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Hélio Araújo Diniz Filho Kathia Mara Murito Pimentel A Poética do Envelhecimento na Facilitação de Biodanza Para Idosos Escola de Biodanza de Belo Horizonte Sistema Rolando Toro Dezembro de 2007

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Page 1: A Poética do Envelhecimento na Facilitação de Biodanza ... · roteiro para o palco do meu tempo: ... todos respondendo ao entusiasmo de se unirem em roda, ... 4 CASTANEDA, Carlos

Hélio Araújo Diniz Filho

Kathia Mara Murito Pimentel

A Poética do Envelhecimento

na Facilitação de Biodanza Para Idosos

Escola de Biodanza de Belo Horizonte

Sistema Rolando Toro

Dezembro de 2007

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Monografia apresentada como requisito parcial à Escola

de Biodanza de Belo Horizonte, para obtenção do título de

facilitadores de Biodanza.

Orientadora: Claudia Helena Rocha Monteiro

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ÍNDICE

1. Apresentação

2. Como tudo começou

2.1 Recordar e Viver: Relato de Hélio Diniz – psicólogo, facilitador de Biodanza

2.2 Envelhecer como aprendiz: Relato de Kathia Pimentel – bióloga, pedagoga,

facilitadora de Biodanza

2.3 Companheirismo: um caminhar compartilhado

3. A Biodanza

3.1 Conceito

3.2 Biodanza e Envelhecimento

4. Relato dos trabalhos vistos dos olhos de quem se dispõe ao amor

4.1 Tempo de aprender: o cenário e o caminho

4.2 Uma emoção a mais: a busca e a conquista. Uma experiência em dois tempos

4.3 A organização da sessão. Ansiedade e estudo

4.4 A roda

4.5 O caminhar

4.6 As brincadeiras

4.7 O batismo de luz. A confiança

4.8 Ser facilitador e ser aluno – o jardineiro e o broto

5. A poética do envelhecimento transversalizada pela Biodanza

6. Considerações finais

7. Bibliografia

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A gratidão

A gratidão é dom, a gratidão é partilha, a gratidão é amor: é uma alegria que acompanha a

idéia de sua causa, como diria Spinoza, quando essa causa é a generosidade do outro, ou sua

coragem, ou seu amor. Alegria retribuída: amor retribuído. ...Como não agradecer ao sol por

existir? À vida, às flores, aos passarinhos? Nenhuma alegria seria possível para mim sem o

resto do universo (pois, sem o resto do universo, eu não existiria). É nisso que toda alegria,

mesmo puramente interior ou reflexiva (a acquiescentia in se ipso de Spinoza), tem uma causa

externa, que é o universo, Deus ou a natureza: que é tudo. Ninguém é causa de si, nem, portanto

(em última instância), de sua alegria. Toda série de causas, e há uma infinidade delas, é infinita:

tudo se amarra, e nos amarra, e nos atravessa. Todo amor, levado a seu limite, deveria, pois,

tudo amar: todo amor deveria ser amor a tudo (quanto mais amamos as coisas singulares,

poderia dizer Spinoza, mais amamos a Deus)...

A gratidão é alegria, repitamos, a gratidão é amor. ... Alegria somada a alegria: amor somado a

amor. A gratidão é nisso o segredo da amizade, não pelo sentimento de uma dívida, pois nada se

deve aos amigos, mas por superabundância de alegria comum, de alegria recíproca, de alegria

partilhada. “A amizade conduz sua dança ao redor do mundo”, dizia Epicuro, “convidando

todos nós a despertar para dar graças.” Obrigado por existir, dizem um ao outro, e ao mundo, e

ao universo. Essa gratidão é de fato uma virtude, pois é a felicidade de amar, e a única. 1

1 SPONVILLE, André Comte. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1999. http://br.geocities.com/mcrost04/index.htm

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Expressamos nossa gratidão:

- aos idosos, que nos emprestaram a visão do ontem, do hoje e do amanhã, que nos sensibilizaram para possibilidades antes nunca percebidas, que nos abriram os corações para o amor sem limites de idade;

- à Biodanza e seu fundador, Rolando Toro, pela genialidade, exemplo vivo de que sonhos e realizações não têm limites;

- à “Escola Feliz” - Escola de Biodanza de Belo Horizonte, pela aprendizagem partilhada, pela formação integral, visando à inserção da noção de princípio biocêntrico na vida de cada participante;

- à Liliana Viotti, nosso modelo vivo e, especialmente, à Claudia Monteiro, que, com sua criatividade e assertividade, nos desafiou a escrever sobre sentimentos, transgredindo nossas pesquisas acadêmicas anteriores e gerando grande estímulo à produção monográfica, como jamais teríamos vivenciado.

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“Não sou a areia onde se desenha um par de asas ou grades diante de uma

janela. Não sou apenas a pedra que rola nas marés do mundo, em cada praia

renascendo outra. Sou a orelha encostada na concha da vida, sou construção e

desmoronamento, servo e senhor, e sou mistério. A quatro mãos escrevemos o

roteiro para o palco do meu tempo: o meu destino e eu. Nem sempre estamos

afinados, nem sempre nos levamos a sério.”2

A quatro mãos também descrevemos nossa experiência, que

interferiu em nossas concepções e significados sobre a vida. Uma

experiência cheia de emoções criativas, originárias das dores e

dos prazeres da nossa aprendizagem!

2 LUFT, Lya. Perdas e Ganhos. Rio de Janeiro: Editora Record, 2003. p.12.

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1. Apresentação

Este trabalho monográfico se configura como uma cartografia, um relato de caso, uma

escrita sobre uma viagem em direção à sensibilidade humana, à capacidade criativa, à

vivência da afetividade, da vitalidade, da sexualidade e da transcendência. Trata-se de

uma convivência muito próxima, transversalizada pela Biodanza, entre dois

facilitadores e quatro grupos de pessoas idosas em lugares e condições sociais

diferentes.

Tomaremos o termo cartografia como uma arte que, desde a ciência geográfica, registra

paisagens que se vão conformando enquanto são afetadas pela natureza, pela história,

pelo tempo, pelos eventos da vida e dos significados que lhe são conferidos.

Segundo Ferreira (1986, p. 360), cartograma é o mapa em que se representam, por

meio de pontos, figuras, linhas, colorido, previamente convencionados, um fenômeno quanto a

sua área de ocorrência, movimentação e evolução. Destarte, torna-se politicamente interessante

usufruir deste termo como uma ferramenta facilitadora para desencadear novos percursos

científicos em favor de uma análise e de uma maior apropriação da noção de acontecimento no

discurso dos sujeitos.3

É, pois, a partir dos acontecimentos, das experiências vividas, das mudanças ocorridas e

de como tais eventos afetaram nossas vidas, que vamos construindo este mapa, cuja

trajetória vai, aos poucos, ganhando novos rumos, múltiplas nuances, fortes elaborações

afetivas e inúmeras adaptações significativas. É do ponto de vista do cartógrafo que o

relato se configura, pois ele é quem coordena e empreende o movimento, quem analisa,

se sensibiliza e se vê afetado e modificado.

Nosso intuito é descrever o que vimos, ouvimos, sentimos e com o que nos

surpreendemos neste caminho que é, para nós, tão significativo. A descrição deste

trabalho é o mapa que vai sendo construído pelas passagens através das vivências em

Biodanza e pelas construções subjetivas de cada facilitador em contato com seus alunos

3 MAIRESSE, Denise. FONSECA, Tania Mara Galli. Dizer, escutar, escrever: redes de tradução impressas na arte de cartografar. Psicol. Estud. v.7, Maringá, jul/dez. 2002. Scielo.

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idosos e em contato com a experiência. A emoção gerada no facilitador dá ritmo à

escrita cartográfica, pois mostra o desenho da sua prática, as possibilidades que se

apresentam, as dúvidas, as ansiedades, as angústias, as conquistas, os projetos, os

estudos, a trajetória e, afinal, aquilo que vê, sente, infere e, sobretudo, aprende.

O mapa mostra nossas impressões através das quais construímos significados pessoais e

profissionais que nos marcaram de forma irreversível. Esses significados referem-se a

estar em contato com a brevidade da vida, com as possibilidades de viver o que se tem

para viver, com a busca da melhor forma de envelhecer com alegria, incluindo a

criatividade, a solidariedade, os movimentos, os afetos, a música e a dança da vida.

Cada grupo de idosos com os quais convivemos apresentava suas próprias

características, distintas em muitos aspectos; cada qual com sua história particular, suas

crenças e valores. Independentemente da identidade de cada grupo, foi perceptível a

materialização de estímulos vitais impulsionados pela vivência em Biodanza. Estímulos

vitais que, sem que pudéssemos prever, atingiram-nos como facilitadores de forma

profunda, levando-nos a múltiplas aprendizagens.

Este trabalho surgiu da emoção dos momentos vividos com diversos públicos idosos,

todos respondendo ao entusiasmo de se unirem em roda, de se olharem e se acharem

belos, de se apoiarem nos momentos difíceis, de caminharem com firmeza ou com

leveza, de se encontrarem em um abraço afetivo, de se saberem reconhecidos.

Nossa vivência nos remete a indagações que direcionam à reflexão: o que dizer de nós,

facilitadores, coordenadores dos processos desenvolvidos em cada encontro,

testemunhas das manifestações humanas criativas, capazes de reconstruir, partir da

simplicidade de cada dia, uma existência renovada, afetiva e amorosa? O que fica para

nós dos encontros, dos momentos vividos e das despedidas? O que nos sensibiliza na

possibilidade de sermos, ao nosso tempo, idosos, sensíveis, aprendizes, assim como os

grupos de idosos que, nos contatos informais, nos mostraram o quanto viver bem é

possível? Que conhecimentos, que sentimentos, que valores nos proporcionou, e ainda

nos tem proporcionado, essa múltipla experiência?

Destacamos a relevância deste tema, que nos coloca, como facilitadores, em contato

com nossa subjetividade, abordando nossos sentimentos, nossas angústias, nossas

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alegrias, nosso contato próximo com a velhice, seus limites e suas possibilidades. É

impossível um contato tão próximo sem repensar valores e sem mudar paradigmas sobre

as concepções quanto às oportunidades nas diversas faixas etárias da vida e, enfim, sem

entrar em contato com a previsão da nossa própria velhice. Seremos idosos, sim, e

desejamos ser idosos vitais, com saúde, com gratidão pela vida. É possível? Certamente,

se mudarmos nossa forma de encarar o belo, o novo, o produtivo. A Biodanza tem seu

papel em aproximar os participantes, conduzindo-os pelos caminhos do Princípio

Biocêntrico, que considera que, acima de tudo, a vida se impõe! Portanto, enquanto

houver vida, haverá aprendizagem, crescimento, criatividade e um horizonte a ser

conquistado.

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2 Como tudo começou

Ao iniciar as aulas de Biodanza com os grupos de idosos, já tínhamos experiência com

esses grupos, pois já havíamos iniciado uma reflexão sobre o envelhecer. Em outras

atividades, já havíamos expressado nosso interesse em estudar o envelhecimento. Hélio

já coordenava o Projeto Recordar e Viver e eu já era coordenadora da Universidade da

Terceira Idade, atividades que ainda vamos apresentar neste trabalho. Ao mesmo tempo,

já tínhamos um vínculo com a Biodanza e sabíamos dos seus benefícios para as pessoas

em geral.

