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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ A PERSONAGEM FEMININA EM LES FEMMES SAVANTES, L´ÉCOLE DE FEMMES E TARTUFFE CURITIBA 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

A PERSONAGEM FEMININA EM LES FEMMES SAVANTES, L´ÉCOLE DE

FEMMES E TARTUFFE

CURITIBA

2009

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MARCELO REZENDE LADEIA

A PERSONAGEM FEMININA EM LES FEMMES SAVANTES, L´ÉCOLE DE

FEMMES E TARTUFFE

Monografia apresentada à Universidade Federal

do Paraná para aprovação no Curso de Graduação

em Letras Francês sob a orientação do Prof.

Walter Lima Torres.

CURITIBA

2009

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MARCELO REZENDE LADEIA

A PERSONAGEM FEMININA EM LES FEMMES SAVANTES, L´ÉCOLE DE

FEMMES E TARTUFFE

Monografia apresentada como pré-requisito para a obtenção do título

de Bacharel em Letras Francês da Universidade Federal do Paraná,

submetida à aprovação da banca examinadora composta pelos

seguintes membros:

Prof. Walter Lima Torres (Orientador)

Prof. Lúcia Peixoto Cherem

Curitiba, 14 de dezembro de 2009.

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SUMARIO

RESUMO

RÉSUMÉ

INTRODUÇÃO...............................................................................................................7

PARTE I – O TEATRO DO SÉC. XVII

1. A MONARQUIA ABSOLUTISTA E O CLASSICISMO......................................10

2. O LUGAR E O ESPETÁCULO...............................................................................12

3. ESPETÁCULO E PÚBLICO....................................................................................13

4. CENÁRIO E FIGURINO.........................................................................................14

5. O PÚBLICO E O REPERTÓRIO.............................................................................15

6. O TEATRO CLÁSSICO FRANCÊS........................................................................16

7. GÊNEROS

7.1. A Tragicomédia..................................................................................................20

7.2. A Pastoral...........................................................................................................21

7.3 A Farsa................................................................................................................22

7.4. A Tragédia..........................................................................................................23

7.5. A Comédia..........................................................................................................25

7.6. A Comédia Ballet...............................................................................................26

PARTE II – MOLIÈRE

8. VIDA DO AUTOR...................................................................................................27

9. A MULHER NA OBRA DE MOLIÈRE

9.1 Les Femmes Savantes..........................................................................................31

9.2 L´Ecole des Femmes...........................................................................................40

9.3 Tartuffe................................................................................................................47

CONCLUSÃO..............................................................................................................55

BIBLIOGRAFIA..........................................................................................................59

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RESUMO

Este trabalho pretende analisar a construção da personagem feminina no Teatro Clássico

Francês do século XVII, através do estudo de três obras de Molière: Les Femmes Savantes,

peça na qual trabalharemos com as personagens Philaminte, Henriette e Armande; em

L´École des Femmes, será analisada a personagem Agnès e, em Tartuffe, as personangens

Elmire, Marianne e Dorine, levando-se em conta o contexto histórico, político, econômico

e social.

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RÉSUMÉ

Ce travail a l´intention de analyser la construction de la personnage féminine dans le

Théâtre Classique Français du XVII ème

siècle, à travers l´étude de trois oeuvres de

Molière: Les Femmes Savantes, pièce dont nous travaillerons les personnages, Philaminte,

Henriette et Armande; dans L´École des Femmes, on analysera la personnage Agnès et,

dans Tartuffe, on analysera les personnages Elmire, Marianne et Dorine, en soulignant le

contexte historique, politique, économique et social.

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INTRODUÇÃO

No vasto mundo literário que me foi apresentado nesses cinco anos de curso de

Letras, escolhi, naturalmente, como tema para meu trabalho final, o autor com o qual mais

senti prazer em trabalhar. Molière usou o teatro para apresentar sua visão sobre a sociedade

e os costumes da sua época. Pretendo utilizar esse quadro, pintado por Molière, da França

do séc. XVII, como base para meu estudo. Devido à extensão e à complexidade desse

panorama apresentado pelo autor, se faz necessária uma delimitação. Optei por destacar a

figura feminina. Como ela foi representada, suas características, o espaço que ela ocupa

nesse quadro e sua relação com a real condição feminina da época.

Através dessa análise, pretendo contribuir com os estudos sobre a representação

feminina na literatura. Após uma busca na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e

Dissertações (BDTD), fiquei surpreso ao constatar o quão pouco se falou, se estudou e se

trabalhou com Molière. Devido a sua grandeza e a sua influência na história do teatro e da

literatura, esperava encontrar inúmeros trabalhos, porém me deparei com um grande vazio.

Vazio esse que motiva e justifica ainda mais meu estudo.

As teses e dissertações sobre a representação feminina na literatura,

frequentemente, não contemplam o séc. XVII, o gênero comédia e Molière, autor este que

trata o feminino de forma peculiar e merece maior divulgação. Para ilustrar essa afirmação,

uso como exemplo a dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes

Cênicas da Universidade de São Paulo, intitulada: Personagens Femininas no

Teatro:Perpetuação da Ordem Patriarcal, na qual a autora trabalha com Eurípedes,

Shakespeare, Ibsen e Nelson Rodrigues, contemplando a antiguidade, o renascimento, a

modernidade e a pós-modernidade.

Esses trabalhos confirmam uma tendência a apontar que o domínio masculino

também se manifesta através da arte, pela qual, ao longo da história, a imagem feminina é

distorcida através de estereótipos, e constatamos uma divisão sexual dos papéis. Que é,

invariavelmente, designado à mulher o papel de procriadora e é negado ao feminino a

possibilidade de ser agente histórico. Segundo esses estudos, os personagens femininos, ao

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longo da história, sustentam o discurso masculino vigente e não apresentam variedade de

pontos de vista. O retrato feminino presente na obra de Molière, o qual será esboçado

através da minha pesquisa, pretende mostrar que o universo dos personagens femininos é

mais rico e complexo do que se proclama. E saber se o autor, através de sua obra, assume

uma postura mais liberal frente à condição feminina ou contribui para a perpetuação dessa

ordem patriarcal.

Se por um lado, o acesso às obras de Molière, às traduções de suas peças, à sua

biografia e às obras que analisam seu trabalho foi fácil, por outro lado, as informações

sobre a condição feminina no século XVII foram mais escassas e de difícil acesso.

Entretanto, essa dificuldade não comprometeu o resultado final do trabalho. Para esse

estudo, foi utilizada, exclusivamente, a pesquisa bibliográfica.

O trabalho foi dividido em duas partes. Na primeira, apresentei uma breve visão

sobre a Monarquia Absolutista e o Classicismo. Nesse ponto, percebe-se a influência

política e social sobre a produção artística do século XVII, assim como tracei um perfil do

Teatro Clássico Francês, com o objetivo de contextualizar o autor e situar sua obra no

universo artístico da sua época. Destaquei, nessa parte, os lugares reservados à prática do

teatro, assim como as condições materiais disponíveis para os atores. Listei os gêneros

teatrais mais importantes da época e apresentei suas principais características: a

tragicomédia, a pastoral, a farsa, a tragédia, a comédia e uma de suas vertentes, a comédia-

ballet. Na segunda parte, apresentei, resumidamente, a biografia do autor, e fiz a análise

das peças, destacando as personagens femininas e o discurso masculino, quando esse

estava relacionado à condição feminina.

Tendo em vista os limites e objetivos do trabalho monográfico, foi necessária uma

seleção dentre as inúmeras personagens femininas de Molière. Uma seleção que

apresentasse todos os emplois1 presentes na sua obra. Tendo isso em vista, selecionei: Les

Femmes Savantes, na qual trabalhei com Philaminte, Armande e Henriette; em L´École des

1 Emploi são papéis com características aproximadas, suscetíveis de serem representados por um mesmo

ator, em função de sua fisionomia ou de seu temperamento próprio. Na prática teatral da época, os emplois

eram regrados pelo contrato da trupe. Os atores se especializavam em tipos específicos de papéis.

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Femmes, onde destaquei Agnès e, em Tartuffe, Dorine, Elmire e Marianne. Destaco ainda

personagens que não foram objetos do estudo como, Célimène, de Le Misanthrope (1666),

Elvire, de Dom Juan (1665), que se assemelham com Elmire e Isabelle e Léonor, de

L´École des Maris (1661), parecidas com Henriette e Armande.

Os textos foram analisados através do discurso das personangens, tendo em vista a

condição da mulher francesa do século XVII. As personagens foram comparadas e

associadas segundo uma tipificação dos papéis.

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PARTE I – O TEATRO DO SÉC. XVII

1. A MONARQUIA ABSOLUTA E O CLASSICISMO

É durante o século XVII que a monarquia absoluta se consolida: assim se afirma

essa forma de poder centralizado e forte que deixará traços duráveis, ainda aparentes na

França de hoje.

É a aparição de um estado de espírito que visa regrar tudo, reger tudo e estabelecer

normas em todos os domínios. Nessa época florescem vários autores e criadores de talento,

período no qual se impõe uma literatura ordenada e submissa às regras da L´Académie

Française, a concisão, a clareza. Trata-se da literatura clássica.

Após a morte de Mazarino, em 1661, Luis XIV está livre para governar. Aos 23

anos, ele assume as responsabilidades do poder. Durante os primeiros vinte e cinco anos de

seu longo reinado, ele trabalha, pacientemente, para impor seu poder, para assegurar a

unidade e a força de seu reinado. O tempo onde Richelieu e Mazarino determinavam a

política da França é passado. Agora é o rei quem decide. A deplorável sorte de Fouquet,

ministro das finanças, vai servir de exemplo.

Graças a seu cargo, Fouquet acumulou uma grande fortuna. Ele construiu ao seu

redor uma verdadeira corte rival a do rei e tomou sob sua proteção Molière e La Fontaine.

Construiu um suntuoso castelo, Le Château Vaux-le-Vicomte, nos arredores de Paris. Em

1661, ele deu festas magníficas para sua inauguração. Entretanto, não aproveitou por muito

tempo esse luxo. Acusado de dilapidar o dinheiro do Estado, foi condenado em 1664 à

prisão perpétua.

Para exercer um poder forte, supõe-se reinar sobre um país unido, existir uma

unidade nacional. Esta unidade está, no século XVII, diretamente ligada à unidade

religiosa, e Luis XIV era consciente disso. Sua ação se desenvolveu em várias direções.

Ele tentou diminuir a influência do Papa sobre o clero. Tentou dar à igreja uma orientação

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mais nacional. Combateu o jansenismo porque temia uma possível divisão dentro da igreja.

Mas, sobretudo, tentou reduzir a influência protestante.

O rei restringiu, de início, os direitos dos protestantes com o Edito de Nantes.

Seguiram-se as perseguições e a repressão sangrenta (1681-1685). Essa situação obrigou os

protestantes a buscar o exílio, fato que atingiu fortemente a economia francesa.

Um reinado cultural fazia, naturalmente, parte dessa política de grandeza. O

governo encorajou, com proteção e dinheiro, os artistas que lhe convinham: Molière se

beneficiou, largamente, dos favores de Luis XIV.

Em 1663 foi criada L´Académie des inscriptions et belles-lettres e em 1666,

L´Académie des Sciences. Luis XIV sublinhou seu interesse pela cultura quando declarou a

um grupo seleto, que constituiu para velar pela ortodoxia da criação artística:

“Vous pouvez, messieurs, juger de l´estime que je fais de vous, puisque je vous confie la chose du

monde qui m´est la plus précieuse, qui est ma gloire” 2

Durante esse período, apareceram grandes nomes da história da literatura francesa.

Alguns traços comuns unem essa geração de autores associados à glória de Luis XIV.

Ligados às régles d´écriture, eles são atraídos pelo absoluto, pela verdade. Mas essa

comunidade d´ésprit, representante do Classicismo, não é homogênea. François

Rochefoucauld (1613-1680) que, em suas Maximes traz reflexões pessimistas sobre o

comportamento humano, não se parece nada com a Marquesa de Sevigné (1626-1696) que,

em suas Lettres, mostra entusiasmo e exaltação. Os romances de Madame de La Fayette

(1634-1693) marcados pelo idealismo, contrastam com Le Roman Bourgeois (1666) de

Antoine Furestière (1619-1688) que continua a tradição realista.

2 HORVILLE, R. L´Itineraires Littéraires – XVII Siècle. Paris: Hatier, 1988. p.166.

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2. O LUGAR DO ESPETÁCULO

Quais as opções oferecidas aos amantes do teatro no século XVII? Em Paris

tínhamos três salas permanentes: A sala do Hotel de Bourgogne, a do teatro do Marais, as

do Petit Bourbon, depois a do Palais Royal, onde trabalhou Molière. Depois da morte do

autor, o espectador que desejava ver a trupe do grande comediante, agora dirigida por sua

mulher, Armande Béjart, deveria se dirigir à sala da rua Guénégaud, onde a trupe se

instalou desde 1673. Lulli e sua Académie de Musique, a ancestral da ópera francesa,

ocupou o Palais Royal.

