a pedagogia da ferramenta: estratégias de produção, mobilização … · 2019. 11. 14. ·...

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Geraldo Márcio Alves dos Santos A pedagogia da ferramenta: estratégias de produção, mobilização e formalização de saberes tácitos criadas pelos ferramenteiros de uma indústria metalúrgica Belo Horizonte 2004 i

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Page 1: A pedagogia da ferramenta: estratégias de produção, mobilização … · 2019. 11. 14. · entrevistas semi-estruturadas realizadas com os ferramenteiros e observações de campo

Geraldo Maacutercio Alves dos Santos

A pedagogia da ferramenta estrateacutegias de produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes taacutecitos criadas pelos ferramenteiros de uma induacutestria metaluacutergica

Belo Horizonte 2004

i

Universidade Federal de Minas Gerais

Faculdade de Educaccedilatildeo

Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Conhecimento e Inclusatildeo social

Geraldo Maacutercio Alves dos Santos

A pedagogia da ferramenta estrateacutegias de produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes taacutecitos criadas pelos ferramenteiros de uma induacutestria metaluacutergica

Dissertaccedilatildeo apresentada ao programa de poacutes-graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Conhecimento e Inclusatildeo Social da Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade Federal de Minas Gerais ndash UFMG como preacute-requisito para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de mestre em Educaccedilatildeo Orientadora Professora Dra Eloiacutesa Helena Santos

Belo Horizonte 2004

ii

SUMAacuteRIO

Agradecimentos v Resumo viii Reacutesumeacute ix 1 Introduccedilatildeo 1 11 Estruturaccedilatildeo da pesquisa 4 12 Porquecirc investigar a presenccedila de saberes no processo de trabalho 6 121 A Produccedilatildeo de saberes 11 122 A mobilizaccedilatildeo de saberes 15 123 A formalizaccedilatildeo de saberes 18 13 O referencial teoacuterico 22 14 As estrateacutegias metodoloacutegicas 27 141 Revisatildeo bibliograacutefica 28 142 Instrumentos de pesquisa 29 1421 A pesquisa documental 29 1422 Entrevistas semi-estruturadas 29 1423 Observaccedilatildeo de campo 31 143 Os sujeitos da pesquisa 31 144 O desenvolvimento da pesquisa o meu contato com a empresa pesquisada 32 145 No olho do furaccedilatildeo entre homens e maacutequinas 33 2 O ldquolugarrdquo do saber no mundo do trabalho 37 21 O saber nos modelos de organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho 37 22 O saber no trabalho 40 23 O saber taacutecito do trabalhador 44 24 Do saber vinculado agrave praacutetica um ponto de vista sobre o saber taacutecito 47 241 Saber taacutecito entre um uso instrumental e a construccedilatildeo de saberes 53 242 O saber taacutecito e a linguagem 59 243 Corpo mente e o saber taacutecito 69 244 Comentaacuterios sobre as estrateacutegias taacutecitas 75 3 A ferramentaria e as atividades industriais 78 31 A escolha do setor automotivo e especificamente do setor de autopeccedilas 79 311 As autopeccedilas 80 312 Relaccedilatildeo entre fornecedores de autopeccedilas e montadoras 82 32 A ferramentaria 83 321 Quem eacute e o que faz um ferramenteiro 85 322 A excepcionalidade do ferramenteiro breve nota sobre um trabalho muito aleacutem das prescriccedilotildees 88 33 O grupo B e a Empresa T 91

iii

331 As empresas do grupo B 92 332 A Empresa T 93 333 A organizaccedilatildeo do trabalho na Empresa T 95 334 A ferramentaria como ela eacute o trabalho prescrito e o trabalho real na ferramentaria 91 4 O trabalho real na ferramentaria a hora e a vez dos saberes taacutecitos dos ferramenteiros 106 41 As estrateacutegias dos ferramenteiros para produzir os seus saberes taacutecitos107 42 As estrateacutegias dos ferramenteiros para mobilizar os seus saberes121 43 As estrateacutegias dos ferramenteiros para formalizar os seus saberes taacutecitos134 Consideraccedilotildees finais 152 Referecircncias bibliograacuteficas 157

iv

AGRADECIMENTOS

A minha matildee Adelina que desde a minha infacircncia foi tambeacutem meu pai e me

ensinou a ver na feacute Cristatilde o valor da perseveranccedila do amor ao proacuteximo e da compreensatildeo Agrave

memoacuteria do meu pai Geraldo Alves que em nossa curta relaccedilatildeo deixou o legado da luta pela

vida A minha famiacutelia e ldquoamigos de casardquo Kaacutetia Clebinho Cidinha Roberto Ofeacutelia Caio

Paula Ciro Humberto Carlatildeo e ao pequeno Lucas

A Eloiacutesa Helena Santos a difiacutecil tarefa de agradecer Antes de tudo pelo seu passado

de respeito aos trabalhadores Os seus ensinamentos as suas orientaccedilotildees e as bibliografias

indicadas me permitiram um razoaacutevel avanccedilo acadecircmico Desde os primeiros encontros a sua

ajuda esteve aleacutem da orientaccedilatildeo do estilo da escrita agrave coragem do debate da paciecircncia agrave

amizade Serei sempre grato

A Antocircnia Vitoacuteria pela carinhosa acolhida agraves minhas inquietaccedilotildees pela

disponibilidade de sempre por ter me mostrado a importacircncia de voltar ao chatildeo de faacutebrica

Agradeccedilo por ter aceitado o convite para estar em nossa Banca

Ao professor Francisco de Paula Lima pela sua disponibilidade para o debate pelo

seu interesse em transformar o trabalho por ter aceitado participar da nossa Banca

Ao professor Antocircnio Juacutelio de Menezes por estar sempre aberto ao diaacutelogo pelo seu

interesse com as causas sociais por ter aceitado participar da nossa Banca

Aos professores e colegas do Nete que sempre nos acolheram e estiveram abertos ao

diaacutelogo Adriana Fernando Daisy Cunha Luciacutelia Dalila Justino Walter Ude Rosacircngela

Bebeto Mariana Veriacutessimo e Rogeacuterio Cunha

Aos funcionaacuterios da FAE em especial Rose Claacuteudio Elcio Claudia Adriana

Aos colegas de mestrado que estiveram conosco

Aos amigos do Uni-bh que desde a nossa graduaccedilatildeo satildeo solidaacuterios com a nossa

caminhada Em nome de todos esses eu dedico este trabalho ao professor e excepcional

amigo Wellington de Oliveira pelas inuacutemeras orientaccedilotildees por ter nos mostrado a

possibilidade de avanccedilar sobre o mundo do trabalho

Aos trabalhadores da Empresa T do chatildeo de faacutebrica ao escritoacuterio e Recursos

Humanos que ao seu modo sempre compartilharam os seus saberes conosco em especial aos

ferramenteiros que nos ensinaram um pouco do seu complexo ofiacutecio e nos encheram de

orgulho pela noccedilatildeo que tecircm dos seus saberes e da ideacuteia de coletivo Sabemos que

historicamente os trabalhadores tecircm motivos de sobra para escolher o que falar a hora de

falar e com quem falar Por isso achamos legiacutetima a posiccedilatildeo dos que falaram menos

v

O SER HOMEM SEGUNDO OS METALUacuteRGICOS

Haveria entre os metaluacutergicos um ponto de vista particular uma eacutetica ou uma forma

de se sentir homem Para aleacutem do risco de estar sendo machista o termo ser homem guarda

uma valorizaccedilatildeo para os que satildeo humanos com os colegas Daiacute que agradeccedilo aos inuacutemeros

colegas que me ensinaram a ser homem digo mais humano Desde o iniacutecio aos quinze anos

como torneiro mecacircnico pudemos aprender o que eacute ser e que natildeo eacute ser humano que a vida eacute

dentro e fora da faacutebrica Cleydson Fernando Vladimir Rocircmulo Minhoca Ater Ribeiro

Agradecemos aos que nos pagaram um pingado nas portarias das faacutebricas no

CincoContagem metaluacutergico que se preze jaacute procurou emprego no Cinco Aliaacutes quer

conhecer um metaluacutergico Vaacute a portaria de uma faacutebrica nos dias em que estatildeo ldquofichando

genterdquo Em uma dessas portarias eu ouvi pela primeira vez uma voz um carro de som e

algueacutem dizer ldquoCompanheirosrdquo Era a voz de Paulo Funghi e em seu nome eu dedico aos

outros tantos que satildeo exemplos da dignidade e da inteligecircncia operaacuteria Ao Marcelino

Edmundo Edgar e Faustatildeo em nome dos outros sindicalistas de Betim que debaixo do sol de

meio-dia ou sob o frio ou sob a chuva em vaacuterias madrugadas resistiram agraves provocaccedilotildees da

vigilacircncia e se posicionaram por melhores condiccedilotildees de trabalho Aos metaluacutergicos da Teksid

com os quais eu compartilhei muitas alegrias e anguacutestias dentro e fora da faacutebrica Zeacute Carlos

Jonas Vandeir Marcatildeo Chaveco Faacutebio Juacutelio Martinez Juacutelio (de Monlevade) Camilo Tiatildeo

Loctite Levi Adenor Joaquim Jaime Olimpio Chicos Elcio Paulo Couto Julinho do

Bolinha Baiano Buiuacute Nelson Pescador Liu Maacuterio Seacutergio

Um agradecimento especial ao Juracy Caratildeo e Orlando dois exemplos de honestidade

e solidariedade aos colegas dois homens que natildeo se importando com a truculecircncia natildeo se

deixaram intimidar e defenderam o direito a uma Cipa que funcione a sauacutede no trabalho dois

homens que devem ficar em nossa memoacuteria como exemplo de solidariedade Muito obrigado

por terem entendido que esta pesquisa eacute tambeacutem de vocecircs

Por fim retiraremos do anonimato um ferramenteiro da Teksid Era comum entre noacutes

fazermos uma lista de contribuiccedilotildees para ajudar um colega em situaccedilatildeo difiacutecil Em uma delas

ao levar a lista a este ferramenteiro ele me passou o dinheiro e no lugar onde deveria assinar

acabou fazendo um risco Ao dizer a ele para escrever o seu nome pois assim o nosso colega

poderia agradecer-lhe ele me respondeu mais ao menos assim ldquoNatildeo importa o nome importa

o exemplo que ele saiba que algueacutem o ajudou que ele jamais se esqueccedila dissordquo O nome

desse ferramenteiro eu natildeo lembro acho que nunca soube mas seu apelido era XUXA

ferramenteiro da manutenccedilatildeo do alumiacutenio Afinal natildeo importa o nome o importante eacute que o

vi

feito do homem permaneccedila em nossa memoacuteria como exemplo de humanismo O que eacute ser um

homem Eacute provaacutevel que a resposta esteja em construccedilatildeo mas natildeo me faltaram exemplos Daiacute

assumo daiacute confesso fui um metaluacutergico digo um peatildeo metaluacutergico

vii

RESUMO

Esta dissertaccedilatildeo tem como objeto de estudo as estrateacutegias que os ferramenteiros de uma induacutestria metaluacutergica da regiatildeo metropolitana de Belo Horizonte criam para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos Trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo que utilizou aleacutem da revisatildeo bibliograacutefica e documentos produzidos pelos trabalhadores entrevistas semi-estruturadas realizadas com os ferramenteiros e observaccedilotildees de campo O interesse pelo objeto dessa pesquisa surgiu das nossas reflexotildees como trabalhador metaluacutergico e da constataccedilatildeo de que a literatura que discute a presenccedila de saberes no processo de trabalho natildeo aborda as estrateacutegias criadas por um tipo de trabalhador o ferramenteiro Para desvelar o objeto dessa dissertaccedilatildeo utilizamos referenciais teoacutericos que discutem os modelos de organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho bem como os autores que seguindo a tradiccedilatildeo marxiana referendam o princiacutepio educativo do trabalho Contamos tambeacutem com os autores que a partir da noccedilatildeo oriunda da ergonomia de trabalho prescrito e trabalho real discutem a presenccedila do saber taacutecito no processo produtivo E ainda recorremos aos autores que analisam os saberes taacutecitos sob pontos de vistas variados

viii

REacuteSUMEacute

Cette recherche a comme objet drsquoeacutetude les strateacutegies creacuteeacutees par les outilleurs drsquoune industrie meacutetalurgique de la reacutegion de Belo Horizonte pour produire mobiliser et formaliser leurs savoirs tacites Il srsquoagit drsquoune recherche qualitative qui a utiliseacute au deacutelagrave de la reacutevision bibliografique lrsquoanalyse de documents produits par lrsquoenterprise et les travailleurs des entrevieus semi-structureacutees reacutealiseacutees avec les outilleurs et des observations Lrsquointeacuterecirct pour cet objet est neacute de nocirctres reflexions comme travailleur de la meacutetalurgie et de la constatation que la liteacuterature qui discute la preacutesence des savoirs dans le processus de travail ne prend pas les strateacutegies creacuteeacutees par un type de travailleur le outilleur Pour deacutevoiler lrsquoobject de recherche nous utilisons des reacutefeacuterences theacuteoriques qui discutent les modegraveles drsquoorganisation et de gestion du travaille aussi bien que les auteurs qui drsquoapregraves la tradition marxiste discutent le principie eacuteducatif du travail Nous avons pris aussi des auteurs qui font la distintion entre travail prescrit et travail reacuteel drsquoapregraves lrsquoergonomie pour signaler la preacutesence de savoirs tacites dans la production Nous avons pris encore des auteurs que analysent les savoirs tacites lons plusieurs angles

ix

BANCA EXAMINADORA

Professora Dra Eloiacutesa Helena Santos (Orientadora)- Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade

Federal de Minas GeraisUFMG

Professora Dra Antocircnia Vitoacuteria Soares Aranha - Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade Federal de Minas GeraisUFMG

Professor Dr Francisco de Paula Antunes Lima - Departamento de engenharia da produccedilatildeo da Universidade Federal de Minas GeraisUFMG

Professor Dr Antocircnio Juacutelio de Menezes Neto (suplente) - Faculdade de Educaccedilatildeo da

Universidade Federal de Minas GeraisUFMG

x

AGRADECIMENTOS

A minha matildee Adelina que desde a minha infacircncia foi tambeacutem meu pai e me

ensinou a ver na feacute Cristatilde o valor da perseveranccedila do amor ao proacuteximo e da compreensatildeo Agrave

memoacuteria do meu pai Geraldo Alves que em nossa curta relaccedilatildeo deixou o legado da luta pela

vida A minha famiacutelia e ldquoamigos de casardquo Kaacutetia Clebinho Cidinha Roberto Ofeacutelia Caio

Paula Ciro Humberto Carlatildeo e ao pequeno Lucas

A Eloiacutesa Helena Santos a difiacutecil tarefa de agradecer Antes de tudo pelo seu passado

de respeito aos trabalhadores Os seus ensinamentos as suas orientaccedilotildees e as bibliografias

indicadas me permitiram um razoaacutevel avanccedilo acadecircmico Desde os primeiros encontros a sua

ajuda esteve aleacutem da orientaccedilatildeo do estilo da escrita agrave coragem do debate da paciecircncia agrave

amizade Serei sempre grato

A Antocircnia Vitoacuteria pela carinhosa acolhida agraves minhas inquietaccedilotildees pela

disponibilidade de sempre por ter me mostrado a importacircncia de voltar ao chatildeo de faacutebrica

Agradeccedilo por ter aceitado o convite para estar em nossa Banca

Ao professor Francisco de Paula Lima pela sua disponibilidade para o debate pelo

seu interesse em transformar o trabalho por ter aceitado participar da nossa Banca

Ao professor Antocircnio Juacutelio de Menezes por estar sempre aberto ao diaacutelogo pelo seu

interesse com as causas sociais por ter aceitado participar da nossa Banca

Aos professores e colegas do NETE que sempre nos acolheram e estiveram abertos ao

diaacutelogo Adriana Fernando Daisy Cunha Luciacutelia Dalila Justino Walter Ude Rosacircngela

Bebeto Mariana Veriacutessimo e Rogeacuterio Cunha

Aos funcionaacuterios da FAE em especial Rose Claacuteudio Elcio Claudia Adriana

Aos colegas de mestrado que estiveram conosco

Aos amigos do Uni-bh que desde a nossa graduaccedilatildeo satildeo solidaacuterios com a nossa

caminhada Em nome de todos esses eu dedico este trabalho ao professor e excepcional

amigo Wellington de Oliveira pelas inuacutemeras orientaccedilotildees por ter nos mostrado a

possibilidade de avanccedilar sobre o mundo do trabalho

Aos trabalhadores da Empresa T do chatildeo de faacutebrica ao escritoacuterio e Recursos

Humanos que ao seu modo sempre compartilharam os seus saberes conosco em especial aos

ferramenteiros que nos ensinaram um pouco do seu complexo ofiacutecio e nos encheram de

orgulho pela noccedilatildeo que tecircm dos seus saberes e da ideacuteia de coletivo Sabemos que

historicamente os trabalhadores tecircm motivos de sobra para escolher o que falar a hora de

falar e com quem falar Por isso achamos legiacutetima a posiccedilatildeo dos que falaram menos

O SER HOMEM SEGUNDO OS METALUacuteRGICOS

Haveria entre os metaluacutergicos um ponto de vista particular uma eacutetica ou uma forma

de se sentir homem Para aleacutem do risco de estar sendo machista o termo ser homem guarda

uma valorizaccedilatildeo para os que satildeo humanos com os colegas Daiacute que agradeccedilo aos inuacutemeros

colegas que me ensinaram a ser homem digo mais humano Desde o iniacutecio aos quinze anos

como torneiro mecacircnico pudemos aprender o que eacute ser e que natildeo eacute ser humano que a vida eacute

dentro e fora da faacutebrica Cleydson Fernando Vladimir Rocircmulo Minhoca Ater Ribeiro

Agradecemos aos que nos pagaram um pingado nas portarias das faacutebricas no

CincoContagem metaluacutergico que se preze jaacute procurou emprego no Cinco Aliaacutes quer

conhecer um metaluacutergico Vaacute a portaria de uma faacutebrica nos dias em que estatildeo ldquofichando

genterdquo Em uma dessas portarias eu ouvi pela primeira vez uma voz um carro de som e

algueacutem dizer ldquoCompanheirosrdquo Era a voz de Paulo Funghi e em seu nome eu dedico aos

outros tantos que satildeo exemplos da dignidade e da inteligecircncia operaacuteria Ao Marcelino

Edmundo Edgar e Faustatildeo em nome dos outros sindicalistas de Betim que debaixo do sol de

meio-dia ou sob o frio ou sob a chuva em vaacuterias madrugadas resistiram agraves provocaccedilotildees da

vigilacircncia e se posicionaram por melhores condiccedilotildees de trabalho Aos metaluacutergicos da Teksid

com os quais eu compartilhei muitas alegrias e anguacutestias dentro e fora da faacutebrica Zeacute Carlos

Jonas Vandeir Marcatildeo Chaveco Faacutebio Juacutelio Martinez Juacutelio (de Monlevade) Camilo Tiatildeo

Loctite Levi Adenor Joaquim Jaime Olimpio Chicos Elcio Paulo Couto Julinho do

Bolinha Baiano Buiuacute Nelson Pescador Liu Maacuterio Seacutergio

Um agradecimento especial ao Juracy Caratildeo e Orlando dois exemplos de honestidade

e solidariedade aos colegas dois homens que natildeo se importando com a truculecircncia natildeo se

deixaram intimidar e defenderam o direito a uma Cipa que funcione a sauacutede no trabalho dois

homens que devem ficar em nossa memoacuteria como exemplo de solidariedade Muito obrigado

por terem entendido que esta pesquisa eacute tambeacutem de vocecircs

Por fim retiraremos do anonimato um ferramenteiro da Teksid Era comum entre noacutes

fazermos uma lista de contribuiccedilotildees para ajudar um colega em situaccedilatildeo difiacutecil Em uma delas

ao levar a lista a este ferramenteiro ele me passou o dinheiro e no lugar onde deveria assinar

acabou fazendo um risco Ao dizer a ele para escrever o seu nome pois assim o nosso colega

poderia agradecer-lhe ele me respondeu mais ao menos assim ldquoNatildeo importa o nome importa

o exemplo que ele saiba que algueacutem o ajudou que ele jamais se esqueccedila dissordquo O nome

desse ferramenteiro eu natildeo lembro acho que nunca soube mas seu apelido era XUXA

ferramenteiro da manutenccedilatildeo do alumiacutenio Afinal natildeo importa o nome o importante eacute que o

feito do homem permaneccedila em nossa memoacuteria como exemplo de humanismo O que eacute ser um

homem Eacute provaacutevel que a resposta esteja em construccedilatildeo mas natildeo me faltaram exemplos Daiacute

assumo daiacute confesso fui um metaluacutergico digo um peatildeo metaluacutergico

1 INTRODUCcedilAtildeO

Eacute salutar que um trabalho de pesquisa para ser apreendido em sua totalidade seja abor-

dado desde a sua concepccedilatildeo O objeto dessa pesquisa qual seja as estrateacutegias usadas pelos

ferramenteiros de uma induacutestria metaluacutergica da regiatildeo metropolitana de Belo Horizonte para a

produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e organizaccedilatildeo de seus saberes no trabalho surgiu de uma perspectiva

aberta pelo encontro da nossa formaccedilatildeo escolar da vivecircncia como trabalhador de uma induacutes-

tria metaluacutergica com o debate sobre o mundo do trabalho o que gerou um interesse em com-

preender os saberes produzidos no processo de trabalho Neste sentido entendemos que eacute

importante fazer uma recuperaccedilatildeo de uma parte dessa experiecircncia no setor fabril da nossa

inserccedilatildeo no universo teoacuterico sobre o mundo do trabalho e a dimensatildeo que esse encontro to-

mou na construccedilatildeo do objeto que norteia esta pesquisa

A nossa formaccedilatildeo iniciou-se no Senai aos 14 anos de idade por meio do curso de

Torneiro Mecacircnico de um ano e meio e posteriormente no periacuteodo da noite mais um ano de

Frezador Mecacircnico Logo depois iniciamos tambeacutem no turno da noite o Curso Teacutecnico em

Mecacircnica no Cefet-MG A esta formaccedilatildeo somou-se a nossa entrada no trabalho ocorrida aos

15 anos de idade Nesse periacuteodo o nosso discernimento a respeito do trabalho comeccedilou a ga-

nhar contornos mais elaborados influenciado pelo intercacircmbio que havia entre noacutes colegas

de trabalho e de curso o que produzia uma troca de informaccedilotildees ricas e variadas

Em que pese a contribuiccedilatildeo da formaccedilatildeo teacutecnica que tivemos foi no cotidiano do meu

trabalho e na realidade concreta da produccedilatildeo que surgiram as nossas inquietaccedilotildees mais impor-

1

tantes Estas foram encontrar guarida no nosso contato com os estudos da aacuterea de trabalho e

educaccedilatildeo em suas argumentaccedilotildees em defesa da centralidade da categoria trabalho e do princiacute-

pio educativo aiacute presente possibilitando a construccedilatildeo de uma problemaacutetica que gerou este

objeto de pesquisa

Logo em nosso iniacutecio como trabalhador metaluacutergico em 1986 o contato com a reali-

dade do trabalho nos colocou diante de novidades que contribuiacuteram para a construccedilatildeo da nos-

sa identidade de trabalhador e nos proporcionou uma aprendizagem que ultrapassou os limi-

tes da educaccedilatildeo formal Ainda movido pela disciplina dos tempos de Senai qualquer condiccedilatildeo

adversa era encarada como desafio a ser enfrentado por quem pretendia ser ldquobom de serviccedilordquo

o que implicava executar um trabalho muitas vezes sem o devido preparo ou o uso de equi-

pamentos de seguranccedila obsoletos Esta realidade nos fazia mobilizar saberes de toda ordem e

chamava a nossa atenccedilatildeo para os saberes dos meus colegas

Em 1992 iniciamos um estaacutegio de teacutecnico mecacircnico em uma empresa metaluacutergica do

setor de autopeccedilas pertencente ao grupo Fiat Apoacutes seis meses de estaacutegio fomos efetivado

como teacutecnico no setor de manutenccedilatildeo e implantaccedilatildeo de equipamentos Isso se deu exatamente

no momento em que a empresa iniciou um trabalho preparatoacuterio para sua certificaccedilatildeo de a-

cordo com as exigecircncias do mercado automobiliacutestico tal como a ISO 90001 Em seguida

veio a QS 9000 uma adaptaccedilatildeo da anterior feita pelas empresas automobiliacutesticas norte- ame-

ricanas Chrysler Ford e General Motors A adequaccedilatildeo agrave reestruturaccedilatildeo produtiva atraveacutes des-

tes sistemas de normas busca tornar o processo produtivo mais confiaacutevel tecnicamente e mais

controlaacutevel tambeacutem Ambos os sistemas determinam que sejam criados registros conhecidos

como procedimentos por meio dos quais descreve-se ldquotodordquo o processo de produccedilatildeo desde a

chegada da mateacuteria-prima agrave embalagem do produto

1 De acordo com CARVALHO (1996) A ISO (International Stander Organization) no paracircmetro 9000 especi-fica requisitos para um sistema de gestatildeo da qualidade que podem ser usados pelas organizaccedilotildees para uma apli-caccedilatildeo interna para certificaccedilotildees ou para fins contratuais

2

Chamou a nossa atenccedilatildeo o fato de que esta dinacircmica significava uma apropriaccedilatildeo do

saber dos operaacuterios uma vez que muitas das pequenas modificaccedilotildees por eles feitas para facili-

tar o seu trabalho eram obrigatoriamente documentadas tornando-se um know how da empre-

sa A partir desses registros era possiacutevel por exemplo mapear os passos dados para o sucesso

de determinadas atividades bem como identificar as possiacuteveis falhas da engenharia

Fazia parte desta dinacircmica uma gama de programas que incentivavam os trabalhadores

a se integrarem ao projeto de desenvolvimento de boas ideacuteias para a melhoria da produtivida-

de e qualidade da empresa Tambeacutem observaacutevamos quais eram as circunstacircncias que nos fa-

voreciam produzir saberes e como os usaacutevamos a influecircncia do ensino formal na produccedilatildeo de

saberes no processo de trabalho propriamente dito e sobretudo a cooperaccedilatildeo dos colegas

Esta experiecircncia enriquecida de outras da mesma natureza vividas por nossos colegas

trabalhadores nos levou a problematizar as situaccedilotildees que envolvem o saber no processo de

trabalho Sabiacuteamos possuir um modo proacuteprio de produzir saberes de mobilizaacute-los e organizaacute-

los inclusive com troca de informaccedilotildees longe das maacutequinas agraves vezes no horaacuterio de almoccedilo

na hora do banho ou no trajeto para a aula entre aqueles que frequumlentavam a mesma escola O

trabalho se apresentava como afirmaccedilatildeo da nossa inteligecircncia e do gosto pela profissatildeo

Foi neste mesmo espaccedilo que noacutes nos percebemos enquanto um trabalhador que aleacutem

de produzir um saber nem sempre imaginado pelo capital mas necessaacuterio para a produccedilatildeo

desenvolvia condiccedilotildees de viver o trabalho enquanto espaccedilo de afirmaccedilatildeo pessoal e identitaacuteria

com a nossa classe

O interesse em conhecer melhor o mundo do trabalho nos levou ao curso superior de

Histoacuteria Paralelamente o nosso trabalho na faacutebrica continuou a ser um objeto de observaccedilatildeo

cada vez mais instigante agrave medida que iacuteamos associando o nosso cotidiano no trabalho com as

disciplinas do curso e especialmente com o tema da reestruturaccedilatildeo capitalista tratada na sala

de aula Nesse processo tambeacutem dava primazia agrave questatildeo da presenccedila de saberes no trabalho

3

As nossas possibilidades de fazer uma leitura da dimensatildeo positiva do trabalho o que

segundo Charlot (2000 p 30) significa ldquoler de outra maneira o que eacute lido como falta pela

leitura negativardquo foram sendo ampliadas e refinadas a partir do ano de 2001 quando nos a-

proximamos das atividades do Nete ndash Nuacutecleo de Estudos sobre Trabalho e Educaccedilatildeo da FAE-

UFMG especialmente dos trabalhos das professoras Antocircnia Vitoacuteria Aranha (1997) e Eloiacutesa

Helena Santos (1997 2000) Estas pesquisadoras ao ldquodesnaturalizaremrdquo o saber taacutecito situ-

ando-o como um processo histoacuterico social e subjetivo acabaram nos permitindo definir o

saber taacutecito no processo de trabalho mais especificamente as estrateacutegias usadas pelos traba-

lhadores para produzir mobilizar e organizar o seu saber como objeto desta pesquisa Portan-

to o nosso objetivo nesta dissertaccedilatildeo eacute analisar as estrateacutegias que os ferramenteiros de uma

induacutestria metaluacutergica mineira usam para produzir mobilizar e organizar os seus saberes no

trabalho

11 ESTRUTURACcedilAtildeO DA PESQUISA

Esta dissertaccedilatildeo estaacute organizada do seguinte modo

No primeiro capiacutetulo buscaremos apresentar a presenccedila de saberes no processo de tra-

balho pela seguinte trilha

bull A partir do diaacutelogo com a literatura que aborda a presenccedila de saberes no processo

de trabalho e da nossa experiecircncia em chatildeo de faacutebrica apresentaremos a relevacircncia

acadecircmica e social desta pesquisa bem como os seus objetivos

bull Tambeacutem a partir do que encontramos nas pesquisas sobre esse tema e de alguns

casos que vivenciamos como metaluacutergico seraacute apresentada a nossa hipoacutetese qual

4

seja que os ferramenteiros para dar conta do trabalho real criam estrateacutegias de pro-

duccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo dos seus saberes taacutecitos

bull Apresentaccedilatildeo do nosso referencial teoacuterico e das estrateacutegias metodoloacutegicas que u-

samos na pesquisa para coletar os dados

bull e por fim a nossa imersatildeo no campo da pesquisa

No segundo capiacutetulo apresentaremos como a literatura trata o saber taacutecito Esta parte

estaacute organizada da seguinte forma

bull O saber do trabalhador nos modelos de organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho preconiza-

do pelo taylorismofordismo e pelo modelo japonecircs

bull A importacircncia que a literatura atribui agrave presenccedila de saberes no processo do trabalho

e sobretudo ao saber taacutecito do trabalhador

bull O saber taacutecito como objeto de discussatildeo segundo a literatura que aborda essa temaacute-

tica

No terceiro capiacutetulo iremos descrever o nosso campo de pesquisa caracterizando os

seguintes aspectos

bull O setor automotivo

bull O setor de autopeccedilas

bull A ferramentaria

bull Os ferramenteiros

bull O grupo da empresa pesquisada

bull A empresa pesquisada

No quarto capiacutetulo faremos a anaacutelise dos dados obtidos na pesquisa de campo

Por fim apresentaremos as nossas consideraccedilotildees finais pelas quais proporemos alguns

desdobramentos bem como consideraremos os resultados deste trabalho em relaccedilatildeo agraves aacutereas

que investigam a presenccedila de saberes no processo de trabalho

5

12 Por que investigar a presenccedila de saberes no processo de trabalho

A questatildeo dos saberes presentes no processo de trabalho vem se constituindo como um

dos temas mais discutidos na atualidade A complexidade e a importacircncia deste assunto torna-

ram-no um tema multidisciplinar abrangendo aacutereas da educaccedilatildeo sociologia psicologia ciecircn-

cias da informaccedilatildeo engenharia mobilizando vaacuterios pesquisadores (SANTOS 19852 ARA-

NHA 19973 LIMA 19984 ASSIS 20005) De acordo com Evangelista (2002) ldquoDesde a

deacutecada de 60 autores como Drucker e Galbrait jaacute indicavam que o conhecimento tenderia a

ser o principal fator de produccedilatildeordquo (p 13)

Na medida em que se concretiza a importacircncia do saber no atual mundo do trabalho

aumenta tambeacutem o interesse de pesquisadores por essa temaacutetica Trein (1996 p 32) por e-

xemplo avalia que o interesse do capital por esta questatildeo ocorre ldquodiante do imperativo da

flexibilizaccedilatildeo da economia mundializadardquo Evangelista (2002 p 15) aponta alguns aspectos

da atual fase do capitalismo que reforccedilam o interesse do capital pela presenccedila de saberes no

processo de trabalho ldquoSer diferente e criativo significa maior lucro no mercado competitivo e

para o capital esses elementos podem estar focados nas informaccedilotildees e conhecimentos que

circulam no acircmbito da produccedilatildeordquo

A importacircncia do saber para as empresas no atual momento se configura de forma tal

que os empresaacuterios se organizaram em torno de discussotildees sobre a educaccedilatildeo fazendo coro

2 Dissertaccedilatildeo SANTOS E H Trabalho e educaccedilatildeo o cotidiano do operaacuterio na faacutebrica Belo Horizonte FA-EUFMG 1985 SANTOS E H Le savoir en travail lrsquoexpeacuterience de deacuteveloppement technologique par les travailleurs drsquoune industrie breacutesilienne Paris Universiteacute de Paris VIII 1991 (Tese Doutorado Deacutepartament des Sciences drsquo Education) 3 ARANHA A V S O conhecimento taacutecito e qualificaccedilatildeo do trabalhador Trabalho e Educaccedilatildeo Belo Hori-zonte NeteFAEUFMG n 2 p 13-29 agodez 1997 4 LIMA F P A SILVA C A D A objetivaccedilatildeo do saber praacutetico na concepccedilatildeo de sistemas especialistas das regras formais agraves situaccedilotildees de accedilatildeo Belo Horizonte 1998 (Mimeo) 5 Dissertaccedilatildeo ASSIS R W Os impactos das novas tecnologias nas formas de sociabilidade e no savoir-faire dos operadores um estudo de caso do setor sideruacutergico Belo Horizonte Faculdade de Psicologia da UFMG 2000

6

por uma formaccedilatildeo baseada na noccedilatildeo de competecircncia6 Aleacutem disso os empresaacuterios atraveacutes de

organismos como Senai Fiemg Fiesp e outros constantemente promovem seminaacuterios em

torno do tema (CARVALHO 1999 HORTA et al 2000)

A problemaacutetica dos saberes no trabalho posta em diaacutelogo com os interesses dos traba-

lhadores vem encontrando guarida tambeacutem nas reflexotildees em vaacuterios nuacutecleos de estudos7e jaacute

haacute algum tempo mobiliza pesquisas e debates No que se refere ao campo de estudos sobre

trabalho e educaccedilatildeo dentre outros destacam-se as abordagens sobre a presenccedila de saberes do

trabalhador no processo de trabalho as novas tecnologias e a organizaccedilatildeo do processo produ-

tivo e as poliacuteticas puacuteblicas e privadas para a educaccedilatildeo profissional (TREIN 1996 p 32 FI-

DALGO amp MACHADO 2000 p 338)

Alguns elementos verificados pelas pesquisas realizadas nesse campo bem como a

nossa experiecircncia em chatildeo de faacutebrica assinalam que esse tema tambeacutem mobiliza os interes-

ses dos trabalhadores Entretanto entendemos que ainda faltam elementos que favoreccedilam uma

organizaccedilatildeo coletiva dos trabalhadores centrada na valorizaccedilatildeo e uso dos seus saberes sendo

que muito do que foi colocado como relevante para os interesses dos trabalhadores ainda natildeo

foi suficientemente esclarecido como por exemplo as possibilidades de formalizaccedilatildeo e legi-

timaccedilatildeo dos seus saberes (ARANHA 1997 SANTOS 1985 1997 2000)

As pesquisas que enveredaram pela investigaccedilatildeo da presenccedila de saberes no processo

de trabalho discutem o reconhecimento do proacuteprio capital sobre a importacircncia do saber do

trabalhador no processo produtivo No entanto questionam este reconhecimento pode ser

traduzido em ganhos para os trabalhadores Se haacute algum ganho quais satildeo eles Na tentativa

de responder a essas questotildees Aranha (1997) Santos (1985 1997 2000) Machado (1999)

6 A polecircmica sobre o uso da noccedilatildeo de competecircncia pode ser encontrada em FIDALGO amp MACHADO (2000 p 56 e120) SANTOS (2003) 7 Segundo FIDALGO amp OLIVEIRA (2001) NETEFAEUFMG Nuacutecleo de Estudo sobre Trabalho e Educaccedilatildeo da Faculdade de Educaccedilatildeo da UFMG NESTHFAFICHUFMG Nuacutecleo de Estudo sobre o Trabalho Humano NEDATEUFF Nuacutecleo de documentaccedilatildeo e dados sobre trabalho e educaccedilatildeo Grupo Trabalho - Educaccedilatildeo Carlos Chagas e da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo NTEUFC Nuacutecleo Trabalho e Educaccedilatildeo da Univer-sidade Federal do Cearaacute Conferir dossiecirc trabalho e educaccedilatildeo publicado em Educaccedilatildeo em Revista (2001)

7

defendem a necessidade de se investigar o saber no trabalho a partir da perspectiva que o tra-

balhador confere a este saber Nesse sentido eacute vaacutelido acrescentar uma observaccedilatildeo feita por

Santos (1997)

A capitalizaccedilatildeo dos benefiacutecios proporcionados pelo saber do trabalhador agrave produ-ccedilatildeo eacute uma estrateacutegia jaacute colocada em marcha pelos empresaacuterios Fica a tarefa de construir uma alternativa que deixando de ser resistecircncia passiva e natildeo caindo na co-gestatildeo do saber no trabalho resgate o valor epistemoloacutegico social poliacutetico e cultural do saber do trabalhador (p 26)

Apresentada a importacircncia do tema na perspectiva dos trabalhadores emerge uma

pergunta como as pesquisas sobre este tema poderiam favorecer a proposta de Santos A

nosso ver uma possibilidade de resposta pode ser construiacuteda a partir de uma investigaccedilatildeo que

considere a capacidade dos trabalhadores de chatildeo de faacutebrica de interpretar o mundo do traba-

lho

Esse tema tambeacutem se faz presente na literatura que discute a questatildeo das poliacuteticas

puacuteblicas em educaccedilatildeo mais precisamente aquelas voltadas para a formaccedilatildeo profissional No

atual momento como demonstraram Evangelista (2002) Machado (1999) Souza (2002) e

Kuenzer (1997) o processo de reestruturaccedilatildeo produtiva vem requisitando um trabalhador com

uma formaccedilatildeo baacutesica mais soacutelida e ampliada As pesquisas revelam que os capitalistas pres-

sionam por uma concepccedilatildeo de educaccedilatildeo pautada em um modelo de competecircncias que garanta

a formaccedilatildeo de um trabalhador que exerccedila com excelecircncia multitarefas (KUENZER 1997

CARVALHO 1999)

Dessa forma investigar a presenccedila de saberes no trabalho corresponde a uma demanda

extremamente atual seja qual for o foco privilegiado Todavia entendemos que para avanccedilar

em relaccedilatildeo ao que estaacute disponiacutevel na literatura apreciada eacute necessaacuterio conhecer mais sobre os

saberes produzidos pelos trabalhadores Nossa contribuiccedilatildeo se refere aos caminhos que os

trabalhadores percorrem para produzir seus saberes e ao fato de apresentar de que forma eles

8

satildeo mobilizados e formalizados Daiacute que elegemos investigar as estrateacutegias usadas pelos fer-

ramenteiros de uma induacutestria metaluacutergica para produzir mobilizar e formalizar os seus sabe-

res

Se de um lado as pesquisas demonstram que o saber taacutecito do trabalhador estaacute se

constituindo como um objeto que mobiliza diversos interesses por outro lado alguns pesqui-

sadores explicitaram a necessidade de se ampliarem as investigaccedilotildees De acordo com Aranha

(1997)

O conhecimento taacutecito embora decisivo natildeo tem merecido ainda o enfoque neces-saacuterio Primeiro por sua dificuldade em expressar-se de forma sistematizada ou pela ausecircncia de interesses reais de quem deteacutem o controle dos processos de trabalho e de formaccedilatildeo de alccedilaacute-lo no niacutevel de ldquoconhecimento cientiacuteficorsquorsquo Segundo porque muitas vezes eacute tido como ldquoalgordquo natural e natildeo fruto de um processo social de cons-truccedilatildeo (p 26)

Neste sentido esta investigaccedilatildeo se justifica tambeacutem pela possibilidade de trazer novos

elementos teoacutericos e praacuteticos que subsidiem os trabalhadores nos seus esforccedilos de formalizar

e legitimar os seus saberes

As investigaccedilotildees sobre o saber no trabalho podem contribuir com as poliacuteticas puacuteblicas

educacionais na medida em que permitem conhecer outras formas de apreensatildeo da realidade e

de construccedilatildeo de saberes bem como verificar a influecircncia da escola formal na produccedilatildeo des-

ses saberes Tem-se ainda a chance de validar os saberes dos trabalhadores ao se incorporar

essas novas formas no debate escolar reforccedilando a perspectiva de uma formaccedilatildeo pelo traba-

lho e natildeo exclusivamente para o trabalho Essa praacutetica jaacute eacute relativamente consagrada no setor

produtivo conforme esclarece Therrien (1996) ldquoO debate da lsquoqualidade totalrsquo nascido do

chatildeo das interaccedilotildees da faacutebrica evidenciou capacidades de elaboraccedilatildeo de soluccedilotildees de constru-

ccedilotildees de saberes que manifestam lsquoexistecircncia de racionalidadersquo que fogem aos padrotildees formais

da ciecircncia e da tecnologiardquo (p 67)

9

A investigaccedilatildeo sobre o saber taacutecito do trabalhador poderaacute contribuir tambeacutem com o

debate sobre o ldquoalavancamentordquo tecnoloacutegico do Brasil uma vez que as pesquisas apontam

que a tecnologia presente no processo de trabalho tem um deacutebito com o saber taacutecito do traba-

lhador Essa possibilidade se apresenta em uma reflexatildeo de Santos (2000)

O desenvolvimento tecnoloacutegico as inovaccedilotildees teacutecnicas se concretizam por uma so-ma de pequenas e grandes iniciativas de pequenas e grandes decisotildees de pequenas e grandes conquistas dos trabalhadores O domiacutenio dos processos teacutecnicos se expe-rimenta dia apoacutes dia

Em que pese a contribuiccedilatildeo das pesquisas sobre a questatildeo do saber no processo de tra-

balho persistem ainda algumas lacunas que ficam evidenciadas pelo aparente consenso de

que o saber taacutecito natildeo eacute formalizaacutevel Aranha afirma que segundo Machado ldquoAs qualifica-

ccedilotildees taacutecitas satildeo como um saber-fazer complementar e necessaacuterio ao sistema teacutecnico intuitivo

e natildeo codificaacutevelrdquo (ARANHA 1997 p 13)

Em nosso entendimento o debate dessa perspectiva aparentemente consensual eacute pos-

siacutevel e se constitui como um desafio a ser perseguido cuja expectativa eacute contribuir para a va-

lorizaccedilatildeo do saber do trabalhador como diz Santos (1997) em suas dimensotildees ldquo() epistecircmi-

ca econocircmica e culturalrdquo

Por fim mesmo reconhecendo o saber do trabalhador como um objeto complexo con-

sideramos que uma parte da lacuna sobre o saber taacutecito se deva ao fato de que a maioria das

pesquisas sobre esse tema tenha privilegiado uma abordagem que natildeo explora em profundida-

de o como estes saberes satildeo produzidos mobilizados e formalizados por um segmento impor-

tante da induacutestria mecacircnica os ferramenteiros Dessa forma a nossa pesquisa pretende conhe-

cer os caminhos percorridos pelos trabalhadores ferramenteiros para produzir mobilizar e

formalizar os seus saberes

Neste sentido acreditamos que esta pesquisa ao aceitar o desafio de apreender as es-

trateacutegias usadas pelos ferramenteiros para produzir mobilizar e formalizar seus saberes con-

10

tribuiraacute com elementos de ordem teoacuterica e praacutetica para a discussatildeo em torno da legitimidade

do saber taacutecito e cobriraacute uma lacuna no campo de trabalho e educaccedilatildeo com novas descobertas

acerca dos saberes presentes no processo de trabalho Auxiliaraacute tambeacutem as poliacuteticas puacuteblicas

voltadas para a formaccedilatildeo do trabalhador ao apresentar outras formas de produccedilatildeo de saberes e

de apreensatildeo da realidade Portanto os objetivos que nortearam esta pesquisa satildeo

bull Conhecer os caminhos que os ferramenteiros percorrem para produzir mobilizar e

formalizar os seus saberes taacutecitos

bull Verificar se esses caminhos se transformam ou natildeo em meacutetodos de trabalho dos fer-

ramenteiros

bull Verificar a legitimidade que os ferramenteiros atribuem agraves suas estrateacutegias de pro-

duccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes taacutecitos

Se por um lado entendemos como necessaacuterio apresentar a nossa problematizaccedilatildeo so-

bre a hipoacutetese de que os ferramenteiros possam desenvolver estrateacutegias para produzir mobili-

zar e formalizar seus saberes por outro lado eacute importante salientar que ao definirmos as es-

trateacutegias usadas pelos ferramenteiros como produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes

natildeo buscamos demarcar uma separaccedilatildeo hermeacutetica entre elas e sim analisar se as suas seme-

lhanccedilas e diferenccedilas se articulam Por este motivo apresentaremos um breve debate sobre

essas trecircs categorizaccedilotildees

121 A produccedilatildeo de saberes

As pesquisas que abordam a questatildeo da produccedilatildeo de saberes pelo trabalhador afirmam

que esses saberes se apresentam perante a necessidade do trabalhador superar determinadas

dificuldades no processo de trabalho dados os limites da engenharia em prescrever o que de-

ve ser feito para garantir a realizaccedilatildeo de uma atividade trabalho (MACHADO 1999 ASSIS

11

2000) A partir dessa perspectiva quando discutimos o saber taacutecito acabamos por aproximar

essa noccedilatildeo de uso do saber com a inventividade e a criatividade do trabalhador dentro do pro-

cesso de trabalho ou seja com as ldquosaiacutedasrdquo e as ldquogambiarrasrdquo criadas pelos trabalhadores para

realizarem um determinado trabalho

Um dos pressupostos que sustenta a possibilidade de que os trabalhadores possam

produzir saberes reside na tese de que o trabalho eacute marcado por um princiacutepio educativo San-

tos (2000) faz uma consideraccedilatildeo sobre essa possibilidade

() trabalhar eacute satisfazer uma exigecircncia - produzir - mas estreitamente ligada ao fa-to de criar de aprender de desenvolver de dominar de adquirir um saber Traba-lhar eacute procurar preencher certas lacunas do saber e desse modo as suas proacuteprias Quer dizer desenvolver se informar se formar Se transformar se experimentar e experimentar sua inteligecircncia (p 129)

A consideraccedilatildeo de que o trabalho eacute marcado por um princiacutepio educativo se potenciali-

za segundo as pesquisas mediante a incapacidade da engenharia enquanto um conjunto de

saberes formalizados em dar conta das demandas reais e que satildeo necessaacuterias para garantir o

andamento do processo produtivo (SANTOS 1997 SALERNO 1994) Essa incapacidade da

gerecircncia deixa um espaccedilo no processo de trabalho para as chamadas situaccedilotildees imprevistas Eacute

diante do inesperado que a criatividade do trabalhador em solucionar os problemas do traba-

lho faz a diferenccedila entre o que a engenharia prescreve e o que realmente ocorre no processo

de trabalho O capital usa esse expediente de forma que a gerecircncia convoca e pressiona por

soluccedilotildees do chatildeo de faacutebrica mesmo sabendo que a situaccedilatildeo se desenvolve dentro do inespe-

rado Evangelista (2002) fez a seguinte observaccedilatildeo a esse respeito ldquoSe as situaccedilotildees estatildeo fora

do previsto natildeo importa eacute preciso produzir garantindo o ecircxitordquo (p 131)

Ao usar a sua inteligecircncia para superar os entraves do ldquoinesperadordquo o trabalhador i-

nova produzindo saberes e tambeacutem aprende a aprender A possibilidade de que a relaccedilatildeo do

trabalhador com os imprevistos do processo produtivo se configure como um momento peda-

12

goacutegico foi apontada por Machado (1999) ldquoHaacute uma escolha a ser feita e que nas situaccedilotildees de

trabalho entra em uma perspectiva dialeacutetica entre as regras do saber estabelecido e o natildeo-

saber que o acaso impotildee promovendo um processo de construccedilatildeo de saber no trabalhordquo (p

151)

A inteligecircncia do trabalhador lhe permite ir aleacutem da superaccedilatildeo do inesperado Ao pocircr a

sua criatividade em marcha os trabalhadores buscam realizar o seu trabalho da forma mais

confortaacutevel mais bonita ou mais faacutecil8 Eacute nesse contexto que surgem os ldquoatalhosrdquo Santos

(1985) em uma pesquisa sobre o trabalho dos caldeireiros nos revela que esses profissionais

a partir da produccedilatildeo de ldquomacetesrdquo ou ldquogambiarrasrdquo criavam soluccedilotildees para facilitarem a reali-

zaccedilatildeo do seu trabalho Essa pesquisadora (1985 p 62) apresenta o depoimento de um traba-

lhador sobre essa questatildeo ldquoA gente costuma fazer ferramentas para facilitar o nosso trabalho

espaacutetula cachorro e gabarito () Vamos dizer que a gente vai fazer um cone que eacute a peccedila

mais difiacutecil de calandrar A gente sempre usa um macete qualquer e adianta maisrdquo

Se de um lado eacute o imprevisiacutevel e o natildeo-prescrito pela engenharia que convocam o sa-

ber taacutecito do trabalhador por outro lado a fecundidade dos macetes e das intervenccedilotildees do

trabalhador dialoga com os tipos de meio de produccedilatildeo especiacuteficos em cada processo de traba-

lho De acordo com Evangelista (2002) ldquoA tecnologia e o maquinaacuterio usado na produccedilatildeo

influem significativamente na possibilidade que os trabalhadores tecircm de construccedilatildeo e de

controle do conhecimento mobilizado no processo de trabalhordquo (p 134)

Essa consideraccedilatildeo aparece nas pesquisas principalmente nos processos automatizados

como um algo a mais na produccedilatildeo de saber no trabalho Assis (2000) ao investigar o monito-

ramento da produccedilatildeo em uma siderurgia feita pelos operadores atraveacutes dos paineacuteis de contro-

le observa que a obrigaccedilatildeo de anular os possiacuteveis danos causados pelos imprevistos leva-os a

produzir um novo saber

8 Em vaacuterias induacutestrias em que trabalhamos existia a expressatildeo ldquojogar faacutecilrdquo

13

Observamos tambeacutem que a ldquovigilacircnciardquo dos operadores no acompanhamento natildeo significa apenas uma qualidade visual ou sensorial mas faz emergir um saber mais abstrato sendo tudo isto necessaacuterio quando se reconhece a falibilidade dos meios teacutecnicos e a possibilidade de imprevistos (p 94)

Outro exemplo dessa natureza que consideramos importante eacute o caso da produccedilatildeo de

saberes em empresas que possuem maacutequinas com CNC9 Essas empresas frequumlentemente op-

tam por colocarem como operadores de CNC torneiros mecacircnicos com experiecircncia em maacute-

quina convencional Ao fazerem essa opccedilatildeo as empresas levam em consideraccedilatildeo a capacida-

de dos torneiros mecacircnicos de anteciparem os possiacuteveis problemas com o CNC Um desses

casos foi identificado por Vieira apud Evangelista (2002)

No caso do trabalhador possuir um conhecimento preacutevio adquirido no uso de tec-nologia convencional quando ele se depara com uma maacutequina do tipo CNC de tecnologia avanccedilada eacute possiacutevel unir teoria e praacutetica essa uacuteltima adquirida na maacute-quina convencional No entanto para aqueles que iniciaram a praacutetica diretamente nesta maacutequina CNC fica mais difiacutecil diagnosticar por exemplo a origem de deter-minado problema no processo (p 135)

No caso do CNC apresenta-se ainda uma produccedilatildeo de saber muito complexa Um

exemplo concreto de resoluccedilatildeo de um problema e antecipaccedilatildeo de outro cujo tipo de maacutequina

e tecnologia interfere na produccedilatildeo de saber eacute abordado por Salerno (1994) O saber adquirido

no trabalho em maacutequinas convencionais auxiliou os trabalhadores natildeo somente na detecccedilatildeo de

um problema no programa do CNC mas permitiu-lhes elaborar um programa melhor do que o

da engenharia

Numa faacutebrica que visitamos um programa consistia em fazer um pesado corte num bloco de alumiacutenio - uma operaccedilatildeo que gera calor consideraacutevel ndash e entatildeo fazer dois furos com distacircncia precisa entre eles Quando os passos do programa satildeo carrega-dos nessa ordem a distacircncia entre os furos diminui agrave medida em que o alumiacutenio es-fria O operaacuterio foi capaz de corrigir o problema alterando o programa para fazer primeiro a furaccedilatildeo (SHAIKEN apud SALERNO 1994 p 73)

9 De acordo com FARIA (1997) CNC ndash Comando Numeacuterico Computadorizado eacute um ldquocomando com capacida-de de receber informaccedilotildees memorizar executar caacutelculos e transmiti-los agrave maacutequina para execuccedilatildeo da peccedilardquo (p 39)

14

122 A mobilizaccedilatildeo de saberes

Se as pesquisas confirmam a chance de o trabalhador produzir saberes no trabalho em

nosso entendimento quando avanccedilamos sobre essa possibilidade nos remetemos a algumas

indagaccedilotildees dentre as quais quais elementos os trabalhadores mobilizam para produzir seus

saberes taacutecitos A literatura que aborda o tema aponta alguns elementos que poderiam favore-

cecirc-lo tais como a escolarizaccedilatildeo formal a experiecircncia no trabalho e as relaccedilotildees sociais dentro

e fora do ldquochatildeo de faacutebricardquo

No que se refere agraves influecircncias recebidas pelos trabalhadores da escola formal temos

um debate multifacetado De um lado as pesquisas revelam que no padratildeo flexiacutevel e integra-

do haacute uma exigecircncia por parte das empresas de uma maior escolarizaccedilatildeo dos trabalhadores

com base na suposiccedilatildeo de que em funccedilatildeo das multitarefas e da presenccedila da informaacutetica no

processo de trabalho as tarefas exigem uma maior cogniccedilatildeo do operaacuterio (KUENZER1996

EVANGELISTA 2002 ARAUacuteJO 2001 SOUZA 2002) Ainda nessa seara investigar as

estrateacutegias que os trabalhadores possuem para produzir mobilizar e formalizar seus saberes

poderaacute revelar de que forma os saberes aprendidos na escola formal influenciam ou natildeo as

soluccedilotildees criadas pelos operaacuterios nas situaccedilotildees de trabalho

Por outro lado alguns autores defendem que a convivecircncia com o processo de traba-

lho ou seja a experiecircncia profissional continua sendo um fator fundamental que subsidia a

elaboraccedilatildeo do saber do trabalhador e que a influecircncia da escolarizaccedilatildeo formal ocuparia um

plano secundaacuterio Vieira apud Evangelista (2002 p 124) apresenta por exemplo uma anaacuteli-

se que questiona a cobranccedila do ensino meacutedio por parte da Fiat em relaccedilatildeo agraves exigecircncias reais

do processo de trabalho ldquo() considerando o contexto da empresa conclui-se que o quadro

funcional do motor Fire com trabalhadores mais escolarizados decorre mais de uma questatildeo

de oferta (de trabalhadores formados) do que de demanda (da proacutepria produccedilatildeo)rdquo Carvalho

15

apud Evangelista (2002 p 133) aprofunda esse questionamento e afirma ldquo() os trabalhado-

res tecircm consciecircncia de que a formaccedilatildeo profissional natildeo abrange amplamente a praacutetica cotidia-

na de trabalho e que o valor formativo da experiecircncia tem que ser levado em contardquo

Outro exemplo que articula a construccedilatildeo do saber taacutecito com experiecircncia profissional

se remete agrave questatildeo do erro no processo do trabalho O capital tende a se posicionar distinta-

mente em relaccedilatildeo aos erros da concepccedilatildeo e da execuccedilatildeo Essa distinccedilatildeo eacute conhecida pelos

trabalhadores o que torna o erro um momento de aprendizagem para o trabalhador e parte

fundamental da construccedilatildeo do seu saber taacutecito

Um comentaacuterio acerca do erro foi feito por Vieira apud Evangelista (2002) quando

relata a fala de um trabalhador da Fiat ldquoSegundo o entrevistado os trabalhadores brasileiros

em comparaccedilatildeo aos italianos ofereciam uma vantagem importante nessa dinacircmica competiti-

va pois inovam bastante e natildeo tecircm medo de errar () a gente vai tentando fazendo diferente

uma hora daacute certordquo (p 132)

Alves Carvalho aponta a demanda de um outro saber-fazer em um contexto de incerte-

zas no mundo do trabalho Como cita Machado (1999) ldquoA gestatildeo da competecircncia requisita

habilidades cognitivas e comportamentais para lidar com o novo e com o incertordquo (p 186) O

que estas pesquisas natildeo problematizaram eacute como os trabalhadores se apropriam dos seus erros

e dos erros dos seus colegas e de como estes erros se transformam em saberes

Por fim alguns autores destacam a influecircncia do aspecto coletivo ou das relaccedilotildees soci-

ais na produccedilatildeo do saber Evangelista (2002) Assis (2000) Arauacutejo (2002) Souza (2002) e

Machado (1999) afirmam que o capital ao reconhecer a dimensatildeo coletiva do saber do traba-

lhador busca ao seu modo recriar espaccedilos de coletividade para facilitar a integraccedilatildeo do saber

do trabalhador no processo produtivo O capital trabalha ainda com a hipoacutetese de que saberes

diferenciados possam se complementar no processo produtivo Um desses casos pode ser ve-

rificado na pesquisa de Evangelista (2002 p 76) onde se destaca a introduccedilatildeo de uma outra

16

sociabilidade no processo produtivo feita pela Fiat na figura das UTEs (Unidades Tecnoloacutegi-

cas Elementares) ldquoTrata-se de uma estrateacutegia que visa reunir profissionais de vaacuterias aacutereas e

favorecer o trabalho em equiperdquo Vejamos uma reflexatildeo de Santos (1997) sobre essa questatildeo

ldquoO saber e as relaccedilotildees que os trabalhadores estabelecem entre si e com o saber deixam de ser

resultados fortuitos da vida e no trabalho e tornam-se fonte de toda produtividaderdquo (p 18)

Assis (2000) conferiu tanta importacircncia a essa questatildeo que acabou por tornaacute-la foco de

sua dissertaccedilatildeo Dentre outras coisas Assis verifica que a empresa ldquoexige que os trabalhado-

res coloquem constantemente em praacutetica o seu savoir-faire Este deve ser construiacutedo de forma

prioritariamente coletiva com constantes trocas de saberes e discussotildees sobre as representa-

ccedilotildees que cada trabalhador possui dos acontecimentosrdquo (p 16)

Em relaccedilatildeo aos interesses dos trabalhadores a dimensatildeo coletiva da produccedilatildeo do saber

eacute interpretada por muitos pesquisadores como uma vantagem dos trabalhadores que ateacute certo

ponto poderiam escolher com quem compartilhar o seu saber uma vez que ele estaacute inscrito

em uma ldquorederdquo com coacutedigos e interesses proacuteprios dos trabalhadores Aranha (1997) chega a

falar em ldquodomiacutenio coletivo do processo de trabalhordquo (p 20) Evangelista (2002) faz uma re-

flexatildeo sobre a inserccedilatildeo do saber nas relaccedilotildees sociais que recupera as possibilidades de resis-

tecircncia do trabalhador

Esse conhecimento praacutetico produzido tambeacutem para ser empregado no cotidiano fa-bril supotildee a comunicaccedilatildeo verbal ou natildeo de um conjunto de siacutembolos a se interpre-tar Exata interpretaccedilatildeo implica que emissores e receptores de informaccedilotildees estejam dispostos a ajustar continuamente suas accedilotildees em funccedilatildeo de expectativas e reaccedilotildees do outro (p 56)

Se de um lado o capital cria novas estrateacutegias para apropriar o saber do trabalhador

por outro lado os trabalhadores continuam criando novos saberes e reapropriando outros for-

malizados pela concepccedilatildeo (ASSIS 2000 SALERNO 1994) e inclusive alguns saberes jaacute

formalizados pela ciecircncia como por exemplo o tratamento teacutermico usado para melhorar as

17

caracteriacutesticas de resistecircncia do accedilo ou mesmo saberes escolares tais como geometria e tri-

gonometria

Estes satildeo alguns dos pontos cruciais que nossa investigaccedilatildeo pretende abordar quando

priorizamos a possibilidade de os trabalhadores produzirem mobilizarem e formalizarem es-

trateacutegias que lhe permitam produzir mobilizar e organizar os seus saberes

123 A formalizaccedilatildeo de saberes

As possibilidades de os trabalhadores formalizarem os seus saberes ao nosso olhar

implicam duas questotildees baacutesicas primeira uma necessidade de conferir ao seu saber um miacute-

nimo de confiabilidade para ser usado Segunda a capacidade dos trabalhadores em gerenciar

a sua atividade de trabalho Essas possibilidades dos trabalhadores bem como as do capital

aleacutem de encontrar guarida em algumas situaccedilotildees concretas correspondem a uma avaliaccedilatildeo

feita por Polany apud Frade (2003) ldquoO fato de um conhecimento taacutecito natildeo poder ser total-

mente declarado natildeo significa que ele natildeo possa ser comunicado ou compartilhadordquo

Na nossa proacutepria experiecircncia como metaluacutergico tomamos contato com alguns casos de

saberes formalizados tanto pelos trabalhadores quanto pelo capital Citaremos um caso que

ficamos conhecendo pelo contato com os colegas mais experientes durante a nossa vivecircncia

de trabalhador na induacutestria Os torneiros mecacircnicos modificavam a inclinaccedilatildeo do acircngulo de

suas ferramentas para obter um melhor corte no material a ser trabalhado Neste caso a inter-

venccedilatildeo exigia do torneiro experiecircncia na profissatildeo e noccedilotildees de geometria e estaacutetica Essa praacute-

tica possibilitou que a engenharia realizasse estudos com auxiacutelio dos saberes dos torneiros

mecacircnicos no sentido de estabelecer o acircngulo correto para cada situaccedilatildeo de trabalho Esse

caso permitiu a padronizaccedilatildeo de um grande nuacutemero de ferramentas e criaccedilatildeo de uma tecnolo-

18

gia conhecida como geometria de corte Tamanho efeito teve essa modificaccedilatildeo que ela gerou

um ramo paralelo as induacutestrias de pastilhas intercambiaacuteveis

A ideacuteia da natildeo-formalizaccedilatildeo absoluta do saber do trabalhador aleacutem de contrariar al-

guns casos concretos pode tambeacutem colaborar para a sua natildeo-legitimaccedilatildeo reforccedilando a con-

cepccedilatildeo que hierarquiza o trabalho manual e intelectual Essa possibilidade foi colocada por

Santos ldquoO que distingue o saber da concepccedilatildeo - da engenharia- e lhe daacute legitimidade eacute a sua

formalizaccedilatildeo sancionada por um conhecimento social e epistemologicamente reconhecidordquo

(SANTOS 1997 p 21)

A dificuldade de apreensatildeo do saber taacutecito natildeo pode ser traduzida e este risco existe

em uma inconsistecircncia do saber produzido pelo trabalhador Ateacute mesmo a engenharia possui

seus niacuteveis de saberes natildeo-formalizados e natildeo arca com o mesmo ocircnus que os trabalhadores

Santos (1997) propotildee uma distinccedilatildeo ldquoComo em qualquer campo do conhecimento haacute ao niacute-

vel da concepccedilatildeo na engenharia um saber que pode se apresentar como natildeo formalizado sim-

plesmente por natildeo ser ainda formalizaacutevelrdquo (p 23)

Ainda neste artigo Santos ao relatar o depoimento de um engenheiro demonstra que

essa ocorrecircncia eacute reconhecida pela proacutepria engenharia De acordo com essa autora este enge-

nheiro da Usimec responsaacutevel pelo desenvolvimento de projetos de turbinas eleacutetricas comen-

tou sobre a dificuldade de se prever o comportamento de um material fluiacutedo fundamental

para a tecnologia de turbina Segundo o engenheiro abordado por Santos (1997) ldquoMesmo

centros internacionais Franccedila Alemanha Estados Unidos possuem computadores capazes

apenas de definir um comportamento proacuteximo daquele fluiacutedo realrdquo (p 22)

Outro exemplo embora sutil que tivemos oportunidade de perceber em nossa experi-

ecircncia como metaluacutergico eacute que a proacutepria engenharia reconhece os limites de alguns de seus

saberes cuja expressatildeo aparece no uso sistematizado do fator de seguranccedila (fs) uma constan-

te matemaacutetica presente nos caacutelculos da engenharia onde o tabelamento varia para cada proje-

19

to incorporando uma margem de erro Como por exemplo se em um caacutelculo para dimensio-

nar um cabo de accedilo de uma caccedilamba o resultado for de 100mm de diacircmetro este valor eacute mul-

tiplicado por (fs) = 1210 resultando em uma medida de 120mm

Ao nosso ver a ideacuteia de que o saber taacutecito natildeo pode ser formalizado peca pelo seu o-

lhar excessivamente imediato sobre a situaccedilatildeo de trabalho o que tende a reduzir o saber do

trabalhador somente a uma accedilatildeo momentacircnea a uma habilidade manual de uacuteltima hora uma

naturalizaccedilatildeo enfim Essa interpretaccedilatildeo poderia reproduzir a imagem de um trabalhador que o

capital sempre desejou aquele que interveacutem cria colabora e natildeo sabe por quecirc

Essa perspectiva parece estar presente na proacutepria legislaccedilatildeo sobre a propriedade inte-

lectual Lei n 009279 de 1451999 que ao inveacutes de contribuir para a legitimaccedilatildeo do saber

taacutecito acaba por perceber a produccedilatildeo de saberes restringida ao espaccedilo e agraves condiccedilotildees de tra-

balho dentro das empresas conforme aponta em seus artigos 90 e 91

ldquoArt 90 Pertenceraacute exclusivamente ao empregado a invenccedilatildeo ou o modelo de uti-lidade por ele desenvolvido desde que desvinculado do contrato de trabalho e natildeo decorrente da utilizaccedilatildeo de recursos meios materiais instalaccedilotildees ou equipamen-tos do empregadorrdquo ldquoArt 91 A propriedade de invenccedilatildeo ou de modelo de utilidade seraacute comum em partes iguais quando resultar da contribuiccedilatildeo pessoal do empregado e de recursos dados meios materiais instalaccedilotildees ou equipamentos do empregador ressalvado expressa disposiccedilatildeo contratual em contraacuteriordquo

Embora a discussatildeo legal natildeo seja o foco de nossa pesquisa o fato eacute que a proacutepria lei

natildeo acolhe todas as condiccedilotildees de produccedilatildeo do saber no trabalho Essa lacuna pode ser produto

de uma abordagem reducionista do valor desse saber e de certa forma faz com que esta pes-

quisa ganhe mais uma relevacircncia

Nossa hipoacutetese comeccedila a ser construiacuteda a partir da consideraccedilatildeo de que quando o tra-

balhador passa a ter uma noccedilatildeo do valor do seu saber no processo de trabalho ele tende a au-

10 Valor aleatoacuterio para efeito de exemplo Em algumas induacutestrias em que trabalhamos o fator de Seguranccedila eacute ironicamente chamado de fator de ignoracircncia

20

mentar o zelo com a construccedilatildeo deste saber e que este zelo pode ser traduzido em um empe-

nho dos trabalhadores em formalizarem os seus saberes Fica ainda a seguinte questatildeo qual a

linguagem usada pelos trabalhadores para formalizar o seu saber

A nossa hipoacutetese eacute que a produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saber pelos traba-

lhadores no processo de trabalho se realizariam atraveacutes da produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formaliza-

ccedilatildeo de estrateacutegias taacutecitas Neste caso a questatildeo do saber natildeo se limita agrave aplicaccedilatildeo do savoir-

faire do trabalhador na produccedilatildeo mas tambeacutem agrave forma de como esse saber foi construiacutedo

mobilizado e formalizado pois a proacutepria estrateacutegia jaacute seria um sofisticado saber Talvez seja

esse saber o saber das estrateacutegias taacutecitas o elemento que decirc confianccedila ao trabalhador para

ldquofugirrdquo da prescriccedilatildeo da engenharia ou da concepccedilatildeo e que lhe permite ainda emancipar e

adaptar o seu saber ao princiacutepio dinacircmico presente em todos os processos de trabalho

Eacute mister salientar que optar por apreender estas estrateacutegias eacute priorizar uma aproxima-

ccedilatildeo com o trabalhador e com as condiccedilotildees que o favoreccedilam criaacute-las uma vez que o saber taacuteci-

to se apresenta como patrimocircnio coletivo de uma determinada eacutepoca Em nossa vivecircncia de

operaacuterio tivemos a oportunidade de observar e conhecer casos de intervenccedilatildeo do trabalhador

em que soluccedilotildees semelhantes foram elaboradas em situaccedilatildeo de trabalho nem sempre iguais

em espaccedilos distintos e por sujeitos que natildeo se conheceram Esse exemplo demonstra que a

questatildeo do saber taacutecito do trabalhador dialoga com a proacutepria histoacuteria do conhecimento Essa

possibilidade pode ser percebida em uma anaacutelise feita por Machado (1996)

Para compreender o sentido e o significado das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas eacute necessaacuterio situaacute-las no contexto social em que se desenvolvem pois elas expressam o movi-mento contraditoacuterio da ciecircncia e da teacutecnica (aspecto loacutegico) e a natureza soacutecio-poliacutetica do modo de produccedilatildeo (aspecto soacutecio-histoacuterico) (p 112)

Considerando a relevacircncia e a complexidade do saber taacutecito acreditamos ser possiacutevel

por meio desta pesquisa contribuir para o esclarecimento das estrateacutegias que os ferramentei-

ros usam para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes no trabalho

21

13 O REFERENCIAL TEOacuteRICO

Desde os primeiros momentos de desenvolvimento desta pesquisa buscamos apoio em

referenciais teoacutericos que nos permitissem tomar o nosso objeto de forma articulada com cate-

gorias como a centralidade do trabalho na constituiccedilatildeo da sociabilidade a presenccedila de saberes

no processo de trabalho o saber taacutecito do trabalhador e a relaccedilatildeo entre teoria e praacutetica na

construccedilatildeo deste tipo de saber Todavia o proacuteprio objeto desta pesquisa nos mobilizou no

sentido de buscar no referencial teoacuterico tambeacutem uma possibilidade de tomar a presenccedila de

saber no trabalho por um olhar mais proacuteximo aos protagonistas do chatildeo de faacutebrica no caso

especiacutefico desta pesquisa os ferramenteiros

Para dar conta do desafio de investigar as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros para

produzir organizar e mobilizar seus saberes nos apoiamos em autores que seguindo a tradi-

ccedilatildeo do materialismo histoacuterico referendam o trabalho como categoria central na formaccedilatildeo do

homem e por conseguinte na constituiccedilatildeo da sociabilidade (MARX 1985 GRAMSCI

1995) Contamos tambeacutem com os pensadores que a partir da ldquonoccedilatildeo ergonocircmicardquo de ldquotraba-

lho prescrito e trabalho realrdquo discutem o saber taacutecito do trabalhador no processo de trabalho

(ARANHA 1997 SANTOS 1991 1997 2000 SALERNO 1994 LIMA 1998) bem como

os pesquisadores que abordam os atuais impactos do processo de reestruturaccedilatildeo produtiva no

mundo do trabalho (ANTUNES 2001 CORIAT 1994 GOUNET 1999) E ainda buscamos

dialogar com pensadores que abordam a relaccedilatildeo entre a praacutetica e a teoria na construccedilatildeo do

saber taacutecito (NOUROUDINE 2002 MALGLAIVE 1990 POLANY 1967 SCHON 2000)

Em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo e ao conceito de trabalho11 eleito para este projeto compartilha-

mos com os autores que percebem o trabalho como a atividade constituidora da humanidade

11 Diante dos objetivos desta pesquisa nos limitaremos ao diaacutelogo com os autores que discutem o trabalho no modo de produccedilatildeo capitalista mais especificamente aqueles que abordam o processo de reestruturaccedilatildeo produti-va e suas principais referecircncias de organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho quais sejam o taylorismofordismo e toyo-tismo (ANTUNES 2001 CORIAT 1994 GOUNET 1999)

22

e portanto categoria central na formaccedilatildeo do homem (MARX 1985 GRAMSCI 1995 AN-

TUNES 2001) Essa perspectiva como jaacute foi mencionado anteriormente tem sua matriz nas

ideacuteias marxistas Vejamos uma citaccedilatildeo do proacuteprio Marx (1985)

Antes de tudo o trabalho eacute um processo entre o homem e a natureza () Ele potildee em movimento as forccedilas naturais pertencentes agrave sua corporalidade braccedilos e pernas cabeccedila e matildeo a fim de apropriar-se da mateacuteria natural numa forma uacutetil para a sua proacutepria vida Ao atuar por meio desse movimento sobre a natureza externa a ele e ao modificaacute-la ele modifica ao mesmo tempo sua proacutepria natureza (p 149)

Eacute por esta trilha que se ergue tambeacutem um dos aspectos educativos do trabalho pois

ao modificar a sua proacutepria natureza o trabalho permite ao homem dirigir-se a si mesmo Se-

gundo Macaacuterio (1999) ldquoO domiacutenio do homem sobre si mesmo eacute de fato um pressuposto

imprescindiacutevel para o sucesso do trabalhordquo (p 89)12

Ainda sobre a centralidade do trabalho Junior (2000 p335) afirma que para Marx tra-

ta-se de uma categoria central a partir da qual ldquopode-se pensar o indiviacuteduo a sociedade com

seus sistemas poliacuteticos juriacutedicos e ideoloacutegicos sua cultura etcrdquo

Outra possibilidade de o trabalho ser tido como determinante na constituiccedilatildeo da socia-

bilidade pode ser dada por ele ser tido por alguns pensadores como uma atividade exclusiva-

mente humana Conforme afirma Alves Carvalho apud Machado (2001) ldquoO trabalho natildeo

pode ser conhecido fora do humano pois ele eacute uma atividade especificadamente humana que

se desenvolve dentro da contradiccedilatildeo entre o singular e o coletivo sendo inseparaacutevel das rela-

ccedilotildees sociais que ele engendrardquo (p 46) Para Macaacuterio (1999) o desvelamento da categoria tra-

12 Este pensador sustenta essa posiccedilatildeo tomando como referecircncia as reflexotildees de LUCKAacuteCS sobre trabalho e o ldquopocircr teleoloacutegicordquo Segundo LUCKAacuteCS apud MACAacuteRIO (1999) ldquoO homem foi definido como o animal que constroacutei os seus proacuteprios utensiacutelios Eacute correto mas eacute preciso acrescentar que construir e usar instrumentos impli-ca necessariamente como pressuposto imprescindiacutevel para o sucesso do trabalho que o homem tenha domiacutenio sobre si mesmo Esse tambeacutem eacute um momento do salto a que nos referimos da saiacuteda do homem da existecircncia puramente animalescardquo (p 89)

23

balho ldquorevelaraacute a essecircncia humana isto eacute aquilo que ontologicamente faz do homem um ser

pertencente a uma esfera superior agraves naturaisrdquo (p 84)13

Se de um lado o referencial marxista aponta o trabalho como uma categoria central

protoforma da sociedade por outro lado encontramos tambeacutem em Marx uma criacutetica agrave forma

sob a qual o trabalho se constitui no capitalismo Neste sentido outras consideraccedilotildees sobre o

trabalho satildeo discutidas nesta pesquisa sobretudo aquelas que abordam como a importacircncia da

presenccedila de saberes vem se inscrevendo nos modelos de organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho

Dessa forma entendemos ser importante apresentar uma anaacutelise feita por Santos e Ferreira

(1996) sobre dois significados de trabalho historicamente construiacutedos

bull ldquotrabalho tomado como a ativa criaccedilatildeo de uma obra por um sujeito que implica uma ideacuteia de liberdade de transformaccedilatildeo de prazer

bull trabalho no sentido de labor onde ganham ecircnfase os conteuacutedos de esforccedilo rotineiro e repe-titivo sem liberdade de resultado consumiacutevel e incocircmodo inevitaacutevelrdquo (p 23)

Em relaccedilatildeo agraves contradiccedilotildees que o trabalho apresenta no modo de produccedilatildeo capitalista

buscamos estabelecer um diaacutelogo com pesquisadores que a partir das investigaccedilotildees sobre o

processo de reestruturaccedilatildeo produtiva abordam a presenccedila de saber no processo trabalho (AN-

TUNES 2001 CORIAT 1994 GOUNET 1999) e sobretudo as pesquisas que atraveacutes do

estudo de situaccedilotildees concretas remetem agrave temaacutetica do saber taacutecito dos trabalhadores (Santos

1985 1991 1997 2000 Aranha 1997 Lima 1998 Salerno 1994 Machado 2001 Assis

2000)

Para prosseguir o percurso de apreensatildeo do nosso objeto de pesquisa entendemos co-

mo necessaacuterio dialogar tambeacutem com os autores que ao discutirem o trabalho no capitalismo

13 Sobre a centralidade do trabalho acreditamos que esta pesquisa ao propor conhecer as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes corrobora a contestaccedilatildeo feita por ANTU-NES (2001) de que a ciecircncia seja a principal forccedila produtiva De acordo com ANTUNES (20001) a aparente autonomia da ciecircncia perante o trabalho natildeo elimina o trabalho como gerador de valor Na atual fase do capita-lismo o trabalho inscreve-se como sempre se fez em uma metamorfose e a ciecircncia permite a extraccedilatildeo do sobre-trabalho

24

fazem referecircncia agrave relaccedilatildeo entre o trabalho prescrito e o trabalho real14 De acordo com Santos

(2000) trabalho prescrito eacute ldquoA definiccedilatildeo preacutevia da maneira como o trabalhador deve executar

o trabalho o modo de usar os equipamentos e as ferramentas o tempo concedido para cada

operaccedilatildeo o como fazer e as regras que devem ser respeitadasrdquo O trabalho real se remete agraves

condiccedilotildees necessaacuterias em que se realiza uma parte do trabalho que sempre escapa agrave prescri-

ccedilatildeo Santos (2000) Para alguns pesquisadores a realizaccedilatildeo do trabalho real soacute se torna possiacute-

vel pela intervenccedilatildeo do saber taacutecito do trabalhador (SANTOS 1991 1997 ARANHA 1997

SALERNO 1994) Essa possibilidade eacute respaldada pelo entendimento de que o trabalho tem

um princiacutepio educativo (NOSELLA 1992) Essa perspectiva jaacute havia sido desenhada por

Gramsci conforme afirma Manacorda (2000) ldquoO trabalho para Gramsci eacute essencialmente

um elemento constitutivo de ensinordquo (p 135)

Optar por investigar os caminhos percorridos pelo trabalhador para a produccedilatildeo orga-

nizaccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo de seus saberes implica ao nosso olhar acreditar que eacute possiacutevel uma

aproximaccedilatildeo com o mundo do trabalho atraveacutes da lente do trabalhador A pesquisa biblio-

graacutefica que realizamos aliada agrave nossa experiecircncia como operaacuterio metaluacutergico nos permite

inferir sobre a possibilidade de o trabalhador se apropriar de saberes formalizados bem como

reapropriar seus saberes que foram incorporados ao saber da engenharia Neste sentido eacute im-

portante salientar que esta pesquisa se orientou tambeacutem pelas reflexotildees de pesquisadores que

defendem a possibilidade de o saber taacutecito do trabalhador favorecer uma leitura positiva do

trabalho (ARANHA 1997 SANTOS 1997 2000) Vejamos uma afirmaccedilatildeo de Santos

(2000) ldquoO trabalhador natildeo eacute um mero executante determinado pelo seu lugar nas relaccedilotildees

sociais e pelos dispositivos teacutecnicos mas tambeacutem um homem sujeito vivente com todo hori-

zonte de universalidade que isto implicardquo (p 123) Neste sentido seria possiacutevel que os traba-

lhadores se afirmassem como sujeitos de interesses proacuteprios pois mesmo que o capital busque 14 Essa perspectiva tem um deacutebito original com os trabalhos vinculados ao campo da ergonomia Neste sentido nos apoiamos especialmente em alguns pensadores desse campo (DANIELLOU 1989 SALERNO 1994 WIS-NER 1987 LIMA 1998)

25

controlar o seu saber ele natildeo lhe expropria a sua condiccedilatildeo de sujeito como nos afirma Char-

lot (2000) ldquoTodo indiviacuteduo eacute um sujeito por mais dominado que seja Um sujeito que inter-

preta o mundo resiste agrave dominaccedilatildeo afirma positivamente seus interesses procura transformar

a ordem do mundo em seu proacuteprio proveitordquo (p 31)

Ao considerar a capacidade transformadora do trabalho nossa pesquisa se referendou

em pesquisadores que recuperam a dimensatildeo concreta do trabalho Daiacute decorre a grande im-

portacircncia de Santos (1997 2000) para esta pesquisa Essa pesquisadora ao mesmo tempo em

que trata das contradiccedilotildees do trabalho no capitalismo e talvez por isso mesmo recupera tam-

beacutem as possibilidades de os trabalhadores atraveacutes de seus saberes se afirmarem como sujei-

tos de interesses proacuteprios Para isto se apoacuteia em Schwartz que ldquointerroga o trabalho como

experiecircncia individual e coletiva como ldquouso de sirdquo que pode ser feito por si e por outros

analisando a natureza epistemoloacutegica das interrogaccedilotildees que lhe concernemrdquo (SANTOS 2000

p 121) Para abordar a possibilidade de ldquouso de sirdquo por parte dos ferramenteiros nos remete-

remos tambeacutem agraves discussotildees propostas pela ergologia (SANTOS 1997 2000 SCHWARTZ

