao legislador

comunitário competência para adoptar as “medidas destinadas a assegurar, de acordo com

2 Tal como sintetiza o Professor Doutor Paulo de Pitta e Cunha, a quem este estudo é dedicado, “o que há de profundamente original na Comunidade Europeia (e hoje, mais ainda, na realidade mais ampla que é a União Europeia) é o seu carácter híbrido, a presença simultânea de elementos atinentes à visão supranacional e à de cooperação intergovernamental. Estes elementos são oscilantes, porque o processo de integração é evolutivo e dinâmico”; cf. “Os impulsos federais na construção europeia”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XLI, 2000, p. 11, ênfase do Autor. Para maiores desenvolvimentos sobre a caracterização do método comunitário e da sua combinação sui generis do modelo da integração supranacional com o modelo da cooperação intergovernamental – que se salda, a nível institucional e decisório, pela partilha de poder entre os Estados-Membros, através dos órgãos que os representam (deliberando por maioria qualificada num número crescente de matérias), e órgãos independentes e, a nível normativo, por um direito dotado de uma eficácia praticamente idêntica à do direito estadual, ver, entre os estudos monográficos mais recentes, J. Meyring, “Intergovernamentalism and Supranationality: Two Stereotypes for a Complex Reality”, European Law Review, n.º 22, 1997, pp. 221 ss.; Renaud Dehousse, “La méthode communautaire a-t-elle encore un avenir?”, Mélanges en Hommage à Jean-Victor Louis, Volume I, Bruxelas, 2003, pp. 95 e ss.; Philippe Manin, “La «méthode communautaire»: changement et permanence”, Mélanges en hommage à Guy Isaac. 50 ans de droit communautaire, tomo I, Toulouse, 2004, pp. 213 ss.; Paul Magnette, What is the European Union? Nature and Prospects, Nova Iorque, 2005, especialmente pp. 1-29.

2

o artigo 14.º, a ausência de controlos de pessoas na passagem das fronteiras internas” e as

“medidas relativas à passagem das fronteiras externas dos Estados-Membros” e ao integrar,

por outro lado, o acervo de Schengen no âmbito da UE, o Tratado de Amesterdão

contribuiu decisivamente para que a política de fronteiras se viesse a tornar uma política

central da UE na actualidade.

O presente artigo propõe-se analisar os antecedentes de tal política (II), bem como a

sua evolução – primeiro sob a égide da cooperação intergovernamental (III) e depois sob a

égide do “método comunitário” (IV) – e ainda as novas etapas dela (IV).

II. Os antecedentes da política de fronteiras da União Europeia

Pode dizer-se que são de dois tipos os antecedentes da política de fronteiras da UE.

De um lado, estão os antecedentes práticos, remotos e próximos, resultantes da

criação, através de métodos de cooperação estritamente intergovernamental, de espaços de

fronteiras internas abertas entre determinados Estados-Membros, que trouxeram à UE todo

um capital de experiência quando se tratou da conversão dela própria num espaço de

idênticas características. Neste contexto pontifica, como é sabido, o Espaço Schengen que

constitui o precursor mais directo e marcante do ELSJ. De outro lado, estão aqueles que

poderiam ser denominados os “antecedentes ideológicos” dessa política, visando, no

essencial, aproximar a UE dos cidadãos.

Começar-se-á pela análise destes últimos antecedentes, que remontam à década de

setenta do século XX.

1. A ideia de conferir aos cidadãos dos Estados-Membros determinados direitos

susceptíveis de criar progressivamente um vínculo directo entre eles e a então Comunidade

Económica Europeia remonta à cimeira de Chefes de Estado e de Governo realizada na

Haia em 1969. Todavia, só na sequência do Conselho Europeu de Paris, de finais de 1974,

foi criado um grupo de trabalho encarregado de estudar, por um lado, “as condições e os

prazos para se poder atribuir aos cidadãos dos Estados-Membros direitos especiais como

membros da Comunidade” e, por outro lado, “a possibilidade de estabelecer uma união de

passaportes e, por antecipação, a introdução de um passaporte uniforme”.

3

Em relatório apresentado ao Conselho em Julho de 1975, a Comissão Europeia

concluía que a união de passaportes constitui não só um prolongamento natural da livre

circulação de pessoas, mas também um embrião de cidadania europeia, ao criar nos

nacionais dos Estados-Membros o sentimento de pertença comum à Comunidade3.

Foi o Relatório sobre a União Europeia apresentado ao Conselho Europeu de

Roma, de Dezembro de 1975, por Leo Tindemanns o primeiro documento a preconizar

abertamente, em nome da “Europa dos cidadãos”, o aperfeiçoamento da liberdade de

circulação de pessoas mediante a supressão progressiva das medidas de controlo nas

fronteiras comuns dos Estados-Membros, como complemento de uma união de

passaportes4.

A ideia só viria a ser retomada na década seguinte, em vésperas da conferência

intergovernamental que culminou na assinatura do Acto Único Europeu. Em Junho de

1984, por ocasião do Conselho Europeu de Fontainebleau, foi criado um comité ad hoc

(“comité Adonnino”) encarregado de propor medidas destinadas a reforçar e a promover a

identidade da Comunidade perante os seus cidadãos e perante o resto do mundo, entre as

quais se incluía, mais uma vez, o aperfeiçoamento da liberdade circulação de pessoas no

seu interior através da supressão dos controlos fronteiriços5. Tal ideia ficaria depois

estreitamente ligada à criação de um mercado interno, vindo a ser plasmada no artigo 14.º

do TCE.

2. Quanto aos “antecedentes práticos” da actual política de fronteiras da UE, cujo

núcleo aglutinador é precisamente a ausência de controlos de pessoas nas fronteiras

internas, há a enumerar três, por ordem cronológica: a União Nórdica de Passaportes

(UNP), a União Económica Benelux e o Espaço Schengen.

Precisamente no ano em que o Tratado de Roma foi assinado, a UNP integrou num

espaço de fronteiras internas abertas não só os três Estados escandinavos que vieram, bem

mais tarde, a tornar-se membros da UE (a Dinamarca em 1973 e a Finlândia e a Suécia em

1995) mas também os dois que não adquiriram tal estatuto. É, aliás, a UNP a explicar que a

Islândia e a Noruega integrem, ainda assim, o ELSJ. Seria, com efeito, politicamente

insustentável para os membros daquela União que, com a criação, primeiro do Espaço 3 Ver “Rumo à Europa dos Cidadãos”, Boletim das Comunidades Europeias, suplemento 7/75, especialmente pp. 27-28. 4 Ver Boletim das Comunidades Europeias, suplemento 1/76, especialmente pp. 27-29. 5 Para maiores desenvolvimentos, ver Nuno Piçarra, “Cidadania europeia, direito comunitário e direito nacional”, O Direito, ano 126.º, 1994, pp. 203-205.

4

Schengen e, depois, do ELSJ, a UNP fosse fracturada por uma “fronteira externa”

separando os três Estados-Membros da UE dos dois Estados não membros6.

A União Económica Benelux, por seu lado, integra os três Estados (Bélgica,

Holanda e Luxemburgo) que, em 11 de Abril de 1960, já membros da Comunidade

Europeia, assinaram em Bruxelas uma Convenção sobre a transferência dos controlos de

entrada e de saída de pessoas para as fronteiras externas do território comum Benelux. Tal

permitiu-lhes constituir entre si um espaço de fronteiras internas abertas, cujo modelo tanta

influência haveria de exercer ulteriormente7.

Quase um quarto de século mais tarde, em 13 de Junho de 1984, a Alemanha e a

França assinaram o Acordo de Saarbrücken, tendente à supressão gradual dos controlos de

pessoas nas suas fronteiras comuns. Fizeram-no não só devido à ausência de uma

perspectiva credível de acordo rápido no âmbito da Comunidade Europeia quanto à

consagração do princípio da eliminação dos controlos nas fronteiras internas, mas também

na sequência da pressão exercida por um número muito significativo de condutores de

transportes rodoviários que, desde a anterior Primavera, bloqueavam insistentemente as

estradas numa série de postos de fronteiras comuns, como forma de protesto contra as

formalidades e as demoras na passagem das mesmas. Poucos dias antes (31 de Maio de

1984) a Alemanha e os Estados Benelux haviam chegado a um idêntico acordo. A fusão de

ambas as iniciativas levou à conclusão, pelos cinco Estados, do Acordo de Schengen e da

sua Convenção de Aplicação, respectivamente em 14 de Junho de 1985 e em 19 de Junho

de 1990.

3. Foi sob a égide destes dois últimos instrumentos que todos os Estados-Membros

da UE a quinze – com excepção do Reino Unido e da Irlanda –, a que se juntaram, como já

se disse, a Islândia e a Noruega, vieram a constituir progressivamente, a partir de 26 de

Março de 1995, o mais vasto espaço sem controlos de pessoas nas fronteiras internas desde

6 Para maiores desenvolvimentos sobre a União Nórdica de Passaportes, ver Kim U. Kjaer, “How Many Borders in the EU?” in K. Groenendijk, E. Guild e P. Minderhoud, In Search of Europe’s Borders (ed.) Haia, 2003, pp. 180 ss.; sobre os termos da integração da Islândia e da Noruega no ELSJ, ver o acordo celebrado entre a UE e aqueles dois Estados em 18 de Maio de 1999, em execução do artigo 6.º, primeiro parágrafo, do Protocolo que integra o acervo de Schengen no âmbito da UE, publicado no Jornal Oficial da União Europeia (JO) L 176 de 10-7-1999, pp. 36 ss. 7 Sobre a União Económica Benelux, ver D. C. Turack, The Passport in International Law, Nova Iorque, 1972, capítulo 10, e Kees Groenendijk, “Reinstatement of Controls at the Internal Borders of Europe: Why and Against Whom?”, European Law Journal, vol. 10, 2004, pp. 151-152.

5

que a Europa se estruturou politicamente em Estados-Nações soberanos, numa época afinal

não tão remota.

O Acordo e a Convenção de Schengen inspiraram-se no acordo celebrado pelos

Estados Benelux, em vigor desde Julho de 1960. A singularizá-los em relação a este último

e também à UNP, está o facto de o princípio segundo o qual “as fronteiras internas podem

ser transpostas em qualquer local sem que o controlo de pessoas seja efectuado”,

estabelecido pelo conhecido artigo 2.º, n.º 1, daquela convenção, ter sido acompanhado por

uma vasta e pormenorizada panóplia de medidas compensatórias, consideradas por muitos

como de cunho fortemente securitário e “orientado para o controlo”. Tal explicar-se-á pelo

facto de os Acordos de Schengen terem sido assinados numa época em que os países da

Europa Ocidental conheciam um nítido aumento do número de requerentes de asilo

provenientes de países terceiros8.