O número de salas permanentes ainda era reduzido. Nesta época a população

parisiense contava com algumas centenas de milhares de habitantes. A essas salas públicas,

juntaram-se as salas privadas. Era de bom tom, para os nobres e para os membros da corte,

amar o teatro, patrocinar uma trupe, assim como possuir sua própria sala para oferecer

espetáculos aos amigos.

Existiam também numerosas trupes ambulantes que percorriam a França fazendo

conhecer na província o repertório teatral. A tradição dessas tournées se mantém até os

nosso dias.

Segundo Robert Horville3, por uma razão de ordem econômica, as trupes

comportavam um número relativamente pequeno de comediantes; a trupe de Molière

possuía entre dez e quinze pessoas, constituída de, aproximadamente, 60% de atores e 40%

de atrizes. As trupes dispõem, basicamente, de três fontes de renda: a receita das

representações públicas, o dinheiro dos espetáculos dados nas casas dos ricos e o dinheiro

dos protetores. Os lucros eram divididos entre os comediantes.

3 Ibid., p. 220.

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3. ESPETÁCULO E PÚBLICO

Se o espectador era da nobreza ou da alta burguesia, ele se instalava nos loges. Se

ele pertencia à pequena burguesia, tomava lugar nos gradins. Se fazia parte do povo, ficava

no parterre, que ocupava a parte central da sala, no mesmo nível da cena. Os melhores

lugares eram reservados aos amantes do teatro e às pessoas da moda, que tinham o

privilégio de se instalar sobre a cena.

O espetáculo era composto, normalmente, de duas peças: uma comédia em um ou

três atos e uma tragédia, ou uma comédia em cinco atos. As representações começavam

por volta das duas horas da tarde e acabavam, geralmente, por volta das cinco ou seis horas

da tarde. Nosso espectador, se ele desejasse seguir com atenção o desenvolvimento da

ação, devia se armar de paciência. A platéia era agitada e barulhenta.

Idas e vindas, conversas e injúrias dirigidas aos comediantes não cessavam de

perturbar a apresentação. O silêncio religioso que se impõe nos nossos dias não era um

costume. A desatenção do público era crônica. O espetáculo era interrompido após cada

ato, para a manutenção da iluminação.

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4. CENÁRIO E FIGURINO

A concepção de cenário conhece uma revolução importante no curso do século

XVII. No começo, os autores de teatro situavam suas peças em vários lugares diferentes.

Para evitar as mudanças durante o espetáculo, faziam figurar lado a lado todos os cenários

necessários para o desenrolar da ação. Em um segundo tempo, quando se impôs a unidade

de lugar, foi necessário um cenário único, onde se desenvolvia toda a ação.

Se o espectador fazia parte do fechado mundo da corte, podia assistir a espetáculos

grandiosos, que utilizavam uma maquinaria complexa: monstros e fantasmas que

apareciam, deuses atravessavam os ares, mudavam-se os cenários, fogos de artifício e

jogos de água eram, eventualmente, usados.

Quanto ao figurino, o que era utilizado para a tragédia evocava, mais ou menos, as

roupas dos personagens gregos, latinos e turcos representados. Na comédia, os atores se

vestiam com as roupas da época, o que causava um problema: Reconhecer os comediantes

dentre os espectadores que se acomodavam em cena.

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5. O PÚBLICO E O REPERTÓRIO

Que tipo de espetáculo o espectador do século XVII podia assistir? As

possibilidades eram muitas. O público potencial parisiense era, relativamente, restrito, o

que obrigava as trupes a renovar, freqüentemente, seus repertórios.

A composição do público tendia a se modificar de acordo com a natureza das peças

representadas. Os acadêmicos e os teóricos do teatro eram espectadores assíduos durante

todo o século XVII. Mas constituíam um público pequeno que foi submerso por duas

categorias. De um lado, o público da corte, a gente da moda, que era cada vez mais

numeroso. Por outro lado, o público popular também aumentava. Não sabendo ler, ele

encontrava no teatro uma atividade cultural acessível, intelectualmente, e financeiramente.

Sua sensibilidade o colocava mais próximo da comédia do que da tragédia. O

desenvolvimento da concorrência, suscitada pela abertura de novas salas de teatro,

conduziu os autores a tentar atrair esses espectadores. Assim, assistiu-se ao crescimento do

cômico em detrimento dos outros gêneros. Segundo Horville4, no início do século XVII, as

comédias não representavam mais que 7% da produção teatral; na época de Molière ela

atingiu 51% e, no final do século, a porcentagem chegou a 70%.

A representação dos atores era marcada pelo emplois, em se tratando de comédia, e

na grandiloqüência, no caso da tragédia. Cada comediante se especializava em um papel

específico (emploi). Na sua trupe, Molière se transformava em personagens bufões, aos

quais ele acentuava o aspecto cômico. La Grange representava os jovens simpáticos.

Armande Béjart, a jovem mulher de Molière, era a coquete em cena, assim como na vida

real. Mademoiselle Du Parc encarnava o tipo da Dama Caricata, as mulheres de

comportamento pitoresco.

4 Ibid., p.221.

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6. TEATRO CLÁSSICO FRANCÊS

Robert Horville5 afirma que é durante o período de 1630-1661 que se estabelecem

as rigorosas regras do Teatro Clássico Francês. Podemos perceber seus traços em Jean

Mairet (1604-1686) e em Pierre Corneille (1606-1684), entretanto, esse teatro regular vai

se desenvolver com Racine. Ele se submete a alguns imperativos: A aplicação da unidade

de ação, de tempo, de lugar e de tom, o respeito pela bienséance, pela moderação e pela

verossimilhança.

A unidade de ação não se impõe de forma abstrata. Ela é conseqüência das

condições necessárias para a representação teatral. A ação de uma peça deve ser mais

concentrada que a ação de um romance. Se por um lado, para lermos um romance como

Les Misérables, de Victor Hugo, necessitamos de dezenas de horas a fio, por outro lado,

não é possível submetermos um espectador a permanecer esse tempo todo sentado numa

platéia. A conseqüência dessa limitação é evidente: o número de acontecimentos

encenados também deve ser limitado. Nessas condições, é preferível que se reduza a

complexidade da ação e dos acontecimentos, sob pena de se ver toda uma parte do texto ou

a intriga não serem compreendidas pelo espectador.

Segundo L´Académie Française, a peça devia se unificar em torno de um assunto

principal, o qual não devia jamais ser perdido de vista. Se surgissem pontos secundários,

eles deviam estar, estreitamente, ligados ao assunto principal. No teatro de Corneille

percebemos a evolução relativa a essa regra. Em L´illusion Comique (1636), temos três

níveis diferentes de ação: Na primeira, Pridamant busca seu filho, Clindor, que fugiu da

casa paterna; a segunda é uma intriga amorosa entre Clindor, sua amada Isabelle, e seus

dois rivais Matamore e Adraste; na terceira temos um conflito entre Clindor e Adraste, que

é gravemente ferido pelo primeiro, condenado a morte. Polyeucte (1642) é inteiramente

centrada em torno do conflito entre o amor divino e o amor humano. Racine acentuará essa

tendência escrevendo peças como Bérénice (1670) e Phèdre (1677).

5 Ibid., p.138.

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A unidade de tempo é, em primeiro lugar, conseqüência da concentração da ação.

Se há poucos acontecimentos, teremos pouco tempo ocupado por esses acontecimentos.

Mas há também outra razão: o espectador, contrariamente ao leitor, não pode escolher a

hora de ver a peça, nem a rapidez do desenrolar dos acontecimentos. Se ele se ausenta, se

distrai, os atores não interrompem a peça para esperá-lo, o espetáculo continua sem ele.

Cria-se então a necessidade de coincidir o tempo da ação ficcional com o tempo real vivido

pelo espectador.

Há também a preocupação com a verossimilhança. Os adeptos do teatro clássico

não aceitariam como verossímil, assistir em duas horas de representação, vários dias ou

meses de ficção. Para os clássicos, o tempo da ficção que se desenrola em cada um dos

atos da peça deve corresponder à duração real desses atos.

Novamente em Corneille percebemos a transição para o teatro regular: a ação de

L´illusion Comique (1636) se desenrola em vários meses. Na maioria das suas tragédias,

particularmente em Horace (1640), aplica-se a regra das vinte e quatro horas. Racine

levará em conta essa exigência até seu extremo, reduzindo, em um grande número de suas

peças, assim como em Bérénice (1670), a duração da ação a menos de seis horas.

A ação teatral possui uma duração. Ela se situa, igualmente, em um lugar. Para o

leitor do romance, o lugar se mostra abstrato, submisso a representação de sua imaginação.

Para o espectador, o lugar é real, concreto, inscrito em um cenário que está lá, sob seus

olhos. Esse cenário ocupa um espaço preciso, o espaço da cena. Como para a questão do

tempo, se põe o problema da coincidência do lugar fictício a representar e o lugar real da

cena.

Contrariamente ao teatro irregular da Idade Média, o teatro clássico, em nome da

verossimilhança, opta pela coincidência, pela unidade de lugar. Uma só cena, um só lugar,

um só cenário, esse é o imperativo que se afirma pouco a pouco. Se em 1637 Corneille

situa Le Cid em quatro lugares diferentes, o palácio do rei, a casa de Chimène, a casa de

Rodrigue, e uma praça pública, em 1640, ele desenrola toda a ação de Horace em uma

sala da casa do personagem principal e adota a fórmula da unidade de lugar, que vai se

impor, em seguida, no teatro de Racine.

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A essas três unidades, se junta uma quarta, a unidade de tom. Na preocupação da

concentração da ação, para se destacar o essencial, para melhor caracterizar a tonalidade da

peça, os autores dramáticos vão progressivamente recusar a mistura de gêneros, não

reconhecendo mais que dois grandes gêneros: A tragédia e a comédia.

O teatro regular rejeita a tragicomédia, esse gênero intermediário que possui a

tensão da tragédia e o final feliz da comédia. Ela que triunfou no período precedente, vai

desaparecendo progressivamente. Corneille a pratica, particularmente com Le Cid, antes de

abandoná-la em favor da tragédia. Próxima da complexidade da vida, ela conservará ainda

numerosos adeptos, mesmo na época de Racine, onde ela se mantém, de forma disfarçada,

sob o nome de tragédia, com autores como Thomas Corneille e Philippe Quinault. Segundo

Raymond Lebègue6, Alexandre Hardy (1572-1632) se inspira na tragédia barroca,

violando, com freqüência, as regras da unidade de tempo e lugar, as conveniências e

representando atos violentos ou sanguinários: agonias, mortes em série, acessos de loucura

e outros horrores. Em suas tragédias, a ação é mais animada que nas tragédias do

Renascimento. A catástrofe não é conhecida de antemão. Os monólogos se encurtam e o

número de cenas aumenta. Em vez de sofrer passivamente a má fortuna, o herói age. Hardy

se preocupa com a verossimilhança psicológica. Entre os dramaturgos de sua geração, foi

ele quem mais contribuiu para o progresso da ação.

O teatro é um modo de expressão concreto. É igualmente uma arte social por

excelência: os espectadores assistem coletivamente à representação. Nessas condições, é

muito mais difícil que em um romance, ir contra as convenções, chocar o público. Essa

necessidade de não cair na provocação vai se revelar mais imperiosa à medida que o

espetáculo teatral interessa ao público da corte e dos salões.

A exigência clássica da moderação contribui também para o estabelecimento desses

imperativos sociais. É conveniente evitar representar atos e fatos que possam parecer

inverossímeis aos espectadores. É preciso rejeitar os acontecimentos romanescos da

tragicomédia. Do mesmo modo, o teatro deve excluir tudo que puder atingir o pudor do

6ANTOINE, A.; LERMINIER. G.;MOROT,E. Literatura Francesa, das origens ao fim do séc. XVIII. São

Paulo: Larousse do Brasil, 1972.

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público, eliminar os espetáculos sangrentos, os duelos, as cenas de tortura e os assuntos

indecentes. A bienséance impõe pouco a pouco sua vontade pudica, e os autores que

recusam a se submeter sofrem as penas da censura da L´Académie Française7.

O teatro clássico aparece como o teatro da moderação e da concentração. O número

de personagens tende a diminuir e a ação de se organizar em torno de um herói central o

qual os desígnios são combatidos por seus adversários que representam o papel de

obstáculo: na comédia, o pai se opõe ao casamento da filha com o jovem amado por ela.

A situação que desenvolve as peças clássicas é uma situação de crise: uma série de

acontecimentos são provocados, mas a ação inicia assim que a crise explode. A unidade de

tempo e de lugar fazem uma parte da ação se desenrolar fora do palco.

Esse é o sistema dramático que os teóricos e os autores do teatro constroem pouco a

pouco e o qual Jean Racine levará à perfeição. Mas se trata de um ideal o qual os autores

dramáticos, mesmo os maiores como Pierre Corneille e Molière, não aderem totalmente.

7 L´Académie Française, fundada em 1635 pelo cardeal Richelieu sob o reinado de Luis XIII.

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7 – GÊNEROS

7.1 A Tragicomédia

Geralmente, defini-se a tragicomédia como um gênero que mistura elementos da

tragédia e da comédia. Era o tipo de peça na qual encontrávamos a tensão da tragédia na

ação e o final feliz da comédia. Essa união não era apreciada pelos puristas do séc. XVII.

