a polemica entre sartre e camus por nilson adauto guimarães da silva

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  • 7/26/2019 A Polemica Entre Sartre e Camus por Nilson Adauto Guimares da Silva

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    A POLMICA ENTRE SARTRE E CAMUS

    Nilson Adauto Guimares da Silva

    A sociedade francesa assistiu, em 1952, a uma intensa polmica entre Jean-Paul Sartre (1905-1980) eAlbert Camus (1913-1960).1Este j manifestara sua divergncia em relao a outros contemporneos,como Andr Breton (1896-1966). Sartre, por sua vez, mais afeito s batalhas verbais e ideolgicas, en-

    trara em conflito com vrios escritores; o mais violento fora at ento com Franois Mauriac (1885-1970). O conflito entre Sartre e Camus difundido pela mdia, que tratou exaustivamente da questo marcou poca, extrapolando o espao prprio dos escritores e atingindo a sociedade como um todo.

    Essa controvrsia surge como mais uma entre tantas outras na histria da literatura francesa. Umapolmica ops o humanismo devoto ao jansenismo, no incio do sculo XVII; no fim desse mesmo s-culo, ocorreu a famosa Querela entre os Antigos e os Modernos, retomada de certa maneira pelos ro-mnticos, defensores da liberdade e da inspirao do artista contra as regras formais do neoclassicismo.No Sculo das Luzes, Rousseau (1712-1778) e Voltaire (1694-1778) travaram uma verdadeira batalha,mesmo que ambos defendessem valores comuns na luta contra tudo o que oprime o indivduo, sendo

    reconhecidos dentre aqueles que prepararam a Revoluo. Rousseau lanou as bases filosficas da de-mocracia moderna e defendeu em seus escritos os ideais de igualdade e de liberdade; sua reflexo ajudoua lanar os ideais originais da Revoluo, cuja herana se acha manifesta na Declarao dos Direitos doHomem e do Cidado. Voltaire, que se revelou um autor engajado, avant la lettre, participou de umaao pblica em defesa dos direitos do indivduo, quando do caso Calas.2

    No incio do sculo XX, o caso Dreyfus, desencadeado pelos intelectuais revisionistas, tornou-se,na Frana, uma questo nacional, dividindo as opinies dos indivduos em todos os meios e classes so-ciais. Quando, em 1897, mile Zola (1840-1902), sobretudo atravs de seu clebre artigo Jaccuse...,tomou a defesa do capito francs Alfred Dreyfus (1859-1935), os que afirmavam que este fora vtima

    de um erro judicirio eram ainda poucos. Zola era, naquele momento, um autor de imenso sucessojunto ao pblico. De extrema fecundidade, como escritor e como jornalista, era o lder do grupo na-turalista, tendo alcanado fama e riqueza e suscitado o cime de seus contemporneos. Controversoo bastante para fracassar em suas candidaturas Academia Francesa, Zola era odiado sobretudo pelosconservadores, considerado pela crtica burguesa um autor obsceno e tachado pela imprensa catlicade anticlerical militante. Assim, segundo Michel Winock, a audcia que o grande romancista manifes-ta quando do caso Dreyfus se explica em parte por esta situao dbia: rico e famoso, permanecia, aomesmo tempo, s portas do establishment.3

    Zola seria ainda, desde a infncia, imbudo da paixo pela justia, advinda das injustias infligidas memria de seu pai e sofridas por sua me, quando esta, viva, no recebeu o que lhe era de direito,parte das aes que o marido detinha numa companhia em Aix-en-Provence. Alguns viram a interven-o de Zola no caso Dreyfus como uma oportunidade de autopromoo. De toda forma, em 1897,

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    Zola se inflamou na defesa de Dreyfus, como uma nova vtima emblemtica. Seu artigo no Figaropro-duziu grande escndalo, sua coragem suscitou mltiplas manifestaes em todo o pas e surtiu seus fru-tos, mas ele recebeu os golpes da crtica antissemita, foi condenado a um ano de priso e a pagar umamulta de 1.000 francos.

    A batalha de Zola pela correo de um erro judicirio que fez de um inocente um bode expiatrio,sua luta por verdade e justia, foi travada num contexto de antissemitismo violento e despertou paixespolticas. Por isso angariou muitos adversrios, dentre os principais os escritores Maurice Barrs (1862-1923) e Charles Maurras (1868-1952). Defensor de Dreyfus e da Repblica, Zola precisou se opor aosantissemitas e aos partidrios do nacionalismo, do tradicionalismo e da monarquia, tomando parte, naverdade, num embate de grupos sociais e opinies polticas divergentes.

    Barrs se engajou no antidreyfusismo, replicando o artigo Jaccuse... de Zola, e se associando aFerdinand Brunetire (1849-1906) na crtica presuno dos intelectuais; esse termo, cunhado noauge da questo, comeou a se difundir. Assim, meio sculo antes de Sartre e Camus, o caso Dreyfus fez

    surgir no apenas o termo intelectual, mas igualmente a figura do escritor engajado. No foi apenasuma palavra que se criou, mas tambm uma misso: Barrs defendeu a preservao nacional; para ele,verdade e justia eram abstraes; para Zola eram justamente estas que interessavam.

    O ideal da autonomia individual, do carter sagrado da pessoa bebido nas fontes da Declaraodos Direitos Humanos e na regra enunciada no sculo das Luzes, segundo a qual uma sociedade nopode fundar sua existncia sobre a negao da justia era visto pelos nacionalistas como uma filoso-fia individualista, contra a qual eles proclamavam o imperativo da sobrevivncia da espcie e da nao,a defesa necessria das instituies que, como o Exrcito e a Igreja, eram seus pilares. Diferentemente,os defensores de Dreyfus, apesar de suas falhas, professavam a universalidade da lei moral: em todo ho-

    mem, preciso respeitar o homem, o gnero humano. Os defensores do nacionalismo recusavam essauniversalidade em nome do grupo, da nao, da tribo, donde a xenofobia e o antissemitismo.Percebemos, assim, que o engajamento no significa, necessariamente, empenho na defesa de valo-

    res humanos; ele pode supor, simplesmente, uma militncia, um envolvimento com questes polticase sociais, e uma tendncia maior para o envolvimento em questes polmicas. Barrs e Maurras eram,tambm, intelectuais. Como eles, na Frana do sculo XX, inmeros escritores engajados, alguns mais,outros menos expressivos, emprestaram sua pena propagao do racismo, do antissemitismo, do na-cionalismo e do fascismo; entre outros, sem reproduzir a extensa lista elaborada no momento dos com-bates da Liberao, podem ser citados douard Drumont (1844-1917), Paul Bourget (1852-1935),Lon Daudet (1867-1942), Henri Massis (1886-1970), Pierre Drieu La Rochelle (1893-1945), RobertBrasillach (1909-1945), Louis-Ferdinand Cline (1894-1961) e Marcel Jouhandeau (1888-1979).

