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Eduardo Rodrigues da Cruz paradidáticos COLEÇÃO SÉRIE CULTURA A persistência dos deuses religião, cultura e natureza

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Eduardo Rodrigues da Cruz

paradidáticosColeção

Série Cu

ltura

Série Cultura

O dito popular de que “religião, política e futebol não se discutem” é posto em xeque de maneira vigorosa, neste livro, por Eduardo Rodrigues da Cruz. Seu texto empolgante apresenta as “regras do jogo” que se fazem presentes no universo das religiões estabelecidas.

O autor aborda a fascinante variedade religiosa do Brasil e trata do modo muito particular que o “jeitinho brasileiro” achou para lidar com a questão religiosa. Ao longo dessa avaliação, problematiza a identidade nacional e toca em assuntos relevantes, como a pluralidade e a tolerância religiosas, a separação Igreja-Estado e a controvérsia em torno da obrigatoriedade do ensino religioso no país.

Num âmbito mais geral, discute-se o entendimento moderno da religião como forma de cultura, com ênfase nos contextos de que ela surge, e propõe-se uma reflexão sobre as características universais da religião, debatendo a forma como esta produz deuses e seus mundos sobrenaturais.

Eduardo Rodrigues da Cruz é professor na PUC-SP e coordenador do Programa de Estudos e Pós-Graduação em Ciências da Religião nessa mesma Universidade. É doutor em Systematic Theology pela University of Chicago (EUA), onde também realizou pós-doutorado.

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Apoio Projeto Pedagogia Cidadã

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A persistência dos deuses

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FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP

Presidente do Conselho CuradorHerman Jacobus Cornelis Voorwald

Diretor-PresidenteJosé Castilho Marques Neto

Editor-ExecutivoJézio Hernani Bomfim Gutierre

Conselho Editorial AcadêmicoAlberto Tsuyoshi IkedaÁureo BusettoCélia Aparecida Ferreira TolentinoEda Maria GóesElisabete ManigliaElisabeth Criscuolo UrbinatiIldeberto Muniz de AlmeidaMaria de Lourdes Ortiz Gandini BaldanNilson GhirardelloVicente Pleitez

Editores-AssistentesAnderson NobaraHenrique ZanardiJorge Pereira Filho

COORDENAÇÃO DA COLEÇÃO PARADIDÁTICOS

Ernesta ZamboniJoão Luís C. T. CeccantiniRaquel Lazzari Leite BarbosaRaul Borges Guimarães

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e d u A r d o r o d r i g u e s d A c r u z

A persistência dos deuses

religião, cultura e natureza

C o l e ç ã o P a r a d i d á t i C o s

s é r i e c u l t u r A

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© 2004 Editora UNESP

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Tel.: (0xx11) 3242-7171

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[email protected]

Capa: Isabel Carballo

CIP – Brasil. Catalogação na fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

C961p

Cruz, Eduardo Rodrigues da A persistência dos deuses : religião, cultura e natureza / Eduardo Rodrigues da Cruz. - São Paulo : UNESP, 2004

96 p. : il. -(Coleção Paradidáticos ; Série Cultura)

Inclui bibliografia ISBN 85-7139-557-8

1. Brasil - Religião. 2. Pluralismo religioso - Brasil.3. Tolerância religiosa - Brasil. 4. Religião e sociologia - Brasil.I. Título. II. Série.

04-2370. CDD 200.981 CDU 2(81)

EDITORA AFILIADA:

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a C o l e ç ã o P a r a d i d á t i C o s U N e s P

A Coleção Paradidáticos foi delineada pela Editora UNESP com o objetivo de tornar acessível a um amplo público obras sobre ciência e cultura, produzidas por des-tacados pesquisadores do meio acadêmico brasileiro.

Os autores da Coleção aceitaram o desafio de tratar de conceitos e questões de grande complexidade presen-tes no debate científico e cultural de nosso tempo, va-lendo-se de abordagens rigorosas dos temas focalizados e, ao mesmo tempo, sempre buscando uma linguagem objetiva e despretensiosa.

Na parte final de cada volume, o leitor tem à sua dis-posição um Glossário, um conjunto de Sugestões de leitu-ra e algumas Questões para reflexão e debate.

O Glossário não ambiciona a exaustividade e nem pretende substituir o caminho pessoal que todo leitor arguto e criativo percorre, ao dirigir-se a dicionários, en-ciclopédias, sites da Internet e tantas outras fontes, no intuito de expandir os sentidos da leitura que se propõe. O tópico, na realidade, procura explicitar com maior de-

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talhe aqueles conceitos, acepções e dados contextuais valorizados pelos próprios autores de cada obra.

As Sugestões de leitura apresentam-se como um com-plemento das notas bibliográficas disseminadas ao longo do texto, correspondendo a um convite, por parte dos autores, para que o leitor aprofunde cada vez mais seus conhecimentos sobre os temas tratados, segundo uma perspectiva seletiva do que há de mais relevante sobre um dado assunto.

As Questões para reflexão e debate pretendem provo-car intelectualmente o leitor e auxiliá-lo no processo de avaliação da leitura realizada, na sistematização das in-formações absorvidas e na ampliação de seus horizontes. Isso, tanto para o contexto de leitura individual quanto para as situações de socialização da leitura, como aque-las realizadas no ambiente escolar.

A Coleção pretende, assim, criar condições propícias para a iniciação dos leitores em temas científicos e cul-turais significativos e para que tenham acesso irrestrito a conhecimentos socialmente relevantes e pertinentes, ca-pa zes de motivar as novas gerações para a pesquisa.

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s U m á r i o

introdução 9

cApítulo 1

Brasil, país de muitas religiões: desafios e dúvidas 15

cApítulo 2

O homem projeta-se para o mundo: deuses, rituais e religiões 24

cApítulo 3

Fantasias evolucionistas: o homem ocidental e seu Deus 38

cApítulo 4

O ser alienado: os “mestres da suspeita” e a possibilidade de um homem irreligioso 46

cApítulo 5

O homem e seu contexto cultural: a pluralidade religiosa destacada pelo espírito do século XX 54

cApítulo 6

Promessas darwinianas: por que os deuses persistem? 61

conclusão 74

glossário 79sugestões de leiturA 85

questões pArA reflexão e debAte 91

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i N t r o d U ç ã o

Ao se estudar os traços culturais brasileiros, um dos que mais se destaca é o da pluralidade e vitalidade religiosas. Muitos pesquisadores estrangeiros, fascinados, vêm in-vestigá-lo aqui. Nós próprios nos orgulhamos dele, mes-mo quando não pertencemos a nenhuma religião. Até o catolicismo, ainda predominante no país, apresenta o “jei-tinho” brasileiro. Um exemplo concreto: nunca os dados sobre religião do censo do IBGE atraíram tanto a atenção de todos quanto agora. O presente volume parte desta constatação, ainda que seu objetivo não seja descrever a marca religiosa brasileira. O que se procura é investigar, em termos mais gerais, a dinâmica do religioso que torna possível a persistência das manifestações religiosas.

A preocupação principal, em um primeiro momento, é dar conta de como a Idade Moderna recebeu a herança religiosa do Ocidente, comparando-a com as novas des-cobertas proporcionadas pela expansão colonial e tratan-do-a com seu espírito cético e a visão do religioso en-quanto forma de moral. Essas transformações ajudam a

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explicar traços que também são típicos da nossa cultura, como a pluralidade e a tolerância religiosas, a separação entre a Igreja e o Estado e as controvérsias sobre o ensino religioso, e nossa atitude diante de manifestações religio-sas muito dinâmicas – ora tolerante, ora de rejeição.

Após analisar a moderna percepção da religião como forma de cultura, e a ênfase nos contextos em que ela surge, o texto destaca alguns estudos novos associados à teoria da evolução de Darwin. Tais estudos salientam as características universais da religião e sua forma de pro-duzir deuses e mundos sobrenaturais. A religião surge então ainda mais fascinante e merecedora de atenção, ajudando-nos a configurar a identidade nacional brasilei-ra, tanto presente quanto futura.

Religião, política e futebol não se discute. Este im-portante ditado popular frequentemente é invocado, principalmente quando o assunto é religião. É um as-sunto geralmente embaraçoso, pois lida com questões íntimas e privadas que preferimos não compartilhar com os outros. Se outrora não se discutia o tema porque logo se caía em um bate-boca sem fim, hoje parece que ele deixou de ter importância pública, e todos concordam que “religião, cada um tem a sua”. Você já se imaginou falando de suas experiências religiosas na classe ou com a galera em um programa de fim de semana? Nem pen-sar, não é mesmo?

Mas será que essa atitude, tão corriqueira em nossos ambientes, resolve a questão? Procurarei demonstrar, nas páginas seguintes, que não: conhecer a religião e fa-lar sobre ela é tão importante hoje como no passado, mesmo que os termos da discussão tenham mudado.

Comecemos por um argumento puramente lógico. Deixando a política de lado (todos pensam, acertada-

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mente ou não, que os políticos são aproveitadores), pres-temos atenção ao futebol. Este sim provoca paixões e debates acalorados. O objetivo, é claro, não é chegar a um consenso, mas prolongar o prazer de se torcer por um time. Mesmo que ninguém consiga convencer o ou-tro de que o juiz é ou não ladrão, todos concordam que ele deve seguir regras comuns que sejam consideradas razoáveis e justas pelas partes em disputa. É aí que está o ponto importante: há, ao redor da ilha de discussões, ooceano das regras do jogo que envolve todos. Sem essevasto conjunto de crenças e ações compartilhadas, ne-nhuma discussão valeria a pena.

Guardadas as devidas proporções, o mesmo vale para a política e para a religião. No caso desta última, as “re-gras do jogo” são também mais importantes e comuns do que podemos imaginar. A diferença, talvez, é que, se no caso do futebol há comentaristas bem preparados que informam o ouvinte, evitando tomar partido deste ou da-quele time e fazendo que aos poucos todos conheçam as regras de cor, isso não acontece com a religião. Quanto a esta, não há quem nos instrua para valer. Os especialis-tas religiosos (professores de escola dominical e cate-quistas, pastores e padres etc.) informam-nos apenas sobre nossa tradição religiosa, e, geralmente, não des-pertam em nós nenhuma paixão. O fato é o seguinte: conhecemos pouco as regras do jogo da religião.

Mas também é fato que as religiões tornaram-se mui-to interessantes ultimamente – e aqui deixamos o plano da lógica. Os temas religiosos nunca receberam tanto destaque nos meios de comunicação, tanto em termos positivos como negativos. O número de emissoras reli-giosas de rádio e televisão nunca foi também tão eleva-do, algumas com enorme audiência. Não faz muito tem-

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po que começou a ser vendida nas bancas uma atraente e informativa “revista das religiões”, algo impensável há apenas duas décadas.

A religião tem ganho uma enorme publicidade, parti-cularmente no Brasil. Parece haver um movimento exa-tamente contrário àquele indicado no primeiro parágra-fo: ao invés de fato privado, a religião mostra sua face pública. Ao invés de demonstrar acanhamento, as pes-soas usam os meios de comunicação para falar de suas experiências religiosas com enorme desembaraço. Pare-ce que falar de religião e de Deus tornou-se algo muito popular por aqui.

Como entender dois movimentos tão contraditórios? A única maneira é procurar vislumbrar, por trás da selva de informações, quais são as regras do jogo comuns a esses movimentos. Apresentaremos, portanto, algumas dessas regras nos próximos capítulos, para que possamos conhecer melhor um pouco do fascinante mundo das religiões. Dada a amplitude do assunto, foi preciso fazer algumas escolhas. Em primeiro lugar, o que não preten-demos fazer.

Não pretendemos, por exemplo, traçar um panorama das principais religiões do Brasil e do mundo. Nos últi-mos anos, o mercado editorial brasileiro viu surgir uma grande quantidade de livros excelentes que dão conta disso. Alguns deles estão indicados na seção SugeStõeS

de Leitura, e não queremos repetir o que já foi bem rea-lizado. Tampouco se pretende apresentar estudos sobre as religiões no Brasil, por mais interessantes que sejam; também neste caso, remetemos o leitor às SugeStõeS de

Leitura. Portanto, interessam-nos as regras do jogo reli-gioso, onde o que é próprio do contexto brasileiro remete a formas mais universais, e vice-versa.

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Operaremos em dois registros: um que enfatiza a reli-gião como fato cultural, e outro que a enfatiza como fato natural. Para entendê-los, começaremos cada capítulo apre sentando dados históricos significativos, e depois dis-cutiremos alguns aspectos relevantes das maneiras pelas quais a religião tem sido descrita nos últimos séculos.

Religião e cultura, religiões e culturas. Para muitos pesquisadores, parecem dois termos indissociáveis. Pri-meiramente, é preciso fugir do conceito de cultura pre-sente nos “cadernos culturais” dos jornais e revistas. Mes-mo que haja inúmeras razões para associar cultura com atividades intelectuais como arte, literatura e filosofia, essa abordagem não é a mais apropriada para se entender a religião. Como veremos a seguir, cultura tem muito mais a ver com o modo com que o homem cultiva os elementos de que dispõe (sejam eles materiais ou “espirituais”, natu-rais ou artificiais) para construir um mundo onde possa habitar. É um entendimento contextual, ou seja, a cultura de um grupo está ligada a circunstâncias mutáveis no tempo e no espaço. Aqui não há “incultos” no sentido de “pouco instruídos”. Todos somos produtos de um cultivo, e também cultivamos o que está ao nosso redor. Tal cul-tivo dá lugar a línguas, costumes e, principalmente, re li-giões, pois o homem é uma espécie simbólica por excelên-cia. Isto significa que, de maneira muito mais acentuada do que em outras espécies, nós mediamos nossas ações conosco mesmos, com os outros e com o mundo por meio da linguagem e de outros símbolos, conforme descrevere-mos no Capítulo 2. A maioria das ciências humanas tra-balha hoje com este registro.

Outro registro importante, mas menos conhecido, é o da religião como complexo de atividades que resultam de nosso passado evolutivo como espécie. Aqui o cultivo

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intencional e consciente, ou não, ocupa um lugar subor-dinado. Seguindo estudos recentes sobre o comporta-mento humano baseados na teoria da evolução de Char-les Darwin, entende-se a religião como um componente humano universal, pronto no entanto a adaptar-se a vá-rios contextos, que auxilia na formação das culturas. Como veremos mais adiante, essas novas ciências apre-sentam o ser humano como universalmente propenso a deuses, sacrifícios, rituais e experiências místicas. A re-ligião, como diremos, está aí para persistir.

Esta não é uma apresentação neutra dos dois registros. Sem negar a importância da religião nas estruturas e mo-vimentos culturais, sugiro no entanto que, se entender-mos melhor a religião como associada intrinsecamente à natureza humana, poderemos entender melhor as regras do jogo como indicado acima. Precisamos lembrar que tais regras, ao contrário do que acontece no futebol, não são fruto de convenções, mas precisam ser continuamen-te descobertas e avaliadas na história e no inconsciente do homem. O leitor é convidado, portanto, a acom panhar essa maneira de apresentar as regras. Se entendê-las me-lhor, e percebê-las em sua própria experiên cia, então o objetivo deste pequeno volume estará cumprido.

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1 brasil, país de muitas religiões: desafios e dúvidas

O censo de 2000, promovido pelo IBGE, trouxe entre seus resultados mais interessantes a mudança do perfil das opções religiosas brasileiras. De um país essencial-mente católico, como ainda registrado em censos anterio-res, o espectro de alternativas religiosas aumentou, o mes-mo acontecendo com o número de seus adeptos. Cresceu também o número dos que se declararam sem religião, tópico que será objeto de atenção mais à frente.