Dom Juan, no livro Erva do Diabo4 expressa fragmentos de nosso pensar quando fala

do homem de conhecimento. Para ele, o homem de conhecimento tem quatro grandes

inimigos. Estes são, hierarquicamente, descritos como medo, clareza, poder e velhice!

Assim, o homem de conhecimento só se conforma se for vencendo cada inimigo

gradativamente até chegar ao último, incapaz de ser vencido, mas possível de ser vivido

e compartilhado até o último momento da vida!

Como facilitadores, passamos pelas etapas descritas por Castaneda. Primeiro, o medo de

empreender o desconhecido. Como será uma aula de Biodanza para idosos? Aos poucos

fomos construindo o conhecimento, e o medo foi dando lugar à clareza. Sim, podemos

construir com a dança da vida, mas o estudo é necessário, como é também a adequação

aos novos eventos, às diversas personalidades, às experiências já vividas, aos conceitos

já construídos, à história vivida pelos participantes. Tal como diz o autor, jamais deixar

o poder (e a vaidade!) subir à cabeça, dando a errônea sensação de que já estamos

prontos! A sabedoria vem com a vivência, com a experiência continuada, que conforma

a maturidade. A sabedoria é fonte de clareza, coragem, simplicidade e permissão das

possibilidades. Embora a velhice não seja vencida, ela pode ser aceita, vivida com

sentimentos evolutivos (de saber-se aprendiz independente da idade), com vitalidade,

com contemplação, com humildade, não com menos intensidade!

4 CASTANEDA, Carlos. A Erva do Diabo. Rio de Janeiro: Editora Nova Era, 2006. 31. ed.

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Na Coordenação da Universidade da Terceira Idade e nos Projetos da Coordenadoria de

Apoio e Assistência ao Idoso, de Governador Valadares, pudemos elaborar e coordenar

projetos voltados para o público idoso, que, além das práticas desenvolvidas,

oportunizou-nos um repensar teórico sobre o tema.

Essa proximidade com o estudo e a atuação em programas acadêmicos e sociais nos

levaram à escolha desse público para nossas primeiras ações como facilitadores de

Biodanza.

Vivenciamos quatro experiências:

1. A Universidade da Terceira Idade, na UNIVALE – Universidade Vale do Rio

Doce, em Governador Valadares, de março a dezembro de 2005, com 30

participantes, todos do sexo feminino, com idades entre 50 e 76 anos.

2. Projeto Comunidade Viva em Ação – uma parceria do Governo Federal com a

UNIVALE, o VI Batalhão da Policia Militar e a Prefeitura Municipal de

Governador Valadares, MG. Foram atendidos, de agosto a dezembro de 2006,

dois grupos regulares com uma média de 60 pessoas, nos 06 meses do projeto,

com idades entre 42 e 86 anos, nos aglomerados Carapina e Querosene, em

Governador Valadares.

3. Grupo Sagrada Família – grupo de senhoras vinculadas à Igreja Católica e ao

Grupo de Tai Chi Chuan, remanescentes do Projeto Recordar é Viver,

implantado pela Coordenadoria de Atenção e Apoio aos Idosos da Prefeitura de

Governador Valadares, de 2000 a 2004. Participaram cerca de 20 pessoas, todas

do sexo feminino, de agosto de 2006 a agosto de 2007, com idades

compreendidas entre 60 e 90 anos.

4. CEAMI – Centro de Estudos e Atividades para a Melhor Idade. Este grupo é

originário da Congregação de freiras Clarissas Franciscanas, em Belo Horizonte.

A tipicidade dos participantes deste grupo reporta ao convento, pois cerca de

50% são freiras. Os outros 50% são senhoras, avós de alunos da escola de ensino

fundamental e médio que a congregação dirige, com idades compreendidas entre

60 e 89 anos. As atividades ocorreram de abril a junho de 2007.

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Pudemos, pois, interagir com um número aproximado de 120 pessoas, com idades entre

50 e 89 anos, considerando os grupos de participantes regulares citados anteriormente.

Em eventos abertos, o número de participantes aumentava consideravelmente, em cada

grupo.

Embora, no Brasil, o Estatuto do Idoso considere idosa a pessoa que faz 60 anos,

algumas pessoas com muito menos idade já se apresentavam aposentadas e ajustadas

nesse grupo, seja por apresentarem alguma patologia (no projeto Comunidade Viva em

Ação, a maioria das pessoas apresentavam hipertensão ou diabetes) ou por decisão

própria, sentindo-se adaptadas a grupos com idades mais avançadas.

As atividades desenvolvidas por nós com os grupos citados foram sessões de Biodanza,

cujo tempo de duração, do momento de comunicação verbal ao encerramento das

vivências, foi de 1h40 em média. Todos os alunos jamais haviam feito aulas de

Biodanza e desconheciam o significado do termo e a prática que iriam fazer.

Qualquer trabalho com grupos de idosos demanda objetivos subjetivos e imediatos. É

um caminho que se embrenha por trânsitos complicados das experiências individuais,

das vivências de preconceitos, de repressões vividas, da exclusão, da solidão, da

esperança, do reencontro. O ponto de chegada é o reencontro consigo mesmo e com a

coletividade, com os sonhos e as habilidades adormecidas e a perspectiva de novos

horizontes, novas possibilidades. A experiência de vida vem determinar que é preciso

viver o momento atual, o presente, como o grande “presente”da vida.

Sem dúvida, preparar sessões de Biodanza para o público idoso requer um pensar a

partir dessas perspectivas educacionais que valorizam a individualidade, o respeito ao

desejo de cada participante, suas aspirações, sua descobertas, tanto quanto em qualquer

outra faixa etária.

2.1 Recordar e Viver: Relato de Hélio Diniz – psicólogo, facilitador de Biodanza

Em 1983, eu estava fazendo vestibular para Psicologia e tinha muitas dúvidas sobre que

escolha profissional deveria fazer. Queria que minha escolha fosse pela valorização do

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homem e pela liberdade de expressão que eu tanto buscava. Conheci a Biodanza numa

das idas para fazer inscrição na faculdade. Descobri, no meio de vários cartazes, um que

me convidava para uma aula de iniciação em Biodanza, numa clínica chamada CreSer .

No convite havia o telefone da facilitadora. Anotei-o em um pequeno papel de rascunho

que permaneceu comigo até eu verificar que coisa era aquela que tinha vida e dança no

nome. Era cheio de preconceitos e não queria dançar. Achava que não combinava

comigo, sentia-me tímido e sem jeito para dançar. A coragem chegou em um mês de

maio, e despertou em minha vida uma série de valores que eu procurava para me tornar

adulto. O grupo de iniciação era composto por gente carinhosa, gente que despertava

admiração na hora que falava. Gostei de ter ido. Aos poucos fui constatando que era aí o

meu lugar para me tornar o homem digno que sempre desejei ser. Havia encontrado a

dica da estrada a trilhar. Segui em frente e, sem saber muito da vida, comecei a fazer a

primeira formação para facilitador de Biodanza. Foi uma jornada da qual meu ser

guarda lindas lembranças de afeto e crescimento.

O tempo passa, a estrada faz curva, sobe montanha, desce vale, atravessa oceano e a

vida caminha. Fui progressivamente me atendendo, moldando a minha formação no que

eu acreditava ser bom para minha vida profissional. Tornei-me psicólogo e “meio”

facilitador de Biodanza, pois tinha a formação teórica e um pouco de experiência em

grupo. Voltei para Valadares para trabalhar com Psicologia e administrar os negócios

familiares. Nessa caminhada, muitos acontecimentos me convidaram a ficar sem dançar.

A única ação que eu realizava era a de levar o movimento da Biodanza para grupos de

terapia que eu desenvolvia através da Educação Biocêntrica. Não me sentia capaz de

coordenar uma sessão de Biodanza, mas acreditava na mudança de paradigma. Perceber

a vida em movimento não exigia explicações ou conceituações! O convite para retornar

à formação de Biodanza chegou por uma amiga que acompanhava o nascimento da

Escola Biodanza de Belo Horizonte. Esta foi a grande permissão para retomar a energia

que vivi há 20 anos. Agora não era mais o adolescente, mas o adulto, cheio de histórias

boas para contar. Agora já queria dançar e poder convidar mais pessoas para dançar,

movimentar o coração, colocando mais amor e cuidado na vida.

Fazer a formação mais uma vez, em 2004, foi certificar-me de que tudo em que eu

acreditei era verdade. Um breve ponto de luz mostrado por Rolando no início da minha

jornada de adolescente era hoje uma cidade de pontos de luzes, formado por todos os

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bons encontros que tive através da Biodanza e de bons relacionamentos criados no

decorrer da vida. Acreditava no percurso, no homem que sabe amar, no respeito aos

próprios instintos, na ampliação do seu próprio potencial genético renovado a cada

desafio. Tudo me proporcionou, mais uma vez, o desejo de ser facilitador de Biodanza.

2.2 Envelhecer como aprendiz: Relato de Kathia Pimentel – bióloga, pedagoga,

facilitadora de Biodanza

Minha história com a Biodanza remete há alguns anos, tempos em que a vida já dava

muitas voltas (tal como continua até hoje!). Nessas voltas, fiz formação em Análise

Transacional, curso de pós-graduação em Psicopedagogia e depois em Gerontologia e

Geriatria. Fui Coordenadora da Universidade da Terceira Idade, na UNIVALE –

Universidade Vale do Rio Doce, em Governador Valadares, MG, de 2000 ao final de

2006. Na mesma universidade, coordenei o Curso de pós-graduação LATO SENSU em

Psicopedagogia, que formou quatro turmas. Iniciei minha vida profissional como

professora de Biologia e, a partir de 1990, passei a me interessar pela Psicopedagogia

Clínica e Institucional. Sempre me importei com a educação, como professora que sou

desde a idade de 14 anos. Talvez daí tenha surgido minha opção por me embrenhar no

desafio da ação educativa com pessoas idosas, na universidade. Envelhecer, do ponto de

vista da bióloga, é um processo orgânico, irreversível, que acomete todos os seres vivos,

animais e plantas, desde que nascem. Entretanto, do ponto de vista do sujeito

psicológico e social que todos somos, significados diversos são depositados nesse

processo, levando-nos a envelhecer com mais ou menos tranqüilidade. Atuar em um

projeto educacional com idosos, conviver e dialogar, trocar experiências, testemunhar

seus crescimentos e mudanças, suas dores e alegrias, me toca profundamente. Esta foi,

pois, uma experiência inusitada. Dos estudos e da prática com idosos surgiu a

organização e autoria nos livros EnvelheSer: reflexões e práticas5 e Café com Poesia,

ambos publicados pela Editora UNIVALE.6

5 PIMENTEL, Kathia. EnvelheSer: reflexões e práticas. Governador Valadares: Editora Univale, 2006. 6 CARVALHO, D. PIMENTEL, K. ORG. Café com Poesia. Gov. Valadares: Editora Univale, 2005.