    Mesmo entre os defensores da causa comum do dreyfusismo, houve controvrsias, como a oposi-o entre Charles Pguy (1873-1914) e Jean Jaurs (1859-1914). Por trs de um desentendimento emtorno do movimento poltico anticlerical conhecido como Combismo (de mile Combe, 1835-1921),que levou separao entre Igreja e Estado, em 1905, parecem se misturar questes pessoais, rancores,invejas e frustraes, caractersticas prprias das querelas polticas e literrias. Pguy teve tambm umdesentendimento com Daniel Halvy (1872-1962), alm da oposio aos escritores antissemitas comoBarrs, Maurras e Drumont. Respondendo a Halvy, Pguy evocou as diferenas de classe que existiamentre ele, oriundo de uma famlia que vivia em ambiente rural e cuja me no sabia ler, e Halvy, que

    pertencia a uma famlia da alta burguesia. Pguy rompeu ainda com Georges Sorel (1847-1922) e seafastou da esquerda, do movimento operrio, do socialismo de sua juventude, sem se ligar, no entanto,ao nacionalismo dos antissemitas e dos neodefensores da monarquia.4

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    Andr Gide (1869-1951), afastado de todo conformismo e dotado de uma exigncia de sinceri-dade, precisou enfrentar inmeras batalhas, sobretudo em funo dos tabus sobre sua vida sexual e desuas denncias dos mtodos polticos usados na Unio Sovitica stalinista. Gide, em seu Voyage au Con-

    go (1927), denunciou o que denominou explorao desavergonhada na frica equatorial, combatendo

    o regime colonialista francs. Inicialmente simpatizante do comunismo, Gide o denunciou em Retourde lURSS (1937), afirmando que l no existia mais comunismo, existia apenas Stalin; essa viagem, re-alizada em 1935, lhe trouxe incomparavelmente mais animosidade do que sua ida frica. Ele atraiuassim os ataques tanto de escritores catlicos, como Paul Claudel (1868-1955) e Franois Mauriac(1885-1970), que por sua vez era alvo do dio de Roger Martin du Gard (1881-1958), quanto dos sim-patizantes ou defensores do comunismo, como Henri Barbusse (1873-1935). sobretudo Louis Ara-gon (1897-1982) quem encarna a condenao de Gide pelo partido comunista, numa carta de extremaperversidade enviada ao diretor de Les Lettres franaises, em 25 de novembro de 1944, intitulada Le re-tour dAndr Gide carta que Georges Bernanos (1888-1948) considerou a ata de uma execuo mo-

    ral. Gide teve ainda uma controvrsia com Jean Guhenno (1890-1978), que o tratou com zombarianum artigo escrito para a revista Europe, em 1930. Guhenno, por sua vez, em 1921, teve uma diver-gncia com Romain Rolland (1866-1944), que foi, como Gide, crtico da ditadura comunista. 5

    O prprio Gide anota em seus dirios, em fevereiro de 1943, uma considerao sobre as polmi-cas, com a qual Michel Winock, em sua obra Le Sicle des intellectuels, abre o captulo dedicado a Al-bert Camus:

    H, e sempre haver, na Frana (salvo sob a ameaa iminente de um perigo comum) diviso e partidos; ouseja, dilogo. Graas a ele, o bom equilbrio de nossa cultura: equilbrio na diversidade. Sempre em face deum Pascal, um Montaigne; e, em nossos dias, em face de um Claudel, um Valry.6

    O movimento surrealista, que publicou seu Primeiro Manifesto em outubro de 1924, dirigiu ata-ques pstumos a Anatole France (1844-1924), numa orao fnebre venenosa, Un cadavre, na qual sel: Que haja festa no dia em que se enterra o engano, o tradicionalismo, o patriotismo, o oportunismo,o ceticismo e a falta de sentimento!7Andr Breton, expoente do movimento surrealista, era, por essapoca, ardente defensor do marxismo-leninismo. H tambm a oposio de Paul Nizan (1905-1940) aEmmanuel Mounier (1905-1950) e seu personalismo, visto como rtulo enganador de um fundo de in-dividualismo burgus. Merece ser citado ainda Andr Malraux (1901-1976), que atraiu os ataques princi-palmente dos opositores de Charles de Gaulle (1890-1970). Malraux encarnou em seu tempo o modelodo escritor francs engajado, tanto pelo contedo de sua obra quanto por suas aes militantes. Seu ro-mance Le Temps du mpris, de 1933, diretamente dirigido contra o regime nacional-socialista de Hitler.

    Convergncias e divergncias

    No passaremos em revista todos os escritores franceses engajados ou que se envolveram em con-trovrsia com seus pares; a lista seria longa. Esse curto elenco de opositores j suficiente para nos fa-zer imaginar de que maneira as disputas parecem uma constante no espao literrio da Frana, onde oescritor goza de um estatuto privilegiado na sociedade, sendo solicitado a manifestar suas opinies e adefinir seus posicionamentos. Alm de possveis diferenas pessoais, as disputas so suscitadas por po-sicionamentos estticos, filosficos e polticos. Por isso mesmo, elas se intensificam no sculo XX, emque h uma profuso de correntes e movimentos literrios, com embasamentos estticos diversos, quefrequentemente se impem por meio da oposio a posicionamentos anteriores. Nesse sculo h, igual-

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    mente, uma intensa efervescncia poltica e social, com as duas Grandes Guerras, a expanso e a deca-dncia do comunismo, a libertao das ex-colnias de pases europeus, os totalitarismos e toda a cargade violncia e perturbao social que os conflitos trouxeram. Portanto, as querelas fazem parte da hist-ria da literatura francesa, marcada pela ao de escritores engajados em questes sociais, e se revelam o

    espao privilegiado do interdiscurso, devido ao confronto de opinies divergentes.

    Sartre e Camus na casa de Picasso, 16 de junho de 1944.Foto de Brassa (detalhe) Gilberte Brassa.

    Meu caro Camus, nossa amizade no era fcil, mas sentirei falta dela.8Assim inicia Sartre o tex-to de sua resposta a Camus, selando a ruptura entre eles. A controvrsia entre os dois escritores foi de-flagrada pela publicao do ensaio de Camus LHomme rvolt, em 1951. A repercusso da polmica,largamente divulgada pelos meios de comunicao de massa, proporcional ao peso representativo dosdois escritores no momento. Em 1952, dentre inmeros grandes nomes da literatura francesa do sculo

    XX, Sartre e Camus ocupavam uma posio de destaque; eles j dispunham, ento, de grande renomee popularidade, obtidos, sobretudo, durante a Resistncia e o imediato ps-Segunda Guerra.