Os dados desse órgão de pesquisas foram amplamente divulgados e analisados nos meios de comunicação brasilei-ros. É o caso do caderno Mais! da Folha de S. Paulo de 19 de maio de 2002, um bom ponto de partida para o leitor interessado no assunto. Os parâmetros usuais de interpreta-ção apontam para uma valorização do religioso e um maior número de opções entre os brasileiros. Uma recente edição especial da revista Veja sobre os jovens revela também o in-teresse crescente que eles têm demonstrado pela religião.1

1 Veja. Edição especial n.º 32. Abril, jun. 2004, p. 65.

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Entretanto, não nos podemos deixar levar pelas estatísticas. O sociólogo brasileiro Flávio Pierucci, por exemplo, costu-ma enfatizar dois aspectos dessas mudanças: por um lado, a quebra de monopólios religiosos e a proliferação de alter-nativas é algo a ser ce lebrado; por outro, a diversidade de opções religiosas ainda é, na verdade, muito pequena: o Brasil ainda se constitui como um país essencialmente cris-tão, e novos experimentos não costumam se afastar muito dessa herança.2 De certa forma, a popularidade que o filme A paixão de Cristo conquistou em nosso país indica isso. A herança cristã manifesta-se mais claramente de duas for-mas: movimentos simultâneos de afastamento e aproxima-ção com relação à Igreja enquanto instituição, e a persistên-cia de símbolos, valores e rituais cristãos na esfera pública.

Este é um primeiro traço cultural da religião nos paí-ses do Ocidente: a permanência de um arcabouço cívi-co, social e psicológico resultante do passado dos países que estiveram em regime de cristandade. Associados a isto, dois aspectos se sobressaem: a secularização e o que chamamos de “religião civil”.

O termo “secularização” indica, primeiramente, o es-vaziamento do regime de cristandade, a aceleração desse esvaziamento nos dois últimos séculos no Ocidente le-vou a religião cristã e sua representante oficial, a Igreja, a deixar gradualmente a esfera pública e a ingressar no domínio privado. Isto não significa que não haja expres-sões religiosas públicas, mas, de modo mais importante, significa que: 1 – As religiões deixam de importar para a economia, a política, a ética, as artes e as ciências; 2 – Mais do que isso, as religiões são censuradas quando

2 PIERUCCI, A. F. Secularização e declínio do catolicismo, em SOUZA, B. M. e MARTINO, L. M. S., (orgs.) Sociologia da religião e mudança social: católicos, pro-testantes e novos movimentos religiosos no Brasil. São Paulo: Paulus, 2004. p. 13-21.

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tentam interferir na esfera pública. Secularização tam-bém subentende “desencantamento do mundo” (Max Weber), visão muito comum nos círculos intelectuais nos anos 50 e 60 do séc. XX, mas que hoje é contestada: diversos pensadores apontam para um “reencantamento do mundo” ou “revanche do sagrado”, o que se compro-varia pela explosão de novos movimentos religiosos nas últimas décadas. Mesmo assim, não é possível voltar ao passado, e não se pode contar com algo como o retorno a um regime de cristandade e sua forma de administra-ção do sagrado. Pode-se dizer, pois, que o interesse con-temporâneo pela religião no Brasil ocorre em um contex-to já secularizado, tanto no que se refere à visão de mundo como às formas de estruturar o cotidiano privado e público. O mesmo vale para os movimentos de afasta-mento e aproximação (Padre Marcelo, por exemplo) da Igreja Católica.

Já a “religião civil” é entendida como o conjunto de rituais, narrativas, símbolos, códigos morais e celebra-ções de uma nação que tiveram no passado uma inspira-ção claramente religiosa, mas que hoje não assumem essa denominação. Esse termo surgiu especificamente no contexto norte-americano (basta ver as manifestações patrióticas de lá, incentivadas tanto pela população como pela mídia e pelo governo), e há dúvidas sobre sua apli-cabilidade em outras situações. Em todo caso, como foi dito acima, percebe-se nos países ocidentais comporta-mentos na esfera pública que traem o passado religioso. Basta lembrar, no caso do Brasil, a importância que con-tinuam tendo as missas de sétimo dia, mesmo para os que não creem na ressurreição dos mortos; o casamento religioso, mesmo para os que não o consideram um sa-cramento; os feriados religiosos, que todos “emendam”;

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ou a referência a Deus na Constituição, embora conste nela a separação Igreja-Estado. Sim, os padrões culturais falam mais alto que a letra da lei.

São movimentos de certa forma contrastantes que só podem ser mais bem compreendidos se nos perguntar-mos, ainda que preliminarmente, sobre o estado das re-ligiões no Brasil. É a isto que vamos sucintamente nos dedicar. O censo de 2000 oferece-nos um panorama das mudanças religiosas, algumas esperadas, outras que nos pegam um pouco de surpresa. O mapa da Figura 1 (p.19) resume os principais números do censo, e o da Figura 2 (p. 20) mostra a distribuição do catolicismo no país e a evolução da porcentagem deste em relação ao total, de 1991 a 2000.

Como era de se esperar, a influência da Igreja Católi-ca continua a diminuir. Não contando mais com o apoio da esfera pública, esvaindo-se a sacralidade das institui-ções e das hierarquias, e com o desgaste de ritos e cren-ças e o descomprometimento dos agentes religiosos, o catolicismo tende a voltar a ser um grupo religioso entre os demais: a porcentagem de católicos no perfil religioso brasileiro passou de 83,3% em 1991 para 73,9% em 2000. Como a diversificação religiosa é maior nas regiões com maior mobilidade populacional (Região Norte e megaló-poles, por exemplo), é de se esperar que essa tendência continue, ainda que não se possa afirmar se vai ocorrer ou não uma estabilização no futuro. De fato, como os fatores étnicos e tradicionais já não contam mais na afi-liação religiosa, a fluidez das conversões e a dupla perten-ça tendem a aumentar, sem uma direção pré-definida. Fenômenos como o terço bizantino do já mencionado pa-dre Marcelo (podem-se acrescentar eventuais aparições de Maria) também incentivam essa fluidez.

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a p e r s i s t ê n c i a d o s d e u s e s

figUra 1 distribuição de fiéis das religiões no brasil,

de acordo com o censo 2000

fonte: AtlAs dA filiAção religiosA e indicAdores sociAis no brAsil - 2003

© cesAr romero JAcob, dorA Hees, pHilippe WAniez e Violette brustlein

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figUra 2o catolicismo no brasil, segundo o ibge

mApA prepArAdo por césAr r. JAcob e dorA Hees, puc/rJ. extrAído de istoé, 23/04/2003.

fonte: AtlAs dA filiAção religiosA e indicAdores sociAis no brAsil - 2003

© cesAr romero JAcob, dorA Hees, pHilippe WAniez e Violette brustlein

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O aumento mais significativo, tanto em termos per-centuais como em termos do número de aderentes, é certamente dos evangélicos, em particular dos pentecos-tais. Uma das razões disso é que, em tempos de crise, as religiões de entusiasmo tornam-se mais atraentes. Mas há outros motivos igualmente fortes. Seja pelo fato de a tradição contar menos, seja pela diminuição do ritmo de crescimento populacional do Brasil, esse aumento se deve principalmente às conversões. Daí também o cres-cimento das Igrejas Batistas, que têm um forte ímpeto missionário, o mesmo valendo para as religiões de entu-siasmo como as pentecostais. As igrejas protestantes li-gadas a grupos que no passado emigraram para o Brasil, denominadas “históricas”, não têm crescido com intensi-dade, ou até têm visto seus números caírem.

Registra-se também um aumento significativo das re-ligiões denominadas neocristãs (Testemunhas de Jeová, Adventistas do Sétimo Dia etc.), novamente devido ao forte espírito missionário que as caracteriza. Também por conta do crescimento das igrejas pentecostais (parti-cularmente a Universal do Reino de Deus), o número de pessoas aderentes aos cultos afro-brasileiros, em espe-cial a umbanda, tem diminuído. Perdem-se com isso tra-ços de nossa herança indígena e afro-americana, em de-trimento de manifestações religiosas importadas dos Estados Unidos. Sem querer dizer qual religião seria me-lhor, o fato é que isso indica uma diminuição da diversi-dade religiosa e uma desvinculação da religião das raízes culturais brasileiras. Por outro lado, mantém-se e acen-tua-se uma característica já presente na umbanda, a ên-fase no enfrentamento do mal e a consequente resolu-ção de problemas imediatos dos aderentes. Dadas as dificuldades econômicas e sociais por que passa a maio-

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ria da população brasileira, não é de admirar que tal ên-fase tenha êxito.

Outro movimento religioso que lida com a interven-ção dos espíritos em nosso favor, de caráter mediúnico como a umbanda e o candomblé, é o espiritismo (ainda que muitos espíritas não o vejam como uma religião), que continua tendo uma participação expressiva no pa-norama religioso brasileiro, em particular no estado de São Paulo. Ao se falar das religiões orientais, por outro lado, destaca-se a visibilidade que têm recebido nos últi-mos trinta anos e a receptividade alcançada perante a população, seja ela crente ou não. Isso tem resultado em um aumento significativo no número de adeptos, apesar do caráter não missionário dessas religiões. Em geral de origem étnica, e tendo vindo com os imigrantes de países do Extremo Oriente, essas religiões (em especial o bu-dismo) também se adaptam às características e aos ade-rentes locais, como destaca Frank Usarski (ver SugeS-

tõeS de Leitura).É preciso ressaltar, por fim, o impacto dos Novos Mo-

vimentos Religiosos, principalmente na classe média. Essa difusa constelação de crenças, ritos e associações sugere um estado de espírito característico dos “errantes do novo milênio”, como seus seguidores são por vezes ca-racterizados. São pessoas que sentem que as religiões tra-dicionais não lhes proporcionam mais uma alternativa de inserção social e conforto espiritual. Individualistas e ao mesmo tempo tribais, sequiosos de gratificação ime-diata, sem outros pontos de referência a não ser o merca-do e o trabalho, sem história, tradição ou autoridade, valorizam uma religiosidade difusa e algo elitista. Os no-mes e tendências se multiplicam: Nova Era, esoterismo, misticismo, autoajuda. Elas sequer aparecem claramente

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no censo; revelam, no entanto, muito daquilo que por vezes se chama de “pós-modernidade” no âmbito religio-so. Paulo Coelho não seria um fenômeno brasileiro e mundial se não ecoasse o espírito da época.

Pode-se inferir destes dados que o perfil religioso bra-sileiro reflete o caleidoscópio cultural de nossa terra, com sua herança diversificada e a abertura para o novo e para o plural. Uma conclusão tentadora é que, então, a religião nada mais seria que o reflexo dos padrões cultu-rais em que se insere, uma forma cultural entre outras. Além do perfil religioso, tanto a secularização de nossa sociedade quanto nossa forma de religião civil reafirmam o nexo íntimo entre religião e cultura. Mas tais caracte-rísticas, mesmo que acompanhem a diversidade religio-sa, possuem um caráter mais universal e duradouro, nãopodem ser reduzidas a meros reflexos de uma cultura.São, de certa forma, movimentos necessários na dinâmi-ca de uma religião que se torna “civilizada”. É necessá-rio, portanto, procurar compreender mais profundamen-te essa questão. Nos capítulos que se seguem, vamosretraçar um pouco da história do entendimento modernoda religião, que levou não só ao atual perfil religioso bra-sileiro como também marcou fortemente a maneiracomo os dados do IBGE foram analisados. Veremos quea religião, sem deixar de refletir a cultura na qual estámergulhada, tem que ser pensada em outros termos quenão o cultural.

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2 o homem projeta-se para o mundo: deuses, rituais e religiões

Um panorama histórico da atitude moderna e da ideia de projeção

O termo “religião” possui uma longa história, cheia de percalços, quanto à etimologia e ao emprego (por exem-plo, o que constituiria uma verdadeira religião), da qual vamos registrar apenas alguns aspectos.

Com o advento da cristandade, somente o cristianis-mo – e, em escala menor, o judaísmo e o islamismo – passou a ser considerado “religião”, constituído a partir de uma revelação fidedigna. As outras eram considera-das falsas religiões, superstições ou aproximações imper-feitas da verdadeira. Durante toda a Idade Média, parce-la significativa da formação e da afirmação da Europa constituiu-se sob a égide dessa noção. Com o advento da Reforma e, mais tarde, da modernidade, o termo sofreu uma leve inflexão de significado, passando a dar ênfase ao lado individual e moral da religião, subentendendo-se esta, ainda, como o cristianismo.

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Uma modificação importante ocorreu por volta de século XVIII. Em razão do contato com diferentes reli-giões por conta da expansão colonial, e do aumento do ceticismo em relação à tradição, dois movimentos com-plementares se acentuaram: em primeiro lugar, o ques-tionamento do uso do termo no singular; em segundo, a negação de que a religião fosse produto da revelação de um Deus ou que fosse algo natural e benéfico ao ser humano.

O primeiro movimento diz respeito à pluralidade das religiões, relativizando, consequentemente, o poder nor-mativo do cristianismo. A expansão colonial trouxe evi-dências concretas de que todas as religiões estrangeiras, fossem elas “primitivas” ou ligadas a civilizações milena-res, possuíam o mesmo grau de verdade e positividade (ou até mais) que o cristianismo. Respeitando-se as dife-renças culturais, todas podiam reivindicar igualmente sua validade; assim, a questão da religião passa a ser uma questão de opção e de inserção social. Estavam lançadas as sementes do relativismo cultural.

Em segundo lugar, passou-se a questionar o próprio fato de haver uma revelação divina. David Hume (1711-1776), o grande cético escocês, escreve uma pequena mas notável obra chamada História natural da religião. Hume faz uma seleção de textos de autores greco-roma-nos e de contemporâneos seus para atribuir à religião (e, consequentemente, às religiões) uma origem inteiramen-te humana. Retoma também o tema das divindades como projeção da inquietação humana, em termos de medo e desejo (exploraremos este ponto mais adiante). Em suma, a religião era algo perfeitamente superável por um espíri-to humano ilustrado e objetivo. A ideia de um mundo sem religião começava a ser justificada racionalmente.

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Sem dúvida, várias outras histórias da religião pode-riam ser contadas, mesmo no seio da Europa. As reli giões populares, por exemplo, seguem sua própria dinâmica, não se importando com as discussões dos eruditos. Mas esses dois movimentos tiveram um impacto profundo e duradouro, tanto na vivência religiosa como em seu estu-do. Um exemplo dessa tendência está na proposta de Feuerbach.

Ludwig Feuerbach (1804-1872) foi discípulo de He-gel. Após a morte deste em 1831, criticou o mestre em razão do excessivo racionalismo em detrimento da expe-riência. Propôs, então, em sua mais famosa obra, A es-sência do cristianismo, que não cabe aos teólogos cuidar da religião, simplesmente porque o objeto de seus estu-dos não está onde eles supõem que esteja: o próprio Deus. A religião, para Feuerbach, não é uma janela pela qual observamos as entidades que nos configuram e nos sustêm, mas um espelho no qual vislumbramos o que há de melhor em nós.

A primeira parte da obra, portanto, é dedicada tanto a questionar as interpretações tradicionais quanto a apre-sentar o lado positivo do processo de projeção. Esse pro-cesso significa que tendemos a projetar em entidades que estariam fora de nós aquilo que nos é mais íntimo e precioso. Uma vez feita essa projeção, as tais supostas entidades adquirem um peso de realidade maior que tudo o que experimentamos, passando a guiar nossa exis-tência. Trata-se de uma alienação (termo que logo em seguida seria apropriado por Marx, no plano econômi - co) da consciência que mantém o indivíduo em estado de constante subordinação. O outro lado da moeda é mais positivo: uma vez que o ser humano tome consciên-cia de sua alienação, descarte as explicações teológicas e

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passe a ver na religião um reflexo do que há de melhor em si, então a própria religião poderá ser salvaguardada como um instrumento ótimo de promoção humana.

A segunda parte da obra de Feuerbach é uma apli-cação desse método a aspectos tradicionais do cristia-nismo, elementos da fé cristã e dimensões da existên-cia religiosa como a vivência dos sacramentos. Todos esses elementos são novamente explicados por ele, en-tão, em termos de nossa constituição humana, nossos desejos e nossa percepção da vitalidade e da bondade da natureza.

O desenvolvimento dessa ideia de projeção teve um grande impacto nas décadas posteriores sobre as noções religiosas. Dois dos principais pensadores que adotaram perspectivas semelhantes à de Feuerbach, só que com uma atitude radical de suspeita em relação ao objeto de estudo, foram Karl Marx (1818-1883) e Sigmund Freud (1856-1939). Ambos se distanciaram de Feuerbach ao discordarem de que a religião fosse conatural ao homem, vendo-a mais em termos de projeção e alienação. Marx entendeu-a como reflexo invertido e justificativa de um sistema de produção que expropria dos trabalhadores o produto de seu trabalho, enquanto Freud viu-a como manifestação neurótica de práticas universais. Voltare-mos a eles no Capítulo 4.