2000 2004)15

Essa perspectiva somada as nossas reflexotildees como operaacuterio nos permitiu ainda tra-

balhar com a ideacuteia de que o trabalhador ao buscar fazer melhor uso de seu saber desenvol-

vesse ele proacuteprio estrateacutegias que lhe garantissem um certo rigor na produccedilatildeo organizaccedilatildeo e

mobilizaccedilatildeo de seu saber

Ao elegermos como nosso objeto de pesquisa as estrateacutegias usadas pelos trabalhadores

para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes entendemos como necessaacuterio conhecer

tambeacutem as condiccedilotildees em que este saber foi produzido e como o trabalhador mobiliza e for-

15 Segundo SCHWARTZ a ergologia natildeo eacute uma nova disciplina Trata-se de uma proposta que congrega natildeo soacute muitas disciplinas que abordam o trabalho portanto multidisciplinar bem como interroga o ponto de vista dos protagonistas do trabalho e ainda o proacuteprio processo histoacuterico que fundamenta respectivamente o olhar cientiacute-fico das disciplinas e o olhar oriundo da experiecircncia no trabalho A ergologia ao tratar das ldquoatividades humanasrdquo inscreve o trabalho em sua dimensatildeo histoacuterica e social reconhecendo-o como uma experiecircncia individual e cole-tiva ldquono seu trabalho o trabalhador eacute sempre uma pessoa inteirardquo (SANTOS 2000 SCHWARTZ 2000 2004 FAITA e SOUZA-e-SILVA 2002)

26

maliza este saber Neste sentido fizemos uma investigaccedilatildeo sobre a literatura que aborda a

relaccedilatildeo entre teoria e praacutetica no que se refere ao saber taacutecito (FRADE 2003 SCHON 2000

POLANY 1967 MALGLAIVE 1990)16

14 AS ESTRATEacuteGIAS METODOLOacuteGICAS

A literatura sobre a pesquisa cientiacutefica faz duas proposiccedilotildees de abordagens metodoloacute-

gicas as pesquisas quantitativas e qualitativas que podem quando for o caso aparecer como

complementares O uso da pesquisa quantitativa eacute indicado quando se apresenta a possibilida-

de de quantificar e mensurar os resultados da investigaccedilatildeo A pesquisa qualitativa normal-

mente eacute marcada pela natildeo-quantificaccedilatildeo dos resultados A sua aplicaccedilatildeo privilegia as dimen-

sotildees subjetivas das relaccedilotildees entre pessoas e entre pessoas e instituiccedilotildees De acordo com Mi-

nayo (1993) a pesquisa qualitativa

() se preocupa com um niacutevel de realidade que natildeo pode ser quantificado Ou seja ela tra-balha com o universo de significados motivos aspiraccedilotildees crenccedilas valores e atitudes o que corresponde a um espaccedilo mais profundo das relaccedilotildees dos processos e dos fenocircmenos que natildeo podem ser reduzidos agrave operacionalizaccedilatildeo de variaacuteveis (p 15)

A opccedilatildeo pela abordagem qualitativa dialoga de certa forma com as caracteriacutesticas do

nosso objeto e com as pretensotildees desta investigaccedilatildeo Uma vez que esta pesquisa se insere no

campo das ciecircncias sociais o seu objeto eacute ldquoessencialmente qualitativordquo (MINAYO 1993 p

16 O uso do termo ldquosaber taacutecitordquo embora citado pelos autores natildeo eacute assumido igualmente por todos eles Con-forme veremos mais adiante seratildeo usados termos que buscam identificar um saber de ordem praacutetica Neste sen-tido aparecem os termos savoir-faire saber praacutetico talento artiacutestico e conhecimento taacutecito Eacute importante ressal-tar que ao orientarmos nossa pesquisa com o uso de ldquosaber taacutecitordquo em detrimento do termo ldquoconhecimento taacuteci-tordquo acatamos a distinccedilatildeo feita por alguns pesquisadores entre saber e conhecimento entendendo que conheci-mento estaacute proacuteximo da ordem do formalizado de acordo com COLLINS (1992) apud LIMA e SILVA (1998) Jaacute o termo ldquosaberrdquo pode responder a saberes natildeo-formalizados e tambeacutem se articular com a ideacuteia de ldquofazerrdquo SAN-TOS (2001) Essa escolha se daacute por ser a situaccedilatildeo mais proacutexima da delimitaccedilatildeo do objeto desta pesquisa bem como por permitir perceber a questatildeo do saber taacutecito na perspectiva empresarial acadecircmica e tambeacutem dos traba-lhadores As razotildees da opccedilatildeo pelo termo saber taacutecito ficaram a nosso ver justificadas no desenvolvimento desta dissertaccedilatildeo

27

15) Essa pesquisadora (1993 p 14-15) aponta quatro caracteriacutesticas importantes do objeto

das ciecircncias sociais

bull Eacute histoacuterico () cuja formaccedilatildeo social e configuraccedilatildeo satildeo especiacuteficas vivem o presente marcado pelo passado e projetado para o futuro () portanto a provisoriedade o dina-mismo e a especificidade satildeo caracteriacutesticas essenciais de qualquer questatildeo social

bull () natildeo eacute apenas o investigador que daacute sentido ao seu trabalho intelectual mas os seres humanos os grupos e a sociedade datildeo significado e intencionalidade a suas accedilotildees e a suas construccedilotildees na medida em que as estruturas sociais nada mais satildeo que accedilotildees objetivadas

bull () existe uma relaccedilatildeo entre sujeito e objeto () por serem da mesma natureza bull () o fato de que ela eacute intriacutenseca e extrinsecamente ideoloacutegica () Ela veicula interesses e

visotildees de mundo historicamente construiacutedas embora suas contribuiccedilotildees e seus efeitos teoacute-ricos e teacutecnicos ultrapassem as intenccedilotildees de seu desenvolvimento

A proposta de investigar os meacutetodos usados pelo trabalhador para a produccedilatildeo mobili-

zaccedilatildeo e a formalizaccedilatildeo dos seus saberes constitui-se para noacutes como um misto de aventura e

desafio Essas dimensotildees se devem pela possibilidade de poder articular as abordagens teoacuteri-

cas sobre o mundo do trabalho com a minha vivecircncia de operaacuterio ldquometaluacutergicordquo Ao se carac-

terizar tambeacutem pela relaccedilatildeo proacutexima entre sujeito e objeto a pesquisa qualitativa ganha mais

validade para esta pesquisa dada a nossa intimidade com o objeto Conforme elucida Minayo

(1993) ldquo() a pesquisa nessa aacuterea lida com seres humanos que por razotildees culturais de clas-

se de faixa etaacuteria ou por qualquer outro motivo tecircm um substrato comum de identidade com

o investigador tornando-os solidariamente imbricados e comprometidos rdquo (p 14) Essa pro-

ximidade no entanto nos alerta para a necessidade de estarmos atentos aos efeitos da subjeti-

vidade para alcanccedilarmos a objetividade na pesquisa (SANTOS 1991)

141 Revisatildeo bibliograacutefica

Esta pesquisa contou com um momento de vital importacircncia por meio do qual foi

possiacutevel nos aproximarmos do nosso objeto Neste sentido eacute importante salientar a nossa re-

28

visatildeo bibliograacutefica sobre o mundo trabalho sobretudo a presenccedila de saberes no processo de

trabalho

142 Instrumentos de pesquisa

Os instrumentos de pesquisa constituem-se de vital relevacircncia para as perspectivas

desta pesquisa dada a complexidade imposta pelo proacuteprio objeto As teacutecnicas de pesquisas

para a coleta de dados foram a pesquisa documental entrevistas semi-estruturadas e a obser-

vaccedilatildeo

1421 A pesquisa documental

Para esta pesquisa a coleta de dados documentais fez-se importante natildeo soacute por lanccedilar

luzes sobre a prescriccedilatildeo do trabalho feita pela empresa mas ainda pela possibilidade de ilus-

trar algumas formalizaccedilotildees de saberes feitas pelos sujeitos de nossa pesquisa Foram identifi-

cados e analisados materiais produzidos na empresa apostilas manuais de seguranccedila proce-

dimentos para o processo produtivo fichas de conclusatildeo de serviccedilo e tambeacutem materiais pro-

duzidos pelos trabalhadores como anotaccedilotildees tabelas e croquis17

1422 Entrevistas semi-estruturadas

O uso de entrevistas semi-estruturadas se constitui como uma das fases mais marcan-

tes desta pesquisa De um lado a proacutepria literatura sobre a metodologia cientiacutefica nas ciecircncias

sociais jaacute seria suficiente para justificar a relevacircncia desse instrumento de coleta de dados

Atraveacutes dessa modalidade de entrevista segundo Minayo (1993) ldquoO pesquisador busca obter

informes contidos na fala dos atores sociaisrdquo (p 57) O uso da entrevista semi-estruturada

facilita a participaccedilatildeo do entrevistado e auxilia na eventualidade de haver problemas de co- 17 Croquis satildeo desenhos feitos agrave matildeo podendo ser agraves vezes um rascunho de um desenho ou mesmo um desenho dentro de normas teacutecnicas

29

municaccedilatildeo pois de acordo com Mazzotti (1998) ldquoO entrevistador faz perguntas especiacuteficas

mas tambeacutem deixa que o entrevistado responda em seus proacuteprios termosrdquo Por outro lado natildeo

eacute menos farto o arsenal teoacuterico que aponta a dificuldade que uma pessoa possa ter para se ex-

pressar e especialmente no que se refere agrave questatildeo do saber taacutecito onde predomina um forte

debate sobre as possibilidade de explicitaccedilatildeo ou natildeo deste saber18 Diante desta questatildeo eacute

prudente que o pesquisador ldquodeixerdquo o entrevistado falar ou como afirma Thiollent (1980)

que o pesquisador se mantenha com uma ldquoatenccedilatildeo flutuanterdquo afim de ldquoestimular o entrevista-

do a explorar o seu universo cultural sem questionamento forccediladordquo Em relaccedilatildeo a essa pesqui-

sa haacute que se dizer em favor de Santos e Aranha que estas pesquisadoras sempre apontaram

que o respeito do pesquisador diante das ldquofalasrdquo do entrevistado remete tambeacutem a uma pos-

tura epistecircmica do pesquisador pela qual ele deve permitir que os protagonistas do trabalho

busquem seus proacuteprios meios para se fazerem entender19 Em relaccedilatildeo agraves entrevistas realiza-

das uma delas realizou-se dentro da proacutepria oficina20 Embora tenha ocorrido nos intervalos

do horaacuterio de almoccedilo tivemos que contar com barulhos e algumas interrupccedilotildees Diante desse

problema apresentado ao pessoal dos Recursos Humanos nos foi oferecida uma sala de trei-

namento para realizar a entrevista Observamos que nesta sala de treinamento as entrevistas

perderam um pouco da espontaneidade Passamos a buscar um espaccedilo para realizaacute-las que

fosse longe do barulho e das interrupccedilotildees mas que natildeo colocasse os ferramenteiros como

ldquoestrangeirosrdquo ao espaccedilo Neste momento optamos por usar uma sala onde no horaacuterio de

almoccedilo os trabalhadores jogavam cartas ou dominoacute Ainda que este espaccedilo se localizasse fora

do galpatildeo aproximadamente a uns 50 metros tratava-se de uma sala dentro da faacutebrica o que

18 Esta temaacutetica seraacute abordada mais adiante no capiacutetulo teoacuterico 19 Essa contribuiccedilatildeo deu-se em aulas durante a disciplina Sujeito trabalho e educaccedilatildeo oferecida por essas pes-quisadoras no curso de poacutes-graduaccedilatildeo da FAEUFMG em 2002 Outro momento tambeacutem muito importante foi uma experiecircncia de um grupo de trabalho com entrevistas ldquopilotordquo anterior agrave nossa entrada no campo de pesqui-sa onde foi possiacutevel debater sobre a relaccedilatildeo do pesquisador com as falas dos sujeitos de sua pesquisa Essa expe-riecircncia contou tambeacutem com a participaccedilatildeo da pesquisadora Rosacircngela Pereira 20 As entrevistas dentro da faacutebrica foram motivadas pela dificuldade de alguns dos entrevistados cujos depoi-mentos noacutes natildeo gostariacuteamos de ldquoperderrdquo em dispor de tempo fora do horaacuterio de trabalho Alguns desses estuda-vam uns tinham que ldquoolharrdquo os filhos para as esposas estudarem e outros moravam muito longe

30

nos deixou em sinal de alerta No entanto neste ldquonovordquo espaccedilo foi possiacutevel perceber um outro

posicionamento por parte dos entrevistados maior espontaneidade para com as questotildees a-

bordadas na entrevista e intimidade com este espaccedilo21

1423 Observaccedilatildeo de campo

Satildeo muitos os fatores que tornam a observaccedilatildeo in loco um instrumento valioso na co-

leta de dados para esta pesquisa De um lado o nosso objeto estaacute inexoravelmente articulado

com a situaccedilatildeo de trabalho Dessa forma a teacutecnica de observaccedilatildeo nos permitiu aproximar

dessas situaccedilotildees a fim de permitir jogar luzes no ldquotaacutecitordquo E ainda a observaccedilatildeo in loco nos

proporcionou uma aproximaccedilatildeo com os protagonistas dessas situaccedilotildees de trabalho o que nos

permitiu afirmar melhor nosso objeto bem como acrescentar novas possibilidades de abordaacute-

lo Segundo Minayo (1993) a observaccedilatildeo possibilita ldquo() captar uma seacuterie de situaccedilotildees ou

fenocircmenos que natildeo satildeo obtidos por meio de ndash perguntas uma vez que satildeo observados direta-

mente na realidade transmitem o que haacute de mais importante e evasivo na vida realrdquo (p 59)

143 Os sujeitos da pesquisa

Como sujeitos da nossa pesquisa foram escolhidos os ferramenteiros de uma induacutestria

metaluacutergica da regiatildeo metropolitana de Belo Horizonte Em uma pesquisa de cunho qualitati-

vo a delimitaccedilatildeo numeacuterica dos sujeitos a serem entrevistados natildeo eacute relevante (THIOLLENT

1980) Segundo Minayo (1993) ldquoA amostragem boa eacute aquela que possibilita abranger a tota-

lidade do problema investigado em suas muacuteltiplas dimensotildeesrdquo (p 43) Nesta pesquisa bus-

camos entrevistar aqueles protagonistas do trabalho cuja experiecircncia em ferramentaria fosse

reconhecida pelo seu coletivo de trabalho As escolhas natildeo geraram nenhum impedimento por

21 Nesta sala eles proacuteprios os ferramenteiros nos interrogavam se desejaacutevamos abrir mais a janela ir ao banhei-ro ou que ligar o ventilador

31

parte da empresa embora uma parte das entrevistas tenha ocorrido fora do espaccedilo fabril Esse

fato acabou por gerar um dividendo a mais para as nossas reflexotildees dado que foi possiacutevel

analisar a relaccedilatildeo espacial que os trabalhadores mantecircm com o seu trabalho Todavia a teacutecni-

ca da observaccedilatildeo nos permitiu ainda dialogar com outros trabalhadores gerando dados aleacutem

dos que foram coletados nas entrevistas22 Usamos como formas de registro

bull Diaacuterio de bordo com anotaccedilotildees na faacutebrica e fora dela

bull Entrevistas gravadas e transcritas

Foram entrevistados cinco Ferramenteiros sendo que um dos entrevistados tem entre

20 e 30 anos de idade dois dos entrevistados possuem pouco menos do que 40 anos de idade

e outros dois ferramenteiros possuem mais do que 40 anos de idade Dois dos ferramenteiros

tecircm 10 anos de experiecircncia em ferramentaria Jaacute outros trecircs ferramenteiros tecircm mais de 20

anos de experiecircncia Trecircs dos entrevistados fizeram o curso de ferramenteiro pelo Senai Os

outros dois fizeram o curso de ajustador mecacircnico pelo Senai e aprenderam o ofiacutecio de ferra-

menteiro na praacutetica dois Mestres em ferramentaria Um dos mestres possui 30 anos e quase

15 anos dentro da ferramentaria O outro mestre possui 35 anos e quase 20 anos de experiecircn-

cia em ferramentaria Ambos fizeram o curso de torneiro mecacircnico pelo Senai Um dos entre-

vistados fez tambeacutem pelo Senai o curso de ferramenteiro chegando inclusive a representar o

Brasil em uma ldquomaratonardquo internacional de ferramentaria na Holanda

144 O desenvolvimento da pesquisa o meu contato com a empresa pesquisada

De um lado a escolha da empresa deu-se por se tratar de uma grande ferramentaria

voltada para o setor automobiliacutestico Por outro lado estavam em curso tambeacutem contatos com

outras empresas A decisatildeo por pesquisar essa empresa foi sendo construiacuteda primeiramente

22 Todas as entrevistas foram gravadas totalizando nove horas de gravaccedilatildeo

32

pela boa recepccedilatildeo do pessoal do Recursos Humanos Em segundo lugar emergiu um motivo

que depois se tornou um dos grandes aspectos dessa ferramentaria enquanto campo para a

nossa pesquisa Trata-se de um projeto conduzido pela empresa que pretende colocaacute-la como

a maior ferramentaria da Ameacuterica Latina Ao se aprofundar as anaacutelises preliminares sobre a

Empresa T foi possiacutevel constatar que essa intenccedilatildeo estava proacutexima de se tornar real

Em algumas conversas informais com o pessoal do Recursos Humanos foi demons-

trado um grande interesse pela escolha da empresa como objeto de pesquisa Foi considerado

tambeacutem o fato de que outras empresas do grupo jaacute haviam sido abordadas por uma pesquisa-

dora da UFMG23 Apesar de nos ter sido feita somente uma solicitaccedilatildeo formal por parte da

universidade juntamente com a nossa proposta de pesquisa fomos tomados por um receio

pois tiacutenhamos plena consciecircncia de que o respeito e atenccedilatildeo por parte dos trabalhadores do

chatildeo de faacutebrica natildeo satildeo obtidos pelas apresentaccedilotildees formais e sim adquiridos pela convivecircn-

cia cotidiana natildeo haacute pior comeccedilo em uma faacutebrica do que parecer ser apadrinhado por um

chefe

145 No olho do furacatildeo entre homens e maacutequinas

Ao recebermos a liberaccedilatildeo definitiva por parte da empresa para iniciar a pesquisa den-

tro da faacutebrica acertamos um cronograma com o responsaacutevel pelo Recursos Humanos Em

nosso primeiro dia dentro da faacutebrica fomos acompanhados por um estagiaacuterio do Recursos

Humanos que nos apresentou aos gerentes da ferramentaria e tambeacutem ao coordenador dos

ferramenteiros Toda a chefia se mostrou interessada pela possibilidade de se levar a puacuteblico

algum esclarecimento sobre a ferramentaria24 Em seguida foi proposto pelo gerente geral

23 VERIacuteSSIMO (2000) tambeacutem orientanda da prof Eloisa SANTOS 24 Essa posiccedilatildeo foi frequumlente entre os ferramenteiros que tambeacutem lamentaram que ldquoningueacutem aiacute fora sabe dizer o que eacute uma ferramentariardquo As falas dos ferramenteiros agraves vezes pareciam quase como as fala de um artista que desejasse que sua arte fosse reconhecida ldquoSe o pessoal soubesse que para se ter uma colher qualquer em casa eacute

33

que o coordenador da ferramentaria nos apresentasse os processos de trabalho da mesma e aos

cinco mestres que chefiam as cinco ceacutelulas de ferramenteiros

Tatildeo logo comeccedilamos a conversar o coordenador da ferramentaria se declarou um a-

paixonado pelo seu trabalho e afirmou ter quase 50 anos de experiecircncia na ferramentaria dos

quais mais de 30 dentro da ferramentaria da Ford em Satildeo Bernardo do Campo Agrave medida que

esse senhor foi nos apresentando os setores dentro da ferramentaria pudemos conversar com

entusiasmo sobre as transformaccedilotildees sofridas no mundo do trabalho especialmente o setor

metaluacutergico Sem muita profundidade ele comentou sobre a dificuldade de se encontrar hoje

bons ferramenteiros e sobre os ldquobons temposrdquo do ferramenteiro em Satildeo Paulo quando ganha-

vam ldquomais do que a maioria dos meacutedicosrdquo Conversamos ainda sobre a reorganizaccedilatildeo sindi-

cal no ABC paulista na deacutecada de 1970

Ao ser apresentado aos mestres da ferramentaria acolhemos a sugestatildeo feita por um

deles de que ldquoseria interessante que junto com um dos mestres fizeacutessemos um mapa do pro-

cesso de construccedilatildeo de uma ferramenta e que a partir deste roteiro poderiacuteamos analisar todas

as fases do trabalho do ferramenteiro em cada uma das ceacutelulasrdquo25 Foi a partir do mapeamento

sobre o processo de construccedilatildeo da ferramenta que escolhemos a primeira ceacutelula de ferramen-

teiros para iniciarmos a nossa investigaccedilatildeo

Apoacutes os primeiros dias de observaccedilatildeo dentro dessa empresa nos demos conta ou

mesmo afirmamos a ideacuteia de que a faacutebrica marca profundamente os que nela trabalham bem

como estes tambeacutem imprimem de forma objetiva e subjetiva as suas marcas neste espaccedilo As

formas das cicatrizes a vermelhidatildeo dos olhos e o jeito de carregar uma ferramenta ou mes-

mo um cigarro denunciam se foi com a limalha do torno ou com o gaacutes da solda que o operaacute-

um negoacutecio difiacutecil e bonito eles dariam mais valor para o nosso trabalhordquo ldquoSempre que a gente vai agrave uma loja e eacute preciso fazer a ficha de crediaacuterio o pessoal vecirc o nosso salaacuterio eles se assustam e natildeo acreditam que nosso trabalho eacute difiacutecilrdquo 25 Essa sugestatildeo se justifica por que a construccedilatildeo de uma ferramenta pode durar de seis a oito meses Neste caso poderiam ser conhecidas todas as fases desde que fosse acompanhada mais de uma ferramenta o que foi possiacute-vel pois cada ceacutelula cuida no miacutenimo de uma ferramenta

34

rio esteve em trabalho Enfim foi boa a sensaccedilatildeo de estar de volta ao barulho inconfundiacutevel

das maacutequinas e agrave imagem viva de homens com seus gestos e as suas brincadeiras que por

mais estranhos que sejam acabam unindo pessoas Ateacute mesmo as ldquovelhas piadasrdquo estavam de

volta26

Ainda nos primeiros dias fomos tomados por um estranhamento em relaccedilatildeo ao espaccedilo

fiacutesico e quantidade de trabalhadores Tivemos a impressatildeo de que natildeo estaacutevamos em uma

faacutebrica claacutessica com pessoas tendo que ldquoficar espertasrdquo com a ponte rolante e as empilhadei-

ras Depois de algumas observaccedilotildees foi possiacutevel perceber algumas preacute-instalaccedilotildees para outras

maacutequinas o que mais tarde foi confirmado pelos trabalhadores a dimensatildeo do galpatildeo era a

projeccedilatildeo de uma futura expansatildeo para esta ferramentaria

Os primeiros momentos de observaccedilatildeo nos permitiram aproximar da realidade daquela

faacutebrica buscamos perceber o ritmo de trabalho dos ferramenteiros os riscos de acidentes e as

relaccedilotildees de poder inscritos naquele espaccedilo Outro aspecto possibilitado a partir desses primei-

ros momentos foi o ldquodeixarrdquo que os trabalhadores tambeacutem nos conhecessem elemento essen-

cial para a nossa pesquisa evidenciado pela proacutepria fala dos trabalhadores ldquono iniacutecio a turma

ficou ldquocismadardquo pensando que vocecirc poderia ser um espiatildeordquo27

Apoacutes aproximadamente a quarta semana de observaccedilatildeo iniciamos uma pequena sis-

tematizaccedilatildeo de nosso diaacuterio de bordo a fim de ldquoreorientarrdquo nosso roteiro de entrevistas Embo-

ra jaacute houvesse obtido a permissatildeo para realizar as entrevistas dentro da faacutebrica optamos em

fazer as duas primeiras delas em outro espaccedilo Foi um momento importante pois aleacutem dos 26 ldquoO peatildeo adora fazer alusatildeo ao parentesco entre os colegas lsquoVocecircs satildeo irmatildeosrsquo lsquoQuem era o mais choratildeo laacute na sua casarsquordquo 27 Foram muitas falas com essa conotaccedilatildeo Em algumas delas os ferramenteiros citaram certos comportamentos de nossa parte que favoreceram a nossa entrada no coletivo de trabalho Explicitaremos apenas uma delas pelo teor do seu conteuacutedo irocircnico mas revelador mdash ldquoVou te falar a verdade no iniacutecio a turma toda ficou falando ou ele eacute mais um chefe ou esse cara eacute um espi-atildeo Depois vocecirc foi se entrosando com a gente Soacute que eu vou te falar um negoacutecio vocecirc pode ateacute ser professor mas vocecirc deve ser filho de peatildeo vocecirc tem umas lsquomaniasrsquo de peatildeordquo Eu mdash Seraacute Uma hora dessas vou te contar a minha Histoacuteria se vocecirc estiver certo eu te pago uma cerveja se vocecirc estiver errado vocecirc me paga uma cerveja taacute combinado mdash Taacute vendo num tocirc te falando isso eacute coisa de peatildeo Esse mesmo estranhamento foi relatado por SANTOS (1985) ao entrar na faacutebrica em que realizou sua pesquisa de mestrado

35

ricos elementos coletados nos permitiu projetar um olhar mais refinado para as futuras obser-

vaccedilotildees e ainda para as outras entrevistas

36

2 O ldquoLUGARrdquo DO SABER NO MUNDO DO TRABALHO

A presenccedila de saberes no processo de trabalho tem despertado interesse em vaacuterios

segmentos da sociedade trabalhadores empresaacuterios poder puacuteblico e privado trabalho e esco-

la Apresentaremos a seguir parte da discussatildeo feita pelos autores que se interessam pelo

tema inicialmente localizando os modelos de organizaccedilatildeo de trabalho capitalista em seguida

a importacircncia atribuiacuteda ao tema do saber no processo de trabalho e os diversos acircngulos em

que ele eacute tratado

21 O SABER NOS MODELOS DE ORGANIZACcedilAtildeO E GESTAtildeO DO TRABALHO

Os modelos de organizaccedilatildeo do trabalho satildeo engendrados num determinado contexto

histoacuterico econocircmico e social e respondem agraves condiccedilotildees da base material da sociedade Muitos

autores como Gounet (1999) Coriat (1994) Salerno (1994) e Bravermam (1987) que discu-

tem a questatildeo do saber e os modelos de organizaccedilatildeo do trabalho destacam dois paradigmas

dessa organizaccedilatildeo o taylorismo e o toyotismo O primeiro marcou a organizaccedilatildeo dos proces-

sos de trabalho em todo o seacuteculo XX e sobrevive fortemente ateacute hoje o segundo surge no

Brasil a partir principalmente dos anos de 1970

O Taylorismo preconiza uma racionalizaccedilatildeo da organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho que

elimine as porosidades na linha produtiva Essa perspectiva aponta para uma aparente oposi-

37

ccedilatildeo entre o operaacuterio e a gerecircncia no que se refere ao niacutevel de autonomia sobre os saberes pre-

sentes no processo de trabalho1

Em relaccedilatildeo agraves suas principais caracteriacutesticas o taylorismo foi analisado da seguinte

forma por Aranha (1997)

O taylorismo caracteriza-se entre outras coisas por seu rigor em tentar submeter o trabalhador a um trabalho prescrito pela gerecircncia () A radical separaccedilatildeo entre e-xecuccedilatildeo e concepccedilatildeo e a otimizaccedilatildeo da produtividade do trabalho com a reduccedilatildeo de tempos mortos constituiacuteam algumas das suas principais metas (p 20)

Por discutirem com mais profundidade o taylorismo Bravermam (1987) Coriat

(1994) e Antunes (2001) afirmam que a proposta de Taylor estrutura-se sobre um trabalho

parcelar e fragmentado de tarefas que supostamente exige dos operaacuterios saberes e habilida-

des especiacuteficas agrave sua funccedilatildeo O taylorismo notabiliza-se ainda pela radical separaccedilatildeo entre a

execuccedilatildeo e a concepccedilatildeo onde a prescriccedilatildeo do trabalho caberia agrave gerecircncia que dentre outras

atribuiccedilotildees poderia e deveria conhecer organizar e controlar o saber dos trabalhadores ou

como afirma o proacuteprio Taylor (1980) ldquoA gerecircncia tem a funccedilatildeo de reunir os conhecimentos

tradicionais que no passado possuiacuteram os trabalhadores e entatildeo classificaacute-los tabulaacute-los e

reduzi-los em normas leis ou foacutermulas grandemente uacuteteis ao operaacuteriordquo (p 49)

O toyotismo2 eacute um modelo de organizaccedilatildeo do trabalho que surge a partir de fins dos

anos sessenta e chega ao Brasil uma deacutecada depois Este modelo introduz novidades em rela-

ccedilatildeo ao saber do operaacuterio quando passa a valorizaacute-lo no processo produtivo (CORIAT 1994

HARVEY 1993) Sob o vieacutes da gestatildeo participativa essa perspectiva procura encurtar a dis-

tacircncia entre a concepccedilatildeo e a execuccedilatildeo com a criaccedilatildeo de mecanismos que facilitam a integra-

1 Essa questatildeo jaacute eacute discutida em uma extensa bibliografia (BRAVERMAM 1987 CORIAT 1994 GOUNET 1999) 2 O aprofundamento desse modelo se encontra em uma extensa bibliografia (CORIAT 1994 ANTUNES 2001 GOUNET 1999)

38

ccedilatildeo do saber do trabalhador ao processo de trabalho e agraves poliacuteticas da empresa de melhoria da

produtividade e qualidade

Aleacutem de uma maior participaccedilatildeo do trabalhador no processo produtivo esse modelo

diferentemente da rigidez taylorista valoriza um trabalhador que possua saberes e habilidades

que lhe permitam aprender continuamente adaptar e alocar seus saberes em multitarefas O

toyotismo se caracteriza ainda por um forte apelo ao uso da microeletrocircnica o que combi-

nado com as caracteriacutesticas anteriores acaba requisitando um perfil de trabalhador que tenha

uma formaccedilatildeo baacutesica mais soacutelida e ampla (EVANGELISTA 2002 ANTUNES 2001) Entre-

tanto o toyotismo ao mesmo tempo em que demanda uma forccedila de trabalho mais qualificada

tambeacutem ldquopressupotildee um trabalho precaacuterio e excludenterdquo (KUENZER apud EVANGELISTA

2002 p 40)3

Eacute necessaacuterio ainda afirmar que vaacuterias pesquisas (ARANHA 1997 ANTUNES

2001) questionam ou ateacute mesmo negam a total superaccedilatildeo do taylorismo pelo toyotismo Con-

forme esclarece Aranha (1997) ldquoestudos empiacutericos mostram que processos de trabalho alta-

mente neotecnizados convivem com esquemas tayloristas e mesmo com outros esquemas de

gerenciar a produccedilatildeo ainda mais atrasadosrdquo (p 22) Esse hibridismo eacute percebido criticamente

por alguns pesquisadores Hirata (1994) por exemplo afirma que a qualificaccedilatildeo exigida pelo

padratildeo flexiacutevel e integrado ldquo() se aplica menos agraves trabalhadoras do sexo feminino e aos ope-

raacuterios de empreiteiras subcontratados pela empresardquo (p 130) De acordo com essa pesquisa-

dora esse modelo ao mesmo tempo em que favorece o surgimento de trabalhadores super-

qualificados proporciona tambeacutem o crescimento do nuacutemero de trabalhadores pouco qualifi-

cados (HIRATA 1994)

3 Em relaccedilatildeo a esta questatildeo haacute uma vasta bibliografia (HIRATA 1994 CARVALHO 1996 KUENZER 1994 ANTUNES 2001)

39

Dentre as accedilotildees colocadas em uso pelo capital na tentativa de gerenciar os saberes dos

trabalhadores algumas nos parecem bem sofisticadas Assis (2000) em sua dissertaccedilatildeo4 ob-

serva que a empresa na qual realizou a sua pesquisa se apoiava em um excepcional sistema de

comunicaccedilatildeo informatizado para tentar mobilizar e apropriar os saberes dos trabalhadores

Em outros estudos como os realizados por Souza (2002)5 e Machado (1999)6 aparecem ele-

mentos que revelam uma proposta de organizaccedilatildeo do trabalho que busca combinar as novas

tecnologias para mobilizar a ldquoautonomiardquo do operaacuterio no processo produtivo no que diz res-

peito aos saberes

Por outro lado Santos (1985 1997 2000) Aranha (1997) Machado (1999) e Lima

(1998) ampliam a importacircncia do tema na medida em que ao problematizaacute-lo apontam para

dimensotildees relativas aos interesses dos trabalhadores Evangelista (2002) mostra ainda que os

trabalhadores sempre estiveram interessados em interpretar a presenccedila dos seus saberes no

processo de trabalho

22 O SABER NO TRABALHO

Os vaacuterios segmentos sociais trabalhadores empresaacuterios e poder puacuteblico ao mesmo

tempo em que de diversas formas consagram a importacircncia do saber no processo de trabalho

reclamam tambeacutem por estudos que o esclareccedilam melhor

No sentido de avanccedilar na problematizaccedilatildeo do saber no trabalho torna-se necessaacuterio

conhecer como a literatura vem abordando a temaacutetica Seguindo por esta trilha o debate aber- 4 ASSIS RicardoWagner Os impactos das novas tecnologias nas formas de sociabilidade e no savoir-faire dos operadores um estudo de caso do setor sideruacutergico Belo Horizonte Dissertaccedilatildeo de mestrado apresentada agrave Faculdade de Psicologia da UFMG 2000 5 SOUZA P R Autonomia dos operadores e trabalho de convencimento na produccedilatildeo contiacutenua Belo Hori-zonte (Dissertaccedilatildeo de mestrado apresentada agrave Escola de Engenharia da UFMG) 2002 6 MACHADO M L M Sujeito e trabalho impasses e possibilidades frente as novas tecnologias de gestatildeo no trabalho ndash o caso Gessy Lever Belo Horizonte Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Faculdade de Filosofia Ciecircncias e LetrasUFMG como requisito parcial agrave obtenccedilatildeo do tiacutetulo de mestre em psicologia Belo Horizonte 1999

40

to sobre a presenccedila do saber no trabalho perpassa reflexotildees teoacutericas e investigaccedilotildees de casos

concretos que apontam o tratamento dado agrave concepccedilatildeo e agrave execuccedilatildeo no processo de trabalho

Em relaccedilatildeo ao atual debate sobre o saber no processo de trabalho destaca-se a gestatildeo

participativa capitaneada pelo modelo toyotista que aparentemente elimina a separaccedilatildeo entre

execuccedilatildeo e concepccedilatildeo no processo de trabalho Segundo Aranha (1997) ldquoAs chamadas lsquoges-

totildees participativasrsquo buscam a integraccedilatildeo do trabalhador no processo produtivo alargando a

margem de sua interferecircncia e concretamente colocando em suas matildeos um conjunto de deci-

sotildees antes apenas restrito agrave gerecircnciardquo (p 22) Entretanto essa autora faz uma advertecircncia

ldquoEssas alteraccedilotildees natildeo foram colocadas por qualquer atitude de benevolecircncia do empresariado

para com a forccedila de trabalhordquo Antunes (2000) tambeacutem aponta a participaccedilatildeo do operaacuterio em

algumas decisotildees na linha produtiva como uma das inovaccedilotildees do toyotismo ldquoOs ciacuterculos de

controle de qualidade (CCQs) construindo grupos de trabalhadores que satildeo instigados pelo

capital a discutir seu trabalho e desempenho com vistas a melhorar a produtividade das em-

presasrdquo (p 55)

Por outro lado Evangelista (2002) afirma que as pesquisas indicam a existecircncia de

uma separaccedilatildeo entre execuccedilatildeo e concepccedilatildeo em empresas que adotaram o padratildeo flexiacutevel e

integrado como por exemplo a Fiat Automoacuteveis

A partir mesmo das relaccedilotildees estabelecidas entre a unidade fabril de Betim e a faacute-brica da matriz vaacuterios dos projetos dos carros produzidos no Brasil satildeo importados da Itaacutelia mostrando que a autonomia local eacute apenas relativa Alguns desses proje-tos satildeo definidos no Brasil mas as diretrizes vecircm da empresa matildee (p 84)

Evangelista (2002) afirma ainda que ldquoEsse processo se reproduz na relaccedilatildeo que a uni-

dade de Betim estabelece com o coletivo dos trabalhadores locais proporcionando-lhes uma

certa autonomia mas natildeo sem abrir matildeo naturalmente da coordenaccedilatildeo e do controlerdquo (p 85)

Eacute necessaacuterio considerar que mesmo estando as grandes decisotildees sob as ordens do ca-

pital haacute uma forte evidecircncia de que a reconfiguraccedilatildeo do saber dentro do processo de trabalho

41

por parte dos trabalhadores esteja inscrita natildeo somente como importante mas como uma ne-

cessidade fundamental para o capital

Avanccedilando nessa discussatildeo Santos (1997) contesta o fim da prescriccedilatildeo anunciado pe-

los processos flexiacuteveis e integrados ao trabalhar com a ideacuteia de que a separaccedilatildeo entre execu-

ccedilatildeo e concepccedilatildeo nos processos integrados e flexiacuteveis possa estar inserida em uma outra pers-

pectiva de organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho onde a prescriccedilatildeo de objetivos toma o lugar da

prescriccedilatildeo das atividades de trabalho Segundo essa pesquisadora ldquoA prescriccedilatildeo passa desse

modo a se referir aos objetivos amplos do processo produtivo direcionados ao sistema como

um todo Haacute um deslocamento das exigecircncias em relaccedilatildeo agraves teacutecnicas operatoacuterias especializa-

das para uma regulaccedilatildeo tecnoloacutegica do conjuntordquo (p 18)

Essa reflexatildeo eacute corroborada por vaacuterias pesquisas que verificam que a integraccedilatildeo do

saber do trabalhador no processo de trabalho natildeo eliminou a existecircncia de uma gerecircncia que

centraliza e controla os objetivos da empresa Assis (2000) por exemplo verificou em sua

dissertaccedilatildeo que o trabalho dos operadores da aciaria em uma sideruacutergica mineira que optou

pelo padratildeo integrado e flexiacutevel eacute marcado por procedimentos prescritos pela gerecircncia A

chance de os operadores burlarem esses procedimentos eacute travada por um sistema de comuni-

caccedilatildeo informatizado que soacute admite o uso de alternativas quando se faz uma justificativa re-

gistrada junto agrave gerecircncia Esse processo eacute percebido pelos proacuteprios operadores como cita As-

sis (2000) ldquoSe vocecirc mudar alguma coisa tem que explicar na telardquo (p 46) Dessa forma o

trabalho da gerecircncia pode ficar facilitado com o acesso a um maior nuacutemero de informaccedilotildees

De acordo com Assis (2000)

() as gerecircncias tecircm hoje um volume de informaccedilotildees sobre o que ocorre muito maior que antes jaacute que no caso dos operadores suas intervenccedilotildees satildeo registradas eletronicamente ou seja grande parte do que afeta o processo eacute introduzido no sis-tema informatizado passando muito pouca coisa despercebida (p 46)

42

Uma outra observaccedilatildeo feita por Assis (2000) indica que ao mesmo tempo em que a

empresa aperfeiccediloa seus mecanismos de controle e de prescriccedilatildeo contraditoriamente ela con-

voca o saber dos trabalhadores e depende da integraccedilatildeo para que funcione o seu sistema de

controle e prescriccedilatildeo Nas palavras de Assis (2000)

O que pode parecer paradoxal eacute que quanto mais a organizaccedilatildeo exige um acompa-nhamento das prescriccedilotildees por parte dos operadores mais ela busca neles autonomia e flexibilidade para que possam dar soluccedilotildees criativas frente agraves mudanccedilas lidar com as variabilidades do processo superar a falta de confiabilidade de algumas in-formaccedilotildees e as falhas dos sistemas automatizados que natildeo param de se complexi-ficar e insistem em natildeo funcionar exatamente como desejam os manuais e os enge-nheiros (p 41)

Ainda sobre a possibilidade de existir dentro do padratildeo flexiacutevel e integrado uma pers-

pectiva de hierarquia que separa a execuccedilatildeo da concepccedilatildeo no processo de trabalho Evangelis-

ta (2002) afirma que

Os trabalhadores natildeo teriam qualquer possibilidade de decidir sobre os cursos a se-rem oferecidos pela empresa e consequumlentemente sobre os conteuacutedos que com-preendem esses cursos Estes tecircm sido definidos pelo Desenvolvimento Organiza-cional ndash DO ndash setor que junto com o de treinamento e outros determina as neces-sidades e os alvos das atividades de formaccedilatildeo (p 86)

Dentre os autores que discutem a implantaccedilatildeo do padratildeo flexiacutevel e integrado alguns

chegam a projetar uma certa vantagem deste modelo de organizaccedilatildeo do trabalho para os traba-

lhadores Coriat (1994) por exemplo vai vislumbrar a possibilidade de haver uma intelectua-

lizaccedilatildeo do trabalhador em funccedilatildeo de o padratildeo flexiacutevel valorizar um saber amplo e versaacutetil

Arauacutejo (2002) cuja dissertaccedilatildeo aborda a reestruturaccedilatildeo produtiva em duas induacutestrias sideruacuter-

gicas mineiras no contexto da privatizaccedilatildeo salienta que ldquoA privatizaccedilatildeo gerou uma transiccedilatildeo

do autoritarismo para um estilo gerencial menos autoritaacuteriordquo (p 113) A autora tambeacutem en-

tende que ldquoO novo perfil do trabalhador abrange uma aacuterea muito maior bem como o relacio-

43

namento interpessoal e a comunicaccedilatildeo aliados ao conhecimento e agrave habilidade teacutecnicardquo (p

114)

Embora o trabalho no padratildeo flexiacutevel e integrado possa conservar praacuteticas tayloristas

as pesquisas natildeo hesitam em indicar que de fato vem ocorrendo uma nova interaccedilatildeo do ho-

mem com o processo de trabalho e que a implantaccedilatildeo das novas tecnologias estimulou o de-

sencadeamento de novos saberes que Assis (2000) classificou como saberes complexos dada

a combinaccedilatildeo de domiacutenio do processo produtivo com o uso da linguagem informatizada

Se as pesquisas confirmam a importacircncia da presenccedila de saberes dos trabalhadores no

trabalho surgem tambeacutem algumas indagaccedilotildees a convocaccedilatildeo destes saberes por parte do ca-

pital seria suficiente para mobilizar os trabalhadores a produzi-los E neste caso como isto

se daria E ainda quais saberes dos trabalhadores interessam ao capital

23 O SABER TAacuteCITO DO TRABALHADOR

A expressatildeo saber taacutecito tem sido muito usada quando se discute a presenccedila do saber

do trabalhador no processo de trabalho De acordo com o dicionaacuterio Ferreira (1986) o saber

eacute ldquo[Do latim sapere ter gosto] Ter conhecimento ciecircncia informaccedilatildeo ou notiacutecia () ter

conhecimento teacutecnicos e especiais relativos a ou proacuteprios para () Estar convencido de ter a

certeza de () Ter capacidade () julgar considerar () experiecircncia praacuteticardquo (p 1530) Nes-

te mesmo dicionaacuterio () a definiccedilatildeo de taacutecito eacute ldquo[Do latim Tacitu] silencioso calado () Em

que natildeo haacute rumor () que natildeo se exprime por palavras subentendido impliacutecito () Oculto

secretordquo

No dicionaacuterio da educaccedilatildeo profissional (2000) saber eacute apresentado com as seguintes

definiccedilotildees ldquo1 ndash o ato de saber ou o processo atraveacutes do qual um sujeito aprende 2 ndash o fato

44

ou a situaccedilatildeo daquele que aprendeu algo 3 ndash o produto da aprendizagem do sujeito ou obje-

tos culturais institucionais sociaisrdquo (p 294) Ainda neste dicionaacuterio o saber taacutecito eacute apresen-

tado como sinocircnimo de conhecimento taacutecito (2000) e assim eacute definido ldquo() eacute o conhecimen-

to que a pessoa tem mas do qual natildeo estaacute ciente de modo consciente Eacute resultante da experi-

ecircncia da histoacuteria individual ou coletiva dos indiviacuteduosrdquo (p 298)

O saber taacutecito pode ainda aparecer com o nome de savoir-faire Essa expressatildeo eacute a-

presentada no dicionaacuterio de formaccedilatildeo profissional como ldquo() o produto de uma aprendiza-

gem do trabalhador e sua disposiccedilatildeo para mobilizar os seus saberes no trabalho sempre que

necessaacuterio Compreende os saberes praacuteticos empiacutericos as manhas do ofiacutecio o golpe de vis-

tardquo

Em relaccedilatildeo agrave presenccedila de saberes no processo produtivo Santos (1997) Aranha

(1997) e Antunes (2001) entendem que o saber do trabalhador sempre esteve presente no pro-

cesso de trabalho mesmo em um modelo de gestatildeo extremamente marcado pela divisatildeo teacutec-

nica do trabalho como foi o taylorismo Dentre eles o chamado saber taacutecito eacute o que veremos

a seguir Aranha (1997) afirma que ldquoEste conhecimento taacutecito muitas vezes reprimido pela

gerecircncia nunca deixou de ser continuamente produzido e demonstra que apesar de seus es-

forccedilos o capital ficou longe de conseguir separaccedilatildeo completa (ou mesmo parcial) entre matildeo e

ceacuterebrordquo (p 21)

Do ponto de vista teoacuterico essa questatildeo natildeo eacute nova O divoacutercio entre o trabalho intelec-

tual e o trabalho manual jaacute tinha sido contestado por Gramsci de acordo com Kuenzer (1985)

ldquoNatildeo podemos separar o homo faber do homo sapiensrdquo (p 185)

As pesquisas evidenciam a natildeo-separaccedilatildeo entre trabalho intelectual e trabalho manual

ao demonstrarem o avanccedilo do capital sobre o saber do trabalhador mesmo nos processos pro-

dutivos mais automatizados Essa situaccedilatildeo foi analisada da seguinte forma por Machado

(1999)

45

Portanto se todo o aparato estampado na automatizaccedilatildeo e informatizaccedilatildeo da planta de produccedilatildeo aludem agrave possibilidade de prescindir do sujeito-trabalhador as situa-ccedilotildees inesperadas convocam os sujeitos a se pronunciar a arbitrar sobre o imprevi-siacutevel Afinal de contas soacute o que eacute previsiacutevel eacute passiacutevel de ser automatizado e con-trolado pela rotina (p 138)

Um ponto de partida mais consistente sobre a inserccedilatildeo do saber taacutecito no processo de

trabalho encontra-se em um pressuposto oriundo da ergonomia cujo entendimento mostra que

o trabalho prescrito ou seja aquele que foi concebido planejado e calculado pela engenharia

natildeo corresponde a todas as necessidades reais do processo de produccedilatildeo demonstrando a fragi-

lidade da ideacuteia que sustenta a total separaccedilatildeo entre execuccedilatildeo e concepccedilatildeo Essa concepccedilatildeo do

processo de trabalho foi assimilada por pesquisadores de vaacuterias aacutereas do conhecimento San-

tos (1997) por exemplo discute a existecircncia de uma ldquodistacircncia entre o trabalho prescrito e o

trabalho realrdquo Como dissemos em nossa introduccedilatildeo de acordo com essa pesquisadora (2000)

trabalho prescrito ldquo() eacute a definiccedilatildeo preacutevia da maneira como o trabalhador deve executar o

trabalho o modo de usar os equipamentos e as ferramentas o tempo concedido para cada

operaccedilatildeo o como fazer e as regras que devem ser respeitadasrdquo (p 344) O trabalho real reme-

te agraves condiccedilotildees necessaacuterias em que se realiza um trabalho que sempre escapa agrave prescriccedilatildeo De

fato essa possibilidade foi verificada concretamente por algumas pesquisas Assis (2000) em

sua dissertaccedilatildeo afirma que ldquoNa nossa pesquisa pudemos perceber a niacutetida distacircncia entre o

trabalho prescrito e o trabalho real o que implica a presenccedila ativa do homem e do seu conhe-

cimento taacutecitordquo (p 42)

As abordagens sobre o saber taacutecito entram em um consenso sobre a sua definiccedilatildeo

quando afirmam que a produccedilatildeo deste saber remete a uma intimidade da vivecircncia do traba-

lhador com o processo de trabalho e que este saber apresenta uma enorme dificuldade em ser

sistematizado Crivellari e Melo apud Assis (2000) entendem e assim o definem

46

Saber taacutecito refere-se agrave capacidade que o trabalhador possui de apreensatildeo e identi-ficaccedilatildeo pela vivecircncia dos estados de normalidade ou anormalidade do processo A aquisiccedilatildeo desse saber se daacute no conviacutevio com a produccedilatildeo havendo uma concepccedilatildeo praacutetica e complexa para ser integralmente apreendida em formalizaccedilotildees (p 18)

Evangelista (2002) trabalha com uma definiccedilatildeo mais ampliada sobre o ldquoconhecimento

taacutecitordquo ao considerar outros espaccedilos aleacutem do trabalho

Esse conhecimento embora proveniente da vivecircncia de trabalho tambeacutem expressa as aquisiccedilotildees obtidas na formaccedilatildeo profissional na escolarizaccedilatildeo formal e na expe-riecircncia de vida do trabalhador Ele conteacutem elaboraccedilotildees individuais e coletivas que por sua vez estatildeo dentro de um quadro de relaccedilotildees e produccedilotildees sociais (p 94)

24 Do saber vinculado agrave praacutetica um ponto de vista sobre o saber taacutecito

() A pertinecircncia de um saber investido numa praacutetica diz ainda B Charlot natildeo es-taacute diretamente ligada ao seu estatuto cientiacutefico Em primeiro lugar um saber pode ser mais pertinente na sua forma ldquocomumrdquo que na sua forma cientiacutefica Assim para nos orientarmos eacute mais pertinente saber que o sol nasce a leste e se potildee a oeste do que saber se a Terra gira em torno do Sol Em segundo lugar natildeo basta que um sa-ber seja cientiacutefico para ser pertinente na praacutetica Eacute preciso ainda que ele se torne instrumento ao serviccedilo visado Natildeo basta conhecer as leis da eletricidade para mon-tar uma aparelhagem eleacutetrica (MALGLAIVE 1990 p 38)7

Se de um lado a literatura que aborda a presenccedila de saberes no processo produtivo

(ARANHA 1997 SANTOS 1997 2000 MACHADO 2000) indica que os trabalhadores

satildeo produtores de saberes por outro lado segundo essa mesma literatura existe um campo

aberto e necessaacuterio agraves pesquisas que possam contribuir para que o estatuto social poliacutetico e

espistemoloacutegico do saber taacutecito do trabalhador supere a sua ldquotimidezrdquo perante os saberes for-

malizados pela ciecircncia Posto ainda que o proacuteprio objeto desta pesquisa remete agrave possibili-

dade de que as atividades de trabalho sejam praacuteticas inteligentes entendemos que eacute importan-

te aprofundar a discussatildeo sobre a validade sobretudo epistemoloacutegica do saber taacutecito Diante

7 Esta obra eacute uma ediccedilatildeo portuguesa

47

dessa questatildeo que para noacutes eacute muito cara recorremos ao diaacutelogo com os pesquisadores que

refletem sobre a relaccedilatildeo entre a praacutetica e a construccedilatildeo de saberes taacutecitos

De um modo geral os pesquisadores (SCHON 2000 POLANY 1967 MALGLAI-

VE 1990) que discutem o saber taacutecito o tomam como um saber vinculado agrave praacutetica ou asso-

ciado a uma determinada experiecircncia em fazer algo Estes pesquisadores ao buscarem desve-

lar o saber taacutecito apontam como chave de seu entendimento a anaacutelise da relaccedilatildeo entre a praacuteti-

ca8 e a produccedilatildeo desse tipo de saber Pode-se dizer ainda que a perspectiva que confere im-

portacircncia ao estudo da relaccedilatildeo entre a praacutetica e a construccedilatildeo do saber taacutecito se apoacuteia no pres-

suposto de que sendo este saber vinculado agrave accedilatildeo humana o saber taacutecito eacute por excelecircncia

uma praacutetica potencialmente inteligente Essa perspectiva eacute apontada por Malglaive (1990) ldquoA

praacutetica eacute tudo o que diz respeito a acccedilatildeo humana isto eacute a transformaccedilatildeo intencional da reali-

dade pelos homens Implica portanto um desiacutegnio um fim o estado do real ao qual se aplica

a acccedilatildeordquo (p 40) Em Polany apud Frade (2003) a praacutetica pode ser percebida quando realiza-

mos alguma atividade ou ainda quando compreendemos algo podendo ser por meio de ldquoex-

periecircncias diretas ou sensoriais e com uso de conhecimentosrdquo (p 13)

Antes de avanccedilarmos na discussatildeo da relaccedilatildeo entre a praacutetica e o saber taacutecito vejamos

as diversas denominaccedilotildees sobre saberes vinculados agrave praacutetica e que ao nosso ver podem ser

tidos como da ordem do taacutecito Encontramos termos como ldquosaber-fazer ou savoir-fairerdquo ldquosa-

ber taacutecitordquo ldquoconhecimento taacutecitordquo ldquosaber do trabalhadorrdquo ou ldquotalento artiacutesticordquo (FRADE

2003 SCHON 2000 POLANY 1967 MALGLAIVE 1990) Todavia em que pesem algu-

mas especificidades que marcam o uso desses termos por esses pensadores satildeo muitos os

motivos que nos levam a tomar como importante as diferentes reflexotildees sobre o saber taacutecito

8 De acordo com o dicionaacuterio Ferreira (1986) a noccedilatildeo de praacutetica pode se referir as seguintes possibilidades ldquo1 ndash ato ou efeito de praticar 2 ndash uso experiecircncia exerciacutecio 3 ndash rotina 4 ndash saber provindo da experiecircncia teacutecnica 5 ndash aplicaccedilatildeo da teoria ()rdquo (p 1377) Jaacute a teoria eacute apresentada em Ferreira (1986) como ldquo[Do grego theoria] 1 ndash Conhecimento especulativo meramente racional 2 ndash Conjunto de princiacutepios fundamentais duma ciecircncia ou duma arte 4 ndash Opiniotildees sistematizadas () 6 ndash suposiccedilatildeo hipoacutetese ()rdquo (p 1644)

48

no sentido de compreendermos a sua relaccedilatildeo com a praacutetica Dessa forma mostraremos agora

como alguns autores usam a ideacuteia de praacutetica e que termos utilizam para designar o saber taacuteci-

to Malglaive (1990) apresenta como saber-fazer

Eacute mesmo agrave praacutetica que por definiccedilatildeo se refere o saber fazer () Em numerosos casos o saber-fazer designa uma competecircncia global um ofiacutecio ou uma destreza num domiacutenio mais ou menos amplo da praacutetica humana () Os saberes-fazer satildeo portanto para noacutes actos humanos disponiacuteveis em virtude de terem sido apreendidos (seja de que maneira for) e experimentados (p 79)

Outro autor Polany (1967) apresenta os saberes vinculados a uma ideacuteia de praacutetica pe-

lo termo de conhecimento taacutecito9 De acordo com Frade (2003) Polany declara natildeo ser possiacute-

vel tratar o conhecimento humano sem partir do princiacutepio de que sabemos mais do que pode-

mos dizer () Embora esse princiacutepio pareccedila oacutebvio ele espelha um dos principais pilares de

sua concepccedilatildeo de conhecimento o reconhecimento da existecircncia de um tipo de conhecimento

que natildeo pode ser completamente exposto e mais especificamente que natildeo pode ser descrito

em regras ou palavras o conhecimento taacutecito (p 11 grifo nosso) Segundo Polany (1967)

todo conhecimento humano eacute perpassado por uma dimensatildeo taacutecita10 Esta afirmaccedilatildeo eacute susten-

tada na ideacuteia de que todo conhecimento natildeo eacute totalmente explicitaacutevel ou seja todo conheci-

mento guarda uma face obscura portanto uma dimensatildeo taacutecita O debate sobre a explicitaccedilatildeo

ou natildeo de um determinado saber seraacute apresentado mais adiante neste capiacutetulo Uma outra

caracteriacutestica do conhecimento taacutecito em Polany segundo Frade (2003) pode ser dada ainda

pelo fato de se tratar de uma ldquohabilidade pessoal que natildeo pode ser disponibilizada a outros

pois natildeo sabemos explicar exatamente como a operamosrdquo (p 12) Dessa forma como jaacute a-

firmamos o ldquoconhecimento taacutecitordquo em Polany apresenta-se tambeacutem norteado pela ideacuteia de

praacutetica

9 Embora jaacute tenhamos explicado a nossa opccedilatildeo pelo termo saber em detrimento do termo conhecimento eacute mister explicar que em POLANY prevalece o uso do uacuteltimo termo Daiacute que nas diversas vezes em que nos reportamos a este autor aparece o termo conhecimento taacutecito 10 Eacute este inclusive o nome de um livro sobre o tema The tacit dimension (1967)

49

A aproximaccedilatildeo entre o ldquoconhecimento taacutecitordquo e a ideacuteia de praacutetica proposta por Polany

nos permite identificar de acordo com Frade (2003 p 13) um conhecimento praacutetico como

um conhecimento adquirido de experiecircncias diretas ou sensoriais Segundo essa autora ldquopo-

demos identificar um conhecimento praacutetico com um conhecimento taacutecito no sentido que natildeo eacute

faacutecil especificar como adquirimos conhecimento dessas experiecircncias e nem como usamos um

conhecimentordquo (grifo nosso) Ainda de acordo com essa pesquisadora em Polany foi possiacutevel

articular o conhecimento taacutecito com a ideacuteia de praacutetica agrave medida que

Analisando os diversos exemplos apresentados por POLANY (1962 1983 1975) para ilustrar o que consiste um conhecimento dessa natureza constata-se que o co-nhecimento taacutecito estaacute estritamente vinculado a uma praacutetica da seguinte maneira quando realizamos uma tarefa seja fiacutesica ou mental () acionamos um processo de funcionamento das nossas accedilotildees cujo propoacutesito eacute nos auxiliar na concretizaccedilatildeo des-sa tarefa Ao ser acionado tal processo mobiliza um conjunto especiacutefico de conhe-cimentos que possuiacutemos que funcionaram como instrumentos para realizarmos a tarefa bem como para monitorarmos sua realizaccedilatildeo (FRADE 2003 p 12 grifo nosso)

Em Schon (2000) tambeacutem encontramos uma reflexatildeo que aproxima a noccedilatildeo de saber

taacutecito agrave ideacuteia de praacutetica Para compreendermos melhor a aproximaccedilatildeo que esse autor faz entre

um tipo de saber e uma ideacuteia de praacutetica eacute necessaacuterio apresentarmos duas perspectivas o co-

nhecimento profissional e a competecircncia profissional A primeira perspectiva segundo Schon

(2000) normalmente eacute vinculada a saberes teoacutericos e teacutecnicas baseadas em pesquisas a qual

ele chama de ldquoracionalidade teacutecnicardquo e assim eacute definida

A racionalidade teacutecnica eacute uma epistemologia da praacutetica derivada da filosofia posi-tivista construiacuteda nas proacuteprias fundaccedilotildees da universidade moderna A racionalida-de teacutecnica diz que os profissionais satildeo aqueles que solucionam problemas instru-mentais selecionando os meios teacutecnicos mais apropriados para propoacutesitos especiacutefi-cos Profissionais rigorosos solucionam problemas instrumentais claros atraveacutes da aplicaccedilatildeo da teoria e da teacutecnica derivadas de conhecimento sistemaacutetico de prefe-recircncia cientiacutefico (p 15)

50

Entretanto na segunda perspectiva Schon (2000) aponta que sempre haacute uma zona de

incerteza a qual ldquoescapa da racionalidade teacutecnicardquo Eacute a partir das demandas de um espaccedilo

nutrido de incertezas que surge um apelo a um tipo de saber inerente a uma determinada praacute-

tica Tal saber foi nomeado por esse autor como ldquotalento artiacutestico profissionalrdquo Segundo as

palavras de Schon (2000) o termo ldquotalento artiacutestico profissionalrdquo se refere ldquoaos tipos de com-

petecircncia que os profissionais demonstram em certas situaccedilotildees da praacutetica que satildeo uacutenicas incer-

tas e conflituosasrdquo (p 29) Ainda sobre o ldquotalento artiacutestico profissionalrdquo de acordo com esse

autor ldquoO que chega a ser surpreendente sobre esses tipos de competecircncia eacute que eles natildeo de-

pendem de nossa capacidade de descrever o que sabemos fazer ou mesmo considerar consci-

entemente o que nossas accedilotildees revelamrdquo (p 29) Eacute nesta segunda perspectiva qual seja a que

interroga os saberes natildeo disponibilizados pela ldquoracionalidade teacutecnicardquo que encontramos em

Schon (2000) uma interlocuccedilatildeo com o saber taacutecito e a ideacuteia de praacutetica

A relevacircncia que Frade 2003 Schon 2000 Polany 1967 e Malglaive 1990 atribuem

ao imbricamento do saber taacutecito com a ideacuteia de praacutetica suscitou algumas indagaccedilotildees sobre

este tipo de saber quais as possibilidades de este saber ser comunicado E ainda o saber

taacutecito quando eacute acionado prescinde da mobilizaccedilatildeo de outros saberes Estas indagaccedilotildees antes

mesmo de serem respondidas acabam por nos fornecer algumas trilhas para que possamos

aprofundar a discussatildeo sobre a explicitaccedilatildeo ou natildeo deste tipo de saber bem como as suas

possibilidades de conter uma racionalidade ainda que natildeo cientiacutefica Eacute o que buscaremos fa-

zer no desenrolar desta parte em diante Neste sentido apresentamos uma discussatildeo sobre o

saber taacutecito dividida em trecircs perspectivas

Na primeira perspectiva procuramos analisar alguns aspectos da relaccedilatildeo do saber taacuteci-

to com a ideacuteia de praacutetica a partir de uma discussatildeo com alguns autores (FRADE 2003 S-

CHON 2000 POLANY 1967 MALGLAIVE 1990) na qual o saber taacutecito eacute caracterizado

por duas dimensotildees Em uma delas eacute apresentado um saber de uso instrumental ou seja um

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saber que eacute disponibilizado para a realizaccedilatildeo de uma atividade orientando-se pelo seu resulta-

do final (FRADE 2003 POLANY 1967) Jaacute na outra o saber taacutecito se inscreve em um pro-

cesso de construccedilatildeo de saberes De acordo com Frade 2003 Schon 2000 Polany 1967

Malglaive 1990 este tipo de saber pode ainda ser acionado para monitorar e compreender a

realizaccedilatildeo de uma determinada atividade A partir da possibilidade de uso do saber taacutecito para

monitorar e compreender a realizaccedilatildeo de uma atividade debatemos ainda se esse tipo de sa-

ber possui algum niacutevel de formalizaccedilatildeo

Na segunda perspectiva discute-se a possibilidade de comunicaccedilatildeo do saber taacutecito a-

traveacutes da relaccedilatildeo entre este tipo de saber e uma linguagem que possa expressaacute-lo A partir

desta discussatildeo satildeo engendrados vaacuterios desdobramentos da explicitaccedilatildeo ou natildeo do saber taacuteci-

to Neste sentido satildeo analisadas as possibilidades de uma ou mais pessoas acessarem o saber

taacutecito de uma outra pessoa por meio da comunicaccedilatildeo as contradiccedilotildees entre uma linguagem

que busca expressar um saber taacutecito e uma outra linguagem que expressa um saber teoacuterico de

preferecircncia formalizado pelos padrotildees da ciecircncia Eacute abordada ainda a relaccedilatildeo do saber taacutecito

e uma linguagem que possa expressaacute-lo dentro de um recorte nas atividades e situaccedilotildees de

trabalho

Jaacute na terceira perspectiva a partir da anaacutelise da relaccedilatildeo entre o corpo e a mente satildeo

discutidas as possibilidades de produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo do saber taacutecito A abor-

dagem da relaccedilatildeo entre o corpo e a mente se apresenta com especial importacircncia por ser um

desdobramento das perspectivas apresentadas anteriormente na medida em que o corpo pode

ser considerado o meio pelo qual se realiza uma atividade fiacutesica ou mesmo mental Eacute analisa-

da tambeacutem a possibilidade de haver a mobilizaccedilatildeo de um ldquosaber usar o corpordquo A discussatildeo

sobre o corpo objetiva cumprir ainda um outro papel natildeo menos importante de buscar com-

preender os sujeitos de nossa pesquisa em sua complexidade ao incluir tambeacutem os aspectos

corporais na anaacutelise da produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes taacutecitos

52

Por fim a partir de uma anaacutelise dessas trecircs perspectivas articuladas com alguns ele-

mentos do mundo do trabalho buscaremos esclarecer uma hipoacutetese que norteia essa pesquisa

qual seja que os ferramenteiros produzem saberes taacutecitos e que para usarem os seus saberes

taacutecitos mobilizam mediante estrateacutegias tambeacutem taacutecitas saberes de vaacuterias ordens e ainda os

ferramenteiros criam estrateacutegias tambeacutem taacutecitas para formalizar os saberes taacutecitos que eles

produzem e mobilizam

241 Saber taacutecito entre um uso instrumental e a construccedilatildeo de saberes

Para alguns pesquisadores as reflexotildees sobre o saber taacutecito tecircm o seu ponto de partida

na tese de que este saber eacute caracterizado dentre outras coisas como um saber de uso instru-

mental (FRADE 2003 POLANY 1967) Segundo o dicionaacuterio Ferreira (1986) o termo ins-

trumental eacute uma derivaccedilatildeo da palavra instrumento cujo significado pode ser ldquo[Do Latim

Instrumentu] 1 ndash () 2 ndash Qualquer objeto considerado em sua funccedilatildeo ou utilidade 3 ndash Recur-

so empregado para alcanccedilar um objetivo conseguir um resultadordquo (p 1119) De acordo

com Santos (2003) a ldquofinalidade instrumental pode ser entendida como na seguinte proposi-

ccedilatildeo dado um fim ndash formaccedilatildeo de matildeo-de-obra para responder agraves necessidades do projeto de

desenvolvimento em curso ndash ponderam-se os meios de obtecirc-lo dado um conjunto de meios

ponderam-se os fins que podem ser alcanccediladosrdquo (p 37)11

De acordo com Frade (2003) o saber taacutecito em Polany tambeacutem caracteriza-se pelo

seu uso instrumental

De fato segundo Polany tais conhecimentos satildeo taacutecitos na medida em que satildeo u-sados de maneira instrumental e natildeo explicitamente como objetos Nesse sentido enquanto estatildeo sendo mobilizados eles natildeo satildeo percebidos em si mesmos mas sim em termos daquilo que eles contribuem para a realizaccedilatildeo da tarefa (p 12)

11 SANTOS (2003) associa a recente primazia dada a perspectiva instrumental do saber do trabalhador agrave emer-gecircncia do discurso da competecircncia em detrimento do tema do saber do trabalhador no trabalho (p 37)

53

Para Frade (2003) a faceta instrumental do saber taacutecito pode ser dada por uma forte

tendecircncia que noacutes temos em focalizar o saber taacutecito no resultado final de uma atividade ou na

conquista de uma determinada compreensatildeo logo estes objetivos iniciais satildeo o ldquoobjeto foco

de nossa atenccedilatildeordquo Dessa forma um conhecimento taacutecito natildeo eacute percebido em si mesmo na

medida em que noacutes o usamos apenas de maneira instrumental auxiliar ou seja noacutes mobili-

zamos o saber taacutecito prioritariamente para atingir uma determinada finalidade Portanto o

saber taacutecito que foi mobilizado natildeo eacute o foco principal de nossa atenccedilatildeo porque eacute usado como

um meio um instrumento de realizaccedilatildeo de uma finalidade que pretendemos atingir

Frade (2003) e Polany (1967) desdobram a tese de uso instrumental do saber taacutecito em

uma outra explicaccedilatildeo De acordo com esses pesquisadores a proacutepria estrutura do ato de co-

nhecer do saber taacutecito favorece para que este saber se caracterize por uma forma instrumental

Isso ocorre da seguinte maneira quando um saber taacutecito eacute mobilizado para que possamos rea-

lizar uma atividade significa que noacutes sabemos porque mobilizamos tal ou tais saberes Daiacute

que segundo Polany (1967) este saber eacute tido como um saber ldquoproacuteximo de noacutesrdquo pelo simples

fato de que sabemos da sua existecircncia ou porque ldquoconfiamos na ciecircncia que temos dele para

dirigirmos nossa atenccedilatildeo a uma determinada realizaccedilatildeordquo (p 10) ou ainda como afirma Frade

(2003) porque somos cientes da sua existecircncia (p 15) Por outro lado o saber taacutecito que eacute

mobilizado para conquistar uma compreensatildeo sobre a realizaccedilatildeo de uma determinada ativida-

de coloca-se ldquolonge de noacutesrdquo (POLANY 1967) pois nem sempre temos total consciecircncia so-

bre quais fatores compotildeem o saber taacutecito que usamos na realizaccedilatildeo de uma determinada ativi-

dade

A grande contradiccedilatildeo segundo esses pesquisadores eacute que o saber taacutecito que foi mobi-

lizado natildeo eacute percebido em si mesmo e noacutes soacute conseguiremos percebecirc-lo se o projetarmos no

resultado de uma determinada atividade ou na conquista de uma compreensatildeo Portanto os

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significados deste saber taacutecito passam a se estabelecer ldquolonge de noacutesrdquo (POLANY apud FRA-

DE 2003) Dessa forma mesmo possuindo consciecircncia de um saber taacutecito para compreendecirc-

lo noacutes temos que projetaacute-lo sobre algo de que natildeo temos ainda uma total consciecircncia e que

por isso eacute algo ldquolonge de noacutesrdquo algo estranho agrave nossa consciecircncia A partir dessa trilha deixada

por Polany (1967) poderiacuteamos usar de forma hipoteacutetica a seguinte ilustraccedilatildeo para enxer-

garmos um desniacutevel em uma peccedila poderiacuteamos usar um saber taacutecito que consiste em molhar

esta peccedila com um determinado oacuteleo e por meio do reflexo da luz na peccedila com oacuteleo poderiacutea-

mos identificar as partes danificadas Se tomarmos como referecircncia as reflexotildees de Polany

(1967) a nossa total compreensatildeo do uso do oacuteleo demandaria tambeacutem uma compreensatildeo de

como se integram o oacuteleo a chapa de accedilo e a incidecircncia da luz e outros aspectos que poderiam

influenciar a nossa visatildeo daiacute que neste caso a nossa compreensatildeo depende de algo que estaacute

fora do nosso domiacutenio e por isso Polany (1967) os define como ldquolonge de noacutesrdquo Estabelece-

se assim uma contradiccedilatildeo na qual um determinado saber taacutecito que em tese estaria ldquoproacutexi-

mo de noacutesrdquo soacute eacute percebido se for projetado em um saber ldquolonge de noacutesrdquo

De acordo com Frade (2003) eacute possiacutevel que o saber taacutecito ainda que na sua forma ins-

trumental se constitua foco de nossa atenccedilatildeo tornando-se portanto um saber passiacutevel de ser

compreendido Entretanto essa autora afirma que se de um lado existe a possibilidade de

focar o saber taacutecito durante a realizaccedilatildeo de uma atividade por outro lado ao concentrar a ob-

servaccedilatildeo nas etapas de realizaccedilatildeo da atividade e natildeo no seu resultado final corre-se o risco de

perder a noccedilatildeo do objetivo de tal atividade Segundo Frade (2003) em uma situaccedilatildeo igual a

essa ldquonossa performance tende a ser paralisada de uma maneira ou de outra porque os ins-

trumentos natildeo satildeo reconhecidos por noacutes como instrumentosrdquo ou seja o objetivo pelo qual

haviacuteamos inicialmente mobilizado o nosso saber taacutecito ainda que em sua forma instrumen-

tal deixa de ser realizado ou o eacute precariamente Isso ocorre porque ao redirecionarmos nosso

55

foco em direccedilatildeo ao saber taacutecito ldquoinstrumentalrdquo acabamos por privilegiar a nossa atenccedilatildeo no

saber taacutecito em si em detrimento daquilo que eacute da atividade que queremos realizar

A anaacutelise sobre o uso instrumental do saber constitui-se nesta pesquisa em uma parte

essencial uma vez que por meio desse debate foi possiacutevel tomar o saber taacutecito como produto

bem como processo de produccedilatildeo de saber (FRADE 2003) Ao considerarmos a chance apon-

tada por Frade (2003) e Polany (1967) de que eacute possiacutevel mobilizar saberes para diminuir o

estranhamento da forma instrumental do saber taacutecito ainda que haja um prejuiacutezo em relaccedilatildeo agrave

realizaccedilatildeo do objetivo inicial acabamos por entender que uma coisa eacute debater o saber taacutecito

enquanto produto ou realizaccedilatildeo de uma atividade e outra coisa eacute abordar o processo que

construiu o saber necessaacuterio agrave realizaccedilatildeo dessa atividade Neste sentido se um saber taacutecito

ainda que instrumental pode requerer uma quantidade de reflexatildeo para ser acionado poderia

este saber ser um componente de um processo de construccedilatildeo de outros saberes taacutecitos

De acordo com Frade (2003) ao usar a palavra ldquoconhecimentordquo ldquoPolany se refere tan-

to ao produto ou realizaccedilatildeo de uma aprendizagem quanto ao processo dinacircmico de um ato de

conhecerrdquo Em Polany (1967) a possibilidade de o saber taacutecito se inscrever em um processo

de construccedilatildeo de saberes aparece associada agrave necessidade de que o uso de um determinado

saber taacutecito seja monitorado por outros saberes taacutecitos Para esse autor o uso de um saber

taacutecito para realizar uma atividade seja fiacutesica ou mental mobiliza um conjunto especiacutefico de

conhecimentos como instrumentos para realizarmos a tarefa ldquobem como para monitorarmos a

sua realizaccedilatildeordquo (FRADE 2003 p 12) Neste sentido podemos inferir que quanto maior for a

possibilidade de o saber taacutecito se inscrever em um processo de construccedilatildeo de saberes maiores

satildeo as chances de um saber taacutecito monitorar a realizaccedilatildeo de uma determinada atividade Daiacute

indagamos pode haver um saber taacutecito que monitore a realizaccedilatildeo de atividades Se o saber

taacutecito eacute resultado da mobilizaccedilatildeo de outros saberes quais seriam eles

56

Apesar de tanto Schon (2000) quanto Polany (1967) tomarem o saber taacutecito por um

olhar proacuteximo agrave perspectiva instrumental esses dois autores nos ajudam a pensar a possibili-

dade de que possa haver um saber taacutecito que monitore a realizaccedilatildeo de uma atividade De a-

cordo com Polany apud Frade (2003) mesmo de forma instrumental o uso do saber taacutecito

natildeo pode ser garantido pelo uso de accedilotildees repetidas De acordo com Frade (2003) ldquoPolany

observa que a passagem de uma experiecircncia para o plano operacional isto eacute para o uso de um

conhecimento enquanto instrumento natildeo se daacute por meio de meras repeticcedilotildeesrdquo (p 23 grifo

nosso) Esse entendimento nos sugere que o uso do saber de forma sucessiva demanda alguma

reflexatildeo Em Schon (2003) a possibilidade de o saber taacutecito se situar para aleacutem do uso ins-

trumental se apresenta agrave medida que este autor relativiza a tese de que temos uma tendecircncia

em focalizar o saber taacutecito no resultado final de uma atividade As reflexotildees deste autor apon-

tam que se toda atividade guarda sempre um lado imprevisiacutevel portanto natildeo eacute possiacutevel em

face dessa imprevisibilidade garantir que simplesmente repetindo um determinado saber taacuteci-

to possa se realizar com sucesso uma segunda ou terceira atividade De acordo com Schon

(2000)

Quando aprendemos a fazer algo estamos aptos a executar sequumlecircncias faacuteceis de a-tividade reconhecimento decisatildeo e ajuste sem ter como se diz que pensar a res-peito () No entanto nem sempre eacute bem assim Uma rotina comum produz um re-sultado inesperado um erro teima em resistir agrave correccedilatildeo () Todas essas experiecircn-cias agradaacuteveis e desagradaacuteveis conteacutem um elemento de surpresa (p 32)

Entretanto a abordagem de Schon (2000) ao associar o elemento da imprevisibilidade

agrave relevacircncia do ldquotalento artiacutesticordquo nos permitiu desdobrar o debate sobre o saber taacutecito Neste

sentido se o imprevisto eacute um problema real em qualquer atividade poderiacuteamos dizer que o

uso de um saber taacutecito para realizar uma atividade depende de uma constante reflexatildeo E nes-

te caso essa reflexatildeo pode ser associada ao saber taacutecito em um processo de construccedilatildeo de

saberes Essas indagaccedilotildees satildeo enriquecidas e em parte respondidas pela tese de ldquoreflexatildeo-

57

na-accedilatildeordquo desenvolvida por Schon (2000) Segundo esse pensador a reflexatildeo-na-accedilatildeo pode ser

apresentada ldquoem duas formasrdquo A primeira ldquopodemos refletir sobre a accedilatildeo pensando retros-

pectivamente sobre o que fizemos de modo a descobrir como nosso ato de conhecer-na-accedilatildeo

pode ter contribuiacutedo para um resultado inesperadordquo (p 32)

Em uma segunda alternativa Schon (2000) afirma que sem uma interrupccedilatildeo podemos

refletir no meio da accedilatildeo

Em um presente-da-accedilatildeo um periacuteodo de tempo variaacutevel com o contexto durante o qual ainda se pode interferir na situaccedilatildeo em desenvolvimento nosso pensar serve para dar nova forma ao que estamos fazendo enquanto ainda o fazemos Eu diria em casos como este que refletimos-na-accedilatildeo (p 32)

De acordo com Schon (2000) a reflexatildeo-na-accedilatildeo ldquoeacute uma parte fundamental do proces-

so que este autor chama de conhecer-na-accedilatildeordquo De acordo com Schon (2000) ldquoconhecer-na-

accedilatildeordquo refere-se aos

tipos de conhecimento que revelamos em nossas accedilotildees inteligentes performances fiacutesicas publicamente observaacuteveis como andar de bicicleta ou operaccedilotildees privadas como anaacutelise instantacircnea de uma folha de balanccedilo Nos dois casos o ato de conhe-cer estaacute na accedilatildeo Noacutes o revelamos pela nossa execuccedilatildeo capacitada e espontacircnea da performance e eacute uma caracteriacutestica nossa sermos incapazes de tornaacute-la verbalmen-te expliacutecita (p 31)

A reflexatildeo-na-accedilatildeo se diferencia dos outros tipos de reflexotildees pela sua ldquoimediata sig-

nificaccedilatildeo para a accedilatildeordquo o que nem sempre eacute claro e perceptiacutevel conforme afirma esse pensa-

dor ldquoAssim como o conhecer-na-accedilatildeo a reflexatildeo-na-accedilatildeo eacute um processo que podemos de-

senvolver sem que precisemos dizer o que estamos fazendordquo mesmo porque para Schon

(2000) o fato de ldquo() sermos capazes de refletir-na-accedilatildeo eacute diferente de sermos capazes de

refletir sobre nossa reflexatildeo-na-accedilatildeo de modo a produzir uma boa descriccedilatildeo verbal dela E eacute

ainda diferente de sermos capazes de refletir sobre a descriccedilatildeo resultanterdquo (p 35)

58

Se os elementos trabalhados ateacute o momento nos permitem associar a possibilidade de

haver um saber taacutecito que monitore a realizaccedilatildeo de uma atividade como um processo de cons-

truccedilatildeo de saberes por outro lado a possibilidade de haver um saber taacutecito inscrito num pro-

cesso de construccedilatildeo de saberes pode guardar ainda uma relaccedilatildeo com as exigecircncias de comu-

nicaccedilatildeo deste saber Segundo Frade (2003) ldquoa comunicaccedilatildeo de um saber taacutecito entre duas ou

mais pessoas exige que essas pessoas acionem os seus saberes taacutecitosrdquo Entretanto a comuni-

caccedilatildeo ou natildeo de um saber taacutecito eacute uma discussatildeo necessariamente mais extensa Neste senti-

do desenvolveremos a seguir a relaccedilatildeo entre o saber taacutecito e uma linguagem que possa ex-

pressaacute-lo

242 O saber taacutecito e a linguagem

No que se refere agrave comunicaccedilatildeo do saber taacutecito a literatura apresenta como debate

principal o problema em torno da relaccedilatildeo entre o saber taacutecito e uma linguagem que possa ex-

pressaacute-lo (FRADE 2003 SCHON 2000 POLANY 1967 MALGLAIVE 1990) De acordo

com Frade (2000 p 1) Polany valoriza a questatildeo da linguagem no debate sobre o saber taacutecito

a partir da ideacuteia de que ldquosabemos mais do que podemos dizerrdquo (Polany 1967) Outros pensa-

dores tambeacutem reafirmam a insuficiecircncia da linguagem na traduccedilatildeo de um determinado saber