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Em 2004, fui convidada a fazer a Escola de Biodanza de Belo Horizonte. Foram anos de

muito esforço, viagens, investimento financeiro, estudos e vivências. Chegamos ao

final, ou melhor, ao “começo”, cujo ensaio já temos feito nos grupos de supervisão. A

Biodanza chegou à Universidade da Terceira Idade de Governador Valadares por meio

de nosso entusiasmo em aplicar o que estávamos aprendendo e vivenciando há tanto

tempo.

Os projetos com idosos têm continuado em outras experiências, como vamos relatar

mais adiante. O importante é que esse foi o momento do encontro. Não sei de quem é a

frase, mas estava em um papel de bombom: “As pessoas entram em nossa vida por

acaso, mas não é por acaso que permanecem nela”. Foi assim, casualmente, que Hélio e

eu nos encontramos, e, posteriormente, fizemos a escolha e a decisão de seguir esse

caminho.

2.3 Companheirismo: um caminhar compartilhado

“Ser companheiro da Kathia entre Belo Horizonte e Valadares abriu, em mim, o desejo

de estagiarmos juntos. Dividíamos os medos e as dúvidas pela estrada e, quando

chegava à cidade, eu estava mais fortalecido para querer colocar tudo em prática. Nossa

troca de informações era a forma pela qual os conceitos ganhavam vida. Chegou o

momento de formar o grupo. Hora de começar! O meu coração batia um pouco mais

forte. Todo o nosso planejamento de dias estava entrando em ação. Ter a certeza de que

o caminho era aquele me deixava tranqüilo, mas o som, o grupo novo, as pessoas que

diziam que não sabiam dançar criaram um novo ritmo no meu coração. O som forte,

movido pelo novo, firmava meus pés no chão. O estagiário facilitador de Biodanza ia

entrar em cena. Aquilo era o que tanto eu falava e ouvia na formação de facilitador: a

necessidade de estar presente no aqui e agora. Respirei e fui. Comecei com a teoria.

Sim, a teoria para comunicar o que era Biodanza, de onde veio e quais seus objetivos.

Senti a força da presença da Kathia segurando minha mão. Cuidava de minha fala para

não parecer uma gravação de papel lido e repetitivo. O pulsar da emoção, combinando

com aquilo em que meu coração acreditava, gerou palavras para percorrer todo aquele

primeiro momento de estágio. A companhia da Kathia, cada vez mais, fazia-me presente

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na sala. Estávamos fortalecidos pelo planejamento cuidadoso dos exercícios que

tínhamos escolhido para a primeira aula e pela supervisão da Liliana Viotti. No decorrer

da aula, podíamos perceber que alguns rostos iam-se transformando com a alegria da

música e do movimento. O prazer de movimentar-se em liberdade, com o caminhar e

pequenos encontros, gerava um movimento novo em que as pessoas pareciam querer

estar mais juntas. As pequenas conversas saltavam para esconder a emoção que cresceu

no início. Tomamos isso como indicador para reformar a nova consigna do próximo

exercício. Agora, a porta para sentir estava aberta e as vivências tornavam-se cada vez

mais fortes e significativas. O crescimento da curva da aula se casava com cada

vivência. O bem-estar, que parecia surgir nos participantes, era possível de ser visto

através das danças e dos olhares brilhantes.”

Portanto, nos embrenhamos por este caminho porque ele nos foi peculiar; comoveu-nos

profundamente.

Por meio desse relato, queremos transmitir a outros facilitadores o que ouvimos,

percebemos vivenciamos, sofremos, aprendemos, e aquilo com que nos alegramos. Sim,

porque não se pode biodançar com pessoas idosas sem aprender o que é a vida, sem ter

esperanças, sem vencer barreiras, sem sentir profundamente o pulsar da própria

identidade dentro do peito, jovem e idosa, querendo se expressar na alegria de ser quem

se é!

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3. A Biodanza

...Deixa os sonhos te levar

Voa alto, vai bem longe

Sonha o que mais te

agradar.

Põe flores, muitas cores

estrela, o céu e o mar

Muito amor, muitos

sabores

Pra teu sonho enfeitar ” 7

3.1 Conceito

O conceito de Biodanza nos remete à origem morfológica da palavra:

Bio=vida e dança= movimento pleno de sentido. “(...) É expressão da música e do

movimento, cadência ou disritmia, nossa dança de cada dia...” 8

Para seu criador, Rolando Toro, a Biodanza surgiu da busca da reconciliação com a

vida, do resgate do sentido da vida, perdido no tempo pela estrutura vazia de repressão

vivida pela humanidade. Para Cezar Wagner,9 é pedagogia pelo movimento e pelo

encontro, é a poética do encontro. Para nós, facilitadores, é poesia, é encontro, é fluir

como água no veio das origens, das profundezas da terra, das possibilidades. Biodanza é

mover-se a um significativo encontro consigo mesmo, com o outro e com o universo.

Ao contrário de uma conduta de alienação, muitas vezes, comum à pessoa idosa, a

Biodanza permite ampliar a percepção da realidade (obscurecida por nossas couraças

criadas para nos manter vivos, em nossa luta pela vida), proporcionando espaço para a

7 TOMISCH, H. Cryseida. Devaneios. In: CARVALHO, D. & PIMENTEL, K. (org) Café com Poesia.

Governador Valadares: Editora Univale, 2005. A autora foi aluna da Universidade da Terceira Idade, UNIVALE.

8 RABELO, Ângela Dutra. Chão e Sonho na dança da vida. Brasília: Editora do autor, 1999. p.61. 9 GÓIS, Cezar Wagner de Lima. Vivência e Identidade: uma visão biocêntrica. 2. ed., Fortaleza: Edições Instituto Paulo Freire, 2002. p.23.

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vivência dos sentimentos autênticos, do afeto, da permissão para vivências intensas de

resgate de seus potenciais e habilidades, muitas vezes esquecidos no tempo.

A metodologia da Biodanza consiste em “induzir vivências integradoras por meio da

música, do canto, do movimento e de situações de encontro em grupo” 10

Vivência, no dicionário Michaelis, é o fato de ter vida, de viver, modo de vida, hábitos

de vida. Para a Biodanza, vivência é a sensação intensa de viver o aqui e agora, com

forte componente cenestésico. Vivência é algo que acontece no momento, que gera uma

emoção, que amplia a percepção de algo em nós mesmos, no outro ou no meio

ambiente. Vivência também pode gerar sentimento, que é uma resposta mais elaborada

à emoção. Enquanto a emoção é uma resposta psicofísica, de envolvimento corporal,

influenciada pelo sistema neurovegetativo, o sentimento envolve a participação da

consciência e tem caráter simbólico.

A vivência é o caminho que a Biodanza utiliza para a consciência essencial da realidade

e a sabedoria, que consiste na consciência profunda de si mesmo e do mundo.

3.2 Biodanza e Envelhecimento

Apresentamos o conceito de Biodanza como um sistema de integração afetiva,

renovação orgânica e reaprendizagem das funções originárias de vida. A Biodanza

promove o desenvolvimento humano pela facilitação da expressão do potencial genético

de vitalidade, sexualidade, criatividade, afetividade e transcendência através da dança,

do canto, da comunicação e do contato entre as pessoas. Citando Rolando Toro, o

criador da Biodanza, é “um novo modo de viver a partir de intensas vivências induzidas

pela dança”.11

A definição de Biodanza se concretiza nos depoimentos das pessoas que afirmaram,

após as aulas, que se sentiram melhor, passaram a gostar mais de si mesmas, a dormir

10 TORO, Rolando. Biodanza. São Paulo: Editora Olavobrás, 2002. p.33. 11 TORO, Rolando. In: PIMENTEL, K. Org. EnvelheSer: reflexões e práticas. Gov. Valadares: Editora Univale, 2006.

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melhor; constataram que sua pressão arterial permaneceu mais estável, emagreceram,

passaram a sentir-se mais felizes, com mais energia e esperança na vida.

Tendo em vista todo o contexto trabalhado nas diversas realidades, inferimos que a

Biodanza para a terceira idade passa também pelos conceitos e práticas da educação

biocêntrica, pois revitaliza a identidade, proporciona o fluir de antigas e novas

habilidades no caminho ao encontro de novos rumos para a vida. A educação

biocêntrica nos propõe refletir sobre a aplicação do Princípio Biocêntrico na educação.

Isso faz sentido, pois, nos tempos atuais, os idosos descobriram que ainda podem

aprender! Estão voltando às escolas com os programas universitários abertos à terceira

idade, aos grupos comunitários, aos programas que já são considerados tradicionais,

como os do SESC, SESI, Dedo de Prosa e outros. Enfim, esse grupo populacional está

reelaborando seu modo de viver e de estar no mundo de forma coerente com o Princípio

Biocêntrico, que embasa toda a teoria e prática da Biodanza e propõe “a potencialização

da vida e a expressão de seus poderes evolutivos. Tem como referência imediata a vida,

(...) se inspira nas leis universais que conservam os sistemas vivos e tornam possível sua

evolução.” 12 “Diferentemente da visão antropocêntrica de mundo, o centro das atenções

passa a ser a vida, o ser humano, o ambiente, os animais, o cosmos. Deste ponto de

vida, o universo se organiza em função da vida.” 13

A educação biocêntrica propõe, portanto, um novo paradigma à educação atual – o

Princípio Biocêntrico – do qual partem os fundamentos da Biodanza. Na educação

biocêntrica, “não tem (...) prioridade a formação intelectual ou tecnológica, embora não

a desqualifique, mas sim o desenvolvimento de pautas internas para viver, o

desenvolvimento da afetividade, da percepção ampliada e da expansão da consciência

ética.”14

12 TORO, R. In: PIMENTEL, K. Org. EnvelheSer: reflexões e práticas. Gov. Valadares: Editora Univale, 2006. p. 198. 13 PIMENTEL, K. Org. EnvelheSer: reflexões e práticas. Gov. Valadares: Editora Univale, 2006. p. 198. 14 Idem.

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Tendo como referência as concepções anteriores, a mesma autora citada acima indaga:

Onde levará a ação educativa com a terceira idade se ela não perseguir os

mesmos objetivos que embasam a educação biocêntrica? De que serve

qualquer atividade se não despertar a alegria de estar vivo, de poder se

comunicar, de descobrir novas oportunidades, de desenvolver novos

potenciais e ter a certeza de que se poderá viver uma vida saudável mesmo

depois de ter idade avançada?

Uma velhice com vitalidade é a conseqüência de uma vida bem vivida sob os aspectos

da afetividade, da permissão, da ética, das relações sociais. Permitir ser amado traduz a

vivência do amor, da afetividade que terá importância fundamental na velhice. O

mesmo se diz de encontrar sua turma, de vivenciar de mãos dadas o encontro e a roda,

que poderão trazer à tona as possibilidades ainda não vislumbradas.

Rolando Toro, o criador da Biodanza, convida-nos à vivência da afetividade em todas as

etapas da vida, quando diz: “Temos que nos enlouquecer de amor. Temos que nos

abandonar, temos que permitir que nos amem. Temos que unir as mãos em uma cadeia

de amor através da qual passe realmente a vida. Este é o sentido da roda, o rito da vida,

o ato primordial”.