Independentemente disso, não restam dúvidas de que a eliminação dos controlos

nas fronteiras internas – cujo objectivo é aprofundar a liberdade de circulação de pessoas –

vai necessariamente permitir uma deslocação mais fácil dos agentes do crime organizado e

dos mais diversos tráficos ilícitos9. Daí a necessidade incontornável de tal eliminação ser

sempre complementada por medidas compensatórias ou de acompanhamento.

Entre as medidas desta natureza previstas pela Convenção de Schengen – e cuja

implementação constituiria, aliás, condição sine qua non para a própria supressão dos

controlos de pessoas nas fronteiras internas10 – contam-se como mais emblemáticas (1) o

reforço dos controlos nas fronteiras externas; (2) a harmonização de uma série de aspectos

do direito dos estrangeiros dos Estados signatários ou aderentes (“visto uniforme

Schengen”, regras sobre a estada de curta duração, regras sobre a determinação do Estado

responsável pela análise de um pedido de asilo, medidas de combate à imigração ilegal);

(3) formas avançadas de cooperação policial (perseguição e vigilância transfronteiriças) e

de cooperação judiciária em matéria penal (processos simplificados e mais expeditos de

extradição). A chave da abóbada destas medidas compensatórias é o Sistema de

8 Cf. Kees Groenendijk, op. cit. na nota anterior, p. 153; Kim U. Kjaer, “How Many Borders in the EU?”, cit., p. 186. 9 Assim Luís Pais Antunes, “A liberdade de circulação e a segurança interna” in Álvaro de Vasconcelos (coord.), Portugal no Centro da Europa. Proposta para uma Reforma Democrática do Tratado da União Europeia, Lisboa, 1995, p. 108. 10 Tal como explicita uma declaração comum adoptada no momento da assinatura da Convenção de Schengen, esta só seria posta em vigor e, portanto, suprimidos os controlos nas fronteiras internas quando estivessem preenchidas as condições prévias para o efeito e quando fossem “efectivos os controlos nas fronteiras externas”.

6

Informação Schengen (SIS), cujo objectivo consiste em preservar devidamente a ordem e a

segurança pública das Partes Contratantes e gerir os fluxos migratórios no espaço comum,

através da troca de informações sobre pessoas e objectos possibilitada por este sistema11.

4. Entre as razões que levaram cinco Estados-Membros da UE a celebrar, à margem

desta, os Acordos de Schengen, conta-se a falta de consenso entre os então doze Estados-

Membros para fazer da própria UE um espaço de fronteiras internas abertas com base no

artigo 8.º-A introduzido no Tratado de Roma pelo AUE.

Quando, finalmente, o Tratado de Amesterdão introduziu no TCE o artigo 62.º –

ainda que ao preço do opt-out do Reino Unido e da Irlanda (e também da Dinamarca,

embora noutros termos) – cessava a principal razão para manter o Espaço Schengen,

parcialmente efectivo enquanto espaço de fronteiras internas abertas desde 26 de Março de

199512, à margem do quadro institucional e normativo da UE. Por isso mesmo, a sua

transferência para o âmbito desta veio a ser determinada pelo Protocolo que o Tratado de

Amesterdão anexou ao TCE e ao TUE para o efeito. Lê-se no preâmbulo deste protocolo

que o acervo de Schengen “se destina a reforçar a integração europeia e, em especial, a

possibilitar que a União Europeia se transforme mais rapidamente num espaço de

liberdade, de segurança e de justiça”13.

Por outro lado, tal como já se observara no ponto 26 do “Plano de Acção do

Conselho e da Comissão sobre a melhor forma de aplicar as disposições do Tratado de

Amesterdão relativas à criação de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça14, “a

integração do acervo de Schengen no quadro da União Europeia implicará que, a partir da

11 Para maiores desenvolvimentos sobre o conteúdo do Acordo e da Convenção de Schengen, ver por último Thomas Wahl e Sarah Schultz, “The Enlargement of the Schengen Area”, Eucrim. The European Criminal Law Associations’ Forum, n.º 3-4, 2007, pp. 66 ss. 12 Diz-se parcialmente porque, como é sabido, em 26 de Março de 1995 a França recusou-se a suprimir os controlos de pessoas nas suas fronteiras com a Bélgica e o Luxemburgo, invocando abusivamente razões de ordem pública e de segurança nacional, contempladas pelo artigo 2.º, n.º 2, da Convenção apenas como fundamento para a reposição excepcional desses controlos, a pretexto de se tratar de dois países de trânsito de droga proveniente dos Países Baixos – cujo “laxismo” em matéria de política de combate à droga o governo francês de então censurava. À data da sua integração na UE, o Espaço Schengen abrangia os territórios dos três Estados Benelux, da Alemanha, da França, da Espanha, de Portugal, da Áustria e da Itália, encontrando-se o processo de supressão dos controlos nas fronteiras internas com a Grécia em fase avançada. 13 Para maiores desenvolvimentos, ver Steve Peers, EU Justice and Home Affairs, 2.ª edição, Oxford, 2006, pp. 44 ss.; Nuno Piçarra, “La mise en oeuvre du protocole intégrant l’acquis de Schengen dans le cadre de l’Union européenne: Règles et procédures” in Monica den Boer (edit.) Schengen’s Final Days? The Incorporation of Schengen into the New TEU, External Borders and Information Systems, Maastricht, 1998, pp. 25 ss., e “O modelo de integração do acervo de Schengen na União Europeia: Cooperação reforçada e «ordens de legislar» ao Conselho” Legislação, n.º 22, 1998, pp. 23 ss. 14 Aprovado pelo Conselho em 3 de Dezembro de 1998 e publicado no JO C 19/1 de 23-1-1999.

7

data de entrada em vigor do Tratado de Amesterdão, os objectivos da Comunidade tal

como definidos em todo o artigo 62.º do TCE (…) terão em grande parte sido realizados

em relação a 10 Estados-Membros e, em relação a 13 Estados-Membros, a partir da data da

decisão do Conselho constante do n.º 2 do artigo 2.º do Protocolo Schengen. Significa isto

que muito do trabalho substantivo terá sido efectuado com grande antecedência em relação

ao prazo limite de cinco anos estabelecido pelo artigo 62.º”.

II. A política de fronteiras da União Europeia sob a égide da cooperação

intergovernamental: do Acto Único Europeu ao Tratado de Amesterdão

O já citado artigo 8.º-A (e ulterior artigo 14.º) do TCE abole, pelo menos

retoricamente, as próprias fronteiras internas. Devido à aparente impossibilidade de o

aplicar a sério, por literalmente suprimir um elemento essencial dos próprios Estados-

Membros15, ele prestou-se a divergências de interpretação que o tornaram insusceptível de

servir de base para fazer da UE um espaço de fronteiras internas abertas, com tudo o que

isso implicava em termos de “medidas compensatórias”. Mas o próprio AUE não deixava

de conter elementos permitindo inferir que tais medidas deveriam ser adoptadas sob a

égide não do TCE e do método comunitário, mas da cooperação intergovernamental regida

pelo direito internacional público.

1. A maioria dos Estados-Membros, ainda que alguns, porventura, com “reserva

mental”, interpretava o artigo 14.º do TCE no sentido de que ele não só exigia a supressão

dos controlos de pessoas nas fronteiras internas, como conferia à UE competência para

estabelecer os controlos a efectuar nas fronteiras externas e, eventualmente, outras

“medidas compensatórias” tendo por destinatários exclusivos os nacionais de países

terceiros (estrangeiros), como as políticas de vistos, de asilo e de imigração.

Ao invés, para os então dois únicos Estados-Membros insulares, com o Reino

Unido à cabeça, a liberdade de circulação de pessoas contemplada pelo artigo 14.º apenas

pretendia beneficiar os nacionais dos Estados-Membros, com exclusão, portanto, dos

nacionais de países terceiros que já se encontrassem na UE. É bom de ver que uma tal 15 Como bem observa John Cowley, “Locating Europe” in K. Groenendijk, E. Guild e P. Minderhoud (ed.), In Search of Europe’s Borders, cit., p. 38, “se o artigo 14.º do TCE fosse aplicado a sério, deixariam de existir fronteiras internas para serem atravessadas, tornando ocioso o artigo 62.º, ponto 1, do TCE”.

8

delimitação do âmbito subjectivo de aplicação do artigo 14.º inviabilizava na prática a

supressão dos controlos de pessoas na passagem das fronteiras internas: qualquer distinção

a fazer, em tal ocasião, entre cidadãos da UE e cidadãos de países terceiros implicaria

inevitavelmente o controlo de todas as pessoas nessas fronteiras, em ordem a identificar

quais os nacionais dos Estados-Membros e quais os nacionais de países terceiros. Não

sendo possível na prática controlar só os cidadãos de Estados terceiros, a única alternativa

seria, pois, controlar todas as pessoas que pretendessem passar uma fronteira interna.

Foi, no essencial, esta divergência nunca ultrapassada entre os Estados-Membros a

impedir que a abolição dos controlos de pessoas nas fronteiras internas se tornasse

realidade, no quadro da UE, com base no artigo 14.º do TCE, não obstante a proposta de

directiva nesse sentido, relutantemente apresentada pela Comissão Europeia em 1995.

Registe-se, no entanto, que a “interpretação maioritária” do artigo 14.º do TCE viria

a ser sufragada bem mais tarde pelo próprio TJ, embora num momento em que o artigo

62.º do TCE já se encontrava vigor, e a UE dispunha de competência expressa em matéria

de passagem das fronteiras externas, de vistos, de asilo e de imigração. Tal interpretação

foi expendida em resposta à questão prejudicial, colocada por um tribunal nacional, de

saber se o artigo 14.º seria susceptível de produzir efeito directo e, portanto, de ser

invocado contra os controlos de pessoas efectuados nas fronteiras internas da UE.

Segundo o TJ, a obrigação de supressão de tais controlos “pressupõe a

harmonização das legislações dos Estados-Membros em matéria de passagem das

fronteiras externas da Comunidade, de imigração, de concessão de vistos, de asilo e de

troca de informações sobre estas questões (…). Enquanto não forem adoptadas disposições

comunitárias relativas aos controlos nas fronteiras externas da Comunidade, o que implica

igualmente regras comuns ou harmonizadas designadamente em matéria de condições de

entrada, de vistos e de asilo, o exercício dos direitos previstos pelo artigo 14.º pressupõe

que a pessoa em causa possa provar que tem a nacionalidade de um Estado-Membro”16.

Para o TJ, o artigo 14.º constituía, portanto, uma base jurídica adequada para a UE

legislar sobre todas estas matérias, solução não isenta de controvérsia anteriormente à

entrada em vigor do Tratado de Amesterdão. Mas ficava pelo menos assente que a

integração negativa resultante da supressão dos controlos nas fronteiras internas dependeria

da adopção de um número considerável de medidas de integração jurídica positiva, 16 Ver o acórdão de 21 de Setembro de 1999, Wijsenbeek, processo C-378/97, n.ºs 40 e 42, ênfase acrescentada. Sobre este acórdão, ver Jean-Yves Carlier, La condition des personnes dans l’Union européenne, Bruxelas, 2007, pp. 32-33.