Segundo Lima ldquosabemos mais do que podemos dizer sobre o que sabemos como sabemos e

o que sabemosrdquo (COLLINS apud LIMA 1998 p 144) O problema da insuficiecircncia da lin-

guagem potencializa-se de acordo com Polany (1967) porque todo conhecimento guarda

uma parte que natildeo pode ser totalmente exposta logo todo conhecimento eacute construiacutedo a partir

do taacutecito Daiacute que em Polany apud Frade (2003) o saber taacutecito pode ser aprendido mas natildeo

pode ser ensinado de uma forma simples uma vez que a relaccedilatildeo de aprendizagem exige co-

nhecimentos subsidiaacuterios que tambeacutem satildeo taacutecitos

59

Muito embora Schon (2000) corrobore a tese da insuficiecircncia da linguagem em expli-

citar um determinado saber taacutecito esse autor afirma que ldquoeacute possiacutevel agraves vezes atraveacutes da ob-

servaccedilatildeo e da reflexatildeo sobre nossas accedilotildees fazermos uma descriccedilatildeo do saber taacutecito que estaacute

impliacutecito nelasrdquo Dentre as vaacuterias abordagens sobre os limites da linguagem na explicitaccedilatildeo

do saber taacutecito (FRADE 2003 SCHON 2000 POLANY 1967 MALGLAIVE 1990) en-

contramos em Schon (2000) uma discussatildeo que nos parece ser interessante apresentar As

reflexotildees desse autor desenvolvem-se a partir da ideacuteia de que ldquoo pensar o que estou fazendo

natildeo implica ao mesmo tempo pensar o que fazer e fazecirc-lo Quando faccedilo algo de forma inteli-

gente () estou fazendo uma coisa e natildeo duasrdquo (RYLE apud SCHON 2000 p 29) Segundo

a perspectiva desse autor saberes do tipo do saber taacutecito estabelecem em seu proacuteprio processo

de conhecer uma dificuldade de explicitaccedilatildeo uma vez que esses tipos de saberes satildeo construiacute-

dos normalmente na praacutetica mediante um processo de ldquoconhecer-na-accedilatildeordquo De acordo com

esse pensador o processo de ldquoconhecer-na-accedilatildeordquo por ser da ordem da praacutetica eacute inexoravel-

mente ldquoum processo dinacircmicordquo o que poderia criar pelo menos uma distorccedilatildeo na explicita-

ccedilatildeo de um saber taacutecito jaacute que de acordo com Schon (2000) ldquoo processo de conhecer na accedilatildeo

eacute dinacircmico e os lsquofatosrsquo os lsquoprocedimentosrsquo e as lsquoteoriasrsquo satildeo estaacuteticosrdquo (p 31)

Sznelwar e Mascia (1997) tambeacutem levantam a possibilidade de haver uma relaccedilatildeo as-

siacutencrona entre uma linguagem que busca explicitar perspectivas teoacutericas e outra linguagem

que em tese explicitaria uma situaccedilatildeo praacutetica Essa distinccedilatildeo sobre a natureza da linguagem

engendraria uma incompatibilidade que eacute apontada por esses autores como um ldquodeacuteficit semi-

oacuteticordquo que eles esclarecem ao afirmar que

O leacutexico usado para descrever o trabalho estaacute fortemente dominado pelas produ-ccedilotildees linguumliacutesticas e conceituais formuladas por engenheiros peritos projetistas saacute-bios e pesquisadores O que eacute dito sobre o trabalho natildeo tem a ver com o vivenciado por quem trabalha Existe um deacuteficit semioacutetico para descrever a experiecircncia de tra-balho dos trabalhadores de base (p 224)

60

A possibilidade de haver um descompasso entre uma linguagem que busca explicitar

uma teoria e outra linguagem que busca explicitar uma situaccedilatildeo praacutetica talvez possa ser e-

xemplificada em algumas relaccedilotildees entre o homem e a informaacutetica

A informaacutetica tomou empreacutestimo de toda uma seacuterie de palavras que designam ati-vidades do homem como memoacuteria linguagem inteligecircncia para nomear ativida-des informatizadas Esta confusatildeo eacute particularmente perigosa porque quando re-tornam ao homem eles pensam que o homem tem o mesmo modo de funcionamen-to do computador nas atividades designadas por palavras que se referem ao ho-mem (LIMA 1998 p 124)

Seria possiacutevel inferir que parte da dificuldade de explicitar o saber taacutecito deve-se agrave in-

compatibilidade de sintonia entre uma linguagem que busca traduzir um processo vinculado agrave

praacutetica caracterizado como dinacircmico e uma outra linguagem que traduz conceitos e teorias

portanto de natureza essencialmente estaacutetica Por outro lado ao apontarmos um descompasso

entre uma linguagem vinculada agrave teoria e uma linguagem vinculada agrave praacutetica natildeo estariacuteamos

restringindo o saber teoacuterico agrave reflexatildeo e o saber taacutecito ao ldquopraacuteticofiacutesicordquo E neste caso esta-

riacuteamos reproduzindo a perspectiva que hierarquiza os saberes formalizados pelo estatuto cien-

tiacutefico em detrimento dos saberes formalizados pela experiecircncia Neste sentido ao ser coloca-

do como uma questatildeo complexa o debate sobre as possibilidades de explicitaccedilatildeo ou natildeo do

saber taacutecito mais do apontar as contradiccedilotildees entre uma linguagem que busca expressar um

saber taacutecito e uma linguagem teoacuterica nos permite tambeacutem abordar em que medida estes ti-

pos de saberes podem demandar e articular niacuteveis de reflexatildeo e abstraccedilatildeo

Se uma das questotildees que norteiam o debate sobre a relaccedilatildeo entre o saber taacutecito e a lin-

guagem eacute a possibilidade ou natildeo de este saber ser comunicado eacute portanto importante abor-

dar alguns aspectos das relaccedilotildees sociais em que o saber taacutecito se insere Muitos pensadores

apontam as relaccedilotildees sociais como um espaccedilo privilegiado na construccedilatildeo de saberes De acor-

do com Malglaive (1990) ldquoNuma imensa maioria de casos a actividade humana natildeo eacute solitaacute-

ria mas colectiva eacute uma lsquoco-acccedilatildeorsquo que implica parceiros e portanto uma organizaccedilatildeo uma

61

distribuiccedilatildeo das operaccedilotildees exercidas em comum para atingir o mesmo fimrdquo (p 76) Malglaive

(1990) faz a consideraccedilatildeo de que ldquoa teoria ignora certas caracteriacutesticas da accedilatildeordquo e por este

motivo ldquo() natildeo eacute possiacutevel conhecer um conceito sem conhecer o conjunto das relaccedilotildees nas

quais ele se insere e que por isso mesmo o definem ()rdquo (p 44) Neste sentido ao se consi-

derar as dimensotildees coletivas do processo de construccedilatildeo de saberes a linguagem aparece como

aspecto preponderante

Se por um lado ficou evidenciado na literatura abordada que satildeo muitas as tramas en-

gendradas pela relaccedilatildeo entre a linguagem e o saber taacutecito jaacute em nosso entendimento satildeo mui-

tos os argumentos que nos permitem tomar como importantes os caminhos apontados pelas

reflexotildees oriundas do campo de conhecimento que articula ldquotrabalho e linguagemrdquo (FAITA e

SOUZA-E-SILVA 2002 NOUROUDINE 2002)

Sobre a fecundidade da relaccedilatildeo entre linguagem e trabalho Faita e Souza-e-Silva

(2002) afirmam que ldquoDiversos fatores podem explicar a emergecircncia de tal interesse o mais

importante deles encontra-se no peso e na importacircncia que as atividades de simbolizaccedilatildeo pas-

saram a ter na realizaccedilatildeo do trabalhordquo (p 7) Ainda que o interesse dos linguumlistas pelo traba-

lho como objeto de estudo seja um fenocircmeno recente a literatura sobre essa temaacutetica jaacute acu-

mula importantes reflexotildees para apontar a diversidade de enfoques e de campos de interven-

ccedilatildeo caracteriacutesticos da aacuterea Dentre as vaacuterias possibilidades de contribuiccedilatildeo para esta pesquisa

uma foi acolhida com maior profundidade pois nos permitiu analisar a relaccedilatildeo entre o traba-

lho e a linguagem em uma perspectiva multifacetada Trata-se de uma abordagem defendida

por Nouroudine (2002)12 que apresenta uma triparticcedilatildeo da relaccedilatildeo trabalholinguagem cujos

eixos seriam dados pelas modalidades ldquolinguagem como trabalhordquo ldquolinguagem no trabalhordquo

e ldquolinguagem sobre o trabalhordquo

12 De acordo com esse autor essa reflexatildeo tem origem em LACOSTE M Paroles activiteacute situation In BOU-TET J Paroles ou travail Paris LrsquoHarmattan (1995)

62

Para Lacoste apud Nouroudine (2002) a elaboraccedilatildeo dessa triparticcedilatildeo ldquopermitiu reme-

diar confusotildees disseminadas separando como verbalizaccedilatildeo falas provocadas e exteriores agrave

situaccedilatildeo e como comunicaccedilatildeo falas que fazem parte da atividade de trabalhordquo (p 17) De

acordo com Nouroudine (2002 p 18) a distinccedilatildeo entre esses trecircs aspectos da linguagem a-

tende a uma opccedilatildeo metodoloacutegica que busca identificar os mecanismos de funcionamento da

relaccedilatildeo trabalholinguagem e ainda a um interesse epistemoloacutegico na medida em que pode-

ria evidenciar as ligaccedilotildees e as diferenccedilas desses mecanismos de funcionamento Neste senti-

do eacute importante salientar que de modo algum os diferentes aspectos da relaccedilatildeo traba-

lholinguagem satildeo estanques entre si e sim que existe uma estreita ligaccedilatildeo entre os trecircs as-

pectos da linguagem embora como afirma Nouroudine (2002) cada um deles possa aparen-

tar ainda problemas de ordem praacutetica e epistemoloacutegica bem distintos No que se refere agrave nos-

sa pesquisa a distinccedilatildeo entre as vaacuterias dimensotildees da relaccedilatildeo linguagem e trabalho pode lanccedilar

luzes sobre a explicitaccedilatildeo ou natildeo dos saberes taacutecitos pois nos facilita compreender as estra-

teacutegias que os trabalhadores mobilizam para viabilizar a comunicaccedilatildeo de saberes no trabalho

Essa triparticcedilatildeo considera que respectivamente haacute linguagens que fazem o trabalho que cir-

culam no trabalho e que interpretam o trabalho as quais seratildeo explicadas a seguir

A ldquolinguagem como trabalhordquo eacute dada a partir do momento em que a proacutepria linguagem

eacute mobilizada como uma atividade de trabalho (NOUROUDINE 2002) Nesta condiccedilatildeo de

acordo com esse autor a linguagem assume tambeacutem as complexas contradiccedilotildees que consti-

tuem o trabalho13 e uma das consequumlecircncias eacute a existecircncia de dois niacuteveis de linguagem ldquopor

um lado os gestos falas que o protagonista utiliza ao se dirigir a seus colegas envolvidos em

uma atividade executada coletivamente por outro lado as falas que o protagonista do traba-

13 De acordo NOUROUDINE (2002) parte das contradiccedilotildees do trabalho se devem ao seu caraacuteter multidimensio-nal composto de dimensatildeo econocircmica social cultural juriacutedica etc Para esse autor ldquoo caraacuteter multidimensional e total do trabalho eacute irredutiacutevel visto ser marca e o reflexo da natureza mesma do humano ao mesmo tempo sujeito social econocircmico juriacutedico etc Poreacutem o trabalho tambeacutem eacute complexo na medida em que integra propri-edades muacuteltiplas cada uma participando da formaccedilatildeo de uma significaccedilatildeo dinacircmica e variaacutevel nos campos social e histoacutericordquo (p 19)

63

lho dirige a si proacuteprio para acompanhar e orientar seus proacuteprios gestos no momento mesmo

em que trabalhardquo (NOUROUDINE 2002 p 20) Conforme esse pensador eacute ainda importan-

te apontar que a linguagem como trabalho natildeo eacute somente uma dimensatildeo dentre outras do

trabalho mas ela proacutepria se reveste de uma seacuterie de dimensotildees Neste sentido a ldquolinguagem

como trabalhordquo eacute econocircmica dado que a comunicaccedilatildeo em situaccedilatildeo de trabalho e durante a

atividade eacute utilizada como meio de gestatildeo do tempo de trabalho A linguagem eacute ainda dada

pela sua dimensatildeo social uma vez que a relaccedilatildeo entre o locutor e o interlocutor constitui-se

entre duas pessoas socialmente organizadas Dessa forma a interaccedilatildeo entre o locutor e o inter-

locutor torna a linguagem fundamentalmente social integrando ao mesmo tempo a coesatildeo e

o conflito Nas situaccedilotildees de trabalho em meio aos coletivos a linguagem permite em especi-

al travar e manter relaccedilotildees sociais entre parceiros E por fim a linguagem possui uma di-

mensatildeo eacutetica que eacute extensatildeo do seu caraacuteter social Eacute a partir desse viacutenculo com o mundo so-

cial que a linguagem como trabalho demanda uma eacutetica ldquoEacute enquanto dimensatildeo do trabalho

que se apresenta ela proacutepria sob a forma de uma seacuterie de dimensotildees que a linguagem eacute ativi-

dade atravessada pelos saberes pelos valores etcrdquo E por isso mesmo prossegue essa pensa-

dora ldquono exame das situaccedilotildees de trabalho natildeo se analisa a linguagem unicamente como dis-

curso preacute eou poacutes-experiecircncia mas sobretudo como parte da atividade em que constituintes

fisioloacutegicos cognitivos subjetivos e sociais se cruzam em um complexo que se torna ele proacute-

prio uma marca distintiva de uma experiecircncia especiacutefica em relaccedilatildeo a outrasrdquo (NOUROUDI-

NE 2002) Com efeito ao capturarmos a ldquolinguagem como trabalhordquo com afirma esse autor

natildeo como uma dimensatildeo a mais do trabalho mas ela proacutepria possuidora de outras dimensotildees

quais sejam econocircmica social e eacutetica eacute possiacutevel afirmar que a efetivaccedilatildeo de um saber na

praacutetica natildeo eacute dada apenas por questotildees teacutecnicas mas tambeacutem pelos aspectos econocircmicos

sociais subjetivos Daiacute que nos parece importante continuar explorando a ampliaccedilatildeo da rela-

64

ccedilatildeo entre trabalho e linguagem proposta pela tese da ldquotriparticcedilatildeordquo o que faremos a seguir com

a abordagem da ldquolinguagem no trabalhordquo

A ldquolinguagem no trabalhordquo eacute tomada a partir da consideraccedilatildeo de que existe ainda no

trabalho uma dimensatildeo da linguagem que mesmo posta como atividade natildeo participa dire-

tamente da atividade especiacutefica em que se concretiza uma intenccedilatildeo de trabalho Dessa forma

nem toda linguagem presente no trabalho pode ser considerada uma ldquolinguagem como traba-

lhordquo (NOUROUDINE 2002) Para esse autor o entendimento que permite distinguir a ldquolin-

guagem como trabalhordquo da ldquolinguagem no trabalhordquo daacute-se primeiramente pela distinccedilatildeo en-

tre a atividade de trabalho e a situaccedilatildeo de trabalho A primeira qual seja a atividade de traba-

lho eacute ldquoexpressa pelo autor eou coletivo dentro da atividade (de trabalho) em tempo e lugar

reaisrdquo Jaacute a segunda a situaccedilatildeo de trabalho ldquoseria antes uma das realidades constitutivas da

situaccedilatildeo de trabalho global na qual se desenrola a atividaderdquo (NOUROUDINE 2002)

Para Nouroudine (2002) ldquoos constituintes da situaccedilatildeo de trabalho podem ir do mais

proacuteximo ao mais distanciado da atividade nutrindo-se de dimensotildees social econocircmica juriacute-

dica artiacutestica etcrdquo No que se refere ao debate presente em nossa pesquisa a consideraccedilatildeo da

ldquosituaccedilatildeo de trabalhordquo sugere uma reflexatildeo mais ampla sobre a relaccedilatildeo trabalholinguagem e

natildeo um desprezo das possibilidades de entendimento que a apreensatildeo da atividade de trabalho

representa

Se eacute verdade que o ergonomista se interessa geralmente pelos determinantes proacute-ximos da atividade a fim de tentar compreender o trabalho e considerar os meios de sua transformaccedilatildeo outros determinantes mais distanciados histoacuterica social es-pacialmente tambeacutem satildeo componentes da situaccedilatildeo de trabalho (p 23)

A ldquoampliaccedilatildeordquo apresentada pela perspectiva da ldquosituaccedilatildeo de trabalhordquo desdobrou-se

em outras abordagens como por exemplo os trabalhos de Yves Schwartz e Alain Wisner

Para Nouroudine (2002) a antropotecnologia criada por Alain Wisner na esteira da ergono-

mia a fim de intervir nas questotildees de transferecircncia de tecnologias efetua um alongamento

65

ainda mais importante da situaccedilatildeo de trabalho Conforme afirma o proacuteprio Wisner apud Nou-

roudine (2002) ldquoEm antropotecnologia iremos mais longe na procura das origens das difi-

culdades encontradas e construiremos uma aacutervore das causas que natildeo se limitaraacute aos aspec-

tos teacutecnicos e organizacionais mais proacuteximos do posto de trabalhordquo (p 23) Uma outra pers-

pectiva a ergologia14 quando toma por objeto de pesquisa e de intervenccedilatildeo as atividades hu-

manas aborda por isso mesmo a situaccedilatildeo de trabalho dentro de uma dimensatildeo antropoloacutegica

em que determinantes mais proacuteximos da atividade se relacionam dialeticamente com os de-

terminantes mais distanciados (NOUROUDINE 2002) Em boa medida podemos afirmar

que a abordagem da ldquosituaccedilatildeo de trabalhordquo estaacute imbricada com uma certa subversatildeo epistemo-

loacutegica uma vez que este tipo de abordagem reconhece que a experiecircncia de trabalho eacute a en-

grenagem ldquomestrerdquo na produccedilatildeo de saberes taacutecitos15

A partir da trilha possibilitada pela ldquosituaccedilatildeo de trabalhordquo a linguagem no trabalho

pode ser entendida como uma linguagem que circula no trabalho podendo influenciar ou natildeo

a realizaccedilatildeo imediata de uma atividade Ao nosso olhar a possibilidade de distinguir uma

ldquolinguagem no trabalhordquo de uma ldquolinguagem como trabalhordquo traz como importante contribui-

ccedilatildeo uma leitura que busca conhecer e aproximar os protagonistas do trabalho em sua totalida-

de histoacuterica social e cultural Neste sentido a abordagem da linguagem no trabalho talvez

possa evitar ou diminuir a chance de que o saber taacutecito seja tido apenas no seu ato imediato

14 Neste sentido a ergologia nos fornece uma contribuiccedilatildeo com uma proposta de abordagem que agrave luz de um debate entre ciecircncia e cultura percebe que saberes formalizados pela ciecircncia e saberes oriundos da experiecircncia possuem cada qual seu niacutevel de cultura e incultura (SANTOS 2000 SCHWARTZ 2000 FAITA e SOUZA-E-SILVA 2002) 15 A possibilidade de ocorrer uma certa subversatildeo epistemoloacutegica ao nosso ver tem um deacutebito com as reflexotildees de SANTOS (2000) e SCHWARTZ (2000) Esses pensadores propotildeem que a experiecircncia de trabalho complexa que eacute seja tomada a partir de uma ldquosolidariedade entre uma ideacuteia forte de ciecircncia e uma ideacuteia forte de culturardquo (SANTOS 2000 p 121) SANTOS (2000) ao se referir a uma solidariedade entre uma ideacuteia forte de ciecircncia e uma ideacuteia forte de cultura fala de ldquocultura tomada em dois sentidos como eacuteter do pensamento elemento de formaccedilatildeo dos conceitos e das lsquohierarquias do saberrsquo e como lsquoaquilo que produz a humanidadersquo teria uma pro-pensatildeo agrave obstruir o elemento da experiecircncia Esta obstruccedilatildeo proveacutem de uma exigecircncia forte concernindo a cons-tituiccedilatildeo de um discurso cientiacuteficordquo (p 121)

66

como um truque ou um lance de uacuteltima hora16 pois ao recorrermos a ldquosituaccedilatildeo de trabalhordquo

criamos condiccedilotildees para que o saber taacutecito seja tomado como expressatildeo de um saber histoacuterico

e socialmente construiacutedo isto eacute ao longo da vida do seu protagonista contrapondo-se assim

ao que chamamos de olhar imediato sobre o trabalho A ldquolinguagem no trabalhordquo apresenta

ainda uma outra caracteriacutestica por ser uma linguagem que circula nas relaccedilotildees sociais do

coletivo de trabalho ela pode ser indiretamente fundamental para o desenvolvimento do pro-

cesso produtivo Nouroudine (2002) afirma que ldquofalar de futebol poderia revelar-se beneacutefico agrave

realizaccedilatildeo da atividade em curso com eficaacutecia e seguranccedilardquo (p 24)

A linguagem sobre o trabalho somada agraves jaacute apresentadas ldquolinguagem como trabalhordquo

e ldquolinguagem no trabalhordquo fecha a tese de ldquotriparticcedilatildeordquo da relaccedilatildeo trabalholinguagem A e-

xistecircncia de uma linguagem sobre o trabalho inscreve-se como uma modalidade de linguagem

que busca interpretar o trabalho Essa interpretaccedilatildeo satildeo falas sobre o trabalho que pode advir

tanto do interior quanto do exterior do coletivo de trabalho (NOUROUDINE 2002) Neste

sentido se foi dada relevacircncia agrave possibilidade de que a ldquolinguagem como trabalhordquo e a ldquolin-

guagem no trabalhordquo por expressarem uma historicidade possam reportar uma fala mais

ldquoproacuteximardquo do ponto de vista dos trabalhadores eacute igualmente importante considerar a possibi-

lidade de a ldquolinguagem sobre o trabalhordquo nos permitir ldquolocalizarrdquo o lugar de origem dessas

falas o que segundo Nouroudine (2002) daacute voz tanto aos que pesquisam o trabalho quanto

aos protagonistas do trabalho uma vez que

A linguagem sobre o trabalho natildeo seria portanto exclusividade do pesquisador visto que na atividade produtividade pode ser encontrada tambeacutem sem com isso ser confundida com as outras formas de linguagem Eacute sem duacutevida pertinente o questionamento acerca de ldquoquem falardquo ldquode onde eleela falardquo ldquoquando eleela falardquo para que se compreenda onde se situa o campo de validade e de pertinecircncia da ldquolinguagem sobre o trabalhordquo (p 25-26)

16 Ao nosso ver a ideacuteia de truque eacute um desdobramento do imbricamento entre a naturalizaccedilatildeo do saber taacutecito com um olhar excessivamente restrito sobre a accedilatildeo a atividade em que este saber taacutecito foi percebido uma vez que a experiecircncia ponto fundamental do saber taacutecito eacute tributaacuteria de vivecircncias Daiacute que buscar um rastro histoacuterico pode esclarecer melhor a questatildeo do saber taacutecito

67

O reconhecimento de que haacute uma linguagem que interpreta o trabalho uma linguagem

que faz o trabalho e outra que circula no trabalho mais do que ldquolocalizar as falasrdquo remete agrave

possibilidade de que os protagonistas do trabalho sejam tomados como capazes de interpretar

a sua proacutepria relaccedilatildeo com o trabalho Eacute nessa trilha qual seja uma abordagem que busca per-

ceber a histoacuteria dos protagonistas do trabalho e por isso mesmo a proacutepria pluralidade da rela-

ccedilatildeo trabalholinguagem que a tese da triparticcedilatildeo da relaccedilatildeo trabalholinguagem nos parece

mais fecunda especialmente no que concerne agrave legitimaccedilatildeo dos saberes taacutecitos dos protago-

nistas do trabalho pois ao trataacute-lo como um processo histoacuterico social e subjetivo acaba por

desnaturalizaacute-lo Todavia o simples reconhecimento de que possa haver entre os trabalhado-

res uma linguagem usada para interpretar o seu trabalho eacute insuficiente para representar um

equiliacutebrio no reconhecimento social poliacutetico econocircmico e epistemoloacutegico entre uma lingua-

gem de base cientiacutefica e outra oriunda da experiecircncia Para Nouroudine (2000) ldquo() os meacute-

todos usados pelas disciplinas que focalizam o trabalho como lsquoobjetorsquo de pesquisa e de inter-

venccedilatildeo para produzir uma lsquolinguagem sobre o trabalhorsquo natildeo satildeo desse ponto de vista neu-

trosrdquo (p 27) Outros pensadores como Sznelwar e Mascia (1997) ao discutirem a relaccedilatildeo

trabalholinguagem afirmam que existe um ldquodesequiliacutebrio comunicacional que joga em favor

da hierarquia em detrimento dos subordinados e do ponto de vista dos homens em detrimento

do das mulheresrdquo (p 224) Ainda sobre a possibilidade de a linguagem privilegiar um deter-

minado ponto de vista sobre o trabalho as reflexotildees de Schwartz (apud NOUROUDINE

2002) satildeo mais contundentes

Todo posicionamento de exteritorialiteacute17 (Y SCHWARTZ 1996) do pesquisador em relaccedilatildeo ao trabalho dos demais elimina de fato os protagonistas dos processos de produccedilatildeo de saber sobre suas atividades e ao mesmo tempo sua proacutepria ldquolin-guagem sobre o trabalhordquo acaba sendo desqualificada e neutralizada (p 27)

17 Exterritorialiteacute extraterritorialidade

68

A tese de triparticcedilatildeo da relaccedilatildeo trabalholinguagem ao buscar articular de forma am-

pliada as vaacuterias dimensotildees ldquolinguagem no trabalhordquo ldquolinguagem como trabalhordquo e a ldquolingua-

gem sobre o trabalhordquo nos permitiu elaborar algumas indagaccedilotildees sobre a explicitaccedilatildeo ou

natildeo do saber taacutecito e dentre as quais analisar um saber taacutecito exclusivamente na atividade

de trabalho natildeo seria um ldquoolharrdquo excessivamente imediato sobre o protagonista do trabalho E

neste caso um olhar imediato natildeo inviabilizaria o acesso do pesquisador agrave ldquolinguagem no

trabalhordquo dos seus protagonistas E ainda como o domiacutenio de uma linguagem no coletivo do

trabalho pode influenciar a produccedilatildeo a mobilizaccedilatildeo e a formalizaccedilatildeo de saberes taacutecitos por

parte dos trabalhadores

Se de uma maneira recorrente como demonstra a literatura analisada anteriormente

apresentamos como caracteriacutesticas centrais para se analisar o saber taacutecito aspectos como a

relaccedilatildeo entre a teoria e a praacutetica o uso instrumental ou natildeo deste saber e ainda a relaccedilatildeo

com a linguagem foi apontado tambeacutem que esses aspectos guardam uma complexa articula-

ccedilatildeo entre si (FRADE 2003 SCHON 2000 POLANY 1967 MALGLAIVE 1990 NOU-

ROUDINE 2002 SZNELWAR e MASCIA 1997) Em nosso entendimento essa articulaccedilatildeo

pode ser mais bem compreendida por meio da anaacutelise do uso do corpo pelo sujeito na produ-

ccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes

243 Corpo mente e o saber taacutecito

Eacute importante salientar que ao tomarmos a relaccedilatildeo entre o corpo e a mente como um

vieacutes de anaacutelise sobre o saber taacutecito natildeo buscamos de modo algum apontar a possibilidade de

que este saber seja determinado por atributos bioloacutegicas em detrimento dos aspectos sociais e

histoacutericos epistemoloacutegicos e subjetivos Neste sentido eacute importante salientar que comparti-

lhamos a posiccedilatildeo de Snelwar e Mascia (1997) quando esses apontam que o favorecimento dos

69

aspectos bioloacutegicos na discussatildeo do saber taacutecito poderia corroborar o engodo taylorista de que

eacute possiacutevel ldquoaleacutem da divisatildeo de tarefas na produccedilatildeo dividir uma pessoa em diferentes partes

fiacutesicafisioloacutegica mentalcognitiva e afetivapsiacutequica Cada uma destas partes poderia ser uti-

lizada em momentos determinados conforme necessidade de produccedilatildeordquo (p 210)18

Entretanto como jaacute foi dito anteriormente satildeo muitas as questotildees que tornam impor-

tante bem como necessaacuteria uma discussatildeo sobre o saber taacutecito pelo vieacutes da relaccedilatildeo entre o

corpo e a mente Como ponto de partida podemos considerar que o corpo eacute o meio baacutesico

sem o qual natildeo se realiza uma atividade fiacutesica ou mesmo mental De acordo com Polany

ldquotodas as nossas transaccedilotildees conscientes com o mundo envolvem o uso subsidiaacuterio do corpo E

o nosso corpo eacute o uacutenico agregado de coisas das quais noacutes estamos quase exclusivamente aten-

tos de tal maneira subsidiaacuterios19 Em favor da abordagem sobre os aspectos corporais haacute

ainda a possibilidade de que o corpo possa se estruturar como uma linguagem na medida em

que ele representa valores em um determinado coletivo20 A questatildeo do corpo pode ter mais

uma relevacircncia se considerarmos tambeacutem o termo incorporar como ldquodar uma forma corpoacute-

reardquo21 pois assim ao discutirmos os aspectos corporais poderiacuteamos como jaacute foi mencionado

cumprir um papel natildeo menos importante de dar um corpo com todos os seus significados

culturais histoacutericos e subjetivos aos trabalhadores sujeitos nesta pesquisa

18 Para esses pensadores ldquoEssa excrescecircncia conceitual sobre o que seria um ser humano pode ser considerada na medida em que se procurou implantaacute-la nas induacutestrias e mais recentemente no setor de serviccedilos como res-ponsaacutevel pelo sofrimento de uma enorme quantidade de pessoas no seu ambiente de trabalho Este sofrimento se expressa atraveacutes dos mais variados tipos de doenccedilas e tambeacutem na deterioraccedilatildeo das relaccedilotildees humanas no trabalho Esta deterioraccedilatildeo natildeo se limita ao trabalho atinge tambeacutem a vida social e familiarrdquo (SNELWAR e MASCIA 1997 p 210) 19 httpwwwmwsceduorgspolanymp-body-and-mindhtm 20 Embora natildeo seja um objeto de anaacutelise nesta pesquisa consideramos com base em nossa experiecircncia em chatildeo de faacutebrica que entre os trabalhadores circula uma linguagem expressa pelo corpo tais como cicatrizes muacutesculos Haacute que se dizer ainda conforme nos foi confidenciado por alguns trabalhadores sujeitos da nossa pesquisa que este aspecto nos auxiliou enquanto pesquisador uma vez que por sermos portadores de algumas dessas marcas fomos identificados como uma pessoa proacutexima aos trabalhadores 21 De acordo com o dicionaacuterio Ferreira (1986 p 934) [Do lat Incorporare] v t d 1 ndash Dar uma forma corpoacute-rea

70

Uma vez mais cabe ressaltar a contribuiccedilatildeo de Polany em nossa abordagem sobre o

saber taacutecito atraveacutes das suas reflexotildees sobre a relaccedilatildeo entre o corpo22 e a mente23 apresenta-

das nos textos ldquoCorpo e menterdquo24 e os ldquodois tipos de consciecircnciardquo25 Ainda sobre a possibi-

lidade de analisar o saber taacutecito levando em consideraccedilatildeo a questatildeo do corpo uma outra refe-

recircncia nos foi oferecida pelas reflexotildees de Damaacutesio (1994 2000) sobre as bases neurais do

conhecimento ou como ele proacuteprio diz ldquoneurobiologia da racionalidaderdquo26

Embora ao analisarmos alguns aspectos corporais recorramos agraves reflexotildees de Damaacutesio

(1994) eacute importante salientar que tomamos o corpo como uma noccedilatildeo para aleacutem dos aspectos

bioloacutegicos o que nos leva a contrapor uma outra ideacuteia agrave noccedilatildeo de corpo explicitada pelo au-

tor ldquoSempre que me refiro ao corpo tenho em mente o organismo menos o tecido nervoso (os

componentes central e perifeacuterico do sistema nervoso) embora num sentido convencional o

ceacuterebro tambeacutem faccedila parte do corpordquo (p 112) Parece-nos mais coerente tomar o corpo como

uma construccedilatildeo sociocultural portanto histoacuterica como propotildee Daolio (1995) De acordo com

esse autor ldquono corpo estatildeo inscritos todas as regras todas as normas e todos os valores de

uma sociedade especiacutefica por ser ele o meio de contato primaacuterio do indiviacuteduo com o ambien-

te que o cercardquo (p 39)

No que se refere aos aspectos corporais da mesma forma que o fez em The tacit di-

mension Polany discute tanto ao longo do texto ldquoCorpo e menterdquo quanto em ldquoOs dois tipos

de consciecircnciardquo a ideacuteia de ldquoconhecimento taacutecitordquo em sua dimensatildeo instrumental de realizar

tarefas bem como pelo niacutevel de compreensatildeo que uma pessoa possa ter sobre o processo que

construiu os saberes necessaacuterios para a realizaccedilatildeo de uma determinada atividade Ao avanccedilar

22 De acordo com Ferreira (1986 p 482) [Do lat Corpus Corporis] s m 1 ndash Parte central ou principal de um edifiacutecio 2 ndash Substacircncia fiacutesica ou estrutura de cada homem ou animal 23 De acordo com Ferreira (1986 p 1119) [Do lat Mente] s f 1 ndash Intelecto pensamento entendimento alma espiacuterito 2 ndash Concepccedilatildeo imaginaccedilatildeo a mente feacutertil do artista 3 ndash Intenccedilatildeo intuito desiacutegnio disposiccedilatildeo 24 httpwwwmwsceduorgspolanymp-body-and-mindhtm 25 httpwwwmwsceduorgspolanymp-STRUCTUREhtm 26 A discussatildeo que DAMAacuteSIO (1994 2000) faz sobre corpo ceacuterebro mente e a consciecircncia extrapola dados os objetivos deste trabalho as ideacuteias apresentadas neste texto Limitar-nos-emos a tomar a contribuiccedilatildeo desse autor no que se refere agrave apresentaccedilatildeo de elementos que nos ajudem a apreender a dimensatildeo do corpo dentro do debate sobre o saber em face da distinccedilatildeo entre mente e ceacuterebro

71

por essa trilha Polany aponta dois termos no saber taacutecito o conhecimento subsidiaacuterio aquele

que auxilia na realizaccedilatildeo de uma tarefa e o conhecimento apreendido aquele que se adquire

apoacutes o domiacutenio conceitual de todo o processo de realizaccedilatildeo de uma determinada tarefa Eacute com

essa perspectiva que Polany27 aborda a relaccedilatildeo entre o corpo e a mente no processo de cons-

truccedilatildeo do conhecimento taacutecito

Polany busca explicar a relaccedilatildeo entre o corpo e a mente na construccedilatildeo do conhecimen-

to taacutecito usando como exemplo a capacidade humana de selecionar ou reconhecer determina-

dos objetos a partir do uso da visatildeo Segundo esse pensador a observaccedilatildeo de uma determina-

da imagem objetivamente captada pelos olhos pode estar condicionada por um conjunto de

fenocircmenos pouco mensuraacuteveis tais como quantidade de luzes que entram pelos olhos e tem-

peratura ambiente que acabam se convertendo em variaacuteveis taacutecitas e marginais O domiacutenio

sobre o impacto que essas variaacuteveis taacutecitas podem ter sobre um determinado objeto eacute funda-

mental para possibilitar ao homem a captaccedilatildeo de imagem mais completa desse objeto Neste

sentido essas variaacuteveis funcionam como pistas que podem com menor ou maior intensidade

compor um conhecimento taacutecito De acordo com Polany28 na medida em que o domiacutenio des-

sas variaacuteveis forma o conhecimento taacutecito elas acabam se tornando uma extensatildeo do corpo

humano pois ampliam as possibilidades de uso da visatildeo Dessa forma por exemplo a tradu-

ccedilatildeo da imagem eacute feita por um certo saber mobilizar o uso do corpo ou saber que aciona um

processo mental que seleciona e articula os sentidos que passam pelo corpo no caso da visatildeo

em boa parte pelos olhos A dimensatildeo que um certo saber mobilizar o uso do corpo representa

nas accedilotildees humanas pode ser avaliada pela forma como esse autor percebe a interaccedilatildeo do ho-

mem com o seu meio Vejamos a reflexatildeo de Polany

Eu direi que noacutes observamos objetos externos sendo subsidiaacuterios atentos do im-pacto que eles fazem em nosso corpo e das respostas que nosso corpo oferece a ele

27 httpwwwmwsceduorgspolanymp-body-and-mindhtm 28 httpwwwmwsceduorgspolanymp-body-and-mindhtm

72

Todas as nossas accedilotildees conscientes com o mundo envolvem nosso uso subsidiaacuterio do nosso corpo Esse eacute o ponto pelo qual o nosso corpo eacute relacionado agrave nossa men-te29

Ao abordar a relaccedilatildeo entre o corpo e a mente as reflexotildees de Polany natildeo soacute nos permi-

tem o entendimento de que um determinado saber mobilizar o uso do corpo eacute parte fundamen-

tal do saber taacutecito bem como explicam nossa dificuldade de reconhecer uma atividade de uso

do corpo se eacute que existe alguma que natildeo dependa desse equipamento como sendo uma accedilatildeo

consciente Polany explica essa dificuldade em percebermos o uso do corpo como algo cons-

ciente a partir de uma argumentaccedilatildeo semelhante agrave que ele utilizou para tentar explicar o pro-

cesso de mudanccedilas de foco quando se busca compreender o uso instrumental de um determi-

nado saber taacutecito De acordo com esse autor ocorre o mesmo quando buscamos compreender

o uso do corpo ou seja se focalizarmos o uso do corpo perderemos de vista o objetivo pelo

qual ele foi mobilizado A perspectiva de Polany parece apontar para uma escolha ou se per-

cebe o que se faz por meio do corpo ou se compreende como o corpo o faz ldquoO fato que qual-

quer elemento subsidiaacuterio perde seu significado quando noacutes enfocamos nossa atenccedilatildeo nisto

explica o fato que quando examinando o corpo em accedilatildeo consciente noacutes natildeo conhecemos

nenhum rastro de consciecircncia em seu organismordquo30

Se de um lado eacute possiacutevel o entendimento de que o saber taacutecito se caracteriza tam-

beacutem por meio da relaccedilatildeo do corpo com a mente por outro lado em que medida esse certo

saber mobilizar o uso do corpo pode expressar um niacutevel de racionalidade E ainda eacute possiacutevel

compreender o processo de aquisiccedilatildeo de um saber mobilizar o uso do corpo

Por uma perspectiva inicial pode-se dizer que o domiacutenio sobre o corpo isto eacute sobre os

sentidos corporais natildeo ocorre com facilidade (POLANY 1967 FRADE 2003) No que se

refere ao saber taacutecito a necessidade de haver um esforccedilo de mobilizaccedilatildeo de saberes para do-

minar ou regular a relaccedilatildeo entre o corpo e a mente pode ser dada tanto para realizar uma ati- 29 httpwwwmwsceduorgspolanymp-STRUCTURE htm 30 httpwwwmwsceduorgspolanymp-STRUCTUREhtm

73

vidade quanto para a comunicaccedilatildeo de um saber taacutecito entre dois ou mais sujeitos Neste sen-

tido se um certo saber mobilizar o corpo viabiliza o uso de um saber taacutecito para realizaccedilatildeo de

uma determinada atividade bem como a comunicaccedilatildeo deste saber entre seus protagonistas

perguntamos em que medida um saber taacutecito eacute viabilizado por uma reflexatildeo sobre o uso do

corpo

Para alguns autores a construccedilatildeo do saber taacutecito ao depender de uma certa reflexatildeo

acaba por demandar um enorme esforccedilo de abstraccedilatildeo (POLANY 1967 SCHON 2000

MALGLAIVE 1999) Em Polany31 encontramos um termo que nos parece mais adequado

Trata-se de uma formulaccedilatildeo que esse autor apresenta como ldquoesforccedilo de imaginaccedilatildeordquo que se-

gundo ele estaacute presente em qualquer situaccedilatildeo de aprendizagem Segundo Polany quando es-

tamos ensinando alguma coisa a algueacutem noacutes confiamos no esforccedilo intelectual desse algueacutem

em reconhecer o que estamos ldquocarregandordquo como objeto de ensino como por exemplo a ten-

tativa de se ensinar a identificar qualidades sensoriais como a pulsaccedilatildeo sanguumliacutenea Ao avan-

ccedilar sobre essa discussatildeo no texto Corpo e Mente Polany tenta esclarecer o que ele chama de

esforccedilo de imaginaccedilatildeo da seguinte forma

Ainda haacute outra conexatildeo na qual noacutes temos que confiar no esforccedilo de imaginaccedilatildeo para ensinar e aprender Um exemplo eacute o estudo de anatomia topograacutefica vocecirc po-de ver vaacuterias fases da dissecaccedilatildeo de fotos ou quadros mas vocecirc tem que reconstru-ir pelo esforccedilo da imaginaccedilatildeo como o organismo com seus vaacuterios elementos fun-ciona (na decomposiccedilatildeo) de forma que vocecirc saiba como ocorre tudo ()32

De acordo com Frade (2003) ldquoem Polany qualquer ato de conhecer envolve um com-

prometimento pessoal uma contribuiccedilatildeo apaixonada do sujeito que eacute um componente vital do

conhecimento e natildeo meras imperfeiccedilotildees desse conhecimentordquo (p 10) Quando afirma que a

comunicaccedilatildeo do saber taacutecito exige das pessoas envolvidas o uso de seus saberes taacutecitos para

viabilizar a comunicaccedilatildeo segundo Frade (2003) eacute possiacutevel encontrar em Polany um apelo agrave

31 httpwwwmwsceduorgspolanymp-body-and-mindhtm 32 Ibidem

74

ideacuteia de esforccedilo ainda que essa autora natildeo fale em ldquoesforccedilo de imaginaccedilatildeordquo Para explicar

como Polany aborda a possibilidade de comunicaccedilatildeo do saber taacutecito Frade (2003) afirma que

esse pensador usa a seguinte metaacutefora quando a primeira pessoa precisa ocupar ou deixar-se

ocupar pela mente da segunda pessoa acompanhar os movimentos dessa mente para que pos-

sa descobrir seu conhecimento taacutecito ldquoconhecemos a mente de um jogador de xadrez ocupan-

do-nos dos estratagemas de seus jogos e conhecemos a dor de outra pessoa ocupando-nos de

sua face distorcida pelo sofrimentordquo (p 21)

O que Polany chama de esforccedilo de imaginaccedilatildeo apresenta-se em nosso entendimento

como uma trama essencial no processo de construccedilatildeo do saber taacutecito Neste sentido em que

medida o esforccedilo de imaginaccedilatildeo poderia manter interface com o saber usar o corpo E ainda

poderia o ldquoesforccedilo de imaginaccedilatildeordquo contribuir a superaccedilatildeo de uma suposta insuficiecircncia da

linguagem em explicitar o saber taacutecito A partir dessas indagaccedilotildees e das que foram desenvol-

vidas ao longo deste capiacutetulo entendemos ser necessaacuterio tentar percebecirc-las agrave luz de nossas

hipoacuteteses o que buscaremos fazer a seguir em nossos comentaacuterios

244 Comentaacuterios sobre as estrateacutegias taacutecitas

Se de um lado foi possiacutevel evidenciar que o saber taacutecito eacute marcado por uma validade

e pertinecircncia no que se refere agrave realizaccedilatildeo de uma determinada atividade por outro lado eacute

possiacutevel afirmar tambeacutem que o fato de este saber ser tido como taacutecito favorece em muito

para que haja duacutevidas em relaccedilatildeo a sua relevacircncia epistemoloacutegica Todavia entendemos ain-

da que os debates sobre o saber taacutecito natildeo evidenciaram todas as possibilidades de formaliza-

ccedilatildeo deste tipo de saber e tampouco desvelaram em que medida ele pode ser tido realmente

como taacutecito

Neste sentido elaboramos uma hipoacutetese na qual consideramos que o uso do saber taacute-

cito ocorra mediante o uso de estrateacutegias tambeacutem taacutecitas de produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e forma-

75

lizaccedilatildeo de saberes Consideramos ainda hipoteticamente que estas estrateacutegias taacutecitas poderi-

am se desenvolver em um esquema de retroalimentaccedilatildeo ciacuteclica isso quer dizer que o uso de

estrateacutegias taacutecitas para produzir saberes eacute dependente de estrateacutegias taacutecitas de mobilizaccedilatildeo de

saberes que por sua vez dependeriam do acionamento de estrateacutegias taacutecitas para formalizar

os saberes a serem mobilizados ou seja todas as estrateacutegias taacutecitas se realimentam constan-

temente Por esta trilha as estrateacutegias taacutecitas para produzir mobilizar e formalizar soacute encon-

tram um sentido uma perante a outra

Essas estrateacutegias taacutecitas aleacutem de garantir a validade e pertinecircncia do saber taacutecito so-

bretudo para quem as realizam uma vez que por meio delas entrariam em marcha os saberes

que monitoram a realizaccedilatildeo de uma determinada atividade poderiam tambeacutem funcionar co-

mo um mecanismo de ldquofiltragemrdquo que permitiria ao sujeito selecionar os saberes a serem mo-

bilizados para realizar uma tarefa Essa hipoacutetese encontra respaldo em Malglaive (1990) com

a expressatildeo ldquosaber em usordquo que designa um determinado conjunto de saberes que regem uma

accedilatildeo De acordo com esse autor

O conjunto destes saberes forma uma totalidade complexa e moacutevel operatoacuteria quer dizer ajustada agrave acccedilatildeo e agraves suas diferentes ocorrecircncias uma totalidade substi-tutiva no seio da qual os diversos tipos de saber se substituem uns aos outros agrave mercecirc das modalidades sucessivas da actividade uma totalidade que eventualmente se deforma sem todavia modificar a sua arquitetura mas alterando por vezes o modo e a qualidade dos seus constituinte (p 87)

Em que pese a possibilidade de um determinado grupo social criar e consagrar deter-

minadas estrateacutegias que mobilizam um tipo de regulagem entre o corpo e a mente a hipoacutetese

de haver um esquema de retroalimentaccedilatildeo entre as estrateacutegias ldquotaacutecitasrdquo por parte daqueles que

fazem uso de saberes taacutecitos nos remete ainda a uma uacuteltima pergunta o sujeito que faz uso

do saber taacutecito poderia criar e recriar uma regulagem na relaccedilatildeo entre o seu corpo e a sua

mente Se o saber possui uma dimensatildeo individual e subjetiva a singularidade do sujeito po-

deria estar na forma de como ele regula a relaccedilatildeo entre o seu corpo e a sua mente E ainda a

76

partir dessa regulagem o sujeito criaria formas natildeo soacute de produzir mobilizar e formalizar

saberes mas tambeacutem de expressaacute-los

A ideacuteia de que possa haver estrateacutegias de regulaccedilatildeo entre o corpo e a mente para a a-

preensatildeo da realidade eacute de certa forma sugerida por Damaacutesio (1994)

() A escolha de uma decisatildeo quanto a um problema pessoal tiacutepico colocado em ambiente social que eacute complexo e cujo resultado final eacute incerto requer tanto o am-plo conhecimento de generalidades como estrateacutegias de raciociacutenio que operem so-bre esse conhecimento () Mas como as decisotildees pessoais e sociais se encontram inextricavelmente ligadas agrave sobrevivecircncia esse conhecimento inclui tambeacutem fatos e mecanismos relacionados com a regulaccedilatildeo do organismo como um todo (p 109)

Todavia se foi importante apresentar a nossa hipoacutetese mais refinada qual seja a ideacuteia

de que o sujeito que faz uso do saber taacutecito o faccedila mediante o uso de estrateacutegias taacutecitas de

produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes eacute igualmente importante lembrar que a

construccedilatildeo dessa hipoacutetese tem deacutebito com situaccedilotildees concretas do chatildeo de faacutebrica que corrobo-

ram a possibilidade de que haja saberes produzidos mobilizados e formalizados a partir de

uma racionalidade distinta da formalidade cientiacutefica33

Neste sentido acreditamos que a atividade de trabalho se constitua como um excep-

cional campo para se analisar o saber taacutecito dado que as contradiccedilotildees presentes neste espaccedilo

satildeo marcadas por um apelo agrave inteligecircncia operaacuteria que de um lado eacute um alvo cada vez maior

dos interesses do capital e que por outro lado como afirma a literatura especializada os tra-

balhadores nunca ficaram sem produzir saberes e tampouco deixaram de imprimir o seu inte-

resse no trabalho (EVANGELISTA 2001 SANTOS 1997 ARANHA 1997)

33 Essa possibilidade eacute apresentada por diversos pesquisadores (SANTOS 1997 ARANHA 1997 e SALERNO 1994)

77

3 A FERRAMENTARIA E AS ATIVIDADES INDUSTRIAIS

O trabalho de ferramentaria se insere em diversas atividades industriais como por e-

xemplo a induacutestria alimentiacutecia farmacecircutica automobiliacutestica e eletro-eletrocircnica Nesta pes-

quisa seraacute abordada a ferramentaria de autopeccedilas portanto aquela que se vincula ao setor

automotivo No que se refere agrave inserccedilatildeo da ferramentaria no ramo autopeccedilas haacute que se dizer

que o crescimento nas vendas de automoacuteveis de passeio no seacuteculo XX eacute apontado como um

dos eventos responsaacuteveis pela expansatildeo desta atividade Ainda hoje ela responde por boa

parte dos componentes automotivos dado que dentre outras caracteriacutesticas o emprego deste

processo de fabricaccedilatildeo eacute apropriado para as grandes seacuteries de peccedilas ou seja a produccedilatildeo em

larga escala (NAVARRO 1954 SENAI 1998) No caso brasileiro podemos apontar que o

impulso da ferramentaria se vincula agrave induacutestria automotiva dada principalmente pela poliacutetica

de nacionalizaccedilatildeo das peccedilas a partir de meados da deacutecada de 1950 (GATTAacuteS 1981) Em Mi-

nas Gerais eacute tambeacutem a chegada de uma montadora que vai impulsionar a atividade de ferra-

mentaria como recordou um dos ferramenteiros com quem conversamos ldquono inicio da deacutecada

de 1970 tinha muito pouco serviccedilo de ferramentaria aqui em Minas depois veio a Fiat e a

Ferramentaria evolui aquirdquo Um outro ferramenteiro disse que ldquoQuando saiacute do Senai e fui

parar na Fiat eu era um ajustador mecacircnico laacute na Fiat eles perguntaram quem queria ir para a

ferramentaria No iniacutecio eu natildeo queria eu natildeo sabia o que era aquilo aiacute um cara laacute me falou

pode ir que esse negoacutecio eacute bom o ferramenteiro ganha mais do que qualquer peatildeordquo

78

31 A ESCOLHA DO SETOR AUTOMOTIVO E ESPECIFICAMENTE DO SETOR DE AUTOPECcedilAS

A importacircncia da induacutestria automotiva na sociedade contemporacircnea pode ser justifica-

da por uma seacuterie de fatores Eacute um setor onde prevalecem equipamentos de base microeletrocircni-

ca que tem adotado as mais modernas tecnologias de gestatildeo e representa um certo pioneiris-

mo comumente seguido por outros setores industriais Eacute o setor em que tecircm ocorrido os maio-

res esforccedilos em prol da modernizaccedilatildeo da produccedilatildeo (ARBIX e ZILBOVICIUS 1997 POS-

THUMA 1997 WOMACK 1992)

A escolha do setor automotiv4o como foco da nossa pesquisa reflete natildeo soacute a impor-

tacircncia de sua dimensatildeo produtiva mas tambeacutem a sua capacidade de definir comportamentos

Satildeo muitos os pensadores que destacam o papel que este seguimento representa na sociedade

contemporacircnea Segundo Womack (1992)

() a induacutestria automobiliacutestica continua sendo a maior atividade industrial () No entanto a induacutestria automobiliacutestica eacute ainda mais importante para noacutes do que pare-ce Duas vezes neste seacuteculo ela alterou nossas noccedilotildees mais fundamentais de como produzir bens E a maneira como os produzimos determina natildeo somente como tra-balhamos mas como pensamos o que compramos e como vivemos (p 1)

No que se refere ao caso brasileiro tambeacutem satildeo muitas as facetas quais sejam a eco-

nocircmica e poliacutetica que fazem a induacutestria automotiva figurar com acentuado destaque social

Arbix e Zilbovicius (1997) reforccedilam a importacircncia deste setor quando afirmam que o auto-

moacutevel jaacute foi tudo na Histoacuteria do Brasil

Nos anos 50 era o motor do progresso nacional E a sua produccedilatildeo em terras brasi-leiras uma espeacutecie de passaporte para a modernidade No poacutes-guerra poucas fo-ram as visotildees de desenvolvimento que prescindiram da induacutestria de autoveiacuteculos () Frequumlentou os sonhos de ricos e pobres de governantes e governados Foi si-nocircnimo de progresso Sua locomotiva E literalmente o carro-chefe da naccedilatildeo () O surpreendente eacute que quarenta anos depois apesar de todas as metamorfoses de economia brasileira e mundial neste final de seacuteculo a induacutestria de autoveiacuteculos continua destilando seus encantos (p 7-8)

79

Na realidade natildeo se pode falar em induacutestria mundial sem deixar legitimado o papel do

setor automotivo e isso eacute bem visiacutevel no Brasil Crescendo a taxas de 20 ao ano foi tambeacutem

o setor que conduziu o chamado ldquomilagre brasileirordquo que ocorreu de 1968 a 1973 (SHAPIRO

1997 p 65)

311 As autopeccedilas

Na trilha do setor automotivo a induacutestria de autopeccedilas inscreve-se como um ramo

com significativa influecircncia na economia brasileira e ainda como um poacutelo gerador de tecno-

logia e de uma forccedila de trabalho relativamente numerosa e extremamente qualificada De a-

cordo com o Sindipeccedilas (2003)1 este setor obteve um faturamento de 10920000 bilhotildees de

reais em 2002 o que corresponde aproximadamente a 24 do PIB nacional e empregando

diretamente cerca de 168000 trabalhadores

Eacute importante ressaltar o fato de as empresas de autopeccedilas estarem sempre acompa-

nhando os avanccedilos da induacutestria automobiliacutestica tendo com isso que fazer contiacutenuos investi-

mentos em atualizaccedilatildeo tecnologias e novos processos assim como em alguns casos fazer

alianccedilas com empresas estrangeiras Enfim precisam seguir e antecipar todos os esforccedilos das

montadoras O desenvolvimento da induacutestria de autopeccedilas no Brasil embora remonte ao iniacute-

cio do seacuteculo XX ganha impulso com a vinda e o posterior crescimento da induacutestria auto-

motiva a partir da deacutecada de 1950 Segundo boa parte dos pesquisadores o alavancamento da

induacutestria automotiva no Brasil em meados da deacutecada de 1950 contaraacute com o apoio de accedilotildees

do governo como a proposta de restringir as importaccedilotildees de veiacuteculos e componentes automo-

tivos e a de incentivar financeiramente a produccedilatildeo de veiacuteculos que contivessem de 90 a 95

de peccedilas produzidas no Brasil o que foi mais relevante apoacutes 1956 com a posse do presidente 1 Ver hiperlink hppwwwsindipeccedilasorgBr Sindicato das empresas de autopeccedilas

80

Juscelino Kubitschek e sua poliacutetica dos ldquocinquumlenta anos em cincordquo Surgem o CDI ndash Conselho

de Desenvolvimento Industrial e a Geia ndash Grupo Executivo para a Induacutestria Automotiva ndash que

propunham estimular os investimentos no paiacutes e tomar as decisotildees para o desenvolvimento do

setor criando uma sequumlecircncia desenvolvimentista que soacute veio conhecer crise no periacuteodo de

1963 a 1968 (POSTHUMA 1997 SHAPIRO 1997) O Geia chegou inclusive a estabelecer

um cronograma sobre a nacionalizaccedilatildeo da induacutestria automobiliacutestica conforme aponta Gattaacutes

(1981)

Tabela 1 Cronograma do Geia para nacionalizaccedilatildeo da induacutes-tria automobiliacutestica no Brasil

Prazos limites Caminhotildees Jipes Caminhotildees leves 31121956 35 50 40 01071957 40 60 50 01071958 65 75 65 01071959 75 85 75 01071960 90 95 90

Fonte GATTAacuteS (1981)

A partir da deacutecada de 1970 ainda que possa parecer paradoxal as empresas de auto-

peccedilas ao mesmo tempo em que se estruturaram para atender as determinaccedilotildees das montadoras

passaram tambeacutem a influenciar a gestatildeo do trabalho nas montadoras De acordo com Addis

(1997)

Ao contraacuterio das consideraccedilotildees predominantes sobre a induacutestria brasileira as em-presas de autopeccedilas foram na realidade a forccedila motriz para a consolidaccedilatildeo e o de-senvolvimento do setor automotivo () Na implantaccedilatildeo da induacutestria mas tambeacutem durante os anos 80 quando algumas empresas fornecedoras formaram carteacuteis as tendecircncias das induacutestrias foram em grande parte determinadas pelas firmas de au-topeccedilas Em outras palavras a produccedilatildeo de veiacuteculos no Brasil acabou gerando ca-deias de desenvolvimento e a sua natureza foi profundamente condicionada pelas empresas de autopeccedilas Por volta de 1951 algumas empresas de autopeccedilas perten-centes em sua maioria a imigrantes decidiram criar uma associaccedilatildeo industrial Um ano depois esta associaccedilatildeo transformar-se-ia no Sindicato Nacional da Induacutestria de peccedilas para Veiacuteculos Automotivos ndash Sindipeccedilas (p 134)

81

312 Relaccedilatildeo entre fornecedores de autopeccedilas e montadoras

A relaccedilatildeo entre as empresas de autopeccedilas e as montadoras tem apresentado uma gran-

de correspondecircncia com a transformaccedilatildeo na organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho Em outras pa-

lavras a produccedilatildeo de veiacuteculos no Brasil acabou gerando cadeias de desenvolvimento e a sua

natureza foi profundamente condicionada pelas empresas de autopeccedilas Neste sentido a capa-

cidade das autopeccedilas em absorver e assimilar as mudanccedilas na organizaccedilatildeo e gestatildeo do traba-

lho vem sendo fundamental para a adoccedilatildeo do padratildeo flexiacutevel e integrado conduzido pelas

montadoras notoriamente a partir da deacutecada de 1990

De acordo com Salerno num primeiro momento os fornecedores foram instados a fa-

zer entregas mais frequumlentes e em lotes menores numa tentativa de aproximaccedilatildeo de um just in

time Depois foram chamados a colaborar nos projetos de produto Daiacute foi um pulo passar ao

fornecimento de Subconjuntos ao inveacutes do fornecimento de uma seacuterie de peccedilas separadas que

seriam montadas pela montadora final Por um lado uma tentativa de reduccedilatildeo de custos da-

das as condiccedilotildees de trabalho e de salaacuterio em geral relativamente piores nas autopeccedilas por

outro lado uma tentativa de reduzir investimentos necessaacuterios das montadoras pois parte do

ferramental dispositivos equipamentos destinados agrave montagem satildeo agora de responsabilidade

do fornecedor ainda uma economia de espaccedilo fiacutesico e uma simplificaccedilatildeo da gestatildeo interna da

produccedilatildeo (SALERNO 1997 p 509)

Nos uacuteltimos anos outras mudanccedilas contribuiacuteram para o aumento da importacircncia do

setor de autopeccedilas dentro da produccedilatildeo industrial Posthuma (1997) afirma que

cada vez mais apenas os liacutederes mundiais de autopeccedilas tecircm os recursos tecnoloacutegi-cos e financeiros para atender as demandas para se tornarem fornecedores de pri-meira linha Essa tendecircncia favorece a consolidaccedilatildeo do setor de peccedilas que tradi-cionalmente sempre foi uma induacutestria pulverizada Nesse sentido a induacutestria de au-topeccedilas estaacute comeccedilando a assemelhar-se agrave induacutestria de montagem tornando-se uma induacutestria globalizada composta de grandes companhias transnacionais (p 400)

82

Em relaccedilatildeo agrave induacutestria brasileira o setor de autopeccedilas passou a viver uma situaccedilatildeo de

turbulecircncia que transformou a estrutura do setor A partir da liberaccedilatildeo comercial da vinda de

novas montadoras e de um novo surto de investimentos a induacutestria de autopeccedilas estaacute passan-

do por um processo de concentraccedilatildeo envolvendo a extinccedilatildeo de parcelas significativas de seus

integrantes E das suas cinzas estaacute surgindo hoje uma nova induacutestria de autopeccedilas compostas

basicamente por empresas de maior porte e capital estrangeiro (Posthuma 1997 p 390)

Essa autora afirma ainda que ao fornecer para os mercados de maior demanda tanto

no Brasil como no exterior estas empresas foram levadas a atualizar a qualidade e o design de

seus produtos e meacutetodos de produccedilatildeo procurando acompanhar os padrotildees internacionais

Dessa forma um grupo intermediaacuterio de firmas credenciou-se para as disputas em uma eco-

nomia aberta que estaacute sempre exigindo a melhoria dos meacutetodos de fabricaccedilatildeo de tecnologia e

de design (POSTHUMA 1997 p 392)

32 A FERRAMENTARIA

A escolha da aacuterea de ferramentaria como campo desta investigaccedilatildeo se justifica por as-

pectos que a colocam como um dos setores mais complexos da atividade industrial tanto pe-

las suas caracteriacutesticas teacutecnicas quanto pela sua dimensatildeo econocircmica e social Dentre as pe-

culiaridades da ferramentaria poderiacuteamos iniciar pela consideraccedilatildeo de que muito embora este

trabalho esteja vinculado ao campo da metalomecacircnica a ferramentaria subsidia tecnologica-

mente a concretizaccedilatildeo de projetos em quase todos os setores produtivos Eacute a partir das possi-

bilidades de construccedilatildeo da ferramentaria que satildeo definidos por exemplo o tamanho e a forma

geomeacutetrica de computadores oacuteculos remeacutedios lacircmpadas canetas talheres telefones carros

instrumentos ciruacutergicos componentes eletrocircnicos e uma seacuterie de outros produtos

83

A teacutecnica de ferramentaria permite a produccedilatildeo de peccedilas que possuem uma geometria

que combina vaacuterias formas Neste sentido uma questatildeo relevante em relaccedilatildeo agrave teacutecnica de fer-

ramentaria remete ao apelo comercial sobre a esteacutetica dos produtos No caso do automoacutevel

por exemplo eacute notoacuterio que um dos grandes chamativos das propagandas se dirige ao design

dos carros

Uma outra grande relevacircncia da aacuterea de ferramentaria para esta pesquisa se refere agrave

particularidade das relaccedilotildees de trabalho dentro deste setor e sobretudo a forma paradoxal de

como os saberes articulados agrave mecacircnica de precisatildeo2 portadores de tecnologia de ponta como

o CAD CAM e CNC3 parecem prescindir em muito de saberes produzidos mobilizados e

formalizados a partir de uma racionalidade natildeo-cientiacutefica caracterizada por intervenccedilotildees

ldquomanuaisrdquo dos ferramenteiros muitas vezes tidas como artesanais

A ferramentaria tradicionalmente figura como um setor diferenciado dentro da induacutes-

tria metaluacutergica cujo ldquonomerdquo exerce uma forte influecircncia no imaginaacuterio dos trabalhadores

metaluacutergicos4 bem como das proacuteprias chefias que fazem referecircncia agrave forte coesatildeo entre os

ferramenteiros e a grande auto-estima que eles demonstram por sua profissatildeo Talvez por isso

mesmo encontram-se aqui tambeacutem formas menos submissas de negociar situaccedilotildees cotidia-

nas com a gerecircncia Negro (1997) atribui aos ferramenteiros um papel especial no desenvol-

vimento do ldquonovo sindicalismordquo

() os ferramenteiros aparecem como empregados temperamentais dotados de um bolso hipersensiacutevel e cocircnscios da carecircncia que as empresas sentiam deles Enquan-to permaneceram apenas defensores de suas condiccedilotildees especiacuteficas bastante especi-ais diante da imensa maioria promoveram um tipo de sindicalismo baseado na de-fesa da dignidade do trabalho mas que ao mesmo tempo natildeo oferecia respostas para as demandas mais gerais existentes Um movimento onde natildeo cabiam todos Poreacutem foi esse um dos setores que manteve o sindicalismo vivo dentro das faacutebri-

2 De acordo com as normas ISO a mecacircnica de precisatildeo trabalha com ajustes abaixo de cinco centeacutesimos de miliacutemetro (NOVASKI 1994 p 3) 3 CAD ndash Computer Aided Design CAM ndash Computer Aided Manufacturing CNC ndash Controle Numeacuterico Compu-tadorizado (FARIA 1997 p 13) 4 Este proacuteprio pesquisador se recorda de que em certas situaccedilotildees de ldquoconflito no chatildeo de faacutebricardquo era comum surgirem falas como ldquoSe fosse laacute na ferramentaria eles ndash a chefia ndash natildeo fariam issordquo

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cas nos seus anos iniciais e nos duros tempos de ditadura militar constituindo-se como estiacutemulo e escola por onde passaram ativistas de vaacuterios matizes (p 122)

Outros aspectos que reforccedilam o status do ferramenteiro dentro da faacutebrica satildeo a sua su-

perioridade salarial5 a reconhecida capacidade de trabalhar em mais de uma maacutequina opera-

triz e ainda a aproximaccedilatildeo do seu trabalho com a ideacuteia de arte6

321 Quem eacute e o que faz um ferramenteiro7

De uma forma simples poderiacuteamos definir como ferramentaria a teacutecnica de construir

ferramentas para obter peccedilas por meio de golpes de prensa que permitem cortar deformar ou

moldar um determinado material (ROSSI 1971 NAVARRO 1954)

O ferramenteiro eacute o profissional que constroacutei a ferramenta De acordo com a CBO ndash

Classificaccedilatildeo Brasileira de Ocupaccedilotildees a Onet ndash Ocuppation Information Network a Rome ndash

Reacutepertoire Opeacuterationnel des Meacutetiers et Emplois

Os trabalhadores da famiacutelia ocupacional dos ferramenteiros e afins estudam es-quemas e especificaccedilotildees para a construccedilatildeo de ferramentas e dispositivos conferin-do dimensotildees de montagem e planejando a sequumlecircncia de operaccedilotildees de construccedilatildeo Medem e marcam metais utilizando instrumentos de mediccedilatildeo tais como o microcirc-metro reloacutegio apalpador Operam maacutequinas ferramentas para usinar peccedilas Lixam e datildeo polimento em superfiacutecies e partes de ferramentas () Aplicam tratamento teacutermico em materiais e peccedilas Reparam ou modificam ferramentas e dispositivos utilizando ferramentas manuais ou maacutequinas ferramenta8

5 Segundo o hiperlink httpdnsenaibrrepertoacuterioferramenteiro e afinshtm a remuneraccedilatildeo meacutedia eacute de 106 salaacuterios miacutenimos De acordo com o Rais ndash Relatoacuterio Anual de Relaccedilotildees Sociais do Ministeacuterio do Trabalho e Emprego de 1999 cerca de 21 dos ferramenteiros ganham entre dez e quinze salaacuterios miacutenimos 18 ganham entre sete e dez salaacuterios miacutenimos 12 ganham entre quinze e vinte salaacuterios miacutenimos 75 ganham mais do que vinte salaacuterios miacutenimos e os demais ganham menos de sete salaacuterios miacutenimos 6 Essa ideacuteia possui uma certa dimensatildeo histoacuterica No dicionaacuterio FERREIRA (1986) dentre outras definiccedilotildees a arte eacute apresentada como ldquo[Do lat arte] sf Capacidade que tem o homem de pocircr em praacutetica uma ideacuteia valendo-se da faculdade de dominar a mateacuteria Jaacute a induacutestria pode ser entendida segundo Ferreira (1986 p 940) como ldquo[Do lat Industria atividade] sf 1 ndash Destreza ou arte na execuccedilatildeo de um trabalho manual aptidatildeo periacutecia () 3 ndash Fig Invenccedilatildeo astuacutecia engenho (p 176) 7 Neste trabalho nos limitaremos a uma breve apresentaccedilatildeo de uma parte da ferramentaria que trabalha com chapas metaacutelicas pois trata-se de um atividade muito ampla que trabalha com outros processos injeccedilatildeo de plaacutes-ticos fundiccedilatildeo e outros 8 Ver hiperlink httpdnsenaibrrepertoacuterioferramenteiro e afinshtm Onde aponta-se tambeacutem que de acordo com RAIS Registro Anual de Informaccedilotildees Sociais do Ministeacuterio do Trabalho e Emprego no ano de 2000 a

85

A apresentaccedilatildeo formal das qualificaccedilotildees prescritas do ferramenteiro embora demons-

tre a enorme gama de saberes desta atividade natildeo eacute suficiente para revelar a complexidade

desta profissatildeo Neste sentido eacute necessaacuterio esclarecer que o ferramenteiro natildeo faz uma peccedila

ele constroacutei uma ferramenta E o que eacute uma ferramenta Na verdade uma ferramenta eacute um

conjunto de peccedilas um mecanismo com vaacuterias partes moacuteveis e fixas que quando postas em

movimento produzem peccedilas que satildeo os produtos finais Para abstrairmos a composiccedilatildeo de

uma ferramenta apresentaremos um desenho de uma ferramenta bastante simples

Figura 1 Ferramenta vista em ldquo3Drdquo Nomenclatura 1 Espiga 2 Cabeccedilote 3 Placa de choque 4 Porta-punccedilatildeo 5 Punccedilatildeo 6 Colunas de guia 7 Buchas 8 Pinos de fixaccedilatildeo 9 Parafusos 10 Extrator 11 Guias da chapa 12 Matriz e 13 Base inferior

famiacutelia ocupacional dos ferramenteiros e afins tinha 239 com 10 anos ou mais de viacutenculo empregatiacutecio 175 entre 5 e 99 anos de viacutenculo e 129 entre 4 e 9 anos

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Figura 2 A mesma ferramenta da Figura 1 vista em plano bidimensional Nomenclatura 1 Espiga 2 Cabeccedilote 3 Placa de choque 4 Porta-punccedilatildeo 5 Punccedilatildeo 6 Colunas de guia 7 Buchas 8 Pinos de fixaccedilatildeo 9 Parafusos 10 Extrator 11 Guias da chapa 12 Matriz e 13 Base inferior

A qualidade de um determinado ldquoproduto finalrdquo depende em grande parte de um per-

feito ajuste em centeacutesimo de miliacutemetros entre as partes moacuteveis e as partes fixas Portanto natildeo

eacute um exagero afirmar que os ferramenteiros constroem maacutequinas complexas O fato de que a

maioria dos componentes de uma ferramenta possuem medidas tiacutepicas da ldquomecacircnica de preci-

satildeordquo e ainda que os materiais de uma ferramenta satildeo metais muito especiais com altiacutessima

dureza jaacute seria suficiente para alccedilar este trabalho a um alto niacutevel de dificuldade Todavia o

processo de trabalho na ferramentaria apresenta ainda outras questotildees que exigem do ferra-

menteiro saberes muito aleacutem daqueles necessaacuterios para fabricar uma peccedila com toleracircncia em

centeacutesimos de miliacutemetro Ou seja se de um lado o trabalho prescrito na ferramentaria por si

soacute jaacute faz um apelo a um grande nuacutemero de saberes por outro lado satildeo muitos os fatores do

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trabalho real que solicitam do ferramenteiro saberes de outra ordem muitas das vezes vincu-

lados agrave sua experiecircncia os chamados saberes taacutecitos

322 A Excepcionalidade do ferramenteiro breve nota sobre um trabalho muito aleacutem

das prescriccedilotildees

Diferentemente das premissas tayloristas a organizaccedilatildeo do trabalho dentro de uma fer-

ramentaria quase sempre exigiu do ferramenteiro uma participaccedilatildeo em todas as fases do pro-

cesso de trabalho dado que uma ferramenta apresenta um grande nuacutemero de etapas para a sua

construccedilatildeo A obtenccedilatildeo de um bom produto final depende em boa medida do domiacutenio de

todas as fases da construccedilatildeo por parte dos ferramenteiros uma vez que essa ldquovisatildeo do todordquo eacute

fundamental para antever os possiacuteveis problemas em cada fase de construccedilatildeo da ferramenta

que natildeo foram apontados pelo trabalho prescrito neste caso o desenho da ferramenta Dessa

forma o apelo a um excepcional conjunto de saberes fez da ferramentaria um terreno sem

muita fecundidade para a fragmentaccedilatildeo do trabalho

Poderiacuteamos dizer que agrave distacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho real na ferra-

mentaria comeccedila na elaboraccedilatildeo do projeto de uma ferramenta dado que um mesmo produto

pode ser obtido por projetos de ferramentas totalmente diferentes Essa possibilidade que eacute

muito comum dentro da ferramentaria pode ocorrer de um lado por questotildees objetivas como

maacutequinas disponiacuteveis e recursos de informaacutetica e por outro lado por aspectos subjetivos

como experiecircncia dos projetistas9

Do ponto de vista da construccedilatildeo mecacircnica da ferramenta os ferramenteiros atraveacutes

dos seus saberes taacutecitos podem submeter o trabalho prescrito aos condicionantes do trabalho

real antes mesmo do iniacutecio da construccedilatildeo ldquofiacutesicardquo ou seja antes de construir ou montar as 9 Neste caso a experiecircncia natildeo eacute tida somente pelas situaccedilotildees vivenciadas pelo projetista mas por exemplo a origem da ferramentaria com a qual ele trabalhou pois franceses japoneses e espanhoacuteis apresentam estilos dife-rentes

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peccedilas da ferramenta Tomemos por exemplo o caso da leitura e interpretaccedilatildeo que o ferra-

menteiro faz do desenho natildeo soacute por ser a primeira fase de construccedilatildeo da ferramenta mas

tambeacutem pelas possibilidades de antecipar falhas no produto final Trata-se em uma primeira

anaacutelise de um saber formal que pode ser aprendido na escola Entretanto a experiecircncia do

ferramenteiro pode potencializar a sua capacidade de ler e interpretar desenhos a ponto de lhe

permitir compreender e superar tecnicamente alguns equiacutevocos no projeto da ferramenta

Os saberes taacutecitos que os ferramenteiros usam na leitura de desenho satildeo de tal sorte

vinculados agrave sua experiecircncia que buscamos apresentaacute-los em trecircs exemplos Primeiro haacute que

se dizer que o desenho de uma ferramenta de grande porte pode apresentar quinhentas ou

mais peccedilas diferentes o que inviabiliza que haja uma folha de desenho por peccedila Dessa forma

a ferramenta eacute desenhada apresentando as peccedilas em conjuntos podendo ter aproximadamente

sessenta folhas Diante desta situaccedilatildeo o ferramenteiro ao ler o desenho deve interpretar as

medidas das peccedilas ldquoisoladamenterdquo de seu conjunto Natildeo eacute raro que nesta fase do processo de

trabalho ocorram descobertas de erros na prescriccedilatildeo como medidas que natildeo se encontram

furos fora de lugar Nesta fase da leitura do desenho a experiecircncia do ferramenteiro lhe per-

mite se localizar ldquodentro do projetordquo forma pela qual ele associa uma determinada peccedila com

o estaacutegio em que estaacute a construccedilatildeo da ferramenta ou seja nesse primeiro caso o ferramentei-

ro faz muito mais do que ldquoler um desenhordquo ele se depara com um conjunto de peccedilas e apre-

ende uma delas ldquopor vezrdquo com todas as suas implicaccedilotildees para a construccedilatildeo da ferramenta

Segundo trata-se de um saber importantiacutessimo para antecipar eventuais problemas Ao

ler o desenho o ferramenteiro busca ldquovisualizarrdquo mentalmente a montagem das peccedilas em uma

projeccedilatildeo tridimensional ou seja paradoxalmente ocorre um processo inverso ao primeiro

exemplo Neste segundo caso a experiecircncia do ferramenteiro pode lhe permitir ao ler um

desenho compreender ldquotodardquo a ferramenta por meio de uma articulaccedilatildeo entre as vaacuterias inter-

pretaccedilotildees das ldquopartesrdquo da ferramenta A dificuldade em se desenvolver este saber taacutecito se

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apresenta pelo fato de que o desenho eacute elaborado em uma forma planificada ou seja o ferra-

menteiro enxerga bidimensionalmente e tem que ldquovisualizarrdquo tridimensionalmente Uma das

contribuiccedilotildees desta capacidade eacute que neste momento o ferramenteiro comeccedila a associar a

ferramenta em construccedilatildeo com o produto final

Terceiro eacute um saber taacutecito que remete a uma complexa articulaccedilatildeo de saberes que o-

corre normalmente com ferramenteiros mais experientes que possuem uma refinadiacutessima

capacidade de ler um desenho por meio da qual conseguem ldquovisualizarrdquo a fabricaccedilatildeo de um

determinado produto atraveacutes de uma ldquosimulaccedilatildeo mental da movimentaccedilatildeordquo da ferramenta

que corresponde tambeacutem agrave movimentaccedilatildeo de uma seacuterie de componentes mecacircnicos Neste

caso a mobilizaccedilatildeo de saberes taacutecitos permite ao ferramenteiro levar um entendimento sobre

algo estaacutetico o desenho para uma situaccedilatildeo dinacircmica formalizada por meio de uma extraor-

dinaacuteria noccedilatildeo de ldquocinemaacuteticardquo10

Haacute ainda outros aspectos do processo que fazem emergir o saber taacutecito do ferramen-

teiro A espetacular capacidade cinemaacutetica dos ferramenteiros em ldquosimular mentalmente a

movimentaccedilatildeordquo da ferramenta pode ocorrer tambeacutem mediante a observaccedilatildeo da movimenta-

ccedilatildeo fiacutesica da ferramenta ou mesmo somente analisando-se o produto final ou seja sem o

desenho Nestas situaccedilotildees os saberes taacutecitos dos ferramenteiros lhe permitem interpretar al-

gumas variaacuteveis de difiacutecil mensuraccedilatildeo cientiacutefica como por exemplo ldquoo desgaste das prensas

ou a resistecircncia de materiaisrdquo11

Por fim um outro caso no qual o ferramenteiro se vale de seu saber taacutecito refere-se

aos limites teacutecnicos de maacutequinas avanccediladiacutessimas que agraves vezes natildeo conseguem por exemplo

alcanccedilar um determinado grau de acabamento ou mesmo medidas como as de raios pequenos

10 De acordo com FERREIRA (1986) Cinemaacutetica pode ser tomada como um campo da fiacutesica que se dedica ao estudo dos movimentos sem se preocupar com as forccedilas que o colocam em movimento (p 406) 11 Satildeo vaacuterios e frequumlentes os fenocircmenos que se relacionam ao comportamento dos accedilos e que escapam de uma padronizaccedilatildeo cientiacutefica Situaccedilotildees como o retorno de chapa tambeacutem chamado de springback soacute satildeo soluciona-das por ferramenteiros bem experientes uma vez que os caacutelculos apenas aproximam e mesmo o uso de avanccedila-dos softwares natildeo garante a prescriccedilatildeo das medidas e de geometria necessaacuterias para a obtenccedilatildeo de peccedilas confor-me o desejado

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combinados Nestas situaccedilotildees apela-se para a destreza do ferramenteiro que lanccedila matildeo de

habilidades corporais desenvolvidas ao longo de sua vida como o tato e a visatildeo como vere-

mos no capiacutetulo seguinte

33 O GRUPO B E A EMPRESA T

O grupo empresarial que abriga a Empresa T tambeacutem dirige outras trecircs empresas to-

das voltadas para o setor de autopeccedilas As atividades que deram origem a esse grupo tiveram

o seu ponto de partida com a criaccedilatildeo de uma serralheria em 1974 que sob a iniciativa do seu

presidente um italiano ldquocarpinteiro metaacutelicordquo12 se dedicava agrave produccedilatildeo de esquadrias metaacuteli-

cas

A partir de 1980 inicia-se uma grande virada nas atividades desse grupo quando a sua

inserccedilatildeo como fornecedora para a Fiat Automoacuteveis permitiu-lhe uma orientaccedilatildeo rumo ao setor

de autopeccedilas especialmente para o trabalho de ferramentaria Instalando-se no canteiro de

obras da Fiat produzem inicialmente o quebra-vento para o automoacutevel ldquoFiat 147rdquo Em 1986

a empresa opta por um projeto de crescimento na aacuterea de ferramentaria A empresa passou a

ter o seu proacuteprio galpatildeo na regiatildeo metropolitana de Belo Horizonte aleacutem de fazer um signifi-

cativo investimento em compras de maacutequinas-ferramentas Isto lhe possibilitou ampliar a sua

produccedilatildeo fornecendo para a Fiat Automoacuteveis outras peccedilas como defletores de calor traves-

sas e bagageiros A partir desse novo momento deu-se um grande impulso por parte da em-

presa para ampliar o seu know how em ferramentaria

Agrave medida que as atividades de ferramentaria dessa empresa foram ganhando espaccedilo no

setor de autopeccedilas iniciou-se um projeto de expansatildeo que viabilizasse a incorporaccedilatildeo de no-

vas demandas de serviccedilo do setor automotivo como a montagem de conjuntos soldados de- 12 Segundo alguns trabalhadores mais antigos na empresa eacute assim que este senhor se refere a si mesmo