Esse convite torna-se uma abertura não só para o amor, mas também para a vivência do

aqui e agora, vivência intensa de possibilidades, da união, da força do grupo.

Para Fernando Pessoa, em Ricardo Reis, a alienação não otimiza a vida, pois diz ao

leitor “Sê todo em cada coisa(...) Põe quanto és no mínimo que fazes(...)Assim em cada

lago a lua toda brilha, porque alta vive.”

E ainda o mesmo, em Álvaro de Campos: “Sentir tudo de todas as maneiras (...). Viver

tudo de todos os lados. (...) Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos

(...). Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo (...)”.

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Carlos Drummond de Andrade, incluindo a velhice em seu poema “Mãos Dadas”,15

chama atenção para a vida aqui e agora:

Não serei o poeta de um mundo caduco.

Também não cantarei o mundo futuro.

Estou preso à vida e olho meus companheiros

Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças.

Entre eles, considere a enorme realidade.

O presente é tão grande, não nos afastemos.

Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Cora Coralina, sobre a importância da convivência e da interação social, diz: “Não sei

(...) se a vida é curta ou longa demais para nós. Mas sei que nada do que vivemos tem

sentido se não tocarmos o coração das pessoas.” 16

A chamada para a integração consigo, com o outro e com o universo, tomou uma

conformação ampla e universal e é incansavelmente apontada pela Biodanza em todas

as suas propostas.

O texto a seguir introduz o capítulo A Educação Biocêntrica e os programas

educacionais para idosos, do livro EnvelheSer: reflexões e práticas: 17

“De acordo com os pilares da educação do futuro, definido por um grupo

internacional de educadores e coordenado pelo francês Jacques Delors,

através da UNESCO, a educação para o séc. XXI deve desenvolver nos

alunos as seguintes habilidades:

- Aprender a conhecer e compreender o mundo, com a busca do prazer de

descobrir, de aprender, de viver dignamente.

-Aprender a fazer através da experiência, dos elementos mediadores, da

elaboração dos conhecimentos prévios, com a facilitação da autonomia no

contexto da aprendizagem e da vida.

- Aprender a viver junto, com o estímulo da valorização das diversas culturas,

a construção de uma atitude de cooperação social, de ética e cidadania.

15 http://www.memoriaviva.com.br/drummond/poema019.htm 16 http://www.pensador.info/autor/Cora_Coralina/ 17 PIMENTEL, K. Org. 2006.

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-Aprender a ser, com a consideração das dimensões biopsicossociais das

pessoas.

A definição dos pilares demonstra a importância da formação do sujeito

conectado com o mundo de forma ética, ecológica, com a construção de

conceitos críticos, a elaboração de juízos de valor e a capacidade de agir com

autonomia e de assumir suas próprias decisões de forma reflexiva e

consciente. Estes fundamentos dizem respeito à educação de idosos, à

inserção deles no meio social e ao resgate da cidadania perdida.

As gerações que hoje se encontram na chamada terceira idade, em sua

maioria, participaram de um sistema educacional tradicional e conservador. O

filme Sociedade dos Poetas Mortos, história que se passa numa escola

tradicional18 que retrata esse tipo de educação e a dificuldade encontrada por

um professor em utilizar uma metodologia dinâmica, baseada no prazer de

aprender, na poesia e no pensar por si retrata essa realidade. A frase dita pelo

professor no mesmo filme, “Carpe Diem, garotos, façam suas vidas serem

extraordinárias”, traz à tona a importância da beleza, da poesia, do afeto, da

autonomia, do prazer e encantamento de estar vivo, fato que, nesse contexto,

gerou grandes conflitos. Felizmente, com o passar do tempo e a experiência,

mudam-se os olhares e as concepções sobre a vida. Dos anos 60 até hoje,

ocorreram mudanças importantes na área educacional, considerando-se aqui

também a educação gerontológica que, com o advento da longevidade

populacional, desponta como uma das estratégias para melhorar a qualidade

de vida das pessoas idosas. Os avanços regulamentados pelo Estatuto do

Idoso, no ano de 2003, os pilares da educação do futuro e as novas tendências

pedagógicas parecem falar desse ser humano que pode considerar a felicidade

um bem importante para sua vida.”

Alienarmos a pessoa idosa em seu mundo de fragilidades é uma farsa que vem sendo

praticada na modernidade em resposta ao mundo capitalista que concede oportunidades

aos jovens por representarem ideais de produtividade, juventude e beleza. Crescidos

nesse meio, não percebem que a vida é curta, que são idosos em potencial e que instruir-

se nas experiências dos mais velhos e, a partir delas, construir novas elaborações

confere mais credibilidade e menos sofrimento nas tentativas de erros e acertos. Se os

jovens optam por viver bem e eticamente, terão mais oportunidade de uma velhice

saudável, com construções afetivas que garantirão sua vida com qualidade, em qualquer

idade. 18 Welton Academy, nos EUA, em 1959.

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Não estamos aqui excluindo fatores sociais que interferem na qualidade de vida dos

idosos, especialmente no Brasil. Estamos considerando que cada um, tendo

oportunidade de receber educação adequada, poderá sempre vislumbrar possibilidades

de ação e não aceitar abusos, descréditos e violência. É comum a TV divulgar casos de

familiares que abusam dos parentes idosos, tirando sua oportunidade de conviver, seu

dinheiro e sua vida já tão limitada e abandonada. Em 06/09/2007, a TV Globo divulgou

matéria sobre um jovem, casado, que prendeu, por um ano, a avó de 84 anos em um

quarto escuro. Que vergonha têm as pessoas da velhice?! As mãos da senhora foram

filmadas; suas rugas e suas veias estavam à mostra. O que os telespectadores, em suas

casas, sentiram?! As mãos são o retrato da idade, mas também são o retrato da

experiência, da sabedoria, da temporalidade da vida, da necessidade de viver bem.

Como uma amiga diz: “Alô – ô, preste atenção! A vida tem um tempo para ser vivida!

Vamos viver bem hoje! Seremos idosos mais felizes se vivermos com mais dignidade.”

Todos esses pensamentos, emoções e avaliações, no decorrer de nosso trabalho com os

idosos, trouxeram-nos a consciência da temporalidade da vida. A Biodanza e a educação

biocêntrica trazem à tona a revisão das possibilidades através de sua metodologia

vivencial. Para idosos não interessa uma programação a longo prazo. Eles já fizeram

muito na vida. O momento é de desfrutar. Mas interessa a eles o futuro, pois a medicina

tem alongado a existência. Uma pessoa de 70 anos ainda poderá ter mais 30 anos de

existência. Essa existência, que é um presente, um susto, uma alegria, um choro, uma

vida intensamente vivida, inclui emoções e sentimentos diversos em cada situação

vivida. Inclui também a criatividade para recriar a vida e cada momento como um novo

tempo, uma nova trajetória, um novo mapa. Desse ângulo, viver bem é uma arte! A

Biodanza tem profunda conexão com a arte em todos os estilos e modalidades,

incluindo a arte de viver bem, a arte de relacionar-se, a arte de amar o próximo, amar-se

e ser amado!

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4. Relato dos trabalhos vistos dos olhos de quem se dispõe ao amor

Neste relato, vamos dissertar sobre os dois primeiros grupos, pois os dois últimos nos

proporcionaram sentimentos intensos de ansiedade, alegria e muita emoção, tal como

nos dois primeiros, e resumem trajetórias afins, com personagens diferentes.

Acreditamos não ser necessário relatar todas as experiências para não corrermos o risco

de sermos repetitivos ou cansativos, mas cuidaremos de expor os aspectos relevantes e

comuns que vivenciamos em todos os grupos, desde a primeira experiência. Portanto,

faremos uma exposição mais ampla dos grupos de idosos que vivenciaram a Biodanza

nas seguintes instituições: Universidade da Terceira Idade e Projeto Comunidade Viva

em Ação.

4.1 Tempo de aprender: o cenário e o caminho

Tudo me toca, me assombra e me comove: o mais cotidiano e o

mais inusitado. Tudo forma o cenário e o caminho. Que a

maturidade me fez amar com menos aflição e quem sabe com

menos frivolidade – não com menos alegria.19

A primeira experiência teve início por meio da inserção da Biodanza na grade curricular

da Universidade da Terceira Idade, na UNIVALE – Universidade Vale do Rio Doce, em

Governador Valadares, de março a dezembro de 2005. A turma tinha cerca de 30

participantes, todos do sexo feminino, entre as idades de 50 e 76 anos.

As vivências aconteciam na sala de aula da universidade. Não havia uma sala especial,

preparada para a Biodanza. Mas havia um ambiente tranqüilo, próximo ao rio, aos

pássaros que cantavam na porta e janelas das salas, muitas árvores e, especialmente,

privacidade. O campus é horizontal e há uma distância considerável entre as diversas

19 Luft, Lya. Perdas e ganhos. Rio de Janeiro: Editora Record, 2003. p.148.

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salas de aula. O chão é de cerâmica fria, pois a região é muito quente. Não havia

almofadas, mas cadeiras comuns de sala de aula, que eram colocadas em círculo.

Durante a aula, as pessoas que sentissem necessidade podiam se sentar. O momento de

sentar-se foi sendo inserido naturalmente, durante a aula. Os alunos idosos já

freqüentavam a universidade em outras atividades, como dança, tai chi chuan,

hidroginástica, aulas de psicologia, literatura, espanhol, musicoterapia, filosofia e

outras. Participavam de seminários, mesas redondas, cinemas comentados, cafés com

poesia, entre outros projetos acadêmicos voltados para a convivência e a atualização

cultural. A proposta da Biodanza foi bem aceita. Foi possível perceber o entusiasmo

desde as aulas iniciais pela disponibilização à roda, aos encontros, aos abraços.

Entretanto, foi preciso ter atenção ao tempo de adaptação de cada um para vencer as

barreiras da educação tradicional que vivenciaram em tempos de infância, adolescência

e até na vida adulta. Apoiados pela sensação de prazer e proximidade com a dança de

salão – comum às pessoas idosas – e ao tai chi chuan, ambos oferecidos pela

universidade, foram-se integrando às vivências com tranqüilidade.

O respeito à gradatividade sempre foi um aspecto considerado fundamental nessa nova

proposição de fazer aulas de Biodanza no programa da Universidade da Terceira Idade.

Em nós, facilitadores a caminho, a ansiedade e a responsabilidade nos traziam à tona

inúmeras preocupações. Que vivências promover nas aulas? Que músicas? Que ritmo?

Que linhas de vivência trabalhar? Que cuidados providenciar com relação à

profundidade, ao tempo, ao contato? Poderiam os idosos dar conta de uma aula de

Biodanza? Estariam bem adaptados? E nós, estaríamos prontos para sermos

facilitadores?

Muitas indagações surgidas antes e depois de cada aula estruturada, muitos erros e

acertos vivenciados com consciência e reflexão tornaram-se, com o tempo, fontes de

aprendizagem no transcurso desse caminho.