9

enunciadas pelo próprio TJ – solução para que já apontava, de resto, o próprio AUE, como

se verá a seguir.

2. Anexada à Acta Final da Conferência Intergovernamental que culminou na

aprovação do AUE figurava uma declaração política dos governos dos Estados-Membros

relativa à livre circulação de pessoas, que sujeitava inequivocamente a uma lógica

intergovernamental – “sem prejuízo das competências da Comunidade” (cuja exacta

determinação permanecia, no entanto, em aberto) – a indispensável cooperação respeitante

não só à entrada, à circulação e à estada de cidadãos de países terceiros nos respectivos

territórios, mas também à luta contra o terrorismo, a criminalidade, a droga e o tráfico de

obras de arte e de antiguidades. E confirmando a opção basicamente intergovernamental

dos signatários do AUE nestes domínios, uma “declaração geral” relativa, entre outros, ao

artigo 8.º-A precisava que nada nesta disposição afectaria o direito de os Estados-Membros

tomarem unilateralmente as medidas que considerassem necessárias “em matéria de

controlo da imigração de países terceiros e de luta contra o terrorismo, a criminalidade, o

tráfico de drogas e o tráfico de obras de arte e de antiguidades”.

Ulteriormente, o Conselho Europeu reunido em Rodes em Dezembro de 1988

também veio deixar claro que “a realização dos objectivos da Comunidade, especialmente

o espaço sem fronteiras internas, está ligado ao progresso na cooperação

intergovernamental destinada a combater o terrorismo, a criminalidade internacional, o

tráfico de droga e o tráfico de todas as espécies”.

Ficavam assim reunidas as condições para tirar da letargia a cooperação

estritamente intergovernamental no domínio dos assuntos internos que, no final de 1975, o

Conselho Europeu de Roma tinha lançado, à margem da Comunidade Europeia, com a

criação do grupo TREVI. Este reunia os ministros da administração interna dos nove

Estados-Membros com vista a trocar informações sobre o “euroterrorismo” que então

assolava a maioria deles.

Com efeito, foi justamente o objectivo de criação de um “espaço sem fronteiras

internas”, inscrito no AUE, que veio a dar o verdadeiro impulso ao arranque da cooperação

intergovernamental entre os Estados-Membros, não só no domínio dos assuntos internos,

mas também no domínio da justiça. A testemunhá-lo está o facto de, na sequência da

entrada em vigor do AUE, o grupo TREVI – que nos dez anos subsequentes à sua criação

só reunira seis vezes – ter alargado o âmbito de competência à criminalidade internacional,

10

ao tráfico de droga e também ao controlo nas fronteiras externas, aos vistos, ao asilo e à

imigração clandestina17. Mas testemunha-o também a criação, em finais de 1986, do grupo

ad hoc Imigração, encarregado de estudar, na óptica da livre circulação de pessoas na UE,

as medidas compensatórias ligadas à passagem das fronteiras externas, à concessão de

vistos e ao asilo, cujos trabalhos se saldaram pela elaboração de uma convenção contendo

as regras sobre a determinação do Estado-Membro responsável pela análise do pedido de

asilo apresentado a mais do que um, assinada em Dublin em Junho de 1990.

Testemunha, por outro lado, o impulso que o objectivo de fazer da UE um espaço

de fronteiras internas abertas deu à cooperação intergovernamental nos domínios JAI a

criação, pelo Conselho Europeu de Rodes, do grupo de coordenadores da livre circulação

de pessoas, bem como a criação, em 1989, do comité europeu de luta antidroga (CELAD)

para coordenar as acções dos Estados-Membros em matéria de prevenção e de repressão do

tráfico de droga. E testemunha, finalmente, o mesmo impulso a criação de um grupo de

cooperação judiciária em matéria penal e a assinatura, no quadro da cooperação política

europeia institucionalizada pelo AUE, de cinco instrumentos consagrados a diferentes

aspectos daquela cooperação judiciária, com vista a torná-la mais simples, operacional e

adequada às necessidades da UE do que a desenvolvida no âmbito do Conselho da

Europa18.

A razão de ser da preferência pela cooperação intergovernamental foi, como é

óbvio, limitar decisivamente a possibilidade de interferência das “instituições

supranacionais” da UE (Comissão, Parlamento Europeu e Tribunal de Justiça) em matérias

que os Estados-Membros consideravam como fazendo parte do núcleo duro da sua

soberania e portanto a subtrair ao método comunitário – que os obrigaria a repartir poderes

com tais instituições19.

No entanto, a proliferação de todos estes grupos inspirados por uma estrita lógica

de cooperação intergovernamental, o carácter descontínuo das suas reuniões, a

sobreposição das suas competências e a descoordenação dos respectivos trabalhos, não

permitiram uma visão global das questões abordadas, para além de não se terem traduzido

17 Cf. Emmanuelle Dardenne, “Immigration et asile: de nouvelles compétences pour la Communauté”, cit., pp. 163 e 165. 18 Cf., por último, Anabela Miranda Rodrigues, O Direito Penal Europeu Emergente, Coimbra, 2008, pp. 40-41, onde pode encontrar-se a lista dos referidos instrumentos de direito internacional. 19 Neste sentido, Maria Luísa Duarte, A Liberdade de Circulação de Pessoas e a Ordem Pública no Direito Comunitário, Coimbra, 1992, pp. 346 ss., especialmente pp. 349-350; Steve Peers, op. cit., p. 8; Renaud Dehouse, op. cit., p. 100; Helen Staples, “Adjudicating the External Schengen Border” in K. Groenendijk, E. Guild e P. Minderhoud (ed.), In Search of Europe’s Borders, cit., p. 249.

11

em resultados palpáveis – o que tornou evidente a considerável ineficácia do método em

causa. Assim, no relatório apresentado em 1989 ao Conselho Europeu de Madrid – mais

conhecido por Documento de Palma –, o grupo dos coordenadores da livre circulação dava

conta de que “as questões ligadas à livre circulação de pessoas colocam um problema a

respeito dos métodos a seguir, dada a multiplicidade de fóruns em que são discutidos –

Comunidade Europeia, Cooperação Política Europeia [instituída pelo Título III do AUE],

Ministros da Imigração, Grupo TREVI, Conselho da Europa – e que terão que ser

coordenados”. Mas o mesmo documento insistia em que “a criação de um espaço sem

fronteiras internas, de acordo com o TCE, exigirá o reforço dos controlos nas fronteiras

externas, o que envolverá uma cooperação intergovernamental aprofundada”.

3. Em 1992, o Tratado de Maastricht, mantendo-se na senda do AUE, optou por

colocar o conjunto das políticas globalmente entendidas como indispensáveis à

transformação da União num espaço de fronteiras internas abertas sob a égide do III Pilar,

regido pelo Título VI daquele tratado (“Disposições relativas à cooperação nos domínios

da justiça e dos assuntos internos”)20, e da sua lógica de cooperação intergovernamental, e

não por sujeitá-las ao método comunitário (com excepção de certos aspectos da política de

vistos, que passaram a reger-se pelo então artigo 100.º-C do TCE). E isto sem prejuízo de

continuar a não ser pacífica a interpretação do artigo 14.º do TCE quanto ao ponto de saber

se implicava, ou não, para os Estados-Membros, a obrigação de supressão dos controlos de

pessoas nas suas fronteiras comuns e se constituía, ou não, uma base jurídica adequada

para a adopção das medidas de integração jurídica positiva, ulteriormente enumeradas pelo

TJ no acórdão Wijsenbeek.

Fosse como fosse, o artigo K.1 do Título VI elencou expressamente tais medidas de

integração jurídica positiva como questões de interesse comum dos Estados-Membros

“para a realização dos objectivos da União, nomeadamente o da livre circulação de

pessoas, e sem prejuízo das atribuições e competências da Comunidade Europeia”. Entre

elas contavam-se, designadamente, “as regras aplicáveis à passagem de pessoas nas

20 Sobre a génese e o conteúdo originário do Título VI do TUE, ver por exemplo Constança Urbano de Sousa, “O «novo» Terceiro Pilar da União Europeia: a cooperação policial e judiciária em matéria penal”, Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Volume 1, Coimbra, 2001, pp. 867 ss., e Cristina Gortázar, “Abolishing Border Controls: Individual Rights and Common Control of EU External Borders” in Elspeth Guild e Carol Harlow (edit.) Implementing Amsterdam Immigration and Asylum Rights in EC Law, Oxford, 2002, pp. 128 ss.

12

fronteiras externas dos Estados-Membros e ao exercício do controlo dessa passagem”

(artigo K.1, n.º 2).

Apesar de não clarificar se o artigo 8.º-A do TCE, impunha, ou não, aos Estados-

Membros a obrigação de suprimirem os controlos de pessoas nas suas fronteiras internas e

de manter a adopção das indispensáveis medidas de integração jurídica positiva sob a égide

da cooperação intergovernamental, o Tratado de Maastricht representou uma considerável

evolução relativamente ao AUE. Com efeito, o seu Título VI veio introduzir a cooperação

intergovernamental coordenada a nível da UE, pondo fim à exclusão global da cooperação

JAI do âmbito União. Ao pôr assim o quadro institucional e jurídico desta ao serviço da

cooperação JAI, o Tratado de Maastricht veio permitir uma visão global e não segmentada

de tal cooperação, assim como a coerência das acções empreendidas em seu

desenvolvimento21.

A cooperação intergovernamental coordenada a nível da UE já implicava a

intervenção da Comissão Europeia, do Parlamento Europeu (PE) e até do TJ nas “matérias

JAI”, se bem que com um estatuto muito diferente do que o TCE lhes atribui na qualidade

de “instituições supranacionais”. Na realidade, a Comissão não só não dispunha do

monopólio de iniciativa legislativa, como esta lhe era expressamente vedada em

determinadas matérias; para além disso não dispunha de quaisquer competências de

execução ou de fiscalização (artigo K.3, n.º 2). O PE, por seu lado, apenas seria informado

e consultado pela presidência do Conselho “sobre os principais aspectos das actividades

nos domínios a que se refere o presente Título”, podendo ainda dirigir perguntas ou

apresentar recomendações ao Conselho e exercer alguma influência sobre a agenda deste

através da arma do controlo orçamental (artigos K.6 e K.8). Quanto ao TJ, ele poderia

eventualmente vir a interpretar prejudicialmente determinados actos adoptados pelo

Conselho e resolver diferendos relativos à sua aplicação (artigo K.3, último parágrafo).