    Eles j encarnavam, ento, a figura do intelectual engajado, sendo ambos vistos como refernciasliterrias, mas igualmente como referncias de homens pblicos. Ambos atuaram em diversos cam-pos: no da literatura, em diversos gneros (romance, conto e dramaturgia, esta particularmente apta, naFrana, popularizao dos autores), no da filosofia e, ainda, de maneira marcante, no do jornalismo,em que se envolveram de forma direta, participando da direo de peridicos e ao mesmo tempo pu-blicando inmeros artigos, crticas literrias e crnicas polticas.

    At o final do sculo XIX, s vezes reunindo homens de letras e polticos, os sales parisienses fun-cionavam como ponto de encontro e espao de discusses apaixonadas; o caso daqueles de MmeAu-bernon (1825-1899), de Lontine Arman de Caillavet (1844-1910),9 de Mme Strauss (1849-1926),

    viva de Bizet (1838-1875), da marquesa Arconati-Visconti (1840-1923), de Mme

    de Loynes (1837-1908). Os sales puderam figurar ainda, durante algum tempo, como uma espcie de antecmara da

    Academia, ou espao de difuso de ideias estticas e polticas. Em meados do sculo XX, as inmeras

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    revistas, voltadas exclusivamente ou no para a literatura, j tinham assumido o espao deixado pelossales e contribuam para tornar conhecidas as obras literrias, juntamente com seus autores.

    Logo aps a liberao de Paris, duas vozes dominaram a imprensa quotidiana: a de Franois Mau-riac, no Figaro, e a de Camus, em Combat.Combat fora um dos rgos mais importantes da imprensa

    clandestina sob a Ocupao; em novembro de 1943, quando Camus era seu diretor-chefe, o jornal ti-nha uma edio de 300.000 exemplares.10J havia algum tempo, Camus conhecia bem o espao edito-rial e mantinha contato com grandes escritores, como Andr Malraux e Andr Gide. Este ltimo apa-drinhou a revista LArabe, criada em 1944, em Argel, e dirigida por Jean Amrouche (1906-1962), tendocomo comit diretor Maurice Blanchot (1907-2003), Jacques Lassaigne (1911-1983) e o prprio Ca-mus, que nessa revista publicouLe Minautore, em fevereiro de 1946.

    Em 1945, Sartre fundou sua revista, Les Temps Modernes. Em 1952, a revista tinha uma edio men-sal de 10.000 exemplares; no momento da polmica, foi feita do nmero de agosto de 1952 uma segun-da tiragem, que logo se esgotou. Em Paris, dezenas de artigos comentaram a ruptura; por exemplo, Sa-

    medi Soire France Illustration, em 6 de setembro de 1952 e 21 de setembro de 1952, respectivamente.

    Autores publicados por Les Temps modernes, 1947.Arquivos da Editora Gallimard.

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    Camus e Sartre eram os escritores mais populares durante o apogeu do existencialismo, figuras em-blemticas, considerados as duas grandes vozes da vida intelectual francesa do ps-guerra, no s emfuno de participarem do universo do jornalismo, mas em funo tambm de suas publicaes e desuas atividades durante a Resistncia.

    Antes do contato pessoal, os dois escritores se conheceram atravs de seus textos. Camus comentouSartre, tratando de La Nause, em 1938, e de Le Mur, em 1939.11Em 1942, Sartre comentou Camus,escrevendo sobre Ltranger.12Camus comunicou a seu antigo professor, Jean Grenier (1898-1971), suaimpresso sobre o artigo:

    O artigo de Sartre um modelo de desmontagem. Claro, existe em toda criao um elemento instintivoque ele no aborda. A inteligncia no tem um papel to importante. Mas na crtica essa a regra do jogo,e bom que seja assim, porque muitas vezes ele me ilumina sobre o que eu queria fazer. Vejo tambm que amaioria de suas crticas so justas, mas por que este tom cido?13

    De fato, j em sua explication de ltranger, Sartre, como filsofo agrg da famosa cole Norma-le Suprieure, tenta rebaixar Camus, o pretenso filsofo dotado apenas de um diplme dtudes suprieu-resda Universit dAlger. Em seu artigo Sartre escreve: Camus mostra certa vaidade em citar textos de

    Jaspers, de Heidegger, de Kierkegaard, que ele parece, alis, nem sempre compreender bem.14

    Camus encontra pessoalmente Sartre e Simone de Beauvoir (1908-1986) em junho de 1943, duran-te a estreia da pea Les Mouches. Inicia-se ento uma amizade; ambos reconhecem o que h de comumentre eles e alimentam uma estima mtua. Camus ir ento solicitar a Sartre vrios artigos que seropublicados em Combat, particularmente sobre os anos da Ocupao. Camus no gosta de ver seu nomeatrelado ao de Sartre, mas este, viajando pelos Estados Unidos em 1945, em entrevistas, faz elogios aoamigo. Para a revista Vogue, Sartre afirma que a Resistncia ensina que a literatura no uma atividadeftil, independente da poltica, e que se podem distinguir duas geraes de escritores franceses, uma deantes da guerra, Maurice Blanchot, Georges Bataille (1897-1962) e Jean Anouilh (1910-1987), e outraque compreende Michel Leiris (1901-1990), Jean Cassou (1897-1986) e Albert Camus. Este seria, se-gundo Sartre, o arqutipo do escritor engajado, um modelo de sua nova teoria do engajamento.15

    Durante sua segunda viagem aos Estados Unidos, em 1946, Sartre faz em Nova York uma confe-rncia em que faz aluses, em tom de elogio, a Camus.16Ele inicia a conferncia comentando o mal-estar que a peaAntigone (1944), de Anouilh, teria suscitado entre os crticos de teatro nova-iorquinos,que detectaram na personagem uma falta de caractre. Sartre explica ento que, entre os jovens auto-res franceses, depois de 1940, a preocupao em pintar caracteres, demonstrar os mecanismos de uma

    paixo ou analisar um complexo suplantada pela vontade de colocar os personagens em situaes,confrontados com limites por todos os lados.

    Sartre insere no comentrio seus prprios pontos de vista filosficos, como a ideia de que o homemno detm uma natureza humana definida de uma vez por todas, mas um ser inteiramente inde-terminado e que deve escolher seu prprio ser, por meio das escolhas que faz em situaes especficas.Sartre faz uma breve aluso a Les Bouches inutiles(1945), de Simone de Beauvoir, passa a comentar aspeas de Camus e afirma:

    Se acontece a um de ns apresentar um carter no palco, unicamente com a finalidade de se livrar logodele. Por exemplo, Calgula, no incio da pea de Albert Camus, que traz este nome, tem um carter. Somos

    levados a crer que ele gentil e bem-educado, e sem dvida ele realmente assim. Mas essa doura e essamodstia desaparecem subitamente quando o prncipe faz a terrvel descoberta da absurdidade do mundo.