A reflexão sobre cada dia tornou-se fundamental nos inúmeros encontros para

preparação e estudo das aulas. Que crenças nos moviam quando estruturávamos nossos

encontros? O que pensávamos do público que atendíamos, considerando a faixa etária

não tão distante das nossas? Vislumbramos que todos envelhecem. E nós?! Nem

sempre conseguimos perceber que estamos envelhecendo desde que nascemos, e

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mascaramos nossos sentimentos. A distância entre o medo e a nossa metacognição não é

muita! Saber sobre si mesmo é saber do medo, da ansiedade, do tremor, do próprio

envelhecer. Condizentes com a política do mundo produtivo e jovem, não nos olhamos

no espelho, não queremos ver que não somos mais tão jovens, embora nos saibamos

produtivos e desejosos da vida!

Remetendo a Cecília Meireles no seu poema “Retrato”, a velhice nos pega no susto, ao

nos olharmos, pela primeira vez, no espelho dos olhos de nossos alunos idosos!

Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo. Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas; eu não tinha este coração que nem se mostra. Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: - Em que espelho ficou perdida a minha face?20

Que medos, ansiedades, dores, preconceitos temos de nosso próprio envelhecimento?

Que antevisões nós fazemos de nossas relações afetivas, de nossa sexualidade, de nossa

vida social, da solidão, da convivência, do nosso corpo e organismo quando formos

idosos?

Na UNITI, nossas alunas se mostraram amadurecidas, sensuais, criativas,

transcendentes, vitais! A vovozinha de óculos da ponta do nariz parece ter ficado

perdida na história dos Irmãos Grimm, substituída na atualidade pela avó que se

surpreende com suas novas possibilidades. Os caminhos se abriram com os avanços

biopsicossociais dos últimos anos.

Lia Luft afirma que “há poucas décadas alteraram-se nossos prazos e os conceitos sobre

juventude, maturidade e velhice. Passamos a viver mais. Nem sempre passamos a viver

melhor. Esse me parece um dos mais extraordinários desperdícios da nossa época. Hoje

20

http://www.geocities.com/fedrasp/retrato.html

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as avós voltaram à escola, dirigem carro, namoram, usam computadores, parecem mais

felizes que as avós antigas, mas ainda viceja nosso repúdio à velhice!”21

Concordamos plenamente com a autora! Há, sim, um conflito entre o que a vida nos

apresenta na realidade, o que percebemos das possibilidades e o que nos permitimos

viver.

Ainda assim, nossas alunas da UNITI nos ensinaram que o crescimento é incontrolável

se existe desejo de viver! Fizeram vestibulares e cursaram cursos de graduação, após,

evidentemente, seus 60 anos!

Lya Luft afirma, sabiamente, que uma questão fundamental é o que e quanto nós nos

permitimos. Destacamos a omissão sábia do advérbio quando, na perspectiva da

permissão e da temporalidade, pois, enquanto estamos vivos, estamos aprendendo! Cada

momento vivido traz o impacto do novo, fortalecendo ou renovando nossos valores

internos.

Neste momento, já nem nos damos conta se estamos falando das alunas de Biodanza da

UNITI ou de nós, facilitadores! Nossos espaços internos, nossas crenças construídas nos

limitam ou nos libertam na mesma intensidade!

Deparamo-nos com a indagação: que linhas de vivência trabalharemos com este grupo?

Vitalidade? Afetividade? Criatividade? Sexualidade? Transcendência? Curiosidade,

insegurança, observação, conhecimento permeiam o momento de planejar. Como os

idosos lidam com sua sexualidade? Que dor, que alívio trarão as vivências propostas em

transcendência? Em que degrau colocar a criatividade?!

Neste caminho, nossas crenças podem nos direcionar. O que pensamos sobre as

possibilidades e limites do envelhecimento? O impacto causado pela realidade do

próprio envelhecer gera sentimentos e conduz nossas ações para maior ou menor

permissão em estarmos vivos e integrados a novas oportunidades da vida. Aceitar o

envelhecimento é voltar-se para si e se encontrar no outro. É momento de sabedoria e

generosidade como transmissores culturais vivos que somos. E Luft, mais uma vez, nos

responde: “O espaço interior é necessário para a permanente recriação de si mesmo. São

os aposentos que deveriam ser mais generosos e iluminados. Ali poderíamos analisar o

21 LUFT, Lya. Perdas e ganhos. Rio de Janeiro: Editora Record, 2003. p.130.

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trajeto feito, conferir nossos parâmetros, repensar os amores vividos e os projetos

possíveis”. 22

A Biodanza propõe a vivência intensa das possibilidades. Considerando o próprio

reconhecimento como ser único, fortalece a identidade e, ao mesmo tempo, dirige-se ao

outro e ao universo. Um caminhar gradativo que permite adaptações e adequações,

mudanças de rumo, novos caminhos, trilhados com leveza, com entusiasmo, com

sensibilidade.

Consideramos uma experiência gratificante a fala da aluna M. A. ao repórter da TV

Universitária: “Estou me sentindo mais bonita! Estou sim, podem acreditar! Mais

bonita, mais animada, de bem com a vida!”, referindo-se às aulas de Biodanza inseridas

no programa de atividades da Universidade da Terceira Idade.

Consideramos importante destacar ainda que o Dia Internacional do Idoso foi

comemorado em grande estilo, em uma aula com convidados externos que aderiram à

proposta. Fez-se um enorme trenzinho que se embrenhou pelo grande espaço do templo

ecumênico da Universidade, fazendo curvas, retornos, indo em frente. Nós,

facilitadores, como futuros idosos, acompanhamos aquelas pessoas felizes,

vislumbrando um envelhecer com esperança e com amorosidade!

4.2 Uma emoção a mais: a busca e a conquista. Uma experiência em dois

tempos.

Não é preciso consenso nem arte, nem beleza ou idade: a vida é sempre

dentro e agora. (A vida é minha para ser ousada.) A vida pode florescer

numa existência inteira. Mas tem de ser buscada, tem de ser conquistada. 23

As sessões de Biodanza inseridas no Programa do Projeto Comunidade Viva em Ação

foram viabilizadas pela parceria do Pólo de Promoção da Cidadania da UNIVALE com

22 P. 117. 23 Luft, p. 61.

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a Coordenação da Universidade da Terceira Idade, que se desloca do campus para os

aglomerados Carapina e Querosene, na cidade de Governador Valadares, para a

realização das atividades. Cada grupo apresentava identidade própria, diferenciando as

ações e os objetivos do trabalho, mas apresentaram o mesmo encantamento e a mesma

gratidão.

Para os facilitadores, os diferentes grupos representaram experiências distintas, com

emoções diferentes, mas com o mesmo impacto subjetivo. Somos seres humanos com

todas as necessidades emocionais e afetivas da espécie humana, por isso nos

identificamos com sentimentos não explicitados pelos participantes, com olhares de

busca e susto, com a pobreza, a delicadeza, a abundância.

L. entrou na sala como todas aquelas senhoras, ricas em simplicidade, familiarizadas

com os pés no chão. Jamais esqueceremos aquele olhar profundo, oferecendo e pedindo

a presença. Moradora de um barraco na favela, ela vivia com duas filhas e dois netos.

Banheiro fora da casa de aluguel. Dentes para tratar, porém cuidadosa com seu próprio

corpo, com a roupa que vestia, com o neto que levava de mãos dadas. Para a aula de

Biodanza vinha cuidadosamente vestida. Trazia um olhar de esperança e alegria pela

oportunidade de estar ali. Trazia um olhar de quem tem uma forte história para contar.

Em todos os encontros, seu olhar aprovava, brilhava, sorria e transmitia a certeza de que

estávamos no caminho certo. Outras participantes traziam suas singularidades, suas

trajetórias de vida, seu corpo e organismo conformado às experiências e afetos vividos.

Todas eram portadoras de hipertensão, diabetes ou outra enfermidade, que não as

impedia de dançar e se comunicar. Todas com esperança – que é tudo o que têm

(temos!) de mais valioso – na vida, muitas vezes repleta de problemas de todos os

matizes.

Foram realizados oito encontros com cada um dos dois grupos desse Projeto e um

encontro de confraternização com os dois grupos. O tempo da sessão girava em torno de

90 minutos. Consideramos que, para o grupo de idosos, o tempo deve ser menor que

para outros grupos, pois os participantes podem se cansar ou reduzir a atenção. As

cadeiras usadas no início para a comunicação verbal não eram retiradas do ambiente,

ficavam apenas encostadas na parede. Os participantes podiam se sentar para descansar

se sentissem necessidade. Todas as etapas da aula ocorriam no seu tempo. A

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comunicação verbal antes das vivências dava um espaço para a fala dos benefícios que a

Biodanza lhes trazia, além da oportunidade de ter voz, apresentar-se, sentir-se ouvido.

Aos poucos, fomos percebendo que o ímpeto vital, forte nesse grupo de participantes,

favorecia uma resposta rápida, afetiva, criativa em todas as atividades propostas. Para

Quintana 24, “Amar é mudar a alma de casa.” Estávamos no caminho de uma mudança

na qual o amor e a disponibilidade se faziam imprescindíveis.

O Sr. F.S., de 84 anos, particularmente nos emocionou pela sua marcha cuidadosa e

lenta. Com óculos de lentes muito grossas, mantinha a posição corporal bem ereta,

muito alto, movendo-se com as limitações comuns da idade avançada, sem

“treinamento” que pudesse prevenir tais dificuldades. O sorriso não lhe saía dos lábios.

Nas rodas, nos olhares e contatos iniciais, sua participação nos informava que parecia se

sentir bem. Abraçar e beijar os rostos delgados e finos desses senhores, magros, de

idade avançada, traz uma comoção sobre a temporalidade da vida, a necessidade do

investimento social, o cumprimento das políticas públicas que permitirão a eles

visualizar novas perspectivas que não a do banco do PSF25 local. O caminhar, realizado

em todas as aulas, uma ou duas vezes, aponta para outro paradigma: o da atividade em

contrapartida à passividade, com autonomia, em direção a novos rumos, novas

possibilidades afetivas, sociais, profissionais. Acreditamos que a educação, o

desenvolvimento pessoal, o conhecimento adquirido e formalizado ajudam as pessoas a

se posicionarem e a criarem novas opções para a vida, incluindo um senso crítico sobre

a realidade. A criatividade nos jogos e brincadeiras, tão utilizados então, passa a ser

uma experiência levada a outros rincões de suas possibilidades. Os idosos se

surpreendem ao levarem para casa os abraços vivenciados nas aulas de Biodanza. Sem

dúvida, receberam a proposta das aulas de Biodanza com entusiasmo. Foi gratificante

vê-los levantarem-se do banco do PSF e subirem para o salão onde aconteciam os

caminhares, a roda, os encontros, o forrozinho, o silêncio, os abraços, os risos, enfim,

nossa sessão de Biodanza!

Surge um problema nesse meio tempo: os alunos de religiões diversas não podem

dançar! O que fazer?! Alguns religiosos saíram após a primeira sessão e jamais

voltaram! Essa questão já havia surgido nas aulas da UNITI. Numa delas, a senhora

24 QUINTANA, Mario. Nova antologia poética. p. 142. 25 Programa Saúde da Família

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M.A. disse à colega também religiosa: “Amiga, isto não é dança, é aula! Venha fazer!”.