21 A expressão “cooperação coordenada entre os Estados-Membros a nível europeu” é utilizada por David O’Keeffe, “Can the Leopard Change its Spots? Visas, Immigration and Asylum – Following Amsterdam” in David O’Keeffe e Patrick Twomey (edit.), Legal Issues of the Amsterdam Treaty, Oxford, 1999, pp. 272-273, para caracterizar o Título VI do TUE, na sua versão originária. Para uma visão crítica, nesta perspectiva, do Título VI ver por exemplo D. M. Curtin e J. F. M. Pouw, “La coopération dans le domaine de la justice et des affaires intérieures au sein de l’Union européenne: une nostalgie d’avant Maastricht?”, Revue du Marché Unique Européen, 1995, pp. 13 ss. Na doutrina portuguesa, cf. Luís Pais Antunes, “A liberdade de circulação e a segurança interna”, cit., p. 119.

13

Podia, portanto, ver-se nas disposições citadas “ligeiras matizes comunitárias” ou mesmo

um “fermento de comunitarização”22.

Todavia, precisamente por não ter clarificado que a UE tinha por objectivo

transformar-se num espaço de fronteiras internas abertas, o Tratado de Maastricht acabou

por não dar o impulso que faltava para o desenvolvimento de uma política de fronteiras

própria da União. A análise do acervo constituído no âmbito desta até à data da entrada em

vigor do Tratado de Amesterdão comprova a modéstia dos resultados alcançados na

matéria23. E aquele que seria, sem dúvida, o mais importante dos elementos desse acervo –

a Convenção relativa à passagem das fronteiras externas da Comunidade – malogrou-se

definitivamente em Junho de 1991, devido ao contencioso hispano-britânico sobre

Gibraltar24.

4. Por todas estas razões, até à entrada em vigor do Tratado de Amesterdão,

considerou-se, em geral, que a liberdade de circulação de pessoas reconhecida pelo TCE,

incluindo o direito de entrada e de permanência de qualquer nacional de um Estado-

Membro no território dos restantes, não exigia necessariamente a eliminação dos controlos

nas fronteiras comuns25. E isto não obstante a vigência, desde 1 de Julho de 1987, da

disposição que define o mercado interno da UE como “um espaço sem fronteiras internas

no qual é assegurada a livre circulação das mercadorias, das pessoas, dos serviços e dos

capitais”.

Tal como a jurisprudência proferida pelo TJ sob a vigência do AUE e do Tratado de

Maastricht veio confirmar, o direito de acesso dos nacionais de um Estado-Membro ao

território dos outros apenas implicava limitações à discricionariedade dos Estados-

Membros no exercício do jus includendi et excludendi, mas não a renúncia de princípio

àquela prerrogativa soberana nas fronteiras comuns. Mais concretamente, tal como o

22 Cf. por último Anne Weyembergh, “L’espace pénal européen” in Lucette Defalque (coord.) Actualités en droit européen et rappel de quelques principes, Bruxelas, 2006, p. 76. 23 Ver a lista dos actos adoptados em execução do artigo K.1, n.º 2, alguns dos quais de eficácia jurídica duvidosa, no documento elaborado pela Comissão Europeia, JAI-Acquis, Update October 2008, pp. 6-7. 24 Sobre as razões do malogro de tal convenção, ver por todos Cristina Izquierdo Sans, Gibraltar en la Unión Europea. Consequencias sobre el contencioso hispánico-británico y el proceso de construcción europea, Madrid, 1996, especialmente pp. 246 ss. O veto espanhol a tal convenção fundamentou-se designadamente no facto de ela converter o porto e o aeroporto de Gibraltar em fronteira externa da União sob controlo britânico. 25 No sentido de que a eliminação de tais controlos fronteiriços excederia mesmo a finalidade da Comunidade Económica Europeia, cf. Philippe Schmitter, “A Comunidade Europeia: uma forma de dominação política”, Análise Social, n.º 118-119, 1992, p. 746.

14

declarou, entre outros, o acórdão do TJ de 27 de Abril de 198926, interpretando as

directivas relativas à supressão das restrições à liberdade de circulação de pessoas então

em vigor, a única condição prévia a que os Estados-Membros podiam sujeitar o direito de

entrada no território das pessoas abrangidas por aquelas directivas era a apresentação de

bilhete de identidade ou de passaporte válidos, desde logo nas suas fronteiras. Assim

sendo, os controlos aqui levados a cabo relativamente aos nacionais dos outros Estados-

Membros não poderiam traduzir-se na colocação de questões relativamente ao objectivo e

à duração da estada no correspondente território27.

IV. – O Tratado de Amesterdão e a comunitarização da política de fronteiras da

União Europeia: impacto e desenvolvimentos

Como se referiu no início, foi o Tratado de Amesterdão que consignou o objectivo

de a UE se tornar um espaço de fronteiras internas abertas. Por conseguinte, todos os

Estados-Membros, com excepção de dois, ficaram obrigados pelo direito da UE a suprimir

os controlos de pessoas nessas fronteiras, uma vez adoptadas as medidas compensatórias

ou de acompanhamento necessárias para o efeito. Foi também o Tratado de Amesterdão

que colocou sob a égide do método comunitário a política de fronteiras da UE. Isso

permitiu que, finalmente, tal política pudesse arrancar em força – ajudada pela integração

do acervo de Schengen no âmbito da UE, nos termos atrás assinalados – e viesse a adquirir

uma centralidade progressiva entre as políticas europeias, certamente destinada a perdurar

no futuro, antes de mais nada devido à pressão imigratória sem precedentes a que a União

no seu conjunto se encontra sujeita.

São as implicações e os desenvolvimentos dessa política que importa agora

analisar.

1. Deve começar-se por registar que a redacção dada pelo Tratado de Amesterdão

ao artigo 62.º, ponto 1, do TCE – que confere competência ao Conselho para adoptar as

26 Proferido no processo Comissão contra Bélgica, 321/87, n.º 11. 27 Ver o acórdão de 31 de Maio de 1991, Comissão contra Holanda, C-68/89, n.º 13. Esta jurisprudência parece de continuar a aplicar-se, quer aos controlos fronteiriços permitidos pelo Protocolo relativo à aplicação de certos aspectos do artigo 26.º do Tratado de Roma ao Reino Unido e à Irlanda, que incidam sobre cidadãos de outros Estados-Membros e seus familiares, quer aos controlos nas fronteiras internas dos restantes Estados-Membros excepcionalmente repostos ao abrigo da actual legislação da UE.

15

“medidas destinadas a assegurar, de acordo com o artigo 14.º, a ausência de controlos de

pessoas, quer se trate de cidadãos da União, quer de nacionais de países terceiros, na

passagem das fronteiras internas” – soa prima facie algo estranha. Com efeito, na prática,

só haverá ausência de controlos de pessoas nas fronteiras internas se, no momento da

passagem, não se distinguir entre nacionais dos Estados-Membros e nacionais de países

terceiros. Qualquer tentativa de distinguir entre ambas as categorias em tal ocasião

redunda, inevitavelmente, na realização de controlos em ordem a determinar a que

categoria pertence cada uma das pessoas que pretende atravessar a fronteira, deixando, por

conseguinte, de poder falar-se em ausência de controlos.

A precisão feita no artigo 62.º, ponto 1, pretendeu resolver em determinado sentido

a longa e bloqueadora polémica que se instalou entre os Estados-Membros a propósito da

interpretação do artigo 14.º, n.º 2, do TCE (para que aquela disposição, aliás, remete),

viabilizando assim a efectiva abolição dos controlos de pessoas nas fronteiras internas da

UE, embora ao preço do opt-out dos dois Estados-Membros que o interpretavam em

sentido contrário.

Quanto à disposição constante do ponto 2, alínea a), do artigo 62.º – que confere ao

Conselho competência para adoptar “as normas e processos a seguir pelos Estados-

Membros para a realização dos controlos de pessoas nas fronteiras externas” – é sobretudo

de salientar que, como adiante se verá em pormenor, ela tem sido interpretada e aplicada

no sentido de que tais “normas e processos” compreendem uma forte componente de

cooperação operacional entre as autoridades nacionais competentes, colocadas em rede

para o efeito. Dificilmente poderia ser de outra maneira, tendo em conta a “colocação em

comum” das fronteiras externas, reflexamente operada pela decisão de abertura das

fronteiras internas.

A supressão dos controlos de pessoas nas fronteiras internas correspondentes a cada

Estado-Membro depende de uma decisão do Conselho tomada por unanimidade, nos

termos do artigo 2.º, n.º 2, do Protocolo que integra o acervo de Schengen no âmbito da

UE, após uma avaliação individual, de onde resulte comprovada a capacidade para aplicar

na íntegra o acervo em vigor, incluindo a participação no SIS28. Quanto a este último

28 Sobre o tema ver Nuno Piçarra, “As garantias de cumprimento das obrigações dos Estados-Membros no espaço de liberdade, segurança e justiça”, Estudos em Memória do Professor Doutor José Dias Marques, Coimbra, 2007, pp. 707 ss.

16

aspecto, é antes de mais à própria UE que cabe a responsabilidade pela adaptação do SIS

às necessidades decorrentes da integração de novos Estados-Membros29.

2. É bom de ver que o artigo 62.º do TCE têm as mais fundas implicações para a

caracterização quer da UE, quer dos seus Estados-Membros e, por conseguinte, para o

próprio projecto de integração europeia no seu estádio actual.

Com efeito, o Estado enquanto organização formalmente centralizada e

diferenciada da sociedade possui, entre outras características, a de reivindicar a

competência exclusiva para controlar a circulação de pessoas e bens através das suas

fronteiras. Ora, ao renunciarem a essa reivindicação nas fronteiras internas e ao colocarem-

na em comum relativamente às fronteiras externas, os Estados-Membros provocaram uma

considerável mutação nas suas identidades tradicionais de Estados-Nações.

Por sua vez, ao atribuir à UE competência para uniformizar os controlos

fronteiriços deslocados para as fronteiras externas, o TCE aproximou-a de um federação,

dotando-a de uma fronteira externa colectiva, a defender e eventualmente a fortalecer30. A

própria UE vê-se, por conseguinte, directamente envolvida nas questões de identidade,

controlo e segurança imbricadas no conceito de fronteira31.

O que fica dito não deve, no entanto, fazer perder de vista que a distinção entre a

UE e um Estado federal continua a ser muito clara, mesmo sob a perspectiva em análise.

Isto fundamentalmente por três ordens de razões.