91

senho e projetos e outras atividades Dessa forma foi organizado um grupo13 de serviccedilos au-

tomotivos subdivididos em empresas que trabalham com ferramenaria design e autopeccedilas

com filiais em Minas Gerais Paranaacute e escritoacuterios em Satildeo Paulo e na Itaacutelia

O desenvolvimento das empresas que formam o grupo B muito embora a maior parte

de suas peccedilas fossem dirigidas para a produccedilatildeo da Fiat Automoacuteveis comeccedila a se vincular

com as demandas de outras montadoras Neste sentido a produccedilatildeo das empresas do grupo B

ganha cada vez mais sofisticaccedilatildeo teacutecnica bem como ao aumentar o volume de sua produ-

ccedilatildeo passaram a ter tambeacutem um aumento significativo no seu quadro de funcionaacuterios14

Atualmente o grupo B fornece peccedilas para as seguintes montadoras GM Mercedes

Fiat Nissam e Peugeot Aleacutem do fornecimento de peccedilas de acordo com just in time as empre-

sas do grupo ldquoBrdquo desenvolvem pesquisa e projetos sobre o leiaute de produccedilatildeo linhas de

montagem e soldagem desenvolvem e constroem protoacutetipos De acordo com o balanccedilo anual

da Gazeta Mercantil (2003)15 o grupo ldquoBrdquo eacute o quarto maior entre as autopeccedilas brasileiras

Desde 1997 o grupo B exporta suas peccedilas referentes aos carros Paacutelio e Uno para unidades da

Fiat na Argentina Turquia e Polocircnia

331 As empresas do grupo B

1) Empresa 1 Localiza-se no Centro Industrial de Contagem na grande Belo Horizon-

te Trabalha com produccedilatildeo de defletores de calor e bagageiros Possui 364 funcionaacuterios

13 Noacutes abordaremos como o grupo ldquoBrdquo 14 De acordo com vaacuterias pesquisas podemos inferir que a expansatildeo do grupo ldquoBrdquo se deu de forma articulada ao processo de reestruturaccedilatildeo produtiva promovida pelas montadoras em geral especialmente a Fiat Automoacuteveis Segundo POSTHUMA (1997) ldquoAs montadoras estatildeo diminuindo o nuacutemero de fornecedores com os quais man-tecircm um contato direto orientando-se para uma relaccedilatildeo com um grupo seleto com base em contratos mais estaacute-veis e na cooperaccedilatildeo nas aacutereas de projeto e desenvolvimento de novos produtosrdquo (p 397) Ainda segundo essa pesquisadora ldquoEm alguns casos as montadoras desenvolveram programas para intervir e ajudar os fornecedores a melhorar a sua qualidade e a modernizar seus sistemas de manufaturardquo (p 400) 15 Balanccedilo Anual da Gazeta Mercantil Satildeo Paulo 2003

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2) Empresa 2 Localiza-se tambeacutem em Contagem Trabalha com a produccedilatildeo de es-

tampados e conjuntos soldados Possui 364 funcionaacuterios

3) Empresa 3 Situa-se em Betim na Grande Belo Horizonte Trabalha com a produ-

ccedilatildeo de suspensatildeo dianteira eixo traseiro e tanques de combustiacutevel Possui 488 funcionaacuterios

4) Empresa T Localiza-se em Belo Horizonte e Contagem Eacute a ferramentaria do gru-

po trabalha com projetos e construccedilatildeo de ferramentas dispositivos de controle e montagem

Possui 232 funcionaacuterios

332 A Empresa T

A Empresa T eacute a ferramentaria do grupo B Localiza-se em Belo Horizonte e em Con-

tagem Trabalha com projetos e com a construccedilatildeo de ferramentas de estampagem e dispositi-

vos de controle e montagem A unidade de Belo Horizonte vem se inscrevendo cada vez me-

nos no processo de construccedilatildeo direta da ferramenta e se dedicando agraves chamadas usinagem ldquo2

Drdquo16 ao desenvolvimento de protoacutetipos junto aos clientes para uma ldquofuturardquo construccedilatildeo de

ferramenta A faacutebrica de Contagem responde pela maior parte de construccedilatildeo da ferramenta

uma vez que nesta unidade encontram-se a chamada usinagem ldquo3 Drdquo17 a montagem os ajus-

te da ferramenta Deve ser considerado ainda o fato de que nesta mesma planta encontra-se

tambeacutem a linha de produccedilatildeo de peccedilas conformadas pela ferramenta o que facilita o acompa-

nhamento pelo pessoal da ferramentaria sobre o ajuste final das ferramentas conhecido como

try-out

16 Segundo FERRARESI (1977) usinagem eacute uma operaccedilatildeo que confere a peccedila formas dimensotildees e acabamento () Esses trecircs itens satildeo obtidos por meio da retirada de material Jaacute a usinagem ldquo2 Drdquo eacute o trabalho que do ponto de vista da linguagem usada dentro da Empresa T corresponde agrave parte da ferramenta que natildeo tem definiraacute as formas e as medidas do produto Uma parte desse trabalho eacute terceirizada 17 Jaacute a usinagem ldquo3 Drdquo eacute exatamente aquela que iraacute gerar o produto tal como ele deve ser Esse processo tam-beacutem eacute chamado de coacutepia

93

Ainda sobre a usinagem eacute importante salientar que a empresa T dispotildee de modernas

maacutequinas operatrizes com tecnologia de ldquoCNCrdquo comandadas a partir de um sofisticado siste-

ma de CADCAMD Um outro recurso tecnoloacutegico de ponta disponiacutevel para a engenharia da

Empresa T eacute um software que simula o trabalho da ferramenta ou seja trata-se de um pro-

grama que mediante as informaccedilotildees da prescriccedilatildeo apresenta as provaacuteveis ocorrecircncias no

trabalho da ferramenta De acordo com a gerecircncia dessa empresa a estrutura tecnoloacutegica da

Empresa T eacute de certa forma uma imposiccedilatildeo posta pelo tipo de trabalho que a empresa execu-

ta e ainda daqueles trabalhos que ela pretende passar a executar Neste sentido por exemplo

a gerecircncia e os trabalhadores do ldquochatildeo de faacutebricardquo por mais de uma vez nos falaram a respei-

to da construccedilatildeo de uma ferramenta para a lateral de um carro a primeira a ser feita no Brasil

Todavia os trabalhadores quando se referiam a essa ferramenta natildeo faziam apologia agrave tecno-

logia das maacutequinas operatizes e agraves vezes pelo contraacuterio enfatizavam outros aspectos Um

ferramenteiro por exemplo fez o seguinte comentaacuterio ldquoAiacute oh Uma ferramenta difiacutecil igual

essa aqui o acabamento tem que ser dado na matildeo eacute na matildeo mesmo Eles falam que a maacutequi-

na vai substituir o homem eu natildeo acredito taacute vendo esse caso aqui a maacutequina eacute uma das me-

lhores e mesmo assim deixa certas marquinhasrdquo

Dos 232 funcionaacuterios da Empresa T cerca de 80 satildeo ferramenteiros classificados pro-

gressivamente como ferramenteiro aprendiz I II e III De acordo com o pessoal do RH a

contrataccedilatildeo de um ferramenteiro do niacutevel II e principalmente do niacutevel III eacute muito difiacutecil po-

dendo demorar meses Essa dificuldade pode ser percebida na fala dos ferramenteiros Veja-

mos o depoimento de um deles ldquoO ferramenteiro III vamos dizer assim eacute um ferramenteiro

que consegue pegar o projeto construir a ferramenta sem grandes problemas sem precisar de

toda hora ficar consultando o seu superior que seria o mestre Ele consegue sozinho tocar

uma ferramentardquo

94

333 A organizaccedilatildeo do trabalho na Empresa T

De uma forma geral como jaacute foi afirmado anteriormente o processo de trabalho de

uma ferramentaria apresenta caracteriacutesticas que favorecem pouco a divisatildeo do trabalho ou

pelo menos a divisatildeo extrema que foi preconizada pelo taylorismo A organizaccedilatildeo do trabalho

na Empresa T reflete essa caracteriacutestica de forma ambiacutegua pois ao mesmo tempo em que a

engenharia projeta uma prescriccedilatildeo do processo de trabalho que integre o ferramenteiro em boa

parte do processo de construccedilatildeo da ferramenta por outro lado ao recorrer agraves maacutequinas sofisti-

cadas essa ferramentaria tal como outras ferramentarias18 passou a retirar formalmente das

matildeos dos ferramenteiros uma parte preciosa da construccedilatildeo mecacircnica a usinagem das peccedilas

agora facilitadas pela introduccedilatildeo das maacutequinas de tipo CNC Essa ldquosaiacutedardquo do ferramenteiro de

parte da construccedilatildeo da ferramenta eacute assimilada com uma certa lamentaccedilatildeo por parte dos fer-

ramenteiros Em uma conversa durante o periacuteodo de observaccedilatildeo nessa empresa um dos fer-

ramenteiros nos disse que ldquoquando a gente trabalha em gatinho a gente se sente ferramenteiro

de verdade laacute a gente faz de tudo pega no torno na retiacutefica acaba que vocecirc usa a sua inteli-

gecircncia toda horardquo19 Um outro depoente faz o seguinte comentaacuterio

Um ferramenteiro completo eacute exatamente aquele que passa por todas as etapas de construccedilatildeo da ferramenta () Antigamente vou dar um exemplo para vocecirc um ferramenteiro fazia de tudo ele ia no torno na frezadora e usinava a peccedila dele ele fazia a montagem e ele ia para debaixo da prensa tirar o produto final Entatildeo esse sim eacute um ferramenteiro completo Hoje pelo volume de serviccedilo e pelo recurso que a gente tem um ferramenteiro natildeo passa por todas as etapas ele tinha que passar mas natildeo passa (Mestre de ferramentaria)

Do ponto de vista formal qual seja da organizaccedilatildeo do trabalho o trabalho prescrito

nessa ferramentaria natildeo eacute menos complexo do que as caracteriacutesticas dessa atividade Todavia

18 O perfil da empresas prestadoras de serviccedilos de ferramentaria In Maacutequinas e Metais ano XXXVII n 424 Aranda Editora maio 2001 19 O termo ldquogatinhardquo eacute um diminutivo do termo ldquogatardquo que na linguagem do peatildeo corresponde agrave empresa Por extensatildeo normalmente os trabalhadores de referem agraves pequenas oficinas como ldquogatinhardquo

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antes de discutirmos a prescriccedilatildeo do trabalho nessa ferramentaria entendemos ser importante

apresentar o conjunto dessa prescriccedilatildeo por meio de uma breve perspectiva do processo de

construccedilatildeo de uma ferramenta

334 A ferramentaria como ela eacute o trabalho prescrito e o trabalho real na

ferramentaria

Ao elegermos a distacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho real como ponto de

partida para discutir os saberes taacutecitos dos ferramenteiros optamos tambeacutem por um recorte

sobre a noccedilatildeo de trabalho prescrito na empresa pesquisada pelo qual desconsideramos uma

fase desse processo onde o cliente aponta para o fabricante as suas exigecircncias e necessidades

em relaccedilatildeo agrave ferramenta encomendada o que poderia caracterizar uma prescriccedilatildeo das

montadoras para a Empresa T Dessa forma a noccedilatildeo de trabalho prescrito explorada nesta

pesquisa apareceraacute fortemente marcada pelas situaccedilotildees que remetem agrave construccedilatildeo material da

ferramenta propriamente dita

1) Usinagem ldquo2 Drdquo

A usinagem ldquo2 Drsquorsquo eacute a primeira grande etapa do processo de construccedilatildeo da ferramenta

na Empresa T cujo principal objetivo eacute retirar a parte bruta da ferramenta ateacute entatildeo apenas

um material fundido e dar-lhe uma medida de relativa precisatildeo que sirva de referecircncia para as

etapas seguintes do processo de construccedilatildeo da ferramenta Nesta fase a principal prescriccedilatildeo eacute

posta pelo desenho mecacircnico no dizer de alguns trabalhadores ou no projeto da ferramenta

como dizem outros Sobre este tipo de trabalho prescrito eacute importante esclarecer que dada a

organizaccedilatildeo do trabalho da Empresa T ela natildeo envolve muito os ferramenteiros pois as

medidas deixadas pela usinagem ldquo2 Drdquo seratildeo alteradas posteriormente Daiacute o principal

96

motivo de natildeo abordamos com profundidade as caracteriacutesticas desta parte do processo de

construccedilatildeo da ferramenta Entretanto na usinagem ldquo2Drdquo o saber taacutecito do trabalhador se faz

necessaacuterio tendo em vista as limitaccedilotildees do trabalho prescrito perante o trabalho real De uma

forma mais contundente e complexa estas limitaccedilotildees estaratildeo presentes nas outras fases de

construccedilatildeo da ferramenta o que gera a necessidade de os trabalhadores realizarem um grande

esforccedilo para compreender o trabalho prescrito adaptar essas prescriccedilotildees agraves condiccedilotildees do

trabalho real e quando for o caso identificar os erros da prescriccedilatildeo Trata-se de situaccedilotildees em

que os operadores das maacutequinas operatrizes frezadores e mandrilhadores buscam usar os seus

saberes taacutecitos para compreender mais rapidamente a prescriccedilatildeo isto eacute o desenho mecacircnico

Os saberes taacutecitos dos operadores de usnagem ldquo2 Drsquorsquo podem ser mobilizados ainda porque

que o trabalho prescrito natildeo considera aspectos como os desgastes das maacutequinas operatrizes e

ferramentas ou mesmo a temperatura ambiente que pode influenciar o comportamento fiacutesico

dos metais tais como a dilataccedilatildeo e o atrito20

2) Leiaute

Apoacutes o trabalho de usinagem ldquo2Drdquo daacute-se iniacutecio o chamado trabalho de leiaute que

basicamente eacute um trabalho de verificaccedilatildeo das medidas trabalhadas pela usinagem ldquo2Drdquo bem

como uma orientaccedilatildeo por meio de marcaccedilotildees21 para os proacuteximos passos de construccedilatildeo da

ferramenta O trabalho de leiaute tem tambeacutem como principal prescriccedilatildeo o desenho ou o

projeto da ferramenta e tal como na usinagem ldquo2 Drdquo solicita dos trabalhadores o uso de

saberes taacutecitos para interpretaacute-lo Neste sentido o trabalho real no leiaute se inscreve por

meio do saber taacutecito dos ferramenteiros dado que a prescriccedilatildeo ainda que correta eacute

dependente da experiecircncia dos ferramenteiros que identificam a localizaccedilatildeo de determinadas

20 A dilataccedilatildeo de um material pode por exemplo dificultar a mediccedilatildeo de uma peccedila principalmente se esta tiver medidas com precisatildeo em centeacutesimos de miliacutemetros Jaacute a relaccedilatildeo entre temperatura ambiente e o atrito pode exercer uma influecircncia no corte dos metais 21 Estas marcas satildeo escritas com pinceacuteis especiais delimitando por exemplo que um furo deve estar a 50 miliacute-metros da lateral direita e agrave 1000 mm do centro da ferramenta

97

medidas que agraves vezes natildeo satildeo indicadas facilmente no desenho Segundo o depoimento de um

ferramenteiro

Um projeto ruim eacute aquele projeto que igual eu te falei que tem duplicidade de coacutepias uma medida numa folha na outra folha tem outra medida projeto que natildeo apresenta muitos detalhes quando eu falo muitos detalhes vocecirc natildeo tem muitas vistas o projetista desenhou aquilo designou uma quantidade de vistas mas quanto mais ele colocar mais facilidade tem o ferramenteiro de enxergar

O projeto da ferramenta ateacute o momento em que os ferramenteiros fazem o leiaute eacute

uma prescriccedilatildeo natildeo mediada pouco interpretada ou quase ldquovirgemrdquo Neste sentido eacute possiacutevel

afirmar que a partir desta fase do processo de trabalho se evidencia mais ainda a importacircncia

do trabalho real e dos saberes taacutecitos na ferramentaria atraveacutes do leiaute feito pelos

ferramenteiros Embora o projeto da ferramenta continue sendo muito importante as medidas

indicadas pelo leiaute passam tambeacutem a orientar a construccedilatildeo da ferramenta Portanto a

partir do leiaute feito pelos ferramenteiros eacute gerada uma prescriccedilatildeo paralela e complementar

ao projeto da ferramenta especialmente para os trabalhos de preacute-montagem e de usinagem

ldquo3Drdquo

3) Preacute-montagem

O trabalho de preacute-montagem eacute a fase de construccedilatildeo da ferramenta onde de fato os

ferramenteiros usam os seus saberes taacutecitos tanto para interpretar a prescriccedilatildeo posta pelo

desenho da ferramenta ou pelo proacuteprio leiaute quanto para fazer materialmente o seu

trabalho ou seja trabalhar com as peccedilas e os equipamentos que constituiratildeo a ferramenta

Logo a partir do trabalho de preacute-montagem a distacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho

real torna-se mais complexa pois aleacutem das possibilidades de equiacutevocos nas interpretaccedilotildees do

que o desenho prescreve e o que de fato eacute feito nesta fase temos ainda um aumento dos

98

imprevistos de ordem material dado pelos meios fiacutesicos com os quais satildeo realizadas as

atividades de preacute-montagem

No caso da preacute-montagem os limites da prescriccedilatildeo perante o trabalho real satildeo postos

pelos meios fiacutesicos da seguinte forma as usinagens apesar do aparato tecnoloacutegico das

maacutequinas natildeo garantem uma precisatildeo do trabalho necessaacuterio em uma ferramenta Daiacute que

apesar do trabalho prescrito indicar atraveacutes do desenho as medidas das peccedilas ou mesmo

alguns instrumentos que podem controlar este trabalho a precisatildeo nos ajustes de centeacutesimos

de miliacutemetros soacute eacute obtida de forma manual pelos ferramenteiros Neste caso eles proacuteprios tecircm

que superar a prescriccedilatildeo do desenho da ferramenta no que se refere agrave natildeo precisatildeo das

maacutequinas e ainda agrave ausecircncia de uma prescriccedilatildeo sobre por exemplo qual pressatildeo exercer

com as matildeos sobre a peccedila que eacute objeto de trabalho ou como usar a visatildeo e o tato para

localizar a parte a ser mais trabalhada e ateacute mesmo como manipular o que foi disponibilizado

pela prescriccedilatildeo para controlar este trabalho como por exemplo as chamadas pastastintas de

estecagem22 Observamos que essa distacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho real na

empresa T aleacutem de ser conhecida pelos ferramenteiros eacute tambeacutem objeto de reflexatildeo sobre o

seu trabalho Um dos depoimentos explicita de forma exemplar essa possibilidade

Um vez aqui aconteceu o seguinte o pessoal laacute da programaccedilatildeo passou para o projeto que o tempo gasto na operaccedilatildeo de estecagem tinha de ser de mais ou menos uma hora Aiacute noacutes chamamos o nosso mestre que concordou com a gente que era pouco tempo e foi reclamar laacute na engenharia Eu soacute lembro que um rapaz laacute um teacutecnico falou que natildeo deveria ser um trabalho muito demorado porque era pouco material para ser retirado toda estecagem normalmente se retira alguns centeacutesimos ou no maacuteximo alguns deacutecimos de miliacutemetro Entatildeo um dos nossos chefes trouxe o rapaz para uma bancada e pediu para ele realizar o trabalho de ldquouma horardquo Esse cara ficou muitos dias e natildeo conseguiu estecar nem uma superfiacutecie Aiacute todos os ferramenteiros falaram o que noacutes demoramos trecircs ou quatro horas e fazemos bem feito natildeo foi feito em cinquumlenta horas (Ferramenteiro)

22 Em relaccedilatildeo a estecagem natildeo encontramos nenhuma definiccedilatildeo formalizada Entre os ferramenteiros a esteca-gem significa um trabalho de ajuste manual onde os ferramenteiros buscam deixar uma superfiacutecie plana com precisatildeo de centeacutesimos de miliacutemetro a qual natildeo eacute viabilizada por meio das maacutequinas mesmo as de CNC

99

4) Usinagem ldquo3 Drdquo

Apoacutes a preacute-montagem o processo de construccedilatildeo da ferramenta se concentra no

trabalho de usinagem de ldquo3drsquorsquo Nesta fase a ferramenta passa a ter as formas e as medidas

proacuteximas agravequelas que devem ter o produto final Embora por uma lado a usinagem dentro da

Empresa T seja de responsabilidade dos operadores das maacutequinas CNC por outro lado o tra-

balho prescrito por natildeo ser totalmente capaz de orientar essa atividade solicita uma parti-

cipaccedilatildeo do saber taacutecito dos ferramenteiros O proacuteprio leiaute realizado pelos ferramenteiros jaacute

citado anteriormente eacute uma referecircncia para a usinagem de ldquo3Drdquo uma vez que por meio do

leiaute estatildeo identificados algumas medidas de difiacutecil interpretaccedilatildeo dentro do desenho A

inserccedilatildeo de saberes taacutecitos dos ferramenteiros nesta fase menos do que sinalizar um natildeo saber

dos operadores CNC expressa a dimensatildeo do trabalho real na ferramentaria O ferramenteiro

por conhecer todo o processo de construccedilatildeo e funcionamento da ferramenta consegue abstrair

a prescriccedilatildeo neste caso o desenho com mais rapidez e ainda identificar a relaccedilatildeo da parte

usinada com o produto que seraacute produzido pela ferramenta

Dessa forma um dos limites da prescriccedilatildeo estaacute intriacutenseco agrave proacutepria formalizaccedilatildeo do

desenho pois se o trabalho de usinagem de ldquo3Drdquo desenvolve-se sobre uma ferramenta em seu

conjunto portanto portadora de vaacuterias peccedilas o desenho natildeo poderia apresentar uma ou outra

parte isolada de toda a ferramenta A usinagem ldquo3 Drdquo revela que os limites do trabalho

prescrito podem ser dados pela sua proacutepria forma qual seja um desenho sempre incompleto

onde se aponta como teoricamente deve ser construiacuteda a ferramenta Jaacute o ferramenteiro

conhecedor que eacute do trabalho real pode abstrair das partes para o todo ou do todo para as

partes do passado para o presente ou do presente para o futuro Enfim o ferramenteiro a

partir de sua experiecircncia consegue ver uma ferramenta aleacutem da que estaacute explicitada no

desenho

100

e) Acabamento

Apoacutes a usinagem ldquo3Drdquo a ferramenta retorna paras as bancadas da ferramentaria para

ser iniciado o trabalho de acabamento Nesta fase os ferramenteiros a partir do que natildeo foi

possiacutevel fazer na usinagem ldquo3 Drsquorsquo buscam definir as medidas as formas e o acabamento mais

proacuteximos do produto final Nesta parte do processo de trabalho o trabalho prescrito pode ser

tomado pelo desenho e ainda pela indicaccedilatildeo de quais pedras e lixas devem ser usadas para

obter o grau de acabamento desejado Todavia no trabalho real o acabamento solicita alguns

saberes que escapam agraves prescriccedilotildees da Empresa T Em nossa investigaccedilatildeo pudemos constatar

que a distacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho real na fase de acabamento guarda

inicialmente uma relaccedilatildeo com os limites teacutecnicos das maacutequinas CNC uma vez que apesar de

serem maacutequinas extremamente sofisticadas no trabalho de ferramentaria elas natildeo capazes de

produzir todas as medidas e os acabamentos prescritos pelo desenho Aleacutem do proacuteprio

desgaste que eacute caracteriacutestico em qualquer maquinaria as peccedilas que compotildeem uma

ferramenta normalmente possuem uma geometria complexa onde satildeo combinados por

exemplo vaacuterias curvaturas e inclinaccedilotildees Por outro lado a identificaccedilatildeo e o controle sobre do

acabamento dessas formas geomeacutetricas natildeo contam com o apoio do trabalho prescrito no

sentido de se indicar como usar o tato ou a visatildeo bem como natildeo haacute no trabalho prescrito uma

indicaccedilatildeo que relacione a pressatildeo manual exercida com a lixa ou com a pedra sobre uma

determinada peccedila e a quantidade de material que estaacute saindo e o grau de acabamento que estaacute

sendo obtido E ainda em funccedilatildeo da complexidade posta pelas formas geomeacutetricas um

gabarito usado em uma ferramenta nunca serve para se usar em outra porque uma ferramenta

nunca tem as mesmas medidas e formas daiacute que haacute pouca prescriccedilatildeo no que se refere ao uso

de gabaritos

101

f) Montagem do funcional da ferramenta

Apoacutes o trabalho de acabamento inicia-se a montagem do funcional da ferramenta

Nesta fase vaacuterias peccedilas ateacute entatildeo separadas passam a ganhar um aspecto de conjunto cujo

maior objetivo eacute colocar a ferramenta em condiccedilotildees de produzir Constatamos que a partir

desta fase do processo de trabalho os ferramenteiros passam a se preocupar mais com o

funcionamento por completo de toda a ferramenta De acordo com o depoimento de um deles

ldquoO ferramenteiro tem que enxergar tudo que compotildee a ferramenta porque vai facilitar neacute

facilita no tempo facilita numa montagem vocecirc jaacute tem o ferramental na mente vocecirc consegue

adiantar neacute antecipar muitas coisas no seu trabalhordquo

Em que pese o uso do desenho pelos ferramenteiros na montagem do funcional da

ferramenta o trabalho prescrito na empresa T por meio do proacuteprio desenho reconhece certas

imposiccedilotildees do trabalho real Dessa forma haacute no trabalho prescrito espaccedilo para os

trabalhadores agirem sobre vaacuterios pontos que satildeo enriquecidos pelo trabalho real Podemos

encontrar no projeto da ferramenta elementos como ldquodefinir furos na ferramentariardquo como

citam alguns desenhos Para alguns ferramenteiros essa ocorrecircncia indica que em um

determinado momento da construccedilatildeo da ferramenta a prescriccedilatildeo quase desaparece

Eacute eu te falo o seguinte vocecirc trabalha com o projeto ateacute um certo ponto na mon-tagem na primeira montagem ateacute ela ir para a coacutepia Depois que a ferramenta vol-ta da coacutepia o projeto jaacute nem conta tanto mais assim Tanto eacute que a linha de corte nunca eacute a primeira ela sempre tem modificaccedilatildeo ela sempre tem correccedilatildeo Por quecirc Porque a linha de corte eacute desenvolvida ela eacute uma matemaacutetica e ela natildeo bate por exemplo quando eacute feito as conferecircncias de uma aba Entatildeo aqui natildeo bate tem que fazer uma correccedilatildeo entatildeo por ele ser teoacuterico nunca bate geralmente eacute na praacutetica Na realidade o projeto numa hora dessa jaacute natildeo existe mais aiacute eacute soacute para como diz liberar o produto Entatildeo pode ser colocada uma solda naquele ponto que foi medido e detectado que a aba estaacute menor (Ferramenteiro)

O que se chama de funcional da ferramenta eacute na verdade um funcionamento improdu-

tivo isso porque a ferramenta se movimenta sem produzir peccedilas Isso porque o principal obje-

tivo desta fase de trabalho eacute garantir que os componentes da ferramenta possam ser movimen-

102

tados sem problema Neste sentido o trabalho prescrito se natildeo bastassem as possibilidades de

conter erros o trabalho prescrito tambeacutem natildeo aponta como considerar uma seacuterie de elemen-

tos presentes no trabalho real tais como o comportamento fiacutesico das chapas metaacutelicas no

momento em que seratildeo conformadas ou cortadas ou mesmo os desgastes dos componentes

mecacircnicos das prensas que podem influenciar na forccedila na pressatildeo ou no alinhamento deste

equipamento

g) Try-out

No trabalho de try-out a ferramenta que estaacute basicamente montada eacute instalada em

uma prensa e submetida a circunstacircncias proacuteximas do trabalho real qual seja da linha de pro-

duccedilatildeo Nesta fase o trabalho prescrito pela gerecircncia pode aparecer em indicaccedilotildees de laudos

obtidos a partir de sofisticadas maacutequinas que controlam as medidas das peccedilas prensadas En-

tretanto esse laudo natildeo garante ao trabalho prescrito um domiacutenio sobre o processo de trabalho

do try-out dado que esse processo proacuteximo que eacute do trabalho real guarda problemas que soacute

os saberes taacutecitos dos ferramenteiros podem solucionar Essa questatildeo incomoda tanto a gerecircn-

cia da Empresa T que eles fizeram um alto investimento na compra de um software que a par-

tir de dados do projeto da ferramenta simula o que ocorre no Try-out sem no entanto gerar

um projeto que prescinda dos saberes taacutecitos dos ferramenteiros

Segundo alguns depoimentos dos ferramenteiros eacute muito difiacutecil de se prescrever com

precisatildeo as situaccedilotildees que possam ocorrer no try-out uma vez que satildeo muitos os fenocircmenos

que envolvem o funcionamento real de ferramenta principalmente os casos ligados ao com-

portamento fiacutesico das chapas de accedilo tal como o retorno de chapa Foi possiacutevel observar pelas

frequumlentes citaccedilotildees dos ferramenteiros que esses fenocircmenos por serem de difiacutecil formaliza-

ccedilatildeo inclusive pelo conhecimento cientiacutefico fazem com que um know how adquirido na cons-

truccedilatildeo de uma ferramenta seja apenas relativo na construccedilatildeo de uma outra ferramenta O fe-

103

nocircmeno de retorno de chapa ou spring-back expressa bem essa possibilidade Trata-se de um

determinado comportamento fiacutesico da chapa onde ela deveria ter por exemplo de acordo

com a ferramenta um acircngulo de 90ordm e ao ser prensada ela pode ficar com 89ordm Em um dos

depoimentos que coletamos o retorno de chapa foi analisado da seguinte forma

O retorno de chapa eu acho que eacute o pior com certeza eacute um dos piores inimigos do ferramenteiro Natildeo tem caacutelculo um caacutelculo especificadamente para isso porque A chapa a estrutura de uma chapa hoje qualquer outro material ela tem porcenta-gem de carbono cromo ou niacutequel ela varia Nesta variaccedilatildeo nenhuma chapa vai ser exatamente igual a outra tanto eacute que noacutes temos uma ferramenta que estaacute laacute em produccedilatildeo haacute dois anos um fardo de chapa hoje exatamente especificado como se pede o cliente ela vai bater daqui a uma semana vem outro fardo e ela daacute uma rea-ccedilatildeo diferente o porque disso porque a composiccedilatildeo que a chapa tem varia o que eacute essa variaccedilatildeo Eacute a porcentagem de niacutequel cromo de ferro que a chapa tem e isso ocasiona muito o retorno de chapa O que eacute esse retorno de chapa eacute o que noacutes chamamos de sprig-back eacute exatamente a resistecircncia que a chapa tem em confor-mar a figura a figura que foi matematizada entatildeo ela resiste mais a esta situaccedilatildeo ela daacute o retorno ela volta e realmente soacute na praacutetica a gente consegue tirar isso fa-zendo exatamente o try-out (Ferramenteiro)

A dimensatildeo que o trabalho real assume na ferramentaria evidencia-se de tal forma a

partir do try-out que os ferramenteiros protagonistas deste processo prescrevem de forma

quase independente do projeto da ferramenta o que deve ser feito de significativo nas

proacuteximas fases do processo de construccedilatildeo da ferramenta quando ela retornar para as bancadas

da ferramentaria O try-out figura na ferramentaria como um laboratoacuterio por excelecircncia De

acordo com o depoimento de um ferramenteiro ldquoo try-out nada mais eacute do que o teste para

vocecirc tirar uma ferramenta uma chapa boa um produto que o cliente agrada dele entatildeo eacute soacute

mediante debaixo de prensa nada mais natildeo tem jeito e soacute assim para vocecirc ver a reaccedilatildeo da

chapardquo Um outro ferramenteiro ironizou o try-out da seguinte forma ldquoBom o try-out como

dizia um chefe que tinha aqui eacute a junccedilatildeo de vaacuterios erros ateacute chegar ao produto final quais satildeo

esses erros O projetista o ferramenteiro na construccedilatildeo o programador que natildeo soube abrir

os raios necessaacuteriosrdquo

104

h) Ajuste final da ferramenta

Apoacutes passar pelo try-out a ferramenta fica sob um trabalho de ajuste final cuja prin-

cipal prescriccedilatildeo eacute dada pelas indicaccedilotildees do try-out Nesta fase do processo de construccedilatildeo a

prescriccedilatildeo inicial soacute prevalece para se referir agrave cor que seraacute pintada a ferramenta Natildeo obstan-

te a finalizaccedilatildeo da construccedilatildeo de uma ferramenta que pode durar de cinco a oito meses gera

um acervo de documentos que se torna o chamado ldquohistoacuterico da ferramentardquo suficiente para

gerar um material de consulta o que pode ateacute subsidiar a construccedilatildeo de um know-how Entre-

tanto pelas observaccedilotildees feitas na empresa T uma simples mudanccedila do que se prescreve como

produto na ferramentaria gera novos fenocircmenos Assim por exemplo a produccedilatildeo da porta de

um automoacutevel por ter ou deixar de ter um friso muda o comportamento da chapa na hora da

prensagem o que torna o trabalho real neste setor da mecacircnica um espaccedilo de afirmaccedilatildeo de

saberes para os seus principais protagonistas os ferramenteiros

Neste capiacutetulo procuramos ao apresentar as fases de construccedilatildeo da ferramenta evi-

denciar as lacunas do trabalho prescrito perante as demandas do trabalho real na Empresa T Eacute

mister apresentar como os ferramenteiros da Empresa T buscam superar essa limitaccedilatildeo do

trabalho prescrito Eacute o que buscaremos fazer a partir do proacuteximo capiacutetulo onde analisaremos

os dados coletados em nossa pesquisa de campo

105

4 O TRABALHO REAL NA FERRAMENTARIA A HORA E A VEZ DOS

SABERES TAacuteCITOS DOS FERRAMENTEIROS

Marinheiro que natildeo sabe para onde vai tem medo do vento jaacute ouviu falar isso Pois eacute quem natildeo conhece como a ferramenta funciona soacute monta as peccedilas o ferra-menteiro natildeo ele monta mas ele usa a sua compreensatildeo se o projeto estiver ruim ele consegue fazer a ferramenta se a prensa estiver desgastada ele daacute um jeito eacute is-so aiacute

Neste capiacutetulo buscaremos fazer uma anaacutelise dos elementos coletados em nossa pes-

quisa de campo realccedilando as estrateacutegias que os ferramenteiros usam para produzir mobilizar

e formalizar os seus saberes taacutecitos

Como jaacute dissemos anteriormente os estudos oriundos do campo da ergonomia afir-

mam que o andamento de um determinado processo produtivo eacute caracterizado dentre outras

coisas por uma distacircncia entre o que eacute planejado e formalizado pela gerecircncia da empresa o

chamado trabalho prescrito e o que de fato ocorre no chatildeo de faacutebrica para que essa produccedilatildeo

seja realizada O que diz respeito ao andamento do processo produtivo e que natildeo pertence ao

domiacutenio da prescriccedilatildeo eacute chamado de trabalho real (LIMA 1998 DANIELLOU 1989) Dian-

te da insuficiecircncia do trabalho prescrito em dominar o trabalho real o andamento do processo

produtivo eacute garantido pela intervenccedilatildeo dos trabalhadores do chatildeo de faacutebrica principais prota-

gonistas do trabalho real que complementam ou superam as limitaccedilotildees do trabalho prescrito

(ARANHA 1997 SANTOS 1997)

Neste sentido para nos aproximarmos melhor dos elementos que tomamos como sen-

do os saberes taacutecitos presentes na ferramentaria entendemos que eacute necessaacuterio dividir em toacutepi-

cos as estrateacutegias que os ferramenteiros usam para produzir mobilizar e formalizar os seus

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saberes taacutecitos Sendo assim cada uma delas seraacute discutida em toacutepicos diferentes Entretanto

eacute importante salientar que essa divisatildeo por toacutepicos natildeo significa que as estrateacutegias satildeo usadas

pelos ferramenteiros de forma independente umas das outras A nossa opccedilatildeo em estruturar a

anaacutelise dos dados dessa forma justifica-se pelo nosso interesse em tornar mais claros os ele-

mentos que encontramos em nosso campo de pesquisa sobretudo pela complexidade do traba-

lho de ferramentaria De certa forma essa opccedilatildeo de apresentar as estrateacutegias separadamente

tem um deacutebito com o cuidado que os ferramenteiros manifestaram conosco Em um dos pri-

meiros contatos que tivemos com os ferramenteiros um deles nos disse o seguinte ldquoVou te

explicar tim-tim por tim-tim mas se vocecirc natildeo souber por que eu faccedilo por que a gente tem que

improvisar vocecirc natildeo vai entender como eu faccedilordquo

Todavia tanto em nossas observaccedilotildees quanto nas entrevistas nos deparamos com si-

tuaccedilotildees em que as estrateacutegias criadas pelos ferramenteiros para produzir mobilizar e formali-

zar os seus saberes taacutecitos apareceram de forma integrada em que pese ter sido possiacutevel en-

contrar em uma mesma situaccedilatildeo de trabalho o uso destacado de uma dessas estrateacutegias Em

todo caso as estrateacutegias que os ferramenteiros criam para produzir os seus saberes taacutecitos nos

parecem antes de tudo influir e ser influenciadas pelas estrateacutegias que eles criam para mobi-

lizar e formalizar os seus saberes taacutecitos

41 AS ESTRATEacuteGIAS DOS FERRAMENTEIROS PARA PRODUZIR OS SEUS SABERES TAacuteCITOS

Conforme jaacute explicamos no primeiro capiacutetulo estamos considerando como estrateacutegias

de produccedilatildeo de saberes taacutecitos os caminhos natildeo previstos de trabalho que os ferramenteiros

desenvolvem para pocircr em uso saberes de natureza diversa em especial os saberes taacutecitos

Muito embora tiveacutessemos constatado que a Empresa T mobiliza vaacuterios recursos materiais e

humanos para o seu trabalho prescrito em nossa pesquisa de campo foi possiacutevel verificar que

107

os ferramenteiros descobrem e inventam formas de realizar o seu trabalho portanto produzem

saberes diferentes daqueles indicados pela prescriccedilatildeo Ademais os proacuteprios ferramenteiros

em seus depoimentos frequumlentemente nos disseram que o trabalho na ferramentaria sempre os

leva a ldquocriar uma forma especiacutefica de fazer as coisasrdquo como dizem uns ou a ldquobolar um certo

jeito de produzir saberesrdquo no dizer de outros Daiacute que tomamos esse ldquocerto jeito de fazer coi-

sas ou produzir saberesrdquo como estrateacutegias que os ferramenteiros criam para produzir os seus

saberes taacutecitos Identificamos as seguintes estrateacutegias de produccedilatildeo de saberes taacutecitos usadas

pelos ferramenteiros ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo ldquover o todordquo ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo e ldquome-

lhor jeito para trabalharrdquo

Se de um lado muitos autores afirmam que o trabalho eacute caracterizado por um princiacute-

pio educativo1 por outro podemos afirmar com base em nossas observaccedilotildees de campo que

as caracteriacutesticas da ferramentaria potencializam esse princiacutepio Um depoimento que obtive-

mos evidencia bem essa questatildeo

O que a gente aprende no curso de ferramentaria eacute apenas uma base para vocecirc fazer a sua inicializaccedilatildeo porque na verdade o ferramenteiro nunca se forma cada dia que se passa eacute uma escola cada dia que vocecirc vai trabalhando como ferramenteiro vai aprendendo coisas novas Uma ferramenta sempre eacute diferente vocecirc nunca que faz uma ferramenta igual agrave outra tambeacutem porque nunca se monta um carro igual ao outro Entatildeo sempre quando vocecirc lanccedila carros diferentes as ferramentas satildeo feitas diferentes vocecirc nunca repete a mesma coisa e eacute essa diversidade de ferra-mentas que faz com que seu aprendizado cada vez se diferencie mais se aprende a ter um maior jogo justamente pela diversidade do seu trabalho (Ferramenteiro)

Apresentaremos as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros para produzir os seus sabe-

res taacutecitos organizando a nossa discussatildeo respectivamente a partir dos seguintes toacutepicos

ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo ldquover o todordquo ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo e ldquomelhor jeito para traba-

lharrdquo

1 Haacute uma vasta literatura no conjunto de estudos sobre trabalho e educaccedilatildeo que se debruccedila sobre esta temaacutetica sobretudo a partir das contribuiccedilotildees de MARX e GRAMSCI

108

a) ldquoFiltragem de informaccedilotildeesrdquo

Se a literatura que discute a presenccedila de saberes no processo de trabalho a qual jaacute a-

presentamos aponta que o saber taacutecito se inscreve a partir de situaccedilotildees postas pelo trabalho

real o que de fato verificamos por outro lado em nossa pesquisa de campo foi que antes

mesmo de as demandas especiacuteficas do trabalho real se apresentarem para os ferramenteiros

eles buscam criar antecipadamente suas proacuteprias estrateacutegias para produzir saberes taacutecitos pa-

ra melhor compreender o trabalho prescrito essencialmente o desenho da ferramenta Todos

os ferramenteiros com1 que travamos contato natildeo hesitaram em dizer que o desenho de uma

ferramenta guarda um alto niacutevel de complexidade o que faz com que eles tenham que criar

saberes taacutecitos para interpretaacute-lo ainda que este desenho por se tratar de uma linguagem for-

malizada por meio de normas internacionais possa ser ensinado na escola formal Constata-

mos ainda em nossas observaccedilotildees que a interpretaccedilatildeo do desenho eacute mais tranquumlila para os

ferramenteiros mais experientes Alguns depoimentos explicitam de forma clara o ponto de

vista dos ferramenteiros sobre a necessidade de se usar os saberes taacutecitos na interpretaccedilatildeo do

desenho de uma ferramenta como forma de enfrentar a complexidade como jaacute foi dito deste

tipo de prescriccedilatildeo Vejamos

Bom na realidade esta questatildeo de projeto eacute meio complicada pelo seguinte quando a gente estuda no Senai vocecirc vecirc vocecirc lecirc desenhos e desenhos que agraves vezes eacute dese-nho de uma folha A4 no maacuteximo uma folha A3 Quando vocecirc chega na empresa do porte satildeo ferramentas grandes de ateacute 4 metros de comprimento e 20 toneladas Entatildeo vocecirc se depara agraves vezes vocecirc viu no Senai o desenho ficava numa folha A3 o desenho todo numa ferramentinha sua numa peccedila sua Quando vocecirc chega na empresa uma folha de desenho ela daacute 2 metros por um metro de altura entatildeo vocecirc natildeo consegue ver nada quando vocecirc sai do Senai vocecirc natildeo consegue ver pratica-mente nada do desenho Com o tempo vocecirc vai aprendendo a ler o desenho A ver-dade eacute o seguinte vocecirc aprende a ler desenho laacute dentro porque o Senai natildeo te daacute base nisso Pelo tipo de desenho que a gente trabalha (Ferramenteiro)

A possibilidade de que os ferramenteiros por meio de sua experiecircncia profissional

criem estrateacutegias para enfrentar a complexidade do desenho pode ser percebida em um outro

109

depoimento que demonstra inclusive uma compreensatildeo sobre o que torna difiacutecil a leitura

desse desenho

Um desenho de ferramenta ou de qualquer outra construccedilatildeo mecacircnica na matildeo de um profissional no Japatildeo na matildeo de um profissional no Brasil seraacute um desenho porque existe uma linguagem universal Entatildeo essa linguagem universal vocecirc a-prende no campo da teoria estudando o desenho mesmo dentro da escola Agora existe um viver praacutetico onde o lidar com determinadas peccedilas eacute muito importante a experiecircncia do dia-a-dia porque agraves vezes o projetista ele tem que ver muitas coisas e o nosso desenho tem um agravante muito grave que ele natildeo tem detalhes Todos os elementos da ferramentaria estatildeo desenhados num soacute desenho entatildeo a pessoa precisa enxergar todos os elementos naquele desenho de conjunto com muitas li-nhas Se vocecirc me perguntar sobre a experiecircncia eacute importante Eacute claro ueacute (Mestre de ferramentaria)

Eacute para superar a complexidade do desenho da ferramenta que os ferramenteiros aca-

bam por desenvolver estrateacutegias para produzir os saberes taacutecitos Um dos aspectos mais recor-

rentes nas falas dos nossos entrevistados daacute conta de que a dificuldade em interpretar dese-

nhos como os que satildeo usados na Empresa T refere-se ao grande nuacutemero de componentes e

por conseguinte tambeacutem agrave grande quantidade de linhas e medidas que constituem esse tipo de

prescriccedilatildeo ou como eles dizem ldquoEacute um desenho muito cheio de coisasrdquo Segundo um dos fer-

ramenteiros ldquoEacute impossiacutevel enxergar o desenho de uma vezada soacute o ferramenteiro mais espe-

cializado do mundo ele natildeo consegue enxergar de imediato tudo que o ferramental vai fazerrdquo

Em relaccedilatildeo a essa dificuldade em se compreender o trabalho prescrito sobressaem algumas

estrateacutegias desenvolvidas pelos ferramenteiros para produzir seus saberes taacutecitos como ex-

pressam alguns depoimentos

Primeiramente o ferramenteiro deve ter paciecircncia porque desenho vocecirc natildeo con-segue interpretar da primeira vez que vocecirc vecirc A cada vez que vocecirc olha vocecirc taacute identificando uma coisa nova entatildeo leva-se um tempo pra vocecirc falar assim eu tocirc sabendo tudo uma porcentagem bem grande deste desenho pra mim taacute comeccedilando a executar esse trabalho Isso pode levar uma hora duas dois dias ou ateacute mais de-pende da complexidade deste desenho e essa evoluccedilatildeo realmente vem vindo grada-tivo conhecendo pedaccedilos eacute pedaccedilos separados deste desenho Eu natildeo conseguia ver abrir o projeto e ver aquela imensidatildeo de componentes que se situam dentro deste projeto entatildeo eu fui comeccedilando por partes fui comeccedilando por legenda as coisas mais simples primeiro pra depois entrar realmente no interior da ferramen-ta realmente ver o que estaacute querendo expressar aquele monte de linha aquele de-senho pra mim (Ferramenteiro grifo nosso)

110

Outros ferramenteiros tambeacutem fizeram referecircncia agrave necessidade de se buscar uma es-

trateacutegia que lhes permitam como foi colocado pela fala anterior amenizar a confusatildeo propor-

cionada pelo grande nuacutemero de informaccedilotildees contidas no desenho Em alguns casos as falas

dos ferramenteiros notoriamente dos mais experientes apontam que a experiecircncia lhes permi-

te usar ldquomacetesrdquo para retirar do imenso repertoacuterio de informaccedilotildees posta pelo desenho aqueles

dados necessaacuterios para a realizaccedilatildeo do seu trabalho Vejamos como um dos ferramenteiros re-

latou a sua experiecircncia nessa situaccedilatildeo

Vocecirc nunca deve abrir o desenho todo A experiecircncia ajuda e muito Porque vamos assim analisar vocecirc inicia sua etapa entatildeo geralmente vocecirc jaacute sabe a linha que eacute da coluna Vocecirc consegue neacute cair direto em cima daqueles elementos que cecirc jaacute taacute traba-lhando no momento Entatildeo por exemplo vocecirc vai usar o alojamento tal vocecirc jaacute sabe bucha que taacute ali e desse jeito vocecirc consegue eliminar o que vocecirc natildeo precisa saber Entatildeo eacute mais faacutecil se vocecirc jaacute sabe vocecirc abre sua planta vocecirc observa e passa a ver o corte tal e aiacute cecirc jaacute vai direto em cima do corte C (Ferramenteiro)

Pudemos observar que as formas usadas pelos ferramenteiros para selecionar alguns

elementos fornecidos pelo desenho podem ser remetidas a uma tentativa por parte deles de

criar estrateacutegias de ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo Tomamos por ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo a

tentativa dos ferramenteiros de selecionar alguns dados de dentro do enorme repertoacuterio de in-

formaccedilotildees guardadas pela prescriccedilatildeo do desenho e pela proacutepria ferramenta Sobre essa possi-

bilidade de os ferramenteiros ldquofiltrarem informaccedilotildeesrdquo para facilitar a interpretaccedilatildeo do dese-

nho um dos nossos entrevistados nos disse que coloria com caneta hidrocor as linhas do de-

senho agrave medida que conseguia associar essas linhas com as peccedilas que compotildeem a ferramenta

Quando eu comecei a mexer com Autocad2 e quando se trabalha em Autocad se trabalha com vaacuterios leires os leires satildeo as cores das linhas cores de tamanho e es-pessura da linha Isso te ajuda a ver se aquela linha eacute uma linha de cota se aquela linha eacute uma linha do accedilo se aquela linha eacute uma linha invisiacutevel se aquela linha eacute uma linha de produto Entatildeo vocecirc vecirc isto em vaacuterios leires azul vermelho amarelo Soacute que quando vocecirc pega o desenho no papel todas as linhas satildeo pretas e por isso eacute difiacutecil distinguir as linhas Com base no Autocad eu passei a colorir os desenhos no papel e ficou mais faacutecil para interpretar as linhas (ferramenteiro)

2 Segundo FARIA (1992 p 13) CAD eacute Computer Aided Design ou desenho auxiliado por computador

111

Dessa forma tanto a complexidade de linguagem do trabalho prescrito essencialmente

o desenho quanto a sua distacircncia em relaccedilatildeo ao processo de trabalho real na empresa T levam

os ferramenteiros a construiacuterem estrateacutegias que chamamos de ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo pa-

ra produzir saberes taacutecitos Todavia se por um lado esses depoimentos demonstram que uma

atividade de trabalho complexa como a ferramentaria solicita dos ferramenteiros uma com-

preensatildeo do que eacute apontado pelo desenho portanto valorizando o trabalho prescrito por outro

lado essa busca dos ferramenteiros em compreender a prescriccedilatildeo talvez possa ser um indica-

tivo do cuidado que eles tecircm com o que de fato acontece no trabalho real

Aleacutem das estrateacutegias criadas antes mesmo de o trabalho prescrito se mostrar insufici-

ente para garantir o andamento do processo de trabalho na empresa T as nossas observaccedilotildees e

entrevistas nos permitiram identificar outras estrateacutegias que os ferramenteiros criam para pro-

duzir saberes taacutecitos como uma resposta ao trabalho prescrito que natildeo consegue dar conta de

situaccedilotildees marcadas pelo imprevisto ou por variaacuteveis ateacute previsiacuteveis mas de difiacutecil mensura-

ccedilatildeo como os desgastes das maacutequinas ou o comportamento fiacutesico das chapas de accedilo Ainda

que na empresa T como constatamos se usem sofisticadas tecnologias de CADCAMCNC3

ou de um simulador de estampagem4 o maacuteximo que se consegue eacute uma aproximaccedilatildeo com o

indicado pela prescriccedilatildeo Seguindo esta trilha pudemos observar que no trabalho real da fer-

ramentaria pesquisada a intervenccedilatildeo dos ferramenteiros eacute mediada por outras estrateacutegias de

produccedilatildeo de saberes taacutecitos

b) ldquoVer o todordquo

Se de um lado foi possiacutevel observar que em um primeiro momento do processo de

trabalho os ferramenteiros lanccedilam matildeo de estrateacutegias de ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo para os

auxiliarem na compreensatildeo do trabalho prescrito por outro lado no trabalho real de constru-

3 Este tipo de tecnologia eacute respectivamente Computer Aided Design ou Desenho Auxiliado por Computador Computer Aided Manufacturing ou Manufatura Auxiliada por Computador Controle Numeacuterico Computadoriza-do (FARIA 1992 p 13) 4 Embora natildeo tenhamos conhecido este software tomamos ciecircncia do seu uso pela engenharia Trata-se de um programa que busca apontar o possiacutevel comportamento da chapa de accedilo durante a sua transformaccedilatildeo em produto

112

ccedilatildeo da ferramenta as estrateacutegias criadas apontam para uma certa inversatildeo da estrateacutegia ante-

rior em vez de fazer uma filtragem busca-se uma associaccedilatildeo de informaccedilotildees Os ferramentei-

ros buscam criar estrateacutegias que lhes permitam integrar as partes da ferramenta em um ldquotodordquo

ou seja ir do domiacutenio das particularidades para o domiacutenio da ferramenta como um ldquotodordquo ateacute

porque como jaacute dissemos uma ferramenta eacute um conjunto de peccedilas Os ferramenteiros criam

estrateacutegias para ldquover o todordquo Chamamos de estrateacutegias de ldquover o todordquo o esforccedilo dos ferra-

menteiros para ultrapassar os limites impostos pela fragmentaccedilatildeo do conhecimento formaliza-

do no trabalho prescrito Em vaacuterios depoimentos eles indicam que uma compreensatildeo do ldquoto-

dordquo em relaccedilatildeo agrave ferramenta eacute importante para poder dar conta do trabalho real o que tem a-

inda a propriedade de fazer entender tambeacutem as particularidades da ferramenta Ao ser inda-

gado sobre a importacircncia de se ter uma visatildeo da ferramenta em seu conjunto um deles nos re-

latou o seguinte

Quando vocecirc comeccedila a montar a ferramenta sem ter essa noccedilatildeo neacute de enxergar a ferramenta trabalhando quando vocecirc comeccedila a montar a ferramenta vocecirc vai sim-plesmente montando evidenciando o que o projeto vai te mostrando vocecirc vai montando vai montando soacute que vocecirc vai montando peccedilas vai montando itens sem observar que este item que vocecirc taacute montando quando ele trabalhar quando ti-ver numa prensa trabalhando a ferramenta funcionando vocecirc pode estar simples-mente montando itens Vocecirc monta itens quando chega no final da ferramenta vo-cecirc tem todos os itens montados da ferramenta e aiacute sua ferramenta natildeo funciona (Ferramenteiro)

De uma forma geral quase todos os ferramenteiros na medida em que faziam suas

exposiccedilotildees sobre a importacircncia de se ldquover toda a ferramentardquo expressavam tambeacutem uma criacute-

tica ao trabalho prescrito que segundo eles eacute portador de visatildeo fragmentada da construccedilatildeo da

ferramenta No depoimento abaixo o ferramenteiro fala da fragmentaccedilatildeo no trabalho do pro-

jetista

Eacute noacutes temos caso neacute na nossa proacutepria empresa de que acontecem erros de deta-lhamento Quando a pessoa (o projetista) pega o desenho todo e retira soacute um item para desenhar aquele item entatildeo a pessoa tem essa dificuldade Porque a pessoa natildeo sabe a pessoa taacute vendo o desenho a pessoa vecirc o desenho em 3D agraves vezes mas a pessoa natildeo sabe como aquilo funciona ela natildeo tem vivecircncia ela natildeo vecirc como

113

aquela peccedila chega em bruto eacute montada eacute parafusada eacute copiada eacute temperada e chega na sua forma final para ser enviada Entatildeo a pessoa natildeo tem essa noccedilatildeo ela sabe que aquilo eacute um accedilo e desenha aquele accedilo Eacute o que ela sabe essa eacute a diferenccedila do desenhista (Ferramenteiro)

Em um outro depoimento um dos entrevistados ao fazer uma criacutetica ao trabalho pres-

crito apresenta elementos ainda mais contundente quanto agrave fragmentaccedilatildeo

O projetista enxerga o que estaacute fazendo dentro de uma tela de no maacuteximo 20 pole-gadas que eacute no Autocad e noacutes vemos no fiacutesico Entatildeo ele tem que imaginar um sem-fim de coisas mas ele natildeo apalpa nenhuma delas entatildeo eacute muito difiacutecil para um projetista acertar tudo A primeira coisa eacute essa Enquanto noacutes temos os outros sentidos que estatildeo a nosso favor que eacute a audiccedilatildeo o tato a visatildeo noacutes estamos vendo a peccedila noacutes estamos tateando as peccedilas e na hora que vamos manusear noacutes estamos ouvindo o barulho que a peccedila faz Ele natildeo tem nenhum desses amigos ao seu lado soacute tem soacute a visatildeo e a experiecircncia Entatildeo o que ocorre Dentre aquele sem-fim de linhas que ele taacute vendo dentro do CAD dentro da sua estaccedilatildeo de CAD por mais que ele vislumbre nunca traz a medida real eles projetam uma lateral de 5 metros dentro de uma tela de 20 polegadas (Ferramenteiro)

A partir das nossas observaccedilotildees bem como das entrevistas que realizamos eacute possiacutevel

considerar que a distacircncia de escala entre o desenho que eacute usado pelo ferramenteiro e o dese-

nho que eacute usado pelo projetista se constitua como um fator que explica por que as estrateacutegias

de produccedilatildeo de saberes taacutecitos satildeo necessaacuterias no trabalho real O que testemunha tambeacutem a

existecircncia de uma lacuna no trabalho prescrito A nosso ver essa possibilidade eacute corroborada

por algumas falas

Por mais que o projetista tente imaginar puxa vida a tela do computador eacute 40 ve-zes menor do que a ferramenta Entatildeo soacute se o cara tiver um diminutivo um proje-tor de perfil soacute que inverso na sua mente Segundo a grande maioria dos projetis-tas da atualidade natildeo foram ferramenteiros eles natildeo tiveram a base praacutetica eles ti-veram soacute a base teoacuterica entatildeo eles nunca entraram de baixo de uma prensa para ver a dificuldade que eacute estampar que eacute obter um produto Ele coloca tabelas de tole-racircncias5 mas ele na verdade nunca travou uma coluna para ver se realmente aque-la pressatildeo eacute o essencial Ele entatildeo comeccedila a trabalhar com normas que outras pes-soas fizeram mas que ele mesmo natildeo experimentou e durante o processo essa difi-culdade uma hora vai aparecer (Ferramenteiro)

5De acordo com NOVASKI (1994) toleracircncia eacute a variaccedilatildeo admissiacutevel da dimensatildeo da peccedila dada a diferenccedila entre as dimensotildees maacuteximas e miacutenimas (p 3)

114

c) ldquoVisualizaccedilatildeo em 3Drdquo

Uma outra estrateacutegia que os ferramenteiros criam para produzir os seus saberes e que

de certa forma lhes permite articular as estrateacutegias de ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo com as es-

trateacutegias para ldquover o todordquo remete ao esforccedilo que eles fazem para abstrair a ferramenta o que

eacute chamado por eles de ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo Chamaremos de estrateacutegias de ldquovisualizaccedilatildeo em

3Drdquo a projeccedilatildeo mental que os ferramenteiros fazem no sentido de imaginar a ferramenta pela

perspectiva tridimensional As vaacuterias possibilidades de ldquovisualizaccedilatildeo 3Drdquo podem correspon-

der a determinados niacuteveis de dificuldade Assim pode-se dizer que em situaccedilotildees mais sim-

ples os ferramenteiros buscam visualizar as peccedilas que compotildeem a ferramenta para localizaacute-

las espacialmente dentro do seu conjunto que eacute a proacutepria ferramenta6 De acordo com um

ferramenteiro a ldquovisualizaccedilao em 3D eacute quando vocecirc vecirc um desenho soacutelido vocecirc vecirc um cubo

vocecirc vecirc a ferramenta em soacutelido aiacute eacute muito mais faacutecil de vocecirc ter esta visualizaccedilatildeordquo Outro

ferramenteiro apresenta a sua a noccedilatildeo de ldquovisualizaccedilatildeo 3Drdquo relacionado-a com a sua experi-

ecircncia da seguinte forma

Com certeza isso acontece conosco todos os dias porque nem sempre vocecirc estaacute com o desenho em matildeos e vocecirc precisa visualizar Agraves vezes no iniacutecio do processo de construccedilatildeo vocecirc natildeo tem nem a peccedila na matildeo mas vocecirc jaacute tem o desenho Aiacute a gente jaacute comeccedila a modificar determinadas coisas soacute a partir da experiecircncia que vo-cecirc adquiriu Isso soacute eacute possiacutevel porque o ferramenteiro vecirc uma coisa bidimensional que eacute o desenho e pensa de forma tridimensional que eacute a ferramenta Pois eacute por causa disso a visualizaccedilatildeo faz do ferramenteiro mais do que um montador de peccedilas jaacute que ele vecirc ele tem ver tudo antes de funcionar

Entretanto observamos que embora a ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo seja citada por todos os

entrevistados soacute os ferramenteiros mais experientes satildeo tidos como capazes de realizaacute-la nos

niacuteveis mais complexos em que ela se apresenta Eacute o caso por exemplo do que eles chamam

de ldquosimulaccedilatildeo mental do movimento da ferramentardquo Trata-se de uma complexa estrateacutegia que

os ferramenteiros usam para aleacutem de localizar as peccedilas dentro do seu conjunto supor a sua

reaccedilatildeo em uma situaccedilatildeo de movimento ldquoEssa visatildeo de 3D noacutes temos a noccedilatildeo de funciona-

6 Mais uma vez cabe lembrar que uma ferramenta pode chegar a ter cerca de 800 componentes

115

mento da ferramenta antes mesmo dela taacute construiacuteda A gente taacute olhando o projeto e taacute conse-

guindo mentalizar a movimentaccedilatildeo de todos os componentes da ferramenta executando aque-

le trabalho que ela foi projetada para fazerrdquo E um outro depoimento completa

Eacute possiacutevel visualizar a peccedila antes dela estar terminada Tenho nove anos que eu trabalho com ferramentaria eu durante cerca de quatro anos eu via o desenho mas eu natildeo imaginava uma ferramenta em 3D Depois de uns 4 anos trabalhando em ferramentaria eu consigo analisar o projeto durante um dia dois dias analisar um projeto inteiro de 40 folhas eu consigo imaginar a ferramenta trabalhando e isso eu natildeo conseguia antes (Ferramenteiro)

Observamos que essa ldquosimulaccedilatildeo mental do movimento da ferramentardquo se manifesta

por meio da capacidade que eles possuem de ao imaginar uma ferramenta em movimento

projetar possiacuteveis defeitos no produto final

Bom quando o ferramenteiro consegue olhar o projeto e imaginar a situaccedilatildeo a fer-ramenta trabalhando ele consegue entender ele trabalha observando aquilo que taacute acontecendo ele antecipa este erro porque ele tem esse entendimento de olhar o projeto imaginar a ferramenta pronta imaginar que todos os itens da ferramenta estatildeo trabalhando Desta forma ele consegue vamos supor ele consegue entender a peccedila a ferramenta baixa a estampa aberta dessa forma natildeo aconteceu nenhum problema natildeo trombou nada a peccedila natildeo trombou nada a peccedila natildeo foi danificada a peccedila que eu falo eacute o produto (Ferramenteiro)

Em um outro exemplo

Vocecirc tem que imaginar o produto ali Ele eacute projetado em linhas que natildeo eacute em soacuteli-do soacute linha e imaginar o funcional daquilo Um bom ferramenteiro ele jaacute imagina a ferramenta produzindo O que eacute produzindo Ela estaacute debaixo da prensa e ele sa-be qual altura ela vai subir vai descer e fechar a ferramenta ele vecirc o acircngulo de saiacute-da dos retalhos ele jaacute imagina toda ela na mente O que acontece vai ter coisa que se o ferramenteiro faz exatamente igual ao projeto ele jaacute vecirc que natildeo vai funcionar (Ferramenteiro)

Ainda um outro depoimento confirma

Vocecirc natildeo tem nem a peccedila na matildeo mas vocecirc jaacute tem o desenho entatildeo a gente jaacute co-meccedila a modificar determinadas coisas soacute a partir da experiecircncia que vocecirc adquiriu Porque quando eu imagino uma peccedila eu natildeo imagino a peccedila que estaacute na minha frente imagino ela laacute na frente estampada Um painel de porta por exemplo para mim soacute vai mudar o design mas eu jaacute tenho aquela configuraccedilatildeo de que eacute uma por-ta ou uma lateral e quais satildeo os pontos que vatildeo dar mais problemas (Mestre de ferramentaria)

116

Figura 1 Desenho ldquobidimensionalrdquo de uma ferramenta

117

Apesar de que na Empresa T haacute um software que fornece um desenho em 3D os

ferramenteiros conseguem esse tipo de projeccedilatildeo por meio de uma abstraccedilatildeo ou como eles

dizem ldquovisualizando em 3Drdquo Para ilustrar a estrateacutegia de ldquovisualizar em 3Drdquo tomemos como

exemplo as Figuras 1 2 3 4 e 5 A Figura 1 corresponde ao desenho de uma ferramenta

posto em uma forma plana isto eacute bidimensional As Figuras 2 3 4 e 5 correspondem agrave Figura

1 em uma forma tridimensional Eacute importante comentar que o avanccedilo das figuras indica uma

visualizaccedilatildeo mais depurada da ferramenta ou seja para se chegar agrave visualizaccedilatildeo em 3D da

Figura 4 eacute necessaacuterio uma maior capacidade de abstraccedilatildeo do ferramenteiro

Figura 2 a 5 A mesma ferramenta vista em ldquo3Drdquo

d) ldquoMelhor jeito de trabalharrdquo

Se jaacute foi dito anteriormente que o processo de trabalho na Empresa T revela uma dis-

tacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho real foi possiacutevel observar tambeacutem que a com-

118

plexidade do trabalho real na ferramentaria ao mesmo tempo em que solicita dos ferramentei-

ros a criaccedilatildeo de estrateacutegias para produzir saberes taacutecitos acaba por lhes permitir imprimir as

suas ldquomarcasrdquo no trabalho Assim podemos afirmar que o trabalho real natildeo revela somente as

demandas teacutecnicas da produccedilatildeo mas tambeacutem alguns aspectos que estatildeo vinculados aos inte-

resses dos proacuteprios ferramenteiros Eles se manifestam por exemplo em suas preocupaccedilotildees

em fazer um trabalho mais bonito menos cansativo que os integre no coletivo de trabalho ou

mesmo que lhes permita ser menos presos agrave prescriccedilatildeo Chamamos essas estrateacutegias ldquomelhor

jeito para trabalharrdquo Ao ser indagado sobre a importacircncia da experiecircncia para o ferramentei-

ro a fala de um deles parece indicar que este tipo de recurso lhe permite ser menos ldquovigiadordquo

Acho que esse eacute o grande ponto de virada do ferramenteiro que hoje ele chama de ferramenteiro II ele sabe o jeito mais faacutecil de trabalhar O ferramenteiro III no ca-so da nossa escala da firma ele eacute um ferramenteiro que ele pode montar a ferra-menta sem o monitoramento de outra pessoa acima dele

Pudemos perceber que os ferramenteiros com certa frequumlecircncia se referem a ldquoum me-

lhor jeito de trabalharrdquo Ao indagarmos sobre o que seria esse ldquomelhor jeito de trabalharrdquo ob-

tivemos respostas de uma forma quase consensual nas quais os ferramenteiros ressaltavam

que cada profissional encontra o seu ldquomelhor jeito para trabalharrdquo Eis alguns depoimentos

Para mim o jeito mais faacutecil de trabalhar eacute quando vocecirc usa recursos para te ajudar quando vocecirc usa daquela ferramenta que estaacute ao seu redor pra taacute executando o tra-balho de uma maneira mais faacutecil eficaz Para mim eu evito fazer forccedila por isso que eu penso mais pra taacute executando esse trabalho Para mim eacute menos forccedila que esse modo me garante me garanta um niacutevel de acerto maior eacute o que eu costumo fazer (Ferramenteiro)

O uso do ldquomelhor jeito de trabalharrdquo reduz o sofrimento que estaacute presente no trabalho

do ferramenteiro

Eacute quando vocecirc trabalha muito vocecirc faz um esforccedilo fiacutesico muito grande porque vocecirc natildeo pensou antes de realizar tal tarefa natildeo pensou nos objetivos pegou o ser-viccedilo e tocou o serviccedilo soacute que na metade do caminho vocecirc vecirc que jaacute natildeo taacute compen-

119

sando mais ter tomado aquela atitude soacute que aiacute natildeo daacute mais para vocecirc voltar atraacutes vocecirc tem que continuar e terminar o serviccedilo isso eacute sofrer por causa do esforccedilo fiacute-sico que vocecirc faz (Ferramenteiro)

Esse ldquomelhor jeito de trabalharrdquo pode ser encontrado tambeacutem quando em alguns de-

poimentos os ferramenteiros mencionaram que as suas invenccedilotildees no processo de trabalho de-

vem-se a uma tentativa de realizar um trabalho com mais teacutecnica Muitas vezes essa noccedilatildeo de

um trabalho com mais teacutecnica se aproxima de uma noccedilatildeo de um trabalho mais bonito ou mais

limpo Constatamos essa possibilidade quando um ferramenteiro nos explicou a sua forma de

realizar um trabalho chamado por ele de localizaccedilatildeo de punccedilotildees Segundo ele a maioria dos

colegas fazia este trabalho usando uma massa plaacutestica Entretanto o seu ldquomelhor jeito de tra-

balharrdquo dispensava a massa plaacutestica o que fazia o trabalho ficar mais bonito e ainda natildeo o

incomodava tanto porque natildeo exalava cheiro Vejamos este depoimento

Para localizar um punccedilatildeo eu uso uma forma mais teacutecnica A outra que o pessoal usa eacute com massa plaacutestica soacute que desta forma eacute feio a massa plaacutestica eacute um produto quiacutemico e deixa marcas e aleacutem disso para vocecirc tirar o punccedilatildeo vocecirc tem que tirar a massa plaacutestica Eu natildeo gosto primeiro pelo fato do cheiro da massa plaacutestica natildeo gosto do cheiro da massa plaacutestica e segundo pelo fato do tempo que demora pra massa plaacutestica secar Por isso na minha concepccedilatildeo eacute melhor usar o reloacutegio apalpa-dor eacute mais limpo e mais bonito (Ferramenteiro)

Durante as nossas observaccedilotildees natildeo muito raro alguns ferramenteiros nos disseram

que o seu trabalho tem um lado que o aproxima do trabalho de um artesatildeo Ao falarmos sobre

isso com os ferramenteiros constatamos a busca do ldquomelhor jeito de trabalharrdquo aqui associado

a um trabalho mais bonito

O artesatildeo geralmente ele faz aquilo que estaacute na cabeccedila dele ele imagina sei laacute uma escultura um quadro sei laacute e a partir daiacute ele comeccedila a trabalhar O ferramenteiro tem que ter carinho com a peccedila ele natildeo pode chegar e jogar uma peccedila de qualquer jeito ele pode estragar uma peccedila ela fica com aspecto ruim Quatro meses de tra-balho vocecirc trabalha quatro meses para fazer uma ferramenta entatildeo de certa for-ma vocecirc jaacute estaacute habituado a todo dia chegar pro seu trabalho e vocecirc encontrar a-quelas ferramentas do seu setor Natildeo eacute que vocecirc pega amor por aquilo mas vocecirc sente prazer em fazer aquilo Um artesatildeo natildeo trabalha soacute porque tem que trabalhar ele gosta de fazer aquilo ele gosta de modelar aquilo o ferramenteiro eacute um mode-

120

lador A ferramenta em construccedilatildeo eacute a cara do ferramenteiro isso eacute dito na ferra-mentaria (grifo nosso)

Satildeo muitos os motivos que fazem do trabalho real por sua complexidade um campo

feacutertil para apresentar as estrateacutegias que os ferramenteiros criam para produzir os seus saberes

taacutecitos chamadas por noacutes de ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo ldquover o todordquo ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo

e ldquomelhor jeito de trabalharrdquo

Nossas observaccedilotildees nos permitem dizer que a complexidade do trabalho real faz com

que essas estrateacutegias de produccedilatildeo de saberes estejam intimamente articuladas com as estrateacute-

gias de mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes taacutecitos Ateacute o momento discutimos os dados

de nossa pesquisa indicando as estrateacutegias que os ferramenteiros usam para produzir os seus

saberes taacutecitos e as situaccedilotildees que convocam o uso deste tipo de saber Faz-se necessaacuterio de

agora em diante apresentar as estrateacutegias que os ferramenteiros criam para mobilizar diversos

tipos de saberes em especial os saberes taacutecitos

42 AS ESTRATEacuteGIAS DOS FERRAMENTEIROS PARA MOBILIZAR OS SEUS SABERES

Se ateacute entatildeo apresentamos as estrateacutegias para a produccedilatildeo do saber taacutecito sem nos re-

ferirmos ao conjunto de saberes que satildeo mobilizados por esse tipo de estrateacutegia eacute porque co-

mo jaacute foi dito nos preocupamos em explorar e evidenciar de maneira mais compreensiacutevel al-

gumas situaccedilotildees que convocam o saber taacutecito Todavia gostariacuteamos de chamar a atenccedilatildeo aqui

para as estrateacutegias que os ferramenteiros criam para mobilizar os seus saberes pois em nossa

pesquisa de campo deparamos com vaacuterias situaccedilotildees evidenciadas em algumas entrevistas em

que o uso de um determinado saber taacutecito demanda a mobilizaccedilatildeo de saberes de diversas or-

dens

121

Bom para mim o ferramenteiro precisa passar por todas as etapas que constituem uma ferramenta ele precisa de passar pela etapa ao contraacuterio O que eacute pelo contraacute-rio O contraacuterio eacute ele viver a faacutebrica viver o planejamento e viver a projeccedilatildeo da ferramenta entatildeo isso consiste o ferramenteiro O que eacute que ele vai ser para ele ser um bom ferramenteiro ele precisa ter estas trecircs etapas que geralmente eacute para cons-truir uma ferramenta projetar planejar a sua construccedilatildeo e saber executar esta cons-truccedilatildeo Tanto eacute que para interpretar muito bem o desenho o desenho eacute o iniacutecio de tudo se vocecirc tiver alguma duacutevida em relaccedilatildeo ao desenho vai ser complexo vocecirc in-terferir no final da ferramenta vocecirc desenvolver a ferramenta (Ferramenteiro)

Em Charlot (2000) a noccedilatildeo de mobilizaccedilatildeo relaciona-se agrave ideacuteia de movimento que de-

riva do interior das pessoas ldquomobilizar eacute pocircr recursos em movimento Mobilizar-se eacute reunir

suas forccedilas para fazer uso de si como recurso () mobilizar-se poreacutem eacute tambeacutem engajar-se

em uma atividade originada por moacutebilesrdquo (p 55) Tomamos de empreacutestimo a perspectiva de

Charlot sobre mobilizaccedilatildeo para evidenciar que os ferramenteiros trabalham recorrendo a es-

trateacutegias para mobilizar muacuteltiplos saberes Estes profissionais se mobilizam por inteiro para

construir uma ferramenta colocando em movimento estrateacutegias variadas dentre os quais pu-

demos identificar ldquorecorrer aos saberes do coletivo de trabalho lsquoesforccedilo de abstraccedilatildeorsquo lsquosaber

usar o proacuteprio corporsquo aleacutem de lsquorecorrer aos saberes cientiacuteficos e tecnoloacutegicosrsquordquo

Conforme apontamos anteriormente as nossas observaccedilotildees e entrevistas indicam que

o primeiro momento em que os saberes taacutecitos se apresentam daacute-se na tentativa por parte dos

ferramenteiros de interpretar o desenho da ferramenta Esse tipo de prescriccedilatildeo como vimos

caracteriza-se pela enorme quantidade de informaccedilotildees na forma de linhas e medidas Quase

todos os ferramenteiros disseram que aprenderam a ler um desenho mecacircnico no Senai o que

em tese demonstra que esse tipo de saber pode ser ensinado Entretanto todos eles afirmaram

que a experiecircncia com a construccedilatildeo de ferramenta eacute o elemento chave para que eles possam

aprender a interpretar o desenho que se usa na ferramentaria Segundo um dos ferramenteiros

ldquono Senai a gente aprende a matar largatixa aqui no dia-a-dia noacutes temos que aprender a ma-

tar jacareacuterdquo Em um outro depoimento mais contundente um ferramenteiro nos relatou o se-

guinte

122

O desenho sempre vai ter uma base que eacute o conhecimento teoacuterico Se vocecirc pegar um desenho em primeiro ou em terceiro diedro7 ele vai ser primeiro diedro e ter-ceiro diedro em qualquer parte do mundo A linguagem universal vocecirc aprende no campo da teoria estudando o desenho mesmo dentro da escola Agora existe um viver praacutetico eacute muito importante o lidar com determinadas peccedilas a experiecircncia do dia-a-dia porque o nosso desenho tem um agravante muito grave que ele natildeo tem detalhes Todos os elementos da ferramentaria estatildeo desenhados num soacute desenho entatildeo a pessoa precisa de enxergar todos os elementos naquele desenho de conjun-to (Ferramenteiro)

Para realizar o seu trabalho os ferramenteiros mobilizam saberes jaacute formalizados pela

ciecircncia e tecnologia bem como saberes taacutecitos que nascem na experiecircncia cotidiana indivi-

dual e coletivamente Entre os ferramenteiros que abordamos alguns natildeo tinham passado pelo

Senai ou seja natildeo tinham acessado atraveacutes da escola formal os saberes necessaacuterios agrave inter-

pretaccedilatildeo de desenho Ao longo de sua experiecircncia em chatildeo de faacutebrica eles aprenderam a mo-

bilizar saberes para interpretar o desenho e realizar o seu trabalho Apresentaremos a seguir

algumas situaccedilotildees que expressam as estrateacutegias que os ferramenteiros que passaram ou natildeo

pela escola formal criam para mobilizar os seus saberes variados

a) Recurso aos saberes do coletivo de trabalho

Pudemos observar que ao relativizarem a contribuiccedilatildeo da escola formal sempre ci-

tando o Senai e enfatizarem o papel da experiecircncia no chatildeo de faacutebrica no desenvolvimento de

um saber taacutecito que lhes permita interpretar o desenho da ferramenta os ferramenteiros se re-

feriram positivamente ao papel dos ldquosaberes do coletivo de trabalhordquo Um dos ferramenteiros

ao ser indagado sobre como conseguiu superar a sua dificuldade inicial com o desenho nos

relatou o seguinte

Houve momentos que pessoas me auxiliaram agraves vezes porque eu tive dificuldade de taacute entendendo aquelas linhas o que elas estavam querendo demonstrar para mim e agraves vezes pelo tempo por esse tempo para executar um determinado trabalho Pelo fato de eu natildeo ter aquele conhecimento ainda eu estava demorando para fazer neacute conseguir interpretar feito isso pessoas mais experientes chegam e te ajudam para

7 Segundo a explicaccedilatildeo dos ferramenteiros diedro eacute o rebatimento que se faz das vistas laterais da planta de qualquer desenho Dessa forma o chamado primeiro diedro a lateral da planta eacute projetada do lado direito jaacute no terceiro diedro a lateral da planta eacute projetada do lado esquerdo

123

que aquilo ali se consiga resolver aquela determinada tarefa (Ferramenteiro grifo nosso)

Em um outro depoimento novamente aparece uma referecircncia agrave possibilidade de os

ferramenteiros estarem aprendendo com um colega geralmente mais experiente

Na maioria das vezes quando vocecirc entra para trabalhar eles te apresentam o traba-lho vocecirc entra para trabalhar junto com alguma pessoa nunca vocecirc entra com o cargo de chefe da ferramenta Dificilmente vocecirc consegue aprender o projeto sozi-nho vocecirc comeccedila com o acompanhamento de uma pessoa que te auxilie te mostre alguns macetes para vocecirc comeccedilar a ver raacutepido uma determinada medida porque o nosso desenho eacute muito tracejado muita linha tracejada Entatildeo esse macete essa experiecircncia saber onde que taacute passando realmente a linha tracejada onde eacute que a linha eacute visiacutevel eacute que vocecirc sabe qual plano de altura que taacute a peccedila isso te confunde muito (Ferramenteiro)

Para aleacutem da interpretaccedilatildeo do desenho os ldquosaberes do coletivo de trabalhordquo satildeo tidos

pelos ferramenteiros como fundamentais para que eles se desenvolvam profissionalmente Na

empresa T de certa forma a interferecircncia dos ldquosaberes do coletivo no trabalhordquo de cada fer-

ramenteiro individualmente se vincula agrave organizaccedilatildeo do trabalho adotada pela empresa Os

ferramenteiros satildeo agrupados em ceacutelulas de forma que todos embora faccedilam diferentes traba-

lhos satildeo responsaacuteveis pela mesma ferramenta E ainda essa organizaccedilatildeo do trabalho preco-

niza uma hierarquia pela qual os ferramenteiros III coordenam e auxiliam o trabalho dos fer-

ramenteiros II sendo que estes coordenam e auxiliam o trabalho dos ferramenteiros I que

por sua vez satildeo auxiliados pelos aprendizes de ferramenteiro Foi possiacutevel constatar que essa

organizaccedilatildeo da ceacutelula natildeo impede que o mestre por exemplo faccedila interlocuccedilotildees com os a-

prendizes de ferramentaria Verificamos inclusive que uma das funccedilotildees dos mestres em fer-

ramentaria eacute acompanhar a formaccedilatildeo praacutetica dos aprendizes de ferramentaria e o do ferramen-

teiro I E ainda foi possiacutevel observar que os mestres veladamente dividem essa tarefa com

os ferramenteiros III

Apesar de a organizaccedilatildeo das ceacutelulas da ferramentaria na Empresa T obedecer a uma

oficialidade prescrita pela gerecircncia foi possiacutevel observar que entre os ferramenteiros circulam

124

normas e valores alheios ao que estaacute disponibilizado pelo trabalho prescrito que podem fun-

cionar como estrateacutegias para mobilizar saberes Segundo Daniellou Laville e Teiger (1989) a

socializaccedilatildeo de saberes entre os trabalhadores ocorre normalmente de maneira informal ou

seja natildeo-oficial Neste sentido encontramos diversas situaccedilotildees em que os ferramenteiros se

valem dos saberes do seu coletivo de trabalho para realizar uma determinada atividade cujo

conteuacutedo natildeo eacute totalmente conhecido pela gerecircncia Segundo a fala de um ferramenteiro