Mas nada adiantou. Ficamos frustrados. A Biodanza não é dança de salão nem

coreográfica, mas baseia-se nas danças através do tempo.

Para a Biodanza, a dança tem um significado profundo, pois sensibiliza o ser humano

para o contato com o universo, com as forças cósmicas, com o amor, a amizade e a

própria identidade.

Na Biodanza dançamos a vida, mas também caminhamos, paramos para nos ver, para

nos reconhecer, para nos abraçar; fortalecemo-nos na roda, que simboliza a união e a

força da raça humana!

Voltando ao tema da negação dos alunos citados, temos de reconhecer uma verdade:

nossa proposta não atendeu à totalidade do público que se apresentou no início. Foi um

pequeno percentual, mas, para nós, foi motivo de reflexão e de posicionamento quanto à

aceitação dos valores individuais e sociais de cada participante, suas crenças e seus

costumes. Na verdade, a Biodanza não é o único caminho. Cada um pode encontrar o

seu caminho de outra forma, em outras direções. O importante é que a pessoa se sinta

feliz e integrada a si mesma, ao seu meio social e à natureza, com dignidade e energia

de viver.

Os problemas não eram poucos. Um deles era que não havia um som adequado em um

dos grupos. Muitas vezes, o disco não tocava e o grupo cantava. Para quem prepara em

casa uma aula com cuidado, este é um grande desafio. Conduzir o público idoso a uma

aula de Biodanza, sem música! Saber de nossas fragilidades, saber que podemos nos

equivocar e que somos dependentes de outros e de situações, aceitar que tudo pode sair

diferente do preparado e não nos culpar é um desafio e um crescimento. Melhor que em

qualquer idade, os idosos são capazes de encontrar outra opção, outro caminho,

cantando cantigas que sabem, buscando soluções inusitadas. Os movimentos de fluidez

foram sempre fundamentais para a idéia de que podemos fluir mesmo dentro dos

percalços da vida! Nesse processo, alunos e facilitadores fluem, interdependentes, em

uníssono!

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Desse grupo recebemos bilhetinhos nos quais lemos:

“...gostei muito do seu trabalho e gostaria que voltasse para nós no ano que vem”; “...para mim foi muito

gostoso estar na biodança. Estes exercícios nos ajudam muito em nosso dia-a-dia, nos educando também

em nossa postura”; “Gostei muito da biodança, foi ótimo. Animou-me a sair de casa, pois antes eu não

fazia nada a não ser ficar em casa”; “...quero aqui, nestas poucas linhas, expressar minha satisfação e

prazer que sinto em participar da maravilhosa aula de biodança, da qual tenho tido muitos benefícios. As

aulas me fizeram muito bem, por isso quero agradecer”; “...o tempo em que estivemos juntas, nas aulas

de biodança, foram os melhores dias da minha vida!”; “...agradeço a Deus por estar aqui na biodança.

Aprendi muitas coisas com cada uma de nós. Fico ansiosa para chegar o dia, porque tenho tido muito

mais paciência com tudo o que tenho feito, sinto-me mais leve”; “...para mim, a biodança funciona como

uma terapia. Depois que comecei a freqüentar, mudou minha relação com minha saúde, o meu humor,

minha disposição, tudo ficou melhor. Quando chega a hora, eu fico ansiosa, mas uma ansiedade sadia,

gostosa de sentir. E quando estamos participando da biodança, puxa! Me sinto uma criança que acabou de

ganhar um brinquedo novo! Esperamos que a biodança continue, que não aconteça como em outras

terapias que começam e, quando estão engrenando, acabam! A biodança deve ser contínua, pois está

fazendo muito bem a todas nós que participamos e praticamos”.

Ao reler os textos dessas alunas, sentimos um misto de alegria pela oportunidade

vivenciada e de dor pelo trabalho interrompido. O projeto não teve continuidade como

previa e se queixava a aluna que escreveu um dos bilhetinhos. Isso acontece em muitos

projetos empreendidos pelas políticas públicas no Brasil. As sessões de Biodanza

pararam ao final da primeira etapa, ainda durante o tempo em que prevalecia o primeiro

contrato com a universidade. Felizmente outras atividades continuam acontecendo e

esperamos que, um dia, a Biodanza possa voltar aos salões do PSF, auxiliando a saúde e

a vitalidade daquelas pessoas.

4.3 A organização da sessão. Ansiedade e estudo.

Como preparar uma sessão que, desde o primeiro encontro, já tem como objetivo

construir significativamente a possibilidade de vivências estimulantes, geradoras de

bem-estar, tendo o cuidado de não deixar os idosos cansados, mas felizes e realizados?

É importante considerar alguns aspectos: a percepção da resposta que o participante dá,

em todos os momentos, com sua atitude, seu sorriso, sua ansiedade; a gradatividade na

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apresentação das vivências; a adequação da curva da aula; a possibilidade de o

participante se sentar quando necessário; a adequação do tempo da aula; a vivência

significativa e, principalmente, a comunicação verbal que se dá no início da sessão, que

pode nos levar a mudar todo o caminho programado.

Vamos expor uma sessão como exemplo. Esta foi uma sessão vivenciada pela turma do

Projeto Comunidade Viva em Ação. Consideramos, na fase de planejamento e durante o

processo, aspectos como: o tempo menor (cerca de 30 minutos de dança); curva suave;

permissão para os participantes construírem gradativamente seu movimento, sua

familiaridade com a Biodanza, seu bem-estar e comunicação afetiva com o grupo,

consigo mesmo e com o universo.

Um esquema didático da sessão deve apresentar alguns aspectos esclarecedores e que

facilitam sua organização, incluindo o tema a ser desenvolvido, o exercício, a música, a

iluminação, o tempo, entre outros.

AULA Nº.03 TEMA: Integração e ritmo Data: set de 2006

Nome do exercício Música Intérprete Tempo Iluminação/

intensidade

1 Roda Inicial Ciranda no pátio Antonio Néri 4m Elevada

2 Brincadeiras Isto é que é forró Elba Ramalho 4m Elevada

3 Caminhar fisiológico Sweet Geórgia Brow Trad. Jazz Band 4m13 Elevada

4 Segmentar de ombro Because Beatles 2m47 Reduzida

5 Eutonia de mãos Billtis Zanfir 4m Reduzida

6 Roda de embalo Aqui e agora Gilberto Gil 4m16 Reduzida

7 Abraços com trocas

rápidas

A paz Zizi Possi 3m26 Média

8 Roda Final Folia brasileira Elba Ramalho 3m01 Elevada

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4.4 A Roda

No caminho da alegria Tinha um som, uma cantiga,

No caminho do chegar. Tinha um começo sem fim

Eu não sabia andar Nem entrar dentro de mim.26

Pessoas em roda, mãos dadas, experimentando o velho, o antigo, o primitivo, mais além

de suas próprias idades. Há centenas de anos, o mundo civilizado já não se reúne mais

em roda para tomada de grandes decisões. Roda que é união, que é includente por sua

própria formação espacial, que convida a ver o outro em sua inteireza, em sua legítima

forma de ser. Lado a lado, todos se movimentam, mãos dadas, surpresos! As apostilas

de Biodanza afirmam que a roda de iniciação tem um caráter cerimonial no sentido

clássico de iniciar algo importante e representa a unidade da comunidade humana.

Que música colocar na roda de iniciação com idosos? Que movimentos pedir? Que

ritmo? Como incluir quem não se move com agilidade? A que altura falar aos ouvidos

de quem nem sempre ouve bem?

Sem dúvida, o começo gera ansiedade, desde sua formatação, quando da organização da

sessão. A grande surpresa é perceber que a vitalidade e a sensualidade estão preservadas

nos movimentos espontâneos do grupo que roda, que gira, que se adapta à delícia do

movimento sem cobranças, sem feitios, sem riscos indesejados.

E nós, o que sentiremos quando nos colocarmos em roda com nossas rugas, nossos

corpos trêmulos, nossos músculos frágeis, mas não menos entusiasmados com a vida?

Chegaremos a esse momento com sabedoria? Como seremos recebidos, aceitos pelos

nossos companheiros, filhos, parentes, vizinhos? Como nos veremos a nós mesmos?

Seremos capazes de criar nossa roda simbólica, afetiva, roda de familiares, roda de

amigos, roda que se forma na vida trazida pela consciência do modelo biocêntrico? O

valor da Biodanza não está em fazer uma aula gostosa e feliz ali, mas em levar a outros

ambientes os valores ali construídos.

26

RABELO, A. D. Roda Viva. (1999, p.87)

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4.5 O caminhar

Aumentar a integração motora, acentuando o sinergismo involuntário de

pernas e braços durante o caminhar. Reabilitar o caminhar natural,

integrando as pernas ao tronco e o peito ao quadril. Caminhar com espírito

aberto ao mundo, sentindo o impulso que nasce a partir do peito provocado

pela emoção induzida pela música. Caminhar em perfeita coordenação com

outra pessoa, mantendo o mesmo ritmo e uma sintonia recíproca.

Desenvolver a capacidade de sintonizar-se com o outro. 27

O senhor F.S., 84 anos, citado anteriormente, apresenta marcha lenta e insegura em seu

caminhar, os músculos apresentam-se rígidos. No curso de Geriatria e Gerontologia

freqüentado por mim, a professora da disciplina Aspectos Biológicos do

Envelhecimento fez um desafio: sair à rua com pesos de academia nos braços e pernas,

com óculos cobertos lateralmente limitando os movimentos laterais dos olhos, sendo

apoiados por um colega que fazia o papel de cuidador. Demos uma volta no quarteirão.

A vista interferia no movimento, gerava insegurança. A marcha se fazia lenta. De alguns

jovens passantes motorizados, ouvíamos frases como: Sai da frente, vovô! Sentimos

dificuldade em movimentar o corpo com naturalidade, devido aos múltiplos fatores:

musculares, ósseos, de acuidades visuais e auditivas, da alienação imposta pelo social

que, muitas vezes, atinge a pessoa mais idosa. Foi uma experiência angustiante.

Muitas vezes, é a partir daí, dessa insegurança no caminhar, que vamos convidar os

participantes de nossa aula. O que almejamos? Queremos que os idosos vençam essa

limitação? Aceitamos que tenham uma forma própria de serem felizes? Temos de

caminhar todos igualmente? Temos de ter o mesmo ritmo, como se fôssemos máquinas

que, quando superadas,vão para o lixo? Que beleza podemos ver na longevidade, nas

virtudes, na gratidão pela vida, na compaixão, na sabedoria, na amorosidade, na forma

de ser de cada um, em qualquer idade?

Naturalmente, nesse caminhar envelhecido, a pessoa com idade mais avançada segue

caminhando de braços abertos para o mundo e é capaz de estar em perfeita sintonia com

27 Texto retirado do elenco oficial de músicas, exercícios e consignas da Biodanza.

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o outro. Dá conta de se divertir, de rir, de seduzir, de amar. Dá conta de planejar o

amanhã, que ninguém sabe como será e com quem se poderá contar.