Em primeiro lugar, na UE, contrariamente ao que se verifica na generalidade dos

Estados federais, os controlos fronteiriços não são levados a cabo por uma autoridade

própria que se tivesse substituído às autoridades dos Estados-Membros, mas sim pelas

29 Sobre a mais recente aplicação do artigo 2.º, n.º 2, do Protocolo Schengen (Decisão 2007/801/CE do Conselho, de 6 de Dezembro, JO L 323, de 8-12-2007), que resultou na abolição dos controlos nas fronteiras internas com a Estónia, Letónia, Lituânia, Polónia, República Checa, Eslováquia, Hungria, Eslovénia e Malta, ver Nuno Piçarra, “O Tratado de Roma e as fronteiras dos Estados-Membros” in Marta Tavares de Almeida e Nuno Piçarra (coord.), 50 Anos do Tratado de Roma, Lisboa, 2008, pp. 230-232. A anterior aplicação daquele preceito data de 1 de Dezembro de 2000 (Decisão 2000/777/CE do Conselho, JO L 309/24, de 9-12-2000) e saldou-se pela abolição dos controlos de pessoas nas fronteiras internas com a Dinamarca, a Finlândia e a Suécia, mas também com a Islândia e a Noruega, pelas razões já indicadas. 30 Como observa Philippe Schmitter, “A Comunidade Europeia: uma forma nova de dominação política”, cit., pp. 744-745, numa federatio procede-se à harmonização ou mesmo à estandardização dos controlos fronteiriços, contrariamente à confederatio, em que o controlo sobre a deslocação física de pessoas é subunitário, ou seja, nacional, continuando, por conseguinte, a ser levado a cabo nas fronteiras comuns entre os membros. 31 Para maiores desenvolvimentos, ver Malcolm Anderson e Didier Bigo, “What are EU Frontiers for and what do they mean?” in Kees Groenendijk, Elspeth Guild e Paul Minderhoud (ed.), In Search of Europe’s Borders, cit., pp. 7 ss.

17

próprias autoridades policiais destes, embora fiscalizadas e coordenadas, nos termos

adiante analisados, por instâncias centrais.

Por outro lado, acentuando o contraste, dois Estados-Membros – o Reino Unido e a

Irlanda – obtiveram, com já se disse, a dispensa da obrigação de suprimirem os controlos

de pessoas nas suas fronteiras internas, consignada em Protocolo anexado ao TCE pelo

Tratado de Amesterdão, assim como estão dispensados de proceder aos controlos nas suas

fronteiras externas em conformidade com a legislação da União aplicável. Com efeito, nos

termos do artigo 1.º, alínea a), conjugado com o artigo 2.º daquele Protocolo – relativo à

aplicação de certos aspectos do artigo 14.º do TCE ao Reino Unido e à Irlanda –, estes dois

Estados-Membros estão habilitados a exercer, nas suas fronteiras com os restantes, os

controlos de pessoas que considerem necessários para verificar o direito de entrada

decorrente daquele tratado. A Irlanda só está, porém, habilitada a proceder a tais controlos

fronteiriços enquanto se mantiverem em vigor os convénios celebrados com o Reino Unido

em matéria de circulação de pessoas entre os respectivos territórios. Por sua vez, nos

termos do artigo 3.º, os demais Estados-Membros ficam habilitados, em virtude do

princípio da reciprocidade, a exercer, nas respectivas fronteiras, controlos para fins

idênticos sobre as pessoas provenientes do Reino Unido e da Irlanda.

Na conferência intergovernamental que culminou no Tratado de Amesterdão, estas

dispensas constituíram, aliás, a “moeda de troca” em relação ao assentimento que ambos os

Estados-Membros deram à introdução no TCE, não só do artigo 62.º, mas também das

restantes disposições do Título IV da Parte III em matéria de vistos, asilo, imigração e

outras políticas relativas à livre circulação de pessoas32.

Finalmente, sendo certo que “as fronteiras internas podem ser transpostas em

qualquer local sem que se proceda ao controlo das pessoas, independentemente da sua

nacionalidade”33, certo é também que, “em caso de ameaça grave para a ordem pública ou

32 Em Protocolo relativo à posição do Reino Unido e da Irlanda face ao Título IV da Parte III do TCE, ambos os Estados-Membros negociaram o direito de não se vincularem ao disposto neste título (opt-out) e, ao mesmo tempo, o direito de aderir selectivamente (opt-in), segundo os interesses de cada um, aos instrumentos jurídicos paulatinamente adoptados em execução do título do TCE em causa. 33 Segundo Malcolm Anderson e Didier Bigo, op. cit., p. 18, “a análise da prática demonstra que os controlos foram meramente transferidos e modernizados. Em vez de um controlo sistemático na fronteira interna, foi estabelecida uma zona de controlo proactivo de vinte quilómetros, permitindo controlos frequentes (…). A fronteira interna está simbolicamente livre de controlo, mas os controlos de pessoas mantêm-se”. No mesmo sentido, Kees Groenendijk, “New Borders Behind Old Ones: Post-Schengen Controls Behind the Internal Borders and Inside the Netherlands and Germany” in K. Groenendijk, E. Guild e P. Minderhoud (ed.), In Search of Europe’s Borders, cit., pp. 131 ss., passim.; por último, Anaïs Faure Atger, “The Abolition of Internal Border Checks in an Enlarged Schengen Area: Freedom of movement or scattered web of security

18

a segurança interna, um Estado-Membro pode excepcionalmente reintroduzir o controlo

nas suas fronteiras internas durante um período limitado”. Também a este respeito, a

diferença entre a UE e um Estado federal é inequívoca.

3. Ao transferir para o âmbito do TCE (Título IV da Parte III) as políticas de

fronteiras, de asilo e de imigração (até então abrangidas pelo Título VI do TUE), o Tratado

de Amesterdão constituiu um marco fundamental no processo de rendição progressiva dos

Estados-Membros ao método comunitário em domínios profundamente ligados à sua

soberania. Mesmo assim, atestando a “dialéctica” resistência/rendição a tal método no

domínio daquelas políticas, a começar pela política de fronteiras, foram previstas, num

primeiro momento, algumas derrogações de monta.

Cumpre destacar, a este respeito, a quebra do monopólio de iniciativa legislativa da

Comissão (artigo 67.º, n.º 1, do TCE), a qual partilhou o correspondente poder com os

Estados-Membros durante um período transitório de cinco anos, expirado em 1 de Maio de

2004. A partir desta data, a Comissão recuperou plenamente, em relação às matérias

abrangidas pelo Título em causa, o monopólio de iniciativa legislativa – o que constitui,

como é sabido, um dos elementos estruturantes do método comunitário.

Por outro lado, para evitar que, com a transformação em direito comunitário do

acervo de Schengen relativo às fronteiras, a Comissão e o TJ pudessem intervir na

resolução de litígios do tipo do que a opunha à Bélgica e ao Luxemburgo, a França fez

depender o seu assentimento à comunitarização desse acervo da consagração de mais uma

derrogação ao método comunitário. Ela encontra-se no artigo 68.º, n.º 2, do TCE, nos

termos do qual o TJ “não tem competência, em caso algum, para se pronunciar sobre

medidas ou decisões tomadas em aplicação do ponto 1 do artigo 62.º relativas à

manutenção da ordem pública e à garantia da segurança interna”.

Isto significa que, durante a vigência deste preceito, o TJ não poderia, nem por

iniciativa de um tribunal nacional no quadro de um reenvio prejudicial34, nem por

iniciativa da Comissão ou de um Estado-Membro, no quadro de uma acção por

incumprimento, apreciar a legalidade da aplicação, por qualquer Estado-Membro, da

checks?”, CEPS, Bruxelas, 2008, http://www.ceps.eu, p. 18, que fala neste contexto de uma multiplicação de fronteiras funcionais alternativas. 34 Recorde-se que, nos termos do artigo 68.º do TCE, apenas os órgãos jurisdicionais nacionais cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno podiam submeter ao TJ questões prejudiciais de interpretação das disposições constantes do Título IV da Parte III e de interpretação ou de validade do direito comunitário nele baseado – o que constituía outra derrogação ao método comunitário.

19

cláusula que lhe permite excepcionalmente repor os controlos de pessoas nas suas

fronteiras internas35.

Para além disso, há a registar a resistência, a título individual, ao método

comunitário também por parte da Dinamarca, o que conduziu a uma bizarra solução

constante do protocolo aprovado conjuntamente com o Tratado de Amesterdão, relativo à

posição deste Estado-Membro face ao Título IV da Parte III do TCE. Tal protocolo

permite-lhe, no essencial, encarar os instrumentos jurídicos aprovados (sempre sem a sua

participação) em execução deste título que se revelem essenciais para a manutenção e o

desenvolvimento da UE enquanto espaço de fronteiras internas abertas, como se eles

continuassem a ter origem no quadro de mera cooperação intergovernamental instituída

pelos acordos de Schengen e constituíssem, por conseguinte, simples instrumentos de

direito internacional público.

Nos termos do artigo 5.º do protocolo em causa, a Dinamarca dispõe de seis meses

para decidir “se procederá à transposição [de cada um desses instrumentos] para o seu

direito interno. Se decidir fazê-lo, [cada um deles] criará uma obrigação de direito

internacional entre a Dinamarca e os restantes Estados-Membros” integrados naquele

espaço. Se, ao invés, a Dinamarca “decidir não aplicar” qualquer daqueles instrumentos

jurídicos – a começar precisamente por aqueles que se reportam às fronteiras –, os

restantes Estados-Membros “analisarão as medidas adequadas a tomar”, o que poderá

incluir a reposição dos controlos de pessoas nas suas fronteiras com a Dinamarca36.

4. Não é só o aditamento ao TCE do artigo 62.º que está na origem do

desenvolvimento em força da política de fronteiras da UE ao longo da primeira década do

35 Em sentido contrário, ver a Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social, ao Comité das Regiões e ao Tribunal de Justiça, sobre a adaptação das disposições do Título IV da Parte III do TCE relativas às competências daquele tribunal, com vista a garantir uma protecção jurisdicional mais efectiva, de 28 de Junho de 2006, COM(2006) 346 final, pp. 7-8 e nota 13. Para a Comissão, o n.º 2 do artigo 68.º só exclui da fiscalização do TJ as “medidas comunitárias adoptadas pelo legislador com base no artigo 62.º, ponto 1, do TCE desde que versem sobre a manutenção da ordem pública e a garantia da segurança interna”, incluindo as regras sobre a reintrodução, a título excepcional, dos controlos fronteiriços. O artigo 68.º, n.º 2, não excluiria, portanto, da fiscalização do TJ as “medidas nacionais relativas à manutenção da ordem pública e à garantia da segurança interna” (ênfase no original). A Comissão acaba, porém, por cair em contradição, ao considerar “incoerente em relação ao resto do Tratado” a exclusão da competência do TJ relativamente às medidas nacionais tomadas para manter a ordem pública e a segurança interna. Isto porque, desde as origens, aquele tribunal tem tido por missão pronunciar-se sobre a conformidade com o direito comunitário de tais medidas. Ora, de onde resulta a exclusão de tal competência do TJ, que a Comissão afinal reconhece, senão do artigo 68.º, n.º 2 do Tratado de Roma? 36 Sobre a posição da Dinamarca no ELSJ ver, por exemplo, Kim U. Kjaer, “How many borders in the EU?” cit., pp. 176-180.

20

século XXI. Tal desenvolvimento tem sido também determinantemente impulsionado pelo

Conselho Europeu, antes de mais através dos chamados Programas de Tampere e da Haia,

aprovados respectivamente em 16 de Outubro de 1999 e 5 de Novembro de 2004.