Nenhum dos dois, entretanto, pesquisou sistemati-camente o modo como as religiões se entrelaçavam com as culturas que as abrigavam, talvez porque tivessem uma atitude normativa demais em relação à religião. Essa tarefa foi assumida pelas então nascentes Antropo-logia e Ciência da Religião. Trataremos um pouco mais dessas ciências no Capítulo 3; examinemos agora suas bases.

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Perguntas básicas para se entender a religião

Podemos inferir das páginas precedentes que o avanço do conhecimento sobre as religiões pode ser traduzido em perguntas sobre a origem da religião, sua função, sentido e verdade. Vamos explicar rapidamente o signifi-cado delas.

Quanto à origem da religião – uma vez que a hipótese de uma revelação divina foi gradualmente sendo excluí - da –, coloca-se a questão do que a causaria. Essa preocu-pação está na base da maioria das teorias sobre a religião, que buscam para ela causas naturais – seja no âmbito da natureza animal do homem, seja em virtude de interesses e ações, conscientes ou inconscientes, dos seres huma-nos enquanto agentes dotados de vontade. Para Hume, como vimos, a origem da religião está no medo e na espe-rança (desejo) do homem enquanto espécie. De acordo com essa concepção, quanto mais primitivo, mais o ho-mem expressará tais emoções, projetando-as em entida-des e forças imaginárias que ao mesmo tempo o apavo-ram e o reconfortam. A visão dos povos primitivos como brutos supersticiosos, medrosos e violentos, enquanto o homem ocidental seria equilibrado, sereno e cético, de há muito desapareceu dos círculos acadêmicos, mas ain-da persiste no imaginário popular – basta ver muitos fil-mes de Hollywood sobre a África ou a América Latina.

Hoje sabemos que, do ponto de vista antropológico, todos nós, “primitivos” ou herdeiros da civilização euro-peia, estamos igualmente distantes de algo abstrato que seria “o ser humano”. Sem descartar o medo e o desejo, os pesquisadores procuram atribuir causas mais sutis para a origem da religião. Acrescente-se, por exemplo, o ritual – a necessidade inconsciente, enraizada em nosso

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passado animal, de movimentos repetitivos, danças, can-tos e súplica, que têm seu significado amplificado quan-do se conectam a um mundo invisível, e, no entanto, fundamental para o nosso destino.

Também se desenvolveram teorias sobre a função da religião para os seres humanos, ou seja, para que serve ela. Tais teorias, muito comuns desde o século XIX, são denominadas “funcionalistas”. A resposta tradicional, “para a salvação dos homens”, já havia sido gradualmente desqualificada. Desenvolveram-se novas respostas por in-termédio de estudos de campo e considerações compara-tivas. Para os indivíduos, equilíbrio psicológico para além das possibilidades cotidianas. Para os grupos, coesão e fonte de coerção moral. Para as culturas, ligação entre seus elementos materiais e espirituais, fornecendo-lhes uma justificativa para suas origens e um sentido.

Com respeito ao sentido (ou seja, por que se vive a re-ligião), a resposta tradicional, dentro de um esquema mi-cromacrocosmo, também já foi superada. Há duas aproxi-mações comuns hoje: a primeira, adotada pelos aderentes das religiões ocidentais, procura explorar o “sentido da vida” e associá-lo à intenção básica das religiões. Como se assume que Deus já não se revela aos homens, inverte-se a iniciativa do diálogo, colocando-a no homem: traçam-se paralelos entre a busca do sentido da vida e a busca de Deus. Com a disseminação do existencialismo ao longo do século XX, essa associação ganhou maior destaque ainda. A segunda aproximação é mais própria à objetividade aca-dêmica. Pergunta-se, por exemplo, aos fiéis como eles per-cebem o significado daquilo que diz respeito às suas práti-cas religiosas: crenças, rituais, símbolos. Ou, do ponto de vista do pesquisador, como entender tais práticas dentro de um contexto psicossociocultural mais amplo.

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Supondo que a religião de fato tenha (e forneça) sen-tido para os grupos culturais e para a humanidade em geral, a pergunta seguinte diz respeito à verdade da(s) religião(ões). Outrora, a verdade das crenças, dos precei-tos e das escrituras era dada pela forma da revelação, pelo cumprimento de profecias, pela realização de milagres etc. Hoje, essas evidências não são mais consen suais. Além disso, muitas pessoas sustentam que todas as reli-giões são igualmente verdadeiras (na medida em que se-jam “boas” religiões), ou, ainda, que a questão da verdade é completamente irrelevante para se entender o fenôme-no religioso. Entenda-se por “verdade” três coisas: pri-meiro, a mais óbvia, se as entidades a que as religiões se referem realmente existem. A maioria dos cientistas pre-fere não discutir esta questão. Em seguida, caso se admi-ta que existem agentes extranaturais que interagem com a natureza e o homem, qual seria a religião que melhor os expressam. Esta é uma questão de interesse prático, im-portante para o diálogo inter-religioso. Finalmente, volta-mos a Feuerbach: estudar a religião sugere alguma verda-de sobre o homem e a natureza? Em geral, esta é a questão que ocupa a mente de muitos pesquisadores, que a dissociam da primeira concepção de verdade.

elementos fundamentais de uma religião

Após esta breve visão das principais questões acerca da religião que são levantadas pelo homem moderno, pode-mos retornar à pergunta: mas, afinal de contas, o que é religião? Como identificá-la em meio às outras expres-sões do humano que também possuem uma função, dão sentido às nossas atividades e falam da verdade do ho-

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mem? Estas questões são objeto de intensos debates en-tre os pesquisadores, na esteira do espírito crítico que tirou as certezas sobre a religião (ainda que não sobre qual seria a verdadeira) que a consciência ocidental pos-suía. Partindo do sentido comum que se atribui ao termo (se este não existisse, seria impossível fazer uma pesqui-sa como a do IBGE), podemos começar por uma tarefa mais simples: descrever alguns dos traços que ajudam a constituir uma religião.

O primeiro elemento que certamente nos vem à men-te é “deus” (vamos usar a palavra com d minúsculo para ampliar seu significado, apesar de ela ser usada pela maioria dos brasileiros na forma tradicional), que parece ser o elemento central de toda religião. Na maioria delas, incluindo as não letradas, admite-se a existência de uma ou mais entidades que estão na origem e na base de tudo o que se vê. Mesmo que essa crença seja objeto de con-trovérsia para algumas religiões (como é o caso do budis-mo), não nega o fato de que o ser humano se interrogasempre sobre a origem de tudo, inclusive do mal, sobreo fundamento e o sentido de suas ações, e sobre se opós-morte apresenta ou não algo além daquilo que se vê.É o que um estudioso anglo-alemão, Paul Tillich (1886-1965), chamou de ultimate concern (algo como “dedica-ção última”) – uma busca e uma adesão àquilo que estáalém de todas as barreiras do tempo e do espaço, dosnossos condicionamentos e contingências.

Há que se perguntar qual seria a distinção entre reli-gião e magia, na medida em que esta última também lida com entidades e forças ocultas e poderosas. No passado faziam-se distinções rígidas, atribuindo à religião um pa-pel benigno e reverente, e à magia um aspecto perverso, manipulador, supersticioso. Hoje essas fronteiras já estão

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mais diluídas na mente daqueles que discutem o assun-to. Partindo da premissa de que a maioria das religiões supõe algum elemento de contato com as realidades últi-mas por meio de símbolos, encantações e gestos, o fato é que toda religião contém elementos mágicos: a oração e a súplica não deixam de ser pequenas formas de intervir no curso dos acontecimentos, além dos rituais indivi duais e coletivos que associamos às religiões. Mesmo as práti-cas meditativas, os mantras e o esvaziamento das pertur-bações da consciência não deixam de possuir resíduos mágicos: a administração, a nosso favor, de uma força ex-trassensorial e determinante no fluir da existência.

O termo misticismo é sempre associado às religiões, ainda que seja objeto de muita confusão. Significa, por exemplo, tudo que está envolvido nas práticas meditati-vas que procuram a paz da consciência e a integração dos indivíduos com a divindade ou a totalidade. Também pode significar o entendimento de experiências místicas, de integração coma divindade e sua recepção, em geral restritas somente a alguns seres humanos. Aí também po-dem ser incluídas as experiências xamânicas dos povos indígenas ou originários da Sibéria, da Austrália e de ou-tras culturas. Baseiam-se também no fato de que, como o mundo das divindades não é o mesmo das experiências cotidianas, nossos sentidos não bastam, e a comunicação com esse mundo requer estados alterados de consciência (nesse sentido, chamar de “místicos” as pessoas que pra-ticam artes divinatórias como búzios, tarô etc., não é muito apropriado). Outra via de apropriação desse mun-do é a dos símbolos, que comentaremos a seguir.

Falamos também de rituais: a observância escrupulo-sa de certos gestos e palavras, individuais e coletivos, cujo sentido imediato não captamos, mas que são necessários

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para que estabeleça uma conexão entre o nosso mundo (por vezes chamado de profano) e um outro (no caso, chamado de sagrado) que guia nossos destinos. Entre os diversos rituais existentes, a liturgia católica é o exemplo mais conhecido, embora muita gente conteste hoje sua validade. Compensação psicológica? Resíduo substituí-vel de práticas ancestrais? Manifestações culturais, váli-das por seu aspecto estético e prazeroso? Ainda que estes fatores estejam presentes, não parecem apontar para o essencial. Sugerimos no Capítulo 1 que no âmbito do pro-fano, fora dos templos e dos dias santos, também há ri-tuais com características semelhantes, configurando por vezes o que chamamos de religião civil.

Que função tem o ritual? Esta questão é bem estuda-da pelos pesquisadores. Ao serem realizados, os rituais remetem-nos à origem das coisas, para além de qualquer passado, para aquilo que auxilia a constituir a identidade de um grupo e que não pode ser esquecido. Assim, de certa forma a religião é conservadora, pois se encarrega de manter sempre presente a lembrança dos aconteci-mentos cruciais (míticos ou históricos), auxiliando o gru-po a estabelecer suas instituições e ações. Isto não exclui que os revolucionários de todos os matizes também te-nham seus rituais, mas estes não deixam de servir para manter o grupo unido. Os rituais são também formas de súplica, expiação da culpa e agradecimento em face do que é mais poderoso que nós. Por fim, os rituais sugerem a possibilidade de um repouso seguro e definitivo, diante das incertezas e agruras da existência.

Há uma característica do ritual que merece desta-que: muitos deles envolvem sacrifícios. “Sacrifício” é uma palavra vinda do latim que significa “fazer (tornar) sagrado”. O sujeito a ser sacrificado (tanto faz se anima-

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do ou inanimado – mesmo os objetos só são dignos de sacrifício enquanto símbolos da relação subjetiva ho-mem-divindade) é separado do cotidiano e, dentro do ritual, é oferecido (muitas vezes imolado) aos deuses como a parte nobre do ritual. Esse elemento sacrificial é um dos mais importantes da religião, mas também o mais difícil de ser aceito pela mentalidade moderna: René Girard (1923- ), um acadêmico contemporâneo, desenvolveu toda uma teoria que mostra o lado inumano do sacrifício e como sua superação é desejável. Veremos mais a respeito disso quando falarmos de Freud e da re-ligião no Capítulo 4.

Outro aspecto importante da religião de que falamos é o mito. Ele é geralmente o elemento narrativo dentro do ritual. Sua lógica é diferente da lógica dos relatos existentes dentro das limitações do nosso mundo. Dife-rentemente destes, eles falam da origem do cosmos, dos deuses e da humanidade, dos valores fundamentais, das hierarquias e dos destinos. Os psicólogos (principalmen-te os seguidores de Carl Jung [1875-1961] e do mitólogo Joseph Campbell [1904-1987]) relacionam esses mitos com nosso inconsciente pessoal e coletivo, nossos so-nhos e símbolos fundamentais.

Os mitos também contém símbolos, sinais visíveis de um mundo invisível. Trata-se de objetos, obras artísticas, livros e palavras que são retirados do cotidiano para nos conduzir ao mundo dos deuses e permitir que o culto que lhes prestamos seja mais concreto e eficaz. Ligados à linguagem e às representações, os símbolos são o que há de mais primitivo e duradouro no humano. Daí por-que a destruição de símbolos ser considerada uma ofen-sa grave, um sacrilégio, algo que certamente é uma afronta às forças celestes. Mas não há como evitar esse

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sacrifício na cultura asteca

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elemento prometeico nos homens – se os símbolos são reflexo do divino, nós também somos... e desejamos rei-vindicar nossa parte.

Por fim, podemos citar aquilo que primeiro nos vem à mente quando falamos de religião, seus valores e nor-mas: sua ética. Ao contrário do que muitas vezes parece, as normas derivam-se dos outros elementos da religião, mesmo quando, como no caso do budismo, o ritual te-nha uma importância menor. Nos últimos séculos, den-tro de um espírito de tolerância, a essência da religião foi definida em termos éticos como a “regra de ouro”: “Amarás teu próximo como a ti mesmo” (Levítico 19:18, e Mateus 19: 19). Não há dúvida de que preferimos fi-car com esta regra do que com os sacrifícios menciona-dos acima, mas, para os estudiosos da religião, estes vêm antes que aquela. Mesmo assim, não queremos desmerecer a contribuição das religiões, ao longo da história, para a formação de valores que auxiliam a cons-truir o humano.

Portanto, qualquer que seja nossa compreensão final da religião, ela reflete algo de básico e de íntimo no ho-mem: seus desejos, angústias, criatividade, inteligência e propósito. Os deuses, de certa forma, são um projeto do homem. O quadro a seguir, de um renomado pesqui-sador, procura indicar quais são as principais formas de entendimento (tanto por parte dos fiéis como dos inves-tigadores) da religião.

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cenários de origem dA religião

A maioria dos relatos das origens da religião enfatizam uma das seguintes sugestões: a mente humana necessita de explicações, o coração humano busca conforto, a sociedade humana requer ordem e o intelecto humano é inclinado a ilusões. para expressar isto de modo mais detalhado, aqui vão alguns cenários:

A religião fornece explicações:

As pessoas criaram a religião para explicar fenômenos natu-rais intrigantes.

A religião também explica experiências intrigantes: sonhos, presciência etc.

A religião explica a origem das coisas. A religião explica por que o mal e o sofrimento existem.

A religião provê conforto:

As explicações religiosas tornam a morte mais suportável. A religião alivia a ansiedade e provê um mundo mais con-

fortável.

A religião assegura a ordem social:

A religião mantém a sociedade unida. A religião perpetua uma determinada ordem social. A religião dá suporte à moralidade.

A religião é uma ilusão cognitiva:

As pessoas são supersticiosas e acreditarão em qualquer coisa.

os conceitos religiosos são irrefutáveis.

refutar é mais difícil do que crer.

BOYER, Pascal. Religion Explained. New York: Basic Books, 2001. p. 5.

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3 fantasias evolucionistas: o homem ocidental e seu deus

O Deus judaico-cristão reflete-se no projeto do homem ocidental, tendo sido concebido na Europa e proposto (muitas vezes à força) a outros povos, expandindo-se ao que se convencionou chamar de “novo mundo”. Sua re-velação, ligada à Bíblia e comentada ao longo dos sécu-los, fez triunfar uma concepção linear do tempo e da história (muitas religiões adotam uma concepção cíclica do tempo) na qual as ações humanas auxiliam a cons-truir um mundo futuro livre das limitações e males que nos perturbam.

Entre as doutrinas desenvolvidas com base nessa reve-lação, salientamos aqui a da providência: a percepção de que Deus fornece aos seres humanos aquilo de que neces-sitam para que o bem, a verdade e a justiça triunfem no final.3 Ela expressa que o mundo criado não foi abandona-do à própria sorte; há um envolvimento contínuo de Deus

3 Isso está expresso por vários provérbios da sabedoria popular: “Há males que vêm para o bem”, “Deus escreve certo por linhas tortas”, “Deus ajuda a quem cedo madruga”.

