a pesquisadora ana cristina césar

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A pesquisadora Ana Cristina César Ana Cristina César não só deixou um belo legado de poemas em que questões existenciais e a natureza feminina são tematizadas de forma a um tempo rascante e lírica, mas traduções (de poetisas inglesas, notadamente), ensaios críticos, textos de prosa poética e um livro que sintetiza uma pesquisa na área dos estudos de cinemaca, que me foi roubado mas pelo qual tenho particular estima: Literatura não é documento (Rio de Janeiro: FUNARTE, 1980) Em menos de 200 páginas, Ana, demonstrando gande poder de síntese, procura, através da análise de um campo cinematográfico específico - a produção de documentários sobre autores literários nacionais -, investigar as relações entre cinema e Estado. Após atentar para os aspectos educacionais do documentário “literário”, Ana sublinha o crescimento da importância do subgênero em momentos de afirmação da identidade nacional. Esboça, assim, a premissa lógica que orientou, em dois momentos ditatoriais distintos e distantes no tempo (o Estado Novo getulista e o pós-AI-5, anos 70 adentro), as relações entre cinema e produção cultural no Brasil. Escrito entre 1977/1978 (portanto, nos anos subsequentes à adoção do Plano Nacional de Cultura, vigente desde 1973 e que levaria o cinema brasileiro à sua melhor década em termos de público e ocupação de mercado), o livro

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Artigo curto enfoca a face menos conhecida da poetisa e escritora Ana Cristina César, analisando sua relevante atuação como pesquisadora no livro "Literatura não é documento" (RJ: Funarte, 1980).

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Page 1: A pesquisadora Ana Cristina César

A pesquisadora Ana Cristina César

Ana Cristina César não só deixou um belo legado de poemas em que questões

existenciais e a natureza feminina são tematizadas de forma a um tempo rascante e

lírica, mas traduções (de poetisas inglesas, notadamente), ensaios críticos, textos de

prosa poética e um livro que sintetiza uma pesquisa na área dos estudos de cinemaca,

que me foi roubado mas pelo qual tenho particular estima: Literatura não é documento

(Rio de Janeiro: FUNARTE, 1980)

Em menos de 200 páginas, Ana, demonstrando gande poder de síntese, procura,

através da análise de um campo cinematográfico específico - a produção de

documentários sobre autores literários nacionais -, investigar as relações entre cinema e

Estado.

Após atentar para os aspectos educacionais do documentário “literário”, Ana

sublinha o crescimento da importância do subgênero em momentos de afirmação da

identidade nacional. Esboça, assim, a premissa lógica que orientou, em dois momentos

ditatoriais distintos e distantes no tempo (o Estado Novo getulista e o pós-AI-5, anos 70

adentro), as relações entre cinema e produção cultural no Brasil.

Escrito entre 1977/1978 (portanto, nos anos subsequentes à adoção do Plano

Nacional de Cultura, vigente desde 1973 e que levaria o cinema brasileiro à sua melhor

década em termos de público e ocupação de mercado), o livro apresenta surpreendente

distanciamento crítico para uma observadora inserida no momento observado.

Buscando investigar a dinâmica da relação cinema-Estado, o livro analisa,

historicizando, os orgãos criados em quatro décadas dessa interlocução (desde o INCE,

1936), priorizando o exame dos critérios normativos responsáveis pela filtragem estatal

dos projetos

A produção estadonovista, baseada no Instituto Nacional de Cinema Educativo

(INCE) e chefiada pelo pioneiro Humberto Mauro, iniciara-se em 1937, com curtas

metragens produzidos de forma ininterrupta. Relativamente uniformes, voltavam-se, a

priori, à ofensiva oficial na educação escolar. É a essa fase que pertence a primeira

versão, em P&B, de Carro de Boi, que refilmado em cores em 1974, seria o derradeiro

filme dirigido por Mauro - o “nosso Griffith”, no dizer de Paulo Emílio Salles Gomes.

Já a produção documental dos anos setenta, não obstante estar ligada ao processo

de busca por legitimização cultural por patrte do regime, constituiria, segundo Ana

Cristina César, “mais um surto, menos um bloco patrocinado”, dizendo respeito mais à

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“busca de uma eficácia perdida num esquema repressivo” do que a aspectos

especificamente educacionais. O relativo pluralismo dessa produção abarca desde filmes

presos ao convencionalismo formal (exaltação da personalidade do escritor; fetichização

de sua presença; etc.), até obras experimentais arrojadas - embora estas quase sempre

tenham sido, como será dado a constatar no desenrolar do livro, submetidas a périplos

tortuosos de financiamento.

Encerrando a primeira parte do livro, aflora a inquietude radical que marcou a

trajetória pessoal e literária da autora, na forma de uma análise provocativa e original do

conformismo da produção cine-documental brasileira, “sem produto que veicule uma

crítica radical `a visão circulante de literatura”. Questionando a possibilidade ou não de

se introduzir diferenças no interior do documentário, põe o dedo na ferida ao

interrelacionar, através da contraposição, tal possibilidade à natureza estatal da

produção.

Destaca-se no livro a percepção do quociente de manipulação inerente à escolha

de projetos pela EMBRAFILME. Através de entrevistas a autora permite entrever uma

combinação de critérios que, embora simulem um catalisador modelar comum à

heterogênea produção da estatal acabam, devido à flexibilidade excessiva, passíveis de

direcionamento para atender a interesses os mais diversos. Simplista falar em

cooptação, ingênuo desprezá-la.

Embora, nas décadas que se seguiram à publicação de Literatura Não é

Documento, autores como José Mário Ortiz Ramos (Cinema, Estado e Lutas culturais,

Paz e Terra, 1983), Tunico Amâncio (Artes e Manhas da Embrafilme, Eduff, 2000) e

Anita Simis (Estado e Cinema no Brasil, Anablume, 2008) tenham aprofundado

sensivelmente a análise das contradições e especifidades dos anos Embrafilme, o livro

de Ana Cristina César conserva sua contundência e originalidade, revelando

potencialidades que o suicídio da autora, aos 31 anos, tragicamente abreviou.