    A partir de ento, ele vai escolher se tornar o homem que convence os outros dessa absurdidade, e a peaconta ento de que maneira ele realiza seu projeto.17

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    Com efeito, noMythe de Sisyphe(1942), Camus classifica a atitude existencialista como suicdio fi-losfico. Ainda, numa carta ao diretor de La Nef, em janeiro de 1946, Camus se ope filiao foradade seu pensamento e de sua obra aos de Sartre:

    Li o artigo que Henri Troyat dedicou a Calgula no ltimo nmero de la Nef. Obrigado por ter me enviado.Fiquei sensibilizado pelas intenes de Troyat e pela nobreza de seu tom.Mas comeo a ficar levemente (muito levemente) impaciente com a confuso permanente que me associa aoexistencialismo. Enquanto o mal-entendido corria nos jornais, a questo no era grave demais. Mas que elaganhe hoje as revistas prova bastante a falta de informao em que se encontra a crtica. Uma vez que Troyatescreve: Tudo na pea de Camus no passa de uma ilustrao dos princpios existencialistas de Sartre, eume sinto assim obrigado a esclarecer trs pontos: [...].22

    Camus observa ento que Caligula foi escrito em 1938, antes que o existencialismo sartriano esti-vesse formulado; que LeMythe de Sisyphecontinha uma crtica aos filsofos existencialistas, aplicvel aSartre; e que dizer que o mundo absurdo no equivale a uma aceitao do existencialismo, que uma

    filosofia completa, uma viso do mundo que supe uma metafsica e uma moral. Camus reafirma aindaque no tem confiana na razo o bastante para entrar num sistema.

    Camus e Sartre so contemporneos e vivem num momento marcado por guerras, revolues econflitos sociais. Eles propem uma vasta transformao social e afirmam a responsabilidade do escri-tor que, colocado numa dada situao histrica, condenado a exercer sua liberdade, tomando posio.

    Ateus, eles afrontam o problema de buscar as bases de uma moral quando no se cr em Deus. Prxi-mos em muitos aspectos, os dois escritores tm, contudo, particularidades essenciais e tomam posiesestticas e polticas diferentes e, s vezes, conflitantes.

    Filosoficamente, os dois escritores apresentam alguns pontos de partida semelhantes, mas suas vi-

    ses da natureza e da realidade humanas no so as mesmas; em Sartre, ela mais negativa, em Camus,mais positiva. Basta comparar Ltranger(1942) com La Nause(1938) para se perceber o contraste en-tre a sensibilidade fsica de Meursault e o desgosto de Roquentin pela realidade corporal.

    Toda obra, para alm de seu interesse literrio ou filosfico, inscreve-se num contexto que lhe con-fere uma significao particular, especialmente as obras de autores preocupados com a sociedade da qualfazem parte. Camus e Sartre, e suas obras, so inseparveis de seu contexto, que explicitamente discu-tido em funo do engajamento dos autores. O contato entre eles mais forte imediatamente aps a Li-berao; j a ruptura se d sob o impacto da Guerra Fria e do agravamento do conflito entre os EstadosUnidos e a Unio Sovitica, quando eles se colocam em campos opostos. Como afirma Ronald Aron-son: Embora Camus nunca tenha sido partidrio do capitalismo, nem Sartre um comunista stricto sen-su, esses dois adversrios acabaram representando foras muito mais amplas do que eles prprios. 23Ouseja, os dois encarnam o conflito histrico-mundial, a oposio entre o Oriente e o Ocidente.

    Assim, Camus e Sartre, num contato que durou poucos anos, nunca tiveram uma amizade real-mente prxima e tinham profundas diferenas de temperamento, de comportamento, de viso de mun-do, de origem social, de posicionamento poltico e ideolgico. Desde os primeiros contatos por meiode seus textos, nunca houve uma adeso mtua e espontnea. Houve certa admirao, marcada, porm,por reticncias que deixavam antever um possvel conflito entre eles.

    A polmica

    Simone de Beauvoir fez, em seus escritos memorialsticos, inmeras referncias a Camus, alm dacaricatura deste traada em Les Mandarins (1954). Entretanto, as lembranas so escritas muito tardia-mente, s vezes dcadas aps a vivncia das situaes, e tais escritos so marcados pela parcialidade. Para

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    Simone de Beauvoir, Camus no passava de um provinciano que fora para Paris em busca de sucesso;a imagem que ela passa do escritor grosseira, negativa e deturpada; o retrato que ela pinta da amizadeentre Sartre e Camus acaba sendo um dos mais falsos possveis. O que se explica, em parte, pela proxi-midade que ela mantinha com os dois. Como afirma Aronson:

    O que complica ainda mais a percepo que Beauvoir tinha de Camus o fato de que ela se oferecera a elecomo amante, e fora rejeitada. Isso nos lembra que Simone de Beauvoir no era simplesmente uma observa-dora do relacionamento Sartre-Camus, mas esteve profundamente implicada nele [...].24

    Diferentemente de Sartre, Camus teve uma atuao poltica desde sua juventude. Atravs do teatro,ele j entrava na luta contra a ameaa nazista. Membro do Partido Comunista durante dois anos, de1935 a 1937, Camus foi um militante ativo que conheceu a notoriedade, principalmente como diretorde uma trupe de teatro em Argel que apresentava peas polticas de vanguarda.

    Sartre levou certo tempo para sair de sua bolha e se implicar no mundo. Ele e Beauvoir permane-

    ceram apolticos nos anos 1930 e alheios ao pragmatismo da ao; a converso poltica de Sartre socorreu depois da guerra, da Ocupao da Frana pelos nazistas e da Resistncia.