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com sua criação, ainda que de maneira invisível e por vezes contraditória, transformando as ações humanas em instru-mentos de sua vontade. A sequência dos livros bíblicos, do Gênesis ao Apocalipse, reflete, no nosso imaginário, tanto a ação dessa providência quanto seu progresso: a história da salvação é uma história cheia de percalços, mas com um começo, um meio e um fim bem determinados.

Essa doutrina conheceu uma progressiva secularização com a chamada revolução científica do século XVII: asso-ciou-se à providência divina tanto o fazer científico como o funcionamento da natureza por ele revelado (e a conse-quente aplicação tecnológica), que estariam voltados para uma contínua expansão do conhecimento e da realização do Reino de Deus na Terra. A partir do século XVIII come-çou a surgir gradualmente outra derivação da mesma dou-trina: a percepção de que todo conhecimento e todo enge-nho conduziam a um inevitável progresso da humanidade.

De maneira um pouco independente, surgiu também, a partir do final do século XVIII, uma nova concepção no panorama das ideias: a da evolução. Ela foi fruto de um intenso estudo das formações geológicas, dos fósseis e das espécies vegetais e animais que fez recuar o tempo geológico para um passado muito distante e que sugeriu que as espécies haviam evoluído a partir de ancestrais co-muns e mais simples. Hoje se sabe que, mais que uma “evolução”, temos na verdade “mutações ao acaso”, ou seja, não necessariamente vai-se do mais simples ao mais complexo em termos de organismos, e nem sempre o mais simples é também o “pior”. Mas, naquela época, as evi-dências eram claramente evolucionistas. Associe-se a isso a ideia de progresso e ver-se-á que durante todo o século seguinte esta última ganhou uma base natural: a ideia de que o progresso inevitável da humanidade nada mais seria

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do que uma extensão do progresso da natureza, e, de certa forma, retomaria este último a partir do presente.

Tais ideias evolutivas foram objeto de muitas disputas, tanto em termos científicos quanto religiosos, por falta de uma boa teoria que as justificasse. Foi só a partir de 1859 que Charles Darwin (1809-1882) descreveu a evolução das espécies pelo mecanismo de seleção natural, que sig-nificou o surgimento gradual de uma teoria segura que permitia resolver de modo satisfatório as principais dis-putas, em especial se os processos naturais teriam ou não uma finalidade. Na Inglaterra dos séculos anteriores, uma disciplina chamada “teologia natural” foi muito po-pular nos círculos científicos. Seu objetivo era descrever como os intricados mecanismos da natureza refletiriam um plano ou desígnio divinos. Assim, o pensamento da época era eminentemente teleológico (do grego telos, “fim”, “propósito”), indicando que a evolução possuía uma finalidade intrínseca. O próprio Darwin começou como um progressivista, mas foi aos poucos adotando uma posição mais cautelosa sobre a vinculação entre sua teoria e as ideologias de afirmação do homem ocidental (para conhecer um pouco mais desta história, ver nas Su-

geStõeS BiBLiográficaS o livro de Michael Rose).Entretanto, Darwin estava um pouco isolado no am-

biente da época: a maioria de seus contemporâneos as-sumiu uma interpretação progressivista da evolução das espécies. Ela foi usada como uma metáfora “desenvolvi-mentista” da leitura e da condução das coisas humanas (política, economia e cultura). Podemos citar o darwinis-mo social de Herbert Spencer (1820-1903), a eugenia de Galton (1822-1911), e o romantismo de Ernst Hae-ckel (1834-1919). Este último desenvolveu o lado mais especulativo do darwinismo, unindo ciência e religião

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em um monismo panteísta, fazendo da evolução uma teoria de suporte para uma religião autêntica em que questões como imortalidade da alma, liberdade humana e Deus finalmente encontrariam uma resposta segura. Assim como Feuerbach, ele entendeu estas três ques-tões como advindas do humano, não do divino.

Foi sobre esse pano de fundo que os estudos mais sistemáticos da religião surgiram na segunda metade do século XIX. Eles vieram basicamente em duas vertentes: a Ciência da Religião alemã (Religionswissenschaft), à qual Max Muller (1823-1900) está associado como fun-dador; e a mais conhecida, a Antropologia, com ilustres representantes como Lewis H. Morgan (1818-1881), Edward B. Tylor (1832-1917) e James G. Frazer (1854-1941). Retomaremos estes desdobramentos no Capítu - lo 5. Cabe destacar, por ora, o viés evolucionista de mui-tos desses novos estudos, antecipando um pouco da discussão que virá em seguida.

Antes de prosseguir, mencionemos ainda uma outra fonte da ideia de progresso, também trabalhada ao longo do século XVIII: a “lei dos três estados”. Ela está associa-da à ideia de que a humanidade teria passado, e deveria necessariamente passar, por três estágios da consciên-cia: o mítico-teológico, dos povos primitivos que criam histórias para explicar o mundo; o metafísico, em que a realidade da natureza seria explicada por dedução a par-tir de primeiros princípios; e, por fim, o positivo, tornado possível pelas ciências empíricas, que estabeleceriam em definitivo o domínio do homem sobre sua consciên-cia e sobre a natureza. Na verdade, o termo “positivo” (de posto, dado) aparece já no século XIX, sob a inspira-ção de Augusto Comte (1798-1857). Ele foi o fundador do “positivismo”, movimento de múltiplas facetas, inclu-

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sive a religiosa, que foi muito influente no Brasil na pas-sagem do século XIX ao XX. Foi Comte quem deu uma forma final a esta “lei”, incentivando assim a gestação de uma cultura científica.

Esse esquema estava presente na pesquisa e na obra de muitos dos primeiros estudiosos da religião. É o caso, por exemplo, de James Frazer, que redigiu ao longo dos anos uma extensa coleção extremamente influente inti-tulada O ramo de ouro. Esta obra é resultado de uma vasta investigação comparativa da história do mito, da religião e de outras “crenças exóticas”, com exemplos ti-rados de todas as partes do mundo. Ele elaborou essa história como uma variante da lei dos três estados: um estágio “mágico” na evolução cultural é substituído por um estágio religioso, que por fim dá lugar ao estágio científico. Embora preocupado em fazer um levanta-mento exaustivo dos mitos, ele considerava que a mágica (ver o Capítulo 2) repousava sobre um entendimento completamente errôneo da natureza – ao contrário da ciência moderna. O que Frazer mais destacou na religião foi que esta, ao contrário da mágica, não visa a manipu-lar a natureza, mas sim suplicar os favores dos deuses.

O resultado prático de muitas dessas pesquisas foi atribuir uma base empírica e racional à antiga ideia de que as religiões monoteístas do livro – judaísmo, isla-mismo e cristianismo, de maneira especial este último – situavam-se no final de uma longa linhagem progres-sivista de religiões, como a maneira civilizada de se vi-ver religiosamente. Assim sendo, a verdade do cristia-nismo passou a ser justificada não mais com base emuma revelação e em milagres, mas pela base racional (o“terceiro estágio”) do comportamento ético e civilizadoque é permitido por ela.

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É um entendimento basicamente normativo. Em pri-meiro lugar, o cristianismo (ou algo associado a ele) é visto como consequência inevitável do desenvolvimento das religiões; assim, se estas quisessem ser aceitas pelo Ocidente, deveriam se conformar ao primeiro. Em se-gundo lugar, o próprio cristianismo deveria respeitar a lei da evolução, livrando-se assim de sua carga primitiva de rituais, crenças, superstições, imagens e, principalmen-te, instituições de autoridade supostamente divina (o clero e as igrejas).

Esse entendimento também era adequado ao pro-cesso de expansão colonial que se acelerava na África e no Oriente. Por suas associações intelectuais e históri-cas, portanto, o evolucionismo marcou de maneira mui-to forte a maneira como o Ocidente via a religião, sendo questionado fortemente só a partir da Primeira Guerra Mundial. Uma nova postura, então, ganha força, o con-textualismo, que veremos no Capítulo 5. Primeiramen-te, contudo, vamos retomar uma forma de explicar a re-ligião que, na prática, a dissolve em elementos que teriam uma importância maior.

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4 o ser alienado: os “mestres da suspeita” e a possibilidade de um homem irreligioso

O mesmo movimento que deu impulso ao conceito de evolução, associado também à expansão do cristianismo, ironicamente suscitou, nos círculos ilustrados europeus, a possibilidade da irreligiosidade (ausência de religião e de sentimento religioso) em larga escala, e, como vimos no capítulo anterior, uma justificativa teórica e empirica-mente plausível para tal. Dentre os que deram tais justi-ficativas, em termos originais e duradouros, estavam os “mestres da suspeita” do fim do século XIX e início do século XX: Marx, Nietzsche (1844-1900) e Freud.

Tal denominação ganhou popularidade com o filósofo francês Paul Ricoeur (1913- ), e sua reflexão sobre o pro-cesso contemporâneo de interpretação de textos e even-tos. Trata-se de pensadores que não apenas estabelece-ram uma crítica à religião, como também a viram como uma doença, tanto do indivíduo como da humanidade. Mais que supérflua, a religiosidade seria, assim, alta-mente deletéria à autenticidade do humano. Retomemos o pensamento de dois deles: Marx e Freud.

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Marx, como já vimos, retomou a ideia de projeção de Feuerbach, só que invertendo-a: os referentes da reli-gião ainda seriam apenas o espelho da interioridade hu-mana, mas agora revelavam sua miséria econômico-so-cial. Tendo lido os mestres ingleses da economia política, e constatado de perto os subprodutos da ainda então nascente Revolução Industrial, ele percebeu que a alie-nação do homem não se dava principalmente em relação aos produtos de sua consciência, mas mais propriamen-te no nível da estrutura econômica da sociedade. A alie-nação reflete a apropriação do produto dos esforços dos trabalhadores (que Marx chamava de “proletariado”) pe-los grupos que detêm os meios econômicos de produ-ção: industriais, banqueiros e comerciantes. A alienação da consciência seria decorrente dessa alienação estrutu-ral e objetiva.

A religião entraria como consolo e bálsamo de uma si-tua ção da qual o proletariado não poderia sair. Essa supos-ta impossibilidade é também reforçada pela ideologia: má ximas e argumentos da classe dominante que inver-tem a realidade e apresentam a alienação econômica co-mo algo natural e desejado por Deus. Como se tratava da von tade de Deus, nada mais restaria senão se conformar.

A imensa produção de Marx e sua postura de revolu-cionário deixaram uma impressão duradoura em todos que mostram indignação ética com o destino das classes subalternas, principalmente nos países capitalistas emer-gentes. Movimentos sociais como o MST brasileiro as-sumem essas ideias como norteadoras de suas ativida-des, e, curiosamente, alguns setores de igrejas cristãs são os que mais os incentivam. Esta é uma prova da ambiva-lência de todo processo religioso: ao mesmo tempo que expressa a alienação humana – e é justamente denuncia-

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do por isso – também apresenta motivos de fundo e energia para sua superação.

Se acompanharmos a lei dos três estados, tal supera-ção é inconcebível, e, se ocorresse, seria só aparência. Em termos de um pensamento “de esquerda”, a volta ao religioso ou seria ingênua ou mascararia interesses do sistema capitalista. Lembrando, entretanto, que a ciên-cia marxista estava também calcada na dialética hegelia-na, pode-se supor que a religião acompanhe a superação do estado de coisas que primeiramente a causou. Basta não interromper a dialética em algum momento ou situa-ção historicamente determinados – mas aí entramos no terreno das hipóteses.

O segundo personagem que merece destaque em nossa história é Sigmund Freud. Dispensa apresenta-ções, dada a disseminação da psicanálise (por ele funda-da) pelo mundo afora. Menos conhecida é sua postura em relação à religião. À semelhança de Marx, ele perce-be que ela “esconde” alguma coisa da psique humana. Ocorre também aí uma alienação da consciência, subor-dinada a algo mais profundo. À semelhança de Marx e de Feuerbach, a religião apresenta-se como um espelho no qual se reflete algo do homem, reinterpretado como algo relacionado aos deuses. Para Freud, o que é refleti-do é o inconsciente humano, ainda alienado e depen-dente de figuras paternas.

Não se trataria apenas de uma patologia individual (ainda que ele tivesse partido delas), mas de algo que afetava a humanidade como um todo. De fato, a religião é uma constante ao longo da história, uma marca das culturas – inclusive a ocidental – que merece uma expli-cação mais global. Freud debruçou-se sobre dois compo-nentes da religião: as crenças e os cultos (rituais).

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No primeiro caso, Freud produziu uma extensa obra que aborda sobretudo o judaísmo e o cristianismo. No-tando o aspecto sacrificial dessas religiões, ligado a refei-ções (com os deuses como alimento principal) que auxi-liariam a manter o grupo unido, Freud adotou a hipótese da horda primitiva. Influenciado por antropólogos seus contemporâneos (inclusive Frazer, já mencionado), ele levantou a hipótese de que em tempos imemoriais, em uma horda primitiva de humanos, os filhos de um pai poderoso desejaram seu poder e sua posição de destaque, vindo por fim a assassiná-lo e a se alimentar dele, buscan-do com isso adquirir sua força. Paradoxalmente, os filhos expiaram a culpa cultuando o pai, atribuindo-lhe um sta-tus divino, e rememorando o assassinato por meio de re-feições cerimoniais nas quais o alimento seria o próprio Deus. Tendo consciência do processo, o homem poderia livrar-se da culpa e dispensar esse aspecto da religião.

Sobre o segundo caso, ele teve intuições geniais. Re-portando-se às suas experiências clínicas (corroboradas, aliás, pela etimologia da religião enquanto observação escrupulosa de gestos em rituais), Freud concluiu que a religião apresenta-se como uma forma de neurose obses-siva universal: uma re-construção (alienada) da realida-de, expressa também em gestos repetitivos, que pode ser encontrada em todas as épocas e culturas. Em uma obra influente, O futuro de uma ilusão, ele argumenta que a religião não é propriamente um erro, passível de corre-ção dentro da mesma forma de raciocínio, e sim uma ilusão: é fruto de um delírio da psique, que projeta na realidade fantasmas de seus próprios recalques. Para que esse tipo de delírio se tornasse aceitável no nível da consciência, portanto, seria preciso executar gestos re-petitivos (rituais obsessivos). Uma educação científica

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permitiria desmascarar a ilusão e aceitar a realidade, possibilitando a superação da neurose.

A explicação freudiana, evidentemente, é muito mais sutil, erudita e detalhada do que esta apresentação pode sugerir, mas sua contribuição original já pode ser vislum-brada: seja por meio de crenças ou de rituais, a religião expressa o recalque de elementos da consciência que são empurrados para o nosso inconsciente. O processo nunca é unilateral, manifestando-se por meio de sinto-mas que assumem formas religiosas, indicações de um desejo que não pode ser saciado. Como curar tais sinto-mas? Revelando (pela expansão do conhecimento cientí-fico, por exemplo) o conteúdo do inconsciente ao ho-mem, permitindo que ele viva assumindo sua realidade e seu destino na primeira pessoa.

Ao fornecer uma explicação plausível e natural para a origem da religião, Freud deu uma grande contribuição à maneira como as pessoas a encaravam. Quem quer que tivesse alguma suspeita dela, poderia adotar agora uma justificativa racional para sua recusa. Mas, ao falar dos elementos primitivos da religião e de sua superação, não seria esta uma forma de evolucionismo? Nem tanto: Freud não entendia o cristianismo como o ápice de uma longa trajetória em direção ao mundo civilizado, e via este último com grande suspeita. Dando eco a um tema muito difundido em meados do século XX, Freud tam-bém apontava para o “mal-estar da civilização” (título de um de seus livros). Como veremos no capítulo seguinte, ao longo do século XX esse viés pessimista conviveu com uma apreciação positiva de outra culturas, permitindo a ascensão do relativismo como visão de mundo.