Tem coisa que eacute simples mas que vai te ajudar a resolver um problema complexo Muitas vezes pelo fato da sua duacutevida ser boba vocecirc fica sem jeito de perguntar o seu chefe o seu mestre vocecirc pergunta para um ferramenteiro que vocecirc confia tan-to porque ele sabe agraves vezes mais do que o mestre e porque ele natildeo vai te reprimir Inclusive jaacute aconteceu comigo um ferramenteiro experiente acaba te mostrando que a sua duacutevida natildeo era boba (Ferramenteiro)

Em um outro depoimento um ferramenteiro fez a seguinte reflexatildeo sobre os saberes

compartilhados pelos colegas de trabalho

Tem coisa que vocecirc aprende sozinho mas a ajuda dos colegas eacute importante demais Vocecirc sai igual aconteceu comigo do Senai e cai em uma ferramentaria de verdade eacute outro papo Se os ferramenteiros mais experientes natildeo te ajudarem vocecirc vai cus-tar a aprender Num eacute soacute nessa empresa natildeo eacute em qualquer outra Na ferramentaria tem coisa que parece ser mais natildeo eacute tem coisa que se vocecirc fizer igualzinho o de-senho natildeo vai funcionar Eacute por isso a ajuda dos colegas faz a diferenccedila O cara che-ga e te fala ldquoVocecirc tem fazer um aliacutevio aqui se natildeo acontece isso e issordquo Pois eacute igual eu te falei na ferramentaria por mais que vocecirc aprenda sozinho sem ajuda de um cara experiente fica complicado Eu tenho que agradecer porque sempre traba-lhei com ferramenteiro que gosta de ensinar (Ferramenteiro)

Observamos que a relaccedilatildeo dos ferramenteiros com os saberes do seu coletivo de traba-

lho natildeo eacute de simples transmissatildeo Neste sentido a constataccedilatildeo que fizemos de que os ferra-

menteiros mobilizam saberes reapropriados do seu coletivo de trabalho nos favoreceu a iden-

tificar ainda um outro tipo de mobilizaccedilatildeo de saber o ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo

b) ldquoEsforccedilo de abstraccedilatildeordquo

Ainda que possuam uma razoaacutevel compreensatildeo do trabalho prescrito os ferramentei-

ros concentram as suas estrateacutegias para mobilizar os seus saberes tambeacutem na construccedilatildeo da

125

ferramenta Em um grande nuacutemero de situaccedilotildees eles mobilizam os seus saberes taacutecitos para

ldquoajustar peccedilas para preacute-montar a ferramenta para dar acabamento e na montagem finalrdquo en-

fim para colocaacute-la em condiccedilatildeo de trabalho Os ferramenteiros elegem o ldquoesforccedilo de abstra-

ccedilatildeordquo dos movimentos da ferramenta como um recurso essencial para compreender o trabalho

prescrito Chamaremos de ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo o empenho que os ferramenteiros fazem pa-

ra associar a fala de um colega a um determinado componente ou mesmo para compreender

uma determinada situaccedilatildeo de funcionamento da ferramenta

Durante a construccedilatildeo da ferramenta o apelo a esse ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo coloca-se

tambeacutem como uma estrateacutegia de mobilizaccedilatildeo de saberes Mesmo com a ferramenta jaacute em

construccedilatildeo o recurso ao ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo eacute utilizado para que eles possam superar as

deficiecircncias do trabalho prescrito e ainda como uma forma de viabilizar a comunicaccedilatildeo entre

os colegas

Se o cara natildeo imaginar o que vocecirc estaacute falando ele natildeo enxerga ele natildeo aprende aliaacutes ele tem que enxergar para entender o que estaacute sendo falado Na ferramentaria vocecirc aprende todo dia mas o ferramenteiro experiente aprende mais Aprende mais por quecirc Porque ele enxerga mais coisas A mente do ferramenteiro tem que entrar dentro da ferramenta pelo menos comigo foi assim (Ferramenteiro)

O esforccedilo para abstrair a movimentaccedilatildeo da ferramenta pode colocar-se como um meio

de estabelecer uma complexa forma de ldquocomunicaccedilatildeo virtual com o trabalho prescritordquo Para

alguns ferramenteiros na medida em que se visualiza a ferramenta pode-se tambeacutem entender

melhor por que certas coisas satildeo exigidas na ferramenta Observamos que alguns ferramentei-

ros buscam simular um diaacutelogo com quem concebeu o trabalho prescrito qual seja o projetis-

ta da ferramenta

Quando vocecirc analisa bem o projeto vocecirc jaacute o tem em mente Sem conhecer o pro-jetista vocecirc sabe o que ele jaacute taacute pensando vocecirc jaacute sabe o que ele pensou quando projetou aquela ferramenta Por exemplo um ferramenteiro me chamou saacutebado porque ele natildeo estava conseguindo entender uma coisa Ele via aquilo no desenho mas natildeo conseguia imaginar aquilo funcionando entatildeo foi a partir desse ponto que eu peguei e noacutes sentamos juntos eu peguei e simulei eu fui desenhando e imagi-

126

nando Neste ponto eu vi o que ele tinha projetado Quando vocecirc projeta vocecirc pro-jeta as linhas e elas satildeo paradas entatildeo eu vi juntamente com ele observamos aque-la situaccedilatildeo Eu peguei e falei com ele olha o projetista ele pensou da seguinte forma ldquoessa cunha vai encostar no lado de caacute ela vai cortar do lado de caacuterdquo Natildeo necessariamente o desenho contou isso mas foi olhando o desenho e imaginando que soacute poderia considerar daquela forma ou entatildeo natildeo ia funcionar O projetista ti-nha pensado de alguma forma a gente ficou ali sentado uma meia hora mas aiacute eu consegui entender o que ele realmente pensava Ele pensava o funcionamento dessa forma e consultando outras pessoas depois para tirar as duacutevidas o pessoal da en-genharia a coisa eacute do jeito que a gente tinha imaginado (Ferramenteiro)

Ainda um outro depoimento confirma

Natildeo adianta muitas vezes vocecirc querer tomar uma decisatildeo precipitada Muitas ve-zes vocecirc tem que dar aquela paradinha para fazer uma reflexatildeo analisar direitinho muitas vezes vocecirc chega ali e opa Natildeo o que que taacute acontecendo aqui Vocecirc vai analisar se for possiacutevel vocecirc bate um papo com o outro colega ou chama o superi-or ou tal vai na engenharia Muita vezes a gente tem que procurar neacute esse povo porque vocecirc pode chegar aqui e taacute interpretando aquilo ali vocecirc taacute vendo uma for-ma mas talvez se vocecirc fala mas o que o cara estava querendo expressar o que que o cara quis determinar nisso aqui Vocecirc taacute lendo um desenho muitas vezes vocecirc precisa dessa ajuda ou vocecirc tem que saber o que o cara quis pensar o que o cara pensou (Ferramenteiro)

O ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo ao mesmo tempo em que lhes facilita compreender um de-

terminado raciociacutenio de um colega associando-o a uma situaccedilatildeo de trabalho acaba por lhes

permitir tambeacutem uma reapropriaccedilatildeo dos saberes do seu coletivo de trabalho o que lhes permi-

te uma construccedilatildeo pessoal do seu proacuteprio saber Verificamos que essa reapropriaccedilatildeo de sabe-

res manifestada pelos ferramenteiros indica tambeacutem que eles podem mobilizar saberes por

meio de uma estrateacutegia que chamamos de ldquosaber usar o corpordquo Eacute o que apresentaremos no

proacuteximo toacutepico

c) ldquoSaber usar o corpordquo

Ao tentar identificar as estrateacutegias utilizadas pelos ferramenteiros para mobilizar os

seus saberes verificamos uma frequumlente referecircncia a um certo ldquosaber usar o corpordquo no traba-

lho Conforme jaacute dissemos alguns pensadores (ARANHA 1997 SANTOS 1997) criticam as

concepccedilotildees que naturalizam os saberes taacutecitos Portanto ao abordar o saber taacutecito pelos atri-

127

butos corporais poderiacuteamos correr o risco de corroborar a loacutegica de naturalizaccedilatildeo deste tipo de

saber Natildeo obstante inuacutemeras vezes os ferramenteiros se referem ao ldquosaber usar o corpordquo co-

mo estrateacutegia fundamental para mobilizar os seus saberes taacutecitos Muitos apontam inclusive

que o uso do corpo eacute um dos aspectos que confere ao ferramenteiro uma vantagem sobre o

projetista

O projetista tem um grande problema hoje em dia Antes ele trabalhava com a prancheta agora ele trabalha no computador em uma tela de no maacuteximo 20 pole-gadas As nossas ferramentas aleacutem de ter vaacuterios componentes agraves vezes 700 ou 800 mede quase 3 ou 4 metros E tem mais no computador vocecirc natildeo pega com a matildeo natildeo ouve e natildeo vecirc direto as peccedilas Noacutes olhamos escutamos ateacute para usar a visatildeo tem macete que no computador deve ser mais difiacutecil neacute (Ferramenteiro)

Ademais pudemos constatar que esse ldquosaber usar o corpordquo eacute parte de uma trama que

envolve outros diversos saberes os quais satildeo mediados por estrateacutegias que mobilizam o cole-

tivo no trabalho a reapropriaccedilatildeo de saberes formais a memoacuteria e aspectos subjetivos como a

esteacutetica Em muitas situaccedilotildees com que nos deparamos em nosso campo de pesquisa eviden-

ciou-se que o uso do corpo pelos ferramenteiros para realizar uma determinada atividade natildeo

prescinde de outros saberes

Existe uma outra coisa chamada habilidade A habilidade do ferramenteiro se faz com os anos Para vocecirc estabelecer fazer uma correccedilatildeo de uma superfiacutecie se eu te perguntasse vocecirc compraria um carro com amassamento Natildeo Entatildeo vocecirc compra um carro com ondulaccedilatildeo De jeito nenhum Agora tem homens inclusive eu que satildeo especialistas em passar pedra para criar superfiacutecies em condiccedilotildees para quando estampar a chapa Para isso a experiecircncia eacute fundamental porque vocecirc tem que sa-ber usar a matildeo o tato e a visatildeo mas vocecirc tem que saber por que um acabamento eacute assim e assado Quando vocecirc sabe por que que uma parte da ferramenta tem um ti-po de acabamento e uma outra parte tem outro tipo fica mais faacutecil vocecirc se sente mais seguro vocecirc sabe ateacute onde daacute para inventar (Mestre de ferramentaria)

Uma outra situaccedilatildeo em que verificamos o ldquosaber usar o corpordquo deu-se a partir da ob-

servaccedilatildeo que fizemos do trabalho de um ferramenteiro tido pelos colegas como excelente

profissional para dar acabamento Ao nos aproximarmos desse profissional observamos que

ele fitava a ferramenta abaixava e levantava a cabeccedila inclinando levemente o peito para fren-

128

te Este estranho movimento nos chamou muito a atenccedilatildeo Foi quando o abordamos e ele nos

convidou a localizar um problema no acabamento de uma ferramenta Jaacute sabiacuteamos que se tra-

tava de um trabalho de acabamento e ao perguntarmos o porquecirc daqueles movimentos com o

corpo esse ferramenteiro iniciou o seu relato

Esse trabalho depende muito da visatildeo depende muito da posiccedilatildeo que vocecirc olha Taacute vendo essa quina aqui taacute vendo ela tem um raio se isso ficar errado perde o servi-ccedilo todo Soacute para vocecirc ter uma ideacuteia esse tipo de ferramenta eacute a primeira vez que eacute feita no Brasil Esse trabalho aqui as maacutequinas natildeo conseguem fazer eacute com a matildeo de um ferramenteiro que ela eacute feita Eacute igual eu te falei vocecirc tem que procurar uma posiccedilatildeo para poder enxergar os buraquinhos8 eu ateacute torccedilo um pouco a cabeccedila vou para laacute e para caacute ateacute achar um ponto para ver melhor (Ferramenteiro)

Ao ser indagado por que o seu trabalho de acabamento eacute tido como diferente dos de-

mais colegas a resposta dada por este ferramenteiro nos revela que aleacutem do ldquosaber usar o

corpordquo eles mobilizam saberes formais reapropriados da ciecircncia e tecnologia

Para dar acabamento tem um monte de conhecimento Tem uns caras que usam umas pedra mais fina porque ela corta menos e natildeo precisa a pessoa pocircr forccedila Po-de ser pouquinha forccedila se vocecirc quiser que um trabalho rende entatildeo a pessoa tem que usar uma pedra mais grossa uma sessenta dependendo do material se for mui-to duro se for material duro tem que ser uma pedra sessenta entendeu Eu aprendi uma coisa laacute na Fiat Eu faccedilo o seguinte eu uso lixa grossa e uma pedra grossa e o acabamento fica bom Porque eu faccedilo igual as maacutequinas da usinagem Para dar a-cabamento elas (as maacutequinas) trabalham com alta rotaccedilatildeo entatildeo eu passo a lixa ou a pedra com rapidez Na ferramentaria a pessoa tem que ter entusiasmo tem que gostar tem gente que natildeo gosta eacute cego quem natildeo vecirc tem gente que natildeo gosta natildeo tem entusiasmo Eu natildeo toda vida eu tive entusiasmo por ferramentaria por meca-nizaccedilatildeo pneumaacutetica graccedilas a Deus Por isso eu tocirc aiacute ateacute hoje garrado (risos) por-que eu gosto eu gosto de fazer o meu trabalho (Ferramenteiro)

Um depoimento de outro ferramenteiro aleacutem de corroborar a possibilidade de um cer-

to ldquosaber usar o corpordquo ndash no caso a visatildeo e o tato ndash ser tomado como um saber taacutecito aponta

tambeacutem a contribuiccedilatildeo de outros saberes formais como as noccedilotildees de desenho mecacircnico e de

geometria

8 Embora esse ferramenteiro e outros tenham falado em buraquinhos eacute importante esclarecer que trata-se de alteraccedilotildees de relevo da ordem de centeacutesimo de miliacutemetros ou seja dificiacutelimos de serem vistos a olho nu

129

Geralmente vocecirc olha a peccedila num plano horizontal vocecirc consegue ver que a super-fiacutecie estaacute um pouco ondulada quando a superfiacutecie estaacute com o acabamento constan-te O outro ponto eacute o horizontal quando vocecirc enxerga a peccedila entre a curvatura e o plano vocecirc natildeo consegue ver isso na terra Quando vocecirc natildeo consegue ver vocecirc tem que sentir a peccedila vocecirc vai passando a matildeo na superfiacutecie da peccedila vocecirc sabe se ela estaacute ondulada se precisa de mais acabamento e um raio por exemplo a gente chama de raio quebrado eacute quando o raio tem quina essa quina na verdade nada mais eacute do que o encontro aonde termina e onde comeccedila o desenho do raio Esse ponto tem que ter concordacircncia exata no plano se ele natildeo tem concordacircncia no plano ele vai ter quina e essa quina vocecirc soacute observa no tato vocecirc passa a matildeo e sente opa esse raio aqui estaacute precisando ter um acabamento melhor (Ferramentei-ro)

Observamos que o trabalho prescrito na Empresa T natildeo soacute reconhece a validade deste

ldquosaber usar o sentido da visatildeordquo bem como vem procurando dotar uma estrutura fiacutesica para

que ele possa ocorrer com mais facilidade Ainda tendo como base as indicaccedilotildees do depoi-

mento anterior fomos ateacute a linha do try-out da Empresa T e verificamos que haacute uma espeacutecie

de cabana equipada com lacircmpadas fluorescentes Segundo os ferramenteiros a incidecircncia de

luzes ajuda na identificaccedilatildeo dos ldquoburaquinhosrdquo na chapa praacutetica bem conhecida nas ferra-

mentarias

Jaacute passei por esta experiecircncia dentro da Fiat Tinha uma peccedila laacute a tampa traseira do Palio a primeira peccedila tava boa quando noacutes entregamos a peccedila para o pessoal da qualidade da Fiat eles pegaram a peccedila levaram ela pra debaixo do jogo de luz de-veria ter umas vinte lacircmpadas fluorescentes pegaram o oacuteleo e passaram sobre ela e olham pela horizontal eles foram observando e o pessoal foi mostrando para a gen-te olha por este ponto por este ponto dava pra ver manchas na peccedila (Ferramentei-ro)

Ainda um outro depoimento

Vocecirc olha no plano horizontal soacute que existe diferenccedila de vocecirc olhar no plano hori-zontal ou no plano vertical quando vocecirc olha a peccedila de cima pra baixo vocecirc natildeo consegue ver estas manchas se vocecirc olhar as peccedilas de cima pra baixo vocecirc natildeo tem noccedilatildeo de profundidade quando vocecirc olha a peccedila no plano horizontal vocecirc tem noccedilatildeo de profundidade Essa que eacute a diferenccedila de vocecirc olhar a peccedila no plano hori-zontal Quando vocecirc olha a peccedila assim vista grossa sem observar os pontos quando vocecirc observa os pontos no plano horizontal com noccedilatildeo de profundidade entatildeo daacute pra vocecirc ver se a peccedila estaacute ondulada ou natildeo Quando vocecirc olha por cima vocecirc natildeo vecirc que estaacute peccedila taacute ondulada entatildeo este eacute o ponto que a pessoa precisa ser um bom observador (Ferramenteiro)

130

Ao perguntarmos ao ferramenteiro como interpretar a incidecircncia das luzes sobre as pe-

ccedilas nos foi relatado que haacute uma influecircncia de saberes que circulam na ldquoescola formalrdquo como

por exemplo uma certa noccedilatildeo de oacuteptica No entanto se evidenciou tambeacutem que esses sabe-

res natildeo foram formalizados ainda pelo trabalho prescrito

Quando vocecirc passa o oacuteleo e com a luz refletida sobre ele eacute ateacute um pouco de fiacutesica neacute que eacute a refraccedilatildeo da luz e quando a luz bate sobre o oacuteleo quando vocecirc tem o mesmo plano de superfiacutecie constante essa superfiacutecie ela eacute refletida igualmente a luz eacute refletida igualmente Se vocecirc tem planos diferentes o plano superior ele eacute mais refletido o plano inferior a luz eacute refletida menor entatildeo justamente sobre esta sombra que vocecirc vecirc que a superfiacutecie natildeo taacute igual tem alguma ondulaccedilatildeo eacute justa-mente aiacute (Ferramenteiro)

e) ldquoRecurso aos saberes cientiacuteficos e tecnoloacutegicosrdquo

Haacute ainda outros tipos de saberes pertencentes ao campo da ciecircncia e da tecnologia

que satildeo mobilizados pelos ferramenteiros Alguns destes saberes jaacute foram inclusive indica-

dos em depoimentos anteriores Trata-se especialmente de saberes ligados ldquoao desenho me-

cacircnico agrave geometria agrave trigonometria e agrave tecnologia mecacircnicardquo9

Se de um lado demonstramos ao longo deste capiacutetulo que os ferramenteiros usam os

seus saberes taacutecitos para facilitar a interpretaccedilatildeo do desenho da ferramenta por outro lado a

maioria dos ferramenteiros apontam tambeacutem que conhecer as ldquonormas do desenho mecacircni-

cordquo eacute importantiacutessimo para poder interpretaacute-lo Em um depoimento nos foi relatado o seguin-

te ldquoquem natildeo souber ler o desenho dificilmente faraacute a ferramenta Apesar de que a gente a-

prende mesmo eacute na praacutetica a teoria ajuda bastante Se vocecirc jaacute sabe o que significa tal linha o

que significa tal siacutembolo eacute muito mais faacutecil para um outro cara te explicar o desenhordquo A fala

de um outro ferramenteiro aleacutem de corroborar o depoimento anterior aponta outras vanta-

gens de ter como eles dizem ldquouma base de desenho mecacircnicordquo

Se vocecirc jaacute tem uma base uma noccedilatildeo de desenho mecacircnico jaacute facilita muito O de-senho da ferramentaria eacute um desenho muito cheio de linhas e medidas Se vocecirc tem

9 Dentre os diversos processos associados agrave tecnologia mecacircnica Aqui tomaremos apenas alguns exemplos vinculados agrave usinagem agrave metrologia e agrave resistecircncia de materiais e evidentemente agrave proacutepria ferramentaria

131

essa noccedilatildeo de desenho vocecirc pode falar bem ou mal do projetista Vocecirc vai ver se ele estaacute te oferecendo tudo que ele podia te oferecer de informaccedilotildees Outra coisa importante da teoria eacute o detalhamento do desenho Vocecirc natildeo precisa ficar procu-rando uma medida porque agraves vezes o detalhe do desenho vai te explicar Entatildeo eacute bom vocecirc saber o que eacute um detalhe eacute bom ter uma certa teoria (Ferramenteiro)

Durante as nossas observaccedilotildees e tambeacutem nas entrevistas que realizamos pudemos

observar que uma boa parte dos ferramenteiros fazem valer os seus ldquosaberes de geometria e

trigonometriardquo Estes saberes nos foram explicitados ainda que somados aos saberes oriundos

da praacutetica em diversas situaccedilotildees que exigiam dos ferramenteiros a localizaccedilatildeo de uma deter-

minada medida ou de uma determinada peccedila a qual natildeo havia sido indicada pelo desenho da

ferramenta (ver Fig 6)

Apesar de ser um trabalho que pede bastante praacutetica a ferramentaria tambeacutem exi-ge uma noccedilatildeo de teoria Ontem mesmo tinha umas medidas faltando no desenho e natildeo tinha jeito de saber qual que seria essa medida porque a peccedila que seria monta-da natildeo estava pronta Eu fui e chamei o mestre da nossa ceacutelula e para adiantar o serviccedilo noacutes fizemos o caacutelculo pela trigonometria Nessa hora aleacutem da praacutetica eu ti-ve que usar a matemaacutetica a trigonometria (Ferramenteiro)

Figura 6 Croqui feito a partir de uma superposiccedilatildeo de triacircngulo retacircngulo

Em alguns casos pudemos observar que a noccedilatildeo de ldquogeometriardquo dos ferramenteiros

era enriquecida pelos saberes relacionados agrave ldquotecnologia mecacircnicardquo Essa possibilidade foi

132

constatada quando observamos que os ferramenteiros para explicar um trabalho uns aos ou-

tros mobilizam seus saberes de ldquogeometriardquo associando-os ao trabalho executado pela ferra-

menta Em um desses casos verificamos que conceitos oriundos da geometria como por e-

xemplo esquadro paralelismo ou perpendicularidade satildeo discutidos a partir da construccedilatildeo e

do funcionamento da ferramenta Vejamos um depoimento

Na ferramenta tudo depende do esquadro Eacute a partir do esquadro que a gente traba-lha todas as medidas da ferramenta Por quecirc A ferramenta faz o movimento de su-bir e descer Entatildeo ela tem que ter perpendicularidade tem que ter esquadro O que eacute um esquadro Noacutes chamamos de esquadro o encontro de duas superfiacutecies for-mando um acircngulo de 90 (graus) Aiacute eacute que eu te falo a teoria tambeacutem eacute importan-te porque se o ferramenteiro jaacute tem uma noccedilatildeo do que que eacute um esquadro na hora que ele ver ou imaginar a ferramenta trabalhando ele vai pensar no esquadro da ferramenta ele vai ficar preocupado Aiacute com certeza quando ele estiver constru-indo ele vai usar essa noccedilatildeo para controlar o seu proacuteprio trabalho (Mestre de fer-ramentaria)

Foi possiacutevel constatar tambeacutem que os ferramenteiros mobilizam um outro saber vin-

culado agrave ldquotecnologia mecacircnicardquo mais precisamente a ldquometrologiardquo parte da ciecircncia que cuida

do sistema de medidas voltadas para a construccedilatildeo (NOVASKI 1994) A mobilizaccedilatildeo dos sa-

beres vinculados agrave ldquometrologiardquo nos foi explicitada pelos ferramenteiros ao longo de toda a

construccedilatildeo da ferramenta muitas vezes associada agrave mobilizaccedilatildeo de um determinado saber taacute-

cito Segundo um ferramenteiro

O ferramenteiro tem que saber o que eacute um ajuste de precisatildeo natildeo basta ele seguir o desenho Ele tem que saber que dois centeacutesimos (de miliacutemetro) de erro pode com-prometer o funcionamento da ferramenta Por quecirc Eacute muito pouca coisa ele pode achar que natildeo errou nada Se ele entender de metrologia ele vai saber a importacircn-cia do ajuste Ateacute mesmo para criticar o desenho vocecirc tem que saber a influecircncia das medidas Eu jaacute vi acontecer o ferramenteiro tentar encaixar uma peccedila e ela natildeo entra de jeito nenhum Se tiver um centeacutesimo a mais natildeo encaixa mesmo vai te forccedilar para encaixar Se o cara conhece de ajuste de medidas ele natildeo vai forccedilar a peccedila Ele vai ajustar a medida para depois montar a peccedila (Ferramenteiro)

Para realizar o trabalho de acabamento pudemos verificar que os ferramenteiros mobi-

lizam outros saberes aleacutem daqueles oriundos da ldquometrologiardquo Observamos que para realizar

133

o acabamento eles se valem da sua percepccedilatildeo de centeacutesimos de miliacutemetros e da tecnologia de

corte da ldquousinagemrdquo

Esse trabalho de acabamento a gente tem que trabalhar buscando fazer um X tem passar a pedra sempre de forma cruzada sempre fazendo um X Sabe por quecirc Porque vocecirc nunca retira material por igual na superfiacutecie sempre sai mais de um lado do que do outro Isso acontece na maacutequina tambeacutem aliaacutes a gente soacute faz o acabamento na matildeo porque natildeo tem maacutequina que garanta dois centeacutesimos de preci-satildeo em toda superfiacutecie Se vocecirc compreender como o corte de material eacute feito na maacutequina vocecirc passa a compreender melhor como usar a pedra Entatildeo se vocecirc pas-sa a pedra em forma de X diminui a possibilidade de vocecirc passar a pedra num lu-gar soacute (Ferramenteiro)

Podemos afirmar embora esta possibilidade seja tratada com mais profundidade no

proacuteximo toacutepico que foram muitos os elementos encontrados em nossa pesquisa de campo que

demonstram que os ferramenteiros quaisquer que sejam os saberes que eles mobilizam soacute o

fazem por terem como referecircncia saberes que de alguma forma foram registrados e que por

isso mesmo podem em uma determinada circunstacircncia serem consultados ou ainda porque

foram disponibilizados por um outro colega de trabalho Dessa forma gostariacuteamos de salien-

tar que alguns saberes taacutecitos que os ferramenteiros mobilizam seratildeo mais bem percebidos

quando apresentarmos as estrateacutegias que eles criam para formalizar esses saberes

43 As ESTRATEacuteGIAS DOS FERRAMENTEIROS PARA FORMALIZAR OS SEUS SABERES TAacuteCITOS

O que eacute conhecido sempre parece sistemaacutetico provado aplicaacutevel e evidente para aquele que conhece Da mesma forma todo sistema alheio de conhecimento sem-pre parece contraditoacuterio natildeo provado inaplicaacutevel irreal e miacutestico (FLECK apud BURKE 2003)

Durante o periacuteodo em que ficamos imersos no campo de pesquisa foram muitas as ve-

zes em que os ferramenteiros sinalizaram uma preocupaccedilatildeo com a eficiecircncia ou com a vali-

dade dos seus saberes taacutecitos Constatamos tambeacutem que os ferramenteiros se mobilizavam

para tornaacute-los um objeto passiacutevel de ser comunicado de ser consultado para realizar um de-

134

terminado trabalho isto eacute um tipo de paracircmetro que de alguma forma eles pudessem usar em

situaccedilotildees futuras ou entatildeo para comunicaacute-lo aos seus pares no trabalho Ao nosso olhar esse

esforccedilo dos ferramenteiros em criar mecanismos que permitam comunicar os seus saberes taacute-

citos ou consultaacute-los quando for necessaacuterio pode ser entendido como estrateacutegias que eles

mesmos criam para formalizaacute-los De acordo com o dicionaacuterio Ferreira (1986 p 800) for-

malizar eacute ldquo[De forma + izar] vtd 1 ndash Dar forma a formar 2 ndash Realizar segundo as formulas

ou formalidades 3 ndash Executar conforme regras ou claacuteusulasrdquo Chamamos de estrateacutegias de

formalizaccedilatildeo ldquoos diaacuterios de bordo os croquis e os gabaritosrdquo que os ferramenteiros usam co-

mo forma de registrarem ou comunicarem os seus saberes taacutecitos No entanto ousaremos a-

presentar ldquoa memoacuteria e a reflexatildeordquo como uma espeacutecie de estrateacutegias particulares de formalizar

os saberes taacutecitos por parte dos ferramenteiros Eacute o que buscaremos apresentar de agora em

diante

Para Santos (1997) a imprevisibilidade e variabilidade das situaccedilotildees de trabalho a in-

fidelidade dos materiais e as vicissitudes do trabalho humano satildeo alguns dos fatores do traba-

lho real que resistem agrave formalizaccedilatildeo no trabalho prescrito Nossas observaccedilotildees no campo de

pesquisa bem como as entrevistas realizadas nos mostraram que de fato satildeo muitos os sabe-

res taacutecitos que escapam agraves estrateacutegias dos ferramenteiros em formalizaacute-los De acordo com

Santos (1997) o saber taacutecito pode ser da ordem do informalizaacutevel por dois motivos baacutesicos

Primeiro porque podem faltar na atualidade recursos de linguagem ou epistemoloacutegicos para a

formalizaccedilatildeo desse tipo de saber tal como para alguns saberes da engenharia Essa autora a-

inda fala que uma outra dificuldade em formalizar o saber taacutecito pode estar vinculada agraves bar-

reiras sociais e psiacutequicas que os trabalhadores podem ter para verbalizar uma experiecircncia En-

tretanto a proacutepria autora afirma que se de um lado isto significa que nem tudo pode ser sim-

bolizado codificado ou formalizado ldquopor outro lado demonstra que a experiecircncia deste in-

formalizaacutevel pode ser expressa em linguagens diferentes das usuaisrdquo (SANTOS 1997 p 20)

135

Santos (1997) entende que primeiro haacute saberes que ainda natildeo foram formalizados

mas que podem secirc-lo Segundo que haacute saberes que natildeo satildeo formalizaacuteveis Isto se aplica tanto

agravequeles que se inscrevem no trabalho real quanto a outros que satildeo oriundos da engenharia

De acordo com essa autora ldquoevidentemente o fato de que um saber natildeo foi ainda formalizado

natildeo significa que ele natildeo possa secirc-lo um diardquo (p 23) Santos (1997) faz uma criacutetica agrave perspec-

tiva que contesta a possibilidade de formalizaccedilatildeo dos saberes oriundos do chatildeo de faacutebrica

pois considera que tal noccedilatildeo se funda exclusivamente em um certo modelo de linguagem

proacuteprio do saber dos engenheiros ou seja do trabalho prescrito A autora aponta que um sa-

ber ainda natildeo formalizado pode se exprimir com os recursos de linguagem disponiacuteveis ao tra-

balhador da faacutebrica ou seja por linguagens que escapam ao modelo de formalizaccedilatildeo do traba-

lho prescrito pela engenharia

Como jaacute afirmamos anteriormente as estrateacutegias que os ferramenteiros usam para

formalizar os seus saberes taacutecitos se inscrevem tanto como um meio de registro desses sabe-

res quanto como uma forma de tornaacute-los comunicaacuteveis para si proacuteprio ou mesmo para o seu

coletivo de trabalho no presente ou no futuro

Dentre os vaacuterios relatos que coletamos alguns corroboram essa perspectiva apontada

por Santos (1997) de que os trabalhadores podem com sua proacutepria linguagem formalizar os

seus saberes taacutecitos Quando perguntamos aos ferramenteiros em que medida os saberes cons-

truiacutedos a partir da sua experiecircncia eram confiaacuteveis ou mesmo necessaacuterios um depoimento

nos pareceu revelador pelo seu conteuacutedo Ele indica que uma visatildeo mais ampliada do proces-

so de trabalho pode estar associada agrave capacidade dos ferramenteiros em formalizar os seus sa-

beres taacutecitos

E aiacute professor outro dia vocecirc me perguntou o que um ferramenteiro precisa saber tem um exemplo que estaacute acontecendo agora Eles estatildeo precisando da gente laacute na Fiat tem uma ferramenta dando problema laacute a linha estaacute parada Nessa hora o fer-ramenteiro natildeo pode soacute saber que o galo canta a gente tem que saber aonde o galo canta Quando a gente chegar laacute natildeo adianta falar que o produto natildeo estaacute bom a gente tem que localizar e acabar com o problema Eacute por isso que eu te falei o fer-ramenteiro completo um ferramenteiro bom natildeo eacute soacute aquele que monta as peccedilas

136

direitinho ele tem que saber o que eacute o quecirc Por que uma peccedila movimenta Ele tem que ter uma capacidade de monitorar a ferramenta quem sabe por que construiu com certeza vai ter mais facilidade para resolver qualquer problema (Ferramentei-ro)

Observamos que o uso das estrateacutegias por parte dos ferramenteiros para viabilizar a

comunicaccedilatildeo dos saberes taacutecitos no coletivo de trabalho serve tambeacutem como uma forma so-

cial de certificar a validade desse tipo de saber De certa forma isso indica que os saberes taacute-

citos dos ferramenteiros podem se inscrever a partir de uma ldquoperspectiva coletivardquo De acordo

com Collins apud Lima (1998) ldquoo saber estaacute nas situaccedilotildees no contexto em que se desenrola

a accedilatildeo o seu lugar por excelecircncia eacute o grupo social e natildeo a cabeccedila de seus membrosrdquo (p 144)

Em um depoimento que coletamos a necessidade que os ferramenteiros tecircm de se a-

poiar no seu coletivo de trabalho ao mesmo tempo em que remete agrave preocupaccedilatildeo em validar

os seus saberes taacutecitos nos revela tambeacutem a possibilidade de dar-lhes uma forma para co-

municaacute-los

O ferramenteiro nunca trabalha sozinho O que estaacute do lado de fora tem uma visatildeo do trabalho e pode ajudar o ferramenteiro que estaacute ligado diretamente trabalho Talvez uma opiniatildeo de quem estaacute do lado de fora da equipe dele que natildeo estaacute vi-vendo exatamente o trabalho mas a equipe que eacute composta por uma ceacutelula pode algueacutem chegar e dar uma opiniatildeo ele natildeo vai mudar soacute porque o outro falou os dois vatildeo discutir vatildeo saber exatamente qual que eacute melhor e vai fazer o que ele a-cha melhor (Mestre de ferramentaria)

Em um outro depoimento

Primeiro eu vou fazer uma colocaccedilatildeo eacute o seguinte quando a gente toma uma me-todologia de trabalho quando a gente de certa forma inventa o processo de traba-lho a ser feito eu particularmente nunca faccedilo isso soacute Eu tenho a minha opiniatildeo proacutepria mas sempre eu busco conselho eu busco opiniotildees de outras pessoas pra poder ver se as pessoas concordam com o meu pensamento porque a gente pode ser que esteja vendo a coisa por um lado com a opiniatildeo de outra pessoa a pessoa me apoacuteia e a gente realiza aquilo que eu imaginei ou entatildeo a pessoa me alerta so-bre determinado tipo de problema que pode acontecer se eu realmente levar em frente o que eu estou pensando sempre no meu caso eu procuro buscar opiniatildeo de outras pessoas e de preferecircncia pessoas mais experientes (Ferramenteiro)

137

A possibilidade de que a formalizaccedilatildeo dos saberes taacutecitos dos ferramenteiros dentre

outros motivos se decirc articulada ao coletivo do trabalho natildeo soacute eacute de conhecimento da empresa

T mas eacute assumida pela loacutegica do capital no sentido de melhorar o processo de trabalho Ve-

jamos a fala de um dos coordenadores da Ferramentaria

Hoje a metodologia que a gente implantou aqui na empresa eacute total liberdade do fer-ramenteiro desde de que ele discuta se tiver alguma duacutevida discuta com a chefia imediata ou colega sempre criaccedilatildeo e inovaccedilatildeo seraacute bem-vinda Mesmo se todo mundo que discutiu o assunto teve consciecircncia de que aquilo ia dar certo no final deu errado natildeo tem problema nenhum isso quer dizer que noacutes demos espaccedilo para ele criar talvez o resultado natildeo seja tatildeo satisfatoacuterio quanto imaginamos mas para outros que trabalham com certeza seraacute mais eficaz (Coordenador da ferramentaria)

a) Reflexatildeo

Aleacutem da influecircncia do coletivo de trabalho na formalizaccedilatildeo dos saberes taacutecitos mobili-

zados pelos ferramenteiros observamos que eles quase sempre submetiam estes saberes a um

ldquomomento de reflexatildeordquo o que de certa forma indica uma possibilidade de formalizaccedilatildeo Fo-

ram muitas as vezes em que nos deparamos com alguns ferramenteiros aparentemente sem

trabalhar Constatamos em alguns diaacutelogos inclusive junto agrave gerecircncia que dentro da Empresa

T esse ldquotempo paradordquo eacute tido como necessaacuterio ldquopara o tipo de trabalho que se faz na ferra-

mentariardquo Observamos que esse tempo para reflexatildeo permitia ao ferramenteiro aleacutem de uma

melhor compreensatildeo sobre o trabalho prescrito monitorar a mobilizaccedilatildeo dos seus saberes taacute-

citos e dar uma organizaccedilatildeo agraves suas ideacuteias Neste sentido torna-se exequumliacutevel por parte dos fer-

ramenteiros mobilizar saberes taacutecitos e ter uma razoaacutevel compreensatildeo sobre este processo

Essa possibilidade eacute bem explicitada nas situaccedilotildees em que os ferramenteiros manifestaram

uma sofisticada capacidade de abstraccedilatildeo ilustrada pela capacidade de fazer um trabalho e ao

mesmo tempo pensar em outro

Fazer uma coisa e estar pensando em outra eacute uma constante para o ferramenteiro porque para vocecirc realizar um trabalho vocecirc precisa pensar em como realizar o tra-balho A partir do momento que vocecirc comeccedila a realizar aquele trabalho manual de ajuste de acabamento soacute que a sua mente de certa forma estaacute um pouco vazia

138

porque aquele trabalho que vocecirc estaacute fazendo ateacute entatildeo jaacute foi projetado de como vocecirc deveria fazer Vocecirc pode estar executando da forma que vocecirc natildeo tinha pen-sado em fazer Aiacute no proacuteximo trabalho que vocecirc tem que fazer vocecirc estaacute pensando nele ainda entatildeo vocecirc estaacute executando o trabalho como vocecirc jaacute pensou em como fazer e vocecirc jaacute estaacute pensando no trabalho a ser feito Isso eacute constante (Ferramentei-ro)

Vejamos um outro depoimento

Natildeo tenha duacutevida que o ser humano tem essa capacidade de estar trabalhando e au-tomaticamente vislumbrando algo agrave frente Mas eacute interessante ressaltar que durante o processo de trabalho sua mente e sua visatildeo o seu processo de trabalho tem que estar focado na sua atividade principal Eacute loacutegico o seu ceacuterebro tem uma capacidade de comando e de raciociacutenio que eacute incalculaacutevel quem sou eu para mensurar isso Mas a atividade primaacuteria eacute que te demanda maior concentraccedilatildeo e isso natildeo te impe-de de ver outras coisas ou imaginar outras coisas mas com certeza o foco principal vocecirc estaacute concentrado na operaccedilatildeo que vocecirc estaacute executando naquela hora (Ferra-menteiro)

Ainda sobre a possibilidade de a reflexatildeo expressar uma certa formalizaccedilatildeo de saberes

Por exemplo fazer uma alteraccedilatildeo e aiacute eu pensei em como vou fazer essa alteraccedilatildeo Eu vou prender a peccedila dessa forma eu vou colocar essa broca vou furar o preacute-furo vou fazer esse furo de 17mm e vou pegar uma broca de 18mm Comeccedila a realizar o trabalho Eacute aquilo que eu falei anteriormente eu natildeo posso estar executando uma tarefa atraacutes da outra tarefa sem pensar no todo sem pensar no funcionamento E eu tenho que pensar no funcionamento Aiacute eu consigo ter soluccedilotildees para problemas fu-turos Isso jaacute estaacute na minha cabeccedila memorizado desde a primeira vez que eu fiz o trabalho e esse trabalho ficou memorizado entatildeo eu jaacute tenho uma noccedilatildeo de como realizar (Ferramenteiro)

Mesmo quando a rotina parece recobrir a capacidade de reflexatildeo podemos pensar num

conjunto de saberes acumulados portanto num niacutevel qualquer de formalizaccedilatildeo

Aiacute que eu falo tem uns pulos do gato a gente daacute uma paradinha para monitorar o que estamos fazendo quando eu falo que a gente jaacute sabe e natildeo precisa pensar de-mais eacute jeito de falar eacute claro que dou umas paradinhas soacute que pela minha experiecircn-cia eu natildeo preciso ficar uma hora duas horas pensando (Ferramenteiro)

Um outro depoimento tambeacutem expressa a possibilidade de haver como diz Schon

(2000) uma ldquoreflexatildeo no meio da accedilatildeordquo

139

A gente parte do pressuposto que toda vez que vocecirc quer ajustar uma determinada peccedila eacute porque vocecirc visa que essa peccedila eacute fundamental que ela tem acoplamento com a outra peccedila Durante o processo vocecirc vai fazendo uma microgestatildeo deste a-juste vocecirc vai passando a pasta de ajuste e a pasta de ajuste vai revelando para vo-cecirc quanto que a superfiacutecie taacute tocando se ela taacute tocando 50 da peccedila se taacute tocando 60 da peccedila cada ajuste que vocecirc vai aumentando vai chegando ateacute o limite miacute-nimo qual vocecirc precisa (Ferramenteiro grifo nosso)

Em nosso entendimento o uso da expressatildeo ldquonatildeo pensarrdquo por parte dos ferramenteiros

pode ser tomado como gastar ldquomenos tempo pensando ou pensar sem prestar muita atenccedilatildeo

neste atordquo o que envolve finalmente um tipo de ldquoreflexatildeordquo

b) Memoacuteria

Observamos ainda um outro caso que se articula com a preocupaccedilatildeo dos ferramentei-

ros com registro e comunicaccedilatildeo dos seus saberes taacutecitos e que se relaciona com as suas estra-

teacutegias de formalizaccedilatildeo desses saberes Trata-se do ldquouso da memoacuteriardquo ou dos artifiacutecios utiliza-

dos para preservaacute-la De acordo com Wisner (1987)

As tomadas de decisatildeo estatildeo longe de ser os uacutenicos componentes da atividade cog-nitiva ou mesmo os principais Existe a questatildeo das dificuldades perceptivas e das de identificaccedilatildeo e de reconhecimento O elemento mais criacutetico eacute provavelmente a memoacuteria quer seja imediata ou de longo prazo (p 175)

No que se refere aos ferramenteiros que abordamos ao mesmo tempo em que a me-

moacuteria eacute indicada por eles como um fator fundamental eles tambeacutem reconhecem os limites

da memoacuteria ou como eles proacuteprios dizem ldquoeacute difiacutecil de se guardar tudo na cabeccedilardquo Na maio-

ria dos depoimentos o uso da memoacuteria foi relacionado com a grande quantidade de compo-

nentes e informaccedilotildees contidas no desenho da ferramenta

O ferramenteiro usa muito a sua memoacuteria entatildeo ele sabe que natildeo deu certo Eacute soacute mediante a situaccedilatildeo de trabalho que ele vai lembrar porque ele tem uma etapa to-da um ferramental tem 300 500 itens eacute muita coisa pra ele lembrar mediante a si-tuaccedilatildeo eacute automaacutetico ele vai lembrar ldquoeu fiz daquele jeito deu errado agora eu fiz melhorei meu modo de pensarrdquo melhorei desenvolvi um meacutetodo melhor exata-

140

mente para aplicar na hora aquele passado vai ser apagado vai deletando a experi-ecircncia que deu errado (Ferramenteiro)

O depoimento seguinte ilustra o uso da memoacuteria como registro

Na ferramentaria um dia nunca eacute igual ao outro hoje eu tocirc mexendo com determi-nado serviccedilo pode este mesmo serviccedilo ou outro parecido voltar daqui uns anos Entatildeo eu natildeo posso simplesmente estaacute deixando aquilo pra traacutes eu tenho que guar-dar aqui na minha cabeccedila para quando eu encontrar aquela primeira dificuldade que eu tive na primeira vez Eacute esse o sentido que a gente tem de estaacute analisando um de-terminado serviccedilo e quando vocecirc torna a analisar de novo aquilo jaacute estaacute predefini-do daacute esta impressatildeo que estaacute guardado numa parte do seu ceacuterebro soacute quando vocecirc necessita que vocecirc vai laacute e resgata natildeo eacute em todo momento que vai ficar vin-do na sua cabeccedila (Ferramenteiro grifo nosso)

Verificamos ainda que os ferramenteiros em tese os mais experientes associaram o

registro por meio da ldquomemoacuteriardquo com o uso da visatildeo Ao encontrarmos um ferramenteiro com

quem jaacute viacutenhamos conversando observamos um aparente nervosismo com um colega que ha-

via mudado a sua ferramenta de posiccedilatildeo Ao justificar o porquecirc de tal nevorsismo ele acabou

por nos dizer que um colega lhe ensinou um macete para ter uma memoacuteria ldquofotograacuteficardquo atra-

veacutes de um certo jeito de olhar a ferramenta pelo melhor acircngulo

Eu sempre gosto de trabalhar com a ferramenta sempre numa posiccedilatildeo com a parte da frente virada para mim porque depois que vocecirc jaacute tem um certo contato com a ferramenta basicamente vocecirc decorou a ferramenta vocecirc quase nem olha mais o projeto Entatildeo se eu tenho sempre uma posiccedilatildeo aquela posiccedilatildeo eu decoro entatildeo agraves vezes eu brinco com os caras falo assim se eu estou nessa posiccedilatildeo olhando todos os componentes eu jaacute decorei entatildeo se eu tenho algum problema que eu natildeo consi-go resolver ele aqui agraves vezes laacute em casa pensando entatildeo eu jaacute estou em frente agrave ferramenta entatildeo aqui acontece isso ali acontece assim e tal Soacute desse jeito eu soacute trabalho com a ferramenta de frente pra mim de frente para minha bancada eacute a po-siccedilatildeo que eu trabalho Porque eu condicionei minha mente tambeacutem nisso Se eu te-nho uma dificuldade eu penso isso aqui vai nessa posiccedilatildeo ateacute mesmo pelo desenho mais para frente Vocecirc jaacute olha assim rapidinho jaacute sabe onde estaacute tal coisa (Ferra-menteiro)

Pudemos constatar que a ldquomemoacuteriardquo natildeo eacute somente uma forma passiva de subtrair in-

formaccedilotildees de um repertoacuterio dado pela experiecircncia de os ferramenteiros O uso da memoacuteria

permite ao ferramenteiro resgatar os saberes necessaacuterios agrave construccedilatildeo de uma nova ferramen-

141

ta Por isso podemos considerar a memoacuteria como parte de uma trama fundamental na forma-

lizaccedilatildeo dos saberes taacutecitos dos ferramenteiros

Gostariacuteamos de apresentar a partir de agora situaccedilotildees concretas que ao nosso ver

expressam as possibilidades dos ferramenteiros lanccedilarem matildeo de estrateacutegias mais comumente

reconhecidas no campo da linguagem para formalizarem os seus saberes taacutecitos Para aleacutem

das perspectivas anteriores de uso da memoacuteria e da reflexatildeo foi possiacutevel observar que os fer-

ramenteiros buscam formalizar os seus saberes taacutecitos principalmente por meio de ldquogabari-

tos diaacuterios de bordo e croquisrdquo que eles proacuteprios fazem

c) Diaacuterio de bordo

Como jaacute afirmamos anteriormente um dos fatores que tornam complexo o trabalho

dos ferramenteiros eacute a grande quantidade de informaccedilotildees sejam as postas pelo trabalho pres-

crito ou mesmo aquelas que tecircm a sua origem no trabalho real Constatamos que diante da ne-

cessidade de se trabalhar com um vasto repertoacuterio de informaccedilotildees e tambeacutem como jaacute foi di-

to pelo proacuteprio limite da memoacuteria em arquivar todas essas informaccedilotildees os ferramenteiros

buscam criar suas formas de registrar as situaccedilotildees que eles vivenciam Uma dessas formas de

registro eacute o chamado diaacuterio de bordo Os diaacuterios de bordo satildeo organizados quase sempre na

forma de pequenos textos registrados em blocos cadernetas ou mesmo em alguns desenhos

Em um depoimento fica explicitado como as anotaccedilotildees escritas por um ferramenteiro podem

lhe servir de registro

Eu particularmente eu anoto eu tenho como se fosse um diaacuterio de bordo onde eu anoto todas as ocorrecircncias mais importantes do meu dia-a-dia loacutegico que natildeo daacute pra gente anotar tudo mas as coisas mais importantes as decisotildees mais importan-tes do meu dia-a-dia eu sempre anoto no meu caderno e quando eu estou fora eu jaacute tive na Honda tive na Ford jaacute tive na Fiat eu sempre faccedilo um rascunhozinho para mim transcrever por meu diaacuterio de bordo isso eacute minha base de dados eacute a par-tir disso aiacute que eu vou manter certo conhecimento do trabalho a ser feito porque de certa forma vocecirc natildeo pode confiar tanto na memoacuteria entatildeo detalhes mesmo vocecirc soacute consegue se vocecirc anotar se vocecirc arquivar isso que vocecirc tomou aquela de-cisatildeo no momento (Ferramenteiro)

142

Mais adiante

Eu tento usar a minha memoacuteria para poder tentar buscar a soluccedilatildeo de certos pro-blemas e tentar reativar certos procedimentos de trabalho recentes A partir do momento que eu comecei a anotar no imediato as provas as decisotildees importantes que eu tomei as coisas que aconteciam durante a construccedilatildeo da ferramenta eu pas-sei a natildeo sobrecarregar tanto a memoacuteria com estes pontos Eu sei onde estaacute escrita determinada experiecircncia eu sei aonde tem um documento referente a um problema acontecido uma coisa que aconteceu natildeo tem que usar tanto a memoacuteria porque se natildeo se eu fizer isso eu posso estar de certa forma confundindo com o aconteci-mento que jaacute aconteceu com alguma coisa bem parecida Eu tento usar sempre al-guma coisa que eu escrevi uma coisa que eu jaacute deixei escrito (Ferramenteiro)

Chama a atenccedilatildeo tambeacutem um outro tipo de registro que nos foi revelado por esse

mesmo ferramenteiro e que vamos incluir aqui como uma modalidade de diaacuterio de bordo Tra-

ta-se de uma espeacutecie de minidicionaacuterio do tipo PortuguecircsInglecircs constituiacutedo por termos usa-

dos na ferramentaria Segundo esse ferramenteiro o seu interesse em realizar o minidicionaacuterio

deu-se a partir das aulas de inglecircs realizadas dentro da Empresa T

Nos primeiros dias do curso de inglecircs o professor pedia muito para a gente falar palavras do dia-a-dia da gente Eu fiquei curioso e usei muitas palavras da ferra-mentaria e inclusive aqui na empresa jaacute que a gente faz ferramenta para um seacuterie de montadoras tem normas em outras liacutenguas francecircs inglecircs Eu peguei e reparei que algumas palavras giacuterias da ferramentaria satildeo idecircnticas no inglecircs Depois disso eu comecei a anotar uns termos e o professor ficou interessado Entatildeo eu e ele es-tamos montando esse minidicionaacuterio (Ferramenteiro)

Aleacutem das anotaccedilotildees na forma de pequenos textos explicitadas em depoimentos anteri-

ores verificamos que as muacuteltiplas anotaccedilotildees feitas pelos ferramenteiros datildeo-se por meio de

outras linguagens tais como a matemaacutetica mais especificamente a geometria e a trigonome-

tria e ainda como veremos no proacuteximo item o croqui uma linguagem proacutexima das normas

do desenho mecacircnico Observamos ainda que essas linguagens podem ser usadas uma inde-

pendente da outra ou agraves vezes de maneira entrelaccedilada

No que se refere agrave presenccedila da ldquolinguagem matemaacutetica nas anotaccedilotildees dos ferramentei-

rosrdquo pudemos observar dentre aquelas que nos foram apresentadas que a maior parte satildeo

projeccedilotildees de um triacircngulo retacircngulo normalmente usado para dimensionar o deslocamento

de uma determinada parte da ferramenta Em uma das situaccedilotildees que presenciamos dois fer-

ramenteiros debatiam sobre o deslocamento de um componente da ferramenta na hora em que

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a mesma estiver sendo movimentada isto eacute em funcionamento Ao nos aproximarmos desses

ferramenteiros um deles nos apresentou o problema ldquoesse tipo de ferramenta eacute muito faacutecil de

ter trombamento10 e a gente tem que dar uma estudada Isso aqui eacute igual agrave gente sempre fala

o ferramenteiro tem que imaginar a ferramenta trabalhando antes mesmo dela estar construiacute-

dardquo Ao perguntarmos se os dois se entendiam soacute simulando mentalmente a ferramenta traba-

lhando um dos ferramenteiros fez uma seacuterie de traccedilados na forma de triacircngulos retacircngulos

(Fig 7) mostrando como funciona uma movimentaccedilatildeo por cunha

Nesse caso aqui taacute vendo A gente para entender melhor para explicar para o co-lega agraves vezes eacute necessaacuterio fazer um croqui fazer um tipo de desenho soacute para ver o tanto que a peccedila vai deslocar Usando o desenho do triacircngulo daacute para ver Na ver-dade a cunha eacute um triacircngulo Se vocecirc disser que para resolver esse problema eacute bom o cara conhecer trigonometria eacute claro que ajuda mas aqui noacutes resolvemos is-so soacute simulando a movimentaccedilatildeo pelo croqui Aleacutem de resolver o problema eacute mais faacutecil para explicar (Ferramenteiro)

Figura 7 Croqui elaborado a partir de uma projeccedilatildeo simulada do deslocamen-to de triacircngulo retacircngulo

10 Os ferramenteiros chamam de trombamento quando os componentes moacuteveis da ferramenta natildeo terminam sua trajetoacuteria por trombarem literalmente em um outro componente

144

Em uma conversa com um dos mestres em ferramentaria da Empresa T ele nos rela-

tou a capacidade dos ferramenteiros em trabalhar com relaccedilotildees trigonomeacutetricas sem terem um

domiacutenio preciso dos caacutelculos dessa aacuterea ou mesmo por uma questatildeo de opccedilatildeo de trabalho

Tem serviccedilo que ele vai te exigir um caacutelculo de trigonometria mas quando o fer-ramenteiro natildeo se lembra ou natildeo sabe a foacutermula ele pode simular Por exemplo vocecirc desenha o trabalho da ferramenta depois recorta com tesoura aiacute vocecirc desce por exemplo uns 40 mm e vocecirc mede o tanto que a outra parte avanccediloursquorsquo (Mestre de ferramentaria)

d) Croquis

Muito embora desde o iniacutecio do trabalho de campo os ferramenteiros nos revelassem

uma certa necessidade de anotar algumas informaccedilotildees foi a partir do interesse de alguns deles

em nos explicar o seu trabalho que percebemos a possibilidade de eles usarem as suas anota-

ccedilotildees como um tipo de formalizaccedilatildeo que viabilizasse a comunicaccedilatildeo com seus colegas de tra-

balho Durante os vaacuterios diaacutelogos que travamos com os ferramenteiros observamos que eles

de forma insistente a todo o momento para se fazerem compreender desenhavam ldquocroquisrdquo

em papeacuteis para facilitar as suas explicaccedilotildees A partir de um determinado momento observa-

mos que mais do que uma mania os ferramenteiros elaboravam ldquocroquisrdquo ou mesmo alguns

traccedilos geomeacutetricos para se orientarem na execuccedilatildeo da sua atividade ou para facilitar a interlo-

cuccedilatildeo com um colegaVejamos um depoimento

Esse eacute um dos lados bons da ferramentaria vocecirc aprende muitas formas de pensar de fazer um trabalho diferente Soacute para te dar um exemplo tem cara aqui que te en-sina soacute com um croqui isso eacute muito comum na ferramentaria Quando tem um de-senho complicado eu falo o desenho da ferramenta eacute comum um cara mais expe-riente pegar o papel fazer um croqui e te falar oh essa peccedila aqui vai fazer esse movimento e ao mesmo tempo essa outra vai fazer isso aqui Isso ajuda demais tem hora que um papinho com um colega um croqui te ajuda sair do sufoco (Fer-ramenteiro)

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Quando comentamos com um mestre de ferramentaria sobre a dificuldade de comuni-

caccedilatildeo de saberes entre dois ferramenteiros ainda que experientes coletamos a seguinte anaacuteli-

se

Uma coisa eacute vocecirc ter domiacutenio e conhecimento de um determinado trabalho outra coisa eacute vocecirc conseguir transmitir isso em palavras ou ateacute mesmo em accedilotildees Porque agraves vezes vocecirc pode ser muito bom para fazer e natildeo tem essa faculdade de ensinar entatildeo aleacutem de saber fazer eacute bom que vocecirc aprenda pelo menos um miacutenimo de transmitir para o outro Como Atraveacutes da fala atraveacutes de um desenho atraveacutes de um croqui atraveacutes de um exemplo agraves vezes vocecirc fazendo ateacute mesmo a primeira peccedila para que a outra pessoa que tem menos experiecircncia possa aprender com vo-cecirc (Mestre de ferramentaria grifo nosso)

Encontramos uma outra situaccedilatildeo interessante onde tambeacutem nos pareceu possiacutevel que

os ferramenteiros usem o croqui como uma estrateacutegia de formalizaccedilatildeo dos seus saberes taacuteci-

tos Em uma de nossas estadias na faacutebrica um dos ferramenteiros nos disse que um outro co-

lega lhe ajuda muito a compreender ldquoos segredos da ferramenta e da vida tambeacutemrdquo Vejamos

o relato desse ferramenteiro

Tem uma cara aqui que me ajuda muito eacute o neguinho Quando o serviccedilo daacute uma caiacuteda aqui e sobra um tempinho a gente fica fazendo uns testes com o desenho da ferramenta a gente fica fazendo croqui treinando caacutelculo O neguinho sabe muita coisa Tudo dele eacute no croqui ele quer te ensinar um caacutelculo explicar um movimen-to da ferramenta eacute no croqui Tem coisa na ferramenta que eacute difiacutecil de enxergar Pois eacute jaacute aconteceu um monte de vez eu natildeo enxergo um negoacutecio faccedilo um croqui e fico pensando como a ferramenta funciona e aos poucos a gente vai enxergando (Ferramenteiro)

Identificamos uma outra forma de anotar ou registrar dos ferramenteiros que se articu-

la com a mobilizaccedilatildeo de diversos saberes taacutecitos e que foi inclusive incorporada pelo traba-

lho prescrito na organizaccedilatildeo do trabalho da Empresa T Trata-se de um trabalho que caracteri-

zamos no capiacutetulo anterior chamado por eles de leiaute Neste tipo de trabalho os ferramen-

teiros por meio de um pincel atocircmico ou um pincel do tipo ldquomarcatudordquo fazem as suas anota-

ccedilotildees na proacutepria ferramenta indicando medidas que natildeo estatildeo claras no desenho da ferramenta

Vejamos como um dos ferramenteiros argumenta sobre a importacircncia do leiaute

146

Sempre que eu pego independente do projeto se eacute um projeto que eu estou traba-lhando ou se eacute um projeto que eu vou mandar pra usinagem eu costumo pegar as coordenadas que o operador da maacutequina vai usar Se por exemplo ele vai ter que fazer quatro furos de coluna eu pego o projeto modifico as quatro coordenadas e marco com o marca texto Porque eu vou auxiliar ele tambeacutem o operador ele natildeo precisa ficar procurando onde eacute que estaacute as coordenadas e de certa forma o dese-nho ele tem muita coordenada entatildeo ele natildeo vai errar porque se eu marquei para ele a coordenada ele jaacute sabe opa a coordenada eacute essa aqui porque fui eu que marquei Agora se ele for olhar que tem duas coordenadas com diferenccedila de cinco miliacutemetros uma do lado da outra ele pega a de baixo ele pega e matou o furo (Ferramenteiro)

Ainda sobre a importacircncia do leiaute

O leiaute eacute muito importante pode ateacute parecer bobagem mas o cara que faz o lei-aute tem que ter muita responsabilidade Aquelas marcaccedilotildees que o ferramenteiro faz na ferramenta mostra um monte de coisa coisas que agraves vezes o desenho natildeo mostra ou mostra de forma muito confusa Agora para fazer o leiaute o ferramen-teiro tem que saber ler o desenho ele tem que ter uma manha (Ferramenteiro)

Neste sentido eacute importante reafirmar que o acesso agrave linguagem no trabalho (NOU-

ROUDINE 2002) ou seja agravequela que circula entre os ferramenteiros eacute fundamental para

formalizar os saberes taacutecitos Aleacutem da constataccedilatildeo de que os ferramenteiros se valem de suas

anotaccedilotildees em variadas formas para auxiliar na formalizaccedilatildeo dos seus saberes taacutecitos verifi-

camos tambeacutem que haacute situaccedilotildees que solicitam dos ferramenteiros estrateacutegias de formalizaccedilatildeo

de saberes taacutecitos alternativas agraves suas anotaccedilotildees

e) Gabaritos

Observamos que os saberes taacutecitos mobilizados pelos ferramenteiros aleacutem de apontar

uma lacuna do trabalho prescrito acabam por lhe favorecer comunicar esses saberes com o

seu coletivo de trabalho Isso ficou constatado nos ldquogabaritosrdquo que os ferramenteiros usam pa-

ra aferir um trabalho conhecido como ajuste da ldquolinha de corte da ferramentardquo11 Constata-

11 A linha de corte eacute responsaacutevel pelas medidas que indicam onde o produto se separa da chapa em bruto Assim por exemplo se um produto a ser estampado for um disco com 100 mm de diacircmetro a linha de corte seria toda a

147

mos dada a sua recorrecircncia que estes gabaritos satildeo de certa forma consagrados pelos ferra-

menteiros para formalizar os seus saberes taacutecitos Dentre os gabaritos mais usados para servir

de paracircmetro no ajuste da linha de corte observamos o uso da ldquofita crepe do papel do tipo lsquoo-

ficiorsquo e do papel alumiacuteniordquo Esses materiais satildeo colocados sobre a linha de corte da ferramen-

ta e depois de movimentaacute-la eles verificam a sua aparecircncia Por exemplo a ldquofita creperdquo ras-

gada indica o que deve ser feito em termos de ajuste ocorrendo o mesmo se ela estiver intacta

ou esticada Em uma determinada situaccedilatildeo um ferramenteiro se dispocircs a nos demonstrar co-

mo ele usava a ldquofita creperdquo para verificar o ajuste da linha de corte Apoacutes nos mostrar o estado

em que ficou a ldquofita creperdquo e fazer a sua anaacutelise ele nos disse o seguinte ldquoViu Ela quase natildeo

foi tocada agora vocecirc pode perguntar para a maioria dos ferramenteiros aqui dentro pelo me-

nos os mais experientes tenho certeza todo mundo vai dizer para natildeo ajustar maisrdquo Este fer-

ramenteiro fez um sinal com a matildeo para que um outro ferramenteiro se aproximasse de onde

estaacutevamos e neste iacutenterim nos sugeriu que perguntaacutessemos a este ferramenteiro mostrando-

lhe a ldquofita creperdquo em que ponto estava o trabalho de ajustagem da linha de corte Apoacutes fazer-

mos a pergunta ouvimos o seguinte comentaacuterio

Pela minha praacutetica posso te dizer que esse ajuste estaacute basicamente pronto agora eacute no leiaute Vocecirc pode usar outro tipo papel sabia Eacute bom fazer esses testes Soacute com a medida do desenho natildeo daacute para dizer se taacute bom Chega uma hora que esse trabalho tem que ser devagar mesmo ah Natildeo sei se vocecirc sabe mas o corte pode ser ajustado com tinta tambeacutem Natildeo vou falar que eacute um segredo porque muito fer-ramenteiro sabe mas isso eacute soacute na praacutetica mesmo (Ferramenteiro)

Observamos que os ferramenteiros elaboram outros ldquogabaritosrdquo a partir de uma rea-

propriaccedilatildeo de ldquogabaritosrdquo postos pelo trabalho prescrito A situaccedilatildeo que melhor expressa essa

possibilidade manifestou-se tambeacutem no ajuste da linha de corte da ferramenta Primeiramen-

te este trabalho como jaacute foi dito anteriormente eacute apontado no trabalho prescrito como a ser

definido pelo ferramenteiro Segundo que em relaccedilatildeo a este tipo de trabalho existe um saber

borda externa do disco Entretanto dados os fenocircmenos fiacutesicos no comportamento da chapa de accedilo a medida da linha de corte eacute sempre objeto de estudos anaacutelises da engenharia e dos ferramenteiros

148

tido como cientiacutefico formalizado pelo trabalho prescrito em forma de tabelas que apenas se

aproximam do real Todavia o trabalho prescrito indica ainda o uso de recurso material uma

ldquopasta coloridardquo para fazer o controle desse trabalho de ajustagem da linha de corte da ferra-

menta

Eacute importante salientar que o uso desses gabaritos pelos ferramenteiros muitas vezes eacute

acompanhado do uso dos sentidos corporais tais como ldquoa visatildeo o tato e a audiccedilatildeordquo Vejamos

um depoimento de um ferramenteiro sobre a sua forma de ajustar a linha de corte da ferra-

menta

O ajuste da linha de corte eacute o seguinte no projeto as medidas estatildeo todas maiores e aiacute eacute a gente que define Soacute que o seguinte de acordo com o projeto a peccedila macho deve descer 10 miliacutemetros eu soacute desccedilo 1 mm por que no iniacutecio o ajuste entre a peccedila macho e a peccedila fecircmea estaacute muito justo pode ateacute estragar a ferramenta Antes de descer a peccedila a gente passa uma pasta vermelha em uma das partes entatildeo depois que vocecirc separa as partes uma delas fica marcada de vermelho no lugar mostrando a parte que deve ser ajustada Ai eacute que tem outro pulo do gato vocecirc natildeo ir soacute pela marca vermelha porque tem diferenccedila tem um vermelho que eacute mais fraco outro mais escuro ou mais forte E daiacute Acontece que se o cara natildeo for maldoso natildeo for experiente ele natildeo repara direito que tem mais de um vermelho e tira co-mo base o vermelho fraco ele soacute vai ver esse erro na hora que a peccedila sair com rebarba Ele vai dizer que fez tudo certo e fez mesmo soacute que ele natildeo viu ou natildeo sabe que de acordo com a pressatildeo do ajuste a cor da pasta muda (Ferramenteiro)

Ao comentar o que o teria levado a desenvolver esse tipo de saber este ferramenteiro

nos relatou o seguinte

Eacute depois que eu matei algumas eu aprendi isso eu passei a deixar bem escuro porque eu sei que estaacute forccedilando agraves vezes ateacute range na entrada O que eacute ranger Eacute quando a peccedila entra raspando outra peccedila tocando a outra peccedila forccedilando mesmo Entatildeo vocecirc percebe que tem interferecircncia eacute uma peccedila empurrando a outra se natildeo range eacute o quecirc Estaacute uma passando bem proacutexima da outra mas sem tocar sem es-barrar Entatildeo aquele vermelho fica escuro porque uma peccedila toca a outra com muita forccedila (Ferramenteiro)

De um modo geral os ferramenteiros demonstraram que o uso de um determinado sa-

ber taacutecito eacute mediado por estrateacutegias de formalizaccedilatildeo dos seus saberes taacutecitos que dentre ou-

tros objetivos coloca-se como uma forma de os deixar mais seguros no uso destes saberes

Um dos nossos entrevistados ao tentar explicar o porquecirc da sua confianccedila na coloraccedilatildeo das

149

peccedilas acabou por nos indicar mais elementos que vinculam o uso de sentidos do corpo com

momentos de abstraccedilatildeo sobre o funcionamento da ferramenta

Isso eacute garantido mesmo natildeo falha natildeo Vocecirc pode usar a tinta vermelha ou a azul A tinta azul eacute bom para trabalhar agrave noite porque o azul quando ele passa uma parte para outra forccedilando mesmo para rangir ele fica branco entatildeo ele mostra a parte do accedilo que estaacute refilado O vermelho para o dia eacute melhor porque ele fica preto entatildeo eacute mais faacutecil identificar o preto do vermelho entatildeo vocecirc sabe que ali tem uma parte-zinha para sair Para um ferramenteiro experiente eacute bem faacutecil porque natildeo tem co-mo errar a diferenccedila de coloraccedilatildeo ela eacute bem notoacuteria entatildeo o ferramenteiro ele sabe distinguir o vermelho normal que foi a tinta que ele passou inicialmente e o ver-melho escuro que eacute onde estaacute refilando que eacute onde deveria ser tirado (Ferramen-teiro)

Por outro lado observamos ainda que os ferramenteiros mesmo se valendo dos ldquodiaacute-

rios de bordo dos croquisrdquo ou dos seus ldquogabaritosrdquo apresentam um certo desconforto diante

da complexidade do trabalho de ferramentaria

Esse eacute o sofrimento do ferramenteiro ele soacute vai ter certeza daquilo que ele fez mediante ao resultado Se ele estaacute em duacutevida todos noacutes temos duacutevidas mas vocecirc tem que executar pra saber se realmente aquilo vai ser um resultado satisfatoacuterio Existem situaccedilotildees que natildeo tem jeito de fazer um raio o modelo do carro que eles estatildeo querendo o ferramental natildeo consegue executar por isso que tem que ter todo um processo antes disto que eacute o processo de protoacutetipo para saber se realmente vai conseguir fazer (Ferramenteiro)

Se em alguns depoimentos os ferramenteiros lamentam que a certeza na ferramenta-

ria soacute eacute dada pelo produto final por outro lado percebemos tambeacutem que eles valorizam a

sua praacutetica no chatildeo de faacutebrica como um momento educativo ldquoO ferramenteiro aprende todo

diardquo Dessa forma o ldquover na praacuteticardquo menos do que um limite pode ser tomado como uma

etapa na elaboraccedilatildeo das suas estrateacutegias de produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes

taacutecitos Ateacute porque observamos que os ferramenteiros buscam fazer pequenos testes micro-

experiecircncias com provaacuteveis situaccedilotildees que envolvem a construccedilatildeo da ferramenta E ainda ve-

rificamos que muitos saberes taacutecitos para serem desenvolvidos demoraram anos de trabalho e

demandaram muitas observaccedilotildees Segundo a fala de um dos ferramenteiros ldquoTem um tempatildeo

que eu jaacute vinha observando esse negoacutecio do retorno de chapa entatildeo eu fui pegando a manha

150

de como a chapa se comportardquo Em um outro depoimento ldquoTem coisas que a gente desconfia

vocecirc observa um dia ali depois fala com colega aqui e fica com aquilo na cabeccedila Agraves vezes eacute

laacute no final que vocecirc compreende tudo eacute laacute no final que vocecirc vecirc que uma coisa que vocecirc jaacute

desconfiava tinha um certo sentido uma certa loacutegicardquo

Dessa forma fica constatado natildeo soacute que os saberes taacutecitos se inscrevem ao longo da

vida dos ferramenteiros bem como se verifica um princiacutepio racional que alimenta estes sabe-

res Observamos que estes saberes ainda que natildeo formalizados numa linguagem cientiacutefica ou

precariamente formalizados pelas estrateacutegias dos ferramenteiros natildeo satildeo na maioria dos ca-

sos soluccedilotildees produzidas em alguns minutos ou para ser mais contundente estes saberes natildeo

satildeo um lance de uacuteltima hora Daiacute decorrem as constantes referecircncias que ferramenteiros mes-

tres e gerecircncia fazem agrave experiecircncia desses profissionais na ferramentaria

Gostariacuteamos de relembrar que se ateacute entatildeo apresentamos em toacutepicos isolados as es-

trateacutegias dos ferramenteiros para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos eacute

porque como jaacute dissemos buscamos uma forma de tornar mais claras as situaccedilotildees deste com-

plexo campo de trabalho que eacute a ferramentaria Neste sentido eacute necessaacuterio salientar que nos-

sa pesquisa de campo aponta que as estrateacutegias de produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo se

articulam entre si Por fim a possibilidade de que ferramenteiros criem estrateacutegias tambeacutem

taacutecitas para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos indica natildeo soacute a distacircncia

entre o trabalho prescrito e o trabalho real bem como revela o seu caraacuteter histoacuterico social

cultural e subjetivo o que nos permite afirmar que o trabalho dos ferramenteiros se articula

como diz Santos (1997) ao movimento da vida Para finalizar um uacuteltimo depoimento de um

ferramenteiro sobre a insuficiecircncia do trabalho prescrito em determinar as medidas da linha de

corte da ferramenta

O certo seria pela folga que a tabela indica entendeu Soacute que nunca daacute aiacute se jaacute der rebarba natildeo tem como acertar isso mais natildeo Que dizer igual eu te falei para dar certo chega uma hora o projeto deixa de existir Essas coisas satildeo assim vocecirc erra ali faz um teste aqui quando vocecirc assusta vocecirc jaacute estaacute sabendo muita coisa (gri-fo nosso)

151

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ocultar o modo de presenccedila na Histoacuteria de certas classes ou camadas sociais eacute sem duacutevida um meio de lhes negar um papel Questatildeo poliacutetica sim mas que envolve uma outra epistemoloacutegica Se a cultura integra mal as transformaccedilotildees sociais e humanas que satildeo tecidas em niacutevel das forccedilas produtivas noacutes podemos falar de uma cultura empobrecida E se a ciecircncia eacute uma forma de cultura eacute provaacutevel que a uma cultura pobre corresponda uma ciecircncia empobrecida A articulaccedilatildeo entre estas duas dimensotildees eacute portanto necessaacuteria (Schwartz apud Santos 1997 p 123)

Acreditamos que nossa pesquisa atingiu em boa medida o objetivo de identificar as

estrateacutegias tambeacutem taacutecitas elaboradas pelos ferramenteiros da Empresa T para produzir

mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos Mesmo reconhecendo as limitaccedilotildees do nosso

trabalho entendemos que a anaacutelise dos dados obtidos na pesquisa pode contribuir para o

debate em diversos foacuteruns e segmentos sociais

Assim identificamos caminhos que chamamos de estrateacutegias criados pelos

trabalhadores ferramenteiros a partir da sua relaccedilatildeo com o cotidiano de trabalho para produzir

mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos aleacutem de apresentar situaccedilotildees nas quais os

trabalhadores reuacutenem condiccedilotildees de reapropriar saberes oriundos da ciecircncia e da tecnologia

Neste sentido ao nosso ver evidenciamos as vaacuterias possibilidades de o trabalho se constituir

como um espaccedilo educativo

Acreditamos que trouxemos elementos que podem ser aproveitados pelas poliacuteticas

puacuteblicas e privadas de educaccedilatildeo profissional tais como o uso dos sentidos como a visatildeo o

tato a audiccedilatildeo a influecircncia da dimensatildeo do coletivo de trabalho assim como o recurso a

formas racionais ainda que distintas da formalidade cientiacutefica quando se trata de produzir

mobilizar e formalizar saberes pelos trabalhadores no trabalho Consideramos tambeacutem que

152

essa pesquisa possa se somar agravequelas voltadas para a educaccedilatildeo de jovens e adultos agrave medida

que demonstra as possibilidades de formaccedilatildeo humana presentes no trabalho o que se traduz na

importacircncia de se considerar o trabalho como dimensatildeo fundamental nas experiecircncias de

educaccedilatildeo de jovens e adultos Por fim acreditamos que ao identificar o poder de produzir

mobilizar e formalizar saberes taacutecitos praacutetica que envolve atividade de criaccedilatildeo interpretaccedilatildeo

e reflexatildeo dos trabalhadores ferramenteiros chamamos a atenccedilatildeo para a necessidade de se

levar em consideraccedilatildeo os seus pontos de vista sobre o trabalho e sobre a educaccedilatildeo em

qualquer proposta de formaccedilatildeo de trabalhadores

Acreditamos ainda que nossa pesquisa traz elementos que auxiliam os trabalhadores

e as suas entidades representativas a refletir sobre a presenccedila e o valor de saberes taacutecitos no

processo produtivo contribuindo para a construccedilatildeo de estrateacutegias que possam como diz

Santos (1997) resgatar o valor epistemoloacutegico social econocircmico poliacutetico e cultural do saber

do trabalhador Neste sentido ressaltamos o caraacuteter histoacuterico social e subjetivo dos saberes

taacutecitos refutando a tendecircncia a considerar este tipo de saber de forma naturalizada Por fim

salientamos que os trabalhadores capazes que satildeo de dialogar com saberes de diversas

ordens se apresentam como interlocutores privilegiados na construccedilatildeo do projeto de

sociedade que queremos sobretudo no que se refere aos assuntos ligados ao trabalho

Haacute que se dizer que ao mesmo tempo em que a complexidade teacutecnica da

ferramentaria enriqueceu esta pesquisa ela tambeacutem nos exigiu um enorme esforccedilo para

interpretar os dados que coletamos bem como para tornar o nosso texto compreensiacutevel Como

acreditamos ter evidenciado satildeo poucas as atividades industriais que apresentam tatildeo intenso

apelo agrave sofisticaccedilatildeo tecnoloacutegica e ao mesmo tempo um consideraacutevel reconhecimento de

saberes oriundos da experiecircncia do ldquochatildeo de fabricardquo como eacute o caso da ferramentaria

Podemos afirmar que a nossa pesquisa corrobora as reflexotildees de Aranha 1997

Santos 1997 Daniellou Teiger e Laville 1989 Lima 1998 que apresentam a distacircncia entre

153

o trabalho prescrito e o trabalho real como um fator que solicita dos trabalhadores o uso de

saberes taacutecitos nas lacunas deixadas neste caso pela prescriccedilatildeo do desenho da ferramenta Os

limites do trabalho prescrito se evidenciaram ainda mais agrave medida que constatamos que a

proacutepria gerecircncia reserva um espaccedilo para que os ferramenteiros faccedilam eles proacuteprios uma

prescriccedilatildeo para o andamento da construccedilatildeo da ferramenta como por exemplo no try-out

Constatamos tambeacutem que a maioria dos ferramenteiros principalmente os mais experientes

satildeo cocircnscios dos limites do trabalho prescrito

Curioso observar que os ferramenteiros mobilizam uma parte dos seus saberes taacutecitos

antes mesmo de emergirem as demandas do trabalho real ao interpretarem o trabalho

prescrito notoriamente o desenho da ferramenta Podemos inferir que se eles usam os seus

saberes taacutecitos para interpretar o desenho da ferramenta antes que esse tipo de prescriccedilatildeo se

mostre distante do trabalho real isso significa que os seus saberes taacutecitos satildeo mobilizados

todo o tempo independentemente de constatarem as lacunas do trabalho prescrito Em nosso

entendimento ao inveacutes de demonstrar uma submissatildeo agrave prescriccedilatildeo confere-se aos saberes dos

ferramenteiros uma exigecircncia de reflexatildeo nem sempre percebida imediatamente

Em nossa pesquisa foi possiacutevel verificar que de fato os ferramenteiros tecircm uma

grande dificuldade de explicitar os saberes taacutecitos Diversas vezes observamos que falta a eles

e tambeacutem aos engenheiros termos para expressar uma determinada situaccedilatildeo Entretanto

verificamos que essa dificuldade em explicitar os saberes taacutecitos natildeo impede que os

ferramenteiros os mobilizem ou os comuniquem na relaccedilatildeo que manteacutem com o seu coletivo

de trabalho O uso dos termos ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo ldquomelhor jeito de

trabalharrdquo expressa que por meio de suas proacuteprias estrateacutegias eles podem com as linguagens

que lhes satildeo disponiacuteveis formalizar os seus saberes taacutecitos Daiacute podermos afirmar que o uso

dessas estrateacutegias representa natildeo soacute uma tentativa dos ferramenteiros de formalizar os seus

saberes mas indica tambeacutem que eles tecircm uma certa consciecircncia dos limites e possibilidades

154

dos diversos tipos de linguagem Em alguns casos a nossa experiecircncia de operaacuterio somada ao

tempo que ficamos imersos no campo de pesquisa foram fundamentais para acessarmos parte

das linguagens e dos coacutedigos usados pelos ferramenteiros da Empresa T

Se por um lado como jaacute dissemos nossa pesquisa foi enriquecida pela complexidade

teacutecnica da ferramentaria que exige que os ferramenteiros criem estrateacutegias para dar conta da

produccedilatildeo por outro lado essa mesma complexidade se transfere para a temaacutetica do saber

taacutecito o que nos colocou diante de desafios nem sempre facilmente equacionados

Confessamos que muitas vezes a riqueza dos dados coletados natildeo ganhou uma

correspondecircncia de riqueza da anaacutelise

Verificamos que algumas situaccedilotildees se mostraram mais intensas durante o trabalho de

campo do que pudemos explicitar na escrita da dissertaccedilatildeo como por exemplo a relaccedilatildeo do

uso do corpo com a criaccedilatildeo de estrateacutegias para produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de

saberes Alguns atributos fiacutesicos podem demandar o uso de um determinado tipo de saber

taacutecito ou mesmo explicar em parte as diferenccedilas entre as estrateacutegias usadas pelos

ferramenteiros Ao observamos que eles buscam uma melhor posiccedilatildeo para por exemplo

identificar uma falha na superfiacutecie de uma peccedila podemos inferir que a partir de uma mesma

distacircncia do alvo no caso a ferramenta alturas diferentes resultam em acircngulos diferentes