Mairet explica no prefácio da pastoral Silvanire (1631), que sua peça se aproximava

mais do L´Amphitryon de Plauto que do Cyclope de Eurípedes porque ela apresentava uma

mistura. Ele leva em conta não somente o desfecho feliz após uma ação tensa para definir a

tragicomédia. Deseja também que a tensão e diversão se desenvolvam juntas ao longo da

peça. Nesse sentido ele se opõe a Scalinger, que tirava da afirmação de Aristóteles,

segundo o qual a tragédia tem um final funesto, a idéia de que toda peça, mesmo que

semeada de grandes infortúnios, não merece o título de tragédia se terminar bem, sendo

assim, deve ser chamada tragicomédia. Entretanto,, Aristóteles escreve que Eurípedes é “o

mais trágico dos poetas porque seus finais são sempre infelizes”: o “mais” implica que as

tragédias com finais felizes, como As Eumênides ainda são tragédias.

Mas no séc. XVI o termo tragicomédia designava as ações dramáticas construídas

sem o rigor da tragédia o qual os humanistas tentavam restaurar. No séc. XVII, ainda que

se use o termo para designar as tragédias com final feliz, é o sentido dado por Mairet que

prevalece. Pode-se afirmar que o gênero encontra sua melhor forma com Lucelle, de Le

Jars (1576) e sobretudo com Bradamante, de Garnier (1582). Em 1628, Jean de Schélandre

(1584-1635) refaz sob forma de tragicomédia, sua tragédia Tyr et Sidon, que havia

publicado vinte anos antes. Foi Hardy quem deu a esse gênero o principal impulso. Tira

seus temas de obras romanescas de todas as épocas. As regras das unidades são aí menos

observadas ainda que em suas tragédias.

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7.2 A Pastoral

Liliane Picciola8 afirma que o principal assunto das pastorais é o amor. Quase todas

são escritas em verso, como Bergeries (1624), de Racan(1589-1626). Para poder dar lugar

à uma ação dramática, esse amor deve ser contrariado. A vontade do pai constitui

obstáculo freqüente, embora, como em L´Astrée, é um obstáculo com o qual os amantes

vão se preocupar pouco. O verdadeiro impedimento encontra-se no próprio coração das

amantes. Artenice hesita em se unir a Alcidor por causa de um sonho, no qual uma deusa

se mostra contrária a essa união. Mas isso não é suficiente para a dinâmica da ação. A

separação dos amantes deve ser obra de um ciumento que utiliza recursos fornecidos por

uma cadeia sentimental que liga vários pastores e pastoras, como na obra de Racan: O

pastor Tisimandre ama a pastora Ydalie, que ama o pastor sem fortuna, Alcidor, que ama

Artenice, que o ama, mas que é amada pelo rico Lucidas. Esse amor em cadeia é

encontrado em quase todas as pastorais. Racine utilizará também esse tipo de cadeia em

suas tragédias.

Lucidas não recorre somente às possibilidades que essa cadeia amorosa oferece

para separar os amantes. Ele recorre aos serviços de um mágico, Polistène. De fato, o

personagem do mágico tem um papel fundamental na ação da pastoral, talvez porque a

magia estava em voga nas províncias francesas, mas sobretudo porque um dos romances

fundadores do gênero pastoral, a Diana de Montemayor, tinha emprestado alguns

elementos, dentre eles a intervenção de mágicos, dos romances de cavalaria. Os mágicos

das pastorais são, antes de tudo, ilusionistas: eles fazem ver em um espelho cenas irreais (

Polistène mostra a Artenice uma cena galante entre Ydalie e Alcidor). Graças a um pó ele

torna as pessoas invisíveis; através de uma simples receita criam um duplo dos

personagens com o fim de enganar. Geralmente os mágicos são interesseiros e se unem aos

ricos, como o exemplo de Polistène.

Ao contrário do mágico, um padre sempre traz a verdade, mesmo se no início ele

parece antipático e severo. A sensualidade é condenada em proveito de uma extrema

8 PICCIOLA, L. Littérature Française Du XVII Síècle.Paris: PUF, 1992.

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pureza de sentimentos. As dificuldades atravessadas pelos amantes aparecem como uma

forma de fortalecer seu amor.

Segundo Picciola9, existe mais que aventuras no texto da pastoral. Os pastores

também amam falar de seus sentimentos, o que é feito normalmente através de monólogos,

mas também através de confidências. Analisando esses sentimentos, chegamos à conclusão

de que vale a pena ser paciente, fiel e se dedicar à pessoa amada. Percebemos também que

a coquetterie é um jogo perigoso no qual podemos perder a pessoa que amamos.

As influências italianas e espanholas foram preponderantes. A partir do século XVI,

publicam-se traduções francesas de Aminta, de Tasso, e do Pastor Fido, de Guarini. Em

1585 Nicolas de Montreaux publica seu romance Bergeries de Juliette, em que são

inseridas duas pastorais.

Com Luis XIII as pastorais se multiplicam e, à imitação do Pastor Fido, certas

peças trazem o título de “tragicomédia pastoral”. Não existe originalidade nem no tema e

nos episódios, nem nos personagens: são imitados, com algumas modificações. Aminta,

Pastor Fido, Diane e L´Astrée, de uma pastoral a outra reencontramos a cadeia dos

amantes que, amam sem serem amados, o mágico, espelhos e a intervenção final de Pã ou

Cupido e os casamentos que finalmente dão felicidade aos pastores e pastoras.

7.3 A Farsa

A farsa é um gênero curto, que raramente ultrapassa quatrocentos octassílabos. Ela

completava um espetáculo que começava por uma tragicomédia, uma tragédia ou por uma

comédia. Robert Guérin atuava em uma peça séria antes de se tornar Gros-Guillaume na

farsa que seguia. Um trio de farceurs fizeram a reputação do Hotel de Bourgogne a partir

de 1615: ele era composto de Gros-Guillaume, de Gaultier-Garguille e de Turlupin.

9 Ibid., p.83.

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Gros-Guillaume, com seu enorme ventre representava o guloso e grosseiro, que está

sempre bêbado. Gaultier-Garguille se apresentava como sua antítese. Com sua magreza,

representava papéis de velhos apaixonados, pedantes e professores. A Turlupin reservava-

se o papel de valete astucioso, semelhante aos espertos escravos de Plauto. Guillot-Gorju,

que sucedeu Gaultier-Garguille em 1634, interpretava médicos ridículos.

A influência dos personagens italianos era sensível sobre Gaultier-Garguille e

Turlupin, que portavam máscaras. Essa influência era menor sobre Gros-Guillaume e o

farceur célebre da trupe do príncipe d´Orange, Jodelet, que trabalhou com os comediantes

do Marais e depois se uniu aos atores do teatro de Bourgogne.

As farsas foram publicadas até aproximadamente 1620. Após esse período, as

comédias e mesmo as tragicomédias emprestaram elementos da farsa, como as querelas

conjugais, mulheres sensuais e infiéis e maridos enganados. A comicidade da farsa residia

num personagem enganado, na vivacidade da ação, nos gestos (bastonadas), nas piadas

escatológicas e na apresentação, por excesso ou por falta, de instrução.

A farsa conservou o favor de um público muito vasto. No reinado de Luis XIII a

farsa prospera em Paris ao ar livre e na sala do Hotel de Bourgogne.

7.4 A Tragédia

Jacques Pelestier du Mans traduziu do latim em 1541 a Arte Poética de Horácio, na

qual numerosos versos são consagrados ao teatro e à tragédia. Encontramos, sobretudo, a

recomendação de escrever em estilo sublime, de começar a peça perto do dénouement, de

tirar tudo o que pode ser desagradável aos espectadores. Em 1572, o poeta trágico Jean de

La Taille publica L´Art de la Tragédie onde ele descreve como era praticada a tragédia na

França do seu tempo: divisão da ação única em cinco atos, respeitando as unidades de

tempo e lugar, a presença de um coro no final de cada ato.

Racine (1639-1699) é o grande mestre do gênero na França. Situada num lugar

único, concentrada dentro da duração de vinte e quatro horas, a tragédia põe em cena, em

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um curto momento de crise, personagens fechados em seus destinos. Na tragédia raciniana,

a fatalidade reina. Ela é inexorável. O personagem tem uma perspectiva jansenista:

determinada pelo destino, ele não é senhor de sua existência. Contrariamente aos heróis

cornelianos, ele deve aceitar a vida que a fatalidade lhe reserva. Suas possibilidades de

escolha são reduzidas.

O personagem raciniano sabe que não pode evitar sua catástrofe, não pode

modificar sua situação: Oreste está persuadido que Hermione não o amará nunca, mas ele

não renuncia a seus sentimentos que o conduzem à beira da loucura. Phèdre conhece a

repulsa que causa em Hippolyte, mas nada que a impeça de lhe dizer o que sente por ele.

A tensão é constante, a morte rodeia, o sofrimento se manifesta. O absurdo da

existência se revela. O espectador contempla sua própria condição, medita sobre o trágico

do destino humano.

Segundo Robert Horville10

, uma outra concepção de tragédia se opõe à de Racine.

Uma tragédia romanesca se desenvolve, inspirada nos Romans Héroiques da qual

Madeleine Scudéry (1607-1701) é uma das representantes: a complexidade dos

acontecimentos e comportamentos reinam, a vontade humana tende a contrabalançar com a

fatalidade, o amor aparece generoso. O próprio Racine, no começo de sua carreira, segue

esse estilo com Alexandre Le Grand (1665).

Pierre Corneille figura como um dos principais concorrentes de Racine. Podemos

citar também Thomas Corneille (1625-1709), irmão de Pierre e Philippe Quinault (1635-

1688).

10

HORVILLE, R. L´Itineraires Littéraires – XVII Siècle. Paris: Hatier, 1988. P. 222.

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7.5 A Comédia

No final do séc. XVI, uma companhia italiana trouxe para Paris uma commedia

popular, semi-improvisada, a Commedia Dell´arte. Esse gênero abunda em gestos, lazzi11

e

episódios bufos. Suas personagens estereotipadas logo se tornam célebres e se transformam

em termos genéricos, alcunhas. A comédia praticada na França sofre influência desse

gênero estrangeiro. A ação se torna mais rápida, a comicidade mais grosseira. Vários atores

franceses da primeira metade do séc. XVII usam máscaras, tentam assemelhar-se

fisicamente aos estereótipos.

No início do século XVII, a comédia está em plena crise. Por volta de 1630, autores

como Jean Mairet e Pierre Corneille começam a mudar esse situação. Molière ocupa um

lugar fundamental no desenvolvimento da comédia. Mas a participação do público também

é um fator importante: cada vez mais o público se interessa pelo teatro, sobretudo pelo

gênero cômico.

Uma certa diversidade caracteriza a comédia. Se, em geral, os autores aplicam as

regras do teatro clássico, exceções notáveis aparecem: Don Juan de Molière, por exemplo,

se desenrola em trinta e seis horas e necessita de vários cenários.

A intriga tradicional é, na maioria das vezes, uma jeune première e um jeune

premier que , com a ajuda de servos astutos, lutam pela felicidade. Eles se amam e têm de

combater os pais que se opõem a seu casamento porque desejam genros e noras que

correspondam aos seus desejos. Esse esquema dá lugar a vários tipos de comédias, os quais

Molière oferece, em sua obra, um leque de opções. Ora como em Le Dépit Amoureux, são

os rebondissements da ação que são privilegiados, os efeitos de surpresa que são

explorados. Ora como em Les Fourberies de Scapin, é a farsa e seu gros comique que se

destaca. Ou como em Tartuffe no qual são abordados alguns problemas sociais de sua

época.

11

Toda a forma de estrutura burlesca, seja jogo de palavras, ações, de gestos grotescos para serem

desenvolvidos nas farsas.

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A essa gama soma-se um tipo de comédia como L´Amphitryon, que privilegia o

mise en scène , utiliza uma maquinaria complexa e introduz o maravilhoso.

Molière é evientemente o centro da comédia dessa época. Ele ocupa um lugar à

parte, graças à variedade de assunto que aborda, à diversidade de estilo que pratica. Mas

ele não é o único. O grandioso sucesso da comédia provoca uma verdadeira eclosão de

autores, entre os quais destacamos Jean Racine, que escreveu Les Plaideurs (1668),

Philippe Quinault, autor de La Mère Coquette (1665), Thomas Corneille, que escreveu La

Devineresse (1679).

7.6 A Comédia Ballet

O sucesso dos ballets cômicos na França desde o século XVI, o gosto que mostrava

por ele a corte e o povo, fez com que Molière o introduzisse em suas peças desde Les

Fâcheux (1661), mais comumente de uma forma intermediária, representada entre os atos e

no fim da peça, como em L´Amour Médicin (1665) e em Monsieur Porceaugnac (1669): os

médicos figuram quase sempre, mas podemos encontrar também figuras da Commedia

Dell´Arte, como o Arlequin e Polichinelle. A trupe de Molière era a única em Paris, entre

os franceses, capaz de representar e dançar ( os espanhóis e os italianos sempre associavam

as duas atividades).