A visão de Freud também teve um impacto profundo na maneira como os grupos mais intelectualizados inter-

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pretavam a religião. Viu-se, no interior da psicanálise, tanto uma radicalização da crítica freudiana – como em Wilhelm Reich (1897-1957) – como uma visão mais fa-vorável do religioso – por exemplo, em Erich Fromm (1900-1980) –, ou mesmo uma forma de sublimação dele (ver René Girard, citado no Capítulo 2). Associações com o marxismo (como por exemplo em Herbert Marcuse[1898-1979]) possibilitaram, por sua vez, uma dupla crí-tica de aspectos da alienação humana como a religião.Como uma reação à psicanálise, mas ainda dentro deuma análise sistemática do inconsciente, temos quedestacar a figura de Carl G. Jung, já mencionada ante-riormente. Ele abordou o religioso de uma forma comple-tamente diferente, destacando seu papel no desenvolvi-mento dos símbolos nas culturas e na formação doinconsciente coletivo dos grupos humanos. Tradições re-ligiosas, e mesmo os dogmas e símbolos do catolicismo,revelam, segundo o autor, profundas verdades do psiquis-mo humano. Seja por interiorizar a divindade, seja peloviés algo esotérico de suas obras da maturidade, a figurade Jung recebe hoje grande atenção, principalmente noseio dos Novos Movimentos Religiosos (Capítulo 1).

Em suma, nos últimos 150 anos foi-se muito além da crítica das superstições e dos estabelecimentos eclesiais. O que esteve em jogo, em parte com a contribuição dos “mestres da suspeita”, foi a própria validade da religião como elemento formador do humano. Explicada sua ori-gem e posta sob suspeita sua função, sua verdade e seu sentido ficam mais ligados à ilusão, às fantasias e aos falsos confortos, a serem substituídos pela verdade e pelo sentido de outras atividades humanas como a arte, a ética autônoma e a ciência. Mesmo que, como vere-mos no Capítulo 6, a religião tenha seu papel na cultura,

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não faltam hoje intelectuais que a rejeitam como respos-ta aos males contemporâneos, enfatizando, pelo contrá-rio, os caminhos éticos ou estéticos.

Como vimos no final, nem tudo foi suspeita. Além das menções a alguns pós-marxistas e pós-freudianos, des - ta quemos um outro movimento. Paralelamente (e, de mo-do paradoxal, às vezes simultaneamente) ao evolu cio - nis mo e às teorias de suspeita, outras interpretações da re li gião enfatizaram sua função, sobretudo em termos psi cos sociais. Dando continuidade ao que já indica mos no Capítulo 2, exporemos no próximo capítulo algumas das outras interpretações que evitam um julgamento de va lor e que veem a religião como forma de explicação do mundo e como mantenedora da ordem social.

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5 o homem e seu contexto cultural: a pluralidade religiosa destacada pelo

espírito do século xx

Com o colapso da cristandade enquanto sustentáculo da sociedade e portadora da verdade religiosa, o caminho estava aberto para outros tipos de atitude e pensamento: o que chamamos de “contextualismo”, e, de modo maisnegativo, de “relativismo”. Procuramos fornecer a seguiralguns dados históricos e algumas ideias básicas sobreessa corrente.

Afinal de contas, mesmo admitindo-se que a religião possa servir de consolo para os indivíduos e justificar as estruturas, é possível ver o outro lado da moeda. Fugin-do de situações ideais futuras e de visões utópicas do humano, pode-se entender a função da religião como basicamente positiva: os grupos sociais precisam da re-ligião como esteio do equilíbrio psíquico, como justi-ficativa e força aglutinadora para uma unidade constan-temente ameaçada por conflitos de interesse, tanto internos quanto externos. As disciplinas da Ciência da Re ligião e da Antropologia foram grandemente auxilia-das por esses pressupostos.

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Estas duas ciências, conforme vimos no Capítulo 2, beneficiaram-se das navegações e da expansão colonial europeia. Todo o esforço medieval de fortalecer e ex-pandir a cristandade, visto no capítulo anterior, possibi-litou, ironicamente, o conhecimento de novas religiões ou um outro olhar sobre religiões já conhecidas. O ter-mo “cultura” também passou mais e mais a ser entendi-do no plural: “culturas”. O questionamento da religião cristã, por outro lado, foi pouco a pouco dando margem à percepção da cultura ocidental como relativa, etno-cêntrica, circunscrita no tempo e no espaço, cada vez mais difícil de ser considerada superior às outras. Na esteira da expansão colonial, o próprio contato que os exploradores e cientistas europeus tiveram com diferen-tes povos e culturas contribuiu para desenvolver essa perspectiva relativista.

Foi a Ciência da Religião (também chamada de Histó-ria das Religiões) que, a partir da segunda metade do sé-culo XIX, desenvolveu um esforço comparativo e a busca de mecanismos comuns entre as religiões. Uma ciência mais descritiva e classificatória, elaborada nos gabinetes das universidades europeias e debruçada sobre os textos das grandes religiões, passou gradualmente a depender de trabalhos de campo mais sistemáticos. É aí que entra a Antropologia. Ainda que não se preocupasse prima-riamente com a religião, ela percebeu – por meio de um minucioso trabalho entre os membros de tribos exóticas – que a religião era um elemento essencial para a com-preensão das culturas. Foi o esforço do antropólogo FranzBoas (1858-1942), de origem alemã e posteriormente ra-dicado nos Estados Unidos, que mais contribuiu para oestudo das culturas em sua pluralidade. Ele foi influencia-do tanto por um respeitoso contato com diferentes grupos

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(evitando dar a eles o rótulo de “primitivos”) como por um senso de igualdade entre indivíduos e povos, questionan-do o conceito de raça, que daria tanta dor de cabeça na primeira metade do século XX. Pelo estudo das culturas, ele pôde contestar a noção de que alguns grupos étnicos fossem, por natureza, inferiores a outros, ou seja, qual-quer cultura que sobrevivesse ao teste do tempo poderia proporcionar iguais chances de realização humana.

Portanto, no contexto da disciplina chamada de An-tropologia Cultural, as religiões estão indissociavelmen-te ligadas a seus respectivos contextos. Nasce daí uma definição que se tornou clássica, expressa nos anos 60 do século XX por um antropólogo da linha de Boas, Clif-ford Geertz (1926-): “Uma religião é (1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer poderosas, pene-trantes e duradouras disposições e motivações nos ho-mens por meio da (3) formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e (4) vestindo essas concep-ções com tal aura de factualidade que (5) as disposições parecem singularmente realistas”.4

Muitos assumem-na hoje como sendo a definição de religião (mesmo que outros a critiquem), sendo que ain-da facilitaria os ideais modernos de tolerância e diálogo entre as religiões hoje existentes. Nela estão contempla-das algumas características básicas das religiões, confor-me mencionamos no Capítulo 2: símbolos, valores e nor-mas, crenças e divindades, subentendendo-se aí mitos e rituais. Acaba sendo uma perspectiva sobre o tema “reli-gião” que fornece elementos à visão dominante no Oci-dente – nos meios de comunicação, na escola, e mesmo na educação familiar.

4 GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. p. 104-5.

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o parlamento mundial das religiões (chicago, 1893) marca simbolicamente o diálogo inter-religioso, para o qual tanto a ciência da religião quanto a antropologia muito contribuíram.

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Com menos impacto no público em geral, mas igual-mente importantes em termos acadêmicos, os desenvol-vimentos da Ciência da Religião no século XX também merecem ser mencionados. Influenciados pelos esforços de delimitar a esfera das ciências humanas diante das ciências naturais no mundo germânico, figuras como Rudolph Otto (1869-1937) e Mircea Eliade (1907-1986) procuraram encontrar uma essência da religião por meio de temas básicos que podem ser encontrados por seu estudo comparado. Ela é entendida pelo indivíduo e por grupos situados no tempo e no espaço como experiência do sagrado. Vinculada a um esforço de promover um novo humanismo em um mundo pós-cristão, essa abor-dagem, que se diferenciou bastante daquela da Antropo-logia, celebra à sua maneira a diversidade religiosa no mundo contemporâneo. Seu grande problema, denun-ciado no final do século XX, é tornar a Ciência da Reli-gião algo imune às ciências empíricas, que abordam a temática de maneira mais objetiva.

Em suma, entender as religiões como sistemas cultu-rais permite relacioná-las com o contexto na qual são

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formuladas, e compará-las umas às outras sem que se estabeleçam julgamentos. As questões da função, do sentido e da verdade da religião são contempladas. Indo além das religiões ditas primitivas, pode-se entender me-lhor, por exemplo, o universo religioso brasileiro em sua pluralidade e funcionalidade. Também podem ser esta-belecidos paralelos com abordagens sociológicas aplica-das à religião, como as de Émile Durkheim (1858-1917) e Max Weber (1864-1920), o primeiro estando também vinculado à história da Antropologia. Em todos esses ca-sos, as estruturas sociais são explicadas em seus próprios termos, sem referência a entidades ou princípios trans-cendentes (com exceção, talvez, do Sagrado, na medida em que este possa ser tomado como um substituto gené-rico de Deus), e sem necessariamente reduzi-las a pa-drões psicobiológicos universais.

Contudo, três questões continuam em aberto. Primei-ra: uma mesma religião, mantendo-se inalterado seu con-texto cultural, apresenta sempre e simultaneamente seu valor e contravalor. Por exemplo, uma determinada reli-gião opera pouco no nível da ética, enfatizando mais a solução mágica das aflições dos fiéis; por outro lado, estes se nutrem das crenças e prédicas dessa religião para me-lhor enfrentar suas adversidades. Como explicar essa am-bivalência em um ambiente funcionalista? Segunda: não se pode admitir um relativismo completo em termos de religião, como se todas estivessem fadadas a subsistir in-definidamente (ou, no caso do Ocidente, a ser continua-mente substituídas) ou tivessem igual validade em ter-mos de função, sentido e verdade. Seria ainda possível falar-se de verdade em termos de religião (em termos, por exemplo, de deuses verdadeiros ou falsos)? Em caso po-sitivo, com quais critérios? Terceira: a religião torna-se

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uma questão de escolha e de preferência, havendo a pos-sibilidade de não se ter religião? Ou ela se encontra de tal forma ligada à natureza humana que estaria mais “nos genes” do que na vontade e na deliberação conscientes?

Estas perguntas são de fundamental interesse. O possível relativismo associa-se a outro traço da moderni-dade, a separação entre o público e o privado – a religião é reduzida à fé, algo intrinsecamente ligado à consciên-cia do indivíduo. Os poderes constituídos não podem interferir nas escolhas que as pessoas fazem quanto a suas crenças, mas, em compensação, as pessoas (mesmo quando constituídas em grupos organizados como as igrejas) não podem impor suas crenças à Nação, legiti-mamente representada pelo Estado. Este apresenta-se como mantenedor da ordem pública, como uma entida-de que funciona de acordo com regras próprias, sem nenhuma sanção (ou falta de) sacra. Sendo a única ins-tância de poder comum a todos, suas leis são universal-mente obedecidas. Quanto à religião, de foro íntimo, qualquer um pode crer o que quiser. Mesmo com os be-nefícios trazidos por esta separação, surgem novas per-guntas: vale a pena educar as crianças e os jovens em termos religiosos? E o que solicitar da escola? Assumin-do-se que a separação Igreja-Estado seja legítima, assim como também a liberdade de consciência, pode-se ad-mitir o ensino religioso na escola pública? E como fica a religião na política?

Nos Estados Unidos, como podemos ver pelos jornais, televisão e internet, tais questões são motivo de muitas disputas e divisões, de paixões e ausência de racionalida-de. Mas também no caso brasileiro, com toda a tradição de tolerância e de “jeitinho”, essas questões também são espinhosas. Por trás dos números do censo, há muitas

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paixões e lealdades como, por exemplo, na cruzada de algumas igrejas contra a umbanda e o consequente esva-ziamento dos centros dessa religião. Veja-se também o caso do estado do Rio de Janeiro, envolvido recentemen-te em controvérsias relacionadas com o favorecimento de algumas igrejas na máquina estatal, e a imposição de pro-fissões de fé aos professores da rede pública.

Talvez uma abordagem culturalista (privilegiada, por exemplo, na análise científico-social dos dados do censo) seja insuficiente para dar conta destas questões. Talvez ela apenas estimule em nós uma atitude de distancia-mento (por exemplo, com a substituição da religião por uma ética secular), como se fôssemos um grupo de adul-tos que observa um grande número de crianças brincan-do muito a sério com suas religiões, e que intervém aqui e ali para evitar excessos. E o que fazer diante da consta-tação de que a esmagadora maioria dos brasileiros invoca Deus em momentos de angústia ou gratidão? Estarão eles recorrendo apenas ao vazio, evocando suas forças do inconsciente ou ainda respondendo às forças do acaso?

Curiosamente, progressos recentes ocorridos nas ciên cias biológicas e cognitivas parecem sugerir respos-tas complementares e básicas para algumas dessas ques-tões que tanto nos mobilizam. Sem nem de longe ter a pretensão de esgotar o assunto, vamos dar conta, no ca-pítulo seguinte, de alguns desses progressos. Procurare-mos mostrar como a história comparada das religiões e sua análise antropossociológica podem ser ampliadas por tais progressos, dando margem a uma Ciência da Re-ligião mais bem estabelecida.

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6 promessas darwinianas: por que os deuses persistem?

desencontros da biologia

A pergunta “Por que os deuses persistem?” vem do títu-lo de um livro recente (ver a referência a Robert Hinde nas SugeStõeS de Leitura) que representa uma vigorosa tendência na fronteira entre as ciências sociais e bioló-gicas. Essa tendência privilegia a abordagem darwinia-na das ciências humanas, entre elas a Psicologia e as ciências sociais.

Precisamos voltar um pouco no tempo. Como vimos no Capítulo 3, o século XIX foi marcado por uma men-talidade evolucionista e progressivista entre os grupos ilustrados europeus, com claros reflexos em grupos cor-respondentes aqui no Brasil. Como vimos também, essa mentalidade ganhou um novo impulso e uma nova dire-ção depois que Darwin publicou, em 1859, A origem das espécies, onde propunha mecanismos cientificamente tratáveis do processo de evolução (esta história é conta-da com mais detalhes no livro de Michael Rose indica-

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do nas SugeStõeS de Leitura). Ainda que o próprio Dar-win não insistisse em um progresso inexorável na evolução, o mesmo não se pode dizer de muitos de seus contemporâneos. Herbert Spencer, por exemplo, em-prestou da obra de Darwin a expressão “sobrevivência dos mais aptos”, aplicando-a à leitura dos processos so-ciais, os quais passavam a ser vistos como uma batalha sem fim entre indivíduos e grupos que levava a um con-tínuo aperfeiçoamento destes. Os paralelos com os princípios do capitalismo não são casuais: de fato, a se-leção natural de Darwin parece operar da mesma ma-neira que a competição entre os agentes econômicos nas sociedades capitalistas. Mas o “darwinismo social” de Spencer foi além da esfera econômica, pois lidou também com a cultura, a ética e os traços de liderança dos homens. Apesar de extremamente influente desde então, seus críticos não só apontaram o caráter antiético e determinista de suas concepções como também sua leitura incorreta de Darwin.

Outra leitura incorreta foi inaugurada com Francis Galton (já mencionado no Capítulo 3) – ironicamente, primo de Darwin –, que procurava aplicar princípios darwinistas ao aperfeiçoamento de nossa espécie. Do mesmo modo que Darwin, ele teve como referência os processos de seleção artificial há muito desenvolvidos por criadores de animais. Distanciou-se deste último, toda-via, na medida que se propôs desenvolver uma ciên cia da seleção artificial do humano, com o tempo denominada “eugenia” (1883). Esses desenvolvimentos foram acom-panhados com muito interesse por pesquisadores de todo o mundo, especialmente dos Estados Unidos. Como sepode imaginar, tal ciência foi rapidamente aplicada naspolíticas públicas, com resultados duvidosos. Uma parte

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dessa história foi narrada, de maneira pungente, pelo fa-moso biólogo norte-americano Stephen Jay Gould (1941-2002) em A falsa medida do homem. Mas uma das conse-quências mais graves e distorcidas do movimento eu gênico foi, como se sabe, o significado atribuído a ele pelo nazis-mo de que certas raças seriam “superiores” a outras, com a consequente política de “limpeza étnica”.