    Antes de 1946, quando Winston Churchill (1874-1965) fez um discurso sobre a Cortina de fer-ro, e antes mesmo da publicao de Le Yogi et le commissaire(1945), e de Le Zro et linfini (1945), de

    Arthur Koestler (1905-1983), Camus j havia rejeitado o comunismo, sem, por isso, optar pelo capita-lismo. No calor do embate de ideias, Sartre foi considerado um vencedor; s depois, com o decorrer dahistria, que foi reconhecida a admirvel e irrepreensvel lucidez de Camus em relao configuraoreal do marxismo. Entretanto, na batalha entre os dois escritores, o mais interessante no saber quemsaiu vencedor, nem mesmo se possvel identificar um vencedor; o mais instigante o que a polmica

    revela a respeito do contexto literrio, social, poltico e histrico, e o que ela revela a respeito do emba-te subjacente a todo discurso.A polmica no pode ser encarada como algo sempre negativo. Para o estudioso da literatura, ela

    extremamente interessante, pois desvela o contexto dos escritores e de suas obras e esclarece sobre os re-cursos argumentativos, que no esto presentes apenas no discurso das controvrsias. Tomar a palavra posicionar-se e defender uma opinio, pois a linguagem nunca inocente, nunca um simples meio detransporte de ideias existentes em si mesmas. Mesmo no discurso pretensamente neutro, como aqueledas cincias, ou das notcias imparciais, est subjacente toda a viso de mundo de quem fala ou escrevee busca adeses: o papel persuasivo inerente ao prprio exerccio da linguagem.

    A linguagem da propaganda comercial, por exemplo, explorando junto com a lngua os gostos, as

    opinies e a psicologia e mobilizando todos os recursos persuasivos possveis, facilmente nos faz crer quetemos necessidades imprescindveis. Mas a publicidade comercial em momento algum deixa explcitoque tais necessidades so artificiais e criadas; ela tampouco esclarece que seus reais objetivos so pro-pagar o consumismo e aumentar o lucro das marcas que divulga. No discurso polmico sabemos, pelomenos, e logo de incio, que se trata de posies divergentes ou antagnicas, e que, portanto, interessespessoais, opinies diferentes e extravasamento de emoes podem estar em jogo.

    Heidegger, comentando a alegoria da caverna presente na Repblica, de Plato,25afirma que ser li-vre em sentido prprio no est num gozo tranquilo, mas em ser libertador. O filsofo aquele que sai,ou arrancado, da caverna. Ser livre agir junto histria, participar e colaborar no debate entre ver-

    dade e no verdade. Essa admoestao liberdade parece um argumento necessidade do engajamento,para o intelectual. Porm, mais do que isso, Heidegger pode reunir em poucas linhas os termos debate,disputa, discusso e luta, e atribuir-lhes um conceito positivo, graas a sua concepo de filosofia e de

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    verdade. Ele mostra que, j em Plato, a verdade como desencobrimento supe a fora, a discusso eo questionamento por meio da palavra humana para que se desvele o ser.

    Para Heidegger, o filsofo no aquele que pe sua poca em conceitos, pois a verdade no se iden-tifica com uma definio, no uma correo sintetizada numa sentena abstrata. A verdade estaria

    mais prxima do desvelamento do ser pela atuao do homem. Nessa perspectiva, ao abordarmos osadversrios que se debatem em seus discursos, percebemos que a razo no est na concluso do dis-curso, ou numa sentena isolada de um ou de outro, mas na discusso e no questionamento, no pro-cesso todo de que ambos participam, contribuindo para que se afaste o encobrimento e se retire da noverdade a verdade. Donde a contribuio do embate de ideias.

    Em seus encontros e debates, Camus e Sartre falam de poltica. Sartre pensa que preciso escolher: cami-nhar com os comunistas ou contra eles, com a Unio Sovitica ou com os Estados Unidos. Camus tambmtenta pensar a revoluo, mas imagina uma Revolta que evitaria ao mximo a violncia e o sangue. Simonede Beauvoir e Sartre teriam, diferentemente de Camus, pontos de vista extremamente maniquestas.26

    Camus estava a par dos grandes embates polticos que se travavam na sociedade. Em 1951, comobom conhecedor do ambiente acadmico, social, cultural e poltico de sua poca, ele podia imaginarque as crticas dirigidas revoluo de tipo stalinista produziriam reaes adversas: os ataques ao seuensaio puderam ser, de certa forma, previstos por Camus.

    Em 1951, antes da publicao de LHomme rvolt,Camus repassa fragmentos do ensaio a algumasrevistas; Les Cahiers du Sudpublicam o captulo sobre Lautramont (1846-1870). Logo surge no se-manrioArtsum artigo de Andr Breton, que acusa Camus de conformismo. Na sua resposta, Camusafirma que se esforou por mostrar justamente que o niilismo gerador de conformismo e servido econtrrio s lies da Revolta.

    O livro, lanado em novembro de 1951, recebe os primeiros ataques da imprensa comunista. Aimprensa de direita se limita a resumir ou parafrasear as passagens dedicadas ao comunismo e a KarlMarx (1818-1883), acentuando a crtica do marxismo presente no livro e praticamente ignorando asconsideraes literrias, concentradas no captulo Rvolte et art. A esquerda intelectual no comunis-ta manifesta-se em France-Observateur,dirigido por Claude Bourdet (1909-1996), que define Camuscomo um intelectual de esquerda no comunista. Para Bourdet, preciso trabalhar com os comunistasfranceses, apesar de sua submisso aos soviticos. Camus recusa essa posio.

    Em novembro de 1951, Sartre solicita ao comit de redao de sua revista LesTemps Modernesumvoluntrio para fazer a resenha de LHomme rvolt. Em fevereiro de 1952, Sartre encontra Camus numbar e lhe informa que a crtica da revista no vai ser favorvel.

    Francis Jeanson (1922) publica ento, em maio de 1952, emLesTemps Modernes, seu violento ar-tigo sobre o ensaio: Albert Camus ou lme rvolte.27Jeanson julga que Camus incapaz de passarda revolta metafsica revolta histrica, que se configuraria na atuao do Estado comunista; ele noadmite que Camus tenha questionado Hegel e Marx e no aceita suas simpatias pelo sindicalismo revo-lucionrio ou social-democrata dos pases escandinavos. Camus teria feito uma pseudofilosofia e umapseudo-histria das revolues.

    A revista informa a Camus que publicaria uma resposta sua. Datada de 30 de junho de 1952, a r-plica aparece no nmero de agosto de Les Temps modernes.28Camus no nomeia Jeanson e comea seuartigo com um Monsieur, le Directeur, por considerar que o diretor solidrio do artigo, o que irri-

    ta Sartre. Em sua resposta, Camus tenta mostrar que seu livro no nega a histria, mas critica a atitudeque busca fazer dela um absoluto. Ele lembra uma nota do livro em que afirma que Marx mistura emsua doutrina um mtodo crtico muito vlido e um messianismo utpico muito contestvel.29Poucossabem em Paris que Camus foi membro do partido comunista.

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    Les temps modernes, agosto de 1952.Arquivos da Editora Gallimard.