Eacute importante dizer que essa dissertaccedilatildeo apresenta alguns limites que podem vir a

constituir objetos para futuras pesquisas Nesse sentido por exemplo o nosso trabalho de

campo evidenciou a importacircncia do uso do corpo nas estrateacutegias que os ferramenteiros criam

para produzir mobilizar e formalizar os sus saberes taacutecitos No entanto tivemos imensa

dificuldade em encontrar na literatura especializada subsiacutedios que nos permitissem avanccedilar na

anaacutelise desse fenocircmeno

Ainda um outro limite da nossa pesquisa deu-se pela dificuldade posta pela anaacutelise das

estrateacutegias de formalizaccedilatildeo Uma parte dessa dificuldade pode ser tributada agrave dimensatildeo

155

imaterial de algumas estrateacutegias como por exemplo a ldquomemoacuteriardquo e a ldquoreflexatildeordquo Uma anaacutelise

mais aprofundada sobre os limites e as possibilidades dessas estrateacutegias e da contribuiccedilatildeo

delas para a formalizaccedilatildeo de saberes taacutecitos resta por fazer Por outro lado mesmo as

estrateacutegias revestidas de uma materialidade como os ldquodiaacuterios de bordordquo os ldquocroquisrdquo e os

ldquogabaritosrdquo apresentaram uma dificuldade para serem analisados uma vez que natildeo foi faacutecil

compreendermos totalmente como essas estrateacutegias se articulam entre um uso individual e um

compartilhamento coletivo no esforccedilo dos ferramenteiros para formalizarem os seus saberes

taacutecitos

Por fim uma outra dificuldade de analisar as estrateacutegias de formalizaccedilatildeo foi posta pela

linguagem muitas vezes extremamente teacutecnica nos depoimentos o que dificultou natildeo soacute a

exposiccedilatildeo desses depoimentos mas tambeacutem a anaacutelise dos dados e a da nossa redaccedilatildeo da

dissertaccedilatildeo E ainda em alguns casos as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros e que

poderiam ilustrar a nossa anaacutelise eram formalizadas em linguagens compreensiacuteveis apenas

para estes profissionais

Todavia mesmo diante das dificuldades encontradas ao longo dessa pesquisa

podemos afirmar que os ferramenteiros da empresa T criam estrateacutegias tambeacutem taacutecitas para

produzir mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos Ousamos afirmar tambeacutem que os

saberes produzidos mobilizados e formalizados pelos ferramenteiros diversas vezes

colocados agrave prova no processo de trabalho expressam uma racionalidade ainda que distinta

dos padrotildees formais da ciecircncia Verificamos ainda que uma parte dessas estrateacutegias eacute

parcialmente formalizada e transformada em um procedimento utilizado frequumlentemente pelos

ferramenteiros e que as suas estrateacutegias de produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes

taacutecitos lhes datildeo a confianccedila necessaacuteria para realizar o seu trabalho

156

Obs 1 Caro Eduardo favor incluir esse texto antecedendo a figura 1 2 3 4 e 5 Achei melhor que esse texto vaacute para depois de todas as citaccedilotildees na pg 117 antecedendo o toacutepico Melhor jeito de trabalhar Outra coisa a definiccedilatildeo das figuras em 3d ficaria melhor se elas fossem divididas duas por paacuteg Apesar de que na Empresa T haacute um software que fornece um desenho em 3D os ferramenteiros

conseguem esse tipo de projeccedilatildeo por meio de uma abstraccedilatildeo ou como eles dizem ldquovisualizando

em 3Drdquo Para ilustrar a estrateacutegia de ldquovisualizar em 3Drdquo tomemos como exemplo as Figuras 1

2 3 4 e 5 A Figura 1 corresponde ao desenho de uma ferramenta posto em uma forma plana

isto eacute bidimensional As Figuras 2 3 4 e 5 correspondem agrave Figura 1 em uma forma

tridimensional Eacute importante comentar que o avanccedilo das figuras indica uma visualizaccedilatildeo mais

depurada da ferramenta ou seja para se chegar agrave visualizaccedilatildeo em 3D da Figura 4 eacute necessaacuterio

uma maior capacidade de abstraccedilatildeo do ferramenteiro

Obs 2 Em relaccedilatildeo a pg 131 favor incluir fig 5 no iniacutecio da pg

() Estes saberes nos foram explicitados (fig 5) ainda que somados aos saberes

Obs 3 manter no texto do jeito que estaacute ou seja apenas fig 6

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POSTHUMA A C Autopeccedilas na encruzilhada modernizaccedilatildeo desarticulada e desnacionalizaccedilatildeo In ARBIX G ZILBOVICIUS De JK a FHC a reinvenccedilatildeo dos carros Satildeo Paulo Scritta 1997

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159

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SNELWAR L I amp MASCIA F L A inteligecircncia (natildeo reconhecida) do trabalho In ARBIX G ZILBOVICIUS De JK a FHC a reinvenccedilatildeo dos carros Satildeo Paulo Scritta 1997

SOUZA-e-SILVA M C P FAITA Daniel Linguagem e trabalho Satildeo Paulo Cotez 2002

SOUZA P R Autonomia dos operadores e trabalho de convencimento na produccedilatildeo contiacutenua Belo Horizonte (Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Escola de Engenharia da UFMG) 2002

TAYLOR W Princiacutepios da administraccedilatildeo cientiacutefica Satildeo Paulo Atlas1980

THIOLLENT M O processo de entrevista In Criacutetica metodoloacutegica investigaccedilatildeo social e enquete operaacuteria Satildeo Paulo Poacutelis 1980

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WOMACK J JONES D A maacutequina que mudou o mundo Rio de Janeiro Campus 1992

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GAZETA MERCANTIL Balanccedilo anual Satildeo Paulo 2003

160

  • 1 parte corrigidodoc
    • Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Conhecimento e Inclusatildeo social
    • SUMAacuteRIO
      • Agradecimentosdoc
      • Cap 01doc
        • Eacute salutar que um trabalho de pesquisa para ser apreendido em sua totalidade seja abordado desde a sua concepccedilatildeo O objeto dessa pesquisa qual seja as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros de uma induacutestria metaluacutergica da regiatildeo metropolitana de Belo Horizonte para a produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e organizaccedilatildeo de seus saberes no trabalho surgiu de uma perspectiva aberta pelo encontro da nossa formaccedilatildeo escolar da vivecircncia como trabalhador de uma induacutestria metaluacutergica com o debate sobre o mundo do trabalho o que gerou um interesse em compreender os saberes produzidos no processo de trabalho Neste sentido entendemos que eacute importante fazer uma recuperaccedilatildeo de uma parte dessa experiecircncia no setor fabril da nossa inserccedilatildeo no universo teoacuterico sobre o mundo do trabalho e a dimensatildeo que esse encontro tomou na construccedilatildeo do objeto que norteia esta pesquisa
        • A nossa formaccedilatildeo iniciou-se no Senai aos 14 anos de idade por meio do curso de Torneiro Mecacircnico de um ano e meio e posteriormente no periacuteodo da noite mais um ano de Frezador Mecacircnico Logo depois iniciamos tambeacutem no turno da noite o Curso Teacutecnico em Mecacircnica no Cefet-MG A esta formaccedilatildeo somou-se a nossa entrada no trabalho ocorrida aos 15 anos de idade Nesse periacuteodo o nosso discernimento a respeito do trabalho comeccedilou a ganhar contornos mais elaborados influenciado pelo intercacircmbio que havia entre noacutes colegas de trabalho e de curso o que produzia uma troca de informaccedilotildees ricas e variadas
          • Se por um lado entendemos como necessaacuterio apresentar a nossa problematizaccedilatildeo sobre a hipoacutetese de que os ferramenteiros possam desenvolver estrateacutegias para produzir mobilizar e formalizar seus saberes por outro lado eacute importante salientar que ao definirmos as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros como produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes natildeo buscamos demarcar uma separaccedilatildeo hermeacutetica entre elas e sim analisar se as suas semelhanccedilas e diferenccedilas se articulam Por este motivo apresentaremos um breve debate sobre essas trecircs categorizaccedilotildees
          • 13 O referencial teoacuterico
          • 14 As estrateacutegias metodoloacutegicas
            • 142 Instrumentos de pesquisa
              • Cap 02doc
                • Eacute mesmo agrave praacutetica que por definiccedilatildeo se refere o saber fazer () Em numerosos casos o saber-fazer designa uma competecircncia global um ofiacutecio ou uma destreza num domiacutenio mais ou menos amplo da praacutetica humana () Os saberes-fazer satildeo portanto para noacutes actos humanos disponiacuteveis em virtude de terem sido apreendidos (seja de que maneira for) e experimentados (p 79)
                • Sobre a fecundidade da relaccedilatildeo entre linguagem e trabalho Faita e Souza-e-Silva (2002) afirmam que ldquoDiversos fatores podem explicar a emergecircncia de tal interesse o mais importante deles encontra-se no peso e na importacircncia que as atividades de simbolizaccedilatildeo passaram a ter na realizaccedilatildeo do trabalhordquo (p 7) Ainda que o interesse dos linguumlistas pelo trabalho como objeto de estudo seja um fenocircmeno recente a literatura sobre essa temaacutetica jaacute acumula importantes reflexotildees para apontar a diversidade de enfoques e de campos de intervenccedilatildeo caracteriacutesticos da aacuterea Dentre as vaacuterias possibilidades de contribuiccedilatildeo para esta pesquisa uma foi acolhida com maior profundidade pois nos permitiu analisar a relaccedilatildeo entre o trabalho e a linguagem em uma perspectiva multifacetada Trata-se de uma abordagem defendida por Nouroudine (2002) que apresenta uma triparticcedilatildeo da relaccedilatildeo trabalholinguagem cujos eixos seriam dados pelas modalidades ldquolinguagem como trabalhordquo ldquolinguagem no trabalhordquo e ldquolinguagem sobre o trabalhordquo
                • Para Lacoste apud Nouroudine (2002) a elaboraccedilatildeo dessa triparticcedilatildeo ldquopermitiu remediar confusotildees disseminadas separando como verbalizaccedilatildeo falas provocadas e exteriores agrave situaccedilatildeo e como comunicaccedilatildeo falas que fazem parte da atividade de trabalhordquo (p 17) De acordo com Nouroudine (2002 p 18) a distinccedilatildeo entre esses trecircs aspectos da linguagem atende a uma opccedilatildeo metodoloacutegica que busca identificar os mecanismos de funcionamento da relaccedilatildeo trabalholinguagem e ainda a um interesse epistemoloacutegico na medida em que poderia evidenciar as ligaccedilotildees e as diferenccedilas desses mecanismos de funcionamento Neste sentido eacute importante salientar que de modo algum os diferentes aspectos da relaccedilatildeo trabalholinguagem satildeo estanques entre si e sim que existe uma estreita ligaccedilatildeo entre os trecircs aspectos da linguagem embora como afirma Nouroudine (2002) cada um deles possa aparentar ainda problemas de ordem praacutetica e epistemoloacutegica bem distintos No que se refere agrave nossa pesquisa a distinccedilatildeo entre as vaacuterias dimensotildees da relaccedilatildeo linguagem e trabalho pode lanccedilar luzes sobre a explicitaccedilatildeo ou natildeo dos saberes taacutecitos pois nos facilita compreender as estrateacutegias que os trabalhadores mobilizam para viabilizar a comunicaccedilatildeo de saberes no trabalho Essa triparticcedilatildeo considera que respectivamente haacute linguagens que fazem o trabalho que circulam no trabalho e que interpretam o trabalho as quais seratildeo explicadas a seguir
                  • 244 Comentaacuterios sobre as estrateacutegias taacutecitas
                      • Cap 03doc
                        • 332 A Empresa T
                          • Cap 04doc
                          • Cap 05 Consideraccedilotildees finais definitivadoc
                          • Observaccedilotildeesdoc
                          • Referecircncias bibliograacuteficasdoc
                            • REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Page 2: A pedagogia da ferramenta: estratégias de produção, mobilização … · 2019. 11. 14. · entrevistas semi-estruturadas realizadas com os ferramenteiros e observações de campo

Universidade Federal de Minas Gerais

Faculdade de Educaccedilatildeo

Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Conhecimento e Inclusatildeo social

Geraldo Maacutercio Alves dos Santos

A pedagogia da ferramenta estrateacutegias de produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes taacutecitos criadas pelos ferramenteiros de uma induacutestria metaluacutergica

Dissertaccedilatildeo apresentada ao programa de poacutes-graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Conhecimento e Inclusatildeo Social da Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade Federal de Minas Gerais ndash UFMG como preacute-requisito para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de mestre em Educaccedilatildeo Orientadora Professora Dra Eloiacutesa Helena Santos

Belo Horizonte 2004

ii

SUMAacuteRIO

Agradecimentos v Resumo viii Reacutesumeacute ix 1 Introduccedilatildeo 1 11 Estruturaccedilatildeo da pesquisa 4 12 Porquecirc investigar a presenccedila de saberes no processo de trabalho 6 121 A Produccedilatildeo de saberes 11 122 A mobilizaccedilatildeo de saberes 15 123 A formalizaccedilatildeo de saberes 18 13 O referencial teoacuterico 22 14 As estrateacutegias metodoloacutegicas 27 141 Revisatildeo bibliograacutefica 28 142 Instrumentos de pesquisa 29 1421 A pesquisa documental 29 1422 Entrevistas semi-estruturadas 29 1423 Observaccedilatildeo de campo 31 143 Os sujeitos da pesquisa 31 144 O desenvolvimento da pesquisa o meu contato com a empresa pesquisada 32 145 No olho do furaccedilatildeo entre homens e maacutequinas 33 2 O ldquolugarrdquo do saber no mundo do trabalho 37 21 O saber nos modelos de organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho 37 22 O saber no trabalho 40 23 O saber taacutecito do trabalhador 44 24 Do saber vinculado agrave praacutetica um ponto de vista sobre o saber taacutecito 47 241 Saber taacutecito entre um uso instrumental e a construccedilatildeo de saberes 53 242 O saber taacutecito e a linguagem 59 243 Corpo mente e o saber taacutecito 69 244 Comentaacuterios sobre as estrateacutegias taacutecitas 75 3 A ferramentaria e as atividades industriais 78 31 A escolha do setor automotivo e especificamente do setor de autopeccedilas 79 311 As autopeccedilas 80 312 Relaccedilatildeo entre fornecedores de autopeccedilas e montadoras 82 32 A ferramentaria 83 321 Quem eacute e o que faz um ferramenteiro 85 322 A excepcionalidade do ferramenteiro breve nota sobre um trabalho muito aleacutem das prescriccedilotildees 88 33 O grupo B e a Empresa T 91

iii

331 As empresas do grupo B 92 332 A Empresa T 93 333 A organizaccedilatildeo do trabalho na Empresa T 95 334 A ferramentaria como ela eacute o trabalho prescrito e o trabalho real na ferramentaria 91 4 O trabalho real na ferramentaria a hora e a vez dos saberes taacutecitos dos ferramenteiros 106 41 As estrateacutegias dos ferramenteiros para produzir os seus saberes taacutecitos107 42 As estrateacutegias dos ferramenteiros para mobilizar os seus saberes121 43 As estrateacutegias dos ferramenteiros para formalizar os seus saberes taacutecitos134 Consideraccedilotildees finais 152 Referecircncias bibliograacuteficas 157

iv

AGRADECIMENTOS

A minha matildee Adelina que desde a minha infacircncia foi tambeacutem meu pai e me

ensinou a ver na feacute Cristatilde o valor da perseveranccedila do amor ao proacuteximo e da compreensatildeo Agrave

memoacuteria do meu pai Geraldo Alves que em nossa curta relaccedilatildeo deixou o legado da luta pela

vida A minha famiacutelia e ldquoamigos de casardquo Kaacutetia Clebinho Cidinha Roberto Ofeacutelia Caio

Paula Ciro Humberto Carlatildeo e ao pequeno Lucas

A Eloiacutesa Helena Santos a difiacutecil tarefa de agradecer Antes de tudo pelo seu passado

de respeito aos trabalhadores Os seus ensinamentos as suas orientaccedilotildees e as bibliografias

indicadas me permitiram um razoaacutevel avanccedilo acadecircmico Desde os primeiros encontros a sua

ajuda esteve aleacutem da orientaccedilatildeo do estilo da escrita agrave coragem do debate da paciecircncia agrave

amizade Serei sempre grato

A Antocircnia Vitoacuteria pela carinhosa acolhida agraves minhas inquietaccedilotildees pela

disponibilidade de sempre por ter me mostrado a importacircncia de voltar ao chatildeo de faacutebrica

Agradeccedilo por ter aceitado o convite para estar em nossa Banca

Ao professor Francisco de Paula Lima pela sua disponibilidade para o debate pelo

seu interesse em transformar o trabalho por ter aceitado participar da nossa Banca

Ao professor Antocircnio Juacutelio de Menezes por estar sempre aberto ao diaacutelogo pelo seu

interesse com as causas sociais por ter aceitado participar da nossa Banca

Aos professores e colegas do Nete que sempre nos acolheram e estiveram abertos ao

diaacutelogo Adriana Fernando Daisy Cunha Luciacutelia Dalila Justino Walter Ude Rosacircngela

Bebeto Mariana Veriacutessimo e Rogeacuterio Cunha

Aos funcionaacuterios da FAE em especial Rose Claacuteudio Elcio Claudia Adriana

Aos colegas de mestrado que estiveram conosco

Aos amigos do Uni-bh que desde a nossa graduaccedilatildeo satildeo solidaacuterios com a nossa

caminhada Em nome de todos esses eu dedico este trabalho ao professor e excepcional

amigo Wellington de Oliveira pelas inuacutemeras orientaccedilotildees por ter nos mostrado a

possibilidade de avanccedilar sobre o mundo do trabalho

Aos trabalhadores da Empresa T do chatildeo de faacutebrica ao escritoacuterio e Recursos

Humanos que ao seu modo sempre compartilharam os seus saberes conosco em especial aos

ferramenteiros que nos ensinaram um pouco do seu complexo ofiacutecio e nos encheram de

orgulho pela noccedilatildeo que tecircm dos seus saberes e da ideacuteia de coletivo Sabemos que

historicamente os trabalhadores tecircm motivos de sobra para escolher o que falar a hora de

falar e com quem falar Por isso achamos legiacutetima a posiccedilatildeo dos que falaram menos

v

O SER HOMEM SEGUNDO OS METALUacuteRGICOS

Haveria entre os metaluacutergicos um ponto de vista particular uma eacutetica ou uma forma

de se sentir homem Para aleacutem do risco de estar sendo machista o termo ser homem guarda

uma valorizaccedilatildeo para os que satildeo humanos com os colegas Daiacute que agradeccedilo aos inuacutemeros

colegas que me ensinaram a ser homem digo mais humano Desde o iniacutecio aos quinze anos

como torneiro mecacircnico pudemos aprender o que eacute ser e que natildeo eacute ser humano que a vida eacute

dentro e fora da faacutebrica Cleydson Fernando Vladimir Rocircmulo Minhoca Ater Ribeiro

Agradecemos aos que nos pagaram um pingado nas portarias das faacutebricas no

CincoContagem metaluacutergico que se preze jaacute procurou emprego no Cinco Aliaacutes quer

conhecer um metaluacutergico Vaacute a portaria de uma faacutebrica nos dias em que estatildeo ldquofichando

genterdquo Em uma dessas portarias eu ouvi pela primeira vez uma voz um carro de som e

algueacutem dizer ldquoCompanheirosrdquo Era a voz de Paulo Funghi e em seu nome eu dedico aos

outros tantos que satildeo exemplos da dignidade e da inteligecircncia operaacuteria Ao Marcelino

Edmundo Edgar e Faustatildeo em nome dos outros sindicalistas de Betim que debaixo do sol de

meio-dia ou sob o frio ou sob a chuva em vaacuterias madrugadas resistiram agraves provocaccedilotildees da

vigilacircncia e se posicionaram por melhores condiccedilotildees de trabalho Aos metaluacutergicos da Teksid

com os quais eu compartilhei muitas alegrias e anguacutestias dentro e fora da faacutebrica Zeacute Carlos

Jonas Vandeir Marcatildeo Chaveco Faacutebio Juacutelio Martinez Juacutelio (de Monlevade) Camilo Tiatildeo

Loctite Levi Adenor Joaquim Jaime Olimpio Chicos Elcio Paulo Couto Julinho do

Bolinha Baiano Buiuacute Nelson Pescador Liu Maacuterio Seacutergio

Um agradecimento especial ao Juracy Caratildeo e Orlando dois exemplos de honestidade

e solidariedade aos colegas dois homens que natildeo se importando com a truculecircncia natildeo se

deixaram intimidar e defenderam o direito a uma Cipa que funcione a sauacutede no trabalho dois

homens que devem ficar em nossa memoacuteria como exemplo de solidariedade Muito obrigado

por terem entendido que esta pesquisa eacute tambeacutem de vocecircs

Por fim retiraremos do anonimato um ferramenteiro da Teksid Era comum entre noacutes

fazermos uma lista de contribuiccedilotildees para ajudar um colega em situaccedilatildeo difiacutecil Em uma delas

ao levar a lista a este ferramenteiro ele me passou o dinheiro e no lugar onde deveria assinar

acabou fazendo um risco Ao dizer a ele para escrever o seu nome pois assim o nosso colega

poderia agradecer-lhe ele me respondeu mais ao menos assim ldquoNatildeo importa o nome importa

o exemplo que ele saiba que algueacutem o ajudou que ele jamais se esqueccedila dissordquo O nome

desse ferramenteiro eu natildeo lembro acho que nunca soube mas seu apelido era XUXA

ferramenteiro da manutenccedilatildeo do alumiacutenio Afinal natildeo importa o nome o importante eacute que o

vi

feito do homem permaneccedila em nossa memoacuteria como exemplo de humanismo O que eacute ser um

homem Eacute provaacutevel que a resposta esteja em construccedilatildeo mas natildeo me faltaram exemplos Daiacute

assumo daiacute confesso fui um metaluacutergico digo um peatildeo metaluacutergico

vii

RESUMO

Esta dissertaccedilatildeo tem como objeto de estudo as estrateacutegias que os ferramenteiros de uma induacutestria metaluacutergica da regiatildeo metropolitana de Belo Horizonte criam para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos Trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo que utilizou aleacutem da revisatildeo bibliograacutefica e documentos produzidos pelos trabalhadores entrevistas semi-estruturadas realizadas com os ferramenteiros e observaccedilotildees de campo O interesse pelo objeto dessa pesquisa surgiu das nossas reflexotildees como trabalhador metaluacutergico e da constataccedilatildeo de que a literatura que discute a presenccedila de saberes no processo de trabalho natildeo aborda as estrateacutegias criadas por um tipo de trabalhador o ferramenteiro Para desvelar o objeto dessa dissertaccedilatildeo utilizamos referenciais teoacutericos que discutem os modelos de organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho bem como os autores que seguindo a tradiccedilatildeo marxiana referendam o princiacutepio educativo do trabalho Contamos tambeacutem com os autores que a partir da noccedilatildeo oriunda da ergonomia de trabalho prescrito e trabalho real discutem a presenccedila do saber taacutecito no processo produtivo E ainda recorremos aos autores que analisam os saberes taacutecitos sob pontos de vistas variados

viii

REacuteSUMEacute

Cette recherche a comme objet drsquoeacutetude les strateacutegies creacuteeacutees par les outilleurs drsquoune industrie meacutetalurgique de la reacutegion de Belo Horizonte pour produire mobiliser et formaliser leurs savoirs tacites Il srsquoagit drsquoune recherche qualitative qui a utiliseacute au deacutelagrave de la reacutevision bibliografique lrsquoanalyse de documents produits par lrsquoenterprise et les travailleurs des entrevieus semi-structureacutees reacutealiseacutees avec les outilleurs et des observations Lrsquointeacuterecirct pour cet objet est neacute de nocirctres reflexions comme travailleur de la meacutetalurgie et de la constatation que la liteacuterature qui discute la preacutesence des savoirs dans le processus de travail ne prend pas les strateacutegies creacuteeacutees par un type de travailleur le outilleur Pour deacutevoiler lrsquoobject de recherche nous utilisons des reacutefeacuterences theacuteoriques qui discutent les modegraveles drsquoorganisation et de gestion du travaille aussi bien que les auteurs qui drsquoapregraves la tradition marxiste discutent le principie eacuteducatif du travail Nous avons pris aussi des auteurs qui font la distintion entre travail prescrit et travail reacuteel drsquoapregraves lrsquoergonomie pour signaler la preacutesence de savoirs tacites dans la production Nous avons pris encore des auteurs que analysent les savoirs tacites lons plusieurs angles

ix

BANCA EXAMINADORA

Professora Dra Eloiacutesa Helena Santos (Orientadora)- Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade

Federal de Minas GeraisUFMG

Professora Dra Antocircnia Vitoacuteria Soares Aranha - Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade Federal de Minas GeraisUFMG

Professor Dr Francisco de Paula Antunes Lima - Departamento de engenharia da produccedilatildeo da Universidade Federal de Minas GeraisUFMG

Professor Dr Antocircnio Juacutelio de Menezes Neto (suplente) - Faculdade de Educaccedilatildeo da

Universidade Federal de Minas GeraisUFMG

x

AGRADECIMENTOS

A minha matildee Adelina que desde a minha infacircncia foi tambeacutem meu pai e me

ensinou a ver na feacute Cristatilde o valor da perseveranccedila do amor ao proacuteximo e da compreensatildeo Agrave

memoacuteria do meu pai Geraldo Alves que em nossa curta relaccedilatildeo deixou o legado da luta pela

vida A minha famiacutelia e ldquoamigos de casardquo Kaacutetia Clebinho Cidinha Roberto Ofeacutelia Caio

Paula Ciro Humberto Carlatildeo e ao pequeno Lucas

A Eloiacutesa Helena Santos a difiacutecil tarefa de agradecer Antes de tudo pelo seu passado

de respeito aos trabalhadores Os seus ensinamentos as suas orientaccedilotildees e as bibliografias

indicadas me permitiram um razoaacutevel avanccedilo acadecircmico Desde os primeiros encontros a sua

ajuda esteve aleacutem da orientaccedilatildeo do estilo da escrita agrave coragem do debate da paciecircncia agrave

amizade Serei sempre grato

A Antocircnia Vitoacuteria pela carinhosa acolhida agraves minhas inquietaccedilotildees pela

disponibilidade de sempre por ter me mostrado a importacircncia de voltar ao chatildeo de faacutebrica

Agradeccedilo por ter aceitado o convite para estar em nossa Banca

Ao professor Francisco de Paula Lima pela sua disponibilidade para o debate pelo

seu interesse em transformar o trabalho por ter aceitado participar da nossa Banca

Ao professor Antocircnio Juacutelio de Menezes por estar sempre aberto ao diaacutelogo pelo seu

interesse com as causas sociais por ter aceitado participar da nossa Banca

Aos professores e colegas do NETE que sempre nos acolheram e estiveram abertos ao

diaacutelogo Adriana Fernando Daisy Cunha Luciacutelia Dalila Justino Walter Ude Rosacircngela

Bebeto Mariana Veriacutessimo e Rogeacuterio Cunha

Aos funcionaacuterios da FAE em especial Rose Claacuteudio Elcio Claudia Adriana

Aos colegas de mestrado que estiveram conosco

Aos amigos do Uni-bh que desde a nossa graduaccedilatildeo satildeo solidaacuterios com a nossa

caminhada Em nome de todos esses eu dedico este trabalho ao professor e excepcional

amigo Wellington de Oliveira pelas inuacutemeras orientaccedilotildees por ter nos mostrado a

possibilidade de avanccedilar sobre o mundo do trabalho

Aos trabalhadores da Empresa T do chatildeo de faacutebrica ao escritoacuterio e Recursos

Humanos que ao seu modo sempre compartilharam os seus saberes conosco em especial aos

ferramenteiros que nos ensinaram um pouco do seu complexo ofiacutecio e nos encheram de

orgulho pela noccedilatildeo que tecircm dos seus saberes e da ideacuteia de coletivo Sabemos que

historicamente os trabalhadores tecircm motivos de sobra para escolher o que falar a hora de

falar e com quem falar Por isso achamos legiacutetima a posiccedilatildeo dos que falaram menos

O SER HOMEM SEGUNDO OS METALUacuteRGICOS

Haveria entre os metaluacutergicos um ponto de vista particular uma eacutetica ou uma forma

de se sentir homem Para aleacutem do risco de estar sendo machista o termo ser homem guarda

uma valorizaccedilatildeo para os que satildeo humanos com os colegas Daiacute que agradeccedilo aos inuacutemeros

colegas que me ensinaram a ser homem digo mais humano Desde o iniacutecio aos quinze anos

como torneiro mecacircnico pudemos aprender o que eacute ser e que natildeo eacute ser humano que a vida eacute

dentro e fora da faacutebrica Cleydson Fernando Vladimir Rocircmulo Minhoca Ater Ribeiro

Agradecemos aos que nos pagaram um pingado nas portarias das faacutebricas no

CincoContagem metaluacutergico que se preze jaacute procurou emprego no Cinco Aliaacutes quer

conhecer um metaluacutergico Vaacute a portaria de uma faacutebrica nos dias em que estatildeo ldquofichando

genterdquo Em uma dessas portarias eu ouvi pela primeira vez uma voz um carro de som e

algueacutem dizer ldquoCompanheirosrdquo Era a voz de Paulo Funghi e em seu nome eu dedico aos

outros tantos que satildeo exemplos da dignidade e da inteligecircncia operaacuteria Ao Marcelino

Edmundo Edgar e Faustatildeo em nome dos outros sindicalistas de Betim que debaixo do sol de

meio-dia ou sob o frio ou sob a chuva em vaacuterias madrugadas resistiram agraves provocaccedilotildees da

vigilacircncia e se posicionaram por melhores condiccedilotildees de trabalho Aos metaluacutergicos da Teksid

com os quais eu compartilhei muitas alegrias e anguacutestias dentro e fora da faacutebrica Zeacute Carlos

Jonas Vandeir Marcatildeo Chaveco Faacutebio Juacutelio Martinez Juacutelio (de Monlevade) Camilo Tiatildeo

Loctite Levi Adenor Joaquim Jaime Olimpio Chicos Elcio Paulo Couto Julinho do

Bolinha Baiano Buiuacute Nelson Pescador Liu Maacuterio Seacutergio

Um agradecimento especial ao Juracy Caratildeo e Orlando dois exemplos de honestidade

e solidariedade aos colegas dois homens que natildeo se importando com a truculecircncia natildeo se

deixaram intimidar e defenderam o direito a uma Cipa que funcione a sauacutede no trabalho dois

homens que devem ficar em nossa memoacuteria como exemplo de solidariedade Muito obrigado

por terem entendido que esta pesquisa eacute tambeacutem de vocecircs

Por fim retiraremos do anonimato um ferramenteiro da Teksid Era comum entre noacutes

fazermos uma lista de contribuiccedilotildees para ajudar um colega em situaccedilatildeo difiacutecil Em uma delas

ao levar a lista a este ferramenteiro ele me passou o dinheiro e no lugar onde deveria assinar

acabou fazendo um risco Ao dizer a ele para escrever o seu nome pois assim o nosso colega

poderia agradecer-lhe ele me respondeu mais ao menos assim ldquoNatildeo importa o nome importa

o exemplo que ele saiba que algueacutem o ajudou que ele jamais se esqueccedila dissordquo O nome

desse ferramenteiro eu natildeo lembro acho que nunca soube mas seu apelido era XUXA

ferramenteiro da manutenccedilatildeo do alumiacutenio Afinal natildeo importa o nome o importante eacute que o

feito do homem permaneccedila em nossa memoacuteria como exemplo de humanismo O que eacute ser um

homem Eacute provaacutevel que a resposta esteja em construccedilatildeo mas natildeo me faltaram exemplos Daiacute

assumo daiacute confesso fui um metaluacutergico digo um peatildeo metaluacutergico

1 INTRODUCcedilAtildeO

Eacute salutar que um trabalho de pesquisa para ser apreendido em sua totalidade seja abor-

dado desde a sua concepccedilatildeo O objeto dessa pesquisa qual seja as estrateacutegias usadas pelos

ferramenteiros de uma induacutestria metaluacutergica da regiatildeo metropolitana de Belo Horizonte para a

produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e organizaccedilatildeo de seus saberes no trabalho surgiu de uma perspectiva

aberta pelo encontro da nossa formaccedilatildeo escolar da vivecircncia como trabalhador de uma induacutes-

tria metaluacutergica com o debate sobre o mundo do trabalho o que gerou um interesse em com-

preender os saberes produzidos no processo de trabalho Neste sentido entendemos que eacute

importante fazer uma recuperaccedilatildeo de uma parte dessa experiecircncia no setor fabril da nossa

inserccedilatildeo no universo teoacuterico sobre o mundo do trabalho e a dimensatildeo que esse encontro to-

mou na construccedilatildeo do objeto que norteia esta pesquisa

A nossa formaccedilatildeo iniciou-se no Senai aos 14 anos de idade por meio do curso de

Torneiro Mecacircnico de um ano e meio e posteriormente no periacuteodo da noite mais um ano de

Frezador Mecacircnico Logo depois iniciamos tambeacutem no turno da noite o Curso Teacutecnico em

Mecacircnica no Cefet-MG A esta formaccedilatildeo somou-se a nossa entrada no trabalho ocorrida aos

15 anos de idade Nesse periacuteodo o nosso discernimento a respeito do trabalho comeccedilou a ga-

nhar contornos mais elaborados influenciado pelo intercacircmbio que havia entre noacutes colegas

de trabalho e de curso o que produzia uma troca de informaccedilotildees ricas e variadas

Em que pese a contribuiccedilatildeo da formaccedilatildeo teacutecnica que tivemos foi no cotidiano do meu

trabalho e na realidade concreta da produccedilatildeo que surgiram as nossas inquietaccedilotildees mais impor-

1

tantes Estas foram encontrar guarida no nosso contato com os estudos da aacuterea de trabalho e

educaccedilatildeo em suas argumentaccedilotildees em defesa da centralidade da categoria trabalho e do princiacute-

pio educativo aiacute presente possibilitando a construccedilatildeo de uma problemaacutetica que gerou este

objeto de pesquisa

Logo em nosso iniacutecio como trabalhador metaluacutergico em 1986 o contato com a reali-

dade do trabalho nos colocou diante de novidades que contribuiacuteram para a construccedilatildeo da nos-

sa identidade de trabalhador e nos proporcionou uma aprendizagem que ultrapassou os limi-

tes da educaccedilatildeo formal Ainda movido pela disciplina dos tempos de Senai qualquer condiccedilatildeo

adversa era encarada como desafio a ser enfrentado por quem pretendia ser ldquobom de serviccedilordquo

o que implicava executar um trabalho muitas vezes sem o devido preparo ou o uso de equi-

pamentos de seguranccedila obsoletos Esta realidade nos fazia mobilizar saberes de toda ordem e

chamava a nossa atenccedilatildeo para os saberes dos meus colegas

Em 1992 iniciamos um estaacutegio de teacutecnico mecacircnico em uma empresa metaluacutergica do

setor de autopeccedilas pertencente ao grupo Fiat Apoacutes seis meses de estaacutegio fomos efetivado

como teacutecnico no setor de manutenccedilatildeo e implantaccedilatildeo de equipamentos Isso se deu exatamente

no momento em que a empresa iniciou um trabalho preparatoacuterio para sua certificaccedilatildeo de a-

cordo com as exigecircncias do mercado automobiliacutestico tal como a ISO 90001 Em seguida

veio a QS 9000 uma adaptaccedilatildeo da anterior feita pelas empresas automobiliacutesticas norte- ame-

ricanas Chrysler Ford e General Motors A adequaccedilatildeo agrave reestruturaccedilatildeo produtiva atraveacutes des-

tes sistemas de normas busca tornar o processo produtivo mais confiaacutevel tecnicamente e mais

controlaacutevel tambeacutem Ambos os sistemas determinam que sejam criados registros conhecidos

como procedimentos por meio dos quais descreve-se ldquotodordquo o processo de produccedilatildeo desde a

chegada da mateacuteria-prima agrave embalagem do produto

1 De acordo com CARVALHO (1996) A ISO (International Stander Organization) no paracircmetro 9000 especi-fica requisitos para um sistema de gestatildeo da qualidade que podem ser usados pelas organizaccedilotildees para uma apli-caccedilatildeo interna para certificaccedilotildees ou para fins contratuais

2

Chamou a nossa atenccedilatildeo o fato de que esta dinacircmica significava uma apropriaccedilatildeo do

saber dos operaacuterios uma vez que muitas das pequenas modificaccedilotildees por eles feitas para facili-

tar o seu trabalho eram obrigatoriamente documentadas tornando-se um know how da empre-

sa A partir desses registros era possiacutevel por exemplo mapear os passos dados para o sucesso

de determinadas atividades bem como identificar as possiacuteveis falhas da engenharia

Fazia parte desta dinacircmica uma gama de programas que incentivavam os trabalhadores

a se integrarem ao projeto de desenvolvimento de boas ideacuteias para a melhoria da produtivida-

de e qualidade da empresa Tambeacutem observaacutevamos quais eram as circunstacircncias que nos fa-

voreciam produzir saberes e como os usaacutevamos a influecircncia do ensino formal na produccedilatildeo de

saberes no processo de trabalho propriamente dito e sobretudo a cooperaccedilatildeo dos colegas

Esta experiecircncia enriquecida de outras da mesma natureza vividas por nossos colegas

trabalhadores nos levou a problematizar as situaccedilotildees que envolvem o saber no processo de

trabalho Sabiacuteamos possuir um modo proacuteprio de produzir saberes de mobilizaacute-los e organizaacute-

los inclusive com troca de informaccedilotildees longe das maacutequinas agraves vezes no horaacuterio de almoccedilo

na hora do banho ou no trajeto para a aula entre aqueles que frequumlentavam a mesma escola O

trabalho se apresentava como afirmaccedilatildeo da nossa inteligecircncia e do gosto pela profissatildeo

Foi neste mesmo espaccedilo que noacutes nos percebemos enquanto um trabalhador que aleacutem

de produzir um saber nem sempre imaginado pelo capital mas necessaacuterio para a produccedilatildeo

desenvolvia condiccedilotildees de viver o trabalho enquanto espaccedilo de afirmaccedilatildeo pessoal e identitaacuteria

com a nossa classe

O interesse em conhecer melhor o mundo do trabalho nos levou ao curso superior de

Histoacuteria Paralelamente o nosso trabalho na faacutebrica continuou a ser um objeto de observaccedilatildeo

cada vez mais instigante agrave medida que iacuteamos associando o nosso cotidiano no trabalho com as

disciplinas do curso e especialmente com o tema da reestruturaccedilatildeo capitalista tratada na sala

de aula Nesse processo tambeacutem dava primazia agrave questatildeo da presenccedila de saberes no trabalho

3

As nossas possibilidades de fazer uma leitura da dimensatildeo positiva do trabalho o que

segundo Charlot (2000 p 30) significa ldquoler de outra maneira o que eacute lido como falta pela

leitura negativardquo foram sendo ampliadas e refinadas a partir do ano de 2001 quando nos a-

proximamos das atividades do Nete ndash Nuacutecleo de Estudos sobre Trabalho e Educaccedilatildeo da FAE-

UFMG especialmente dos trabalhos das professoras Antocircnia Vitoacuteria Aranha (1997) e Eloiacutesa

Helena Santos (1997 2000) Estas pesquisadoras ao ldquodesnaturalizaremrdquo o saber taacutecito situ-

ando-o como um processo histoacuterico social e subjetivo acabaram nos permitindo definir o

saber taacutecito no processo de trabalho mais especificamente as estrateacutegias usadas pelos traba-

lhadores para produzir mobilizar e organizar o seu saber como objeto desta pesquisa Portan-

to o nosso objetivo nesta dissertaccedilatildeo eacute analisar as estrateacutegias que os ferramenteiros de uma

induacutestria metaluacutergica mineira usam para produzir mobilizar e organizar os seus saberes no

trabalho

11 ESTRUTURACcedilAtildeO DA PESQUISA

Esta dissertaccedilatildeo estaacute organizada do seguinte modo

No primeiro capiacutetulo buscaremos apresentar a presenccedila de saberes no processo de tra-

balho pela seguinte trilha

bull A partir do diaacutelogo com a literatura que aborda a presenccedila de saberes no processo

de trabalho e da nossa experiecircncia em chatildeo de faacutebrica apresentaremos a relevacircncia

acadecircmica e social desta pesquisa bem como os seus objetivos

bull Tambeacutem a partir do que encontramos nas pesquisas sobre esse tema e de alguns

casos que vivenciamos como metaluacutergico seraacute apresentada a nossa hipoacutetese qual

4

seja que os ferramenteiros para dar conta do trabalho real criam estrateacutegias de pro-

duccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo dos seus saberes taacutecitos

bull Apresentaccedilatildeo do nosso referencial teoacuterico e das estrateacutegias metodoloacutegicas que u-

samos na pesquisa para coletar os dados

bull e por fim a nossa imersatildeo no campo da pesquisa

No segundo capiacutetulo apresentaremos como a literatura trata o saber taacutecito Esta parte

estaacute organizada da seguinte forma

bull O saber do trabalhador nos modelos de organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho preconiza-

do pelo taylorismofordismo e pelo modelo japonecircs

bull A importacircncia que a literatura atribui agrave presenccedila de saberes no processo do trabalho

e sobretudo ao saber taacutecito do trabalhador

bull O saber taacutecito como objeto de discussatildeo segundo a literatura que aborda essa temaacute-

tica

No terceiro capiacutetulo iremos descrever o nosso campo de pesquisa caracterizando os

seguintes aspectos

bull O setor automotivo

bull O setor de autopeccedilas

bull A ferramentaria

bull Os ferramenteiros

bull O grupo da empresa pesquisada

bull A empresa pesquisada

No quarto capiacutetulo faremos a anaacutelise dos dados obtidos na pesquisa de campo

Por fim apresentaremos as nossas consideraccedilotildees finais pelas quais proporemos alguns

desdobramentos bem como consideraremos os resultados deste trabalho em relaccedilatildeo agraves aacutereas

que investigam a presenccedila de saberes no processo de trabalho

5

12 Por que investigar a presenccedila de saberes no processo de trabalho

A questatildeo dos saberes presentes no processo de trabalho vem se constituindo como um

dos temas mais discutidos na atualidade A complexidade e a importacircncia deste assunto torna-

ram-no um tema multidisciplinar abrangendo aacutereas da educaccedilatildeo sociologia psicologia ciecircn-

cias da informaccedilatildeo engenharia mobilizando vaacuterios pesquisadores (SANTOS 19852 ARA-

NHA 19973 LIMA 19984 ASSIS 20005) De acordo com Evangelista (2002) ldquoDesde a

deacutecada de 60 autores como Drucker e Galbrait jaacute indicavam que o conhecimento tenderia a

ser o principal fator de produccedilatildeordquo (p 13)

Na medida em que se concretiza a importacircncia do saber no atual mundo do trabalho

aumenta tambeacutem o interesse de pesquisadores por essa temaacutetica Trein (1996 p 32) por e-

xemplo avalia que o interesse do capital por esta questatildeo ocorre ldquodiante do imperativo da

flexibilizaccedilatildeo da economia mundializadardquo Evangelista (2002 p 15) aponta alguns aspectos

da atual fase do capitalismo que reforccedilam o interesse do capital pela presenccedila de saberes no

processo de trabalho ldquoSer diferente e criativo significa maior lucro no mercado competitivo e

para o capital esses elementos podem estar focados nas informaccedilotildees e conhecimentos que

circulam no acircmbito da produccedilatildeordquo

A importacircncia do saber para as empresas no atual momento se configura de forma tal

que os empresaacuterios se organizaram em torno de discussotildees sobre a educaccedilatildeo fazendo coro

2 Dissertaccedilatildeo SANTOS E H Trabalho e educaccedilatildeo o cotidiano do operaacuterio na faacutebrica Belo Horizonte FA-EUFMG 1985 SANTOS E H Le savoir en travail lrsquoexpeacuterience de deacuteveloppement technologique par les travailleurs drsquoune industrie breacutesilienne Paris Universiteacute de Paris VIII 1991 (Tese Doutorado Deacutepartament des Sciences drsquo Education) 3 ARANHA A V S O conhecimento taacutecito e qualificaccedilatildeo do trabalhador Trabalho e Educaccedilatildeo Belo Hori-zonte NeteFAEUFMG n 2 p 13-29 agodez 1997 4 LIMA F P A SILVA C A D A objetivaccedilatildeo do saber praacutetico na concepccedilatildeo de sistemas especialistas das regras formais agraves situaccedilotildees de accedilatildeo Belo Horizonte 1998 (Mimeo) 5 Dissertaccedilatildeo ASSIS R W Os impactos das novas tecnologias nas formas de sociabilidade e no savoir-faire dos operadores um estudo de caso do setor sideruacutergico Belo Horizonte Faculdade de Psicologia da UFMG 2000

6

por uma formaccedilatildeo baseada na noccedilatildeo de competecircncia6 Aleacutem disso os empresaacuterios atraveacutes de

organismos como Senai Fiemg Fiesp e outros constantemente promovem seminaacuterios em

torno do tema (CARVALHO 1999 HORTA et al 2000)

A problemaacutetica dos saberes no trabalho posta em diaacutelogo com os interesses dos traba-

lhadores vem encontrando guarida tambeacutem nas reflexotildees em vaacuterios nuacutecleos de estudos7e jaacute

haacute algum tempo mobiliza pesquisas e debates No que se refere ao campo de estudos sobre

trabalho e educaccedilatildeo dentre outros destacam-se as abordagens sobre a presenccedila de saberes do

trabalhador no processo de trabalho as novas tecnologias e a organizaccedilatildeo do processo produ-

tivo e as poliacuteticas puacuteblicas e privadas para a educaccedilatildeo profissional (TREIN 1996 p 32 FI-

DALGO amp MACHADO 2000 p 338)

Alguns elementos verificados pelas pesquisas realizadas nesse campo bem como a

nossa experiecircncia em chatildeo de faacutebrica assinalam que esse tema tambeacutem mobiliza os interes-

ses dos trabalhadores Entretanto entendemos que ainda faltam elementos que favoreccedilam uma

organizaccedilatildeo coletiva dos trabalhadores centrada na valorizaccedilatildeo e uso dos seus saberes sendo

que muito do que foi colocado como relevante para os interesses dos trabalhadores ainda natildeo

foi suficientemente esclarecido como por exemplo as possibilidades de formalizaccedilatildeo e legi-

timaccedilatildeo dos seus saberes (ARANHA 1997 SANTOS 1985 1997 2000)

As pesquisas que enveredaram pela investigaccedilatildeo da presenccedila de saberes no processo

de trabalho discutem o reconhecimento do proacuteprio capital sobre a importacircncia do saber do

trabalhador no processo produtivo No entanto questionam este reconhecimento pode ser

traduzido em ganhos para os trabalhadores Se haacute algum ganho quais satildeo eles Na tentativa

de responder a essas questotildees Aranha (1997) Santos (1985 1997 2000) Machado (1999)

6 A polecircmica sobre o uso da noccedilatildeo de competecircncia pode ser encontrada em FIDALGO amp MACHADO (2000 p 56 e120) SANTOS (2003) 7 Segundo FIDALGO amp OLIVEIRA (2001) NETEFAEUFMG Nuacutecleo de Estudo sobre Trabalho e Educaccedilatildeo da Faculdade de Educaccedilatildeo da UFMG NESTHFAFICHUFMG Nuacutecleo de Estudo sobre o Trabalho Humano NEDATEUFF Nuacutecleo de documentaccedilatildeo e dados sobre trabalho e educaccedilatildeo Grupo Trabalho - Educaccedilatildeo Carlos Chagas e da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo NTEUFC Nuacutecleo Trabalho e Educaccedilatildeo da Univer-sidade Federal do Cearaacute Conferir dossiecirc trabalho e educaccedilatildeo publicado em Educaccedilatildeo em Revista (2001)

7

defendem a necessidade de se investigar o saber no trabalho a partir da perspectiva que o tra-

balhador confere a este saber Nesse sentido eacute vaacutelido acrescentar uma observaccedilatildeo feita por

Santos (1997)

A capitalizaccedilatildeo dos benefiacutecios proporcionados pelo saber do trabalhador agrave produ-ccedilatildeo eacute uma estrateacutegia jaacute colocada em marcha pelos empresaacuterios Fica a tarefa de construir uma alternativa que deixando de ser resistecircncia passiva e natildeo caindo na co-gestatildeo do saber no trabalho resgate o valor epistemoloacutegico social poliacutetico e cultural do saber do trabalhador (p 26)

Apresentada a importacircncia do tema na perspectiva dos trabalhadores emerge uma

pergunta como as pesquisas sobre este tema poderiam favorecer a proposta de Santos A

nosso ver uma possibilidade de resposta pode ser construiacuteda a partir de uma investigaccedilatildeo que

considere a capacidade dos trabalhadores de chatildeo de faacutebrica de interpretar o mundo do traba-

lho

Esse tema tambeacutem se faz presente na literatura que discute a questatildeo das poliacuteticas

puacuteblicas em educaccedilatildeo mais precisamente aquelas voltadas para a formaccedilatildeo profissional No

atual momento como demonstraram Evangelista (2002) Machado (1999) Souza (2002) e

Kuenzer (1997) o processo de reestruturaccedilatildeo produtiva vem requisitando um trabalhador com

uma formaccedilatildeo baacutesica mais soacutelida e ampliada As pesquisas revelam que os capitalistas pres-

sionam por uma concepccedilatildeo de educaccedilatildeo pautada em um modelo de competecircncias que garanta

a formaccedilatildeo de um trabalhador que exerccedila com excelecircncia multitarefas (KUENZER 1997

CARVALHO 1999)

Dessa forma investigar a presenccedila de saberes no trabalho corresponde a uma demanda

extremamente atual seja qual for o foco privilegiado Todavia entendemos que para avanccedilar

em relaccedilatildeo ao que estaacute disponiacutevel na literatura apreciada eacute necessaacuterio conhecer mais sobre os

saberes produzidos pelos trabalhadores Nossa contribuiccedilatildeo se refere aos caminhos que os

trabalhadores percorrem para produzir seus saberes e ao fato de apresentar de que forma eles

8

satildeo mobilizados e formalizados Daiacute que elegemos investigar as estrateacutegias usadas pelos fer-

ramenteiros de uma induacutestria metaluacutergica para produzir mobilizar e formalizar os seus sabe-

res

Se de um lado as pesquisas demonstram que o saber taacutecito do trabalhador estaacute se

constituindo como um objeto que mobiliza diversos interesses por outro lado alguns pesqui-

sadores explicitaram a necessidade de se ampliarem as investigaccedilotildees De acordo com Aranha

(1997)

O conhecimento taacutecito embora decisivo natildeo tem merecido ainda o enfoque neces-saacuterio Primeiro por sua dificuldade em expressar-se de forma sistematizada ou pela ausecircncia de interesses reais de quem deteacutem o controle dos processos de trabalho e de formaccedilatildeo de alccedilaacute-lo no niacutevel de ldquoconhecimento cientiacuteficorsquorsquo Segundo porque muitas vezes eacute tido como ldquoalgordquo natural e natildeo fruto de um processo social de cons-truccedilatildeo (p 26)

Neste sentido esta investigaccedilatildeo se justifica tambeacutem pela possibilidade de trazer novos

elementos teoacutericos e praacuteticos que subsidiem os trabalhadores nos seus esforccedilos de formalizar

e legitimar os seus saberes

As investigaccedilotildees sobre o saber no trabalho podem contribuir com as poliacuteticas puacuteblicas

educacionais na medida em que permitem conhecer outras formas de apreensatildeo da realidade e

de construccedilatildeo de saberes bem como verificar a influecircncia da escola formal na produccedilatildeo des-

ses saberes Tem-se ainda a chance de validar os saberes dos trabalhadores ao se incorporar

essas novas formas no debate escolar reforccedilando a perspectiva de uma formaccedilatildeo pelo traba-

lho e natildeo exclusivamente para o trabalho Essa praacutetica jaacute eacute relativamente consagrada no setor

produtivo conforme esclarece Therrien (1996) ldquoO debate da lsquoqualidade totalrsquo nascido do

chatildeo das interaccedilotildees da faacutebrica evidenciou capacidades de elaboraccedilatildeo de soluccedilotildees de constru-

ccedilotildees de saberes que manifestam lsquoexistecircncia de racionalidadersquo que fogem aos padrotildees formais

da ciecircncia e da tecnologiardquo (p 67)

9

A investigaccedilatildeo sobre o saber taacutecito do trabalhador poderaacute contribuir tambeacutem com o

debate sobre o ldquoalavancamentordquo tecnoloacutegico do Brasil uma vez que as pesquisas apontam

que a tecnologia presente no processo de trabalho tem um deacutebito com o saber taacutecito do traba-

lhador Essa possibilidade se apresenta em uma reflexatildeo de Santos (2000)

O desenvolvimento tecnoloacutegico as inovaccedilotildees teacutecnicas se concretizam por uma so-ma de pequenas e grandes iniciativas de pequenas e grandes decisotildees de pequenas e grandes conquistas dos trabalhadores O domiacutenio dos processos teacutecnicos se expe-rimenta dia apoacutes dia

Em que pese a contribuiccedilatildeo das pesquisas sobre a questatildeo do saber no processo de tra-

balho persistem ainda algumas lacunas que ficam evidenciadas pelo aparente consenso de

que o saber taacutecito natildeo eacute formalizaacutevel Aranha afirma que segundo Machado ldquoAs qualifica-

ccedilotildees taacutecitas satildeo como um saber-fazer complementar e necessaacuterio ao sistema teacutecnico intuitivo

e natildeo codificaacutevelrdquo (ARANHA 1997 p 13)

Em nosso entendimento o debate dessa perspectiva aparentemente consensual eacute pos-

siacutevel e se constitui como um desafio a ser perseguido cuja expectativa eacute contribuir para a va-

lorizaccedilatildeo do saber do trabalhador como diz Santos (1997) em suas dimensotildees ldquo() epistecircmi-

ca econocircmica e culturalrdquo

Por fim mesmo reconhecendo o saber do trabalhador como um objeto complexo con-

sideramos que uma parte da lacuna sobre o saber taacutecito se deva ao fato de que a maioria das

pesquisas sobre esse tema tenha privilegiado uma abordagem que natildeo explora em profundida-

de o como estes saberes satildeo produzidos mobilizados e formalizados por um segmento impor-

tante da induacutestria mecacircnica os ferramenteiros Dessa forma a nossa pesquisa pretende conhe-

cer os caminhos percorridos pelos trabalhadores ferramenteiros para produzir mobilizar e

formalizar os seus saberes

Neste sentido acreditamos que esta pesquisa ao aceitar o desafio de apreender as es-

trateacutegias usadas pelos ferramenteiros para produzir mobilizar e formalizar seus saberes con-

10

tribuiraacute com elementos de ordem teoacuterica e praacutetica para a discussatildeo em torno da legitimidade

do saber taacutecito e cobriraacute uma lacuna no campo de trabalho e educaccedilatildeo com novas descobertas

acerca dos saberes presentes no processo de trabalho Auxiliaraacute tambeacutem as poliacuteticas puacuteblicas

voltadas para a formaccedilatildeo do trabalhador ao apresentar outras formas de produccedilatildeo de saberes e

de apreensatildeo da realidade Portanto os objetivos que nortearam esta pesquisa satildeo

bull Conhecer os caminhos que os ferramenteiros percorrem para produzir mobilizar e

formalizar os seus saberes taacutecitos

bull Verificar se esses caminhos se transformam ou natildeo em meacutetodos de trabalho dos fer-

ramenteiros

bull Verificar a legitimidade que os ferramenteiros atribuem agraves suas estrateacutegias de pro-

duccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes taacutecitos

Se por um lado entendemos como necessaacuterio apresentar a nossa problematizaccedilatildeo so-

bre a hipoacutetese de que os ferramenteiros possam desenvolver estrateacutegias para produzir mobili-

zar e formalizar seus saberes por outro lado eacute importante salientar que ao definirmos as es-

trateacutegias usadas pelos ferramenteiros como produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes

natildeo buscamos demarcar uma separaccedilatildeo hermeacutetica entre elas e sim analisar se as suas seme-

lhanccedilas e diferenccedilas se articulam Por este motivo apresentaremos um breve debate sobre

essas trecircs categorizaccedilotildees

121 A produccedilatildeo de saberes

As pesquisas que abordam a questatildeo da produccedilatildeo de saberes pelo trabalhador afirmam

que esses saberes se apresentam perante a necessidade do trabalhador superar determinadas

dificuldades no processo de trabalho dados os limites da engenharia em prescrever o que de-

ve ser feito para garantir a realizaccedilatildeo de uma atividade trabalho (MACHADO 1999 ASSIS

11

2000) A partir dessa perspectiva quando discutimos o saber taacutecito acabamos por aproximar

essa noccedilatildeo de uso do saber com a inventividade e a criatividade do trabalhador dentro do pro-

cesso de trabalho ou seja com as ldquosaiacutedasrdquo e as ldquogambiarrasrdquo criadas pelos trabalhadores para

realizarem um determinado trabalho

Um dos pressupostos que sustenta a possibilidade de que os trabalhadores possam

produzir saberes reside na tese de que o trabalho eacute marcado por um princiacutepio educativo San-

tos (2000) faz uma consideraccedilatildeo sobre essa possibilidade

() trabalhar eacute satisfazer uma exigecircncia - produzir - mas estreitamente ligada ao fa-to de criar de aprender de desenvolver de dominar de adquirir um saber Traba-lhar eacute procurar preencher certas lacunas do saber e desse modo as suas proacuteprias Quer dizer desenvolver se informar se formar Se transformar se experimentar e experimentar sua inteligecircncia (p 129)

A consideraccedilatildeo de que o trabalho eacute marcado por um princiacutepio educativo se potenciali-

za segundo as pesquisas mediante a incapacidade da engenharia enquanto um conjunto de

saberes formalizados em dar conta das demandas reais e que satildeo necessaacuterias para garantir o

andamento do processo produtivo (SANTOS 1997 SALERNO 1994) Essa incapacidade da

gerecircncia deixa um espaccedilo no processo de trabalho para as chamadas situaccedilotildees imprevistas Eacute

diante do inesperado que a criatividade do trabalhador em solucionar os problemas do traba-

lho faz a diferenccedila entre o que a engenharia prescreve e o que realmente ocorre no processo

de trabalho O capital usa esse expediente de forma que a gerecircncia convoca e pressiona por

soluccedilotildees do chatildeo de faacutebrica mesmo sabendo que a situaccedilatildeo se desenvolve dentro do inespe-

rado Evangelista (2002) fez a seguinte observaccedilatildeo a esse respeito ldquoSe as situaccedilotildees estatildeo fora

do previsto natildeo importa eacute preciso produzir garantindo o ecircxitordquo (p 131)

Ao usar a sua inteligecircncia para superar os entraves do ldquoinesperadordquo o trabalhador i-

nova produzindo saberes e tambeacutem aprende a aprender A possibilidade de que a relaccedilatildeo do

trabalhador com os imprevistos do processo produtivo se configure como um momento peda-

12

goacutegico foi apontada por Machado (1999) ldquoHaacute uma escolha a ser feita e que nas situaccedilotildees de

trabalho entra em uma perspectiva dialeacutetica entre as regras do saber estabelecido e o natildeo-

saber que o acaso impotildee promovendo um processo de construccedilatildeo de saber no trabalhordquo (p

151)

A inteligecircncia do trabalhador lhe permite ir aleacutem da superaccedilatildeo do inesperado Ao pocircr a

sua criatividade em marcha os trabalhadores buscam realizar o seu trabalho da forma mais

confortaacutevel mais bonita ou mais faacutecil8 Eacute nesse contexto que surgem os ldquoatalhosrdquo Santos

(1985) em uma pesquisa sobre o trabalho dos caldeireiros nos revela que esses profissionais

a partir da produccedilatildeo de ldquomacetesrdquo ou ldquogambiarrasrdquo criavam soluccedilotildees para facilitarem a reali-

zaccedilatildeo do seu trabalho Essa pesquisadora (1985 p 62) apresenta o depoimento de um traba-

lhador sobre essa questatildeo ldquoA gente costuma fazer ferramentas para facilitar o nosso trabalho

espaacutetula cachorro e gabarito () Vamos dizer que a gente vai fazer um cone que eacute a peccedila

mais difiacutecil de calandrar A gente sempre usa um macete qualquer e adianta maisrdquo

Se de um lado eacute o imprevisiacutevel e o natildeo-prescrito pela engenharia que convocam o sa-

ber taacutecito do trabalhador por outro lado a fecundidade dos macetes e das intervenccedilotildees do

trabalhador dialoga com os tipos de meio de produccedilatildeo especiacuteficos em cada processo de traba-

lho De acordo com Evangelista (2002) ldquoA tecnologia e o maquinaacuterio usado na produccedilatildeo

influem significativamente na possibilidade que os trabalhadores tecircm de construccedilatildeo e de

controle do conhecimento mobilizado no processo de trabalhordquo (p 134)

Essa consideraccedilatildeo aparece nas pesquisas principalmente nos processos automatizados

como um algo a mais na produccedilatildeo de saber no trabalho Assis (2000) ao investigar o monito-

ramento da produccedilatildeo em uma siderurgia feita pelos operadores atraveacutes dos paineacuteis de contro-

le observa que a obrigaccedilatildeo de anular os possiacuteveis danos causados pelos imprevistos leva-os a

produzir um novo saber

8 Em vaacuterias induacutestrias em que trabalhamos existia a expressatildeo ldquojogar faacutecilrdquo

13

Observamos tambeacutem que a ldquovigilacircnciardquo dos operadores no acompanhamento natildeo significa apenas uma qualidade visual ou sensorial mas faz emergir um saber mais abstrato sendo tudo isto necessaacuterio quando se reconhece a falibilidade dos meios teacutecnicos e a possibilidade de imprevistos (p 94)

Outro exemplo dessa natureza que consideramos importante eacute o caso da produccedilatildeo de

saberes em empresas que possuem maacutequinas com CNC9 Essas empresas frequumlentemente op-

tam por colocarem como operadores de CNC torneiros mecacircnicos com experiecircncia em maacute-

quina convencional Ao fazerem essa opccedilatildeo as empresas levam em consideraccedilatildeo a capacida-

de dos torneiros mecacircnicos de anteciparem os possiacuteveis problemas com o CNC Um desses

casos foi identificado por Vieira apud Evangelista (2002)

No caso do trabalhador possuir um conhecimento preacutevio adquirido no uso de tec-nologia convencional quando ele se depara com uma maacutequina do tipo CNC de tecnologia avanccedilada eacute possiacutevel unir teoria e praacutetica essa uacuteltima adquirida na maacute-quina convencional No entanto para aqueles que iniciaram a praacutetica diretamente nesta maacutequina CNC fica mais difiacutecil diagnosticar por exemplo a origem de deter-minado problema no processo (p 135)

No caso do CNC apresenta-se ainda uma produccedilatildeo de saber muito complexa Um

exemplo concreto de resoluccedilatildeo de um problema e antecipaccedilatildeo de outro cujo tipo de maacutequina

e tecnologia interfere na produccedilatildeo de saber eacute abordado por Salerno (1994) O saber adquirido

no trabalho em maacutequinas convencionais auxiliou os trabalhadores natildeo somente na detecccedilatildeo de

um problema no programa do CNC mas permitiu-lhes elaborar um programa melhor do que o

da engenharia

Numa faacutebrica que visitamos um programa consistia em fazer um pesado corte num bloco de alumiacutenio - uma operaccedilatildeo que gera calor consideraacutevel ndash e entatildeo fazer dois furos com distacircncia precisa entre eles Quando os passos do programa satildeo carrega-dos nessa ordem a distacircncia entre os furos diminui agrave medida em que o alumiacutenio es-fria O operaacuterio foi capaz de corrigir o problema alterando o programa para fazer primeiro a furaccedilatildeo (SHAIKEN apud SALERNO 1994 p 73)

9 De acordo com FARIA (1997) CNC ndash Comando Numeacuterico Computadorizado eacute um ldquocomando com capacida-de de receber informaccedilotildees memorizar executar caacutelculos e transmiti-los agrave maacutequina para execuccedilatildeo da peccedilardquo (p 39)

14

122 A mobilizaccedilatildeo de saberes

Se as pesquisas confirmam a chance de o trabalhador produzir saberes no trabalho em

nosso entendimento quando avanccedilamos sobre essa possibilidade nos remetemos a algumas

indagaccedilotildees dentre as quais quais elementos os trabalhadores mobilizam para produzir seus

saberes taacutecitos A literatura que aborda o tema aponta alguns elementos que poderiam favore-

cecirc-lo tais como a escolarizaccedilatildeo formal a experiecircncia no trabalho e as relaccedilotildees sociais dentro

e fora do ldquochatildeo de faacutebricardquo

No que se refere agraves influecircncias recebidas pelos trabalhadores da escola formal temos

um debate multifacetado De um lado as pesquisas revelam que no padratildeo flexiacutevel e integra-

do haacute uma exigecircncia por parte das empresas de uma maior escolarizaccedilatildeo dos trabalhadores

com base na suposiccedilatildeo de que em funccedilatildeo das multitarefas e da presenccedila da informaacutetica no

processo de trabalho as tarefas exigem uma maior cogniccedilatildeo do operaacuterio (KUENZER1996

EVANGELISTA 2002 ARAUacuteJO 2001 SOUZA 2002) Ainda nessa seara investigar as

estrateacutegias que os trabalhadores possuem para produzir mobilizar e formalizar seus saberes

poderaacute revelar de que forma os saberes aprendidos na escola formal influenciam ou natildeo as

soluccedilotildees criadas pelos operaacuterios nas situaccedilotildees de trabalho

Por outro lado alguns autores defendem que a convivecircncia com o processo de traba-

lho ou seja a experiecircncia profissional continua sendo um fator fundamental que subsidia a

elaboraccedilatildeo do saber do trabalhador e que a influecircncia da escolarizaccedilatildeo formal ocuparia um

plano secundaacuterio Vieira apud Evangelista (2002 p 124) apresenta por exemplo uma anaacuteli-

se que questiona a cobranccedila do ensino meacutedio por parte da Fiat em relaccedilatildeo agraves exigecircncias reais

do processo de trabalho ldquo() considerando o contexto da empresa conclui-se que o quadro

funcional do motor Fire com trabalhadores mais escolarizados decorre mais de uma questatildeo

de oferta (de trabalhadores formados) do que de demanda (da proacutepria produccedilatildeo)rdquo Carvalho

15

apud Evangelista (2002 p 133) aprofunda esse questionamento e afirma ldquo() os trabalhado-

res tecircm consciecircncia de que a formaccedilatildeo profissional natildeo abrange amplamente a praacutetica cotidia-

na de trabalho e que o valor formativo da experiecircncia tem que ser levado em contardquo

Outro exemplo que articula a construccedilatildeo do saber taacutecito com experiecircncia profissional

se remete agrave questatildeo do erro no processo do trabalho O capital tende a se posicionar distinta-

mente em relaccedilatildeo aos erros da concepccedilatildeo e da execuccedilatildeo Essa distinccedilatildeo eacute conhecida pelos

trabalhadores o que torna o erro um momento de aprendizagem para o trabalhador e parte

fundamental da construccedilatildeo do seu saber taacutecito

Um comentaacuterio acerca do erro foi feito por Vieira apud Evangelista (2002) quando

relata a fala de um trabalhador da Fiat ldquoSegundo o entrevistado os trabalhadores brasileiros

em comparaccedilatildeo aos italianos ofereciam uma vantagem importante nessa dinacircmica competiti-

va pois inovam bastante e natildeo tecircm medo de errar () a gente vai tentando fazendo diferente

uma hora daacute certordquo (p 132)

Alves Carvalho aponta a demanda de um outro saber-fazer em um contexto de incerte-

zas no mundo do trabalho Como cita Machado (1999) ldquoA gestatildeo da competecircncia requisita

habilidades cognitivas e comportamentais para lidar com o novo e com o incertordquo (p 186) O

que estas pesquisas natildeo problematizaram eacute como os trabalhadores se apropriam dos seus erros

e dos erros dos seus colegas e de como estes erros se transformam em saberes

Por fim alguns autores destacam a influecircncia do aspecto coletivo ou das relaccedilotildees soci-

ais na produccedilatildeo do saber Evangelista (2002) Assis (2000) Arauacutejo (2002) Souza (2002) e

Machado (1999) afirmam que o capital ao reconhecer a dimensatildeo coletiva do saber do traba-

lhador busca ao seu modo recriar espaccedilos de coletividade para facilitar a integraccedilatildeo do saber

do trabalhador no processo produtivo O capital trabalha ainda com a hipoacutetese de que saberes

diferenciados possam se complementar no processo produtivo Um desses casos pode ser ve-

rificado na pesquisa de Evangelista (2002 p 76) onde se destaca a introduccedilatildeo de uma outra

16

sociabilidade no processo produtivo feita pela Fiat na figura das UTEs (Unidades Tecnoloacutegi-

cas Elementares) ldquoTrata-se de uma estrateacutegia que visa reunir profissionais de vaacuterias aacutereas e

favorecer o trabalho em equiperdquo Vejamos uma reflexatildeo de Santos (1997) sobre essa questatildeo

ldquoO saber e as relaccedilotildees que os trabalhadores estabelecem entre si e com o saber deixam de ser

resultados fortuitos da vida e no trabalho e tornam-se fonte de toda produtividaderdquo (p 18)

Assis (2000) conferiu tanta importacircncia a essa questatildeo que acabou por tornaacute-la foco de

sua dissertaccedilatildeo Dentre outras coisas Assis verifica que a empresa ldquoexige que os trabalhado-

res coloquem constantemente em praacutetica o seu savoir-faire Este deve ser construiacutedo de forma

prioritariamente coletiva com constantes trocas de saberes e discussotildees sobre as representa-

ccedilotildees que cada trabalhador possui dos acontecimentosrdquo (p 16)

Em relaccedilatildeo aos interesses dos trabalhadores a dimensatildeo coletiva da produccedilatildeo do saber

eacute interpretada por muitos pesquisadores como uma vantagem dos trabalhadores que ateacute certo

ponto poderiam escolher com quem compartilhar o seu saber uma vez que ele estaacute inscrito

em uma ldquorederdquo com coacutedigos e interesses proacuteprios dos trabalhadores Aranha (1997) chega a

falar em ldquodomiacutenio coletivo do processo de trabalhordquo (p 20) Evangelista (2002) faz uma re-

flexatildeo sobre a inserccedilatildeo do saber nas relaccedilotildees sociais que recupera as possibilidades de resis-

tecircncia do trabalhador

Esse conhecimento praacutetico produzido tambeacutem para ser empregado no cotidiano fa-bril supotildee a comunicaccedilatildeo verbal ou natildeo de um conjunto de siacutembolos a se interpre-tar Exata interpretaccedilatildeo implica que emissores e receptores de informaccedilotildees estejam dispostos a ajustar continuamente suas accedilotildees em funccedilatildeo de expectativas e reaccedilotildees do outro (p 56)

Se de um lado o capital cria novas estrateacutegias para apropriar o saber do trabalhador

por outro lado os trabalhadores continuam criando novos saberes e reapropriando outros for-

malizados pela concepccedilatildeo (ASSIS 2000 SALERNO 1994) e inclusive alguns saberes jaacute

formalizados pela ciecircncia como por exemplo o tratamento teacutermico usado para melhorar as

17

caracteriacutesticas de resistecircncia do accedilo ou mesmo saberes escolares tais como geometria e tri-

gonometria

Estes satildeo alguns dos pontos cruciais que nossa investigaccedilatildeo pretende abordar quando

priorizamos a possibilidade de os trabalhadores produzirem mobilizarem e formalizarem es-

trateacutegias que lhe permitam produzir mobilizar e organizar os seus saberes

123 A formalizaccedilatildeo de saberes

As possibilidades de os trabalhadores formalizarem os seus saberes ao nosso olhar

implicam duas questotildees baacutesicas primeira uma necessidade de conferir ao seu saber um miacute-

nimo de confiabilidade para ser usado Segunda a capacidade dos trabalhadores em gerenciar

a sua atividade de trabalho Essas possibilidades dos trabalhadores bem como as do capital

aleacutem de encontrar guarida em algumas situaccedilotildees concretas correspondem a uma avaliaccedilatildeo

feita por Polany apud Frade (2003) ldquoO fato de um conhecimento taacutecito natildeo poder ser total-

mente declarado natildeo significa que ele natildeo possa ser comunicado ou compartilhadordquo

Na nossa proacutepria experiecircncia como metaluacutergico tomamos contato com alguns casos de

saberes formalizados tanto pelos trabalhadores quanto pelo capital Citaremos um caso que

ficamos conhecendo pelo contato com os colegas mais experientes durante a nossa vivecircncia

de trabalhador na induacutestria Os torneiros mecacircnicos modificavam a inclinaccedilatildeo do acircngulo de

suas ferramentas para obter um melhor corte no material a ser trabalhado Neste caso a inter-

venccedilatildeo exigia do torneiro experiecircncia na profissatildeo e noccedilotildees de geometria e estaacutetica Essa praacute-

tica possibilitou que a engenharia realizasse estudos com auxiacutelio dos saberes dos torneiros

mecacircnicos no sentido de estabelecer o acircngulo correto para cada situaccedilatildeo de trabalho Esse

caso permitiu a padronizaccedilatildeo de um grande nuacutemero de ferramentas e criaccedilatildeo de uma tecnolo-

18

gia conhecida como geometria de corte Tamanho efeito teve essa modificaccedilatildeo que ela gerou

um ramo paralelo as induacutestrias de pastilhas intercambiaacuteveis

A ideacuteia da natildeo-formalizaccedilatildeo absoluta do saber do trabalhador aleacutem de contrariar al-

guns casos concretos pode tambeacutem colaborar para a sua natildeo-legitimaccedilatildeo reforccedilando a con-

cepccedilatildeo que hierarquiza o trabalho manual e intelectual Essa possibilidade foi colocada por

Santos ldquoO que distingue o saber da concepccedilatildeo - da engenharia- e lhe daacute legitimidade eacute a sua

formalizaccedilatildeo sancionada por um conhecimento social e epistemologicamente reconhecidordquo

(SANTOS 1997 p 21)

A dificuldade de apreensatildeo do saber taacutecito natildeo pode ser traduzida e este risco existe

em uma inconsistecircncia do saber produzido pelo trabalhador Ateacute mesmo a engenharia possui

seus niacuteveis de saberes natildeo-formalizados e natildeo arca com o mesmo ocircnus que os trabalhadores

Santos (1997) propotildee uma distinccedilatildeo ldquoComo em qualquer campo do conhecimento haacute ao niacute-

vel da concepccedilatildeo na engenharia um saber que pode se apresentar como natildeo formalizado sim-

plesmente por natildeo ser ainda formalizaacutevelrdquo (p 23)

Ainda neste artigo Santos ao relatar o depoimento de um engenheiro demonstra que

essa ocorrecircncia eacute reconhecida pela proacutepria engenharia De acordo com essa autora este enge-

nheiro da Usimec responsaacutevel pelo desenvolvimento de projetos de turbinas eleacutetricas comen-

tou sobre a dificuldade de se prever o comportamento de um material fluiacutedo fundamental

para a tecnologia de turbina Segundo o engenheiro abordado por Santos (1997) ldquoMesmo

centros internacionais Franccedila Alemanha Estados Unidos possuem computadores capazes

apenas de definir um comportamento proacuteximo daquele fluiacutedo realrdquo (p 22)

Outro exemplo embora sutil que tivemos oportunidade de perceber em nossa experi-

ecircncia como metaluacutergico eacute que a proacutepria engenharia reconhece os limites de alguns de seus

saberes cuja expressatildeo aparece no uso sistematizado do fator de seguranccedila (fs) uma constan-

te matemaacutetica presente nos caacutelculos da engenharia onde o tabelamento varia para cada proje-

19

to incorporando uma margem de erro Como por exemplo se em um caacutelculo para dimensio-

nar um cabo de accedilo de uma caccedilamba o resultado for de 100mm de diacircmetro este valor eacute mul-

tiplicado por (fs) = 1210 resultando em uma medida de 120mm

Ao nosso ver a ideacuteia de que o saber taacutecito natildeo pode ser formalizado peca pelo seu o-

lhar excessivamente imediato sobre a situaccedilatildeo de trabalho o que tende a reduzir o saber do

trabalhador somente a uma accedilatildeo momentacircnea a uma habilidade manual de uacuteltima hora uma

naturalizaccedilatildeo enfim Essa interpretaccedilatildeo poderia reproduzir a imagem de um trabalhador que o

capital sempre desejou aquele que interveacutem cria colabora e natildeo sabe por quecirc

Essa perspectiva parece estar presente na proacutepria legislaccedilatildeo sobre a propriedade inte-

lectual Lei n 009279 de 1451999 que ao inveacutes de contribuir para a legitimaccedilatildeo do saber

taacutecito acaba por perceber a produccedilatildeo de saberes restringida ao espaccedilo e agraves condiccedilotildees de tra-

balho dentro das empresas conforme aponta em seus artigos 90 e 91

ldquoArt 90 Pertenceraacute exclusivamente ao empregado a invenccedilatildeo ou o modelo de uti-lidade por ele desenvolvido desde que desvinculado do contrato de trabalho e natildeo decorrente da utilizaccedilatildeo de recursos meios materiais instalaccedilotildees ou equipamen-tos do empregadorrdquo ldquoArt 91 A propriedade de invenccedilatildeo ou de modelo de utilidade seraacute comum em partes iguais quando resultar da contribuiccedilatildeo pessoal do empregado e de recursos dados meios materiais instalaccedilotildees ou equipamentos do empregador ressalvado expressa disposiccedilatildeo contratual em contraacuteriordquo

Embora a discussatildeo legal natildeo seja o foco de nossa pesquisa o fato eacute que a proacutepria lei

natildeo acolhe todas as condiccedilotildees de produccedilatildeo do saber no trabalho Essa lacuna pode ser produto

de uma abordagem reducionista do valor desse saber e de certa forma faz com que esta pes-

quisa ganhe mais uma relevacircncia

Nossa hipoacutetese comeccedila a ser construiacuteda a partir da consideraccedilatildeo de que quando o tra-

balhador passa a ter uma noccedilatildeo do valor do seu saber no processo de trabalho ele tende a au-

10 Valor aleatoacuterio para efeito de exemplo Em algumas induacutestrias em que trabalhamos o fator de Seguranccedila eacute ironicamente chamado de fator de ignoracircncia

20

mentar o zelo com a construccedilatildeo deste saber e que este zelo pode ser traduzido em um empe-

nho dos trabalhadores em formalizarem os seus saberes Fica ainda a seguinte questatildeo qual a

linguagem usada pelos trabalhadores para formalizar o seu saber

A nossa hipoacutetese eacute que a produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saber pelos traba-

lhadores no processo de trabalho se realizariam atraveacutes da produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formaliza-

ccedilatildeo de estrateacutegias taacutecitas Neste caso a questatildeo do saber natildeo se limita agrave aplicaccedilatildeo do savoir-

faire do trabalhador na produccedilatildeo mas tambeacutem agrave forma de como esse saber foi construiacutedo

mobilizado e formalizado pois a proacutepria estrateacutegia jaacute seria um sofisticado saber Talvez seja

esse saber o saber das estrateacutegias taacutecitas o elemento que decirc confianccedila ao trabalhador para

ldquofugirrdquo da prescriccedilatildeo da engenharia ou da concepccedilatildeo e que lhe permite ainda emancipar e

adaptar o seu saber ao princiacutepio dinacircmico presente em todos os processos de trabalho

Eacute mister salientar que optar por apreender estas estrateacutegias eacute priorizar uma aproxima-

ccedilatildeo com o trabalhador e com as condiccedilotildees que o favoreccedilam criaacute-las uma vez que o saber taacuteci-

to se apresenta como patrimocircnio coletivo de uma determinada eacutepoca Em nossa vivecircncia de

operaacuterio tivemos a oportunidade de observar e conhecer casos de intervenccedilatildeo do trabalhador

em que soluccedilotildees semelhantes foram elaboradas em situaccedilatildeo de trabalho nem sempre iguais

em espaccedilos distintos e por sujeitos que natildeo se conheceram Esse exemplo demonstra que a

questatildeo do saber taacutecito do trabalhador dialoga com a proacutepria histoacuteria do conhecimento Essa

possibilidade pode ser percebida em uma anaacutelise feita por Machado (1996)

Para compreender o sentido e o significado das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas eacute necessaacuterio situaacute-las no contexto social em que se desenvolvem pois elas expressam o movi-mento contraditoacuterio da ciecircncia e da teacutecnica (aspecto loacutegico) e a natureza soacutecio-poliacutetica do modo de produccedilatildeo (aspecto soacutecio-histoacuterico) (p 112)

Considerando a relevacircncia e a complexidade do saber taacutecito acreditamos ser possiacutevel

por meio desta pesquisa contribuir para o esclarecimento das estrateacutegias que os ferramentei-

ros usam para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes no trabalho

21

13 O REFERENCIAL TEOacuteRICO

Desde os primeiros momentos de desenvolvimento desta pesquisa buscamos apoio em

referenciais teoacutericos que nos permitissem tomar o nosso objeto de forma articulada com cate-

gorias como a centralidade do trabalho na constituiccedilatildeo da sociabilidade a presenccedila de saberes

no processo de trabalho o saber taacutecito do trabalhador e a relaccedilatildeo entre teoria e praacutetica na

construccedilatildeo deste tipo de saber Todavia o proacuteprio objeto desta pesquisa nos mobilizou no

sentido de buscar no referencial teoacuterico tambeacutem uma possibilidade de tomar a presenccedila de

saber no trabalho por um olhar mais proacuteximo aos protagonistas do chatildeo de faacutebrica no caso

especiacutefico desta pesquisa os ferramenteiros

Para dar conta do desafio de investigar as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros para

produzir organizar e mobilizar seus saberes nos apoiamos em autores que seguindo a tradi-

ccedilatildeo do materialismo histoacuterico referendam o trabalho como categoria central na formaccedilatildeo do

homem e por conseguinte na constituiccedilatildeo da sociabilidade (MARX 1985 GRAMSCI