Por causa destes e de outros acontecimentos, a euge-nia caiu em desuso, causando repulsa à mentalidade contemporânea. Não é de surpreender que se tenha evi-tado aplicar a biologia às ciências humanas, e que estas tenham se desenvolvido separadamente na maior parte do século XX. Um exemplo clássico é o do behaviorismo, dominante na Psicologia em meados do século XX, para o qual o que acontece nos genes ou na mente do indiví-duo não é importante. Como consequência, o estudo dareligião também escapou ao âmbito das ciências natu-rais, tendo a Antropologia e a Sociologia estabelecido for-tes paradigmas independentes de interpretação. Mas ahistória das ciências biológicas é mais rica do que isso.

De fato, ainda na infância da teoria da seleção natu-ral, a genética começava a se desenvolver baseada tam-bém em processos de seleção artificial. O monge húnga-ro Gyorg Mendel (1822-1884) apresentou seus primeiros resultados em 1865, embora essa ciência só viesse a ga-nhar impulso no início do século XX. Foi a partir dos anos 30 desse século, entretanto, que se conseguiu inte-grar teoricamente a genética no processo de seleção na-tural como sugerido por Darwin.5 Essa integração deu

5 Cientistas brasileiros, diga-se de passagem, contribuíram muito com esse esforço experimental e teórico. A partir dos anos 40, pesquisadores como Maurício Rocha e Silva, Newton Freire-Maia, Crodowaldo Pavan, e tantos outros, ganharam reconhe-cimento internacional por seus trabalhos.

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um grande impulso tanto para o estudo da evolução das espécies como para o próprio estudo dos genes. Mas as ciências humanas ainda permaneciam alheias a esses acontecimentos.

A partir da década de 1960, trabalhos teóricos mais consistentes abriram a possibilidade de uma análise darwiniana do comportamento dos animais e do ho-mem. Essas aplicações ganharam as páginas dos jornais com a publicação, em 1975, do livro Sociobiology [So-ciobiologia] de Edward O. Wilson (1929- ). Ainda que trabalhasse nesse texto sobretudo com insetos, no últi-mo capítulo ele já apontava para a possibilidade de es-tudar da mesma maneira o comportamento social do homem. De fato, em 1978 ele publicou o livro Da na-tureza humana, que aumentou ainda mais a controvér-sia sobre a possibilidade de reduzir as ciências do ho-mem às ciências naturais.6

Podem-se destacar dois pontos controvertidos: o caráter cego, determinista e não progressivo da evolu-ção – como compatibilizar isto com a liberdade huma-na? Segundo, quais são as possíveis (más) aplicações deste conhecimento no que diz respeito às políticas públicas? Era a discussão em torno da eugenia que surgia novamente. Não é o caso de resumir aqui essa discussão, que continua até hoje (o debate sobre a clo-nagem é talvez sua expressão mais visível), mas uma coisa deve ser ressaltada: as bases científicas desta nova ciência são muito mais seguras que no começo do século XX.

6 Para um resumo das principais discussões desse período, ver o livro de Michael Ruse, O mistério de todos os mistérios (Vila Nova de Famalicão, PT: Quasi Edições, 2002), que traz detalhes ricos sobre cada um dos grandes cientistas envolvidos.

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da abordagem darwiniana da religião

Esta ciência tem vários ramos, uns mais tradicionais,como a Paleontologia, a Genética e a Neurologia, outros no-vos, como a Psicologia Evolutiva. Em comum, trabalham com o mesmo paradigma, o darwiniano. Já faz algumas décadas, portanto, que se escrevem várias histórias natu-rais de comportamentos humanos (inclusive do estu-pro!), retomando-se uma tradição em voga no século XVIII. Se atualmente se está ressuscitando a eugenia ouo spencerianismo, não sabemos. Mais importante é en-tender como essas novas ciências influenciam a com-preensão contemporânea da religião.

Como nada do que é humano ficou imune ao enfoque darwiniano (ver o livro de Rose nas SugeStõeS de Leitura), mais cedo ou mais tarde o estudo da religião seria influen-ciado por essa abordagem evolutiva. Todos os dados levan-tados pelos antropólogos e por outros -ólogos (incluindo os teó-!) permanecem, assim como sua principais intuições, mas uma nova história natural da religião (no singular, como veremos adiante) está surgindo e permitindo, ape-sar das críticas, uma compreensão que se aproxima mais da experiência vivida pelo comum dos fiéis.

O estudo da religião em um estrato mais profundo que sua visibilidade social permite uma melhor compreen-são não só de sua origem e função como também de seu sentido e verdade. São três as principais veredas que têm sido trilhadas: os estudos arqueológicos, que buscam en-tender como o homo sapiens surgiu e se distanciou dos outros hominídeos, desenvolvendo o cérebro até ser ca-paz de um pensamento linguístico e simbólico, o que permitiu o surgimento de aspectos religiosos no compor-tamento humano; no âmbito da Psicologia Cognitiva, a

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esqueleto de homem sepultado em sungir, rússia, com aproximadamente 28.000 anos, portando um elaborado colar de contas que pode indicar um cerimonial de fundo religioso.

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pesquisa ao longo de uma linha temporal é complemen-tada por estudos do desenvolvimento humano e das neu-rociências, e pela investigação de diferentes grupos hu-manos contemporâneos e seus comportamentos; e, na esfera da Sociobiologia, pelo estudo da relação entre al-truísmo recíproco e atitudes religiosas, selecionadas em nível genético. Registram-se, em todos os casos, as cren-ças e comportamentos que sobreviveram ao processo de seleção natural, e que, portanto, possuem algum valor evolutivo de manutenção da espécie humana (para a re-lação entre essas ciências, ver o livro de Robert Wright nas SugeStõeS de Leitura).

Ironicamente, parece pouco provável que as aborda-gens darwinianas sejam capazes de dar uma explicação (que deixe alguma coisa de pé!) sobre deuses e crenças. Entre os “mestres da suspeita” contemporâneos, pode-mos citar dois famosos pesquisadores e divulgadores da ciência, Richard Dawkins (1941- ) e Daniel Dennett (1942- ). Este último apresenta, em A perigosa ideia de Darwin (ver SugeStõeS de Leitura), de maneira detalhada e persuasiva, como uma abordagem darwiniana pode destruir a ideia de um Deus criador e providente ou ou-tras crenças religiosas, substituindo-as por mecanismos naturais que usam simples algoritmos como causa de toda a complexidade que nos cerca, incluindo os mais elevados valores que defendemos.

Mas isso não esgota o que esse paradigma tem para nos oferecer. O recurso aos mesmos mecanismos – afas-tando-se de pré-julgamentos que levam a tais suspeitas (as crenças como registros falsos e ilusórios da alienação humana) – pode levar a um melhor entendimento das ideias e atitudes religiosas, sem que estas sejam necessa-riamente substituídas pela explicação científica. Como

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pergunta um cientista contemporâneo que trabalha na linha da psicologia cognitiva: “Por que as pessoas mantêm tais pensamentos? O que as leva a fazer – e permite que façam – tais coisas? Por que suas crenças são tão diversi-ficadas? Por que elas se agarram tão firmemente a tais crenças? Como poderíamos explicar um fenômeno (reli-gião) que é tão variável em termos de algo (o cérebro) que é o mesmo em todo lugar?” (ver SugeStõeS de Leitura: Pas-cal Boyer, p. 3-4). A resposta está em que o cérebro não é uma tabula rasa, uma página em branco, mas um aparato pré-disposto pelo nosso processo evolutivo que absorve certos traços culturais e não outros. Nesse sentido, as crenças mais sérias das pessoas não são arbitrárias, por mais diversas que sejam. Elas são verdadeiras, não no sentido de que “verdade cada um tem a sua”, como se fosse o caso da escolha de um item em um supermerca-do, mas porque elas seguem padrões mentais há muito selecionados pelas necessidades e contingências de nosso processo evolutivo enquanto espécie – tais crenças são, de algum modo, compatíveis com a realidade.

Essas mesmas perguntas indicam também que, ape-sar de essas diversas abordagens adotarem o mesmo pa-radigma (darwiniano), elas podem defender pontos de vista conflitantes com base nos dados obtidos. É o caso da Sociobiologia e da Psicologia Cognitiva. Enquanto para a primeira a preocupação central é descobrir que comportamentos básicos têm valor adaptativo, para a segunda a religião claramente não tem tal valor (no sen-tido de adaptação genética), ainda que em última ins-tância possibilite a sobrevivência do homem, associada que está a sua mente. O que se enfatiza é que a religião não é um único traço cuja história evolutiva pode ser identificada, mas é mais bem descrita como uma asso-

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ciação de diferentes sistemas cognitivos, adaptativos ou exaptativos que podem passar a ter funções diferentes das originais em razão da fluidez cognitiva humana e de sua flexibilidade cultural. O fato de haver conflitos en-tre diferentes disciplinas não é em si um obstáculo; ao contrário, é sinal de uma boa ciência, que reconhece seus limites e possibilidades. Examinamos mais deta-lhadamente, a seguir, a segunda abordagem.

Quatro aspectos importantes da religião podem ser associados a esses desenvolvimentos. Primeiro, que a ênfase de nosso entendimento passa de “religiões” e “culturas” para “religião” e “natureza”.7 Como diz Robert Hinde: “A observância religiosa resulta de características psicológicas panculturais, características que, no con-texto das sociedades humanas, têm moldado os mais di-versos sistemas religiosos”. (Ver Hinde, p. 1, SugeStõeS

de Leitura). Assim sendo, para melhor compreender as religiões que nos cercam, é instrutivo que comecemos de algo ainda meio indefinido (na medida em que defini-ções anteriores, inclusive a de Geertz, apresentavam fal-sas certezas) chamado “religião”, que precede a consciên-cia que possamos ter dela. A partir desse entendimento, enriquecido pelos estudos de campo dos antropólogos, pode-se então estudar um conjunto de comportamentos que de alguma forma está intrinsecamente ligado à men-te/cérebro que herdamos. Uma definição mais provável que resulta daí seria a seguinte:

em termos gerais, a religião é (1) um compromisso comunitário

custoso e difícil de disfarçar (2) com um mundo contrafactual e

7 Isto não quer dizer que a religião “está nos genes”. Conforme indicado no parágrafo anterior, o que isto significa é que a religião passa a ser estudada a partir do passado evolutivo de nossa espécie e da mente plástica que daí resultou.

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contraintuitivo de agentes (3) que lidam com as angústias existen-

ciais das pessoas, como a morte e a dissimulação”. (ver scott Atran,

p. 4, SugeStõeS de Leitura.).

Deste entendimento decorre um problema, até aqui não tratado na moderna compreensão das religiões: o que significa dizer que “entidades religiosas (como Deus) existem?” Este tipo de pergunta começa a ser respondi-do agora. Simplificando um pouco, é comum na Antro-pologia Cultural uma postura local, antiessencialista: “Os deuses existem para o grupo que os sustém”. Com esta afirmação, não se vai muito além da subjetividade desses grupos, existindo um abismo entre as afirmações tradicionais sobre Deus e o que as ciências empíricas podem aferir delas. Esses novos estudos apontam para a estranha e universal característica da mente humana de pensar em termos de divindades sobrenaturais que fe-rem o senso comum, tão cheias de atributos que estabe-lecem pontos de semelhança e de diferença com o “mundo dos homens”. Com isso, ainda que não se che-gue ao Deus dos teólogos, a existência deles torna-se um aspecto, por assim dizer, necessário da mente humana. As ideias de projeção, como Feuerbach as indicou, res-surgem aqui de forma inusitada.

Terceiro, a verdade da religião não tem a ver com sua “bondade” (ou “perversidade”) de fundo. Por mais que o senso comum das pessoas religiosas indique que a reli-gião está ligada ao amor ao próximo e a outras atitudes adequadas, para que a compreendamos de modo mais profundo é necessário não ter uma abordagem moral. O propósito (na medida em que se possa falar disso no paradigma darwiniano) da religião não é tornar as pes-soas boas (ainda que isso não esteja excluído), e sim

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reforçar mecanismos de defesa associados ao processo evolutivo que nos conduziu até aqui. A consecução des-se objetivo passa pelo demônio e conduz a sacrifícios, violências e guerras contra os seguidores da outra fé. É claro que isso fere nossa sensibilidade, nestes dias em que a afirmação de uma religião parece se dar às expen-sas da sobrevivência de outra. Costumamos dizer que os fanáticos não representam suas religiões, que estas são essencialmente promotoras da paz. Do ponto de vista de uma Ciência das Religiões informada pelo paradigma agora discutido, nada mais falso. Talvez tais indivíduos as representem melhor do que nós, pessoas de boa-von-tade – psicologicamente falando, é difícil distinguir o fanático do santo. O que doma a força vital da religião e a torna construtiva não é sua natureza, mas a interpreta-ção altruísta da vontade divina e a atuação moral (ligada à liberdade) humana.

Quarto: mesmo que haja pessoas mais crédulas e ou-tras mais céticas, a religião não é algo que uns têm e outros não. Pela própria natureza universal dos proces-sos evolutivos e mentais que estão em jogo, todos nós temos o equipamento que, inevitavelmente, produz as religiões, ainda que alguns se distanciem propositalmen-te de qualquer igreja ou credo presente em nossas socie-dades. Toda a comoção que aconteceu em torno das mortes de Ayrton Senna e da princesa Diana, por exem-plo, sugere que esse equipamento está sempre disponí-vel para entrar novamente em funcionamento.

Este é o quadro que, resumidamente, temos diante de nós, se levarmos a sério a abordagem darwiniana das religiões. Sem negar as intuições e desenvolvimentos vistos em capítulos anteriores, que tanto enriqueceram nossa compreensão e vivência das religiões, esta abor-

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dagem possibilita uma explicação adequada dos aspec-tos mais sensíveis da experiência religiosa, as questões de sentido e de verdade. De certa forma, esta explica-ção aproxima a ciência da experiência cotidiana dos fiéis, e também das reflexões dos sábios religiosos de todos os tempos.

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C o N C l U s ã o

Procuramos descrever, ao longo destes capítulos, como a fascinante variedade religiosa existente no Brasil re-quer e suscita vários níveis de interpretação. Partimos da constatação de que o perfil de nossas religiões, mos-trado no censo do IBGE de 2000, recebeu uma atenção sem precedentes dos analistas e dos meios de comuni-cação. Quer sejamos observadores distanciados das ma-nifestações mais recentes da força religiosa de nosso povo, quer sintamos esta última como fiéis de uma reli-gião específica, não podemos deixar de ignorar que as religiões estarão presentes no século XXI influenciando e se deixando influenciar pelas mudanças culturais que experimentarmos.

Em um primeiro momento descrevemos um pouco do perfil religioso brasileiro, para logo em seguida per-guntarmo-nos se é possível ir além dessa primeira cons-tatação: assim como falamos com orgulho de nossa di-versidade étnica e da crescente miscigenação de nossa gente, vemos com satisfação crescer o número e a vitali-

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dade das religiões em nosso país. Destacamos, logo no início, o crescimento de duas tendências nas religiões do Ocidente: a secularização e a “religião civil”. Movimen-tos de certo modo contrastantes, elas indicam, porém, uma outra maneira, moderna, de vivenciar antigas tradi-ções religiosas, e levantam questões sobre a persistência destas últimas. Os capítulos restantes dedicaram-se, portanto, a entender melhor a natureza e o direciona-mento dessas questões.

No Capítulo 2, começamos vendo um pouco das ideias sobre religião presentes na Idade Moderna, desta-cando a ideia de Feuerbach de que a religião não é uma janela para um mundo exterior e sobrenatural, mas um espelho em que enxergamos nossa natureza mais autên-tica. Depois de nos determos um pouco nas perguntas que nos últimos dois séculos foram feitas a propósito da religião – em termos de origem, função, sentido e verda-de –, passamos a descrever algumas das principais carac-terísticas do que hoje se chama “religião”. Em seguida, no Capítulo 3, falamos do surgimento dos estudos cien-tíficos da religião no século XIX. Em seus primórdios, eles ainda entendiam a história da religião como algo normativo levando o homem de um modo primitivo e rude de ser religioso para, evolutiva e progressivamente, um estado mais refinado e próximo à religião moral do Ocidente. Associado à lei dos três estados (Augusto Comte), esse entendimento produziu obras influentes como O ramo de ouro, de Frazer.