Segundo Sponville, no Pequeno Tratado das Grandes Virtudes,28

a humildade é esse esforço, pelo qual o eu tenta se libertar das ilusões que

tem sobre si mesmo e – porque essas ilusões o constituem – pelo qual ele se

dissolve. Grandeza dos humildes. Eles vão ao fundo de sua pequenez, de sua

miséria, de seu nada: onde não há mais nada, onde não há mais que tudo.

Ei-los sós e nus, como qualquer um: expostos sem mascar ao amor e à luz.

4.6 As brincadeiras

Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,

mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,

atravessou minha vida,

virou só sentimento.

Explicação de poesia sem ninguém pedir

Adélia Prado (In: Bagagem)29

Consideramos que o convite a brincar é como abrir a porta da liberdade, deixar o sorriso

chegar e, simplesmente, ser o que se é.

O nosso respeito à dança e aos movimentos de cada um é mais uma vez ampliado com a

beleza de saber que cada um tem um modo de ser e expressar. O reforço à identidade

pode ser exercitado com o convite à autenticidade, à dança própria de cada participante,

fortalecendo sua convivência consigo mesmo e com os outros.

Freqüentemente, propusemos vivências como a do trenzinho, jogos de palma, seguindo

o maestro e outros, com o cuidado para despertar a sensação de alegria e bem-estar

através de movimentos simples e criativos.

28 http://br.geocities.com/mcrost04/index.htm 29 http://www.secrel.com.br/jpoesia/ad01.html

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Ficamos surpresos numa vivência do trenzinho, em que percebemos que várias pessoas

preferiram repetir o movimento da companheira “maquinista”. Sabíamos que o

exercício assim realizado entrava no mecânico e, aparentemente, não atingia o objetivo.

Compreendemos que assim procediam não por falta do entendimento do exercício, e

sim porque lidar com sua capacidade de fazer o novo parecia extremamente difícil. O

repetir garantia o certo e afastava o medo de errar. Acreditávamos que, se pedíssemos o

exercício do Trenzinho com vários maquinistas, à sua vez, poderíamos incentivar o

desenvolvimento da capacidade de liderança em cada pessoa do grupo. Era uma

oportunidade para cada participante experimentar ser líder por alguns instantes.

Começamos a estudar os exercícios da linha da criatividade para tentar achar um

caminho que nos ajudasse a sair do chavão de que o novo “assusta muito”.

Na linha de vivência da criatividade, encontramos exercícios que fortalecem o encontro

com o próprio ser e aumentam a sensação de vida e presença. Rolando Toro fala muito

sobre isso quando se refere aos nossos animais internos ou aos quatro elementos,

ampliando nossa capacidade de conhecer e se reconhecer através do nosso próprio

movimento.

Era imprescindível ir devagar e, aos poucos, deixar o grupo dançar e fazer contato com

cada elemento e animal. Essa descoberta foi como uma mola para achar o tipo de

música que iríamos usar nas aulas.

Estávamos, aos poucos, entendendo que fazer a aula não exigia apenas pensar no

exercício ou somente na música. A mola mestra estava entre a nossa intenção e a

proposta do exercício. Esse era o fio condutor de uma aula, isto é, aquilo que leva ao

exercício chave, de que tanto ouvimos falar nas aulas didáticas. Saber isso agora, por

meio da vivência, era diferente de simplesmente ter o conhecimento teórico. Ter o

cuidado com a condução da aula era zelar para que os mecanismos da Biodanza

chegassem sem precisarmos ficar explicando muito a teoria. Esse cuidado implica

deixar que o potencial do participante se revele pela música, pelo contato com outro, por

laços de afeto nos encontros.

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4.7 O batismo de luz. A confiança.

Certo dia, ao atravessar o rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo teve uma idéia

inspirada. Tomou um pouco do barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto

contemplava o que havia feito, apareceu Júpiter. Cuidado pediu-lhe que soprasse

espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado. Quando, porém, Cuidado quis dar um

nome à criatura que havia moldado, Júpiter proibiu. Exigiu que fosse imposto seu

nome. Enquanto Júpiter e Cuidado discutiam, surgiu, de repente, a Terra. Quis

também ela conferir seu nome à criatura, pois fora feita de barro, material do corpo

da Terra. Originou-se, então, uma discussão generalizada. De comum acordo,

pediram a Saturno que funcionasse como árbitro. Este tomou a seguinte decisão, que

pareceu justa: “Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, portanto, de volta este

espírito por ocasião da morte dessa criatura. Você, Terra, deu-lhe o corpo; receberá,

portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura morrer. Mas como você,

Cuidado, foi quem, primeiro, moldou a criatura, ela ficará sob seus cuidados

enquanto viver. E uma vez que entre vocês há uma acalorada discussão acerca do

nome, decido eu: esta criatura se chamará Homem, isto é, feita de Húmus, que

significa terra fértil.30

Última aula do Projeto Comunidade Viva em Ação: iniciamos a sessão com uma

roda de alegria, com “samba no quintal”, da Clara Nunes. Cuidando da curva, passamos

a uma brincadeira com um forró, e depois aos caminhares. Caminhares alegres,

sintonizados no grupo e em si próprios. Na descida da curva, um caminhar confiando. A

dupla se revesa na confiança. O cuidado é fundamental nesse momento. Lembramo-nos

da fábula do Cuidado, que propõe o ser humano dependente do cuidado, pois é através

dele que nós conseguimos sobreviver às intempéries do nosso nascimento. A emoção se

fez grande, tanto para nós quanto para os participantes. Com a seqüência da aula, fomos

gradativamente chegando a um momento de grande profundidade, com o batismo de

luz, fortalecendo os sentimentos humanos de bondade e generosidade. As lágrimas

suaves que desciam dos olhos dos alunos faziam fortes as batidas de nossos corações, ao

som de Clair de Lune (Debussy). O objetivo existencial da vivência do Batismo de Luz

é despertar “o sentimento de sacralidade das pessoas através do exercício de sua

30

Fábula mito sobre o cuidado. In BOFF, Leonardo. Saber Cuidar. 10 ed. Petrópolis: Editora Vozes,

2004.

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capacidade de autodoação. O simbolismo da luz representa os sentimentos humanos de

generosidade e bondade. Transmitir a própria luz significa dar ao outro o melhor de si

mesmo. Esse exercício apresenta uma forma de comunicação transcendente,

considerando que a manifestação de generosidade só é possível quando se transcende o

próprio ego.” 31 Transcender o nosso próprio ego, como facilitadores, é despertar nossa

própria capacidade de doação e de generosidade, sem nos sentirmos vaidosos, diferente

dos outros, mais especiais. Todos nós precisamos de batismos de luz em nossa vida.

Para nós, esse sentimento de batizado pela luz vem da relação com os próprios idosos.

Eles nos batizam todos os dias com suas bênçãos, com seu cuidado, com sua alegria,

com sua generosidade. Somos privilegiados por termos a oportunidade de conviver com

estes grupos mais sábios. Diversas foram as situações, nesses encontros, em que

pudemos ter a oportunidade de sermos abençoados pelos alunos idosos que, como mães,

pais e/ou avós, nos apoiaram, nos protegeram e confiaram em nós. No Brasil, há um

grande percentual de idosos que sustentam a família com suas aposentadorias, em

detrimento do próprio desfrute de seu dinheiro e de sua relação social. São luzes que

abençoam a vida de outros que nem sempre sabem agradecer ou cuidar de seus idosos.

4.8 Ser facilitador e ser aluno - o jardineiro e o broto

Vivemos duas experiências distintas: somos alunos e somos facilitadores. Como

facilitadores, organizamos o mapa da aula e acompanhamos os movimentos que vão

acontecendo: mutáveis, fluidos, renovados. Esse acompanhar exige um olhar atento para

as vidas que se mostram como para os sóis que nascem e plantas que germinam.

O facilitador é aquele que convida o participante idoso a colocar sua experiência em

função de seu próprio crescimento e ampliar as relações geradas no encontro com a

vida, consigo mesmo, com o outro e com o cosmos.

Quando somos alunos, isto é, quando vivenciamos a Biodanza, somos o próprio broto e,

quando facilitamos, somos quem cuida do broto – broto que queremos ver frutificar!

31 Apostila Elenco oficial de músicas e consignas, p. 25.

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A grande diferença entre ser aluno de Biodanza e ser facilitador é que, como

participante de sessões de Biodanza, estamos vivenciando nossas próprias emoções e

permitindo a manifestação de nossos potenciais de vida, a expressão do potencial

genético, as capacidades que ainda não percebemos em nós pela repressão cultural,

pelos condicionamentos. O grande prazer, nesse contexto, é estar em conexão com este

pulsar: ser a dança, ser a música, ser o próprio movimento. Pura emoção de quem se

entrega, vivencia, sente e se deixa afetar.

Como facilitador de Biodanza, o prazer é ver o outro desabrochar, é facilitar o

“biodançar” através do qual o outro se entrega à pulsação de vida. Ser facilitador é ser o

mediador, é ser o jardineiro, cultivando os brotos para a vida ressurgir, apesar de uma

história já existente, em direção ao prazer da sexualidade, o prazer de rir, o prazer de

abraçar. Ao mesmo tempo, ser facilitador é ser o cartógrafo que acompanha os novos

movimentos desse desabrochar e os caminhos que são criados, os entrelaçamentos

realizados. A emoção presente no facilitador é a de ser o instrumento que facilita a

revitalização do outro pela sua própria ação. Somos quem cuida do broto que ganha

vida com a participação na aula, com a intenção de que ele leve esse fruto para a própria

vida lá fora. Somos quem acompanha e testemunha o ressurgimento do prazer da vida,

infringindo uma ordem cultural geradora, muitas vezes, de recolhimento, de dores, de

repressão.

Podemos usar a metáfora de que a vida sempre procura luz e descobre potenciais para

deixar suas flores se transformarem em frutos. Esse foi o grande prazer que tivemos.

Saber que poderíamos contribuir para que eles gerassem, através dos exercícios, flores

cujos frutos seriam colhidos pela vida. Como uma planta em crescimento, que encontra

luz e vai-se movendo em direção à luz, víamos os alunos ampliando movimentos,

restabelecendo o prazer de sentir, de trocar afetos, de deixar fluir um movimento

autêntico, na alegria de ser o que se é.

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5 A poética do envelhecimento transversalizada pela Biodanza

Que significa ser velho hoje no Brasil? Sentir-se e ser visto como um

indivíduo operativo, aceito, valorizado, integrado? Ou o inverso? Sentir-se e

ser considerado de forma substancialmente diferente das crianças, jovens,

adultos mais jovens? Ser avaliado e avaliar-se positiva ou negativamente?

Enfim, haveria uma resposta única a esta questão? 32

Imerso em muitos preconceitos contra o envelhecimento, o facilitador se dispõe a

reavaliar suas crenças. Leva sustos e tem surpresas no decorrer de suas elaborações e

estudos sobre sua programação para as sessões. Algumas concepções internas, não

condizentes com as possibilidades e os limites reais das pessoas idosas, podem ter efeito

limitador nas ações e atitudes do profissional, tornando-se necessária uma reflexão

autêntica e cuidadosa sobre elas.