Molière, sensível ao gosto e a proteção da corte, compõe também intermédios para

suas peças, com características pastorais ou mitológicas, como em Les Amants

Magnifiques (1670), em La Princesse d´Élide (1664), Psyché (1671), nas quais ele assumia

a direção e redigia o texto recitado, enquanto Corneille escrevia outras cenas e Quinault o

texto cantado; Para a música, era Lulli que colaborava com mais freqüência. Moliére

introduz música e canto mesmo na ação de suas peças e adiciona a dança ( lições de

música e dança para Monsieur Jourdain). Esse momento refinado contrasta com o burlesco

que desenrola a comédia.

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PARTE II - MOLIÈRE

8. A VIDA DO AUTOR

Em janeiro de 1622, Paris viu nascer um de seus filhos mais ilustres: Jean-Baptiste

Poquelin, filho de Jean Poquelin, rico comerciante e tapeceiro oficial do rei. Jean-Baptiste

teve uma infância difícil. Aos dez anos de idade perdeu a mãe e aos treze viu morrer a

madrasta. Depois de cursar o Colégio de Clermont, ingressou na Faculdade de Direito,

chegando a exercer, durante alguns meses, a profissão de advogado em Paris, onde o pai

lhe garantiu o direito a sucessão de seu posto. Entretanto, a irresistível vocação e gosto

pelo teatro fez com que Jean-Baptiste renunciasse ao seu direito de sucessão a um cargo de

prestígio e se juntasse a uma trupe de artistas para correr o interior da França. Os atores,

nessa época, eram vistos como pessoas de reputação duvidosa, o que fez Jean-Baptiste

adotar o nome de Molière para preservar o nome da família.

Em 30 de junho de 1643, assinou o contrato de constituição do L´Illustre Théâtre,

uma associação com Madeleine Béjart. Na época, existiam apenas o teatro do palácio de

Bourgogne, sob a proteção real e o teatro do Marais, de caráter mais popular. Os dois

formavam uma espécie de monopólio o qual a nova companhia não conseguiu se juntar.

Foi necessário pouco tempo para que Molière fosse preso por dívidas. Libertado graças à

ajuda do pai, tentou o sucesso fora de Paris. Percorreu o interior da França durante doze

anos. Uniu-se a outra companhia, mantida, financeiramente, por um mecena. Esse novo

grupo adotou o nome de Companhia do Sr. Príncipe de Condi.

Em 1658, a trupe voltou à Paris. Durante esse período que permaneceu fora da

capital, Molière aprendeu a administrar uma companhia, além de desempenhar o papel de

ator, diretor e autor. Antes de voltar, enviou Madeleine para que alugasse um espaço no

Marais. Mas amigos influentes conseguiram para o autor a proteção de Monsieur, irmão do

rei, que lhe conferiu o privilégio de representar diante de Luis XIV. Apresentou ao rei

Nicomède, que não obteve êxito, e uma farsa: Le Docteur Amoureux, com a qual triunfou.

Luis XIV lhe concedeu o direito de representar no Petit-Bourbon12

.

12

O petit Bourbon era uma sala de teatro a qual Molière dividia com a trupe italiana de Scaramouche. Em 11

de outubro de 1660, essa sala foi demolida para a construção da colunata do Louvre.

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No início, Molière se mostrou prudente. Introduziu suas obras em um repertório ao

gosto da moda. Só se dedicou, exclusivamente, as suas peças quando assim foi exigido,

devido ao sucesso das mesmas. Seu primeiro grande sucesso foi Les Précieuses Ridicules.

Quando conseguiu estabilidade e impor sua companhia no mundo teatral, recebeu a

notificação de que deveria abandonar o teatro do Petit-Bourbon, que seria destruído para a

construção da Colunata do Louvre. Mas o autor logo conseguiu a sala do Palais-Royal. Em

4 de fevereiro de 1661, Molière apresentou Don Garcie de Navarre ou Le Prince Jaloux,

uma tragicomédia que fracassou. Segundo René Bray, citado por Célia Berretini13

:

“É verdade, que Molière não era bom senão para representar papéis cômicos; não podia entrar no tom

sério e várias pessoas asseguraram que tendo querido tentá-lo, saiu-se tão mal na primeira vez que

apareceu no palco, que não o deixaram acabar. Desde aquele tempo, dizem, ele não se dedicou senão

ao cômico, em que sempre obtinha êxito”.

Depois dessa tentativa mal sucedida, não demorou para escrever outra comédia:

L´École des Maris (1661). Peça que abordou a educação das meninas, na qual o autor

assumiu uma postura liberal numa época em que o poder dos pais e maridos sobre as

mulheres estava sendo contestado. O sucesso foi completo.

Em 1662, Molière representou L´École des Femmes. Assim começou o tempo de

suas obras-primas, mas também o tempo de dificuldades. Nessa peça ele abordou

problemas sociais, sobretudo, os problemas ligados ao casamento e à relação homem-

mulher. A obra foi recebida com hostilidade por seus rivais e por parte da sociedade, que o

acusaram de ridicularizar o sacramento do casamento. Estourou uma grande polêmica a

qual o autor respondeu com La Critique de L´école de Femmes e com L´Impromptu de

Versailles (1663). Seus adversários tentaram em vão obter a censura de L´École des

Femmes. Com a apresentação de Tartuffe, em 1664, eles voltaram a atacar Molière e

conseguiram a censura da peça, que trata da hipocrisia religiosa. A peça só foi liberada em

1669. Em 1665, Molière pôs em cena, em Dom Juan, um personagem libertino e ateu.

Após a décima terceira representação a peça foi suspensa e só foi reapresentada após a

morte do autor.

13

BERRETINI, C. Duas Farsas, O Embrião do Teatro de Molière. São Paulo: Perspectiva, 1979. (p.15).

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Mas Molière teve também motivos para ficar satisfeito: o público continuou ao seu

lado e Luis XIV manteve seu apoio. Em 1666, com Le Misanthrope, o autor tratou da falta

de sinceridade, questionou as convenções sociais e as aparências. Em L´Avare, ele pôs em

cena os ridículos e os vícios de seus contemporâneos. Foi no curso da quarta representação

de Malade Imaginaire (1673) que ele morreu, vítima de uma hemorragia interna, em 17 de

fevereiro de 1673. Na tabela abaixo, relacionamos as obras de Molière e suas respectivas

datas de apresentação:

La Jalousie du Barbouillé ?

Le Médecin Volant ?

L´Étourdi 1654

Le Dépit Amoureux 1656

Les Précieuses Ridicules 1659

Sganarelle ou Le Cocu Imaginaire 1660

Dom Garcie de Navarre 1661

L´École des Maris 1661

Les Fâcheux 1661

L´École des Femmes 1662

La Critique de L´École des Femmes 1663

L´Impromptu de Versailles 1663

Le Mariage Forcé 1664

La Princesse d´Élide 1664

Le Tartuffe 1664

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Dom Juan 1665

L´Amour Médecin 1665

Le Misanthrope 1666

Le Médecin Malgré Lui 1666

Mélicerte 1666

Pastorale Comique 1667

Le Sicilien ou L´Amour Peintre 1667

Amphitryon 1668

George Dandin 1668

L´Avare 1668

Monsieur de Porceaugnac 1669

Les Amants Magnifiques 1670

Le Bourgeois Gentilhomme 1670

Psyché 1671

Les Fourberies de Scapin 1671

La Comtesse d´Escarbagnas 1672

Les Femmes Savantes 1672

Le Malade Imaginaire 1673

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9. A MULHER NA OBRA DE MOLIÈRE

9.1 Les Femmes Savantes

Segundo Jean Pêcher e André Galan, na notícia biográfica da 83º. Edição de Les

Femmes Savantes, foi no Palais-Royal, em 11 de março de 1672, a primeira representação

da peça. As primeiras nove apresentações tiveram bom público. A hostilidade por parte das

précieuses14

retardou um pouco o sucesso da peça. Ma a adesão do rei e das honnêtes gens

logo asseguraram seu lugar ao lado das grandes obras-primas da segunda metade do século

XVII. De 1680 a 1952, Les Femmes Savantes teve, na Comédie Française, 1454

representações.

Chrysale, burguês cheio de bom senso, tem uma mulher, Philaminte, uma filha,

Armande, e uma irmã, Bélise, ávidas de conhecimento, orgulhosas de sua erudição. Sua

segunda filha, Henriette, escapou a essa obsessão que marca a família. Ela ama Clitandre e

é correspondida. Tem como rivais Armande e Bélise. Chrysale aceita Clitandre por genro,

mas a mãe prefere o bel esprit15

Trissotin. Finalmente, Henriette e Clitandre se casam,

nessa intriga que ridiculariza não a vontade das mulheres de se instruir, mas seus excessos.

Pêcher e Galan chegam a afirmar que Molière é “Féministe au sens le plus généreux du

mot”. Ele deseja proteger a alma feminina contra a atração do modelo masculino.

Molière inicia a peça com uma discussão acerca do casamento. Através desse tema

recorrente em sua obra, o autor nos apresenta dois pontos de vista opostos em relação ao

papel feminino da mulher do século XVII. Armande, a irmã mais velha, e Henriette, a

caçula, discutem sobre as relações familiares, com destaque para o casamento.

Armande começa reprovando a postura da irmã, que se mostra entusiasmada com a

idéia de se casar. Sua condenação ao casamento “Ce vulgaire dessein” e a aversão às suas

14

As précieuses faziam parte de um movimento cultural francês do século XVII, a Préciosité, o qual visava a

distinção pela pureza da linguagem, pela elegância das roupas e pela dignidade dos costumes.

15 Pessoa intelectual, que cultiva a inteligência.

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conseqüências para a mulher “Qu'un idole d'époux, et des marmots d'enfants!”, coloca a

irmã mais velha como a representante das précieuses, essas mulheres que assumiam uma

nova postura e questionavam a condição feminina do século XVII. A condenação do

casamento e da relação sexual é uma tendência dessas Preciosas. Declara Robert Jouanny

sobre Armande na nota de Les Femmes Savantes : “ um belo movimento de resistência.

Revelou-se a pobre Armande intelectual, idealista que almeja sair do comum.”

Em seguida, Armande fala de um dualismo corpo x espírito. Julga que a irmã

representa um papel insignificante no mundo por almejar marido, filhos e a vida

doméstica. Considera essa vida como uma baixa distração e aconselha Henriette a deixar

isso para as pessoas vulgares. A irmã mais nova deve seguir o exemplo da irmã mais velha

e da mãe e elevar o desejo a mais altos níveis, a entregar-se ao espírito em detrimento da

matéria. Se ela quer casar, “Mariez-vous, ma sœur, à la philosophie”.

Henriette não só aceita com naturalidade o casamento e seus desenlaces, como não

vê saída melhor:

Henriette

Et qu'est-ce qu'à mon âge on a de mieux à faire,

Que d'attacher à soi, par le titre d'époux,

Un homme qui vous aime, et soit aimé de vous;16

(Ato I, cena 1)

Se Armande se apóia na filosofia, Henriette se defende com a religião. Seu

argumento é de que Deus deu naturezas diferentes às pessoas e cada um deve seguir sua

inclinação:

Henriette

Le Ciel, dont nous voyons que l'ordre est tout-puissant,

Pour différents emplois nous fabrique en naissant;17

(AtoI, cena 1)

16

“E que pode uma moça fazer de melhor, na minha idade, do que unir a si, pelo título de esposo, um homem

que a ama e que ela ama” ( Edição de 1952, traduzido por Antonio Feliciano de Castilho)

17 “ O céu, cuja ordem sabemos ser todo-poderosa, fabrica-nos, ao nascer, para diferentes ofícios”. (tr. A.F.

de Castilho).

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Se por um lado Armande representa as précieuses, por outro lado Henriette é a

imagem da mulher tradicional, que aspira ao papel que lhe é reservado e que se espera que

ela assuma na sociedade. Entretanto, a caçula também revela qualidades intelectuais

quando se mostra tão raisonneuse quanto Armande. Apesar de Henriette não ser Preciosa,

utiliza com destreza de metáforas para convencer a irmã dos encantos do casamento:

Henriette

Et de cette union de tendresse suivie,

Se faire les douceurs d'une innocente vie?

Ce nœud bien assorti n'a-t-il pas des appas?18

(Ato I, cena 1)

E quando Armande invoca a mãe como modelo para a irmã, tentando lhe mostrar

que Philaminte é honrada por toda parte com o nome de sábia, e que é necessário seguir-

lhe os passos para merecer o título de sua filha, Henriette utiliza o mesmo modelo da mãe

para defender seu ponto de vista:

Henriette

Mais vous ne seriez pas ce dont vous vous vantez,

Si ma mère n'eût eu que de ces beaux côtés;

Et bien vous prend, ma sœur, que son noble génie

N'ait pas vaqué toujours à la philosophie.

De grâce souffrez-moi par un peu de bonté

Des bassesses à qui vous devez la clarté;

Et ne supprimez point, voulant qu'on vous seconde,

Quelque petit savant qui veut venir au monde.19

(Ato I, cena 1)

Henriette mostra-lhe que a mãe não pertence totalmente ao mundo grandioso da

Filosofia. Philaminte também andou pelo mundo vulgar e cometeu baixezas as quais

Armande acusa a irmã de aspirar. E Henriette pleiteia junto à irmã mais velha o direito de

cometer as mesmas baixezas as quais Armande deve a própria existência.