Já no Capítulo 4, apresentamos uma outra forma de entender a religião, ainda do século XIX, que lança uma suspeita sobre seu caráter dissimulador da realidade. Dentre os que mais avançaram nessa direção destaca-mos as figuras de Marx e Freud, pela forma convincente

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de suas análises e pela influência deixada para o século XX. Eles contribuíram de modo significativo para umapercepção muito comum hoje em dia, de que é possívelse pensar em um homem irreligioso, despido de crençasa respeito do sobrenatural e construtor de uma ética au-tônoma e secular. No capítulo seguinte retomamos aCiência da Religião como a havíamos deixado no Capí-tulo 3, e mostramos como ela se desenvolveu ao longodo século XX. Falamos do paradigma hoje dominanteque entende o estudo da religião como parte das ciên-cias humanas, que dirige sua atenção para a diversidadee a pluralidade das religiões. Abandona-se, portanto, avisão normativa e progressivista a respeito delas, para sedestacar a profunda inserção da religião nas respectivasculturas, mesmo no caso de uma mesma tradição quesurja em contextos diferentes.

Esse paradigma viu-se associado a um espírito de to-lerância entre as religiões, mas ao mesmo tempo levanta questões importantes em torno da distância que os estu-diosos estabelecem ao falarem delas e aquilo que os res-pectivos fiéis sentem a respeito. Questões relacionadas ao sentido e à verdade, por exemplo, são muitas vezes relegadas à subjetividade do indivíduo.

Estas questões levaram-nos, por fim, a um novo para-digma que pode coexistir com o anterior – o darwiniano, aplicado há poucas décadas ao comportamento humano. Esta abordagem do religioso, que une disciplinas tão di-versas quanto Arqueologia, Genética, Psicologias Evolu-tiva e Cognitiva, Antropologia Física e Social, não desta-ca só os traços culturais, mas sobretudo a origem de crenças que a princípio nos parecem tão bizarras. O que fica evidente aqui é a unidade das características da mente humana, que leva à diversidade das religiões que

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conhecemos hoje. Dito de maneira um pouco simplista, a abordagem valoriza o conhecimento da natureza para que o entendimento das culturas passe a ter uma base mais sólida. Dessa perspectiva, as perguntas sobre o sen-tido e a verdade das religiões voltam a adquirir importân-cia – a explicação das crenças dos indivíduos e dos gru-pos aponta para o mesmo grau de realidade pensado por estes quando falam de seus deuses e demônios. Reto-mando a descrição de Feuerbach, a metáfora da janela volta à cena no estudo científico da religião.

Mas estas novas disciplinas, por tratarem (como toda ciência) apenas do mundo natural, acessível aos nossos sentidos, não nos permitem distinguir deuses de ídolos, crenças vazias ou alucinações. Ensinam-nos as regras do jogo, mas não ensinam a jogar nem dão o resultado da partida. Tampouco permitem aferir se uma dada re-velação (manifestação do ser e da vontade divinas usan-do instrumentos humanos) é verdadeira ou não, ou seja, um outro ser a fonte da revelação, não nosso próprio imaginário. Com isso a noção de fé (termo válido mais para as religiões monoteístas ocidentais) e sua respecti-va veracidade também não são resolvidas pela ciência. Por fim, as explicações científicas, por diferirem das ex-pectativas e desejos nossos, pouco têm a dizer da finali-dade de nossas atitudes e se um dia, em uma esfera so-brenatural, seremos ou não recompensados por nossas crenças e lealdades.

Percebo que isto deve incomodar a esmagadora maio-ria dos brasileiros que expressam sua crença em Deus. Em outras palavras, o que entender por realidade última (um nome mais genérico para aquilo além do qual nada mais podemos pensar), que justificasse e garantisse nos-sas ações? Em última instância, o que guia o ser humano

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não são os fatos da natureza e da cultura ou um acordo entre os homens sobre o bem comum. São os testemu-nhos de profetas, santos, sábios, bodhisattvas ou de sim-ples pessoas que nos cercam e que são importantes para nós, que no final das contas guiam nossas convicções e concedem a realidade de nossos deuses. As ciências, com todos os seus dados, abordagens, paradigmas e teorias, apenas colabora para que nossas convicções sejam verda-deiras, resistindo aos testes que a realidade, seja ela da natureza ou da história, continuamente nos impõe.

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g l o s s á r i o

adaptação biológica – Adaptações evolucionárias são planos biológi-cos funcionais selecionados naturalmente para dar conta de proble-mas importantes e recorrentes em ambientes ancestrais. Alternativa-mente, refere-se a qualquer traço hereditário do fenótipo de um indivíduo que melhore suas chances de sobrevivência e reprodução em um certo ambiente (ver também exaptação).

alienação – Termo que foi introduzido na filosofia por Hegel, o qual, inspirado por um tema que remonta aos gregos, fala do exílio do Es-pírito na história. Feuerbach e Marx dão-lhe uma forma mais concre-ta, ao falar da apropriação por um outro (Deus, o capitalista) daquilo que é próprio do homem – a consciência, no caso do primeiro, e o trabalho, no caso do segundo.

Behaviorismo – Ramo da psicologia com forte ênfase experimental, iniciado no século XX por figuras como Pavlov (1849-1936), Watson (1878-1958) e Skinner (1904-1990). Dispensando categorias como mente e consciência, o behaviorismo interessou-se pelo tipo de com-portamento (behavior – termo em inglês para “comportamento”) re-sultante de um estímulo ao indivíduo. Interessado inicialmente nos comportamentos mais instintivos, mais tarde o movimento desenvol-veu propostas educacionais e políticas.

Cristandade – Fala-se da associação do cristianismo com a esfera pública desde quando o imperador Constantino declarou-o religião oficial do Estado romano, em 313 d.C. Nesse regime, os governantes assumem funções religiosas, e os clérigos, funções civis. Floresceu na Europa latina medieval, e marcou o catolicismo na Península Ibé-rica (estendo-se, desse modo, para a América Latina) a partir do final do século XV.

Cultura – Apesar de não haver uma definição única, em termos das ciências sociais contemporâneas ela se refere ao conjunto de conhe-cimentos, crenças, valores e processos materiais compartilhados por uma sociedade. Ela é transmitida de geração a geração por processos explícitos (ensino escolar) ou implícitos (imitação).

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darwiniano, paradigma ou abordagem – Segundo a terminologia de Thomas Kuhn (paradigma como uma visão de mundo e modo de pesquisa da comunidade científica associado a alguma teoria cientí-fica importante), denomina-se paradigma darwiniano aquele que en-globa abordagens científicas derivadas da teoria da evolução por sele-ção natural de Charles Darwin.

darwinismo social – Interpretação da teoria de Darwin feita por Her-bert Spencer, popular no final do século XIX. Ao enfatizar, no campo social humano, termos como “sobrevivência do mais apto” e “extinção dos mais fracos”, sugere que dar suporte àqueles que ficam à margem (como, por exemplo, nas políticas públicas) interferiria com os prin-cípios da evolução, obstruindo assim o progresso social.

dialética hegeliana – Da mesma forma que alienação, é um termo que foi apropriado por Hegel para caracterizar uma suposta lei histórica que diz que todo movimento tem um contramovimento, uma dinâmi-ca que por fim permite um retorno ao primeiro em um patamar mais elevado. Hegel, entretanto, julgava que o processo havia chegado ao fim no caso da religião, ao se transformar em filosofia.

dupla pertença – Atitude comum no Brasil em que os fiéis de uma religião (geralmente o catolicismo) também se vinculam a uma outra, cristã ou não, frequentando simultaneamente os cultos e as práticas das duas. Foi reconhecida mais explicitamente no último censo do IBGE.

entusiasmo, religiões de – Em geral são os grupos evangélicos que co-locam em destaque a ação do Espírito Santo nos momentos de culto, entendida como provocadora de emoções, entusiasmo e manifesta-ções extraordinárias (como falar línguas incompreensíveis) de um poder superior, sinais e veículos da salvação dos fiéis. Costuma-se incluir a Renovação Carismática Católica do padre Marcelo nesta categoria.

etnocentrismo – “Etno” está relacionado a “nação”, ”povo”. No lingua-jar dos cientistas da religião, significa estudar uma religião projetando nela as ideias e costumes da religião de origem do pesquisador, nota-damente o cristianismo. É um termo de conotação negativa, uma

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atitude a ser evitada se se deseja uma compreensão adequada de uma religião não ocidental.

eugenia – De uma ciência que procurava entender os mecanismos de transmissão de caracteres hereditários, tornou-se, no final do século XIX e começo do século XX, uma ideologia que justificava os grupos dominantes em nome do aperfeiçoamento da espécie humana. Só caiu gradualmente em desuso com as consequências nefastas de sua aplicação radical pelos nazistas.

exaptação – Traço de um organismo que surgiu para cumprir uma função, mas que hoje cumpre um outro propósito adaptativo (ver adaptação). Em alguns casos, sequer existe uma função inicial, sen-do o traço em questão apenas um subproduto evolutivo. A religião parece resultar de um conjunto de traços inicialmente desconecta-dos, alguns adaptativos, outros exaptativos.

existencialismo – Estado de espírito comum em meados do século XX que se traduziu em movimentos filosóficos e literários que analisam a condição humana do indivíduo diante da falta de sentido da exis-tência, exigindo dele a construção de sua própria liberdade. Seus re-presentantes mais conhecidos são Martin Heidegger e J. P. Sartre.

funcionalismo – Tendência do pensamento social do século XX que atravessa vários períodos e escolas. O funcionalismo analisa a manei-ra como os processos sociais e os arranjos institucionais contribuem para a efetiva manutenção e estabilidade da sociedade, ou seja, que função cumprem em sua formação.

mediunidade – Fenômeno de alteração da consciência que surge em determinados indivíduos, e é desenvolvido e ritualizado em algumas religiões como o espiritismo e as religiões afro-brasileiras. O médium é a pessoa que incorpora um espírito ou entidade – interpretados de modo variado durante o ritual –, servindo de veículo para algum tipo de serviço ao público e/ou habilidade (como a psicografia).

micromacrocosmo – Forma de pensar o mundo que está presente especialmente na mentalidade mítica, em que o real é divido em duas esferas: a sobrenatural, onde o drama da história efetivamen -

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te ocorre; a natural, lugar de nossa vida cotidiana que reflete, em seu caráter dramático, o que ocorre de modo oculto no macrocosmo. As narrativas da religiosidade popular seguem geralmente esse for-mato.

mito, mítico – O termo refere-se a narrativas que auxiliam a manter a identidade subjacente a um grupo, que remetem a um tempo e a um espaço indefiníveis que geralmente explicam a origem do cosmo, dos deuses e dos homens. Antes do século XX, os filósofos ligavam mito a fábula, lenda ou conhecimento primitivo. Hoje se reconhece o mito como uma fala do inconsciente coletivo do grupo que não desaparece com o avanço do conhecimento. Geralmente é tornado presente por meio de um ritual.

modernidade – Designa o período histórico e a forma de representar e construir o mundo que surgiu na Europa a partir do século XVI. Seus marcos, em ordem cronológica, são: a Reforma, a filosofia car-tesiana, a revolução científica, o Iluminismo e a Revolução Francesa. Destacam-se na modernidade a racionalidade científica e a consciên-cia individual nas decisões cotidianas, e o afastamento do religioso da esfera pública.

monismo panteísta – “Monismo” é uma interpretação das teorias da natureza que propõe uma única ordem do real, em geral a que é co-nhecida pelas ciências empíricas. Contrapõe-se ao “dualismo”, co-mum na época de Haeckel (principalmente na forma de dualismo corpo-alma), mas visto com suspeita nos dias de hoje. O “panteísmo” considera que a divindade se identifica com a ordem e o progresso da natureza. Spinoza e Einstein foram panteístas famosos.

Neocristãs, religiões – O termo refere-se às seitas que surgiram ao lon-go da modernidade como ramos radicais da Reforma protestante. Não são propriamente cristãs, pois refutam partes do credo dos após-tolos. Seguem ou uma interpretação literal de trechos da Bíblia, como os adventistas do sétimo dia, os mórmons e os testemunhas de Jeová, ou interpretam-na muito livremente, como os quacres e os unitaris-tas. O primeiro grupo, proselitista (ver proselitismo), é de longe o mais importante no Brasil.

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Novos movimentos religiosos – Denominação dada aos grupos que manifestam uma religiosidade difusa que incorpora muitos elemen-tos da modernidade a antigas tradições, uma característica da Nova Era e do esoterismo. No Brasil, costuma-se chamá-los de “místicos”. Enfatizam o eu interior, a autoajuda e a adivinhação do futuro.

Pós-modernidade – Segundo alguns autores, trata-se do modo de ser do período em que vivemos: pós-anos 60, contestador da modernida-de e de seu ideal de racionalidade e dos grandes projetos para a hu-manidade. Sua característica seria a fluidez das crenças e valores, a valorização do indivíduo e do corpo, a valorização de pequenos proje-tos para a sociedade. Mas nem todos concordam que a modernidade esteja de fato superada.

Prometeico – Diz respeito a uma atitude arrogante, autossuficiente e de conquista do mundo. O termo vem de Prometeu, herói mítico grego que, em uma atitude desafiadora, roubou o fogo dos deuses, sendo punido por eles.

Proselitismo – Atitude comum a vários grupos religiosos que consiste em atrair adeptos para os seus credos e práticas. Ligado ao espírito missionário, caracterizou, por exemplo, o cristianismo primitivo.

religião, etimologia – Costuma-se atribuir três raízes para a palavra “religião”, todas presentes em autores latinos antigos: a observância escrupulosa de rituais públicos; uma releitura das experiências vivi-das; e o religar, re-estabelecer uma conexão que existia com os deu-ses em um passado mítico.

reforma – Movimento de protesto contra a desmoralização do cristia-nismo que teve lugar no início do século XVI. Envolveu reformas na interpretação do credo e dos sacramentos, assim como a valorização da Bíblia e da consciência individual. Os principais reformadores da época foram Lutero, Calvino e Zwinglio, que deram origem a diferen-tes denominações chamadas de protestantes.

revelação – Termo que se aplica mais propriamente aos chamados “três monoteísmos” (cristianismo, judaísmo e islamismo), indica a manifestação do Deus dessas religiões na história (que se torna his-

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tória de salvação), principalmente por meio de profetas como Moi-sés, Jesus Cristo e Maomé.

sagrado – O que é segregado do rotineiro e usual, passando a mani-festar de maneira forte aspectos do macrocosmo. Opõe-se a profano, literalmente “o que está diante do templo” (sendo o templo o lugar próprio do sagrado), que manifesta apenas a opacidade de nossa exis-tência. Essa dupla indica com frequência a divisão entre as atividades dos clérigos e as dos leigos. Fala-se de sagrado também com referên-cia ao mistério que guia nossa existência, e do respeito devido a ele.

seleção natural – A força condutora da evolução darwiniana. Opera quando um conjunto de condições ambientais diferencia entre duas variantes de uma população, tendo por base sua habilidade de se re-produzir com sucesso. Disso resulta que uma variante que pode se reproduzir com mais sucesso (ou seja, é a mais apta) tende a ser mais bem representada nas gerações subsequentes.

superstição – O termo já possui um caráter negativo desde o tempo dos romanos. Indica superficialidade e ignorância em matérias que mereceriam seriedade, como as associadas à religião. As elites religio-sas normalmente costumam identificar superstição na religiosidade popular, atitude negada pelos estudiosos do assunto.

tábula rasa – Termo de origem latina que designa um quadro em branco; começou a ser empregado na investigação sobre o conheci-mento humano a partir do século XVII. Dá a entender que todo indi-víduo nasce sem ter nenhuma tendência em sua mente, a qual pas-saria a ser moldada pelos costumes e pela educação. Ao longo dos séculos, o termo tem sido utilizado por aqueles que enfatizam o papel do ambiente na formação da mente, minimizando a contribuição de nosso passado animal.

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s U g e s t Õ e s d e l e i t U r a

ALVES, Rubem. O suspiro dos oprimidos. São Paulo: Paulinas, 1984.Ainda que o ideal seja ler as obras do próprio Marx sobre religião, este interessante livro do renomado escritor Rubem Alves apre-senta de forma bem didática as ideias de Marx sobre o tema, e suas possíveis limitações.