No primeiro, o Conselho Europeu exortou “a um estreitamento das relações de

cooperação e assistência técnica mútua entre os serviços de controlo das fronteiras dos

Estados-Membros – em que se incluem, por exemplo, programas de intercâmbio e de

transferência de tecnologia, em especial nas fronteiras marítimas –”, salientando “a

importância de que o controlo das futuras fronteiras externas da União seja efectuado por

profissionais devidamente habilitados”37.

Por seu lado, no Programa da Haia, o Conselho Europeu convidou expressamente o

Conselho “a criar equipas de peritos nacionais, que poderão prestar assistência técnica e

operacional reforçada aos Estados-Membros que o solicitem (…), com base numa proposta

que a Comissão deverá apresentar em 2005 sobre as competências e o financiamento das

referidas equipas”. Convidou ainda o Conselho e a Comissão “a criarem um fundo

comunitário de gestão das fronteiras o mais tardar até ao final de 2006”38.

Importa agora analisar o modo como o legislador da União, baseando-se no artigo

62.º do TCE, deu cumprimento a tais impulsos e directrizes39.

5. O primeiro acto legislativo a referir neste contexto é o Regulamento (CE) n.º

562/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março40, que estabelece o

código comunitário relativo ao regime de passagem de pessoas nas fronteiras (Código das

Fronteiras Schengen), em vigor desde 13 de Outubro de 2006. No seu artigo 1.º, n.º 1, este

diploma (a seguir designado por CF) reafirma o princípio da ausência de controlos de

pessoas na passagem das fronteiras internas (terrestres, marítimas e aéreas) dos Estados-

Membros, no sentido de que elas “podem ser transpostas em qualquer local sem que se

proceda a controlos” (artigo 20.º) e sem “obstáculos que impeçam a fluidez do tráfego nos

pontos de passagem rodoviários de fronteiras internas” (artigo 22.º).

O princípio fundamental assim enunciado não prejudica, nem a realização de

controlos no interior do território, ou seja, o “exercício das competências de polícia pelas

37 Ver, em especial, os n.ºs 24 e 25 do Programa de Tampere. 38, Cf. o n.º 1.7.1. do “Programa da Haia: reforço da liberdade, da segurança e da justiça na União Europeia” (2005/C 53/01), JO C 53, de 3-3-2005, p. 6. 39 Segue-se aqui de perto, embora com alguns desenvolvimentos suplementares, o que se escreveu em “O Tratado de Roma e as fronteiras dos Estados-Membros”, cit., pp. 201-210. 40 JO L 105, de 13-4-2006, pp. 1 ss.

21

autoridades competentes dos Estados-Membros, ao abrigo do direito nacional, na medida

em que o exercício dessas competências não tenha efeito equivalente a um controlo de

fronteira, o mesmo se aplicando nas zonas fronteiriças” (artigo 21.º), nem a reposição, a

título excepcional, por qualquer Estado-Membro, dos controlos nas respectivas fronteiras

internas “em caso de ameaça grave para a ordem pública ou a segurança interna”, “durante

um período limitado não superior a 30 dias, ou pelo período de duração previsível da

ameaça grave, se a duração desta exceder o período de 30 dias” (artigo 23.º).

O CF estabelece, por outro lado, em termos completos e uniformes, as regras

aplicáveis ao controlo de pessoas na passagem das fronteiras externas dos Estados-

Membros (artigo 1.º, n.º 2), versando especificamente sobre as condições de entrada, a

recusa de entrada, os recursos humanos e os meios destinados ao controlo fronteiriço,

assim como sobre a cooperação entre os Estados-Membros nestes domínios. Tal como

enfatiza o sexto considerando do Regulamento n.º 562/2006, “o controlo fronteiriço não é

efectuado exclusivamente no interesse do Estado-Membro em cujas fronteiras externas se

exerce, mas no interesse de todos os Estados-Membros que suprimiram o controlo nas suas

fronteiras internas [e] deverá contribuir para a luta contra a imigração clandestina e o

tráfico de seres humanos”41.

Tratando-se de nacionais de países terceiros, as condições de entrada para uma

estada que não exceda três meses durante um período de seis meses vêm previstas no

artigo 5.º, n.º 1. Nos termos desta disposição, os seus destinatários devem (1) estar na

posse de um documento ou documentos de viagem válidos que permitam a passagem da

fronteira externa; (2) estar na posse de um visto válido se forem nacionais de um país

terceiro constante da lista estabelecida pelo Regulamento (CE) n.º 539/2001 do Conselho,

de 15 de Março42, a menos que sejam detentores de um título de residência válido; (3)

justificar o objectivo e as condições de estada prevista e dispor de meios de subsistência

suficientes, tanto para a duração da estada como para o regresso ao país de origem ou para

o trânsito para um país terceiro em que a sua admissão esteja garantida, ou então estar em

condições de obter licitamente esses meios. Para além disso, os nacionais de países

terceiros não devem estar indicados no SIS para efeitos de não admissão, nem ser

considerados susceptíveis de perturbar a ordem pública, a segurança interna, a saúde 41 A este respeito, o CF complementa-se com o “Guia Prático para os Guardas de Fronteira (Manual Schengen) para ser usado pelas competentes autoridades ao efectuar os controlos fronteiriços de pessoas”, constante da Recomendação da Comissão Europeia de 6 de Novembro de 2006, C(2006) 5186 final. 42 Alterado por último pelo Regulamento (CE) n.º 1244/2009 do Conselho, de 30 de Novembro de 2009, JO L 336, de 18-12-2009, pp. 1 ss.

22

pública ou as relações internacionais de qualquer Estado-Membro e, em especial, não estar

indicados para efeitos de não admissão, pelos mesmos motivos, nas bases de dados dos

Estados-Membros.

Por força do artigo 6.º, no desempenho das suas funções, os guardas de fronteira

devem respeitam plenamente a dignidade humana e não discriminar as pessoas em razão

do sexo, raça ou origem étnica, religião ou crença, deficiência, idade ou orientação

sexual43.

6. A título de excepção às regras gerais relativas ao controlo das pessoas que

pretendam atravessar as fronteiras externas da UE, constantes do CF, o Parlamento

Europeu e o Conselho aprovaram em 20 de Dezembro de 2006, o Regulamento (CE) n.º

1931/2006, que estabelece o regime aplicável ao pequeno tráfego fronteiriço em tais

fronteiras44.

O princípio fundamental é o de que os nacionais de países terceiros legalmente

residentes na zona fronteiriça de um país vizinho de um Estado-Membro por um período

mínimo de um ano – os “residentes fronteiriços” – podem atravessar, de forma

simplificada, a fronteira externa terrestre do Estado-Membro vizinho, desde que (1) sejam

titulares da necessária autorização; (2) não estejam indicados no SIS para efeitos de não

admissão; (3) não sejam considerados uma ameaça para a ordem pública, a segurança

interna, a saúde pública ou as relações internacionais de qualquer Estado-Membro e (4)

não estejam indicados para efeitos de não admissão, pelos mesmos motivos, nas bases de

dados nacionais dos Estados-Membros (artigo 4.º).

A simplificação, a estipular mediante acordos bilaterais entre Estados-Membros e

países terceiros vizinhos, poderá consistir (1) no estabelecimento de pontos especiais de

passagem das fronteiras externas reservados aos residentes fronteiriços; (2) na reserva de

corredores especiais para tais residentes nos pontos normais de passagem das fronteiras;

(3) na autorização de passagem das fronteiras terrestres externas em pontos definidos,

distintos dos pontos de passagem autorizados e das horas de abertura previstas, “tendo em

43 Considerando que o artigo 6.º do CF não pode ser entendido no sentido de que, ao efectuar os controlos de fronteira, os Estados-Membros estão simplesmente obrigados a garantir a dignidade humana ou a evitar violações graves de direitos fundamentais, ver Ruth Weinzierl, “The Demands of Human and EU Fundamental Rights for the Protection of the European Union’s External Borders” in Ruth Weinzierl e Ula Lisson, Border Management and Human Rights. A study of EU Law and the Law of the Sea, Berlim, 2007, p. 50. Segundo a autora, em consequência da sua vinculação aos direitos fundamentais no âmbito de aplicação do direito da UE, os Estados-Membros devem respeitá-los integralmente ao aplicarem o CF. 44 JO L 405, de 30-12-2006, pp. 1 ss.

23

conta circunstâncias locais e quando excepcionalmente existirem exigências de natureza

especial”. Em tais circunstâncias, os residentes fronteiriços apenas serão, regra geral,

submetidos a controlos aleatórios, sem prejuízo de “controlos rigorosos esporádicos, sem

aviso e a intervalos regulares” (artigo 15.º).

Este regime excepcional de passagem das fronteiras externas aplicável ao pequeno

tráfego fronteiriço decorre da percepção, pelo legislador da União, de que, se se tornasse

tal tráfego muito mais difícil, acabar-se-ia inevitavelmente por fomentar a imigração

permanente para a UE. Tal regime traduz simultaneamente o entendimento prevalecente

entre os Estados-Membros mais recentes no sentido de que “fechar a porta” aos vizinhos

mais pobres da Europa de Leste constituiria um risco ainda maior para a segurança da

própria UE, uma vez que ameaçaria a estabilidade destes e portanto da própria região45.

7. A boa aplicação do CF e das restantes normas comuns acabadas de analisar,

imposta pelo objectivo de garantir “um nível elevado e uniforme de controlo e vigilância

nas fronteiras externas, corolário indispensável da livre circulação de pessoas na União

Europeia e elemento fundamental do espaço de liberdade, segurança e justiça”, depende de

uma efectiva coordenação da cooperação operacional entre as competentes autoridades

dos Estados-Membros. Para esse efeito, o Conselho, pelo Regulamento (CE) n.º

2007/2004, de 26 de Outubro, criou a Agência Europeia de Gestão da Cooperação

Operacional nas Fronteiras Externas dos Estados-Membros, mais conhecida por Frontex,

estabelecendo-lhe a sede em Varsóvia46.

Tal agência, que iniciou o seu funcionamento em Outubro de 2005 e está em vias

de constituir uma reserva estratégica que pode ir até 500 guardas de fronteira, constitui um

instrumento fundamental ao serviço da gestão integrada das fronteiras externas da UE.