18

“ e tirar dessa união, de contínua ternura, as alegrias de uma vida inocente? Quando bem dado, não tem os

seus encantos esse nó?” (tr. A.F. de Castilho)

19 “Mas nem você seria o que se gaba de ser, se minha mãe só tivesse tido esses belos gestos; e ainda bem,

mana, que o nobre engenho dela nem sempre vagueou pelas regiões da Filosofia. Conceda-me, por caridade,

as baixezas a que você mesma deve a existência; e não suprima, querendo que os outros a imitem, algum

sabiozinho que queira vir ao mundo”. (tr. A.F. de Castilho)

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34

Molière concede às duas irmãs características intelectuais. Entretanto, Henriette não

pertence ao grupo das Preciosas, formado por Armande, Philaminte e Bélise, e é a única

que não cai no ridículo. Essa postura do autor prova que o que ele combateu foi o

pedantismo, um fenômeno presente em sua época, e não o direito de as mulheres buscarem

o conhecimento e uma melhor condição social.

Para Armande, o casamento perpetua a dominação masculina e impede que a

mulher cultive seu espírito. Com o himeneu, a mulher sai do domínio paterno para ficar

sob o domínio do marido. Ela baseia toda sua argumentação sobre uma divisão radical

entre corpo x espírito, razão x sentidos, como se não fossem parte de um todo. Defende a

dedicação total ao espírito, desprezando os sentidos e a matéria, cujos apetites nos iguala às

bestas:

Armande

“Et donne à la raison l'empire souverain,

Soumettant à ses lois la partie animale

Dont l'appétit grossier aux bêtes nous ravale”.20

(Ato I, cena 1)

Entretanto, logo após se mostrar partidária da razão e do espírito, discursando em

favor da emancipação feminina, torna-se ciumenta e vaidosa ao saber que Clitandre é o

pretendido de sua irmã:

Armande

“Non, mais c'est un dessein qui serait malhonnête,

Que de vouloir d'un autre enlever la conquête;

Et ce n'est pas un fait dans le monde ignoré,

Que Clitandre ait pour moi hautement soupiré”.21

(Ato I, cena 1)

20

“ e dá à razão o soberano império, submetendo às suas leis a parte animal, cujos grosseiros apetites nos

equiparam às bestas”. (tr. A.F. de Castilho)

21 “Não; mas desonestas seria a sua intenção de apoderar-se de uma conquista alheia; e todo o mundo está

farto de saber que Clitandre já se cansou de suspirar por mim”. (tr. A.F. de Castilho)

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35

O seu discurso se esvazia ao mostrar que também é vulnerável aos desejos da carne.

Henriette se aproveita da contradição da irmã e utiliza as próprias palavras de Armande

para sair vitoriosa da discussão:

Henriette

“Oui, mais tous ces soupirs chez vous sont choses vaines,

Et vous ne tombez point aux bassesses humaines;

Votre esprit à l'hymen renonce pour toujours,

Et la philosophie a toutes vos amours:

Ainsi n'ayant au cœur nul dessein pour Clitandre,

Que vous importe-t-il qu'on y puisse prétendre”?22

(Ato I, cena 1)

Nessa primeira cena do primeiro ato, Henriette e Armande representam dois grupos

que se enfrentarão durante toda a peça: de um lado, o burguês Chrysale, seu irmão Ariste,

sua filha Henriette, seu candidato a genro Clitandre e a cozinheira Martine representam o

grupo do bon sens que sairá vitorioso no final com o casamento de Henriette e Clitandre;

do outro lado, sua esposa Philaminte, sua irmã Bélise, a filha mais velha Armande e

Trissotin, o pedante, formam o grupo dos pedantes.

Na segunda cena do primeiro ato, Armande nos revela mais um traço de seu

caráter: a hipocrisia:

Armande

“Mais vous qui m'en parlez, où la pratiquez-vous,

De répondre à l'amour que l'on vous fait paraître,

Sans le congé de ceux qui vous ont donné l'être?

Sachez que le devoir vous soumet à leurs lois,

Qu'il ne vous est permis d'aimer que par leur choix,

Qu'ils ont sur votre cœur l'autorité suprême,

Et qu'il est criminel d'en disposer vous-même”.23

(Ato I, cena 2)

22

“ Sim; mas esses suspiros são coisas vãs para você, que nunca desce às baixezas humanas; o seu espírito

renunciou para sempre ao himeneu, e na Filosofia se concentra toda a sua paixão: por conseguinte, se para o

seu coração não existe Clitandre, que lhe importa que possa alguém pretender a ele?”. (tr. A.F. de Castilho)

23 E como a pratica você, que me censura, correspondendo ao amor que lhe declaram sem o consentimento

daqueles que lhe deram o ser? Fique sabendo que o dever a submete às suas leis, e que não lhe é permitido

amar senão de conformidade com a escolha deles. Eles tem sobre o seu coração a autoridade suprema e você

não pode, sem crime, dispor dele a seu talante”. (tr. A.F. de Castilho)

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36

Ela é representante das précieuses, que se reuniam nos salões da época, como o

salão da Madame de La Fayette24

(1634-1693) para discutirem os principais problemas do

momento, reivindicar a igualdade entre os sexos, o direito feminino à cultura, à liberdade

de escolha, particularmente no casamento. Quando ela percebe que seu antigo admirador

agora está apaixonado pela irmã, afirma que Henriette não pode se casar sem o

consentimento dos pais, que eles têm autoridade suprema sobre as filhas, e que se unir ao

amado sem que este seja o escolhido dos pais é um crime. Ou seja, Armande, que defendia

com afinco o cultivo do espírito, a supremacia da razão e a liberdade feminina, age,

irracionalmente, e contradiz seus próprios argumentos a partir do momento em que tem um

desejo contrariado, se submetendo totalmente aos sentimentos, os quais ela julgava como

uma fraqueza indigna da irmã.

A primeira notícia que temos de Philaminte é na terceira cena do primeiro ato,

quando Clitandre afirma à Henriette que vai procurar o pai da moça para pedir sua mão em

casamento. Henriette responde:

Henriette

“Le plus sûr est de gagner ma mère:

Mon père est d'une humeur à consentir à tout,

Mais il met peu de poids aux choses qu'il résout;

Il a reçu du Ciel certaine bonté d'âme,

Qui le soumet d'abord à ce que veut sa femme;

C'est elle qui gouverne, et d'un ton absolu

Elle dicte pour loi ce qu'elle a résolu”.25

(Ato I, cena 3)

No século XVII, a mulher se ocupa com a organização da casa, porém é excluída

das decisões mais importantes. Com as palavras de Henriette, percebemos que em sua casa

as coisas são diferentes. Não adianta Clitandre obter o consentimento do pai, sem que

24

Autora de “La princesse de Clèves”, 1678.

25 “ O mais seguro é persuadir minha mãe: meu pai tem um gênio que concorda com tudo, mas não dá muito

peso às coisas que resolve; recebeu do Céu certa bondade de alma, que o sujeita, em primeiro lugar, às

vontades de minha mãe; é ela quem governa e dita como leis, em tom absoluto, o que quer que resolva”. (tr.

A.F. de Castilho)

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consiga a aprovação da mãe. É ela quem dita como leis, o que quer que resolva em relação

aos assuntos familiares. E na sexta cena do segundo ato, quando Philaminte aparece pela

primeira vez, podemos confirmar a afirmação de Henriette:

Philaminte

“Je ne veux point d'obstacle aux désirs que je montre”.(AtoII, cena 6)

O fato de Philaminte tomar decisões importantes na casa poderia representar uma

postura inovadora se observada a realidade da esposa burguesa do século XVII. Entretanto,

esse poder de decisão de Philaminte é apresentado de forma ridicularizada e irracional.

Não há discussão entre o casal para se tomar a melhor decisão para os assuntos familiares,

mas a esposa se mostra caprichosa e inflexível, Je ne veux point d'obstacle aux désirs que

je montre.

Seu principal objetivo é fundar um salão e mais tarde uma academia. Tendo isso em

vista, por sua vez, é totalmente submissa ao saber masculino de Trissotin, o pedante o qual

ela acredita que a introduzirá no mundo intelectual parisiense. Mundo esse que ridiculariza

e despreza o mesmo Trissotin. Philaminte abandona totalmente os cuidados com a casa e

se preocupa somente com literatura e filosofia. Temos assim, em vez de um exemplo

inovador na relação marido x esposa, uma “masculinização” da personagem. As esposas

nas peças de Molière representam, geralmente, a voz do bom senso. Como exemplo

podemos citar Elmire de Tartuffe e a Sra. Jourdain, de Le Bourgeois Gentilhomme. Se

analisarmos esta última peça, percebemos um paralelo entre o Sr. Jourdain e Philaminte.

Esta aspira fazer parte do círculo intelectual de Paris, aquele deseja fazer parte da nobreza.

Ambos são apresentados de forma ridícula. Esse traço já fica claro na primeira aparição de

Philaminte, na sexta cena do segundo ato. Quando Chrysale pergunta à esposa o motivo

pelo qual ela quer se livrar da cozinheira, imaginando alguma falta grave, como um furto,

Philaminte responde que a empregada ofendeu a correção gramatical:

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Philaminte

“Elle a, d’une insolence à nulle autre pareille,

Après trente leçons, insulté mon oreille,

Par l'impropriété d'un mot sauvage et bas,

Qu’em termes décisifs condamne Vaugelas”.26

(Ato II, cena 6)

Percebemos que Molière foge à sua prática e inverte os papéis. Em Les Femmes

Savantes é a esposa que representa o papel do personagem excêntrico e ingênuo, que

geralmente é reservado aos maridos, com o fim de criticar os excessos das mulheres que

buscavam o saber.

Sr. Jourdain deseja casar sua filha com um nobre e sua mulher defende que a filha

se case com o jovem a quem ama. O oposto do que ocorre na casa de Henriette. Seu pai

defende que ela se case com Clitandre, o jovem o qual ela ama. Já sua mãe quer casar a

filha com um intelectual.

Philaminte e o Sr. Jourdain acabam sendo vítimas de suas manias. Segundo Célia

Berretini27

, o cômico, neste caso, é fruto da exploração da ingenuidade e credulidade

desses personagens.O Sr. Jourdain, que sonha em ser nobre, deixa-se enganar pela

Marquesa Dorimène e pelo Conde Dorante, representantes da nobreza. Philaminte, levada

por sua mania de intelectualidade, é enganada por Trissotin, pedante como ela, e acredita

que ele é o marido ideal para Henriette. E, apesar de toda sua capacidade intelectual, é

enganada novamente, agora pelo cunhado, Ariste, que cria um embuste para desmascarar

Trissotin e evitar o casamento da sobrinha com este pedante. No final, Philaminte concorda

com o casamento desejado pela filha.

26

“ Com uma insolência sem exemplo, depois de mais de trinta lições, ela insultou-me o ouvido com a

impropriedade de uma palavra selvagem e baixa, condenada, em termos categóricos, por Vaugelas”. (tr. A.F.

de Castilho).

27 BERRETINI, C. Duas Farsas, O Embrião do Teatro de Molière. São Paulo: Perspectiva, 1979.(p.120)

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39

9.2 L´École des Femmes

Em L´École des Femmes, Molière se apoia, novamente, sobre o casamento para

desenvolver sua peça. Arnolphe toma sob sua proteção uma menina de 4 anos de idade,

Agnès, com o objetivo de prepará-la para se tornar sua esposa. Quando ela completa seus

17 anos, ele se prepara para por seu plano em execução. Entretanto, Arnolphe se depara

com um rival inesperado: Horace, o jovem ama Agnès e é amado pela jovem que, tendo

crescido, isoladamente, entre freiras, ignorando as coisas da vida, reage espontaneamente

a esse amor. Seu tutor tentará em vão impedir os planos de Horace, aproveitando do fato de

o jovem não conhecer a verdadeira identidade de Arnolphe e o tomar por confidente. O

amor triunfará no final. Com esse desfecho, determina-se claramente como Molière reage à

questão feminina da época. Ele se coloca ao lado das précieuses como, Mlle de Scudéry,

que contribuiu para colocar o tema da condição feminina em voga, tornando-se partidário

dos que buscavam mais liberdade para as mulheres.

Dessa forma, o autor sublinha duas fontes da dependência feminina: a educação e o

casamento. Ele cria uma situação através da qual consegue ligar os dois problemas:

relaciona um homem de idade avançada e uma jovem adolescente. Segundo Jean Serroy28

,

a tutela que Arnolphe exerce sobre sua jovem pupila traduz a autoridade social que a lei

reconhece ao marido sobre sua mulher e a autoridade moral que o educador exerce sobre

seu aluno.

Jean Butin29

afirma que a mulher fazia parte do patrimônio do homem: desde o

nascimento era propriedade do pai, que a casava de acordo com a sua vontade; em seguida,

tornava-se propriedade do marido. Se casada ainda menina, a lei assegurava ao marido os

mesmos direitos do pai. Os maridos podiam mantê-las presas, sem que passassem pelos

tribunais.

28

MOLIÈRE, L´École des Femmes. Paris: Gallimard, 2000.