    Sartre responde, por sua vez, e ataca tanto a obra quanto o autor; usa frmulas tocantes, nomean-do seu adversrio, e d suas lies, dizendo que, para merecer o direito de influenciar os homens quelutam, preciso primeiro participar de seus combates; embora ele prprio tivesse se preocupado poucocom as questes sociais antes da Segunda Guerra, quando Camus j se engajava. Sartre suaviza o tome conclui o artigo dizendo esperar que o silncio faa esquecer a polmica. Entretanto, Jeanson escreveum novo artigo, com novos insultos e a mesma violncia.

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    Carta manuscrita de Sartre em resposta ao artigo de Albert Camus.Bibliothque nationale. Paris, foto Bibliothque nationale de France.

    poca, Sartre se aproximava dos comunistas e tentava conciliar existencialismo e marxismo; paraele, o Partido Comunista Francs representava a classe trabalhadora. Quanto Unio Sovitica, apesardos campos soviticos, ele pensa que ela continua dando a imagem do socialismo. Sartre cr ainda no

    socialismo de face humana, para o futuro. Ele no adere nem ao stalinismo nem ao PCF, mas no querromper com o partido, pois ainda acredita no empreendimento revolucionrio que o PCF encarnaria alongo prazo; ele se torna ento um dos mais representativos compagnons de routedo partido.

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    Para Camus, os crimes do totalitarismo devem ser denunciados sem esperas nem circunstnciasatenuantes. Assim, para alm dos ataques pessoais ou literrios, o ncleo da polmica a divergnciadiante do comunismo.

    Em Les mains sales(1948),Sartre levanta o problema dos fins e dos meios, mas numa tica deli-

    beradamente poltica. Hoederer e seus camaradas de partido so confrontados com um problema con-creto de ttica e de aliana. A questo que lhes interessa no saber se moral sujar as mos, mas de-terminar o que politicamente eficaz naquele momento. Hoederer defende na pea no ter objeo deprincpio contra o assassinato poltico, que seria praticado em todos os partidos.30Assim, o tema de Lesmains salesmostra como seu autor aceita a violncia nas lutas por transformao social.31

    Camus no concorda com a configurao dogmtica e violenta do comunismo. Antes de LHommervolt, a crtica ao totalitarismo de Estado, ao dogmatismo, ao autoritarismo e violncia j estava pre-sente em Ltranger e, de forma especial, em LaPeste. Tambm na pea Les Justes, ele questiona o valorda ao revolucionria contaminada pelo crime e pela desonra. Para Camus, preciso combater o mal

    e a injustia sem recair no crime e lutar contra a violncia sem agir violentamente.As noes de Revolta e de Absurdo, em Camus, remetem a um comportamento tico e a um en-

    gajamento sociopoltico que os pressupem. A passagem do Absurdo Revolta constitui a superaode uma atitude niilista com vistas fundamentao de uma exigncia tica. Na encruzilhada entre seupensamento filosfico e sua obra romanesca e dramtica, encontra-se a esttica de Camus, associada reflexo tica que, inspirada pela Revolta, d as diretrizes da criao artstica. Os textos em que mais di-retamente podemos encontrar essa esttica camusiana so o artigo Le tmoin de la libert, publicadoem 20 de dezembro de 1948 e recolhido emActuelles I, o captulo La cration absurde doMythe deSisyphe, e o captulo Rvolte et art, de LHomme rvolt.

    A avaliao negativa de LHomme rvolt afeta retroativamente a leitura que se faz de La Peste(1947): ao criticarem o ensaio, Jeanson e Sartre voltam ao romance. Jeanson o classifica de metafsicoe de crnica transcendental. Sartre, que j havia publicado sobre ele dois artigos favorveis, de cola-boradores importantes,32passa a consider-lo de forma negativa, como uma mistificao.

    Em sua resposta a Jeanson, Camus observa que Les Temps modernesse recusam a ver uma evoluode Ltranger a La Peste, no sentido da solidariedade e da participao. Com efeito, o ensaio e o roman-ce fazem parte do mesmo ciclo da Revolta. A passagem de Ltranger a La Peste, como a passagem deLeMythe de Sisyphea LHomme rvolt, corresponde mesma evoluo: a experincia do Absurdo nas-ce do sentimento de que o homem no est em harmonia com o mundo e desemboca na expresso daRevolta, na ao coletiva; encaminha-se da subjetividade para a sociedade, do heri solitrio para o he-

    ri solidrio.Tardiamente, Jeanson e Sartre veem bem que, antes de LHomme rvolt,em LaPestej havia uma

    relao entre moral e poltica, entre teoria e prtica. O personagem Tarrou no aceita a violncia comomeio, porque no se trata simplesmente de reverter o papel entre explorado e explorador, mas de buscaruma forma de no ser nem vtima nem carrasco.33

    Camus no aprova a revoluo a qualquer preo, mas tambm no aprova a resignao, nem a pre-tensa absteno diante dos conflitos sociais, pois no acredita que exista neutralidade poltica. Seu en-gajamento poltico bastante precoce e, ainda na Arglia, afastado da carreira acadmica por questesde sade, dedicou-se ao teatro e ao jornalismo e se engajou em atividades de ordem cultural e poltica.

    Durante a polmica com Sartre, Camus no faz aluso a sua passagem pelo partido comunista, masretoma sua condenao das duas sociedades, a socialista e a capitalista. Camus conheceu de perto a mi-sria, a desigualdade e as injustias que imperavam entre o povo argelino, e que ele e sua famlia sofre-ram, por isso afirma: No aprendi a liberdade com Marx. verdade, aprendi com a misria. 34

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    Tanto Sartre quanto Camus consideram que impossvel manter-se ausente do embate de forasantagnicas presentes na sociedade. Esse jogo de foras caracterstico da sociedade como um todo fazparte tambm da sociedade literria e se revela especialmente em textos polmicos.