Entre as suas funções destacam-se (1) a coordenação da cooperação operacional e da

assistência entre os Estados-Membros no âmbito da gestão de tais fronteiras; (2) o apoio na

formação dos guardas de fronteiras nacionais e na definição de normas de formação 45 Para maiores desenvolvimentos, ver Virginie Guiraudon, “Before the EU Border: Remote Control of the «Huddled Masses»” in K. Groenendijk, E. Guild e P. Minderhoud (ed.), In Search of Europe’s Borders, cit., pp. 209-211. Aí se refere que cerca de 30% a 40% das pequenas e médias empresas polacas vivem do comércio com a Ucrânia e que o comércio fronteiriço muito vivo deu à Polónia um saldo líquido de 1, 5 biliões de euros. Por isso, um governante deste Estado-Membro declarou que o acervo de Schengen será por ele aplicado “com uma nota de rodapé: a fronteira externa oriental da UE não deve constituir um muro mas uma ponte”. 46 JO L 349, de 25-11-2004, pp. 1 ss. e L 114, de 4-5-2005, p. 13; ver também a Comunicação da Comissão Europeia ao Conselho e ao Parlamento Europeu, “Rumo a uma gestão integrada das fronteiras externas dos Estados-Membros da União Europeia”, de 7 de Maio de 2002, COM(2002) 233 final, especialmente pp. 6 ss.

24

comuns; (3) a realização de análises de risco; (4) o acompanhamento da evolução da

pesquisa em matéria de controlo e vigilância das fronteiras externas; (5) o apoio aos

Estados-Membros confrontados com circunstâncias que exijam uma assistência

operacional e técnica reforçada nas fronteiras externas (artigo 2.º).

No desempenho destas funções, a Frontex pode, por sua própria iniciativa e de

comum acordo com o ou os Estados-Membros interessados, lançar operações conjuntas e

projectos-piloto em cooperação com eles, bem como colocar os seus equipamentos

técnicos à disposição daqueles que participem em tais operações e projectos (artigo 3.º).

Por seu lado, os Estados-Membros confrontados com circunstâncias que exijam uma

assistência técnica e operacional reforçada no cumprimento das suas obrigações em

matéria de controlo e de vigilância das respectivas fronteiras externas, dispõem da

faculdade de solicitar a intervenção da Frontex, a qual pode organizar essa assistência em

favor do ou dos requerentes (artigo 8.º).

A pedido do Conselho formulado em Outubro de 2006, a Frontex criou um

inventário central do equipamento técnico disponível (CRATE), previsto no artigo 7.º. E a

pedido do Conselho Europeu de Dezembro de 2006 foi criada sob a égide da Frontex a

Rede Europeia de Patrulhas (REP) que entrou em funcionamento em Maio de 2007 tendo

como Estados-Membros participantes Portugal, Espanha, França, Itália, Eslovénia, Malta,

Grécia e Chipre.

8. O Regulamento (CE) n.º 863/2007, aprovado pelo Parlamento Europeu e pelo

Conselho em 11 de Julho de 2007 em complemento do Regulamento (CE) n.º 2007/2004, e

também destinado a “apoiar a correcta aplicação do Regulamento (CE) n.º 562/2006”, veio

estabelecer um mecanismo específico de prestação de assistência operacional pela Frontex,

com a participação de outros Estados-Membros, por um período de tempo limitado, sob a

forma de equipas de intervenção rápida nas fronteiras47, ao Estado-Membro que a

requeira “por se ver confrontado com uma situação de pressão urgente e excepcional,

especialmente devido à chegada de um grande número de nacionais de países terceiros a

pontos das fronteiras externas, no intuito de entrarem ilegalmente no território desse

Estado-Membro” (artigo 1.º).

47 De acordo com a sua epígrafe, este regulamento, publicado in JO L 199, de 31-7-2007, pp. 30 ss., “estabelece um mecanismo para a criação de equipas de intervenção rápida nas fronteiras, altera o Regulamento (CE) n.º 2007/2004 do Conselho no que se refere a este mecanismo e regulamenta as competências e tarefas dos agentes convidados”.

25

É ao conselho de administração da Frontex que cabe decidir, por maioria de três

quartos, sob proposta do director executivo, sobre os perfis e o número total dos guardas de

fronteira a disponibilizar para as equipas de intervenção, com vista à formação de um

Contingente de Intervenção Rápida. Os Estados-Membros contribuem para este

contingente através de uma grupo nacional que devem criar para o efeito, “constituído com

base nos diferentes perfis definidos, designando guardas de fronteira que correspondam aos

perfis exigidos” (artigo 4.º, n.º 2).

A decisão sobre o pedido do Estado-Membro que requer a intervenção deve ser

tomada pelo director executivo até cinco dias úteis a contar da data de recepção desse

pedido. Se necessário, o director executivo pode enviar um perito para avaliar a situação

nas fronteiras externas do Estado-Membro requerente. Em alternativa à criação de uma

equipa de intervenção rápida, poderá ser enviado pessoal especializado da própria Frontex

para apoiar o Estado-Membro em causa, prestando-lhe aconselhamento.

Em caso de deferimento do pedido, a equipa de intervenção rápida solicitada é

constituída com os guardas de fronteira que os outros Estados-Membros devem

disponibilizar para o destacamento determinado pela Frontex, a não ser que eles próprios

se vejam confrontados com “uma situação excepcional que afecte substancialmente o

cumprimento das missões nacionais”. São incluídos na equipa um ou mais peritos da

Frontex, na qualidade de agentes de coordenação, a fim de a representar e agir como

interface entre ela e o Estado-Membro de acolhimento, por um lado, e entre ela e os

membros das equipas, por outro, prestando assistência em todas as questões relativas às

condições do destacamento destes últimos nas equipas. No cumprimento das suas funções,

o agente de coordenação apenas aceita instruções da Frontex (artigo 8.º-G do Regulamento

n.º 2007/2004, na sua nova redacção).

Os membros das equipas de intervenção rápida – definidos pelo artigo 3.º, n.º 2,

como os guardas de fronteira dos Estados-Membros, com excepção do Estado-Membro de

acolhimento, que integram tais equipas – só podem desempenhar tarefas e exercer

competências sob as ordens e, de um modo geral, na presença dos guardas de fronteira do

Estado-Membro de acolhimento. Só são autorizados a recorrer à força, incluindo a armas

de serviço, munições e equipamento, com o consentimento do Estado-Membro de origem e

do Estado-Membro de acolhimento, nos termos da lei nacional deste último. Os membros

das equipas podem ser autorizados pelo Estado-Membro de acolhimento a consultar as

suas bases de dados nacionais e europeias necessárias para proceder aos controlos e à

26

vigilância das fronteiras (artigo 6.º). As decisões de recusa de entrada de nacionais de

países terceiros, nos termos do artigo 13.º do CF, só podem ser tomadas pelos guardas de

fronteira do Estado-Membro de acolhimento.

As equipas de intervenção rápida são particularmente ilustrativas da noção de

espaço aqui subjacente: elas constituem uma derrogação ao clássico princípio estadual da

territorialidade, ao permitir às autoridades de fronteiras de um Estado-Membro a

intervenção no território de outro, embora em conjugação e com o acordo das autoridades

deste último. Através do novo mecanismo, as acções dos Estados-Membros entrelaçam-se

ainda mais a nível horizontal48.

9. A Decisão n.º 574/2007/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de

Maio de 2007, por seu lado, criou o Fundo para as Fronteiras Externas para o período de

2007 a 2013, no âmbito do programa geral “Solidariedade e gestão dos fluxos

migratórios”49.

Recordando, no seu preâmbulo, que alguns Estados-Membros vêem-se perante

maiores dificuldades do que os outros ao contribuírem para assegurar, a um nível elevado e

uniforme, o controlo das pessoas e a vigilância das fronteiras externas da UE, em

conformidade com o CF, e que a partilha das responsabilidades entre os Estados-Membros

e a UE no que se refere à gestão de tais fronteiras é uma das cinco componentes da política

comum na matéria (proposta pela Comissão em 7 de Maio de 2002 e aprovada pelo

Conselho em 14 de Junho seguinte), a decisão em análise inscreve o Fundo para as

Fronteiras Externas no “quadro coerente” que engloba o Fundo Europeu para os

Refugiados, o Fundo Europeu de Regresso e o Fundo Europeu para a Integração dos

Nacionais de Países Terceiros, afectando-o ao reforço do ELSJ e à aplicação do princípio

da solidariedade entre os Estados-Membros (artigo 1.º).

O Fundo tem como objectivos gerais, designadamente, a aplicação uniforme do CF

e a melhoria da gestão das actividades organizadas pelos serviços consulares e outros

serviços dos Estados-Membros nos países terceiros, bem como a cooperação entre eles no

que se refere aos fluxos de nacionais destes países para a UE (artigo 3.º). Entre os

objectivos específicos do Fundo pontificam os de melhorar não só a capacidade e as

48 Neste sentido, Ruth Weinzierl, op. cit., p. 54; ver também Anne Weyembergh, “L’espace pénal européen”, cit., p. 86, referindo-se especificamente às equipas comuns de investigação, homólogas das equipas de intervenção rápida no domínio de outra componente do ELSJ que é a cooperação judiciária em matéria penal. 49 JO L 144 de 6-6-2007, pp. 22 ss.

27

qualificações dos guardas de fronteira para executarem as suas missões de vigilância, de

aconselhamento e de controlo, mas também o intercâmbio de informações a nível nacional

entre as autoridades responsáveis pela gestão das fronteiras externas e entre estas e outras

autoridades responsáveis nos domínios da migração, asilo e outras questões conexas (artigo

4.º).

O enquadramento financeiro do Fundo para o período compreendido entre 1 de

Janeiro de 2007 e 31 de Dezembro de 2013 é de 1 820 000 000 euros, anualmente

repartidos pelas acções elegíveis nos Estados-Membros (artigos 13.º e 14.º). Cabe à

Comissão executar a Decisão n.º 574/2007/CE, mediante a aprovação de todas as

disposições necessárias para o efeito (artigo 25.º).

V. – As novas etapas

Já em 2008, a Comissão Europeia avançou com um conjunto de propostas e

recomendações em matéria de política de fronteiras, pretendendo marcar com elas uma

nova etapa na evolução de tal política. Por outro lado, a entrada em vigor do Tratado de

Lisboa é outra importantíssima etapa na evolução global do ELSJ, de que tal política

constitui, como se viu, um elemento nuclear.

A concluir este estudo, importa pois analisar as novas etapas em presença.

Começar-se-á pelas propostas da Comissão, procurando surpreender-lhes o seu sentido

global e a cobertura que eventualmente lhes dá o Tratado de Lisboa.

1. As propostas e recomendações da Comissão constam de três comunicações

dirigidas ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social e ao Comité

das Regiões, todas datadas de 13 de Fevereiro de 2008. A primeira contém o Relatório

sobre a avaliação e o desenvolvimento futuro da Agência Frontex; a segunda analisa a

criação de um Sistema Europeu de Vigilância das Fronteiras (EUROSUR); a terceira tem

por epígrafe “Preparar as próximas etapas da gestão das fronteiras na União Europeia”50.