29 BUTIN, J. L´École des Femme – Profil d´une Oeuvre. Paris: Hatier, 1984.

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40

Segundo Butin30

, o casamento de um Arnolphe e de uma Agnès era moeda corrente

na sociedade da época. Os maridos buscavam segurança em uma esposa estúpida e

ingênua, a qual seria mantida, facilmente, sob controle. A educação das meninas tinha um

objetivo principal: preservar a inocência e uma ignorância através das quais garantiria-se à

preservação da virgindade e a preparação para o papel de esposa. Na primeira cena do

primeiro ato, Molière nos apresenta essa realidade quando Arnolphe diz a Cheysalde:

Arnolphe

“Épouser une sotte, est pour n'être point sot:

Je crois, en bon chrétien, votre moitié fort sage;

Mais une femme habile est un mauvais présage,

Et je sais ce qu'il coûte à de certaines gens,

Pour avoir pris les leurs avec trop de talents.

Moi j'irais me charger d'une spirituelle,

Qui ne parlerait rien que cercle, et que ruelle?

Qui de prose, et de vers, ferait de doux écrits,

Et que visiteraient marquis, et beaux esprits,

Tandis que, sous le nom du mari de Madame,

Je serais comme un saint, que pas un ne réclame”?

Non, non, je ne veux point d'un esprit qui soit haut,

Et femme qui compose, en sait plus qu'il ne faut.

Je prétends que la mienne, en clartés peu sublime,

Même ne sache pas ce que c'est qu'une rime;

Et s'il faut qu'avec elle on joue au corbillon,

Et qu'on vienne à lui dire, à son tour: "Qu'y met-on?"

Je veux qu'elle réponde, "Une tarte à la crème";

En un mot, qu'elle soit d'une ignorance extrême;

Et c'est assez pour elle, à vous en bien parler,

De savoir prier Dieu, m'aimer, coudre, et filer”.31

(Ato I, cena 1)

30

Ibid., p.19.

31 “ Caso com uma tola pra não bancar o tolo. Acredito, à fé de Deus, que a tua é uma mulher sagaz; mas uma

mulher esperta é mau presságio; eu sei o que custou a alguns casarem com mulheres cheias de talento; me

caso com uma intelectual, interessada apenas em conversas de alcova, escrevendo maravilhas em prosa e

verso, frequentada por marqueses e gente de espírito, e fico sendo apenas o marido de madame, discreto a um

canto, como um santo sem crentes. Não, não, agradeço esses espíritos cheios de sutilezas. Mulher que

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As comunidades religiosas eram encarregadas desse programa educacional. A

menina recebia uma educação que deveria, em primeiro lugar, fechar seus olhos para a

realidade. Geralmente, internadas em conventos, praticavam a reza, exercitavam alguns

trabalhos de agulha e liam, porém, uma literatura, rigorosamente, selecionada. Tudo era

ordenado para formar uma futura esposa submissa, passiva, destinada a ser a auxiliar do

marido, uma espécie de empregada, segundo o ideal burguês da época, como nos diz

Butin: “ Labeur assidu, soumission absolue”.32

Ainda nessa primeira cena, Arnolphe

confirma a afirmação de Butin:

Arnolphe

“Dans un petit couvent, loin de toute pratique,

Je la fis élever, selon ma politique,

C'est-à-dire ordonnant quels soins on emploirait,

Pour la rendre idiote autant qu'il se pourrait.

Dieu merci, le succès a suivi mon attente,

Et grande, je l'ai vue à tel point innocente,

Que j'ai béni le Ciel d'avoir trouvé mon fait,

Pour me faire une femme au gré de mon souhait”.33

(Ato I, cena 1)

No final da primeira cena, Molière soma à ingenuidade de Arnolphe, um caráter

excêntrico, o mesmo procedimento que percebemos na apresentação de Philaminte, em Les

Femmes Savantes, quando o personagem abre mão de seu nome de família e se “rebatiza”

com um nome ridículo:

escreve sabe mais do que é preciso. Pretendo que a minha seja bastante opaca pra não saber nem mesmo, o

que é uma rima. E, quando estiver jogando o corbillon e alguém perguntar, ao chegar a vez dela: “Que

botamos agora na panela?”, ela, ao invés de, como as outras, dar uma resposta brilhante e maliciosa,

responda, muito simples: “ Um pouco de batata!” Em suma, desejo uma mulher de extrema ignorância. Que

seja demais ela saber rezar, me amar, cozer, bordar!” (Edição de 1983, traduzida por Millôr Fernandes)

32 Ibid., p.19

33 “ Num pequeno convento, afastado do mundo, fiz com que ela fosse educada sob regras estritas; ou seja,

que só lhe ensinassem aquilo que pudesse torná-la o mais estúpida possível. Graças a Deus, meus esforços

foram coroados de êxito; agora, crescida, eu a achei de tal modo inocente, que só tenho a agradecer aos céus

por me darem exatamente a mulher que eu desejo”. (tr. M.F.)

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42

Arnolphe

“Vous pourriez vous passer d'exemples de la sorte:

Mais enfin de la Souche est le nom que je porte;

J'y vois de la raison, j'y trouve des appas,

Et m'appeler de l'autre, est ne m'obliger pas”.34

(Ato I, cena 1)

Mas a troca de nome também contribui para a verossimilhança da peça. A dupla

identidade de Arnolphe permite o engano de Horace, que não imagina que seu rival, M. de

la Souche, é na verdade , seu confidente, Arnolphe.

No final do primeiro ato, Arnolphe toma conhecimento do amor de Horace por

Agnès. Na quinta cena do segundo ato, durante um passeio, Arnolphe tenta saber de Agnès

o que aconteceu entre os dois, temendo que o jovem tenha comprometido a honra da sua

protegida. Na sua inocência, Agnès não esconde nada das investidas amorosas de Horace.

Arnolphe acaba satisfeito por saber que a coisa não foi tão longe quanto ele temia.

Entretanto, vendo que seus planos matrimoniais estavam em risco, resolve celebrar o

casamento naquela mesma noite. Agnès, que demonstra corresponder ao amor de Horace,

não vê em Arnolphe mais que um tutor, e se mostra agradecida, acreditando que Arnolphe

vai casá-la com seu jovem amado. Mas seu tutor lhe faz ver que suas intenções são outras.

Na primeira cena do segundo ato, Arnolphe pensa ter, novamente, o controle da

situação. Ele convence Agnès a atirar uma pedra em Horace para afugentar seu rival. Nesse

ponto da história temos a revelação de Agnès, que tinha se mostrado até então passiva e

bondosa instintivamente. Seu amor por Horace começa através da compaixão. Depois de

ser convencida por uma velha, de que era a responsável pelo sofrimento do jovem Horace,

ela explica a Arnolphe como começou sua relação com o jovem amado:

Agnès

“Voilà comme il me vit et reçut guérison.

Vous-même, à votre avis, n'ai-je pas eu raison?

Et pouvais-je après tout avoir la conscience

34

“Você pode ficar com seus exemplos. Seja como for, o meu nome agora é Vendaval. Tenho uma razão bem

forte: gosto dele. E chamar-me de outra forma é me desagradar”. (tr. M.F.)

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De le laisser mourir faute d'une assistance?

Moi qui compatis tant aux gens qu'on fait souffrir,

Et ne puis sans pleurer voir un poulet mourir”.35

( Ato II, cena 5)

Horace conta a Arnolphe que na pedra estava enrolada uma carta de amor. Para

Butin36

, nesse ponto está a moral da história. A ignorância a que foi submetida desde

criança se submete aos ensinamentos do amor e da natureza. Agnès conta a Arnolphe essas

revelações do amor sem perceber malícia:

Agnès

“Il jurait qu'il m'aimait d'une amour sans seconde

Et me disait des mots les plus gentils du monde:

Des choses que jamais rien ne peut égaler.

Et dont, toutes les fois que je l'entends parler,

La douceur me chatouille, et là-dedans remue

Certain je ne sais quoi, dont je suis toute émue.37

(Ato II, cena 5)

São as palavras, as carícias “...il me prenait et les mains et les bras, et de me les

baiser il n´était jamais las.” , o prazer físico que revela Agnès a ela mesma. São seus

sentimentos e seus sentidos que dão o impulso necessário para tirá-la da passividade e a

tornam ousada. Isso reforça o que Horace exprime na quarta cena do terceiro ato:

“L´amour est un grand maître” e “donne de l´esprit à la plus innocente”. Se as carícias

despertaram seu corpo, as palavras amorosas despertaram sua inteligência. Ela tem

consciência de que a mantiveram na ignorância de tudo, ela não sabe como se exprimir.

Porém, faz isso muito bem à Arnolphe, na quarta cena do quinto e último ato:

35

“ Foi assim que ele veio me ver, e ficou logo curado. Agora, me diga francamente, eu não tinha razão? Eu

podia arriscar o remorso de deixar ele morrer sem amparo? Eu, que não posso ver ninguém sofrer, que choro

quando vejo matarem uma galinha?”. (tr. M.F.)

36 Ibid., p.26.

37 “ Dizia que me amava um amor sem igual, dizia palavras as mais gentis do mundo, coisas como jamais

ouvi ninguém dizer e cuja doçura me encantava quanto mais eu ouvia, fazendo-me subir um certo não-sei-

quê aqui por dentro”. (tr. M.F.)

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44

Agnès

“Vous avez là dedans bien opéré vraiment,

Et m'avez fait en tout instruire joliment;

Croit-on que je me flatte, et qu'enfin dans ma tête

Je ne juge pas bien que je suis une bête?

Moi-même j'en ai honte, et dans l'âge où je suis

Je ne veux plus passer pour sotte, si je puis”.38

( Ato V, cena 4)

Segundo Butin39

, no final da peça, é o conhecimento sistemático e doutrinário de

Arnolphe que se revela ignorante, e da ignorância de Agnès revela-se um conhecimento

instintivo.

Para terminar, ainda nesta mesma cena, Arnolphe, ao constatar que perdeu Agnès

para Horace, desesperadamente, faz a última tentativa de reconquistar sua pupila:

Arnolphe

“Mon pauvre petit bec, tu le peux si tu veux.

(Il fait un soupir.)

Écoute seulement ce soupir amoureux,

Vois ce regard mourant, contemple ma personne,

Et quitte ce morveux, et l'amour qu'il te donne;

C'est quelque sort qu'il faut qu'il ait jeté sur toi,

Et tu seras cent fois plus heureuse avec moi.

Ta forte passion est d'être brave et leste,

Tu le seras toujours, va, je te le proteste;

Sans cesse nuit et jour je te caresserai,

Je te bouchonnerai, baiserai, mangerai;

Tout comme tu voudras, tu pourras te conduire,

Je ne m'explique point, et cela c'est tout dire.

38

“ Realmente o senhor tomou todos os cuidados para que eu recebesse educação esmerada. Pensa então que

me iludo a ponto de não saber que sou uma idiota? Me envergonho de mim; mas, na idade em que estou, não

quero mais passar por imbecil – se puder”. (tr. M.F.)

39 Ibid., p.60

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45

(À part.)

Jusqu'où la passion peut-elle faire aller?”40

(Ato V, cena 4)

Nesse momento, acrescentamos a hipocrisia como mais um traço de Arnolphe. Ele

promete se comportar de uma forma incompatível com seus valores e com a realidade de

um homem casado da época. Butin41

afirma que se mostrar apaixonado pela esposa era um

papel ridículo representado pelo homem. O amor conjugal aparecia como um sentimento

chocante, para não dizer vergonhoso. O marido só aspirava à simples satisfação dos seus

desejos sensuais. Quando Agnès acena negativamente a essa tentativa, a falsidade de

Arnolphe vem à tona e ele se comporta de acordo com as regras da sua época. Quando a

mulher não aceita o marido que escolhem para ela, sua única opção é o convento: “Vous

rebutez mes vœux, et me mettez à bout; Mais un cul de couvent me vengera de tout”42

.

40

“ Oh, minha queridinha, é só você querer. Escuta meus suspiros de amor, contempla este olhar moribundo,

examina toda minha pessoa e logo esquecerá esse pobre fedelho e o amor que te dedica. Deve ter lançado em

você algum feitiço. Comigo serás mil vezes mais feliz. O que você gostaria é de ser livre e elegante; prometo

realizar os teus desejos sempre. Vou te mimar dia e noite, te abraçar, te beijarei sem cessar. Eu te devorarei!

E deixarei que você se comporte como bem entender. Pra dizer tudo, nunca hei de entrar nos teus

particulares. ( À parte, baixo) Até que extremos a paixão nos leva”. (tr. M.F.)

41 Ibid., p. 17.

42 “Zombando dos meus protestos de amor você me obriga a isso: uma cela de convento vai me vingar de

tudo”. (tr. M.F.)

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46

9.3 Tartuffe

Molière utiliza, em Tartuffe, o mesmo esquema que encontramos em outras peças:

o jovem casal que se ama e encontra nos pais um obstáculo para sua felicidade. Nessa peça

o casal é representado por Marianne e Valère. O pai de Marianne, Orgon, se opõe ao

casamento, porque, obcecado pela religião, deseja como genro o falso devoto Tartuffe.

Ajudado por Dorine, uma das vozes representantes do bom senso, o casal tentará superar as

dificuldades que impedem sua felicidade.