Para facilitar essa reflexão, lançamos algumas perguntas, com o objetivo de instigar o

pensamento do facilitador:

- Consideramos os idosos sujeitos capazes de autonomia, construtores de suas próprias

vidas, ou consideramos a velhice sinônimo de doença, de dependência, de tristeza e

solidão?

Carlos Drummond de Andrade, em seu poema “Os ombros suportam o mundo”, 33diz:

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?

Teus ombros suportam o mundo

e ele não pesa mais que a mão de uma criança.

As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios

provam apenas que a vida prossegue

e nem todos se libertaram ainda.

Alguns, achando bárbaro o espetáculo

prefeririam (os delicados) morrer.

Chegou um tempo em que não adianta morrer.

Chegou um tempo que a vida é uma ordem.

32 NERI, Anita Liberalesso. Envelhecer num país de jovens. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.p.31. 33 http://www.releituras.com/drummond_osombros.asp

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Nestes tempos em que a vida é uma ordem, pudemos, em nossa experiência,

testemunhar que, depois de 60 anos, Marta fez Psicologia, Tereza fez Designer Gráfico,

Dora fez Serviço Social, Júlia fez curso de Técnico em Enfermagem, Graça fez pós-

graduação e Sílvia escreveu um livro, coisas que nunca haviam feito antes. Os nomes

que citamos acima são fictícios, mas a história de cada uma é verdadeira. Elas tomaram

a decisão de percorrer esses caminhos após a participação na Universidade da Terceira

Idade.

A Biodanza, para as alunas, veio ampliar as possibilidades de viver o que se tem a viver

a cada dia. Consideramos que a sessão de Biodanza tem um ritmo orgânico: a roda

reflete a união e a força do grupo (não estamos sós!); o caminhar é o movimento que

fortalece e explicita a autonomia de cada um (posso fazer do meu jeito!); os jogos de

vitalidade trazem autoconfiança e alegria (a vida é boa de ser vivida!); a descida da

curva da aula centra o participante em seu núcleo de força, na sua identidade, gerada no

cerne da espécie humana; os abraços nos restituem significados renovados sobre nós

mesmos, nossa vida social, nossa manifestação de carinho e solidariedade!

“A Biodanza nos permite o acesso à realidade por outra via, por outro canal, outra

linguagem; cala nossa fala para ouvir nosso corpo, nosso instinto, nossa emoção... A

aprendizagem se faz no próprio ato de viver – a vivência é a vida acontecendo

particularmente, singularmente. O ponto de partida para olhar o mundo e transformá-lo

é nossa própria vida.”34

Considerando a relação entre a Biodanza e o envelhecimento, estamos seguros de

nossas crenças quanto às possibilidades de pessoas idosas agirem e transformarem suas

vidas e, ainda, da contribuição da Biodanza na vivência da autonomia, das condutas

saudáveis, da alegria de estar vivo.

34 VIOTTI, Liliana Santos. BARROS DE CARVALHO, Gerson. A Empresa no tempo do Amor. Belo Horizonte: Editora Fênix, 1997. p.45.

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6 Considerações finais

Muito nos sensibilizou pensar a história vivenciada por nós, dois facilitadores, como

uma cartografia. O que é uma cartografia? É um desenho de um mapa, um todo estático,

mas também é um desenho que vai sendo feito à medida que acontecem os movimentos

de transformação de uma realidade. As paisagens psicossociais também podem ser

cartografadas35, tendo-se em vista os mundos (subjetivos) que perdem os sentidos e

outros que se formam. Este caminho de transformação que vai acontecendo na vida de

pessoas e de grupos pode ser observado do ponto de vista do cartógrafo: no nosso caso,

cartógrafos facilitadores de Biodanza. Pode-se, então, acompanhar o desenvolvimento

das mudanças, adaptações e adequações tão importantes na vida de todos, especialmente

dos idosos, que vêm sua trajetória de vida prolongada. Urge um novo “mapeamento”,

uma nova paisagem a ser descoberta e significada, que integre novos afetos, novos

projetos.

Nosso desafio neste trabalho foi descrever este caminho de expressão de nossos

sentimentos, diretamente intrincados nos caminhos traçados pelos alunos idosos que,

corajosamente, embrenham-se por novidades, por possíveis rumos que a vida lhes

propõe. Nosso desafio foi também expressar a nossa sensibilidade, traduzindo em

palavras nossas emoções e sentimentos gerados pela vivência do encontro com o grupo

de idosos, entrelaçando estudo e responsabilidade com o processo vivenciado, não

julgado nem explicado, e as conseqüências do movimento empreendido.

Consideramos que escrever esta cartografia foi um desafio devido aos impactos que a

vivência do envelhecer causa em nossas vidas. Vivemos uma grande influência dos

valores atuais, da constante defesa da própria vida (selva de pedra), da cultura

capitalista que tem rejeição ao velho e ao improdutivo, seja sexual ou economicamente.

Temos, sim, em nosso cerne, o medo do envelhecer, o medo da morte, medo de não

servirmos mais, a tristeza pela degeneração e, por que não dizer, outros sentimentos

considerados menos nobres, como a ira e a inveja, que não nos permitem nos reconhecer

como idosos em potencial.

35 http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/pensarvibratil.pdf

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Tudo o que nos afeta, que nos comove neste trabalho vem ao encontro com a forma

como conceituamos nosso viver, o desenvolvimento de nosso corpo, nossa inteligência

e a temporalidade da vida.

Portanto, nossa experiência com os grupos nos levou a reflexões profundas sobre a vida,

o envelhecer, o preconceito, a solidariedade intergeracional, a permissão conferida a si

mesmo para viver intensamente tudo o que a vida proporciona, os aspectos

socioculturais que interferem na qualidade de vida do idoso e na nossa qualidade de

vida como representantes que somos dos que desejam a vida, que desejam o amor, que

não se furtam à oportunidade de dançar a vida.

Na busca de encontrar a resposta conclusiva sobre como os significados existenciais são

construídos na vida do facilitador ao dar aulas de Biodanza para pessoas idosas, uma

música me veio à cabeça, trazida pela memória significativa, após tanta emoção.

“Unicórnio Azul”, cantada por Silvio Rodrigues, sempre foi a música que conduziu a

bandeira da Biodanza em meu coração36, trazendo a lembrança dos primeiros encontros,

as primeiras aulas, o primeiro minotauro. Os significados construídos em nosso trabalho

têm íntima relação com os significados da Biodanza ao longo da minha vida.

UNICORNIO AZUL

Letra de Silvio Rodriguez

Música de Silvio Rodriguez

Mi Unicornio azul ayer se me perdió

pastando lo dejé y desapareció.

Cualquier información la voy bien a pagar,

las flores que dejó, no me han querido hablar.

Mi Unicornio azul ayer se me perdió,

no sé si se me fué, no sé si se extravió.

Y yo no tengo más que un Unicornio azul.

Si alguien sabe de él,le ruego información,

cien mil o un millón yo pagaré.

Mi Unicornio azul se me ha perdido ayer,se fue...

Mi Unicornio y yo hicimos amistad,

36 “Meu”: discurso na 1ª pessoa, pois se refere à expressão individual da autora Kathia Pimentel.

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un poco con amor,un poco con verdad.

Con su cuerno de añil pescaba una canción,

saberla compartir era su vocación.

Mi Unicornio azul ayer se me perdió,

y puede parecer acaso una obsesión,

pero no tengo mas que un Unicornio azul

y aunque tuviera dos,yo solo quiero aquel.

Cualquier información la pagaré.

Mi Unicornio azul se me ha perdido ayer,

se fue...

Silvio conta a história sensível do seu unicórnio azul que se foi, desapareceu, quando ele

o deixou pastando no dia anterior. Diz que paga qualquer preço para quem o achar. O

autor não sabe se ele se foi ou se perdeu. O fato é que ele não tem mais o unicórnio azul.

Continua dizendo que ele e o unicórnio azul fizeram amizade, com amor, com verdade.

Com seu chifre de anil, pescava uma canção e tinha a vocação de sabê-la compartilhar.

Podia ser uma obsessão ficar repetindo que o unicórnio desapareceu; entretanto, ele só

tinha aquele. Diz, então: não tenho mais que um unicórnio azul e, ainda que tivesse

dois, eu só quero aquele. Termina insistindo: pagarei por qualquer informação, pois meu

unicórnio azul se perdeu ontem, se foi...

Poderíamos fazer várias interpretações, mas estamos falando de terceira idade, de

envelhecimento, de proximidade com perdas, com esperança, com dignidade! Meu

sonho vai-se embora; aquele sonho que tenho na adolescência e que promete que a vida

vai ser mágica, linda, cheia de momentos felizes. Na vivência do dia-a-dia, na relação

com a realidade, vamos nos distanciando dos sonhos, da magia, da perspectiva de que

tudo vai ser lindo e maravilhoso. Um dia, percebe-se que o rosto se enruga, que as mãos

estão mostrando a maturidade, que é preciso encarar a brevidade da vida. Então, o susto

nos leva a querer de volta nossas possibilidades, e percebemos que ela está aqui, tão

próxima, em todos os momentos. Em qualquer etapa da vida, temos a beleza de sua

especificidade, de suas características marcantes, de sua história. Vai-se um dia e outro

renasce! Ah, meu unicórnio - minha infância - que não volta mais, mostre-me outra

forma de viver, outra referência de beleza, outro encantamento, outra paixão! Por que

não aceitarmos a beleza das rugas, a beleza da longevidade, a beleza da velhice como

algo que registra o tempo e a história? Ser testemunha de tanta história e experiência é

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ser belo? Ser referência para quem inicia a vida é ser belo? Ser o caminhante que deu os

primeiros passos familiares e vivenciou fatos marcantes na vida familiar é ser belo? Ser

história viva é ser belo? Ah, se inteligentes fôssemos, poderíamos modificar nossos

conceitos, pois usufruiríamos por mais tempo da sedução e da paixão de estarmos

simplesmente vivos! Talvez assim amássemos mais e melhor! Para nós, a Biodanza tem

a ver com a paixão de estarmos vivos. Não foi por acaso que seu criador, Rolando Toro,

genial em sua construção teórica e prática, disse que a vida se faz em função da própria

vida. O universo existe porque a vida existe. É só a esse fio de vida que queremos nos

apegar e soltar nossas vozes, algumas vezes finas, delicadas, frágeis. Nelas, toda a

história se repete e nos faz atualizados pelo contato e vivência do passado, da

reorganização e adaptação do presente.

Vislumbra-se, então, uma nova concepção de envelhecimento que, diferentemente de

doença, não impõe limites às vivências, mas cuidados e adaptações. As degenerações

acontecem, mas não são causas da desconstrução das possibilidades. Reconhecendo-se

na alegria de ser o que se é, a pessoa passa a valorizar o instante vivido, ampliando a sua

conexão com a vida.

Para nós, o caminho continua, pois ainda há muito que aprender e construir. Este foi só

o começo de uma forte experiência chamada vida!

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