    Dominique Maingueneau, retomando os estudos sociolgicos de Pierre Bourdieu, destaca bem o

    carter social e institucional do exerccio da literatura e mostra que um autor no pode produzir enun-ciados literrios sem se colocar como escritor no campo literrio e sem se definir com relao s repre-sentaes e aos comportamentos associados a esse estatuto. Assim, o contexto da obra literria no apenas a sociedade considerada em sua globalidade, mas, antes de tudo, o campo literrio, que obe-dece a regras especficas e se inscreve na obra, que por sua vez nele est inscrita. 35

    A polmica entre Camus e Sartre uma situao tpica do embate de foras e da busca do escritorpor ocupar seu espao no campo literrio. Por mais diferentes que sejam as posies estticas e ideol-gicas dos dois escritores, ambos fazem igualmente parte do campo literrio, campo que no se inscrevena sociedade como simples parte ou espao, mas como um espao fronteirio, distinto mas indissoci-

    vel da sociedade como um todo.O ambiente da polmica e os textos produzidos no seu calor demonstram de forma explcita que

    o escritor no enuncia em um terreno neutro e estvel, mas em um espao institucional, nutrindo suaobra do carter problemtico de sua participao no campo literrio e na sociedade. Sem localizao,no h instituies que permitam legitimar ou gerir a produo e o consumo das obras e, consequente-mente, no h literatura; mas sem deslocalizao no existe verdadeira literatura.36

    Mediante o controle externo, como nos regimes totalitrios e nos pases dominados por ditaduras,o escritor vigiado e conivente com o poder poltico pode chegar a uma produo literria, mas no aobras literrias; pois o prprio pertencer problemtico do escritor ao grupo supe uma participao,mas no uma completa assimilao. Camus, ao ser interrogado sobre os valores da arte na sociedadecomunista, afirma numa linha de reflexo muito prxima dessa:

    [...] no se pode dirigir a literatura, pode-se no mximo suprimi-la. A Rssia no a suprimiu. Ela acreditoupoder se servir de seus escritores. Mas esses escritores, mesmo de boa vontade, sero sempre herticos porsua prpria funo.37

    Maingueneau mostra como os discursos so objetos que aparecem ao mesmo tempo como integral-mente lingusticos e integralmente histricos. Ele denomina paratopia a localizao paradoxal e pro-blemtica, o pertencer ao campo literrio que no ausncia de todo lugar, mas uma difcil negociaoentre o lugar e o no lugar.38

    O carter de escritor e intelectual paratpico de Camus acentuado por sua origem proletria e porsua presena na Frana na condio de francs argelino, sentindo-se sempre um pouco estrangeiro, nemsomente argelino, nem inteiramente francs. Camus se insere de forma paratpica nos campos literrioe filosfico tambm porque se manteve afastado dos crculos intelectuais e dos meios acadmicos, desdeque, por motivos de sade, foi proibido de seguir a carreira de professor. Ele permaneceu assim mar-gem do grupo dos filsofos de profisso; e ele prprio se exclui de certo campo, ao afirmar que no um filsofo e que no cr na razo o bastante para crer num sistema. De fato, a filosofia, desde Kant, universitria, e ela o mais do que nunca na Frana, no momento em que Camus escreve seus ensaios,marcados pela forma literria e contrrios ao puro tratado de exposio sistemtica.

    Sartre teve uma origem social tipicamente burguesa e cresceu no ambiente de uma biblioteca.Apesar de seu engajamento poltico bastante tardio, mas radical, encarnou logo a figura do intelectualsimblico tornado intocvel por sua celebridade internacional; seu aspecto de intelectual escandalosoe maldito parece provocado e sua marginalidade, reivindicada. Sartre passou pelos rituais universit-

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    Assim, podemos analisar a controvrsia entre Sartre e Camus e os textos que dela derivaram luzdos estudos de Maingueneau, que v na polmica um processo de interincompreenso. ConformeMaingueneau, o estudo da especificidade de um discurso supe relacion-lo com outros. Nos textos dacontrovrsia, com a evocao explcita de uns aos outros, podemos perceber mais claramente a presena

    do interdiscurso, como espao composto pelos diversos discursos.A propsito de Marx, Sartre, em seu artigo Rponse Albert Camus, acusa Camus de brincar

    com conhecimentos de segunda mo.43O tom de Sartre superior, como o de um professor que falaa um aluno. Mas pode-se perguntar se seus conhecimentos sobre Marx so mais aprofundados do queos de Camus. Raymond Aron, leitor paciente de Marx, estava persuadido de que ambos eram quanto aisso igualmente limitados. Ao acusar Camus de incompetncia filosfica, Sartre, na verdade, vale-se deum argumento de autoridade, servindo-se de sua posio no campo, como filsofo reconhecido.44

    Respondendo ao artigo de Jeanson, Camus fala de Sartre sem nome-lo. Sartre, por sua vez, chama-do de burgus, responde aplicando a Camus o mesmo qualificativo. A resposta de um supe e retoma

    de maneira direta o discurso do outro; de maneira explcita, o texto se constri como intertexto.Os textos desta polmica tm uma cena de enunciao que parece a de uma correspondncia, j

    pela forma de apresentao, semelhante a uma carta. A sequncia, carta-crtica, resposta e rplica, lem-bra um dilogo, mas na verdade h apenas uma semelhana com a correspondncia pessoal, pois socartas que, embora nelas pese um aspecto de defesa pessoal, tratam profundamente de posies estti-cas, sociais e polticas e so publicadas em jornais e revistas.

    Tanto Camus, que no nomeia Sartre, quanto Sartre, que evoca diretamente seu interlocutor, comum reforo criado pela repetio, praticam um jogo retrico, pois na verdade no se trata de uma cartaprivada. O interlocutor visa em primeiro lugar no tanto a seu adversrio direto, mas se dirige primaria-

    mente comunidade acadmica e poltica e, por extenso, a toda a comunidade de leitores dos jornaise das revistas nos quais os textos so publicados.No texto de Sartre, h um Camus visto da perspectiva sartriana. Sartre igualmente descrito do

    ponto de vista de Camus, pois no texto polmico cada um introduz o Outro em seu fechamento, aotraduzir seus enunciados dentro da categoria do Mesmo, e s se relaciona com este Outro sob a formado simulacro que constri dele. Isso s acentua os mal-entendidos.45

    Abordando uma pea de Sartre e antes de reproduzir um comentrio dele, Francis Jeanson escreve:O autor deAs mos sujas, intrigado em razo de uma falsa interpretao de sua pea, props-se a defi-nir o verdadeiro sentido que ele desejava que lhe fosse dado.46Camus, por seu lado, foi sensvel, des-de o incio de sua carreira, ao tema e situao do mal-entendido ttulo de uma de suas peas , quecombatia e que era s vezes agravado por suas intervenes, e que ele parecia viver com uma dolorosaintensidade, como demonstram, alm dos prefcios e textos introdutrios, suas cartas de protesto.