Sob esse quadro tradicional, Molière denuncia a falsa devoção e os excessos da

religião. O título da peça já nos deixa claro que Tartuffe é um impostor. Orgon,

completamente sob sua influência, está disposto a lhe ceder tudo o que possui. E o falso

devoto se aproveita da situação: ele deseja não somente casar com Marianne como também

seduzir Elmire, a segunda mulher com a qual Orgon se casa, após a morte de sua primeira

esposa, mãe de Marianne e Damis. Tartuffe acaba por denunciar Orgon, que havia

guardado documentos de um amigo comprometido durante la Fronde43

, e lhe tomar os

bens. Mas no final da peça, o traidor é preso e Orgon recupera o que tinha perdido.

Tartuffe é objeto de querelas e conflitos entre dois grupos de personagens: os

convencidos de que Tartuiffe é um “santo-homem”, Madame Pernelle e Orgon, e o grupo,

que representa o bom senso e sabe que ele é um hipócrita, formado por Elmire, Cleante,

Damis, Dorine, Marianne e Valère. Uma divisão semelhante a que fizemos em Les

Femmes Savantes, quando dividimos os personagens em dois grupos: o do bom senso e o

dos pedantes. Como naquela peça, em que Molière atacou os pedantes e o bom senso saiu

43 La Fronde (1648-1653) Movimento de contestação contra o crescente poder da coroa verificado em França

durante a minoridade de Luís XIV. O movimento iniciou-se com o litígio entre a Ana de Áustria, regente

acolitada por Mazarino, e o parlamento de Paris. A rainha teve de ceder às exigências deste, mas, logo no ano

seguinte(1649), finda a Guerra dos Trinta Anos e regressados os exércitos reais, investiu contra os

contestatários. Um arranjo satisfatório para ambos os litigantes foi ajustado em 1649. Em 1650, inicia-se a

Fronda dos nobres. Mazarino é forçado a fugir da capital pelo novo líder da nobreza em rebelião, Luís de

Bourbon, Príncipe de Condé. Porém, alcançando a vitória, os nobres entredevoram-se, facilitando o regresso

do rei. Condé reúne um exército contra o soberano, mas Turenne, general das hostes reais, bate-o às portas de

Paris. Terminava a última tentativa da nobreza em opor-se ao processo de centralização e ao nascimento do

Estado moderno. (Fonte: Biblioteca Nacional de Portrugal - http://purl.pt/index/geral/PT/index.html)

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vitorioso, aqui também veremos o bom senso triunfar, agora sobre a hipocrisia. Podemos

também fazer a aproximação de Orgon com Philaminte, de Les Femmes Savantes. Os dois

personagens representam o obstáculo que impede o casamento dos filhos com seus

pretendentes. Philaminte, vítima de sua mania de erudição, quer casar a filha Henriette com

o pedante Trissontin, assim como Orgon e sua mania de devoção, que quer como genro o

falso devoto e hipócrita Tartuffe. Ambos, através de uma artimanha forjada pela família,

conhecerão a verdade no final e consentirão no casamento desejado pelas filhas.

As primeiras informações que temos de Elmire é através das críticas que Madame

Pernelle faz a ela:

Madame Pernelle:

“ Ma bru, qu’il ne vous en déplaise,

Votre conduite en tout, est tout à fait mauvaise:

Vous devriez leur mettre en exemple aux yeux,

Et leur défunte mère em usait beaucoup mieux.

Vous êtes dépensière, et cet état me blesse,

Que vous alliez vêtue ainsi qu’une princesse.

Quiconque à son mari veut plaire seulement,

Ma bru, n’a pas besoin de tant d’ajustement’.44

(Ato I, cena 1)

Podemos concluir que Elmire é uma mulher jovem, é a segunda esposa de Orgon,

que a desposou após a morte de sua primeira mulher. Sua preocupação com a aparência, o

refinamento no modo de se vestir e de se enfeitar, nos faz supor um distanciamento em

relação ao marido Orgon, de idade mais elevada e costumes mais austeros, condizentes

com os de um devoto fervoroso. Essa diferença entre o casal explica a reprovação de

Madame Pernelle em relação aos costumes de Elmire, e sua preferência pela primeira nora.

Nessa primeira cena do primeiro ato, na qual discute-se acerca de Tartuffe, é

importante notarmos o silêncio de Marianne e a ardente crítica de Dorine. A dama de

44

“ Minha nora, não me leve a mal, mas seu comportamento é péssimo, em tudo; você deveria por-lhes um

bom exemplo diante dos olhos; a defunta mãe deles agia muito melhor. Você é gastadeira; e esse estadão me

choca; não posso vê-la vestida como se fosse uma princesa. Aquela que só quer agradar ao marido, minha

nora, não necessita de tantos atavios”. (Edição de 1983, traduzida por Jacy Monteiro)

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companhia de Marianne se mostra incomodada com o poder que o falso devoto adquire

dentro da casa, graças à bondade ingênua de Orgon, e dá os primeiros sinais do interesse de

Tartuffe por Elmire, quando discutem o motivo pelo qual ele condena a visita de amigos da

família: "Veut-on que là-dessus je m'explique entre nous? Je crois que de Madame il est,

ma foi, jaloux.” É pela boca de Dorine que Molière expõe sua intenção ao escrever a peça,

nos versos 69-70: “Il passe pour un saint dans votre fantaisie; Tout son fait, croyez-moi,

n'est rien qu'hypocrisie”. Denunciar a hipocrisia religiosa.

Dentre todos os personagens presentes na primeira cena, é Madame Pernelle e,

sobretudo, Dorine, que dão movimento à cena, quando se colocam a favor e contra

Tartuffe, respectivamente. Mas as duas apresentam uma visão deformada do personagem

em questão, devido à paixão que as move, o que faz com que o espectador não possa ter

uma opinião definitiva sobre Tartuffe.

Na cena dois do primeiro ato, Molière põe o rasonneur Cléante de acordo com

Dorine a propósito de Tartuffe, apesar da grande diferença de nível social entre os dois.

Em seguida, Dorine pinta o retrato de Orgon, aproximando-o da excentricidade,

ingenuidade e comicidade atribuídos tanto à M. Jourdain, de Le Bourgeois Gentilhomme,

quanto à Philaminte, de Les Femmes Savantes e à Arnolphe, de L´École des Femmes.

Na primeira cena do segundo ato, Orgon informa Marianne de seu projeto de casá-

la com Tartuffe. Marianne se mostra como sua avó tinha a descrito no início da peça:

Madame Pernelle:

“Mon Dieu, sa sœur, vous faites la discrète,

Et vous n'y touchez pas, tant vous semblez doucette:

Mais il n'est, comme on dit, pire eau, que l'eau qui dort,

Et vous menez sous chape, un train que je hais fort”.45

(Ato I, cena 1)

Ela se mostra cerimoniosa e totalmente submissa ao pai até descobrir suas

intenções. Com a notícia, Marianne questiona o direito do pai de escolher seu futuro

45

“ Deus meu, como irmã dele, você finge a discreta e com essa aparente doçura é incapaz de ferir alguém;

mas não há, como dizem, água pior do que a água parada e você leva uma vida que não tolero”. (tr. J.M.)

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49

marido. Orgon, além de impor seu candidato a marido para Marianne, tenta obter a

aceitação da filha para tal projeto. Ele, que também tinha se mostrado cerimonioso no

início do diálogo, vai mostrando a verdadeira face aos poucos, conforme cresce a

resistência da filha, e autoritariamente, mostra quem tem o poder:

Orgon:

“Mais je veux que cela soit une vérité;

Et c'est assez pour vous, que je l'aie arrêté”.46

(Ato II, cena 1)

Dorine, que trabalha há tempos com a família e conhece bem Orgon e Marianne,

intervem na conversa para que Marianne saia da passividade e não aceite o projeto do pai:

Dorine:

“Vraiment, je ne sais pas si c'est un bruit qui part

De quelque conjecture, ou d'un coup de hasard;

Mais de ce mariage on m'a dit la nouvelle,

Et j'ai traité cela de pure bagatelle”.47

(Ato II, cena 2)

A dama de companhia se mostra, de início, incrédula com a notícia do casamento

de Marianne com Tartuffe. O único argumento que Orgon acha como resposta é que a

dama de companhia tomou certas liberdades na casa, e que ela está ultrapassando os

limites que uma criada deve observar. O cômico da situação fica por conta das

intervenções de Dorine, que impedem que Orgon fale, e o gesto “farcesco” deste, que tenta

esbofetear Dorine, sem sucesso. Nesse ponto, a dama de companhia foge do seu emploi,

um tipo de Soubrette48

, para agir como o tipo da Dama Central, a mãe de família.

46

“ Mas quero que isso seja uma verdade; e para você é bastante que eu tenha decidido”. (tr. J.M.)

47 “ Na verdade, não sei se é um boato que teve origem em alguma conjectura, ou se provém de um acaso

qualquer, mas trouxeram-me a notícia desse casamento e encarei-o como simples frivoleira”. (tr. J.M.)

48 Segundo Patrice Pavis (PAVIS, Patrice. Dictionnaire du Théâtre, Paris, Dunod, 1996), o termo Soubrette

advém do provençal Soubretto, afetado. Seja na figura da Serva, da Criada, da Aia, da Governanta, conforme

o contexto histórico, ela é a Acompanhante da principal personagem feminina numa comédia.

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Dorine percebe que o patrão está irredutível, então, para de caçoar e argumenta,

seriamente, sobre o casamento, lembrando a Orgonte que ele está agindo contra os

costumes burgueses, casando a filha com um miserável:

Dorine:

“Parlons sans nous fâcher, Monsieur, je vous supplie.

Vous moquez-vous des gens, d'avoir fait ce complot?

Votre fille n'est point l'affaire d'un bigot.

Il a d'autres emplois auxquels il faut qu'il pense ;

Et puis, que vous apporte une telle alliance?

À quel sujet aller, avec tout votre bien,

Choisir un gendre gueux...”49

(Ato II, cena 2)

Quando percebe que seu argumento não surtiu efeito, Dorine fala de um possível

comprometimento da honra da filha e, por consequência, da honra da família, alegando

que, quando um pai casa uma filha contra a vontade dela, pode estar arriscando a virtude

da moça. Se o marido não tiver as qualidades esperadas pela mulher, a intenção feminina

de viver honestamente pode ficar comprometida, e o pai fica responsável perante o Céu,

pelas faltas cometidas pela filha casada a contragosto.

Dorine percebe que suas intervenções irritam Orgon e o impedem de convercer a

filha a aceitar de bom grado o casamento: “Ah! vous êtes dévot, et vous vous emportez?”.

Ela continua então com sua tática e, no final da cena, triunfa. Orgon perde o controle e sai

para tomar um ar e tranquilizar-se. Dorine aproveita que está a sós com Marianne e faz

esforços progressivos para convencer a menina a mudar de atitute. Ela começa reprovando

a passividade de Marianne diante do projeto abusurdo de Orgon:

Dorine:

“Avez-vous donc perdu, dites-moi, la parole ?

Et faut-il qu'en ceci je fasse votre rôle?

49

“ Vamos falar sem nos zangar, senhor, eu lhe suplico. O senhor está zombando da gente quando faz essa

conspiração? A sua filha não é para o bico de um carola: ele tem outras coisas em que pensar. E depois, que é

que lhe traz uma aliança dessas? A propósito de que, com todos seus bens, procura um genro miserável?...".

(tr. J.M.)

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51

Souffrir qu'on vous propose un projet insensé,

Sans que du moindre mot vous l'ayez repoussé”!50

(Ato II, cena 3)

Percebemos que Orgon, o chefe da família, não tem a mesma autoridade sobre

Dorine que sobre Marianne. A empregada diz ter sempre que representar o papel da

menina, que tem como característica o respeito às conveniências, mas também o gosto pelo

romanesco. Podemos traçar um paralelo entre Marianne e Henriette, de Les Femmes

Savantes. Ambas desejam se casar com o jovem amado. Assim como Marianne tem de

enfrentar a recusa do pai, Henriette enfrenta a vontade da mãe. Ambas alcançam a

felicidade no final. Entretanto, percebe-se uma diferença importante entre as duas:

Marianne é passiva e depende de Dorine para enfrentar os obstáculos que atravessam seu

caminho. Já Henriette, que também observa as conveniências e respeita a condição de

submissão ao poder paterno, tem um caráter mais independente e se mostra raisonneuse,

argumenta em favor de seus interesses sem depender de outra pessoa.

Após reprovar a falta de iniciativa de Marianne, Dorine tenta lhe mostrar que seu

destino é se casar com Valère e a necessidade de ser mais firme frente ao pai. Diante da

insistência de Marianne em respeitar a autoridade paterna, Dorine manipula a menina

como havia feito com Orgon na cena anterior. Ironicamente, concorda que Marianne deve

mesmo obedecer ao pai e se casar com Tartuffe, mostrando-lhe que essa é a melhor coisa a

se fazer. Marianne muda de atitude, imediatamente, e pede que Dorine a auxilie contra o

casamento com Tartuffe.