AMARAL, Leila. Carnaval da alma: comunidade, essência e sincre-tismo na Nova Era. Petrópolis: Vozes, 2000. Excelente análise de alguns dos novos movimentos religiosos, em particular no contexto urbano brasileiro, que avalia de maneira ponderada o significado deles para o mundo de hoje.

ATRAN, Scott. In Gods we Trust: The Evolutionary Landscape of Re-ligion. Oxford: Oxford University Press, 2002. Um dos principais autores na linha das ciências cognitivas, trata da religião de forma inovadora. Dada a falta de textos em língua portuguesa nesta linha, o leitor é encorajado a enfrentar o inglês para conhecer melhor o assunto. Este texto é um pouco mais avançado que o de Boyer, citado adiante.

BIRMAN, Patrícia. (Org.) Religião e espaço público. São Paulo: Attar Editorial, 2003. Os diversos autores brasileiros que contribuem para esta coletâ-nea apresentam um bom panorama das principais preocupações das ciências sociais sobre a religião hoje. Entre os temas discuti-dos está a separação Igreja-Estado e o ensino religioso na escola pública. Sua leitura exige um certo conhecimento prévio dos as-suntos analisados.

BOYER, Pascal. Religion Explained: The Evolutionary Origins of Re-ligious Thought. New York: Basic Books, 2001. Uma apresentação mais didática e acessível que a de Atran sobre a contribuição das ciências cognitivas para a religião, feita por um outro líder da área. Mesma observação sobre a quase inexistência de textos que não sejam em língua inglesa.

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BOWKER, John (Org.). O livro de ouro das religiões. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. Organizado por um grande especialista inglês em ciências da re-ligião, este livro, fartamente ilustrado, descreve de forma sucinta o surgimento das grandes movimentos religiosos da humanidade,do início da história até nossos dias. Talvez a melhor introduçãopublicada no Brasil. As única ausências sentidas são as das reli-giões ameríndias e do xamanismo.

DENNETT, Daniel. A perigosa ideiade Darwin: a evolução e os signi-ficados da vida. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. Apesar de extensa, esta obra do filósofo Dennett é de leitura atraen te, e, dentro de uma leitura materialista, uma excelente introdução ao darwinismo. Quero dizer com isto que o autor se preocupa em mostrar que os grandes projetos no plano da biosfe-ra podem ser construídos com base em pequenos mecanismos inteligentes, mas sem propósito ou significado

EVANS-PRITCHARD, E. E. História do pensamento antropológico. Lisboa: Edições 70, 1989. Escrita por um dos grandes nomes da Antropologia do século XX, esta obra se preocupa também em discutir e avaliar as principais contribuições de seus predecessores e colegas. Para ser adequa-damente compreendida, exige um aprofundamento posterior.

FILORAMO, Giovani e PRANDI, Carlo. As ciências das religiões. São Paulo: Paulus, 1999. Uma introdução consagrada e de alto nível ao campo que no Bra-sil se denomina “ciências da religião”, permite que o leitor tenha uma visão histórica e sistemática do assunto. Os autores defen-dem que só se pode estudar o religioso em sua pluralidade, daí o “religiões” do título.

GUERREIRO, Silas. (Org.) O estudo das religiões: desafios contem-porâneos. São Paulo: Paulinas/ABHR, 2003. Coletânea recente de estudos sobre a religião no Brasil e no mun-do, destacando os problemas teóricos e metodológicos desse campo. A particularidade deste volume é ser o resultado de um congresso da Associação Brasileira de História das Religiões

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a p e r s i s t ê n c i a d o s d e u s e s

(ABHR – http://www.franca.unesp.br/abhr), sociedade que me-lhor representa as ciências da religião em nosso país.

HINDE, Robert A. Why Gods Persist: A Scientific Approach to Religion. London: Routledge, 1999. Biólogo e psicólogo de Cambridge, Inglaterra, Hinde apresenta um bom panorama dos estudos recentes sobre a religião, utilizan-do o paradigma darwiniano. Ao contrário da geração precedente de estudiosos, Hinde dirige sua atenção à persistência de deuses e de outros aspectos religiosos do comportamento humano em todo tipo de sociedade.

MITHEN, Steven. A pré-história da mente: uma busca das origens da arte, da religião e da ciência. São Paulo: UNESP, 2002. Apesar de não se dedicar especificamente à religião, este é um dos poucos livros em português que dá respaldo à nossa argu-mentação do Capítulo 6. Mithen é arqueólogo, mas, dentro do espírito interdisciplinar que caracteriza a ciência hoje, utiliza também (à semelhança de Atran e Boyer, citados anteriormente) dados e métodos das ciências cognitivas para apresentar um ce-nário possível para a evolução da mente humana.

PADEN, William E. Interpretando o sagrado: modos de conceber a religião. São Paulo, Paulinas, 2001. Consagrado texto introdutório, coloca em realce a religião como um fenômeno de muitas facetas, que são estudadas por diferen-tes ciências psicológicas e sociais. Mais acessível que outras in-troduções aqui mencionadas.

PALMER, Michael. Freud e Jung sobre a religião. São Paulo: Loyola, 2001. Introdução didática e detalhada sobre a maneira pela qual dois dos maiores analistas do inconsciente, Freud e Jung, abordam a religião. Contém extensa bibliografia.

PETERS, Ted; BENNETT, Gaymon. (Orgs.) Construindo pontes en-tre a ciência e a religião. São Paulo: UNESP/ Loyola, 2003. Esta coletânea, de renomados autores de diferentes disciplinas científicas e de diferentes religiões, apresenta os frutos do diálogo entre ciência e religião que tem ocorrido nos países de língua in-

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glesa nas últimas décadas. Excelente antídoto para quem se sen - te desconfortável com o criacionismo.

PINKER, Steven. A tábula rasa. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. Introdução escrita em linguagem acessível por um renomado cientista, ainda que seja bastante extensa, apresenta bem os principais problemas das ciências cognitivas representadas por Atran e Boyer. Procura mostrar, em especial, como pode ser su-perada a divisão entre natureza e cultura em relação ao compor-tamento humano dentro do paradigma darwiniano, analisando--se a natureza humana sem cair em um determinismo biológicoou na eugenia.

Questões fundamentais. São Paulo: Paulus, 2003. Dentre as várias coleções de paradidáticos e assemelhados publi-cados no Brasil, esta é a que mais contém temas ligados à reli-gião, muitos do quais vistos neste livro. Escritos todos por espe-cialistas brasileiros, estes volumes são uma boa porta de entrada para o leitor jovem interessado em percorrer as demais obras in-dicadas nestas sugestões.

RIVIÈRE, Claude. Os ritos profanos. Petrópolis: Vozes, 1997. Este antropólogo francês tem se dedicado ao estudo de caracte-rísticas religiosas em atividades que, no entendimento usual, nada teriam a ver com religião. Dentre os vários exemplos anali-sados pelo autor, destacamos o estudo sobre o ritual de trote dos calouros.

ROSE, Michael. O espectro de Darwin: A teoria da evolução e suas implicações no mundo moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. Outra boa introdução ao paradigma darwiniano, mais curta e ao mesmo tempo mais abrangente que a de Dennett. Como o título indica, o livro trata da expansão gradual para outras esferas da vida da explicação proposta por Darwin, para além da evolução das espécies ao longo da história do planeta. Ajuda a entender muitas das polêmicas em torno dos usos e abusos da biologia.

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a p e r s i s t ê n c i a d o s d e u s e s

TEIXEIRA, Faustino. (Org.) A(s) ciência(s) da religião no Brasil: afir-mação de uma área acadêmica. São Paulo: Paulinas, 2001. Contribuição brasileira para a discussão em torno de como expli-car e entender melhor a religião. O título sugere que no Brasil também existe o dilema entre a ênfase na singularidade ou na pluralidade do religioso. Importante para se conhecer os centros de estudo da religião no Brasil, assim como a relação destes com os centros de saber teológico aqui existentes.

TEIXEIRA, Faustino. (Org.) Sociologia da religião: enfoques teóricos. Petrópolis: Vozes, 2003. Grupo semelhante de pesquisadores reflete sobre as maneiras como se tem estudado a religião no Brasil, de uma perspectiva exclusivamente sociológica e antropológica.

USARSKI, Frank. (Org.) O budismo no Brasil. São Paulo: Lorosae, 2002. Apesar de existirem muitos relatos da assimilação do budismo em nosso país, este é o primeiro que reúne estudos mais aprofunda-dos sobre o tema, permitindo-nos uma visão mais realista da pre-sença dessa importante religião entre nós.

WRIGHT, Robert. O animal moral: Por que somos como somos: a nova ciência da Psicologia Evolucionista. Rio de Janeiro: Cam-pus, 1996. Escrito por um especialista em divulgação científica, o livro faz uma apresentação didática e entusiasta da então nascente Psico-logia Evolutiva, sua relação com abordagens darwinianas anterio-res, e suas interpretações da natureza humana. Deixando-se de lado o estilo militante, que afasta muitos estudiosos da cultura, o livro é bastante informativo.

COMCIêNCIA, no. 56, julho de 2004 — www.comciencia.br. Esta revista on line de divulgação científica da Unicamp traz em seu número de julho diversos artigos sobre a separação Igreja--Estado e sobre o criacionismo. Este movimento, que defendeuma interpretação literal dos primeiros capítulos do livro do Gê-nesis, que tem ganho mais espaço no Brasil.

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REVER – Revista Eletrônica de Ciências da Religião (www.pucsp.br.rever). Apesar do cunho mais acadêmico, traz um bom número de artigos, escritos por renomados especialistas, sobre diversos temas ligados às religiões no Brasil. Também está ligado a inúme-ros sites voltados para o estudo das religiões.

REVISTA DAS RELIGIõES. Revista mensal do grupo Abril disponí-vel nas bancas de jornais, surgiu recentemente, o que indica o interesse crescente do público pelo assunto. As mais diversas ma-térias, apresentadas de forma didática e atraente, convidam o leitor a um aprofundamento.

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q U e s t Õ e s P a r a r e f l e x ã o e d e B a t e

1 Como a religião se manifesta nos ambientes em que você vive: na família, na escola, nos meios de comunicação aos quais você tem acesso, nos shoppings e clubes? Compare sua visão com a que o cen-so de 2000 mostrou do perfil religioso brasileiro. Reflita sobre as se-melhanças e diferenças.

2 Considerando-se a frequência com que as instituições religiosas e suas contradições são julgadas nos meios de comunicação, o que sig-nifica dizer que é importante distinguir entre religião e religiões, e, ao mesmo tempo, destacar a importância das duas? Desse modo, como relacionar a experiência religiosa com igrejas, padres, rabinos e pas-tores? Por que as instituições e seus dirigentes seriam necessários à vida em sociedade?

3 Passando das instituições para a religiosidade (experiência religiosa de pessoas e grupos), como entender a cultura em que você próprio está imerso e a forma pela qual a religião se manifesta nela? (Antes mesmo de você atribuir o termo “religião” a estas manifestações.)

4 O que você sabe a respeito da teoria da evolução? Já ouviu falar da controvérsia sobre a origem do homem – veio do macaco ou não? – e da Terra – foi ou não foi criada em seis dias? Do que foi apresentado neste livro, o que pode influenciar sua opinião sobre o assunto? Qual a diferença entre dizer que a “religião foi inventada” ou pensar nela como algo natural do homem? Se você e seus amigos têm muito mais em comum do que imaginavam antes, já é possível, então, pensar a religião como algo que se discuta em público, algo mais tolerante?

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CoNHeça oUtros laNçameNtos da Coleção ParadidátiCos UNesP

série Novas teCNologiasDa Internet ao Grid: a globalização do processamento

Sérgio F. Novaes e Eduardo de M. GregoresEnergia nuclear: com fissões e com fusões

Diógenes Galetti e Celso L. LimaO laser e suas aplicações em ciência e tecnologia

Vanderlei Salvador BagnatoDescobrindo o universo ou a física do espaço

Maria Cristina Batoni Abdalla e Thyrso Villela Neto

série PoderO poder das nações no tempo da globalização

Demétrio MagnoliA nova des-ordem mundial

Rogério Haesbaert e Carlos Walter Porto-GonçalvesDiversidade étnica, conflitos regionais e direitos humanos

Tullo Vigevani e Marcelo Fernandes de OliveiraMovimentos sociais urbanos

Regina Bega dos SantosA luta pela terra: experiência e memória

Maria Aparecida de Moraes Silva

série CUltUraCultura letrada: literatura e leitura

Márcia AbreuA persistência dos deuses: religião, cultura e natureza

Eduardo Rodrigues da CruzIndústria cultural

Marco Antônio Guerra e Paula de Vicenzo Fidelis Belfort Mattos Culturas juvenis: múltiplos olhares

Afrânio Mendes Catani e Renato de Sousa Porto Gilioli

série liNgUageNs e rePreseNtaçÕesO verbal e o não verbal

Vera Teixeira de AguiarImprensa escrita e telejornal

Juvenal Zanchetta Júnior

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série edUCaçãoPolíticas públicas em Educação

João Cardoso Palma Filho, Maria Leila Alves e Marília Claret Geraes Duran

Educação e tecnologias Vani Moreira Kenski

Educação e letramento Maria do Rosário Longo Mortatti

Educação ambiental João Luiz Pegoraro e Marcos Sorrentino

Avaliação Denice Barbara Catani e Rita de Cassia Gallego

série evolUçãoEvolução: o sentido da biologia

Diogo Meyer e Charbel Niño El-HaniSementes: da seleção natural às modificações genéticas

por intervenção humana Denise Maria Trombert de Oliveira

O relacionamento entre as espécies e a evolução orgânica Walter A. Boeger

Bioquímica do corpo humano: para compreender a linguagem molecular da saúde e da doença Fernando Fortes de Valencia

Biodiversidade tropical Márcio R. C. Martins e Paulo Takeo Sano

Avanços da biologia celular e molecular André Luís Laforga Vanzela

série soCiedade, esPaço e temPoOs trabalhadores na História do Brasil

Ida Lewkowicz, Horacio Gutiérrez e Manolo FlorentinoImprensa e cidade

Ana Luiza Martins e Tania Regina de Luca Redes e cidades

Eliseu Savério SpositoPlanejamento urbano e ativismos sociais

Marcelo Lopes de Souza e Glauco Bruce Rodrigues

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soBre o livro

Formato: 12 x 21 cmMancha: 20,5 x 38,5 paicasTipologia: Fairfield LH 11/14Papel: Offset 75 g/m2 (miolo)Cartão Supremo 250 g/m2 (capa)1a edição: 2004

eqUiPe de realiZação

Coordenação de ProduçãoFernando Santos e Sidnei Simonelli

Produção GráficaAnderson Nobara

Preparação de OriginalFernando Santos

Revisão de TextoFernando SantosOitava Rima Prod. Editorial (Atualização Ortográfica)

Projeto Gráfico Crayon P&PG

Editoração EletrônicaOitava Rima Prod. Editorial

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Eduardo Rodrigues da Cruz

paradidáticosColeção

SérieC

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Série Cultura

O dito popular de que “religião, política e futebol não se discutem” é posto em xeque de maneira vigorosa, neste livro, por Eduardo Rodrigues da Cruz. Seu texto empolgante apresenta as “regras do jogo” que se fazem presentes no universo das religiões estabelecidas.

O autor aborda a fascinante variedade religiosa do Brasil e trata do modo muito particular que o “jeitinho brasileiro” achou para lidar com a questão religiosa. Ao longo dessa avaliação, problematiza a identidade nacional e toca em assuntos relevantes, como a pluralidade e a tolerância religiosas, a separação Igreja-Estado e a controvérsia em torno da obrigatoriedade do ensino religioso no país.

Num âmbito mais geral, discute-se o entendimento moderno da religião como forma de cultura, com ênfase nos contextos de que ela surge, e propõe-se uma reflexão sobre as características universais da religião, debatendo a forma como esta produz deuses e seus mundos sobrenaturais.

Eduardo Rodrigues da Cruz é professor na PUC-SP e coordenador do Programa de Estudos e Pós-Graduação em Ciências da Religião nessa mesma Universidade. É doutor em Systematic Theology pela University of Chicago (EUA), onde também realizou pós-doutorado.

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Apoio Projeto Pedagogia Cidadã

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