1995) Contamos tambeacutem com os pensadores que a partir da ldquonoccedilatildeo ergonocircmicardquo de ldquotraba-

lho prescrito e trabalho realrdquo discutem o saber taacutecito do trabalhador no processo de trabalho

(ARANHA 1997 SANTOS 1991 1997 2000 SALERNO 1994 LIMA 1998) bem como

os pesquisadores que abordam os atuais impactos do processo de reestruturaccedilatildeo produtiva no

mundo do trabalho (ANTUNES 2001 CORIAT 1994 GOUNET 1999) E ainda buscamos

dialogar com pensadores que abordam a relaccedilatildeo entre a praacutetica e a teoria na construccedilatildeo do

saber taacutecito (NOUROUDINE 2002 MALGLAIVE 1990 POLANY 1967 SCHON 2000)

Em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo e ao conceito de trabalho11 eleito para este projeto compartilha-

mos com os autores que percebem o trabalho como a atividade constituidora da humanidade

11 Diante dos objetivos desta pesquisa nos limitaremos ao diaacutelogo com os autores que discutem o trabalho no modo de produccedilatildeo capitalista mais especificamente aqueles que abordam o processo de reestruturaccedilatildeo produti-va e suas principais referecircncias de organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho quais sejam o taylorismofordismo e toyo-tismo (ANTUNES 2001 CORIAT 1994 GOUNET 1999)

22

e portanto categoria central na formaccedilatildeo do homem (MARX 1985 GRAMSCI 1995 AN-

TUNES 2001) Essa perspectiva como jaacute foi mencionado anteriormente tem sua matriz nas

ideacuteias marxistas Vejamos uma citaccedilatildeo do proacuteprio Marx (1985)

Antes de tudo o trabalho eacute um processo entre o homem e a natureza () Ele potildee em movimento as forccedilas naturais pertencentes agrave sua corporalidade braccedilos e pernas cabeccedila e matildeo a fim de apropriar-se da mateacuteria natural numa forma uacutetil para a sua proacutepria vida Ao atuar por meio desse movimento sobre a natureza externa a ele e ao modificaacute-la ele modifica ao mesmo tempo sua proacutepria natureza (p 149)

Eacute por esta trilha que se ergue tambeacutem um dos aspectos educativos do trabalho pois

ao modificar a sua proacutepria natureza o trabalho permite ao homem dirigir-se a si mesmo Se-

gundo Macaacuterio (1999) ldquoO domiacutenio do homem sobre si mesmo eacute de fato um pressuposto

imprescindiacutevel para o sucesso do trabalhordquo (p 89)12

Ainda sobre a centralidade do trabalho Junior (2000 p335) afirma que para Marx tra-

ta-se de uma categoria central a partir da qual ldquopode-se pensar o indiviacuteduo a sociedade com

seus sistemas poliacuteticos juriacutedicos e ideoloacutegicos sua cultura etcrdquo

Outra possibilidade de o trabalho ser tido como determinante na constituiccedilatildeo da socia-

bilidade pode ser dada por ele ser tido por alguns pensadores como uma atividade exclusiva-

mente humana Conforme afirma Alves Carvalho apud Machado (2001) ldquoO trabalho natildeo

pode ser conhecido fora do humano pois ele eacute uma atividade especificadamente humana que

se desenvolve dentro da contradiccedilatildeo entre o singular e o coletivo sendo inseparaacutevel das rela-

ccedilotildees sociais que ele engendrardquo (p 46) Para Macaacuterio (1999) o desvelamento da categoria tra-

12 Este pensador sustenta essa posiccedilatildeo tomando como referecircncia as reflexotildees de LUCKAacuteCS sobre trabalho e o ldquopocircr teleoloacutegicordquo Segundo LUCKAacuteCS apud MACAacuteRIO (1999) ldquoO homem foi definido como o animal que constroacutei os seus proacuteprios utensiacutelios Eacute correto mas eacute preciso acrescentar que construir e usar instrumentos impli-ca necessariamente como pressuposto imprescindiacutevel para o sucesso do trabalho que o homem tenha domiacutenio sobre si mesmo Esse tambeacutem eacute um momento do salto a que nos referimos da saiacuteda do homem da existecircncia puramente animalescardquo (p 89)

23

balho ldquorevelaraacute a essecircncia humana isto eacute aquilo que ontologicamente faz do homem um ser

pertencente a uma esfera superior agraves naturaisrdquo (p 84)13

Se de um lado o referencial marxista aponta o trabalho como uma categoria central

protoforma da sociedade por outro lado encontramos tambeacutem em Marx uma criacutetica agrave forma

sob a qual o trabalho se constitui no capitalismo Neste sentido outras consideraccedilotildees sobre o

trabalho satildeo discutidas nesta pesquisa sobretudo aquelas que abordam como a importacircncia da

presenccedila de saberes vem se inscrevendo nos modelos de organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho

Dessa forma entendemos ser importante apresentar uma anaacutelise feita por Santos e Ferreira

(1996) sobre dois significados de trabalho historicamente construiacutedos

bull ldquotrabalho tomado como a ativa criaccedilatildeo de uma obra por um sujeito que implica uma ideacuteia de liberdade de transformaccedilatildeo de prazer

bull trabalho no sentido de labor onde ganham ecircnfase os conteuacutedos de esforccedilo rotineiro e repe-titivo sem liberdade de resultado consumiacutevel e incocircmodo inevitaacutevelrdquo (p 23)

Em relaccedilatildeo agraves contradiccedilotildees que o trabalho apresenta no modo de produccedilatildeo capitalista

buscamos estabelecer um diaacutelogo com pesquisadores que a partir das investigaccedilotildees sobre o

processo de reestruturaccedilatildeo produtiva abordam a presenccedila de saber no processo trabalho (AN-

TUNES 2001 CORIAT 1994 GOUNET 1999) e sobretudo as pesquisas que atraveacutes do

estudo de situaccedilotildees concretas remetem agrave temaacutetica do saber taacutecito dos trabalhadores (Santos

1985 1991 1997 2000 Aranha 1997 Lima 1998 Salerno 1994 Machado 2001 Assis

2000)

Para prosseguir o percurso de apreensatildeo do nosso objeto de pesquisa entendemos co-

mo necessaacuterio dialogar tambeacutem com os autores que ao discutirem o trabalho no capitalismo

13 Sobre a centralidade do trabalho acreditamos que esta pesquisa ao propor conhecer as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes corrobora a contestaccedilatildeo feita por ANTU-NES (2001) de que a ciecircncia seja a principal forccedila produtiva De acordo com ANTUNES (20001) a aparente autonomia da ciecircncia perante o trabalho natildeo elimina o trabalho como gerador de valor Na atual fase do capita-lismo o trabalho inscreve-se como sempre se fez em uma metamorfose e a ciecircncia permite a extraccedilatildeo do sobre-trabalho

24

fazem referecircncia agrave relaccedilatildeo entre o trabalho prescrito e o trabalho real14 De acordo com Santos

(2000) trabalho prescrito eacute ldquoA definiccedilatildeo preacutevia da maneira como o trabalhador deve executar

o trabalho o modo de usar os equipamentos e as ferramentas o tempo concedido para cada

operaccedilatildeo o como fazer e as regras que devem ser respeitadasrdquo O trabalho real se remete agraves

condiccedilotildees necessaacuterias em que se realiza uma parte do trabalho que sempre escapa agrave prescri-

ccedilatildeo Santos (2000) Para alguns pesquisadores a realizaccedilatildeo do trabalho real soacute se torna possiacute-

vel pela intervenccedilatildeo do saber taacutecito do trabalhador (SANTOS 1991 1997 ARANHA 1997

SALERNO 1994) Essa possibilidade eacute respaldada pelo entendimento de que o trabalho tem

um princiacutepio educativo (NOSELLA 1992) Essa perspectiva jaacute havia sido desenhada por

Gramsci conforme afirma Manacorda (2000) ldquoO trabalho para Gramsci eacute essencialmente

um elemento constitutivo de ensinordquo (p 135)

Optar por investigar os caminhos percorridos pelo trabalhador para a produccedilatildeo orga-

nizaccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo de seus saberes implica ao nosso olhar acreditar que eacute possiacutevel uma

aproximaccedilatildeo com o mundo do trabalho atraveacutes da lente do trabalhador A pesquisa biblio-

graacutefica que realizamos aliada agrave nossa experiecircncia como operaacuterio metaluacutergico nos permite

inferir sobre a possibilidade de o trabalhador se apropriar de saberes formalizados bem como

reapropriar seus saberes que foram incorporados ao saber da engenharia Neste sentido eacute im-

portante salientar que esta pesquisa se orientou tambeacutem pelas reflexotildees de pesquisadores que

defendem a possibilidade de o saber taacutecito do trabalhador favorecer uma leitura positiva do

trabalho (ARANHA 1997 SANTOS 1997 2000) Vejamos uma afirmaccedilatildeo de Santos

(2000) ldquoO trabalhador natildeo eacute um mero executante determinado pelo seu lugar nas relaccedilotildees

sociais e pelos dispositivos teacutecnicos mas tambeacutem um homem sujeito vivente com todo hori-

zonte de universalidade que isto implicardquo (p 123) Neste sentido seria possiacutevel que os traba-

lhadores se afirmassem como sujeitos de interesses proacuteprios pois mesmo que o capital busque 14 Essa perspectiva tem um deacutebito original com os trabalhos vinculados ao campo da ergonomia Neste sentido nos apoiamos especialmente em alguns pensadores desse campo (DANIELLOU 1989 SALERNO 1994 WIS-NER 1987 LIMA 1998)

25

controlar o seu saber ele natildeo lhe expropria a sua condiccedilatildeo de sujeito como nos afirma Char-

lot (2000) ldquoTodo indiviacuteduo eacute um sujeito por mais dominado que seja Um sujeito que inter-

preta o mundo resiste agrave dominaccedilatildeo afirma positivamente seus interesses procura transformar

a ordem do mundo em seu proacuteprio proveitordquo (p 31)

Ao considerar a capacidade transformadora do trabalho nossa pesquisa se referendou

em pesquisadores que recuperam a dimensatildeo concreta do trabalho Daiacute decorre a grande im-

portacircncia de Santos (1997 2000) para esta pesquisa Essa pesquisadora ao mesmo tempo em

que trata das contradiccedilotildees do trabalho no capitalismo e talvez por isso mesmo recupera tam-

beacutem as possibilidades de os trabalhadores atraveacutes de seus saberes se afirmarem como sujei-

tos de interesses proacuteprios Para isto se apoacuteia em Schwartz que ldquointerroga o trabalho como

experiecircncia individual e coletiva como ldquouso de sirdquo que pode ser feito por si e por outros

analisando a natureza epistemoloacutegica das interrogaccedilotildees que lhe concernemrdquo (SANTOS 2000

p 121) Para abordar a possibilidade de ldquouso de sirdquo por parte dos ferramenteiros nos remete-

remos tambeacutem agraves discussotildees propostas pela ergologia (SANTOS 1997 2000 SCHWARTZ

2000 2004)15

Essa perspectiva somada as nossas reflexotildees como operaacuterio nos permitiu ainda tra-

balhar com a ideacuteia de que o trabalhador ao buscar fazer melhor uso de seu saber desenvol-

vesse ele proacuteprio estrateacutegias que lhe garantissem um certo rigor na produccedilatildeo organizaccedilatildeo e

mobilizaccedilatildeo de seu saber

Ao elegermos como nosso objeto de pesquisa as estrateacutegias usadas pelos trabalhadores

para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes entendemos como necessaacuterio conhecer

tambeacutem as condiccedilotildees em que este saber foi produzido e como o trabalhador mobiliza e for-

15 Segundo SCHWARTZ a ergologia natildeo eacute uma nova disciplina Trata-se de uma proposta que congrega natildeo soacute muitas disciplinas que abordam o trabalho portanto multidisciplinar bem como interroga o ponto de vista dos protagonistas do trabalho e ainda o proacuteprio processo histoacuterico que fundamenta respectivamente o olhar cientiacute-fico das disciplinas e o olhar oriundo da experiecircncia no trabalho A ergologia ao tratar das ldquoatividades humanasrdquo inscreve o trabalho em sua dimensatildeo histoacuterica e social reconhecendo-o como uma experiecircncia individual e cole-tiva ldquono seu trabalho o trabalhador eacute sempre uma pessoa inteirardquo (SANTOS 2000 SCHWARTZ 2000 2004 FAITA e SOUZA-e-SILVA 2002)

26

maliza este saber Neste sentido fizemos uma investigaccedilatildeo sobre a literatura que aborda a

relaccedilatildeo entre teoria e praacutetica no que se refere ao saber taacutecito (FRADE 2003 SCHON 2000

POLANY 1967 MALGLAIVE 1990)16

14 AS ESTRATEacuteGIAS METODOLOacuteGICAS

A literatura sobre a pesquisa cientiacutefica faz duas proposiccedilotildees de abordagens metodoloacute-

gicas as pesquisas quantitativas e qualitativas que podem quando for o caso aparecer como

complementares O uso da pesquisa quantitativa eacute indicado quando se apresenta a possibilida-

de de quantificar e mensurar os resultados da investigaccedilatildeo A pesquisa qualitativa normal-

mente eacute marcada pela natildeo-quantificaccedilatildeo dos resultados A sua aplicaccedilatildeo privilegia as dimen-

sotildees subjetivas das relaccedilotildees entre pessoas e entre pessoas e instituiccedilotildees De acordo com Mi-

nayo (1993) a pesquisa qualitativa

() se preocupa com um niacutevel de realidade que natildeo pode ser quantificado Ou seja ela tra-balha com o universo de significados motivos aspiraccedilotildees crenccedilas valores e atitudes o que corresponde a um espaccedilo mais profundo das relaccedilotildees dos processos e dos fenocircmenos que natildeo podem ser reduzidos agrave operacionalizaccedilatildeo de variaacuteveis (p 15)

A opccedilatildeo pela abordagem qualitativa dialoga de certa forma com as caracteriacutesticas do

nosso objeto e com as pretensotildees desta investigaccedilatildeo Uma vez que esta pesquisa se insere no

campo das ciecircncias sociais o seu objeto eacute ldquoessencialmente qualitativordquo (MINAYO 1993 p

16 O uso do termo ldquosaber taacutecitordquo embora citado pelos autores natildeo eacute assumido igualmente por todos eles Con-forme veremos mais adiante seratildeo usados termos que buscam identificar um saber de ordem praacutetica Neste sen-tido aparecem os termos savoir-faire saber praacutetico talento artiacutestico e conhecimento taacutecito Eacute importante ressal-tar que ao orientarmos nossa pesquisa com o uso de ldquosaber taacutecitordquo em detrimento do termo ldquoconhecimento taacuteci-tordquo acatamos a distinccedilatildeo feita por alguns pesquisadores entre saber e conhecimento entendendo que conheci-mento estaacute proacuteximo da ordem do formalizado de acordo com COLLINS (1992) apud LIMA e SILVA (1998) Jaacute o termo ldquosaberrdquo pode responder a saberes natildeo-formalizados e tambeacutem se articular com a ideacuteia de ldquofazerrdquo SAN-TOS (2001) Essa escolha se daacute por ser a situaccedilatildeo mais proacutexima da delimitaccedilatildeo do objeto desta pesquisa bem como por permitir perceber a questatildeo do saber taacutecito na perspectiva empresarial acadecircmica e tambeacutem dos traba-lhadores As razotildees da opccedilatildeo pelo termo saber taacutecito ficaram a nosso ver justificadas no desenvolvimento desta dissertaccedilatildeo

27

15) Essa pesquisadora (1993 p 14-15) aponta quatro caracteriacutesticas importantes do objeto

das ciecircncias sociais

bull Eacute histoacuterico () cuja formaccedilatildeo social e configuraccedilatildeo satildeo especiacuteficas vivem o presente marcado pelo passado e projetado para o futuro () portanto a provisoriedade o dina-mismo e a especificidade satildeo caracteriacutesticas essenciais de qualquer questatildeo social

bull () natildeo eacute apenas o investigador que daacute sentido ao seu trabalho intelectual mas os seres humanos os grupos e a sociedade datildeo significado e intencionalidade a suas accedilotildees e a suas construccedilotildees na medida em que as estruturas sociais nada mais satildeo que accedilotildees objetivadas

bull () existe uma relaccedilatildeo entre sujeito e objeto () por serem da mesma natureza bull () o fato de que ela eacute intriacutenseca e extrinsecamente ideoloacutegica () Ela veicula interesses e

visotildees de mundo historicamente construiacutedas embora suas contribuiccedilotildees e seus efeitos teoacute-ricos e teacutecnicos ultrapassem as intenccedilotildees de seu desenvolvimento

A proposta de investigar os meacutetodos usados pelo trabalhador para a produccedilatildeo mobili-

zaccedilatildeo e a formalizaccedilatildeo dos seus saberes constitui-se para noacutes como um misto de aventura e

desafio Essas dimensotildees se devem pela possibilidade de poder articular as abordagens teoacuteri-

cas sobre o mundo do trabalho com a minha vivecircncia de operaacuterio ldquometaluacutergicordquo Ao se carac-

terizar tambeacutem pela relaccedilatildeo proacutexima entre sujeito e objeto a pesquisa qualitativa ganha mais

validade para esta pesquisa dada a nossa intimidade com o objeto Conforme elucida Minayo

(1993) ldquo() a pesquisa nessa aacuterea lida com seres humanos que por razotildees culturais de clas-

se de faixa etaacuteria ou por qualquer outro motivo tecircm um substrato comum de identidade com

o investigador tornando-os solidariamente imbricados e comprometidos rdquo (p 14) Essa pro-

ximidade no entanto nos alerta para a necessidade de estarmos atentos aos efeitos da subjeti-

vidade para alcanccedilarmos a objetividade na pesquisa (SANTOS 1991)

141 Revisatildeo bibliograacutefica

Esta pesquisa contou com um momento de vital importacircncia por meio do qual foi

possiacutevel nos aproximarmos do nosso objeto Neste sentido eacute importante salientar a nossa re-

28

visatildeo bibliograacutefica sobre o mundo trabalho sobretudo a presenccedila de saberes no processo de

trabalho

142 Instrumentos de pesquisa

Os instrumentos de pesquisa constituem-se de vital relevacircncia para as perspectivas

desta pesquisa dada a complexidade imposta pelo proacuteprio objeto As teacutecnicas de pesquisas

para a coleta de dados foram a pesquisa documental entrevistas semi-estruturadas e a obser-

vaccedilatildeo

1421 A pesquisa documental

Para esta pesquisa a coleta de dados documentais fez-se importante natildeo soacute por lanccedilar

luzes sobre a prescriccedilatildeo do trabalho feita pela empresa mas ainda pela possibilidade de ilus-

trar algumas formalizaccedilotildees de saberes feitas pelos sujeitos de nossa pesquisa Foram identifi-

cados e analisados materiais produzidos na empresa apostilas manuais de seguranccedila proce-

dimentos para o processo produtivo fichas de conclusatildeo de serviccedilo e tambeacutem materiais pro-

duzidos pelos trabalhadores como anotaccedilotildees tabelas e croquis17

1422 Entrevistas semi-estruturadas

O uso de entrevistas semi-estruturadas se constitui como uma das fases mais marcan-

tes desta pesquisa De um lado a proacutepria literatura sobre a metodologia cientiacutefica nas ciecircncias

sociais jaacute seria suficiente para justificar a relevacircncia desse instrumento de coleta de dados

Atraveacutes dessa modalidade de entrevista segundo Minayo (1993) ldquoO pesquisador busca obter

informes contidos na fala dos atores sociaisrdquo (p 57) O uso da entrevista semi-estruturada

facilita a participaccedilatildeo do entrevistado e auxilia na eventualidade de haver problemas de co- 17 Croquis satildeo desenhos feitos agrave matildeo podendo ser agraves vezes um rascunho de um desenho ou mesmo um desenho dentro de normas teacutecnicas

29

municaccedilatildeo pois de acordo com Mazzotti (1998) ldquoO entrevistador faz perguntas especiacuteficas

mas tambeacutem deixa que o entrevistado responda em seus proacuteprios termosrdquo Por outro lado natildeo

eacute menos farto o arsenal teoacuterico que aponta a dificuldade que uma pessoa possa ter para se ex-

pressar e especialmente no que se refere agrave questatildeo do saber taacutecito onde predomina um forte

debate sobre as possibilidade de explicitaccedilatildeo ou natildeo deste saber18 Diante desta questatildeo eacute

prudente que o pesquisador ldquodeixerdquo o entrevistado falar ou como afirma Thiollent (1980)

que o pesquisador se mantenha com uma ldquoatenccedilatildeo flutuanterdquo afim de ldquoestimular o entrevista-

do a explorar o seu universo cultural sem questionamento forccediladordquo Em relaccedilatildeo a essa pesqui-

sa haacute que se dizer em favor de Santos e Aranha que estas pesquisadoras sempre apontaram

que o respeito do pesquisador diante das ldquofalasrdquo do entrevistado remete tambeacutem a uma pos-

tura epistecircmica do pesquisador pela qual ele deve permitir que os protagonistas do trabalho

busquem seus proacuteprios meios para se fazerem entender19 Em relaccedilatildeo agraves entrevistas realiza-

das uma delas realizou-se dentro da proacutepria oficina20 Embora tenha ocorrido nos intervalos

do horaacuterio de almoccedilo tivemos que contar com barulhos e algumas interrupccedilotildees Diante desse

problema apresentado ao pessoal dos Recursos Humanos nos foi oferecida uma sala de trei-

namento para realizar a entrevista Observamos que nesta sala de treinamento as entrevistas

perderam um pouco da espontaneidade Passamos a buscar um espaccedilo para realizaacute-las que

fosse longe do barulho e das interrupccedilotildees mas que natildeo colocasse os ferramenteiros como

ldquoestrangeirosrdquo ao espaccedilo Neste momento optamos por usar uma sala onde no horaacuterio de

almoccedilo os trabalhadores jogavam cartas ou dominoacute Ainda que este espaccedilo se localizasse fora

do galpatildeo aproximadamente a uns 50 metros tratava-se de uma sala dentro da faacutebrica o que

18 Esta temaacutetica seraacute abordada mais adiante no capiacutetulo teoacuterico 19 Essa contribuiccedilatildeo deu-se em aulas durante a disciplina Sujeito trabalho e educaccedilatildeo oferecida por essas pes-quisadoras no curso de poacutes-graduaccedilatildeo da FAEUFMG em 2002 Outro momento tambeacutem muito importante foi uma experiecircncia de um grupo de trabalho com entrevistas ldquopilotordquo anterior agrave nossa entrada no campo de pesqui-sa onde foi possiacutevel debater sobre a relaccedilatildeo do pesquisador com as falas dos sujeitos de sua pesquisa Essa expe-riecircncia contou tambeacutem com a participaccedilatildeo da pesquisadora Rosacircngela Pereira 20 As entrevistas dentro da faacutebrica foram motivadas pela dificuldade de alguns dos entrevistados cujos depoi-mentos noacutes natildeo gostariacuteamos de ldquoperderrdquo em dispor de tempo fora do horaacuterio de trabalho Alguns desses estuda-vam uns tinham que ldquoolharrdquo os filhos para as esposas estudarem e outros moravam muito longe

30

nos deixou em sinal de alerta No entanto neste ldquonovordquo espaccedilo foi possiacutevel perceber um outro

posicionamento por parte dos entrevistados maior espontaneidade para com as questotildees a-

bordadas na entrevista e intimidade com este espaccedilo21

1423 Observaccedilatildeo de campo

Satildeo muitos os fatores que tornam a observaccedilatildeo in loco um instrumento valioso na co-

leta de dados para esta pesquisa De um lado o nosso objeto estaacute inexoravelmente articulado

com a situaccedilatildeo de trabalho Dessa forma a teacutecnica de observaccedilatildeo nos permitiu aproximar

dessas situaccedilotildees a fim de permitir jogar luzes no ldquotaacutecitordquo E ainda a observaccedilatildeo in loco nos

proporcionou uma aproximaccedilatildeo com os protagonistas dessas situaccedilotildees de trabalho o que nos

permitiu afirmar melhor nosso objeto bem como acrescentar novas possibilidades de abordaacute-

lo Segundo Minayo (1993) a observaccedilatildeo possibilita ldquo() captar uma seacuterie de situaccedilotildees ou

fenocircmenos que natildeo satildeo obtidos por meio de ndash perguntas uma vez que satildeo observados direta-

mente na realidade transmitem o que haacute de mais importante e evasivo na vida realrdquo (p 59)

143 Os sujeitos da pesquisa

Como sujeitos da nossa pesquisa foram escolhidos os ferramenteiros de uma induacutestria

metaluacutergica da regiatildeo metropolitana de Belo Horizonte Em uma pesquisa de cunho qualitati-

vo a delimitaccedilatildeo numeacuterica dos sujeitos a serem entrevistados natildeo eacute relevante (THIOLLENT

1980) Segundo Minayo (1993) ldquoA amostragem boa eacute aquela que possibilita abranger a tota-

lidade do problema investigado em suas muacuteltiplas dimensotildeesrdquo (p 43) Nesta pesquisa bus-

camos entrevistar aqueles protagonistas do trabalho cuja experiecircncia em ferramentaria fosse

reconhecida pelo seu coletivo de trabalho As escolhas natildeo geraram nenhum impedimento por

21 Nesta sala eles proacuteprios os ferramenteiros nos interrogavam se desejaacutevamos abrir mais a janela ir ao banhei-ro ou que ligar o ventilador

31

parte da empresa embora uma parte das entrevistas tenha ocorrido fora do espaccedilo fabril Esse

fato acabou por gerar um dividendo a mais para as nossas reflexotildees dado que foi possiacutevel

analisar a relaccedilatildeo espacial que os trabalhadores mantecircm com o seu trabalho Todavia a teacutecni-

ca da observaccedilatildeo nos permitiu ainda dialogar com outros trabalhadores gerando dados aleacutem

dos que foram coletados nas entrevistas22 Usamos como formas de registro

bull Diaacuterio de bordo com anotaccedilotildees na faacutebrica e fora dela

bull Entrevistas gravadas e transcritas

Foram entrevistados cinco Ferramenteiros sendo que um dos entrevistados tem entre

20 e 30 anos de idade dois dos entrevistados possuem pouco menos do que 40 anos de idade

e outros dois ferramenteiros possuem mais do que 40 anos de idade Dois dos ferramenteiros

tecircm 10 anos de experiecircncia em ferramentaria Jaacute outros trecircs ferramenteiros tecircm mais de 20

anos de experiecircncia Trecircs dos entrevistados fizeram o curso de ferramenteiro pelo Senai Os

outros dois fizeram o curso de ajustador mecacircnico pelo Senai e aprenderam o ofiacutecio de ferra-

menteiro na praacutetica dois Mestres em ferramentaria Um dos mestres possui 30 anos e quase

15 anos dentro da ferramentaria O outro mestre possui 35 anos e quase 20 anos de experiecircn-

cia em ferramentaria Ambos fizeram o curso de torneiro mecacircnico pelo Senai Um dos entre-

vistados fez tambeacutem pelo Senai o curso de ferramenteiro chegando inclusive a representar o

Brasil em uma ldquomaratonardquo internacional de ferramentaria na Holanda

144 O desenvolvimento da pesquisa o meu contato com a empresa pesquisada

De um lado a escolha da empresa deu-se por se tratar de uma grande ferramentaria

voltada para o setor automobiliacutestico Por outro lado estavam em curso tambeacutem contatos com

outras empresas A decisatildeo por pesquisar essa empresa foi sendo construiacuteda primeiramente

22 Todas as entrevistas foram gravadas totalizando nove horas de gravaccedilatildeo

32

pela boa recepccedilatildeo do pessoal do Recursos Humanos Em segundo lugar emergiu um motivo

que depois se tornou um dos grandes aspectos dessa ferramentaria enquanto campo para a

nossa pesquisa Trata-se de um projeto conduzido pela empresa que pretende colocaacute-la como

a maior ferramentaria da Ameacuterica Latina Ao se aprofundar as anaacutelises preliminares sobre a

Empresa T foi possiacutevel constatar que essa intenccedilatildeo estava proacutexima de se tornar real

Em algumas conversas informais com o pessoal do Recursos Humanos foi demons-

trado um grande interesse pela escolha da empresa como objeto de pesquisa Foi considerado

tambeacutem o fato de que outras empresas do grupo jaacute haviam sido abordadas por uma pesquisa-

dora da UFMG23 Apesar de nos ter sido feita somente uma solicitaccedilatildeo formal por parte da

universidade juntamente com a nossa proposta de pesquisa fomos tomados por um receio

pois tiacutenhamos plena consciecircncia de que o respeito e atenccedilatildeo por parte dos trabalhadores do

chatildeo de faacutebrica natildeo satildeo obtidos pelas apresentaccedilotildees formais e sim adquiridos pela convivecircn-

cia cotidiana natildeo haacute pior comeccedilo em uma faacutebrica do que parecer ser apadrinhado por um

chefe

145 No olho do furacatildeo entre homens e maacutequinas

Ao recebermos a liberaccedilatildeo definitiva por parte da empresa para iniciar a pesquisa den-

tro da faacutebrica acertamos um cronograma com o responsaacutevel pelo Recursos Humanos Em

nosso primeiro dia dentro da faacutebrica fomos acompanhados por um estagiaacuterio do Recursos

Humanos que nos apresentou aos gerentes da ferramentaria e tambeacutem ao coordenador dos

ferramenteiros Toda a chefia se mostrou interessada pela possibilidade de se levar a puacuteblico

algum esclarecimento sobre a ferramentaria24 Em seguida foi proposto pelo gerente geral

23 VERIacuteSSIMO (2000) tambeacutem orientanda da prof Eloisa SANTOS 24 Essa posiccedilatildeo foi frequumlente entre os ferramenteiros que tambeacutem lamentaram que ldquoningueacutem aiacute fora sabe dizer o que eacute uma ferramentariardquo As falas dos ferramenteiros agraves vezes pareciam quase como as fala de um artista que desejasse que sua arte fosse reconhecida ldquoSe o pessoal soubesse que para se ter uma colher qualquer em casa eacute

33

que o coordenador da ferramentaria nos apresentasse os processos de trabalho da mesma e aos

cinco mestres que chefiam as cinco ceacutelulas de ferramenteiros

Tatildeo logo comeccedilamos a conversar o coordenador da ferramentaria se declarou um a-

paixonado pelo seu trabalho e afirmou ter quase 50 anos de experiecircncia na ferramentaria dos

quais mais de 30 dentro da ferramentaria da Ford em Satildeo Bernardo do Campo Agrave medida que

esse senhor foi nos apresentando os setores dentro da ferramentaria pudemos conversar com

entusiasmo sobre as transformaccedilotildees sofridas no mundo do trabalho especialmente o setor

metaluacutergico Sem muita profundidade ele comentou sobre a dificuldade de se encontrar hoje

bons ferramenteiros e sobre os ldquobons temposrdquo do ferramenteiro em Satildeo Paulo quando ganha-

vam ldquomais do que a maioria dos meacutedicosrdquo Conversamos ainda sobre a reorganizaccedilatildeo sindi-

cal no ABC paulista na deacutecada de 1970

Ao ser apresentado aos mestres da ferramentaria acolhemos a sugestatildeo feita por um

deles de que ldquoseria interessante que junto com um dos mestres fizeacutessemos um mapa do pro-

cesso de construccedilatildeo de uma ferramenta e que a partir deste roteiro poderiacuteamos analisar todas

as fases do trabalho do ferramenteiro em cada uma das ceacutelulasrdquo25 Foi a partir do mapeamento

sobre o processo de construccedilatildeo da ferramenta que escolhemos a primeira ceacutelula de ferramen-

teiros para iniciarmos a nossa investigaccedilatildeo

Apoacutes os primeiros dias de observaccedilatildeo dentro dessa empresa nos demos conta ou

mesmo afirmamos a ideacuteia de que a faacutebrica marca profundamente os que nela trabalham bem

como estes tambeacutem imprimem de forma objetiva e subjetiva as suas marcas neste espaccedilo As

formas das cicatrizes a vermelhidatildeo dos olhos e o jeito de carregar uma ferramenta ou mes-

mo um cigarro denunciam se foi com a limalha do torno ou com o gaacutes da solda que o operaacute-

um negoacutecio difiacutecil e bonito eles dariam mais valor para o nosso trabalhordquo ldquoSempre que a gente vai agrave uma loja e eacute preciso fazer a ficha de crediaacuterio o pessoal vecirc o nosso salaacuterio eles se assustam e natildeo acreditam que nosso trabalho eacute difiacutecilrdquo 25 Essa sugestatildeo se justifica por que a construccedilatildeo de uma ferramenta pode durar de seis a oito meses Neste caso poderiam ser conhecidas todas as fases desde que fosse acompanhada mais de uma ferramenta o que foi possiacute-vel pois cada ceacutelula cuida no miacutenimo de uma ferramenta

34

rio esteve em trabalho Enfim foi boa a sensaccedilatildeo de estar de volta ao barulho inconfundiacutevel

das maacutequinas e agrave imagem viva de homens com seus gestos e as suas brincadeiras que por

mais estranhos que sejam acabam unindo pessoas Ateacute mesmo as ldquovelhas piadasrdquo estavam de

volta26

Ainda nos primeiros dias fomos tomados por um estranhamento em relaccedilatildeo ao espaccedilo

fiacutesico e quantidade de trabalhadores Tivemos a impressatildeo de que natildeo estaacutevamos em uma

faacutebrica claacutessica com pessoas tendo que ldquoficar espertasrdquo com a ponte rolante e as empilhadei-

ras Depois de algumas observaccedilotildees foi possiacutevel perceber algumas preacute-instalaccedilotildees para outras

maacutequinas o que mais tarde foi confirmado pelos trabalhadores a dimensatildeo do galpatildeo era a

projeccedilatildeo de uma futura expansatildeo para esta ferramentaria

Os primeiros momentos de observaccedilatildeo nos permitiram aproximar da realidade daquela

faacutebrica buscamos perceber o ritmo de trabalho dos ferramenteiros os riscos de acidentes e as

relaccedilotildees de poder inscritos naquele espaccedilo Outro aspecto possibilitado a partir desses primei-

ros momentos foi o ldquodeixarrdquo que os trabalhadores tambeacutem nos conhecessem elemento essen-

cial para a nossa pesquisa evidenciado pela proacutepria fala dos trabalhadores ldquono iniacutecio a turma

ficou ldquocismadardquo pensando que vocecirc poderia ser um espiatildeordquo27

Apoacutes aproximadamente a quarta semana de observaccedilatildeo iniciamos uma pequena sis-

tematizaccedilatildeo de nosso diaacuterio de bordo a fim de ldquoreorientarrdquo nosso roteiro de entrevistas Embo-

ra jaacute houvesse obtido a permissatildeo para realizar as entrevistas dentro da faacutebrica optamos em

fazer as duas primeiras delas em outro espaccedilo Foi um momento importante pois aleacutem dos 26 ldquoO peatildeo adora fazer alusatildeo ao parentesco entre os colegas lsquoVocecircs satildeo irmatildeosrsquo lsquoQuem era o mais choratildeo laacute na sua casarsquordquo 27 Foram muitas falas com essa conotaccedilatildeo Em algumas delas os ferramenteiros citaram certos comportamentos de nossa parte que favoreceram a nossa entrada no coletivo de trabalho Explicitaremos apenas uma delas pelo teor do seu conteuacutedo irocircnico mas revelador mdash ldquoVou te falar a verdade no iniacutecio a turma toda ficou falando ou ele eacute mais um chefe ou esse cara eacute um espi-atildeo Depois vocecirc foi se entrosando com a gente Soacute que eu vou te falar um negoacutecio vocecirc pode ateacute ser professor mas vocecirc deve ser filho de peatildeo vocecirc tem umas lsquomaniasrsquo de peatildeordquo Eu mdash Seraacute Uma hora dessas vou te contar a minha Histoacuteria se vocecirc estiver certo eu te pago uma cerveja se vocecirc estiver errado vocecirc me paga uma cerveja taacute combinado mdash Taacute vendo num tocirc te falando isso eacute coisa de peatildeo Esse mesmo estranhamento foi relatado por SANTOS (1985) ao entrar na faacutebrica em que realizou sua pesquisa de mestrado

35

ricos elementos coletados nos permitiu projetar um olhar mais refinado para as futuras obser-

vaccedilotildees e ainda para as outras entrevistas

36

2 O ldquoLUGARrdquo DO SABER NO MUNDO DO TRABALHO

A presenccedila de saberes no processo de trabalho tem despertado interesse em vaacuterios

segmentos da sociedade trabalhadores empresaacuterios poder puacuteblico e privado trabalho e esco-

la Apresentaremos a seguir parte da discussatildeo feita pelos autores que se interessam pelo

tema inicialmente localizando os modelos de organizaccedilatildeo de trabalho capitalista em seguida

a importacircncia atribuiacuteda ao tema do saber no processo de trabalho e os diversos acircngulos em

que ele eacute tratado

21 O SABER NOS MODELOS DE ORGANIZACcedilAtildeO E GESTAtildeO DO TRABALHO

Os modelos de organizaccedilatildeo do trabalho satildeo engendrados num determinado contexto

histoacuterico econocircmico e social e respondem agraves condiccedilotildees da base material da sociedade Muitos

autores como Gounet (1999) Coriat (1994) Salerno (1994) e Bravermam (1987) que discu-

tem a questatildeo do saber e os modelos de organizaccedilatildeo do trabalho destacam dois paradigmas

dessa organizaccedilatildeo o taylorismo e o toyotismo O primeiro marcou a organizaccedilatildeo dos proces-

sos de trabalho em todo o seacuteculo XX e sobrevive fortemente ateacute hoje o segundo surge no

Brasil a partir principalmente dos anos de 1970

O Taylorismo preconiza uma racionalizaccedilatildeo da organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho que

elimine as porosidades na linha produtiva Essa perspectiva aponta para uma aparente oposi-

37

ccedilatildeo entre o operaacuterio e a gerecircncia no que se refere ao niacutevel de autonomia sobre os saberes pre-

sentes no processo de trabalho1

Em relaccedilatildeo agraves suas principais caracteriacutesticas o taylorismo foi analisado da seguinte

forma por Aranha (1997)

O taylorismo caracteriza-se entre outras coisas por seu rigor em tentar submeter o trabalhador a um trabalho prescrito pela gerecircncia () A radical separaccedilatildeo entre e-xecuccedilatildeo e concepccedilatildeo e a otimizaccedilatildeo da produtividade do trabalho com a reduccedilatildeo de tempos mortos constituiacuteam algumas das suas principais metas (p 20)

Por discutirem com mais profundidade o taylorismo Bravermam (1987) Coriat

(1994) e Antunes (2001) afirmam que a proposta de Taylor estrutura-se sobre um trabalho

parcelar e fragmentado de tarefas que supostamente exige dos operaacuterios saberes e habilida-

des especiacuteficas agrave sua funccedilatildeo O taylorismo notabiliza-se ainda pela radical separaccedilatildeo entre a

execuccedilatildeo e a concepccedilatildeo onde a prescriccedilatildeo do trabalho caberia agrave gerecircncia que dentre outras

atribuiccedilotildees poderia e deveria conhecer organizar e controlar o saber dos trabalhadores ou

como afirma o proacuteprio Taylor (1980) ldquoA gerecircncia tem a funccedilatildeo de reunir os conhecimentos

tradicionais que no passado possuiacuteram os trabalhadores e entatildeo classificaacute-los tabulaacute-los e

reduzi-los em normas leis ou foacutermulas grandemente uacuteteis ao operaacuteriordquo (p 49)

O toyotismo2 eacute um modelo de organizaccedilatildeo do trabalho que surge a partir de fins dos

anos sessenta e chega ao Brasil uma deacutecada depois Este modelo introduz novidades em rela-

ccedilatildeo ao saber do operaacuterio quando passa a valorizaacute-lo no processo produtivo (CORIAT 1994

HARVEY 1993) Sob o vieacutes da gestatildeo participativa essa perspectiva procura encurtar a dis-

tacircncia entre a concepccedilatildeo e a execuccedilatildeo com a criaccedilatildeo de mecanismos que facilitam a integra-

1 Essa questatildeo jaacute eacute discutida em uma extensa bibliografia (BRAVERMAM 1987 CORIAT 1994 GOUNET 1999) 2 O aprofundamento desse modelo se encontra em uma extensa bibliografia (CORIAT 1994 ANTUNES 2001 GOUNET 1999)

38

ccedilatildeo do saber do trabalhador ao processo de trabalho e agraves poliacuteticas da empresa de melhoria da

produtividade e qualidade

Aleacutem de uma maior participaccedilatildeo do trabalhador no processo produtivo esse modelo

diferentemente da rigidez taylorista valoriza um trabalhador que possua saberes e habilidades

que lhe permitam aprender continuamente adaptar e alocar seus saberes em multitarefas O

toyotismo se caracteriza ainda por um forte apelo ao uso da microeletrocircnica o que combi-

nado com as caracteriacutesticas anteriores acaba requisitando um perfil de trabalhador que tenha

uma formaccedilatildeo baacutesica mais soacutelida e ampla (EVANGELISTA 2002 ANTUNES 2001) Entre-

tanto o toyotismo ao mesmo tempo em que demanda uma forccedila de trabalho mais qualificada

tambeacutem ldquopressupotildee um trabalho precaacuterio e excludenterdquo (KUENZER apud EVANGELISTA

2002 p 40)3

Eacute necessaacuterio ainda afirmar que vaacuterias pesquisas (ARANHA 1997 ANTUNES

2001) questionam ou ateacute mesmo negam a total superaccedilatildeo do taylorismo pelo toyotismo Con-

forme esclarece Aranha (1997) ldquoestudos empiacutericos mostram que processos de trabalho alta-

mente neotecnizados convivem com esquemas tayloristas e mesmo com outros esquemas de

gerenciar a produccedilatildeo ainda mais atrasadosrdquo (p 22) Esse hibridismo eacute percebido criticamente

por alguns pesquisadores Hirata (1994) por exemplo afirma que a qualificaccedilatildeo exigida pelo

padratildeo flexiacutevel e integrado ldquo() se aplica menos agraves trabalhadoras do sexo feminino e aos ope-

raacuterios de empreiteiras subcontratados pela empresardquo (p 130) De acordo com essa pesquisa-

dora esse modelo ao mesmo tempo em que favorece o surgimento de trabalhadores super-

qualificados proporciona tambeacutem o crescimento do nuacutemero de trabalhadores pouco qualifi-

cados (HIRATA 1994)

3 Em relaccedilatildeo a esta questatildeo haacute uma vasta bibliografia (HIRATA 1994 CARVALHO 1996 KUENZER 1994 ANTUNES 2001)

39

Dentre as accedilotildees colocadas em uso pelo capital na tentativa de gerenciar os saberes dos

trabalhadores algumas nos parecem bem sofisticadas Assis (2000) em sua dissertaccedilatildeo4 ob-

serva que a empresa na qual realizou a sua pesquisa se apoiava em um excepcional sistema de

comunicaccedilatildeo informatizado para tentar mobilizar e apropriar os saberes dos trabalhadores

Em outros estudos como os realizados por Souza (2002)5 e Machado (1999)6 aparecem ele-

mentos que revelam uma proposta de organizaccedilatildeo do trabalho que busca combinar as novas

tecnologias para mobilizar a ldquoautonomiardquo do operaacuterio no processo produtivo no que diz res-

peito aos saberes

Por outro lado Santos (1985 1997 2000) Aranha (1997) Machado (1999) e Lima

(1998) ampliam a importacircncia do tema na medida em que ao problematizaacute-lo apontam para

dimensotildees relativas aos interesses dos trabalhadores Evangelista (2002) mostra ainda que os

trabalhadores sempre estiveram interessados em interpretar a presenccedila dos seus saberes no

processo de trabalho

22 O SABER NO TRABALHO

Os vaacuterios segmentos sociais trabalhadores empresaacuterios e poder puacuteblico ao mesmo

tempo em que de diversas formas consagram a importacircncia do saber no processo de trabalho

reclamam tambeacutem por estudos que o esclareccedilam melhor

No sentido de avanccedilar na problematizaccedilatildeo do saber no trabalho torna-se necessaacuterio

conhecer como a literatura vem abordando a temaacutetica Seguindo por esta trilha o debate aber- 4 ASSIS RicardoWagner Os impactos das novas tecnologias nas formas de sociabilidade e no savoir-faire dos operadores um estudo de caso do setor sideruacutergico Belo Horizonte Dissertaccedilatildeo de mestrado apresentada agrave Faculdade de Psicologia da UFMG 2000 5 SOUZA P R Autonomia dos operadores e trabalho de convencimento na produccedilatildeo contiacutenua Belo Hori-zonte (Dissertaccedilatildeo de mestrado apresentada agrave Escola de Engenharia da UFMG) 2002 6 MACHADO M L M Sujeito e trabalho impasses e possibilidades frente as novas tecnologias de gestatildeo no trabalho ndash o caso Gessy Lever Belo Horizonte Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Faculdade de Filosofia Ciecircncias e LetrasUFMG como requisito parcial agrave obtenccedilatildeo do tiacutetulo de mestre em psicologia Belo Horizonte 1999

40

to sobre a presenccedila do saber no trabalho perpassa reflexotildees teoacutericas e investigaccedilotildees de casos

concretos que apontam o tratamento dado agrave concepccedilatildeo e agrave execuccedilatildeo no processo de trabalho

Em relaccedilatildeo ao atual debate sobre o saber no processo de trabalho destaca-se a gestatildeo

participativa capitaneada pelo modelo toyotista que aparentemente elimina a separaccedilatildeo entre

execuccedilatildeo e concepccedilatildeo no processo de trabalho Segundo Aranha (1997) ldquoAs chamadas lsquoges-

totildees participativasrsquo buscam a integraccedilatildeo do trabalhador no processo produtivo alargando a

margem de sua interferecircncia e concretamente colocando em suas matildeos um conjunto de deci-

sotildees antes apenas restrito agrave gerecircnciardquo (p 22) Entretanto essa autora faz uma advertecircncia

ldquoEssas alteraccedilotildees natildeo foram colocadas por qualquer atitude de benevolecircncia do empresariado

para com a forccedila de trabalhordquo Antunes (2000) tambeacutem aponta a participaccedilatildeo do operaacuterio em

algumas decisotildees na linha produtiva como uma das inovaccedilotildees do toyotismo ldquoOs ciacuterculos de

controle de qualidade (CCQs) construindo grupos de trabalhadores que satildeo instigados pelo

capital a discutir seu trabalho e desempenho com vistas a melhorar a produtividade das em-

presasrdquo (p 55)

Por outro lado Evangelista (2002) afirma que as pesquisas indicam a existecircncia de

uma separaccedilatildeo entre execuccedilatildeo e concepccedilatildeo em empresas que adotaram o padratildeo flexiacutevel e

integrado como por exemplo a Fiat Automoacuteveis

A partir mesmo das relaccedilotildees estabelecidas entre a unidade fabril de Betim e a faacute-brica da matriz vaacuterios dos projetos dos carros produzidos no Brasil satildeo importados da Itaacutelia mostrando que a autonomia local eacute apenas relativa Alguns desses proje-tos satildeo definidos no Brasil mas as diretrizes vecircm da empresa matildee (p 84)

Evangelista (2002) afirma ainda que ldquoEsse processo se reproduz na relaccedilatildeo que a uni-

dade de Betim estabelece com o coletivo dos trabalhadores locais proporcionando-lhes uma

certa autonomia mas natildeo sem abrir matildeo naturalmente da coordenaccedilatildeo e do controlerdquo (p 85)

Eacute necessaacuterio considerar que mesmo estando as grandes decisotildees sob as ordens do ca-

pital haacute uma forte evidecircncia de que a reconfiguraccedilatildeo do saber dentro do processo de trabalho

41

por parte dos trabalhadores esteja inscrita natildeo somente como importante mas como uma ne-

cessidade fundamental para o capital

Avanccedilando nessa discussatildeo Santos (1997) contesta o fim da prescriccedilatildeo anunciado pe-

los processos flexiacuteveis e integrados ao trabalhar com a ideacuteia de que a separaccedilatildeo entre execu-

ccedilatildeo e concepccedilatildeo nos processos integrados e flexiacuteveis possa estar inserida em uma outra pers-

pectiva de organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho onde a prescriccedilatildeo de objetivos toma o lugar da

prescriccedilatildeo das atividades de trabalho Segundo essa pesquisadora ldquoA prescriccedilatildeo passa desse

modo a se referir aos objetivos amplos do processo produtivo direcionados ao sistema como

um todo Haacute um deslocamento das exigecircncias em relaccedilatildeo agraves teacutecnicas operatoacuterias especializa-

das para uma regulaccedilatildeo tecnoloacutegica do conjuntordquo (p 18)

Essa reflexatildeo eacute corroborada por vaacuterias pesquisas que verificam que a integraccedilatildeo do

saber do trabalhador no processo de trabalho natildeo eliminou a existecircncia de uma gerecircncia que

centraliza e controla os objetivos da empresa Assis (2000) por exemplo verificou em sua

dissertaccedilatildeo que o trabalho dos operadores da aciaria em uma sideruacutergica mineira que optou

pelo padratildeo integrado e flexiacutevel eacute marcado por procedimentos prescritos pela gerecircncia A

chance de os operadores burlarem esses procedimentos eacute travada por um sistema de comuni-

caccedilatildeo informatizado que soacute admite o uso de alternativas quando se faz uma justificativa re-

gistrada junto agrave gerecircncia Esse processo eacute percebido pelos proacuteprios operadores como cita As-

sis (2000) ldquoSe vocecirc mudar alguma coisa tem que explicar na telardquo (p 46) Dessa forma o

trabalho da gerecircncia pode ficar facilitado com o acesso a um maior nuacutemero de informaccedilotildees

De acordo com Assis (2000)

() as gerecircncias tecircm hoje um volume de informaccedilotildees sobre o que ocorre muito maior que antes jaacute que no caso dos operadores suas intervenccedilotildees satildeo registradas eletronicamente ou seja grande parte do que afeta o processo eacute introduzido no sis-tema informatizado passando muito pouca coisa despercebida (p 46)

42

Uma outra observaccedilatildeo feita por Assis (2000) indica que ao mesmo tempo em que a

empresa aperfeiccediloa seus mecanismos de controle e de prescriccedilatildeo contraditoriamente ela con-

voca o saber dos trabalhadores e depende da integraccedilatildeo para que funcione o seu sistema de

controle e prescriccedilatildeo Nas palavras de Assis (2000)

O que pode parecer paradoxal eacute que quanto mais a organizaccedilatildeo exige um acompa-nhamento das prescriccedilotildees por parte dos operadores mais ela busca neles autonomia e flexibilidade para que possam dar soluccedilotildees criativas frente agraves mudanccedilas lidar com as variabilidades do processo superar a falta de confiabilidade de algumas in-formaccedilotildees e as falhas dos sistemas automatizados que natildeo param de se complexi-ficar e insistem em natildeo funcionar exatamente como desejam os manuais e os enge-nheiros (p 41)

Ainda sobre a possibilidade de existir dentro do padratildeo flexiacutevel e integrado uma pers-

pectiva de hierarquia que separa a execuccedilatildeo da concepccedilatildeo no processo de trabalho Evangelis-

ta (2002) afirma que

Os trabalhadores natildeo teriam qualquer possibilidade de decidir sobre os cursos a se-rem oferecidos pela empresa e consequumlentemente sobre os conteuacutedos que com-preendem esses cursos Estes tecircm sido definidos pelo Desenvolvimento Organiza-cional ndash DO ndash setor que junto com o de treinamento e outros determina as neces-sidades e os alvos das atividades de formaccedilatildeo (p 86)

Dentre os autores que discutem a implantaccedilatildeo do padratildeo flexiacutevel e integrado alguns

chegam a projetar uma certa vantagem deste modelo de organizaccedilatildeo do trabalho para os traba-

lhadores Coriat (1994) por exemplo vai vislumbrar a possibilidade de haver uma intelectua-

lizaccedilatildeo do trabalhador em funccedilatildeo de o padratildeo flexiacutevel valorizar um saber amplo e versaacutetil

Arauacutejo (2002) cuja dissertaccedilatildeo aborda a reestruturaccedilatildeo produtiva em duas induacutestrias sideruacuter-

gicas mineiras no contexto da privatizaccedilatildeo salienta que ldquoA privatizaccedilatildeo gerou uma transiccedilatildeo

do autoritarismo para um estilo gerencial menos autoritaacuteriordquo (p 113) A autora tambeacutem en-

tende que ldquoO novo perfil do trabalhador abrange uma aacuterea muito maior bem como o relacio-

43

namento interpessoal e a comunicaccedilatildeo aliados ao conhecimento e agrave habilidade teacutecnicardquo (p

114)

Embora o trabalho no padratildeo flexiacutevel e integrado possa conservar praacuteticas tayloristas

as pesquisas natildeo hesitam em indicar que de fato vem ocorrendo uma nova interaccedilatildeo do ho-

mem com o processo de trabalho e que a implantaccedilatildeo das novas tecnologias estimulou o de-

sencadeamento de novos saberes que Assis (2000) classificou como saberes complexos dada

a combinaccedilatildeo de domiacutenio do processo produtivo com o uso da linguagem informatizada

Se as pesquisas confirmam a importacircncia da presenccedila de saberes dos trabalhadores no

trabalho surgem tambeacutem algumas indagaccedilotildees a convocaccedilatildeo destes saberes por parte do ca-

pital seria suficiente para mobilizar os trabalhadores a produzi-los E neste caso como isto

se daria E ainda quais saberes dos trabalhadores interessam ao capital

23 O SABER TAacuteCITO DO TRABALHADOR

A expressatildeo saber taacutecito tem sido muito usada quando se discute a presenccedila do saber

do trabalhador no processo de trabalho De acordo com o dicionaacuterio Ferreira (1986) o saber

eacute ldquo[Do latim sapere ter gosto] Ter conhecimento ciecircncia informaccedilatildeo ou notiacutecia () ter

conhecimento teacutecnicos e especiais relativos a ou proacuteprios para () Estar convencido de ter a

certeza de () Ter capacidade () julgar considerar () experiecircncia praacuteticardquo (p 1530) Nes-

te mesmo dicionaacuterio () a definiccedilatildeo de taacutecito eacute ldquo[Do latim Tacitu] silencioso calado () Em

que natildeo haacute rumor () que natildeo se exprime por palavras subentendido impliacutecito () Oculto

secretordquo

No dicionaacuterio da educaccedilatildeo profissional (2000) saber eacute apresentado com as seguintes

definiccedilotildees ldquo1 ndash o ato de saber ou o processo atraveacutes do qual um sujeito aprende 2 ndash o fato

44

ou a situaccedilatildeo daquele que aprendeu algo 3 ndash o produto da aprendizagem do sujeito ou obje-

tos culturais institucionais sociaisrdquo (p 294) Ainda neste dicionaacuterio o saber taacutecito eacute apresen-

tado como sinocircnimo de conhecimento taacutecito (2000) e assim eacute definido ldquo() eacute o conhecimen-

to que a pessoa tem mas do qual natildeo estaacute ciente de modo consciente Eacute resultante da experi-

ecircncia da histoacuteria individual ou coletiva dos indiviacuteduosrdquo (p 298)

O saber taacutecito pode ainda aparecer com o nome de savoir-faire Essa expressatildeo eacute a-

presentada no dicionaacuterio de formaccedilatildeo profissional como ldquo() o produto de uma aprendiza-

gem do trabalhador e sua disposiccedilatildeo para mobilizar os seus saberes no trabalho sempre que

necessaacuterio Compreende os saberes praacuteticos empiacutericos as manhas do ofiacutecio o golpe de vis-

tardquo

Em relaccedilatildeo agrave presenccedila de saberes no processo produtivo Santos (1997) Aranha

(1997) e Antunes (2001) entendem que o saber do trabalhador sempre esteve presente no pro-

cesso de trabalho mesmo em um modelo de gestatildeo extremamente marcado pela divisatildeo teacutec-

nica do trabalho como foi o taylorismo Dentre eles o chamado saber taacutecito eacute o que veremos

a seguir Aranha (1997) afirma que ldquoEste conhecimento taacutecito muitas vezes reprimido pela

gerecircncia nunca deixou de ser continuamente produzido e demonstra que apesar de seus es-

forccedilos o capital ficou longe de conseguir separaccedilatildeo completa (ou mesmo parcial) entre matildeo e

ceacuterebrordquo (p 21)

Do ponto de vista teoacuterico essa questatildeo natildeo eacute nova O divoacutercio entre o trabalho intelec-

tual e o trabalho manual jaacute tinha sido contestado por Gramsci de acordo com Kuenzer (1985)

ldquoNatildeo podemos separar o homo faber do homo sapiensrdquo (p 185)

As pesquisas evidenciam a natildeo-separaccedilatildeo entre trabalho intelectual e trabalho manual

ao demonstrarem o avanccedilo do capital sobre o saber do trabalhador mesmo nos processos pro-

dutivos mais automatizados Essa situaccedilatildeo foi analisada da seguinte forma por Machado

(1999)

45

Portanto se todo o aparato estampado na automatizaccedilatildeo e informatizaccedilatildeo da planta de produccedilatildeo aludem agrave possibilidade de prescindir do sujeito-trabalhador as situa-ccedilotildees inesperadas convocam os sujeitos a se pronunciar a arbitrar sobre o imprevi-siacutevel Afinal de contas soacute o que eacute previsiacutevel eacute passiacutevel de ser automatizado e con-trolado pela rotina (p 138)

Um ponto de partida mais consistente sobre a inserccedilatildeo do saber taacutecito no processo de

trabalho encontra-se em um pressuposto oriundo da ergonomia cujo entendimento mostra que

o trabalho prescrito ou seja aquele que foi concebido planejado e calculado pela engenharia

natildeo corresponde a todas as necessidades reais do processo de produccedilatildeo demonstrando a fragi-

lidade da ideacuteia que sustenta a total separaccedilatildeo entre execuccedilatildeo e concepccedilatildeo Essa concepccedilatildeo do

processo de trabalho foi assimilada por pesquisadores de vaacuterias aacutereas do conhecimento San-

tos (1997) por exemplo discute a existecircncia de uma ldquodistacircncia entre o trabalho prescrito e o

trabalho realrdquo Como dissemos em nossa introduccedilatildeo de acordo com essa pesquisadora (2000)

trabalho prescrito ldquo() eacute a definiccedilatildeo preacutevia da maneira como o trabalhador deve executar o

trabalho o modo de usar os equipamentos e as ferramentas o tempo concedido para cada

operaccedilatildeo o como fazer e as regras que devem ser respeitadasrdquo (p 344) O trabalho real reme-

te agraves condiccedilotildees necessaacuterias em que se realiza um trabalho que sempre escapa agrave prescriccedilatildeo De

fato essa possibilidade foi verificada concretamente por algumas pesquisas Assis (2000) em

sua dissertaccedilatildeo afirma que ldquoNa nossa pesquisa pudemos perceber a niacutetida distacircncia entre o

trabalho prescrito e o trabalho real o que implica a presenccedila ativa do homem e do seu conhe-

cimento taacutecitordquo (p 42)

As abordagens sobre o saber taacutecito entram em um consenso sobre a sua definiccedilatildeo

quando afirmam que a produccedilatildeo deste saber remete a uma intimidade da vivecircncia do traba-

lhador com o processo de trabalho e que este saber apresenta uma enorme dificuldade em ser

sistematizado Crivellari e Melo apud Assis (2000) entendem e assim o definem

46

Saber taacutecito refere-se agrave capacidade que o trabalhador possui de apreensatildeo e identi-ficaccedilatildeo pela vivecircncia dos estados de normalidade ou anormalidade do processo A aquisiccedilatildeo desse saber se daacute no conviacutevio com a produccedilatildeo havendo uma concepccedilatildeo praacutetica e complexa para ser integralmente apreendida em formalizaccedilotildees (p 18)

Evangelista (2002) trabalha com uma definiccedilatildeo mais ampliada sobre o ldquoconhecimento

taacutecitordquo ao considerar outros espaccedilos aleacutem do trabalho

Esse conhecimento embora proveniente da vivecircncia de trabalho tambeacutem expressa as aquisiccedilotildees obtidas na formaccedilatildeo profissional na escolarizaccedilatildeo formal e na expe-riecircncia de vida do trabalhador Ele conteacutem elaboraccedilotildees individuais e coletivas que por sua vez estatildeo dentro de um quadro de relaccedilotildees e produccedilotildees sociais (p 94)

24 Do saber vinculado agrave praacutetica um ponto de vista sobre o saber taacutecito

() A pertinecircncia de um saber investido numa praacutetica diz ainda B Charlot natildeo es-taacute diretamente ligada ao seu estatuto cientiacutefico Em primeiro lugar um saber pode ser mais pertinente na sua forma ldquocomumrdquo que na sua forma cientiacutefica Assim para nos orientarmos eacute mais pertinente saber que o sol nasce a leste e se potildee a oeste do que saber se a Terra gira em torno do Sol Em segundo lugar natildeo basta que um sa-ber seja cientiacutefico para ser pertinente na praacutetica Eacute preciso ainda que ele se torne instrumento ao serviccedilo visado Natildeo basta conhecer as leis da eletricidade para mon-tar uma aparelhagem eleacutetrica (MALGLAIVE 1990 p 38)7

Se de um lado a literatura que aborda a presenccedila de saberes no processo produtivo

(ARANHA 1997 SANTOS 1997 2000 MACHADO 2000) indica que os trabalhadores

satildeo produtores de saberes por outro lado segundo essa mesma literatura existe um campo

aberto e necessaacuterio agraves pesquisas que possam contribuir para que o estatuto social poliacutetico e

espistemoloacutegico do saber taacutecito do trabalhador supere a sua ldquotimidezrdquo perante os saberes for-

malizados pela ciecircncia Posto ainda que o proacuteprio objeto desta pesquisa remete agrave possibili-

dade de que as atividades de trabalho sejam praacuteticas inteligentes entendemos que eacute importan-

te aprofundar a discussatildeo sobre a validade sobretudo epistemoloacutegica do saber taacutecito Diante

7 Esta obra eacute uma ediccedilatildeo portuguesa

47

dessa questatildeo que para noacutes eacute muito cara recorremos ao diaacutelogo com os pesquisadores que

refletem sobre a relaccedilatildeo entre a praacutetica e a construccedilatildeo de saberes taacutecitos

De um modo geral os pesquisadores (SCHON 2000 POLANY 1967 MALGLAI-

VE 1990) que discutem o saber taacutecito o tomam como um saber vinculado agrave praacutetica ou asso-

ciado a uma determinada experiecircncia em fazer algo Estes pesquisadores ao buscarem desve-

lar o saber taacutecito apontam como chave de seu entendimento a anaacutelise da relaccedilatildeo entre a praacuteti-

ca8 e a produccedilatildeo desse tipo de saber Pode-se dizer ainda que a perspectiva que confere im-

portacircncia ao estudo da relaccedilatildeo entre a praacutetica e a construccedilatildeo do saber taacutecito se apoacuteia no pres-

suposto de que sendo este saber vinculado agrave accedilatildeo humana o saber taacutecito eacute por excelecircncia

uma praacutetica potencialmente inteligente Essa perspectiva eacute apontada por Malglaive (1990) ldquoA

praacutetica eacute tudo o que diz respeito a acccedilatildeo humana isto eacute a transformaccedilatildeo intencional da reali-

dade pelos homens Implica portanto um desiacutegnio um fim o estado do real ao qual se aplica

a acccedilatildeordquo (p 40) Em Polany apud Frade (2003) a praacutetica pode ser percebida quando realiza-

mos alguma atividade ou ainda quando compreendemos algo podendo ser por meio de ldquoex-

periecircncias diretas ou sensoriais e com uso de conhecimentosrdquo (p 13)

Antes de avanccedilarmos na discussatildeo da relaccedilatildeo entre a praacutetica e o saber taacutecito vejamos

as diversas denominaccedilotildees sobre saberes vinculados agrave praacutetica e que ao nosso ver podem ser

tidos como da ordem do taacutecito Encontramos termos como ldquosaber-fazer ou savoir-fairerdquo ldquosa-

ber taacutecitordquo ldquoconhecimento taacutecitordquo ldquosaber do trabalhadorrdquo ou ldquotalento artiacutesticordquo (FRADE

2003 SCHON 2000 POLANY 1967 MALGLAIVE 1990) Todavia em que pesem algu-

mas especificidades que marcam o uso desses termos por esses pensadores satildeo muitos os

motivos que nos levam a tomar como importante as diferentes reflexotildees sobre o saber taacutecito

8 De acordo com o dicionaacuterio Ferreira (1986) a noccedilatildeo de praacutetica pode se referir as seguintes possibilidades ldquo1 ndash ato ou efeito de praticar 2 ndash uso experiecircncia exerciacutecio 3 ndash rotina 4 ndash saber provindo da experiecircncia teacutecnica 5 ndash aplicaccedilatildeo da teoria ()rdquo (p 1377) Jaacute a teoria eacute apresentada em Ferreira (1986) como ldquo[Do grego theoria] 1 ndash Conhecimento especulativo meramente racional 2 ndash Conjunto de princiacutepios fundamentais duma ciecircncia ou duma arte 4 ndash Opiniotildees sistematizadas () 6 ndash suposiccedilatildeo hipoacutetese ()rdquo (p 1644)

48

no sentido de compreendermos a sua relaccedilatildeo com a praacutetica Dessa forma mostraremos agora

como alguns autores usam a ideacuteia de praacutetica e que termos utilizam para designar o saber taacuteci-

to Malglaive (1990) apresenta como saber-fazer

Eacute mesmo agrave praacutetica que por definiccedilatildeo se refere o saber fazer () Em numerosos casos o saber-fazer designa uma competecircncia global um ofiacutecio ou uma destreza num domiacutenio mais ou menos amplo da praacutetica humana () Os saberes-fazer satildeo portanto para noacutes actos humanos disponiacuteveis em virtude de terem sido apreendidos (seja de que maneira for) e experimentados (p 79)

Outro autor Polany (1967) apresenta os saberes vinculados a uma ideacuteia de praacutetica pe-

lo termo de conhecimento taacutecito9 De acordo com Frade (2003) Polany declara natildeo ser possiacute-

vel tratar o conhecimento humano sem partir do princiacutepio de que sabemos mais do que pode-

mos dizer () Embora esse princiacutepio pareccedila oacutebvio ele espelha um dos principais pilares de

sua concepccedilatildeo de conhecimento o reconhecimento da existecircncia de um tipo de conhecimento

que natildeo pode ser completamente exposto e mais especificamente que natildeo pode ser descrito

em regras ou palavras o conhecimento taacutecito (p 11 grifo nosso) Segundo Polany (1967)

todo conhecimento humano eacute perpassado por uma dimensatildeo taacutecita10 Esta afirmaccedilatildeo eacute susten-

tada na ideacuteia de que todo conhecimento natildeo eacute totalmente explicitaacutevel ou seja todo conheci-

mento guarda uma face obscura portanto uma dimensatildeo taacutecita O debate sobre a explicitaccedilatildeo

ou natildeo de um determinado saber seraacute apresentado mais adiante neste capiacutetulo Uma outra

caracteriacutestica do conhecimento taacutecito em Polany segundo Frade (2003) pode ser dada ainda

pelo fato de se tratar de uma ldquohabilidade pessoal que natildeo pode ser disponibilizada a outros

pois natildeo sabemos explicar exatamente como a operamosrdquo (p 12) Dessa forma como jaacute a-

firmamos o ldquoconhecimento taacutecitordquo em Polany apresenta-se tambeacutem norteado pela ideacuteia de

praacutetica

9 Embora jaacute tenhamos explicado a nossa opccedilatildeo pelo termo saber em detrimento do termo conhecimento eacute mister explicar que em POLANY prevalece o uso do uacuteltimo termo Daiacute que nas diversas vezes em que nos reportamos a este autor aparece o termo conhecimento taacutecito 10 Eacute este inclusive o nome de um livro sobre o tema The tacit dimension (1967)

49

A aproximaccedilatildeo entre o ldquoconhecimento taacutecitordquo e a ideacuteia de praacutetica proposta por Polany

nos permite identificar de acordo com Frade (2003 p 13) um conhecimento praacutetico como

um conhecimento adquirido de experiecircncias diretas ou sensoriais Segundo essa autora ldquopo-

demos identificar um conhecimento praacutetico com um conhecimento taacutecito no sentido que natildeo eacute

faacutecil especificar como adquirimos conhecimento dessas experiecircncias e nem como usamos um

conhecimentordquo (grifo nosso) Ainda de acordo com essa pesquisadora em Polany foi possiacutevel

articular o conhecimento taacutecito com a ideacuteia de praacutetica agrave medida que

Analisando os diversos exemplos apresentados por POLANY (1962 1983 1975) para ilustrar o que consiste um conhecimento dessa natureza constata-se que o co-nhecimento taacutecito estaacute estritamente vinculado a uma praacutetica da seguinte maneira quando realizamos uma tarefa seja fiacutesica ou mental () acionamos um processo de funcionamento das nossas accedilotildees cujo propoacutesito eacute nos auxiliar na concretizaccedilatildeo des-sa tarefa Ao ser acionado tal processo mobiliza um conjunto especiacutefico de conhe-cimentos que possuiacutemos que funcionaram como instrumentos para realizarmos a tarefa bem como para monitorarmos sua realizaccedilatildeo (FRADE 2003 p 12 grifo nosso)

Em Schon (2000) tambeacutem encontramos uma reflexatildeo que aproxima a noccedilatildeo de saber

taacutecito agrave ideacuteia de praacutetica Para compreendermos melhor a aproximaccedilatildeo que esse autor faz entre

um tipo de saber e uma ideacuteia de praacutetica eacute necessaacuterio apresentarmos duas perspectivas o co-

nhecimento profissional e a competecircncia profissional A primeira perspectiva segundo Schon

(2000) normalmente eacute vinculada a saberes teoacutericos e teacutecnicas baseadas em pesquisas a qual

ele chama de ldquoracionalidade teacutecnicardquo e assim eacute definida

A racionalidade teacutecnica eacute uma epistemologia da praacutetica derivada da filosofia posi-tivista construiacuteda nas proacuteprias fundaccedilotildees da universidade moderna A racionalida-de teacutecnica diz que os profissionais satildeo aqueles que solucionam problemas instru-mentais selecionando os meios teacutecnicos mais apropriados para propoacutesitos especiacutefi-cos Profissionais rigorosos solucionam problemas instrumentais claros atraveacutes da aplicaccedilatildeo da teoria e da teacutecnica derivadas de conhecimento sistemaacutetico de prefe-recircncia cientiacutefico (p 15)

50

Entretanto na segunda perspectiva Schon (2000) aponta que sempre haacute uma zona de

incerteza a qual ldquoescapa da racionalidade teacutecnicardquo Eacute a partir das demandas de um espaccedilo

nutrido de incertezas que surge um apelo a um tipo de saber inerente a uma determinada praacute-

tica Tal saber foi nomeado por esse autor como ldquotalento artiacutestico profissionalrdquo Segundo as

palavras de Schon (2000) o termo ldquotalento artiacutestico profissionalrdquo se refere ldquoaos tipos de com-

petecircncia que os profissionais demonstram em certas situaccedilotildees da praacutetica que satildeo uacutenicas incer-

tas e conflituosasrdquo (p 29) Ainda sobre o ldquotalento artiacutestico profissionalrdquo de acordo com esse

autor ldquoO que chega a ser surpreendente sobre esses tipos de competecircncia eacute que eles natildeo de-

pendem de nossa capacidade de descrever o que sabemos fazer ou mesmo considerar consci-

entemente o que nossas accedilotildees revelamrdquo (p 29) Eacute nesta segunda perspectiva qual seja a que

interroga os saberes natildeo disponibilizados pela ldquoracionalidade teacutecnicardquo que encontramos em

Schon (2000) uma interlocuccedilatildeo com o saber taacutecito e a ideacuteia de praacutetica

A relevacircncia que Frade 2003 Schon 2000 Polany 1967 e Malglaive 1990 atribuem

ao imbricamento do saber taacutecito com a ideacuteia de praacutetica suscitou algumas indagaccedilotildees sobre

este tipo de saber quais as possibilidades de este saber ser comunicado E ainda o saber

taacutecito quando eacute acionado prescinde da mobilizaccedilatildeo de outros saberes Estas indagaccedilotildees antes

mesmo de serem respondidas acabam por nos fornecer algumas trilhas para que possamos

aprofundar a discussatildeo sobre a explicitaccedilatildeo ou natildeo deste tipo de saber bem como as suas

possibilidades de conter uma racionalidade ainda que natildeo cientiacutefica Eacute o que buscaremos fa-

zer no desenrolar desta parte em diante Neste sentido apresentamos uma discussatildeo sobre o

saber taacutecito dividida em trecircs perspectivas

Na primeira perspectiva procuramos analisar alguns aspectos da relaccedilatildeo do saber taacuteci-

to com a ideacuteia de praacutetica a partir de uma discussatildeo com alguns autores (FRADE 2003 S-

CHON 2000 POLANY 1967 MALGLAIVE 1990) na qual o saber taacutecito eacute caracterizado

por duas dimensotildees Em uma delas eacute apresentado um saber de uso instrumental ou seja um

51

saber que eacute disponibilizado para a realizaccedilatildeo de uma atividade orientando-se pelo seu resulta-

do final (FRADE 2003 POLANY 1967) Jaacute na outra o saber taacutecito se inscreve em um pro-

cesso de construccedilatildeo de saberes De acordo com Frade 2003 Schon 2000 Polany 1967

Malglaive 1990 este tipo de saber pode ainda ser acionado para monitorar e compreender a

realizaccedilatildeo de uma determinada atividade A partir da possibilidade de uso do saber taacutecito para

monitorar e compreender a realizaccedilatildeo de uma atividade debatemos ainda se esse tipo de sa-

ber possui algum niacutevel de formalizaccedilatildeo

Na segunda perspectiva discute-se a possibilidade de comunicaccedilatildeo do saber taacutecito a-

traveacutes da relaccedilatildeo entre este tipo de saber e uma linguagem que possa expressaacute-lo A partir

desta discussatildeo satildeo engendrados vaacuterios desdobramentos da explicitaccedilatildeo ou natildeo do saber taacuteci-

to Neste sentido satildeo analisadas as possibilidades de uma ou mais pessoas acessarem o saber

taacutecito de uma outra pessoa por meio da comunicaccedilatildeo as contradiccedilotildees entre uma linguagem

que busca expressar um saber taacutecito e uma outra linguagem que expressa um saber teoacuterico de

preferecircncia formalizado pelos padrotildees da ciecircncia Eacute abordada ainda a relaccedilatildeo do saber taacutecito

e uma linguagem que possa expressaacute-lo dentro de um recorte nas atividades e situaccedilotildees de

trabalho

Jaacute na terceira perspectiva a partir da anaacutelise da relaccedilatildeo entre o corpo e a mente satildeo

discutidas as possibilidades de produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo do saber taacutecito A abor-

dagem da relaccedilatildeo entre o corpo e a mente se apresenta com especial importacircncia por ser um

desdobramento das perspectivas apresentadas anteriormente na medida em que o corpo pode

ser considerado o meio pelo qual se realiza uma atividade fiacutesica ou mesmo mental Eacute analisa-

da tambeacutem a possibilidade de haver a mobilizaccedilatildeo de um ldquosaber usar o corpordquo A discussatildeo

sobre o corpo objetiva cumprir ainda um outro papel natildeo menos importante de buscar com-

preender os sujeitos de nossa pesquisa em sua complexidade ao incluir tambeacutem os aspectos

corporais na anaacutelise da produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes taacutecitos

52

Por fim a partir de uma anaacutelise dessas trecircs perspectivas articuladas com alguns ele-

mentos do mundo do trabalho buscaremos esclarecer uma hipoacutetese que norteia essa pesquisa

qual seja que os ferramenteiros produzem saberes taacutecitos e que para usarem os seus saberes

taacutecitos mobilizam mediante estrateacutegias tambeacutem taacutecitas saberes de vaacuterias ordens e ainda os

ferramenteiros criam estrateacutegias tambeacutem taacutecitas para formalizar os saberes taacutecitos que eles

produzem e mobilizam

241 Saber taacutecito entre um uso instrumental e a construccedilatildeo de saberes

Para alguns pesquisadores as reflexotildees sobre o saber taacutecito tecircm o seu ponto de partida

na tese de que este saber eacute caracterizado dentre outras coisas como um saber de uso instru-

mental (FRADE 2003 POLANY 1967) Segundo o dicionaacuterio Ferreira (1986) o termo ins-

trumental eacute uma derivaccedilatildeo da palavra instrumento cujo significado pode ser ldquo[Do Latim

Instrumentu] 1 ndash () 2 ndash Qualquer objeto considerado em sua funccedilatildeo ou utilidade 3 ndash Recur-

so empregado para alcanccedilar um objetivo conseguir um resultadordquo (p 1119) De acordo

com Santos (2003) a ldquofinalidade instrumental pode ser entendida como na seguinte proposi-

ccedilatildeo dado um fim ndash formaccedilatildeo de matildeo-de-obra para responder agraves necessidades do projeto de

desenvolvimento em curso ndash ponderam-se os meios de obtecirc-lo dado um conjunto de meios

ponderam-se os fins que podem ser alcanccediladosrdquo (p 37)11

De acordo com Frade (2003) o saber taacutecito em Polany tambeacutem caracteriza-se pelo

seu uso instrumental

De fato segundo Polany tais conhecimentos satildeo taacutecitos na medida em que satildeo u-sados de maneira instrumental e natildeo explicitamente como objetos Nesse sentido enquanto estatildeo sendo mobilizados eles natildeo satildeo percebidos em si mesmos mas sim em termos daquilo que eles contribuem para a realizaccedilatildeo da tarefa (p 12)

11 SANTOS (2003) associa a recente primazia dada a perspectiva instrumental do saber do trabalhador agrave emer-gecircncia do discurso da competecircncia em detrimento do tema do saber do trabalhador no trabalho (p 37)

53

Para Frade (2003) a faceta instrumental do saber taacutecito pode ser dada por uma forte

tendecircncia que noacutes temos em focalizar o saber taacutecito no resultado final de uma atividade ou na

conquista de uma determinada compreensatildeo logo estes objetivos iniciais satildeo o ldquoobjeto foco

de nossa atenccedilatildeordquo Dessa forma um conhecimento taacutecito natildeo eacute percebido em si mesmo na

medida em que noacutes o usamos apenas de maneira instrumental auxiliar ou seja noacutes mobili-

zamos o saber taacutecito prioritariamente para atingir uma determinada finalidade Portanto o

saber taacutecito que foi mobilizado natildeo eacute o foco principal de nossa atenccedilatildeo porque eacute usado como

um meio um instrumento de realizaccedilatildeo de uma finalidade que pretendemos atingir

Frade (2003) e Polany (1967) desdobram a tese de uso instrumental do saber taacutecito em

uma outra explicaccedilatildeo De acordo com esses pesquisadores a proacutepria estrutura do ato de co-

nhecer do saber taacutecito favorece para que este saber se caracterize por uma forma instrumental

Isso ocorre da seguinte maneira quando um saber taacutecito eacute mobilizado para que possamos rea-

lizar uma atividade significa que noacutes sabemos porque mobilizamos tal ou tais saberes Daiacute

que segundo Polany (1967) este saber eacute tido como um saber ldquoproacuteximo de noacutesrdquo pelo simples

fato de que sabemos da sua existecircncia ou porque ldquoconfiamos na ciecircncia que temos dele para

dirigirmos nossa atenccedilatildeo a uma determinada realizaccedilatildeordquo (p 10) ou ainda como afirma Frade

(2003) porque somos cientes da sua existecircncia (p 15) Por outro lado o saber taacutecito que eacute

mobilizado para conquistar uma compreensatildeo sobre a realizaccedilatildeo de uma determinada ativida-

de coloca-se ldquolonge de noacutesrdquo (POLANY 1967) pois nem sempre temos total consciecircncia so-

bre quais fatores compotildeem o saber taacutecito que usamos na realizaccedilatildeo de uma determinada ativi-

dade

A grande contradiccedilatildeo segundo esses pesquisadores eacute que o saber taacutecito que foi mobi-

lizado natildeo eacute percebido em si mesmo e noacutes soacute conseguiremos percebecirc-lo se o projetarmos no

resultado de uma determinada atividade ou na conquista de uma compreensatildeo Portanto os

54

significados deste saber taacutecito passam a se estabelecer ldquolonge de noacutesrdquo (POLANY apud FRA-