Para que o desmascaramento de Tartuffe se conclua, é necessária a união de Elmire

e Dorine. A segunda esposa de Orgon, por ser jovem e ser a madrasta de Damis e

Marianne, não possui a autoridade e a influência materna que, por sua vez, a dama de

companhia possui. E Dorine, com sua postura imperativa diante dos filhos de Orgon,

mostra ter consciência da necessidade de representar esse papel de mãe.

Entretanto, Elmire é fundamental para os planos de Dorine. A esposa de Orgon

representa o tipo da Dama Galante, a mulher sedutora. Sabendo da influência que Elmire

50

“ Você, por acaso, perdeu a língua e, nisso tudo, preciso representar o seu papel? Permitir que lhe

proponham um projeto insensato, sem repeli-lo ao menos com uma palavra !”. (tr. J.M.)

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tem sobre Tartuffe, a empregada espera que ela convença o hipócrita a desistir do

casamento, e tem consciência da fraqueza de Tartuffe pela tentação da carne.

Assim como questionou a falta de controle do devoto Orgon, “Ah! vous êtes dévot,

et vous vous emportez?”, ao se encotrar com Tartuffe, Dorine questiona também a fraqueza

deste frente à tentação, quando ele lhe pede para cobrir os seios com um lenço, “Vous êtes

donc bien tendre à la tentation; Et la chair, sur vos sens, fait grande impression?”51

Na terceira cena do terceiro ato temos o primeiro encontro de Elmire e Tartuffe. Por

trás da cortesia do hipócrita, percebemos seus sentimentos transparecerem:

Tartuffe:

“J'en suis ravi de même ; et sans doute il m'est doux,

Madame, de me voir, seul à seul, avec vous.

C'est une occasion qu'au Ciel j'ai demandée,

Sans que, jusqu'à cette heure, il me l'ait accordée”.52

(Ato III, cena 3)

Entretanto, Elmire se mostra reservada em suas respostas: “Votre zèle pour moi

s'est trop inquiété”. “Pour moi, ce que je veux, c'est un mot d'entretien, Où tout votre cœur

s'ouvre, et ne me cache rien”.

Apesar da reserva mostrada, Elmire se mostra engenhosa, como Dorine, e prepara a

armadilha para Tartuffe:

Elmire:

“J'ai voulu vous parler en secret, d'une affaire,

Et suis bien aise, ici qu'aucun ne nous éclaire”.53

(Ato III, cena 3)

Em seguida, Tartuffe começa a mostrar sua perda de controle. Percebemos o

contraste entre suas palavras de cortesia e seus gestos atrevidos. Ele age dessa forma, 51

“Então o senhor cede facilmente à tentação, e a carne exerce grande impressão sobre os seus sentidos?”.

(tr. J.M.)

52 “ Estou igualmente encantado e, sem dúvida, é-me sumamente agradável ver-me a sós com a senhora.

Tenho pedido aos céus uma ocasião dessas, que até esta hora não quis me proporcionar”. (tr. J.M.)

53 “ Quis falar-lhe em segredo de um assunto e folgo que ninguém nos esteja espiando”. (tr. J.M.)

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53

inconscientemente. E temos um efeito cômico com as justificativas que ele dá para sua

atitude. Quando Elmire pergunta o que faz a mão dele em seu joelho, Tartuffe responde,

“Je tâte votre habit, l'étoffe en est moelleuse”.

Elmire, que representa uma mulher honesta e consciente dos seus deveres de

esposa, se incomoda com as investidas abusadas de Tartuffe. Entretanto, se mantem firme

no propósito de livrar Marianne desse casamento funesto.

Quando Elmire lhe pergunta da intenção de Orgon em lhe dar a mão de Marianne

em casamento, e lhe fala do desinteresse que ele deve ter pelas coisas terrenas, Tartuffe

fica num desconforto, cada vez maior, e acaba por perder, completamente, o controle da

situação, e declara à Elmire o seu amor por ela, a esposa de Orgon.

O objeto dessa entrevista entre Tartuffe e Elmire, planejada por Dorine, deveria ser

o casamento com Marianne. Entretanto, a declaração de Tartuffe à Elmire era prevista, ou

pelo menos, considerada como possível por elas.

Elmire age segundo a expectativa que se tem sobre ela face a essa situação. Ela se

mostra habilidosa sem renunciar a sua bondade e sinceridade. Sua atitude está de acordo

com seu caráter:

Elmire:

“Je vous écoute dire, et votre rhétorique,

En termes assez forts, à mon âme s'explique.

N'appréhendez-vous point, que je ne sois d'humeur

À dire à mon mari cette galante ardeur?

Et que le prompt avis d'un amour de la sorte,

Ne pût bien altérer l'amitié qu'il vous porte”?54

(Ato III, cena 3)

Elmire:

“D'autres prendraient cela d'autre façon, peut-être;

Mais ma discrétion se veut faire paraître.

54

“ Ouço-o falar, e a sua retórica, em termos bem fortes, à minha alma se explica. O senhor não receia que eu

seja capaz de comunicar ao meu marido esse galante ardor, e que o conhecimento de tal ardor venha alterar a

amizade que lhe dedica?”. (tr. J.M.)

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54

Je ne redirai point l'affaire à mon époux;

Mais je veux en revanche une chose de vous.

C'est de presser tout franc, et sans nulle chicane,

L'union de Valère avecque Mariane;

De renoncer vous-même à l'injuste pouvoir

Qui veut du bien d'un autre enrichir votre espoir ;

Et..”.55

(Ato III, cena 3)

Na quarta cena do quarto ato, quando Elmire arma a situação pela qual Orgon

conhecerá a verdade sobre Tartuffe, percebemos que o marido tem uma atitude diferente

em relação à mulher, se compararmos a postura que assume diante dos outros membros da

família. Ao ouvir as palavras da esposa, o marido, apesar de não dar crédito, aceita que ela

lhe prove seu ponto de vista, e é consciente do seu ato: “Je confesse qu'ici ma

complaisance est grande;”.

Elmire, conhecendo a ousadia de Tartuffe, e sabendo o que vai acontecer a seguir,

trata de tomar precauções para que sua honra não seja manchada e divide a

responsabilidade com Orgon que, segundo ela, será o senhor da situação. Nessa cena,

Elmire se expõe dessa maneira, para que o marido conheça o verdadeiro caráter de

Tartuffe. O esforço não é em vão, e o plano, arquitetado por Dorine e executado por

Elmire, acaba por garantir o casamento de Marianne e Valère.

55

“ Outras veriam isto, talvez, de outra maneira, mas saberei ser discreta. Nada direi a respeito ao meu

esposo, mas quero, em troca, fazer-lhe um pedido: é interessar-se o senhor francamente e sem subterfúgios

pela união de Valère e Marianne, renunciar ao injusto poder que pretende com o bem alheio enriquecer-se.

E...”. (tr. J.M.)

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55

CONCLUSÃO

Chegando ao final do estudo, é possível afirmar que a mulher na obra de Molière

não reproduz o discurso da dominação masculina e está longe de ser esterotipada. Molière

não reserva às mulheres, somente, o papel de procriadora, e não contribui com a divisão

sexual dos papéis.

Na tabela abaixo, temos a relação das personagens, suas características e a tipologia

dos papéis:

Título da Peça Personagem Emplois Característica

Les Femmes Savantes Philaminte Dama Central Mulher de meia idade,

mãe de

família,masculinizada,

pedante.

Les Femmes Savantes Henriette Ingênua Adolescente, romântica,

submissa ao poder

paterno, rasonneuse.

Les Femmes Savantes Armande Ingênua Adolescente, pedante,

hipócrita, discursa sobre

a independência

feminina

L´École des Femmes Agnès Ingênua Adolescente, tímida,

submissa, inteligência

instintiva.

L´École des Femmes Georgette Tipo da Soubrette Criada, representa um

papel “farcesco”

Tartuffe Elmire Dama Galante De 20 a 30 anos,

sedutora, figura de tipo

tentador. Inteligente.

Tartuffe Marianne Ingênua Adolescente, tímida,

sonhadora, romântica,

submissa, passiva,

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dependente.

Tartuffe Dorine Tipo da Soubrette Idade variada, dama de

companhia, inteligente,

rasoneuse, age como

mãe de família.

De todos os assuntos importantes que o preocuparam e dos quais ele transformou

em tema de suas peças, foi a condição feminina, o lugar que a mulher ocupa na família, sua

educação e sua relação com o homem, o que mereceu maior destaque.

Na construção das três peças, Molière utilizou o tema do casamento para denunciar

o abusivo poder masculino sobre as mulheres francesas do seu tempo. Invariavelmente,

esse casamento é imposto aos filhos, por motivos econômicos ou sociais. Percebemos a

posição de Molière diante do casamento forçado, um costume na sua época, através do

discurso de suas personagens e dos finais felizes das peças.

Dorine alerta Orgon dos perigos desse tipo de casamento. Segundo ela, a mulher

que casa contra a vontade, acaba se tornando infeliz e infiel. Molière concretiza essa

opinião em La Jalousie du Barbouillé, peça na qual Angélique, casada pelos pais com

Barbouillé, por motivos econômicos, acaba cedendo às galanterias de Valère.

As três peças analisadas terminam da mesma forma: As meninas conseguem se

casar com seus respectivos amados. Entretanto, esses finais felizes se restringiam ao teatro.

Na realidade, o casamento livre, por amor, estava fora de questão.

Os pais, obstáculos à felicidade das filhas, foram apresentados como excêntricos e

cegos por suas manias. Philaminte, mãe de Henriette, tem um interesse excessivo e

distorcido por conhecimento. Podemos interpretar essa mania como fruto de um casamento

frustrado e uma vida conjugal infeliz. Essa mania não permite que ela enxergue a

verdadeira face de Trissotin.

Arnolphe tem um medo exagerado de ser traído pela futura esposa. Medo que faz

com que ele crie uma menina no isolamento e na ignorância, tentando moldá-la segundo

sua vontade. Critica a postura das mulheres de seu tempo, considerando-as falsas e

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libertinas, sem conseguir ver que é, exatamente, o casamento forçado, ao qual ele pretende

submeter Agnès, a causa dessa infidelidade generalizada.

Orgon, vítima de uma devoção exacerbada, se torna presa fácil para Tartuffe, que se

aproveita largamente da situação.

Ao lado desses excêntricos, encontramos sempre os representantes do bom senso,

que tentam fazê-los enxergar a realidade. É através desse bom senso que Molière faz sua

crítica à condição da mulher no século XVII. Em Les Femmes Savantes temos Ariste,

irmão de Chrysale, que consegue desmascarar Trissotin; L´École des Femmes nos

apresenta Chrysalde, amigo de Arnolphe, que tenta fazê-lo enxergar os inconvenientes do

casamento com Agnès, e em Tartuffe, além de Cléante, cunhado de Orgon, temos Dorine, a

responsável pela desgraça do falso devoto.

A princípio, temos a impressão de que o autor está contando a mesma história nos

três casos. Agnès, Henriette e Marianne são muito semelhantes. Entretanto, essa

semelhança está ligada a uma tipificação de papéis, o emploi. As três são adolescentes.

Sabemos, somente, a idade exata de Agnès, que tem dezessete anos. Todas elas encontran-

se à beira de um casamento forçado. Entretanto, cada uma reage de forma diferente a esse

perigo. Agnès, que foi mantida no isolamento e na ignorância durante 14 anos, age com

uma inteligência instintiva, que a ajuda a libertar-se de Arnolphe. Henriette, que vive

cercada de pedantes, possui uma intelectualidade natural que nos mostra que Molière não

era contra a educação feminina, mas sim contra seus excessos. Marianne se mostra

submissa ao poder do pai e depende da inteligência e da audácia de Dorine para alcançar a

felicidade. Sua fraqueza faz com que ela cogite o suicídio.

Armande também faz parte desse grupo das adolescentes. Entretanto, representa

um papel distinto. Assim como sua mãe, ela é uma personagem complexa. Ao mesmo

tempo em que discursa sobre a independência feminina, em que critíca o papel de mãe e de

dona de casa, e em que defende o cultivo do espírito, em detrimento dos sentidos e dos

desejos da carne, se mostra ciumenta e vaidosa ao saber do amor de Horace por Henriette.

Philaminte é uma personagem complexa. Representa a mãe de família, mulher

madura e distinta. Entretanto, é apresentada de uma forma masculinizada. Diferentemente

da realidade, é ela quem toma as decisões da casa. O marido se mostra submisso às suas

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decisões. É ela quem contraria o casamento pretendido pela filha, postura assumida,

tradicionalmente, pelo pai.

Elmire é a mulher galante, que, geralmente, tem entre 20 e 30 anos. É a segunda

esposa de Orgon. É o tipo de mulher sedutora e não se identifica com o tipo mãe de

família. Dorine representa esse papel materno em relação à Marianne e Damis. Seu poder

de sedução faz com que o astuto Tartuffe se mostre fraco e caia em desgraça.

Dorine faz parte de um tipo proveniente da Soubrette. O fato de fazer o espectador

rir em várias cenas, não impede que Dorine represente o bom senso na peça. Ela se

considera membro da famíla, apartir do momento em que ultrapassa seus limites de criada

e age como se fosse mãe de Marianne e Damis, tentando defender o interesse dos dois.

Esforça-se para tirar Marianne da passividade e torná-la contrária ao casamento.

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