50 Os números das comunicações são respectivamente: COM(2008) 67 final, COM(2008) 68 final e COM(2008) 69 final. Todas elas vêm acompanhadas de documentos de trabalho dos serviços da Comissão. Para uma primeira apreciação crítica ver E. Guild, S. Carrera e F. Geyer, “The Commission’s New Border Package: Does it take us one step closer to ‘cyber-fortress Europe’?”, CEPS Policy Brief No 154, CEPS, Bruxelas, 2000, http://www.ceps.eu.

28

Começando por esta última comunicação, que é a de carácter mais geral, aí se

recorda que a gestão integrada das fronteiras não se esgota na tomada de medidas nas

próprias fronteiras, englobando também medidas tomadas no interior da UE, medidas

tomadas no exterior dela pelos consulados dos Estados-Membros e medidas tomadas em

cooperação com países vizinhos.

No tocante à primeira espécie de medidas, a Comissão preconiza como nova etapa a

facilitação da passagem das fronteiras externas “de viajantes de baixo risco de países

terceiros” aos quais será de conceder o estatuto de “viajante registado” devido a “um

historial fiável das viagens anteriores”. Tal implicará a criação de sistemas de controlos

automáticos naquelas fronteiras, assim como pontos de passagens específicos para o efeito.

Para além disso, preconiza-se a passagem automatizada das fronteiras externas dos

cidadãos da União portadores de passaportes biométricos através das mesmas vias

utilizadas por nacionais de países terceiros com o estatuto de viajantes registados.

Tratando-se, por outro lado, de medidas a tomar no interior dos territórios dos

Estados-Membros, a Comissão preconiza a criação de um mecanismo de alerta acessível às

autoridades nacionais sempre que o período autorizado de estada de um estrangeiro chegue

ao fim e não haja registo da saída do mesmo. Tal mecanismo pressupõe a prévia criação de

um sistema de registo automático das entradas e saídas de nacionais de países terceiros51.

Como é sabido, a maior parte dos estrangeiros que se encontram ilegalmente na UE (e cujo

número se elevava a oito milhões em 2006) começaram por entrar nela legalmente52.

Finalmente, como principal medida de gestão integrada das fronteiras da UE

aplicável no exterior, a comunicação em análise preconiza a instauração de um sistema

electrónico de autorização de viagem destinado a nacionais de países terceiros não sujeitos

à obrigação de visto. Estes ficariam obrigados a fornecer por via electrónica dados

susceptíveis de permitir às autoridades competentes determinar previamente se reúnem, ou

não, as condições de entrada na UE.

No que toca, mais especificamente, ao EUROSUR, a nova comunicação pretende-

se um desenvolvimento da já citada comunicação da Comissão de 30 de Novembro de

51 Afirma-se no documento de trabalho dos serviços da Comissão que acompanha a comunicação em análise, SEC(2008) 154, p. 7, que só será necessária uma nova base de dados centralizada para o sistema de entrada/saída e o programa de viajantes registados. No sentido de que projectos caros e de resultados incertos como os que estão em causa, envolvendo a recolha e a retenção massiva de dados, só devem ser contemplados se houver provas claras de que são centrais para a execução do direito da UE, ver E. Guild, S. Carrera e F. Geyer, “The Commission’s New Border Package: Does it take us one step closer to’cyber-fortress Europe’?”, cit., p. 2. 52 Cf. John Cowley, “Locating Europe”, cit., p. 34.

29

2006, onde pela primeira vez se propôs a criação de um tal sistema. A nova comunicação

vem apontar para o desenvolvimento dele através da instituição, não só nos Estados-

Membros que formam as fronteiras marítimas meridionais da UE, mas também nos que

formam as suas fronteiras terrestres orientais e as fronteiras marítimas do Mar Negro, de

centros de coordenação nacionais únicos que constituirão a peça central dos sistemas

nacionais únicos de vigilância das fronteiras, entre os quais deverá estabelecer-se uma rede

de comunicações, incluindo também a Agência Frontex.

Através do contributo para que os Estados-Membros tenham uma ideia clara da

situação nas suas fronteiras externas, o EUROSUR deverá possibilitar uma resposta mais

coerente e eficaz por parte deles a desafios como a imigração ilegal, incluindo a perda de

vidas de imigrantes clandestinos no mar, o terrorismo e a criminalidade organizada

transfronteiras. Tal sistema poderá constituir “um precursor de um enquadramento comum

de partilha de informações relativo a toda a zona marítima da UE que abranja todos os

aspectos de segurança e protecção marítima”53.

Tratando-se finalmente da própria Agência Frontex, a Comissão preconiza a

maximização do seu contributo para a gestão das fronteiras marítimas meridionais da

União, que são as mais sujeitas à pressão imigratória. Tal deverá converter aquela agência

no “centro de um sistema aperfeiçoado de troca de informações operacionais em tempo

real entre os Estados-Membros” (n.º 35). E a longo prazo, segundo a Comissão, deverá ser

considerada a substituição das funções de coordenação dos recursos dos Estados-Membros

que a Frontex actualmente desempenha “pela nomeação de guardas de fronteira e a

atribuição de equipamento de modo permanente” (n.º 39).

A este respeito, a Comissão reitera a proposta constante da já citada comunicação

de 7 de Maio de 2002, no sentido da criação de um Corpo Europeu de Guarda de

Fronteiras “a médio prazo e provavelmente após alteração dos Tratados” e uma vez

superadas as dificuldades constitucionais dos Estados-Membros, ligadas à concessão de

prerrogativas de autoridade a agentes que não possuam a respectiva nacionalidade. Tal

corpo europeu de polícia deverá pois resultar da metamorfose da Agência Frontex.

Isto confirma que o objectivo de “manutenção e desenvolvimento” da UE enquanto

espaço de fronteiras internas abertas faz surgir exigências de restrições maiores e mais

coordenadas da entrada a partir do exterior, com vista a protegê-la, no seu conjunto, de

53 Cf. o documento de trabalho da Comissão que acompanha a Comunicação sobre a criação de um Sistema Europeu de Vigilância das Fronteiras (EUROSUR), SEC(2008) 152, n.º 6.

30

“indivíduos e produtos indesejáveis: criminosos, terroristas, imigrantes ilegais, droga,

etc.”. Assim como confirma que “este novo imperativo territorial” é susceptível de

conduzir a prazo – antes de mais, “devido a deficiências das capacidades nacionais” – à

criação de uma polícia de fronteiras da própria UE, irredutível à mera “combinação das

partes nacionais”54.

2. O Tratado de Lisboa não faz, contudo, qualquer referência à criação de uma

polícia de fronteiras da UE. Numa linha de uma maior “prudência semântica”, limita-se a

pôr explicitamente a cargo desta o desenvolvimento de uma política que visa “introduzir

gradualmente um sistema integrado de gestão das fronteiras externas”, acrescentando para

o efeito ao artigo 77.º do Tratado de Roma um novo n.º 1, alínea c). Mas este conceito

cobre seguramente uma evolução no sentido apontado pela Comissão, tanto mais que o n.º

2 do mesmo artigo 77.º atribui expressamente à UE competência legislativa para adoptar

“qualquer medida necessária à introdução gradual de um sistema integrado de gestão das

fronteiras externas” (ênfase acrescentada).

Não é, pois, a este respeito que o Tratado de Lisboa inaugura uma nova etapa, mas

sim ao colocar sob a alçada do método comunitário os elementos do ELSJ que ainda se

encontram sujeitos à cooperação intergovernamental – a cooperação policial, a cooperação

judiciária em matéria penal e a aproximação das legislações penais e processuais-penais

dos Estados-Membros – e que, pelo menos no quadro de Schengen, podiam ser vistos

como “medidas compensatórias” ou “de acompanhamento” da supressão dos controlos de

pessoas nas fronteiras internas da UE55.

Na sua nova redacção, o Título V da Parte III do Tratado de Roma passou a ter por

epígrafe “O Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça”, articulando-se em cinco capítulos.

O primeiro é dedicado às disposições gerais, o segundo, às políticas relativas aos controlos

nas fronteiras, ao asilo e à imigração, o terceiro, à cooperação judiciária em matéria civil, o

quarto, à cooperação judiciária em matéria penal e o quinto, à cooperação policial.

54 Como já premonitoriamente antecipava Philippe Schmitter em 1991, em “A Comunidade Europeia: uma forma nova de dominação política”, cit., p. 766. 55 A este propósito, ver Anabela Miranda Rodrigues, O Direito Penal Europeu Emergente, cit., p. 52. Concedendo que foi um passo importante encarar a cooperação policial e judiciária penal como medidas compensatórias dos potenciais efeitos perversos da supressão dos controlos das fronteiras internas – “já que era o reconhecimento de que acabar com as fronteiras internas para os operadores económicos e os cidadãos e mantê-las para as autoridades policiais e judiciárias era um risco para a construção europeia” – a Autora entende, porém, que esta perspectiva é demasiado redutora por se centrar na cooperação contra a criminalidade e não no apoio do cidadão.

31

É certo que a generalização do método comunitário a todo o ELSJ teve mais uma

vez um preço: por um lado, o direito de “ficar fora” exigido, por motivos diferentes, mas

relacionados com a “resistência” a tal método, pela Dinamarca, pela Irlanda e pelo Reino

Unido56; por outro lado, algumas modulações ao próprio método comunitário, justificadas

pela natureza das matérias em causa. Entre essas modulações, conta-se, por um lado, a

partilha de iniciativa legislativa entre a Comissão Europeia e um quarto dos Estados-

Membros (artigo 76.º do Tratado de Roma) e, por outro lado, a partilha de competências

fiscalizadoras entre a Comissão Europeia e uma comissão de avaliação mútua composta

por representantes dos próprios Estados-Membros, inspirada por uma lógica

intergovernamental (artigo 70.º).

Por tudo isso, pode dizer-se que o Tratado de Lisboa marca mais uma importante

etapa no processo dialéctico de progressiva, mas não linear, “rendição” da construção

europeia ao “método comunitário” – o qual, em ligação com esse processo, também se tem

revelado uma realidade evolutiva. E cumpre sobretudo destacar neste contexto que o

mesmo tratado confirma plenamente a lúcida observação do Professor Paulo de Pitta e

Cunha, segundo a qual a atribuição à UE de competência em matérias de algum modo

ligadas à livre circulação de pessoas, ainda que para as submeter, à partida, “a uma

regulação com dominante intergovernamental”, “torna-as, por assim dizer, disponíveis

para eventuais mutações no sentido supranacional”57.

56 Ver, na redacção que lhes foi dada pelo Tratado de Lisboa, o Protocolo relativo à posição da Dinamarca, o Protocolo relativo à aplicação do artigo 26.º (anterior artigo 14.º) do Tratado de Roma ao Reino Unido e à Irlanda, o Protocolo relativo à posição do Reino Unido e da Irlanda em relação ao espaço de liberdade, segurança e justiça e o Protocolo relativo ao acervo de Schengen integrado no âmbito da União Europeia (especialmente os artigos 4.º e 5.º). 57 Cf. “Os impulsos federais na construção europeia” cit., p. 13, ênfase do Autor.

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