    Camus revela que, mesmo antes da polmica com Les Temps Modernes,a recepo negativa de seuensaio o incomodava. Ele parece tomar as crticas de Sartre como um ataque pessoal e vive a querela du-rante muito tempo. Talvez porque, embora o aspecto autobiogrfico de Camus seja sutil em suas obras,estas dificilmente se separam dele prprio, e at em LHomme rvolt, de maneira contida, ele fala de simesmo: Sem parecer, fao ali minhas confisses, escreve a Mamaine Koestler.47

    Mais do que discutir o desejo que tm os escritores de reivindicar um controle para a interpretaode seus textos, importa observar como o mal-entendido no um acidente de percurso, acessrio ou

    evitvel, mas um constituinte mesmo do discurso. A relao polmica em seu sentido amplo est longede ser um encontro acidental de dois discursos que se teriam institudo independentemente um do ou-tro, e o conflito no vem se juntar do exterior a um discurso autossuficiente, mas uma de suas condi-

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    es de possibilidade. No h, de um lado, o sentido e, de outro, certos mal-entendidos contingentesna comunicao, mas, num s movimento, o sentido como mal-entendido.48

    Assim, se tentarmos pr em paralelo os textos de Camus e Sartre e encontrar uma relao entre eles, interessante observar que tais textos foram construdos j numa relao de interdependncia, consti-

    tuindo-se atravs da incompatibilidade e do conflito. Os discursos no se formam independentementeuns dos outros para serem em seguida postos em relao, mas se formam j de maneira relacional nointerior do interdiscurso. Dessa maneira, a relao interdiscursiva mostra a interao semntica entreos discursos como um processo de traduo e de interincompreenso; nesta perspectiva, os textos pu-blicados em Les Temps Modernesque produziram entre Camus e Sartre uma polmica foram ao mesmotempo por ela produzidos.

    Notas

    1O presente artigo constitui a retomada e o desenvolvimento do captulo O interdiscurso, de nossa teseA Revolta na obrade Albert Camus: posicionamento no campo literrio, gnero, esttica e tica, defendida em junho de 2008, junto ao Programade Ps-Graduao em Letras Neolatinas da UFRJ.2Em 1761, Marc-Antoine Calas, jovem protestante prestes a se converter ao catolicismo, foi encontrado morto na casa deseu pai. Este foi logo acusado de ter assassinado o filho por razes religiosas e condenado. Ele foi torturado e executado semprovas , e aps uma investigao precipitada, numa cidade hostil aos protestantes. Voltaire, a par do ocorrido, lanou-senuma batalha, fazendo com que a Justia retomasse o caso e abalando a opinio pblica. Ele terminou por obter a reabilita-o de Calas e de sua famlia. Posicionando-se contra o fanatismo religioso, Voltaire mostrou como o peso do preconceito re-ligioso determinou a deciso da justia; esta questo est presente em seu ensaio Trait sur la tolrance, publicado em 1763.3Cf. WINOCK, Michel. Le sicle des intellectuels. Paris: Seuil, 1999, p. 21.4Cf. WINOCK, 1999, p. 135.5Cf. WINOCK, 1999, p. 210, 276, 489.6GIDE apudWINOCK, 1999, p. 500. Nessa e nas demais citaes, traduo nossa.7BRETON apudWINOCK, 1999, p. 218.8SARTRE, Jean-Paul. Situations IV.Paris: Gallimard, 1964, p. 90.9Salo frequentado por Anatole France e um dos modelos do salo de MmeVerdurin, personagem de la recherche du tempsperdu, de Marcel Proust.10Cf. WINOCK, 1999, p. 504.11Os artigos foram publicados no jornal Alger rpublicain, respectivamente em 20 de outubro de 1938 e 12 de maro de1939, e esto reunidos em CAMUS, Albert. Essais.Paris: Gallimard, 1965, p. 1417-1422.12Trata-se do artigo Explication de Ltranger, publicado em fevereiro de 1943, e retomado em SARTRE, Jean-Paul. Si-tuations I. Paris:Gallimard, 1947, p. 92-112.13CAMUS, Albert & GRENIER, Jean. Correspondance. Paris: Gallimard, 1981, p. 88.14SARTRE, 1947, p. 94.15Cf. TODD, Olivier.Albert Camus, une vie. Paris: Gallimard, 1996, p. 541.16Conferncia publicada em traduo para o ingls na revista americana Theatre Arts, vol. XXX, no6, de junho de 1946,com o ttulo de Forger of Myths: the young playwrights of France.17SARTRE, Jean-Paul. Un thtre de situations. Paris:Gallimard,1992, p. 60.18SARTRE, 1992, p. 60-61.19SARTRE, 1992, p. 57-69.20CAMUS, 1965, p. 1424.21CAMUS, 1965, p. 1427.22CAMUS, Albert. Thtre, rcits, nouvelles. Paris: Gallimard, 1962, pp. 1745-1746.23

    ARONSON, Ronald. Camus & Sartre, amiti et combat. Paris: Alvik, 2005, p. 13.24ARONSON, 2005, p. 35.25Cf. HEIDEGGER, Martin. Ser e verdade. Bragana Paulista/Petrpolis: So Francisco/Vozes 2007, p. 195.26Cf. TODD, 1996, p. 542 e 545.

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    27JEANSON, Francis. Albert Camus ou lme rvolte. Les Temps Modernes, avril 1952.28Essa resposta de Camus foi enviada em forma de carta a Les Temps Modernes. Cf. CAMUS, 1965, p. 754.29CAMUS, 1965, p. 766.30Cf. SARTRE, Jean-Paul. Les mains sales. Paris: Gallimard, 1948 (quadro 4, cena 3).31

    Cf. ARONSON, 2005, p. 356.32Os artigos foram escritos por Ren tiemble e Jean Pouillon e publicados em Les Temps Modernes, na edio de novem-bro de 1947.33CAMUS, 1965, p. 331.34CAMUS, 1965, p. 798.35Cf. MAINGUENEAU, Dominique. Le contexte de loeuvre littraire. Paris: Dunod, 1993, p. 28, e MAINGUENEAU,Dominique. Le discours littraire: paratopie et scne dnonciation. Paris: Armand Colin, 2004, p. 72.36Cf. MAINGUENEAU, 1993, p. 27.37CAMUS, 1965, p. 382.38Cf. MAINGUENEAU, 2004, p. 72.39Cf. MAINGUENEAU, 1993, p. 30-31.

    40Cf. CAMUS, 1965, p. 114.41Cf. CAMUS, 1965, p. 114, 122, 187, 208 e 312.42Cf. MAINGUENEAU, Dominique. Genses du discours. Bruxelas: Pierre Mardaga, 1984, p. 15.43Cf. SARTRE, 1964, p. 90.44Cf. TODD, 1996, p. 779 e 786.45Cf. MAINGUENEAU, 1984, p. 11.46JEANSON, Francis. Satrte.Trad. Elisa Salles. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1987, p. 41.47CAMUS apud TODD, 1996, p. 767.48Cf. MAINGUENEAU, 1984, p. 12

    RefernciasARONSON, Ronald. Camus & Sartre, amiti et combat. Paris: Alvik, 2005.

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    CAMUS, Albert & GRENIER, Jean. Correspondance. Paris: Gallimard, 1981.

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    SARTRE, Jean-Paul. Situations I. Paris:Gallimard, 1947.

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