DE 2003) Dessa forma mesmo possuindo consciecircncia de um saber taacutecito para compreendecirc-

lo noacutes temos que projetaacute-lo sobre algo de que natildeo temos ainda uma total consciecircncia e que

por isso eacute algo ldquolonge de noacutesrdquo algo estranho agrave nossa consciecircncia A partir dessa trilha deixada

por Polany (1967) poderiacuteamos usar de forma hipoteacutetica a seguinte ilustraccedilatildeo para enxer-

garmos um desniacutevel em uma peccedila poderiacuteamos usar um saber taacutecito que consiste em molhar

esta peccedila com um determinado oacuteleo e por meio do reflexo da luz na peccedila com oacuteleo poderiacutea-

mos identificar as partes danificadas Se tomarmos como referecircncia as reflexotildees de Polany

(1967) a nossa total compreensatildeo do uso do oacuteleo demandaria tambeacutem uma compreensatildeo de

como se integram o oacuteleo a chapa de accedilo e a incidecircncia da luz e outros aspectos que poderiam

influenciar a nossa visatildeo daiacute que neste caso a nossa compreensatildeo depende de algo que estaacute

fora do nosso domiacutenio e por isso Polany (1967) os define como ldquolonge de noacutesrdquo Estabelece-

se assim uma contradiccedilatildeo na qual um determinado saber taacutecito que em tese estaria ldquoproacutexi-

mo de noacutesrdquo soacute eacute percebido se for projetado em um saber ldquolonge de noacutesrdquo

De acordo com Frade (2003) eacute possiacutevel que o saber taacutecito ainda que na sua forma ins-

trumental se constitua foco de nossa atenccedilatildeo tornando-se portanto um saber passiacutevel de ser

compreendido Entretanto essa autora afirma que se de um lado existe a possibilidade de

focar o saber taacutecito durante a realizaccedilatildeo de uma atividade por outro lado ao concentrar a ob-

servaccedilatildeo nas etapas de realizaccedilatildeo da atividade e natildeo no seu resultado final corre-se o risco de

perder a noccedilatildeo do objetivo de tal atividade Segundo Frade (2003) em uma situaccedilatildeo igual a

essa ldquonossa performance tende a ser paralisada de uma maneira ou de outra porque os ins-

trumentos natildeo satildeo reconhecidos por noacutes como instrumentosrdquo ou seja o objetivo pelo qual

haviacuteamos inicialmente mobilizado o nosso saber taacutecito ainda que em sua forma instrumen-

tal deixa de ser realizado ou o eacute precariamente Isso ocorre porque ao redirecionarmos nosso

55

foco em direccedilatildeo ao saber taacutecito ldquoinstrumentalrdquo acabamos por privilegiar a nossa atenccedilatildeo no

saber taacutecito em si em detrimento daquilo que eacute da atividade que queremos realizar

A anaacutelise sobre o uso instrumental do saber constitui-se nesta pesquisa em uma parte

essencial uma vez que por meio desse debate foi possiacutevel tomar o saber taacutecito como produto

bem como processo de produccedilatildeo de saber (FRADE 2003) Ao considerarmos a chance apon-

tada por Frade (2003) e Polany (1967) de que eacute possiacutevel mobilizar saberes para diminuir o

estranhamento da forma instrumental do saber taacutecito ainda que haja um prejuiacutezo em relaccedilatildeo agrave

realizaccedilatildeo do objetivo inicial acabamos por entender que uma coisa eacute debater o saber taacutecito

enquanto produto ou realizaccedilatildeo de uma atividade e outra coisa eacute abordar o processo que

construiu o saber necessaacuterio agrave realizaccedilatildeo dessa atividade Neste sentido se um saber taacutecito

ainda que instrumental pode requerer uma quantidade de reflexatildeo para ser acionado poderia

este saber ser um componente de um processo de construccedilatildeo de outros saberes taacutecitos

De acordo com Frade (2003) ao usar a palavra ldquoconhecimentordquo ldquoPolany se refere tan-

to ao produto ou realizaccedilatildeo de uma aprendizagem quanto ao processo dinacircmico de um ato de

conhecerrdquo Em Polany (1967) a possibilidade de o saber taacutecito se inscrever em um processo

de construccedilatildeo de saberes aparece associada agrave necessidade de que o uso de um determinado

saber taacutecito seja monitorado por outros saberes taacutecitos Para esse autor o uso de um saber

taacutecito para realizar uma atividade seja fiacutesica ou mental mobiliza um conjunto especiacutefico de

conhecimentos como instrumentos para realizarmos a tarefa ldquobem como para monitorarmos a

sua realizaccedilatildeordquo (FRADE 2003 p 12) Neste sentido podemos inferir que quanto maior for a

possibilidade de o saber taacutecito se inscrever em um processo de construccedilatildeo de saberes maiores

satildeo as chances de um saber taacutecito monitorar a realizaccedilatildeo de uma determinada atividade Daiacute

indagamos pode haver um saber taacutecito que monitore a realizaccedilatildeo de atividades Se o saber

taacutecito eacute resultado da mobilizaccedilatildeo de outros saberes quais seriam eles

56

Apesar de tanto Schon (2000) quanto Polany (1967) tomarem o saber taacutecito por um

olhar proacuteximo agrave perspectiva instrumental esses dois autores nos ajudam a pensar a possibili-

dade de que possa haver um saber taacutecito que monitore a realizaccedilatildeo de uma atividade De a-

cordo com Polany apud Frade (2003) mesmo de forma instrumental o uso do saber taacutecito

natildeo pode ser garantido pelo uso de accedilotildees repetidas De acordo com Frade (2003) ldquoPolany

observa que a passagem de uma experiecircncia para o plano operacional isto eacute para o uso de um

conhecimento enquanto instrumento natildeo se daacute por meio de meras repeticcedilotildeesrdquo (p 23 grifo

nosso) Esse entendimento nos sugere que o uso do saber de forma sucessiva demanda alguma

reflexatildeo Em Schon (2003) a possibilidade de o saber taacutecito se situar para aleacutem do uso ins-

trumental se apresenta agrave medida que este autor relativiza a tese de que temos uma tendecircncia

em focalizar o saber taacutecito no resultado final de uma atividade As reflexotildees deste autor apon-

tam que se toda atividade guarda sempre um lado imprevisiacutevel portanto natildeo eacute possiacutevel em

face dessa imprevisibilidade garantir que simplesmente repetindo um determinado saber taacuteci-

to possa se realizar com sucesso uma segunda ou terceira atividade De acordo com Schon

(2000)

Quando aprendemos a fazer algo estamos aptos a executar sequumlecircncias faacuteceis de a-tividade reconhecimento decisatildeo e ajuste sem ter como se diz que pensar a res-peito () No entanto nem sempre eacute bem assim Uma rotina comum produz um re-sultado inesperado um erro teima em resistir agrave correccedilatildeo () Todas essas experiecircn-cias agradaacuteveis e desagradaacuteveis conteacutem um elemento de surpresa (p 32)

Entretanto a abordagem de Schon (2000) ao associar o elemento da imprevisibilidade

agrave relevacircncia do ldquotalento artiacutesticordquo nos permitiu desdobrar o debate sobre o saber taacutecito Neste

sentido se o imprevisto eacute um problema real em qualquer atividade poderiacuteamos dizer que o

uso de um saber taacutecito para realizar uma atividade depende de uma constante reflexatildeo E nes-

te caso essa reflexatildeo pode ser associada ao saber taacutecito em um processo de construccedilatildeo de

saberes Essas indagaccedilotildees satildeo enriquecidas e em parte respondidas pela tese de ldquoreflexatildeo-

57

na-accedilatildeordquo desenvolvida por Schon (2000) Segundo esse pensador a reflexatildeo-na-accedilatildeo pode ser

apresentada ldquoem duas formasrdquo A primeira ldquopodemos refletir sobre a accedilatildeo pensando retros-

pectivamente sobre o que fizemos de modo a descobrir como nosso ato de conhecer-na-accedilatildeo

pode ter contribuiacutedo para um resultado inesperadordquo (p 32)

Em uma segunda alternativa Schon (2000) afirma que sem uma interrupccedilatildeo podemos

refletir no meio da accedilatildeo

Em um presente-da-accedilatildeo um periacuteodo de tempo variaacutevel com o contexto durante o qual ainda se pode interferir na situaccedilatildeo em desenvolvimento nosso pensar serve para dar nova forma ao que estamos fazendo enquanto ainda o fazemos Eu diria em casos como este que refletimos-na-accedilatildeo (p 32)

De acordo com Schon (2000) a reflexatildeo-na-accedilatildeo ldquoeacute uma parte fundamental do proces-

so que este autor chama de conhecer-na-accedilatildeordquo De acordo com Schon (2000) ldquoconhecer-na-

accedilatildeordquo refere-se aos

tipos de conhecimento que revelamos em nossas accedilotildees inteligentes performances fiacutesicas publicamente observaacuteveis como andar de bicicleta ou operaccedilotildees privadas como anaacutelise instantacircnea de uma folha de balanccedilo Nos dois casos o ato de conhe-cer estaacute na accedilatildeo Noacutes o revelamos pela nossa execuccedilatildeo capacitada e espontacircnea da performance e eacute uma caracteriacutestica nossa sermos incapazes de tornaacute-la verbalmen-te expliacutecita (p 31)

A reflexatildeo-na-accedilatildeo se diferencia dos outros tipos de reflexotildees pela sua ldquoimediata sig-

nificaccedilatildeo para a accedilatildeordquo o que nem sempre eacute claro e perceptiacutevel conforme afirma esse pensa-

dor ldquoAssim como o conhecer-na-accedilatildeo a reflexatildeo-na-accedilatildeo eacute um processo que podemos de-

senvolver sem que precisemos dizer o que estamos fazendordquo mesmo porque para Schon

(2000) o fato de ldquo() sermos capazes de refletir-na-accedilatildeo eacute diferente de sermos capazes de

refletir sobre nossa reflexatildeo-na-accedilatildeo de modo a produzir uma boa descriccedilatildeo verbal dela E eacute

ainda diferente de sermos capazes de refletir sobre a descriccedilatildeo resultanterdquo (p 35)

58

Se os elementos trabalhados ateacute o momento nos permitem associar a possibilidade de

haver um saber taacutecito que monitore a realizaccedilatildeo de uma atividade como um processo de cons-

truccedilatildeo de saberes por outro lado a possibilidade de haver um saber taacutecito inscrito num pro-

cesso de construccedilatildeo de saberes pode guardar ainda uma relaccedilatildeo com as exigecircncias de comu-

nicaccedilatildeo deste saber Segundo Frade (2003) ldquoa comunicaccedilatildeo de um saber taacutecito entre duas ou

mais pessoas exige que essas pessoas acionem os seus saberes taacutecitosrdquo Entretanto a comuni-

caccedilatildeo ou natildeo de um saber taacutecito eacute uma discussatildeo necessariamente mais extensa Neste senti-

do desenvolveremos a seguir a relaccedilatildeo entre o saber taacutecito e uma linguagem que possa ex-

pressaacute-lo

242 O saber taacutecito e a linguagem

No que se refere agrave comunicaccedilatildeo do saber taacutecito a literatura apresenta como debate

principal o problema em torno da relaccedilatildeo entre o saber taacutecito e uma linguagem que possa ex-

pressaacute-lo (FRADE 2003 SCHON 2000 POLANY 1967 MALGLAIVE 1990) De acordo

com Frade (2000 p 1) Polany valoriza a questatildeo da linguagem no debate sobre o saber taacutecito

a partir da ideacuteia de que ldquosabemos mais do que podemos dizerrdquo (Polany 1967) Outros pensa-

dores tambeacutem reafirmam a insuficiecircncia da linguagem na traduccedilatildeo de um determinado saber

Segundo Lima ldquosabemos mais do que podemos dizer sobre o que sabemos como sabemos e

o que sabemosrdquo (COLLINS apud LIMA 1998 p 144) O problema da insuficiecircncia da lin-

guagem potencializa-se de acordo com Polany (1967) porque todo conhecimento guarda

uma parte que natildeo pode ser totalmente exposta logo todo conhecimento eacute construiacutedo a partir

do taacutecito Daiacute que em Polany apud Frade (2003) o saber taacutecito pode ser aprendido mas natildeo

pode ser ensinado de uma forma simples uma vez que a relaccedilatildeo de aprendizagem exige co-

nhecimentos subsidiaacuterios que tambeacutem satildeo taacutecitos

59

Muito embora Schon (2000) corrobore a tese da insuficiecircncia da linguagem em expli-

citar um determinado saber taacutecito esse autor afirma que ldquoeacute possiacutevel agraves vezes atraveacutes da ob-

servaccedilatildeo e da reflexatildeo sobre nossas accedilotildees fazermos uma descriccedilatildeo do saber taacutecito que estaacute

impliacutecito nelasrdquo Dentre as vaacuterias abordagens sobre os limites da linguagem na explicitaccedilatildeo

do saber taacutecito (FRADE 2003 SCHON 2000 POLANY 1967 MALGLAIVE 1990) en-

contramos em Schon (2000) uma discussatildeo que nos parece ser interessante apresentar As

reflexotildees desse autor desenvolvem-se a partir da ideacuteia de que ldquoo pensar o que estou fazendo

natildeo implica ao mesmo tempo pensar o que fazer e fazecirc-lo Quando faccedilo algo de forma inteli-

gente () estou fazendo uma coisa e natildeo duasrdquo (RYLE apud SCHON 2000 p 29) Segundo

a perspectiva desse autor saberes do tipo do saber taacutecito estabelecem em seu proacuteprio processo

de conhecer uma dificuldade de explicitaccedilatildeo uma vez que esses tipos de saberes satildeo construiacute-

dos normalmente na praacutetica mediante um processo de ldquoconhecer-na-accedilatildeordquo De acordo com

esse pensador o processo de ldquoconhecer-na-accedilatildeordquo por ser da ordem da praacutetica eacute inexoravel-

mente ldquoum processo dinacircmicordquo o que poderia criar pelo menos uma distorccedilatildeo na explicita-

ccedilatildeo de um saber taacutecito jaacute que de acordo com Schon (2000) ldquoo processo de conhecer na accedilatildeo

eacute dinacircmico e os lsquofatosrsquo os lsquoprocedimentosrsquo e as lsquoteoriasrsquo satildeo estaacuteticosrdquo (p 31)

Sznelwar e Mascia (1997) tambeacutem levantam a possibilidade de haver uma relaccedilatildeo as-

siacutencrona entre uma linguagem que busca explicitar perspectivas teoacutericas e outra linguagem

que em tese explicitaria uma situaccedilatildeo praacutetica Essa distinccedilatildeo sobre a natureza da linguagem

engendraria uma incompatibilidade que eacute apontada por esses autores como um ldquodeacuteficit semi-

oacuteticordquo que eles esclarecem ao afirmar que

O leacutexico usado para descrever o trabalho estaacute fortemente dominado pelas produ-ccedilotildees linguumliacutesticas e conceituais formuladas por engenheiros peritos projetistas saacute-bios e pesquisadores O que eacute dito sobre o trabalho natildeo tem a ver com o vivenciado por quem trabalha Existe um deacuteficit semioacutetico para descrever a experiecircncia de tra-balho dos trabalhadores de base (p 224)

60

A possibilidade de haver um descompasso entre uma linguagem que busca explicitar

uma teoria e outra linguagem que busca explicitar uma situaccedilatildeo praacutetica talvez possa ser e-

xemplificada em algumas relaccedilotildees entre o homem e a informaacutetica

A informaacutetica tomou empreacutestimo de toda uma seacuterie de palavras que designam ati-vidades do homem como memoacuteria linguagem inteligecircncia para nomear ativida-des informatizadas Esta confusatildeo eacute particularmente perigosa porque quando re-tornam ao homem eles pensam que o homem tem o mesmo modo de funcionamen-to do computador nas atividades designadas por palavras que se referem ao ho-mem (LIMA 1998 p 124)

Seria possiacutevel inferir que parte da dificuldade de explicitar o saber taacutecito deve-se agrave in-

compatibilidade de sintonia entre uma linguagem que busca traduzir um processo vinculado agrave

praacutetica caracterizado como dinacircmico e uma outra linguagem que traduz conceitos e teorias

portanto de natureza essencialmente estaacutetica Por outro lado ao apontarmos um descompasso

entre uma linguagem vinculada agrave teoria e uma linguagem vinculada agrave praacutetica natildeo estariacuteamos

restringindo o saber teoacuterico agrave reflexatildeo e o saber taacutecito ao ldquopraacuteticofiacutesicordquo E neste caso esta-

riacuteamos reproduzindo a perspectiva que hierarquiza os saberes formalizados pelo estatuto cien-

tiacutefico em detrimento dos saberes formalizados pela experiecircncia Neste sentido ao ser coloca-

do como uma questatildeo complexa o debate sobre as possibilidades de explicitaccedilatildeo ou natildeo do

saber taacutecito mais do apontar as contradiccedilotildees entre uma linguagem que busca expressar um

saber taacutecito e uma linguagem teoacuterica nos permite tambeacutem abordar em que medida estes ti-

pos de saberes podem demandar e articular niacuteveis de reflexatildeo e abstraccedilatildeo

Se uma das questotildees que norteiam o debate sobre a relaccedilatildeo entre o saber taacutecito e a lin-

guagem eacute a possibilidade ou natildeo de este saber ser comunicado eacute portanto importante abor-

dar alguns aspectos das relaccedilotildees sociais em que o saber taacutecito se insere Muitos pensadores

apontam as relaccedilotildees sociais como um espaccedilo privilegiado na construccedilatildeo de saberes De acor-

do com Malglaive (1990) ldquoNuma imensa maioria de casos a actividade humana natildeo eacute solitaacute-

ria mas colectiva eacute uma lsquoco-acccedilatildeorsquo que implica parceiros e portanto uma organizaccedilatildeo uma

61

distribuiccedilatildeo das operaccedilotildees exercidas em comum para atingir o mesmo fimrdquo (p 76) Malglaive

(1990) faz a consideraccedilatildeo de que ldquoa teoria ignora certas caracteriacutesticas da accedilatildeordquo e por este

motivo ldquo() natildeo eacute possiacutevel conhecer um conceito sem conhecer o conjunto das relaccedilotildees nas

quais ele se insere e que por isso mesmo o definem ()rdquo (p 44) Neste sentido ao se consi-

derar as dimensotildees coletivas do processo de construccedilatildeo de saberes a linguagem aparece como

aspecto preponderante

Se por um lado ficou evidenciado na literatura abordada que satildeo muitas as tramas en-

gendradas pela relaccedilatildeo entre a linguagem e o saber taacutecito jaacute em nosso entendimento satildeo mui-

tos os argumentos que nos permitem tomar como importantes os caminhos apontados pelas

reflexotildees oriundas do campo de conhecimento que articula ldquotrabalho e linguagemrdquo (FAITA e

SOUZA-E-SILVA 2002 NOUROUDINE 2002)

Sobre a fecundidade da relaccedilatildeo entre linguagem e trabalho Faita e Souza-e-Silva

(2002) afirmam que ldquoDiversos fatores podem explicar a emergecircncia de tal interesse o mais

importante deles encontra-se no peso e na importacircncia que as atividades de simbolizaccedilatildeo pas-

saram a ter na realizaccedilatildeo do trabalhordquo (p 7) Ainda que o interesse dos linguumlistas pelo traba-

lho como objeto de estudo seja um fenocircmeno recente a literatura sobre essa temaacutetica jaacute acu-

mula importantes reflexotildees para apontar a diversidade de enfoques e de campos de interven-

ccedilatildeo caracteriacutesticos da aacuterea Dentre as vaacuterias possibilidades de contribuiccedilatildeo para esta pesquisa

uma foi acolhida com maior profundidade pois nos permitiu analisar a relaccedilatildeo entre o traba-

lho e a linguagem em uma perspectiva multifacetada Trata-se de uma abordagem defendida

por Nouroudine (2002)12 que apresenta uma triparticcedilatildeo da relaccedilatildeo trabalholinguagem cujos

eixos seriam dados pelas modalidades ldquolinguagem como trabalhordquo ldquolinguagem no trabalhordquo

e ldquolinguagem sobre o trabalhordquo

12 De acordo com esse autor essa reflexatildeo tem origem em LACOSTE M Paroles activiteacute situation In BOU-TET J Paroles ou travail Paris LrsquoHarmattan (1995)

62

Para Lacoste apud Nouroudine (2002) a elaboraccedilatildeo dessa triparticcedilatildeo ldquopermitiu reme-

diar confusotildees disseminadas separando como verbalizaccedilatildeo falas provocadas e exteriores agrave

situaccedilatildeo e como comunicaccedilatildeo falas que fazem parte da atividade de trabalhordquo (p 17) De

acordo com Nouroudine (2002 p 18) a distinccedilatildeo entre esses trecircs aspectos da linguagem a-

tende a uma opccedilatildeo metodoloacutegica que busca identificar os mecanismos de funcionamento da

relaccedilatildeo trabalholinguagem e ainda a um interesse epistemoloacutegico na medida em que pode-

ria evidenciar as ligaccedilotildees e as diferenccedilas desses mecanismos de funcionamento Neste senti-

do eacute importante salientar que de modo algum os diferentes aspectos da relaccedilatildeo traba-

lholinguagem satildeo estanques entre si e sim que existe uma estreita ligaccedilatildeo entre os trecircs as-

pectos da linguagem embora como afirma Nouroudine (2002) cada um deles possa aparen-

tar ainda problemas de ordem praacutetica e epistemoloacutegica bem distintos No que se refere agrave nos-

sa pesquisa a distinccedilatildeo entre as vaacuterias dimensotildees da relaccedilatildeo linguagem e trabalho pode lanccedilar

luzes sobre a explicitaccedilatildeo ou natildeo dos saberes taacutecitos pois nos facilita compreender as estra-

teacutegias que os trabalhadores mobilizam para viabilizar a comunicaccedilatildeo de saberes no trabalho

Essa triparticcedilatildeo considera que respectivamente haacute linguagens que fazem o trabalho que cir-

culam no trabalho e que interpretam o trabalho as quais seratildeo explicadas a seguir

A ldquolinguagem como trabalhordquo eacute dada a partir do momento em que a proacutepria linguagem

eacute mobilizada como uma atividade de trabalho (NOUROUDINE 2002) Nesta condiccedilatildeo de

acordo com esse autor a linguagem assume tambeacutem as complexas contradiccedilotildees que consti-

tuem o trabalho13 e uma das consequumlecircncias eacute a existecircncia de dois niacuteveis de linguagem ldquopor

um lado os gestos falas que o protagonista utiliza ao se dirigir a seus colegas envolvidos em

uma atividade executada coletivamente por outro lado as falas que o protagonista do traba-

13 De acordo NOUROUDINE (2002) parte das contradiccedilotildees do trabalho se devem ao seu caraacuteter multidimensio-nal composto de dimensatildeo econocircmica social cultural juriacutedica etc Para esse autor ldquoo caraacuteter multidimensional e total do trabalho eacute irredutiacutevel visto ser marca e o reflexo da natureza mesma do humano ao mesmo tempo sujeito social econocircmico juriacutedico etc Poreacutem o trabalho tambeacutem eacute complexo na medida em que integra propri-edades muacuteltiplas cada uma participando da formaccedilatildeo de uma significaccedilatildeo dinacircmica e variaacutevel nos campos social e histoacutericordquo (p 19)

63

lho dirige a si proacuteprio para acompanhar e orientar seus proacuteprios gestos no momento mesmo

em que trabalhardquo (NOUROUDINE 2002 p 20) Conforme esse pensador eacute ainda importan-

te apontar que a linguagem como trabalho natildeo eacute somente uma dimensatildeo dentre outras do

trabalho mas ela proacutepria se reveste de uma seacuterie de dimensotildees Neste sentido a ldquolinguagem

como trabalhordquo eacute econocircmica dado que a comunicaccedilatildeo em situaccedilatildeo de trabalho e durante a

atividade eacute utilizada como meio de gestatildeo do tempo de trabalho A linguagem eacute ainda dada

pela sua dimensatildeo social uma vez que a relaccedilatildeo entre o locutor e o interlocutor constitui-se

entre duas pessoas socialmente organizadas Dessa forma a interaccedilatildeo entre o locutor e o inter-

locutor torna a linguagem fundamentalmente social integrando ao mesmo tempo a coesatildeo e

o conflito Nas situaccedilotildees de trabalho em meio aos coletivos a linguagem permite em especi-

al travar e manter relaccedilotildees sociais entre parceiros E por fim a linguagem possui uma di-

mensatildeo eacutetica que eacute extensatildeo do seu caraacuteter social Eacute a partir desse viacutenculo com o mundo so-

cial que a linguagem como trabalho demanda uma eacutetica ldquoEacute enquanto dimensatildeo do trabalho

que se apresenta ela proacutepria sob a forma de uma seacuterie de dimensotildees que a linguagem eacute ativi-

dade atravessada pelos saberes pelos valores etcrdquo E por isso mesmo prossegue essa pensa-

dora ldquono exame das situaccedilotildees de trabalho natildeo se analisa a linguagem unicamente como dis-

curso preacute eou poacutes-experiecircncia mas sobretudo como parte da atividade em que constituintes

fisioloacutegicos cognitivos subjetivos e sociais se cruzam em um complexo que se torna ele proacute-

prio uma marca distintiva de uma experiecircncia especiacutefica em relaccedilatildeo a outrasrdquo (NOUROUDI-

NE 2002) Com efeito ao capturarmos a ldquolinguagem como trabalhordquo com afirma esse autor

natildeo como uma dimensatildeo a mais do trabalho mas ela proacutepria possuidora de outras dimensotildees

quais sejam econocircmica social e eacutetica eacute possiacutevel afirmar que a efetivaccedilatildeo de um saber na

praacutetica natildeo eacute dada apenas por questotildees teacutecnicas mas tambeacutem pelos aspectos econocircmicos

sociais subjetivos Daiacute que nos parece importante continuar explorando a ampliaccedilatildeo da rela-

64

ccedilatildeo entre trabalho e linguagem proposta pela tese da ldquotriparticcedilatildeordquo o que faremos a seguir com

a abordagem da ldquolinguagem no trabalhordquo

A ldquolinguagem no trabalhordquo eacute tomada a partir da consideraccedilatildeo de que existe ainda no

trabalho uma dimensatildeo da linguagem que mesmo posta como atividade natildeo participa dire-

tamente da atividade especiacutefica em que se concretiza uma intenccedilatildeo de trabalho Dessa forma

nem toda linguagem presente no trabalho pode ser considerada uma ldquolinguagem como traba-

lhordquo (NOUROUDINE 2002) Para esse autor o entendimento que permite distinguir a ldquolin-

guagem como trabalhordquo da ldquolinguagem no trabalhordquo daacute-se primeiramente pela distinccedilatildeo en-

tre a atividade de trabalho e a situaccedilatildeo de trabalho A primeira qual seja a atividade de traba-

lho eacute ldquoexpressa pelo autor eou coletivo dentro da atividade (de trabalho) em tempo e lugar

reaisrdquo Jaacute a segunda a situaccedilatildeo de trabalho ldquoseria antes uma das realidades constitutivas da

situaccedilatildeo de trabalho global na qual se desenrola a atividaderdquo (NOUROUDINE 2002)

Para Nouroudine (2002) ldquoos constituintes da situaccedilatildeo de trabalho podem ir do mais

proacuteximo ao mais distanciado da atividade nutrindo-se de dimensotildees social econocircmica juriacute-

dica artiacutestica etcrdquo No que se refere ao debate presente em nossa pesquisa a consideraccedilatildeo da

ldquosituaccedilatildeo de trabalhordquo sugere uma reflexatildeo mais ampla sobre a relaccedilatildeo trabalholinguagem e

natildeo um desprezo das possibilidades de entendimento que a apreensatildeo da atividade de trabalho

representa

Se eacute verdade que o ergonomista se interessa geralmente pelos determinantes proacute-ximos da atividade a fim de tentar compreender o trabalho e considerar os meios de sua transformaccedilatildeo outros determinantes mais distanciados histoacuterica social es-pacialmente tambeacutem satildeo componentes da situaccedilatildeo de trabalho (p 23)

A ldquoampliaccedilatildeordquo apresentada pela perspectiva da ldquosituaccedilatildeo de trabalhordquo desdobrou-se

em outras abordagens como por exemplo os trabalhos de Yves Schwartz e Alain Wisner

Para Nouroudine (2002) a antropotecnologia criada por Alain Wisner na esteira da ergono-

mia a fim de intervir nas questotildees de transferecircncia de tecnologias efetua um alongamento

65

ainda mais importante da situaccedilatildeo de trabalho Conforme afirma o proacuteprio Wisner apud Nou-

roudine (2002) ldquoEm antropotecnologia iremos mais longe na procura das origens das difi-

culdades encontradas e construiremos uma aacutervore das causas que natildeo se limitaraacute aos aspec-

tos teacutecnicos e organizacionais mais proacuteximos do posto de trabalhordquo (p 23) Uma outra pers-

pectiva a ergologia14 quando toma por objeto de pesquisa e de intervenccedilatildeo as atividades hu-

manas aborda por isso mesmo a situaccedilatildeo de trabalho dentro de uma dimensatildeo antropoloacutegica

em que determinantes mais proacuteximos da atividade se relacionam dialeticamente com os de-

terminantes mais distanciados (NOUROUDINE 2002) Em boa medida podemos afirmar

que a abordagem da ldquosituaccedilatildeo de trabalhordquo estaacute imbricada com uma certa subversatildeo epistemo-

loacutegica uma vez que este tipo de abordagem reconhece que a experiecircncia de trabalho eacute a en-

grenagem ldquomestrerdquo na produccedilatildeo de saberes taacutecitos15

A partir da trilha possibilitada pela ldquosituaccedilatildeo de trabalhordquo a linguagem no trabalho

pode ser entendida como uma linguagem que circula no trabalho podendo influenciar ou natildeo

a realizaccedilatildeo imediata de uma atividade Ao nosso olhar a possibilidade de distinguir uma

ldquolinguagem no trabalhordquo de uma ldquolinguagem como trabalhordquo traz como importante contribui-

ccedilatildeo uma leitura que busca conhecer e aproximar os protagonistas do trabalho em sua totalida-

de histoacuterica social e cultural Neste sentido a abordagem da linguagem no trabalho talvez

possa evitar ou diminuir a chance de que o saber taacutecito seja tido apenas no seu ato imediato

14 Neste sentido a ergologia nos fornece uma contribuiccedilatildeo com uma proposta de abordagem que agrave luz de um debate entre ciecircncia e cultura percebe que saberes formalizados pela ciecircncia e saberes oriundos da experiecircncia possuem cada qual seu niacutevel de cultura e incultura (SANTOS 2000 SCHWARTZ 2000 FAITA e SOUZA-E-SILVA 2002) 15 A possibilidade de ocorrer uma certa subversatildeo epistemoloacutegica ao nosso ver tem um deacutebito com as reflexotildees de SANTOS (2000) e SCHWARTZ (2000) Esses pensadores propotildeem que a experiecircncia de trabalho complexa que eacute seja tomada a partir de uma ldquosolidariedade entre uma ideacuteia forte de ciecircncia e uma ideacuteia forte de culturardquo (SANTOS 2000 p 121) SANTOS (2000) ao se referir a uma solidariedade entre uma ideacuteia forte de ciecircncia e uma ideacuteia forte de cultura fala de ldquocultura tomada em dois sentidos como eacuteter do pensamento elemento de formaccedilatildeo dos conceitos e das lsquohierarquias do saberrsquo e como lsquoaquilo que produz a humanidadersquo teria uma pro-pensatildeo agrave obstruir o elemento da experiecircncia Esta obstruccedilatildeo proveacutem de uma exigecircncia forte concernindo a cons-tituiccedilatildeo de um discurso cientiacuteficordquo (p 121)

66

como um truque ou um lance de uacuteltima hora16 pois ao recorrermos a ldquosituaccedilatildeo de trabalhordquo

criamos condiccedilotildees para que o saber taacutecito seja tomado como expressatildeo de um saber histoacuterico

e socialmente construiacutedo isto eacute ao longo da vida do seu protagonista contrapondo-se assim

ao que chamamos de olhar imediato sobre o trabalho A ldquolinguagem no trabalhordquo apresenta

ainda uma outra caracteriacutestica por ser uma linguagem que circula nas relaccedilotildees sociais do

coletivo de trabalho ela pode ser indiretamente fundamental para o desenvolvimento do pro-

cesso produtivo Nouroudine (2002) afirma que ldquofalar de futebol poderia revelar-se beneacutefico agrave

realizaccedilatildeo da atividade em curso com eficaacutecia e seguranccedilardquo (p 24)

A linguagem sobre o trabalho somada agraves jaacute apresentadas ldquolinguagem como trabalhordquo

e ldquolinguagem no trabalhordquo fecha a tese de ldquotriparticcedilatildeordquo da relaccedilatildeo trabalholinguagem A e-

xistecircncia de uma linguagem sobre o trabalho inscreve-se como uma modalidade de linguagem

que busca interpretar o trabalho Essa interpretaccedilatildeo satildeo falas sobre o trabalho que pode advir

tanto do interior quanto do exterior do coletivo de trabalho (NOUROUDINE 2002) Neste

sentido se foi dada relevacircncia agrave possibilidade de que a ldquolinguagem como trabalhordquo e a ldquolin-

guagem no trabalhordquo por expressarem uma historicidade possam reportar uma fala mais

ldquoproacuteximardquo do ponto de vista dos trabalhadores eacute igualmente importante considerar a possibi-

lidade de a ldquolinguagem sobre o trabalhordquo nos permitir ldquolocalizarrdquo o lugar de origem dessas

falas o que segundo Nouroudine (2002) daacute voz tanto aos que pesquisam o trabalho quanto

aos protagonistas do trabalho uma vez que

A linguagem sobre o trabalho natildeo seria portanto exclusividade do pesquisador visto que na atividade produtividade pode ser encontrada tambeacutem sem com isso ser confundida com as outras formas de linguagem Eacute sem duacutevida pertinente o questionamento acerca de ldquoquem falardquo ldquode onde eleela falardquo ldquoquando eleela falardquo para que se compreenda onde se situa o campo de validade e de pertinecircncia da ldquolinguagem sobre o trabalhordquo (p 25-26)

16 Ao nosso ver a ideacuteia de truque eacute um desdobramento do imbricamento entre a naturalizaccedilatildeo do saber taacutecito com um olhar excessivamente restrito sobre a accedilatildeo a atividade em que este saber taacutecito foi percebido uma vez que a experiecircncia ponto fundamental do saber taacutecito eacute tributaacuteria de vivecircncias Daiacute que buscar um rastro histoacuterico pode esclarecer melhor a questatildeo do saber taacutecito

67

O reconhecimento de que haacute uma linguagem que interpreta o trabalho uma linguagem

que faz o trabalho e outra que circula no trabalho mais do que ldquolocalizar as falasrdquo remete agrave

possibilidade de que os protagonistas do trabalho sejam tomados como capazes de interpretar

a sua proacutepria relaccedilatildeo com o trabalho Eacute nessa trilha qual seja uma abordagem que busca per-

ceber a histoacuteria dos protagonistas do trabalho e por isso mesmo a proacutepria pluralidade da rela-

ccedilatildeo trabalholinguagem que a tese da triparticcedilatildeo da relaccedilatildeo trabalholinguagem nos parece

mais fecunda especialmente no que concerne agrave legitimaccedilatildeo dos saberes taacutecitos dos protago-

nistas do trabalho pois ao trataacute-lo como um processo histoacuterico social e subjetivo acaba por

desnaturalizaacute-lo Todavia o simples reconhecimento de que possa haver entre os trabalhado-

res uma linguagem usada para interpretar o seu trabalho eacute insuficiente para representar um

equiliacutebrio no reconhecimento social poliacutetico econocircmico e epistemoloacutegico entre uma lingua-

gem de base cientiacutefica e outra oriunda da experiecircncia Para Nouroudine (2000) ldquo() os meacute-

todos usados pelas disciplinas que focalizam o trabalho como lsquoobjetorsquo de pesquisa e de inter-

venccedilatildeo para produzir uma lsquolinguagem sobre o trabalhorsquo natildeo satildeo desse ponto de vista neu-

trosrdquo (p 27) Outros pensadores como Sznelwar e Mascia (1997) ao discutirem a relaccedilatildeo

trabalholinguagem afirmam que existe um ldquodesequiliacutebrio comunicacional que joga em favor

da hierarquia em detrimento dos subordinados e do ponto de vista dos homens em detrimento

do das mulheresrdquo (p 224) Ainda sobre a possibilidade de a linguagem privilegiar um deter-

minado ponto de vista sobre o trabalho as reflexotildees de Schwartz (apud NOUROUDINE

2002) satildeo mais contundentes

Todo posicionamento de exteritorialiteacute17 (Y SCHWARTZ 1996) do pesquisador em relaccedilatildeo ao trabalho dos demais elimina de fato os protagonistas dos processos de produccedilatildeo de saber sobre suas atividades e ao mesmo tempo sua proacutepria ldquolin-guagem sobre o trabalhordquo acaba sendo desqualificada e neutralizada (p 27)

17 Exterritorialiteacute extraterritorialidade

68

A tese de triparticcedilatildeo da relaccedilatildeo trabalholinguagem ao buscar articular de forma am-

pliada as vaacuterias dimensotildees ldquolinguagem no trabalhordquo ldquolinguagem como trabalhordquo e a ldquolingua-

gem sobre o trabalhordquo nos permitiu elaborar algumas indagaccedilotildees sobre a explicitaccedilatildeo ou

natildeo do saber taacutecito e dentre as quais analisar um saber taacutecito exclusivamente na atividade

de trabalho natildeo seria um ldquoolharrdquo excessivamente imediato sobre o protagonista do trabalho E

neste caso um olhar imediato natildeo inviabilizaria o acesso do pesquisador agrave ldquolinguagem no

trabalhordquo dos seus protagonistas E ainda como o domiacutenio de uma linguagem no coletivo do

trabalho pode influenciar a produccedilatildeo a mobilizaccedilatildeo e a formalizaccedilatildeo de saberes taacutecitos por

parte dos trabalhadores

Se de uma maneira recorrente como demonstra a literatura analisada anteriormente

apresentamos como caracteriacutesticas centrais para se analisar o saber taacutecito aspectos como a

relaccedilatildeo entre a teoria e a praacutetica o uso instrumental ou natildeo deste saber e ainda a relaccedilatildeo

com a linguagem foi apontado tambeacutem que esses aspectos guardam uma complexa articula-

ccedilatildeo entre si (FRADE 2003 SCHON 2000 POLANY 1967 MALGLAIVE 1990 NOU-

ROUDINE 2002 SZNELWAR e MASCIA 1997) Em nosso entendimento essa articulaccedilatildeo

pode ser mais bem compreendida por meio da anaacutelise do uso do corpo pelo sujeito na produ-

ccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes

243 Corpo mente e o saber taacutecito

Eacute importante salientar que ao tomarmos a relaccedilatildeo entre o corpo e a mente como um

vieacutes de anaacutelise sobre o saber taacutecito natildeo buscamos de modo algum apontar a possibilidade de

que este saber seja determinado por atributos bioloacutegicas em detrimento dos aspectos sociais e

histoacutericos epistemoloacutegicos e subjetivos Neste sentido eacute importante salientar que comparti-

lhamos a posiccedilatildeo de Snelwar e Mascia (1997) quando esses apontam que o favorecimento dos

69

aspectos bioloacutegicos na discussatildeo do saber taacutecito poderia corroborar o engodo taylorista de que

eacute possiacutevel ldquoaleacutem da divisatildeo de tarefas na produccedilatildeo dividir uma pessoa em diferentes partes

fiacutesicafisioloacutegica mentalcognitiva e afetivapsiacutequica Cada uma destas partes poderia ser uti-

lizada em momentos determinados conforme necessidade de produccedilatildeordquo (p 210)18

Entretanto como jaacute foi dito anteriormente satildeo muitas as questotildees que tornam impor-

tante bem como necessaacuteria uma discussatildeo sobre o saber taacutecito pelo vieacutes da relaccedilatildeo entre o

corpo e a mente Como ponto de partida podemos considerar que o corpo eacute o meio baacutesico

sem o qual natildeo se realiza uma atividade fiacutesica ou mesmo mental De acordo com Polany

ldquotodas as nossas transaccedilotildees conscientes com o mundo envolvem o uso subsidiaacuterio do corpo E

o nosso corpo eacute o uacutenico agregado de coisas das quais noacutes estamos quase exclusivamente aten-

tos de tal maneira subsidiaacuterios19 Em favor da abordagem sobre os aspectos corporais haacute

ainda a possibilidade de que o corpo possa se estruturar como uma linguagem na medida em

que ele representa valores em um determinado coletivo20 A questatildeo do corpo pode ter mais

uma relevacircncia se considerarmos tambeacutem o termo incorporar como ldquodar uma forma corpoacute-

reardquo21 pois assim ao discutirmos os aspectos corporais poderiacuteamos como jaacute foi mencionado

cumprir um papel natildeo menos importante de dar um corpo com todos os seus significados

culturais histoacutericos e subjetivos aos trabalhadores sujeitos nesta pesquisa

18 Para esses pensadores ldquoEssa excrescecircncia conceitual sobre o que seria um ser humano pode ser considerada na medida em que se procurou implantaacute-la nas induacutestrias e mais recentemente no setor de serviccedilos como res-ponsaacutevel pelo sofrimento de uma enorme quantidade de pessoas no seu ambiente de trabalho Este sofrimento se expressa atraveacutes dos mais variados tipos de doenccedilas e tambeacutem na deterioraccedilatildeo das relaccedilotildees humanas no trabalho Esta deterioraccedilatildeo natildeo se limita ao trabalho atinge tambeacutem a vida social e familiarrdquo (SNELWAR e MASCIA 1997 p 210) 19 httpwwwmwsceduorgspolanymp-body-and-mindhtm 20 Embora natildeo seja um objeto de anaacutelise nesta pesquisa consideramos com base em nossa experiecircncia em chatildeo de faacutebrica que entre os trabalhadores circula uma linguagem expressa pelo corpo tais como cicatrizes muacutesculos Haacute que se dizer ainda conforme nos foi confidenciado por alguns trabalhadores sujeitos da nossa pesquisa que este aspecto nos auxiliou enquanto pesquisador uma vez que por sermos portadores de algumas dessas marcas fomos identificados como uma pessoa proacutexima aos trabalhadores 21 De acordo com o dicionaacuterio Ferreira (1986 p 934) [Do lat Incorporare] v t d 1 ndash Dar uma forma corpoacute-rea

70

Uma vez mais cabe ressaltar a contribuiccedilatildeo de Polany em nossa abordagem sobre o

saber taacutecito atraveacutes das suas reflexotildees sobre a relaccedilatildeo entre o corpo22 e a mente23 apresenta-

das nos textos ldquoCorpo e menterdquo24 e os ldquodois tipos de consciecircnciardquo25 Ainda sobre a possibi-

lidade de analisar o saber taacutecito levando em consideraccedilatildeo a questatildeo do corpo uma outra refe-

recircncia nos foi oferecida pelas reflexotildees de Damaacutesio (1994 2000) sobre as bases neurais do

conhecimento ou como ele proacuteprio diz ldquoneurobiologia da racionalidaderdquo26

Embora ao analisarmos alguns aspectos corporais recorramos agraves reflexotildees de Damaacutesio

(1994) eacute importante salientar que tomamos o corpo como uma noccedilatildeo para aleacutem dos aspectos

bioloacutegicos o que nos leva a contrapor uma outra ideacuteia agrave noccedilatildeo de corpo explicitada pelo au-

tor ldquoSempre que me refiro ao corpo tenho em mente o organismo menos o tecido nervoso (os

componentes central e perifeacuterico do sistema nervoso) embora num sentido convencional o

ceacuterebro tambeacutem faccedila parte do corpordquo (p 112) Parece-nos mais coerente tomar o corpo como

uma construccedilatildeo sociocultural portanto histoacuterica como propotildee Daolio (1995) De acordo com

esse autor ldquono corpo estatildeo inscritos todas as regras todas as normas e todos os valores de

uma sociedade especiacutefica por ser ele o meio de contato primaacuterio do indiviacuteduo com o ambien-

te que o cercardquo (p 39)

No que se refere aos aspectos corporais da mesma forma que o fez em The tacit di-

mension Polany discute tanto ao longo do texto ldquoCorpo e menterdquo quanto em ldquoOs dois tipos

de consciecircnciardquo a ideacuteia de ldquoconhecimento taacutecitordquo em sua dimensatildeo instrumental de realizar

tarefas bem como pelo niacutevel de compreensatildeo que uma pessoa possa ter sobre o processo que

construiu os saberes necessaacuterios para a realizaccedilatildeo de uma determinada atividade Ao avanccedilar

22 De acordo com Ferreira (1986 p 482) [Do lat Corpus Corporis] s m 1 ndash Parte central ou principal de um edifiacutecio 2 ndash Substacircncia fiacutesica ou estrutura de cada homem ou animal 23 De acordo com Ferreira (1986 p 1119) [Do lat Mente] s f 1 ndash Intelecto pensamento entendimento alma espiacuterito 2 ndash Concepccedilatildeo imaginaccedilatildeo a mente feacutertil do artista 3 ndash Intenccedilatildeo intuito desiacutegnio disposiccedilatildeo 24 httpwwwmwsceduorgspolanymp-body-and-mindhtm 25 httpwwwmwsceduorgspolanymp-STRUCTUREhtm 26 A discussatildeo que DAMAacuteSIO (1994 2000) faz sobre corpo ceacuterebro mente e a consciecircncia extrapola dados os objetivos deste trabalho as ideacuteias apresentadas neste texto Limitar-nos-emos a tomar a contribuiccedilatildeo desse autor no que se refere agrave apresentaccedilatildeo de elementos que nos ajudem a apreender a dimensatildeo do corpo dentro do debate sobre o saber em face da distinccedilatildeo entre mente e ceacuterebro

71

por essa trilha Polany aponta dois termos no saber taacutecito o conhecimento subsidiaacuterio aquele

que auxilia na realizaccedilatildeo de uma tarefa e o conhecimento apreendido aquele que se adquire

apoacutes o domiacutenio conceitual de todo o processo de realizaccedilatildeo de uma determinada tarefa Eacute com

essa perspectiva que Polany27 aborda a relaccedilatildeo entre o corpo e a mente no processo de cons-

truccedilatildeo do conhecimento taacutecito

Polany busca explicar a relaccedilatildeo entre o corpo e a mente na construccedilatildeo do conhecimen-

to taacutecito usando como exemplo a capacidade humana de selecionar ou reconhecer determina-

dos objetos a partir do uso da visatildeo Segundo esse pensador a observaccedilatildeo de uma determina-

da imagem objetivamente captada pelos olhos pode estar condicionada por um conjunto de

fenocircmenos pouco mensuraacuteveis tais como quantidade de luzes que entram pelos olhos e tem-

peratura ambiente que acabam se convertendo em variaacuteveis taacutecitas e marginais O domiacutenio

sobre o impacto que essas variaacuteveis taacutecitas podem ter sobre um determinado objeto eacute funda-

mental para possibilitar ao homem a captaccedilatildeo de imagem mais completa desse objeto Neste

sentido essas variaacuteveis funcionam como pistas que podem com menor ou maior intensidade

compor um conhecimento taacutecito De acordo com Polany28 na medida em que o domiacutenio des-

sas variaacuteveis forma o conhecimento taacutecito elas acabam se tornando uma extensatildeo do corpo

humano pois ampliam as possibilidades de uso da visatildeo Dessa forma por exemplo a tradu-

ccedilatildeo da imagem eacute feita por um certo saber mobilizar o uso do corpo ou saber que aciona um

processo mental que seleciona e articula os sentidos que passam pelo corpo no caso da visatildeo

em boa parte pelos olhos A dimensatildeo que um certo saber mobilizar o uso do corpo representa

nas accedilotildees humanas pode ser avaliada pela forma como esse autor percebe a interaccedilatildeo do ho-

mem com o seu meio Vejamos a reflexatildeo de Polany

Eu direi que noacutes observamos objetos externos sendo subsidiaacuterios atentos do im-pacto que eles fazem em nosso corpo e das respostas que nosso corpo oferece a ele

27 httpwwwmwsceduorgspolanymp-body-and-mindhtm 28 httpwwwmwsceduorgspolanymp-body-and-mindhtm

72

Todas as nossas accedilotildees conscientes com o mundo envolvem nosso uso subsidiaacuterio do nosso corpo Esse eacute o ponto pelo qual o nosso corpo eacute relacionado agrave nossa men-te29

Ao abordar a relaccedilatildeo entre o corpo e a mente as reflexotildees de Polany natildeo soacute nos permi-

tem o entendimento de que um determinado saber mobilizar o uso do corpo eacute parte fundamen-

tal do saber taacutecito bem como explicam nossa dificuldade de reconhecer uma atividade de uso

do corpo se eacute que existe alguma que natildeo dependa desse equipamento como sendo uma accedilatildeo

consciente Polany explica essa dificuldade em percebermos o uso do corpo como algo cons-

ciente a partir de uma argumentaccedilatildeo semelhante agrave que ele utilizou para tentar explicar o pro-

cesso de mudanccedilas de foco quando se busca compreender o uso instrumental de um determi-

nado saber taacutecito De acordo com esse autor ocorre o mesmo quando buscamos compreender

o uso do corpo ou seja se focalizarmos o uso do corpo perderemos de vista o objetivo pelo

qual ele foi mobilizado A perspectiva de Polany parece apontar para uma escolha ou se per-

cebe o que se faz por meio do corpo ou se compreende como o corpo o faz ldquoO fato que qual-

quer elemento subsidiaacuterio perde seu significado quando noacutes enfocamos nossa atenccedilatildeo nisto

explica o fato que quando examinando o corpo em accedilatildeo consciente noacutes natildeo conhecemos

nenhum rastro de consciecircncia em seu organismordquo30

Se de um lado eacute possiacutevel o entendimento de que o saber taacutecito se caracteriza tam-

beacutem por meio da relaccedilatildeo do corpo com a mente por outro lado em que medida esse certo

saber mobilizar o uso do corpo pode expressar um niacutevel de racionalidade E ainda eacute possiacutevel

compreender o processo de aquisiccedilatildeo de um saber mobilizar o uso do corpo

Por uma perspectiva inicial pode-se dizer que o domiacutenio sobre o corpo isto eacute sobre os

sentidos corporais natildeo ocorre com facilidade (POLANY 1967 FRADE 2003) No que se

refere ao saber taacutecito a necessidade de haver um esforccedilo de mobilizaccedilatildeo de saberes para do-

minar ou regular a relaccedilatildeo entre o corpo e a mente pode ser dada tanto para realizar uma ati- 29 httpwwwmwsceduorgspolanymp-STRUCTURE htm 30 httpwwwmwsceduorgspolanymp-STRUCTUREhtm

73

vidade quanto para a comunicaccedilatildeo de um saber taacutecito entre dois ou mais sujeitos Neste sen-

tido se um certo saber mobilizar o corpo viabiliza o uso de um saber taacutecito para realizaccedilatildeo de

uma determinada atividade bem como a comunicaccedilatildeo deste saber entre seus protagonistas

perguntamos em que medida um saber taacutecito eacute viabilizado por uma reflexatildeo sobre o uso do

corpo

Para alguns autores a construccedilatildeo do saber taacutecito ao depender de uma certa reflexatildeo

acaba por demandar um enorme esforccedilo de abstraccedilatildeo (POLANY 1967 SCHON 2000

MALGLAIVE 1999) Em Polany31 encontramos um termo que nos parece mais adequado

Trata-se de uma formulaccedilatildeo que esse autor apresenta como ldquoesforccedilo de imaginaccedilatildeordquo que se-

gundo ele estaacute presente em qualquer situaccedilatildeo de aprendizagem Segundo Polany quando es-

tamos ensinando alguma coisa a algueacutem noacutes confiamos no esforccedilo intelectual desse algueacutem

em reconhecer o que estamos ldquocarregandordquo como objeto de ensino como por exemplo a ten-

tativa de se ensinar a identificar qualidades sensoriais como a pulsaccedilatildeo sanguumliacutenea Ao avan-

ccedilar sobre essa discussatildeo no texto Corpo e Mente Polany tenta esclarecer o que ele chama de

esforccedilo de imaginaccedilatildeo da seguinte forma

Ainda haacute outra conexatildeo na qual noacutes temos que confiar no esforccedilo de imaginaccedilatildeo para ensinar e aprender Um exemplo eacute o estudo de anatomia topograacutefica vocecirc po-de ver vaacuterias fases da dissecaccedilatildeo de fotos ou quadros mas vocecirc tem que reconstru-ir pelo esforccedilo da imaginaccedilatildeo como o organismo com seus vaacuterios elementos fun-ciona (na decomposiccedilatildeo) de forma que vocecirc saiba como ocorre tudo ()32

De acordo com Frade (2003) ldquoem Polany qualquer ato de conhecer envolve um com-

prometimento pessoal uma contribuiccedilatildeo apaixonada do sujeito que eacute um componente vital do

conhecimento e natildeo meras imperfeiccedilotildees desse conhecimentordquo (p 10) Quando afirma que a

comunicaccedilatildeo do saber taacutecito exige das pessoas envolvidas o uso de seus saberes taacutecitos para

viabilizar a comunicaccedilatildeo segundo Frade (2003) eacute possiacutevel encontrar em Polany um apelo agrave

31 httpwwwmwsceduorgspolanymp-body-and-mindhtm 32 Ibidem

74

ideacuteia de esforccedilo ainda que essa autora natildeo fale em ldquoesforccedilo de imaginaccedilatildeordquo Para explicar

como Polany aborda a possibilidade de comunicaccedilatildeo do saber taacutecito Frade (2003) afirma que

esse pensador usa a seguinte metaacutefora quando a primeira pessoa precisa ocupar ou deixar-se

ocupar pela mente da segunda pessoa acompanhar os movimentos dessa mente para que pos-

sa descobrir seu conhecimento taacutecito ldquoconhecemos a mente de um jogador de xadrez ocupan-

do-nos dos estratagemas de seus jogos e conhecemos a dor de outra pessoa ocupando-nos de

sua face distorcida pelo sofrimentordquo (p 21)

O que Polany chama de esforccedilo de imaginaccedilatildeo apresenta-se em nosso entendimento

como uma trama essencial no processo de construccedilatildeo do saber taacutecito Neste sentido em que

medida o esforccedilo de imaginaccedilatildeo poderia manter interface com o saber usar o corpo E ainda

poderia o ldquoesforccedilo de imaginaccedilatildeordquo contribuir a superaccedilatildeo de uma suposta insuficiecircncia da

linguagem em explicitar o saber taacutecito A partir dessas indagaccedilotildees e das que foram desenvol-

vidas ao longo deste capiacutetulo entendemos ser necessaacuterio tentar percebecirc-las agrave luz de nossas

hipoacuteteses o que buscaremos fazer a seguir em nossos comentaacuterios

244 Comentaacuterios sobre as estrateacutegias taacutecitas

Se de um lado foi possiacutevel evidenciar que o saber taacutecito eacute marcado por uma validade

e pertinecircncia no que se refere agrave realizaccedilatildeo de uma determinada atividade por outro lado eacute

possiacutevel afirmar tambeacutem que o fato de este saber ser tido como taacutecito favorece em muito

para que haja duacutevidas em relaccedilatildeo a sua relevacircncia epistemoloacutegica Todavia entendemos ain-

da que os debates sobre o saber taacutecito natildeo evidenciaram todas as possibilidades de formaliza-

ccedilatildeo deste tipo de saber e tampouco desvelaram em que medida ele pode ser tido realmente

como taacutecito

Neste sentido elaboramos uma hipoacutetese na qual consideramos que o uso do saber taacute-

cito ocorra mediante o uso de estrateacutegias tambeacutem taacutecitas de produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e forma-

75

lizaccedilatildeo de saberes Consideramos ainda hipoteticamente que estas estrateacutegias taacutecitas poderi-

am se desenvolver em um esquema de retroalimentaccedilatildeo ciacuteclica isso quer dizer que o uso de

estrateacutegias taacutecitas para produzir saberes eacute dependente de estrateacutegias taacutecitas de mobilizaccedilatildeo de

saberes que por sua vez dependeriam do acionamento de estrateacutegias taacutecitas para formalizar

os saberes a serem mobilizados ou seja todas as estrateacutegias taacutecitas se realimentam constan-

temente Por esta trilha as estrateacutegias taacutecitas para produzir mobilizar e formalizar soacute encon-

tram um sentido uma perante a outra

Essas estrateacutegias taacutecitas aleacutem de garantir a validade e pertinecircncia do saber taacutecito so-

bretudo para quem as realizam uma vez que por meio delas entrariam em marcha os saberes

que monitoram a realizaccedilatildeo de uma determinada atividade poderiam tambeacutem funcionar co-

mo um mecanismo de ldquofiltragemrdquo que permitiria ao sujeito selecionar os saberes a serem mo-

bilizados para realizar uma tarefa Essa hipoacutetese encontra respaldo em Malglaive (1990) com

a expressatildeo ldquosaber em usordquo que designa um determinado conjunto de saberes que regem uma

accedilatildeo De acordo com esse autor

O conjunto destes saberes forma uma totalidade complexa e moacutevel operatoacuteria quer dizer ajustada agrave acccedilatildeo e agraves suas diferentes ocorrecircncias uma totalidade substi-tutiva no seio da qual os diversos tipos de saber se substituem uns aos outros agrave mercecirc das modalidades sucessivas da actividade uma totalidade que eventualmente se deforma sem todavia modificar a sua arquitetura mas alterando por vezes o modo e a qualidade dos seus constituinte (p 87)

Em que pese a possibilidade de um determinado grupo social criar e consagrar deter-

minadas estrateacutegias que mobilizam um tipo de regulagem entre o corpo e a mente a hipoacutetese

de haver um esquema de retroalimentaccedilatildeo entre as estrateacutegias ldquotaacutecitasrdquo por parte daqueles que

fazem uso de saberes taacutecitos nos remete ainda a uma uacuteltima pergunta o sujeito que faz uso

do saber taacutecito poderia criar e recriar uma regulagem na relaccedilatildeo entre o seu corpo e a sua

mente Se o saber possui uma dimensatildeo individual e subjetiva a singularidade do sujeito po-

deria estar na forma de como ele regula a relaccedilatildeo entre o seu corpo e a sua mente E ainda a

76

partir dessa regulagem o sujeito criaria formas natildeo soacute de produzir mobilizar e formalizar

saberes mas tambeacutem de expressaacute-los

A ideacuteia de que possa haver estrateacutegias de regulaccedilatildeo entre o corpo e a mente para a a-

preensatildeo da realidade eacute de certa forma sugerida por Damaacutesio (1994)

() A escolha de uma decisatildeo quanto a um problema pessoal tiacutepico colocado em ambiente social que eacute complexo e cujo resultado final eacute incerto requer tanto o am-plo conhecimento de generalidades como estrateacutegias de raciociacutenio que operem so-bre esse conhecimento () Mas como as decisotildees pessoais e sociais se encontram inextricavelmente ligadas agrave sobrevivecircncia esse conhecimento inclui tambeacutem fatos e mecanismos relacionados com a regulaccedilatildeo do organismo como um todo (p 109)

Todavia se foi importante apresentar a nossa hipoacutetese mais refinada qual seja a ideacuteia

de que o sujeito que faz uso do saber taacutecito o faccedila mediante o uso de estrateacutegias taacutecitas de

produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes eacute igualmente importante lembrar que a

construccedilatildeo dessa hipoacutetese tem deacutebito com situaccedilotildees concretas do chatildeo de faacutebrica que corrobo-

ram a possibilidade de que haja saberes produzidos mobilizados e formalizados a partir de

uma racionalidade distinta da formalidade cientiacutefica33

Neste sentido acreditamos que a atividade de trabalho se constitua como um excep-

cional campo para se analisar o saber taacutecito dado que as contradiccedilotildees presentes neste espaccedilo

satildeo marcadas por um apelo agrave inteligecircncia operaacuteria que de um lado eacute um alvo cada vez maior

dos interesses do capital e que por outro lado como afirma a literatura especializada os tra-

balhadores nunca ficaram sem produzir saberes e tampouco deixaram de imprimir o seu inte-

resse no trabalho (EVANGELISTA 2001 SANTOS 1997 ARANHA 1997)

33 Essa possibilidade eacute apresentada por diversos pesquisadores (SANTOS 1997 ARANHA 1997 e SALERNO 1994)

77

3 A FERRAMENTARIA E AS ATIVIDADES INDUSTRIAIS

O trabalho de ferramentaria se insere em diversas atividades industriais como por e-

xemplo a induacutestria alimentiacutecia farmacecircutica automobiliacutestica e eletro-eletrocircnica Nesta pes-

quisa seraacute abordada a ferramentaria de autopeccedilas portanto aquela que se vincula ao setor

automotivo No que se refere agrave inserccedilatildeo da ferramentaria no ramo autopeccedilas haacute que se dizer

que o crescimento nas vendas de automoacuteveis de passeio no seacuteculo XX eacute apontado como um

dos eventos responsaacuteveis pela expansatildeo desta atividade Ainda hoje ela responde por boa

parte dos componentes automotivos dado que dentre outras caracteriacutesticas o emprego deste

processo de fabricaccedilatildeo eacute apropriado para as grandes seacuteries de peccedilas ou seja a produccedilatildeo em

larga escala (NAVARRO 1954 SENAI 1998) No caso brasileiro podemos apontar que o

impulso da ferramentaria se vincula agrave induacutestria automotiva dada principalmente pela poliacutetica

de nacionalizaccedilatildeo das peccedilas a partir de meados da deacutecada de 1950 (GATTAacuteS 1981) Em Mi-

nas Gerais eacute tambeacutem a chegada de uma montadora que vai impulsionar a atividade de ferra-

mentaria como recordou um dos ferramenteiros com quem conversamos ldquono inicio da deacutecada

de 1970 tinha muito pouco serviccedilo de ferramentaria aqui em Minas depois veio a Fiat e a

Ferramentaria evolui aquirdquo Um outro ferramenteiro disse que ldquoQuando saiacute do Senai e fui

parar na Fiat eu era um ajustador mecacircnico laacute na Fiat eles perguntaram quem queria ir para a

ferramentaria No iniacutecio eu natildeo queria eu natildeo sabia o que era aquilo aiacute um cara laacute me falou

pode ir que esse negoacutecio eacute bom o ferramenteiro ganha mais do que qualquer peatildeordquo

78

31 A ESCOLHA DO SETOR AUTOMOTIVO E ESPECIFICAMENTE DO SETOR DE AUTOPECcedilAS

A importacircncia da induacutestria automotiva na sociedade contemporacircnea pode ser justifica-

da por uma seacuterie de fatores Eacute um setor onde prevalecem equipamentos de base microeletrocircni-

ca que tem adotado as mais modernas tecnologias de gestatildeo e representa um certo pioneiris-

mo comumente seguido por outros setores industriais Eacute o setor em que tecircm ocorrido os maio-

res esforccedilos em prol da modernizaccedilatildeo da produccedilatildeo (ARBIX e ZILBOVICIUS 1997 POS-

THUMA 1997 WOMACK 1992)

A escolha do setor automotiv4o como foco da nossa pesquisa reflete natildeo soacute a impor-

tacircncia de sua dimensatildeo produtiva mas tambeacutem a sua capacidade de definir comportamentos

Satildeo muitos os pensadores que destacam o papel que este seguimento representa na sociedade

contemporacircnea Segundo Womack (1992)

() a induacutestria automobiliacutestica continua sendo a maior atividade industrial () No entanto a induacutestria automobiliacutestica eacute ainda mais importante para noacutes do que pare-ce Duas vezes neste seacuteculo ela alterou nossas noccedilotildees mais fundamentais de como produzir bens E a maneira como os produzimos determina natildeo somente como tra-balhamos mas como pensamos o que compramos e como vivemos (p 1)

No que se refere ao caso brasileiro tambeacutem satildeo muitas as facetas quais sejam a eco-

nocircmica e poliacutetica que fazem a induacutestria automotiva figurar com acentuado destaque social

Arbix e Zilbovicius (1997) reforccedilam a importacircncia deste setor quando afirmam que o auto-

moacutevel jaacute foi tudo na Histoacuteria do Brasil

Nos anos 50 era o motor do progresso nacional E a sua produccedilatildeo em terras brasi-leiras uma espeacutecie de passaporte para a modernidade No poacutes-guerra poucas fo-ram as visotildees de desenvolvimento que prescindiram da induacutestria de autoveiacuteculos () Frequumlentou os sonhos de ricos e pobres de governantes e governados Foi si-nocircnimo de progresso Sua locomotiva E literalmente o carro-chefe da naccedilatildeo () O surpreendente eacute que quarenta anos depois apesar de todas as metamorfoses de economia brasileira e mundial neste final de seacuteculo a induacutestria de autoveiacuteculos continua destilando seus encantos (p 7-8)

79

Na realidade natildeo se pode falar em induacutestria mundial sem deixar legitimado o papel do

setor automotivo e isso eacute bem visiacutevel no Brasil Crescendo a taxas de 20 ao ano foi tambeacutem

o setor que conduziu o chamado ldquomilagre brasileirordquo que ocorreu de 1968 a 1973 (SHAPIRO

1997 p 65)

311 As autopeccedilas

Na trilha do setor automotivo a induacutestria de autopeccedilas inscreve-se como um ramo

com significativa influecircncia na economia brasileira e ainda como um poacutelo gerador de tecno-

logia e de uma forccedila de trabalho relativamente numerosa e extremamente qualificada De a-

cordo com o Sindipeccedilas (2003)1 este setor obteve um faturamento de 10920000 bilhotildees de

reais em 2002 o que corresponde aproximadamente a 24 do PIB nacional e empregando

diretamente cerca de 168000 trabalhadores

Eacute importante ressaltar o fato de as empresas de autopeccedilas estarem sempre acompa-

nhando os avanccedilos da induacutestria automobiliacutestica tendo com isso que fazer contiacutenuos investi-

mentos em atualizaccedilatildeo tecnologias e novos processos assim como em alguns casos fazer

alianccedilas com empresas estrangeiras Enfim precisam seguir e antecipar todos os esforccedilos das

montadoras O desenvolvimento da induacutestria de autopeccedilas no Brasil embora remonte ao iniacute-

cio do seacuteculo XX ganha impulso com a vinda e o posterior crescimento da induacutestria auto-

motiva a partir da deacutecada de 1950 Segundo boa parte dos pesquisadores o alavancamento da

induacutestria automotiva no Brasil em meados da deacutecada de 1950 contaraacute com o apoio de accedilotildees

do governo como a proposta de restringir as importaccedilotildees de veiacuteculos e componentes automo-

tivos e a de incentivar financeiramente a produccedilatildeo de veiacuteculos que contivessem de 90 a 95

de peccedilas produzidas no Brasil o que foi mais relevante apoacutes 1956 com a posse do presidente 1 Ver hiperlink hppwwwsindipeccedilasorgBr Sindicato das empresas de autopeccedilas

80

Juscelino Kubitschek e sua poliacutetica dos ldquocinquumlenta anos em cincordquo Surgem o CDI ndash Conselho

de Desenvolvimento Industrial e a Geia ndash Grupo Executivo para a Induacutestria Automotiva ndash que

propunham estimular os investimentos no paiacutes e tomar as decisotildees para o desenvolvimento do

setor criando uma sequumlecircncia desenvolvimentista que soacute veio conhecer crise no periacuteodo de

1963 a 1968 (POSTHUMA 1997 SHAPIRO 1997) O Geia chegou inclusive a estabelecer

um cronograma sobre a nacionalizaccedilatildeo da induacutestria automobiliacutestica conforme aponta Gattaacutes

(1981)

Tabela 1 Cronograma do Geia para nacionalizaccedilatildeo da induacutes-tria automobiliacutestica no Brasil

Prazos limites Caminhotildees Jipes Caminhotildees leves 31121956 35 50 40 01071957 40 60 50 01071958 65 75 65 01071959 75 85 75 01071960 90 95 90

Fonte GATTAacuteS (1981)

A partir da deacutecada de 1970 ainda que possa parecer paradoxal as empresas de auto-

peccedilas ao mesmo tempo em que se estruturaram para atender as determinaccedilotildees das montadoras

passaram tambeacutem a influenciar a gestatildeo do trabalho nas montadoras De acordo com Addis

(1997)

Ao contraacuterio das consideraccedilotildees predominantes sobre a induacutestria brasileira as em-presas de autopeccedilas foram na realidade a forccedila motriz para a consolidaccedilatildeo e o de-senvolvimento do setor automotivo () Na implantaccedilatildeo da induacutestria mas tambeacutem durante os anos 80 quando algumas empresas fornecedoras formaram carteacuteis as tendecircncias das induacutestrias foram em grande parte determinadas pelas firmas de au-topeccedilas Em outras palavras a produccedilatildeo de veiacuteculos no Brasil acabou gerando ca-deias de desenvolvimento e a sua natureza foi profundamente condicionada pelas empresas de autopeccedilas Por volta de 1951 algumas empresas de autopeccedilas perten-centes em sua maioria a imigrantes decidiram criar uma associaccedilatildeo industrial Um ano depois esta associaccedilatildeo transformar-se-ia no Sindicato Nacional da Induacutestria de peccedilas para Veiacuteculos Automotivos ndash Sindipeccedilas (p 134)

81

312 Relaccedilatildeo entre fornecedores de autopeccedilas e montadoras

A relaccedilatildeo entre as empresas de autopeccedilas e as montadoras tem apresentado uma gran-

de correspondecircncia com a transformaccedilatildeo na organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho Em outras pa-

lavras a produccedilatildeo de veiacuteculos no Brasil acabou gerando cadeias de desenvolvimento e a sua

natureza foi profundamente condicionada pelas empresas de autopeccedilas Neste sentido a capa-

cidade das autopeccedilas em absorver e assimilar as mudanccedilas na organizaccedilatildeo e gestatildeo do traba-

lho vem sendo fundamental para a adoccedilatildeo do padratildeo flexiacutevel e integrado conduzido pelas

montadoras notoriamente a partir da deacutecada de 1990

De acordo com Salerno num primeiro momento os fornecedores foram instados a fa-

zer entregas mais frequumlentes e em lotes menores numa tentativa de aproximaccedilatildeo de um just in

time Depois foram chamados a colaborar nos projetos de produto Daiacute foi um pulo passar ao

fornecimento de Subconjuntos ao inveacutes do fornecimento de uma seacuterie de peccedilas separadas que

seriam montadas pela montadora final Por um lado uma tentativa de reduccedilatildeo de custos da-

das as condiccedilotildees de trabalho e de salaacuterio em geral relativamente piores nas autopeccedilas por

outro lado uma tentativa de reduzir investimentos necessaacuterios das montadoras pois parte do

ferramental dispositivos equipamentos destinados agrave montagem satildeo agora de responsabilidade

do fornecedor ainda uma economia de espaccedilo fiacutesico e uma simplificaccedilatildeo da gestatildeo interna da

produccedilatildeo (SALERNO 1997 p 509)

Nos uacuteltimos anos outras mudanccedilas contribuiacuteram para o aumento da importacircncia do

setor de autopeccedilas dentro da produccedilatildeo industrial Posthuma (1997) afirma que

cada vez mais apenas os liacutederes mundiais de autopeccedilas tecircm os recursos tecnoloacutegi-cos e financeiros para atender as demandas para se tornarem fornecedores de pri-meira linha Essa tendecircncia favorece a consolidaccedilatildeo do setor de peccedilas que tradi-cionalmente sempre foi uma induacutestria pulverizada Nesse sentido a induacutestria de au-topeccedilas estaacute comeccedilando a assemelhar-se agrave induacutestria de montagem tornando-se uma induacutestria globalizada composta de grandes companhias transnacionais (p 400)

82

Em relaccedilatildeo agrave induacutestria brasileira o setor de autopeccedilas passou a viver uma situaccedilatildeo de

turbulecircncia que transformou a estrutura do setor A partir da liberaccedilatildeo comercial da vinda de

novas montadoras e de um novo surto de investimentos a induacutestria de autopeccedilas estaacute passan-

do por um processo de concentraccedilatildeo envolvendo a extinccedilatildeo de parcelas significativas de seus

integrantes E das suas cinzas estaacute surgindo hoje uma nova induacutestria de autopeccedilas compostas

basicamente por empresas de maior porte e capital estrangeiro (Posthuma 1997 p 390)

Essa autora afirma ainda que ao fornecer para os mercados de maior demanda tanto

no Brasil como no exterior estas empresas foram levadas a atualizar a qualidade e o design de

seus produtos e meacutetodos de produccedilatildeo procurando acompanhar os padrotildees internacionais

Dessa forma um grupo intermediaacuterio de firmas credenciou-se para as disputas em uma eco-

nomia aberta que estaacute sempre exigindo a melhoria dos meacutetodos de fabricaccedilatildeo de tecnologia e

de design (POSTHUMA 1997 p 392)

32 A FERRAMENTARIA

A escolha da aacuterea de ferramentaria como campo desta investigaccedilatildeo se justifica por as-

pectos que a colocam como um dos setores mais complexos da atividade industrial tanto pe-

las suas caracteriacutesticas teacutecnicas quanto pela sua dimensatildeo econocircmica e social Dentre as pe-

culiaridades da ferramentaria poderiacuteamos iniciar pela consideraccedilatildeo de que muito embora este

trabalho esteja vinculado ao campo da metalomecacircnica a ferramentaria subsidia tecnologica-

mente a concretizaccedilatildeo de projetos em quase todos os setores produtivos Eacute a partir das possi-

bilidades de construccedilatildeo da ferramentaria que satildeo definidos por exemplo o tamanho e a forma

geomeacutetrica de computadores oacuteculos remeacutedios lacircmpadas canetas talheres telefones carros

instrumentos ciruacutergicos componentes eletrocircnicos e uma seacuterie de outros produtos

83

A teacutecnica de ferramentaria permite a produccedilatildeo de peccedilas que possuem uma geometria

que combina vaacuterias formas Neste sentido uma questatildeo relevante em relaccedilatildeo agrave teacutecnica de fer-

ramentaria remete ao apelo comercial sobre a esteacutetica dos produtos No caso do automoacutevel

por exemplo eacute notoacuterio que um dos grandes chamativos das propagandas se dirige ao design

dos carros

Uma outra grande relevacircncia da aacuterea de ferramentaria para esta pesquisa se refere agrave

particularidade das relaccedilotildees de trabalho dentro deste setor e sobretudo a forma paradoxal de

como os saberes articulados agrave mecacircnica de precisatildeo2 portadores de tecnologia de ponta como

o CAD CAM e CNC3 parecem prescindir em muito de saberes produzidos mobilizados e

formalizados a partir de uma racionalidade natildeo-cientiacutefica caracterizada por intervenccedilotildees

ldquomanuaisrdquo dos ferramenteiros muitas vezes tidas como artesanais

A ferramentaria tradicionalmente figura como um setor diferenciado dentro da induacutes-

tria metaluacutergica cujo ldquonomerdquo exerce uma forte influecircncia no imaginaacuterio dos trabalhadores

metaluacutergicos4 bem como das proacuteprias chefias que fazem referecircncia agrave forte coesatildeo entre os

ferramenteiros e a grande auto-estima que eles demonstram por sua profissatildeo Talvez por isso

mesmo encontram-se aqui tambeacutem formas menos submissas de negociar situaccedilotildees cotidia-

nas com a gerecircncia Negro (1997) atribui aos ferramenteiros um papel especial no desenvol-

vimento do ldquonovo sindicalismordquo

() os ferramenteiros aparecem como empregados temperamentais dotados de um bolso hipersensiacutevel e cocircnscios da carecircncia que as empresas sentiam deles Enquan-to permaneceram apenas defensores de suas condiccedilotildees especiacuteficas bastante especi-ais diante da imensa maioria promoveram um tipo de sindicalismo baseado na de-fesa da dignidade do trabalho mas que ao mesmo tempo natildeo oferecia respostas para as demandas mais gerais existentes Um movimento onde natildeo cabiam todos Poreacutem foi esse um dos setores que manteve o sindicalismo vivo dentro das faacutebri-

2 De acordo com as normas ISO a mecacircnica de precisatildeo trabalha com ajustes abaixo de cinco centeacutesimos de miliacutemetro (NOVASKI 1994 p 3) 3 CAD ndash Computer Aided Design CAM ndash Computer Aided Manufacturing CNC ndash Controle Numeacuterico Compu-tadorizado (FARIA 1997 p 13) 4 Este proacuteprio pesquisador se recorda de que em certas situaccedilotildees de ldquoconflito no chatildeo de faacutebricardquo era comum surgirem falas como ldquoSe fosse laacute na ferramentaria eles ndash a chefia ndash natildeo fariam issordquo

84

cas nos seus anos iniciais e nos duros tempos de ditadura militar constituindo-se como estiacutemulo e escola por onde passaram ativistas de vaacuterios matizes (p 122)

Outros aspectos que reforccedilam o status do ferramenteiro dentro da faacutebrica satildeo a sua su-

perioridade salarial5 a reconhecida capacidade de trabalhar em mais de uma maacutequina opera-

triz e ainda a aproximaccedilatildeo do seu trabalho com a ideacuteia de arte6

321 Quem eacute e o que faz um ferramenteiro7

De uma forma simples poderiacuteamos definir como ferramentaria a teacutecnica de construir

ferramentas para obter peccedilas por meio de golpes de prensa que permitem cortar deformar ou

moldar um determinado material (ROSSI 1971 NAVARRO 1954)

O ferramenteiro eacute o profissional que constroacutei a ferramenta De acordo com a CBO ndash

Classificaccedilatildeo Brasileira de Ocupaccedilotildees a Onet ndash Ocuppation Information Network a Rome ndash

Reacutepertoire Opeacuterationnel des Meacutetiers et Emplois

Os trabalhadores da famiacutelia ocupacional dos ferramenteiros e afins estudam es-quemas e especificaccedilotildees para a construccedilatildeo de ferramentas e dispositivos conferin-do dimensotildees de montagem e planejando a sequumlecircncia de operaccedilotildees de construccedilatildeo Medem e marcam metais utilizando instrumentos de mediccedilatildeo tais como o microcirc-metro reloacutegio apalpador Operam maacutequinas ferramentas para usinar peccedilas Lixam e datildeo polimento em superfiacutecies e partes de ferramentas () Aplicam tratamento teacutermico em materiais e peccedilas Reparam ou modificam ferramentas e dispositivos utilizando ferramentas manuais ou maacutequinas ferramenta8

5 Segundo o hiperlink httpdnsenaibrrepertoacuterioferramenteiro e afinshtm a remuneraccedilatildeo meacutedia eacute de 106 salaacuterios miacutenimos De acordo com o Rais ndash Relatoacuterio Anual de Relaccedilotildees Sociais do Ministeacuterio do Trabalho e Emprego de 1999 cerca de 21 dos ferramenteiros ganham entre dez e quinze salaacuterios miacutenimos 18 ganham entre sete e dez salaacuterios miacutenimos 12 ganham entre quinze e vinte salaacuterios miacutenimos 75 ganham mais do que vinte salaacuterios miacutenimos e os demais ganham menos de sete salaacuterios miacutenimos 6 Essa ideacuteia possui uma certa dimensatildeo histoacuterica No dicionaacuterio FERREIRA (1986) dentre outras definiccedilotildees a arte eacute apresentada como ldquo[Do lat arte] sf Capacidade que tem o homem de pocircr em praacutetica uma ideacuteia valendo-se da faculdade de dominar a mateacuteria Jaacute a induacutestria pode ser entendida segundo Ferreira (1986 p 940) como ldquo[Do lat Industria atividade] sf 1 ndash Destreza ou arte na execuccedilatildeo de um trabalho manual aptidatildeo periacutecia () 3 ndash Fig Invenccedilatildeo astuacutecia engenho (p 176) 7 Neste trabalho nos limitaremos a uma breve apresentaccedilatildeo de uma parte da ferramentaria que trabalha com chapas metaacutelicas pois trata-se de um atividade muito ampla que trabalha com outros processos injeccedilatildeo de plaacutes-ticos fundiccedilatildeo e outros 8 Ver hiperlink httpdnsenaibrrepertoacuterioferramenteiro e afinshtm Onde aponta-se tambeacutem que de acordo com RAIS Registro Anual de Informaccedilotildees Sociais do Ministeacuterio do Trabalho e Emprego no ano de 2000 a

85

A apresentaccedilatildeo formal das qualificaccedilotildees prescritas do ferramenteiro embora demons-

tre a enorme gama de saberes desta atividade natildeo eacute suficiente para revelar a complexidade

desta profissatildeo Neste sentido eacute necessaacuterio esclarecer que o ferramenteiro natildeo faz uma peccedila

ele constroacutei uma ferramenta E o que eacute uma ferramenta Na verdade uma ferramenta eacute um

conjunto de peccedilas um mecanismo com vaacuterias partes moacuteveis e fixas que quando postas em

movimento produzem peccedilas que satildeo os produtos finais Para abstrairmos a composiccedilatildeo de

uma ferramenta apresentaremos um desenho de uma ferramenta bastante simples

Figura 1 Ferramenta vista em ldquo3Drdquo Nomenclatura 1 Espiga 2 Cabeccedilote 3 Placa de choque 4 Porta-punccedilatildeo 5 Punccedilatildeo 6 Colunas de guia 7 Buchas 8 Pinos de fixaccedilatildeo 9 Parafusos 10 Extrator 11 Guias da chapa 12 Matriz e 13 Base inferior

famiacutelia ocupacional dos ferramenteiros e afins tinha 239 com 10 anos ou mais de viacutenculo empregatiacutecio 175 entre 5 e 99 anos de viacutenculo e 129 entre 4 e 9 anos

86

Figura 2 A mesma ferramenta da Figura 1 vista em plano bidimensional Nomenclatura 1 Espiga 2 Cabeccedilote 3 Placa de choque 4 Porta-punccedilatildeo 5 Punccedilatildeo 6 Colunas de guia 7 Buchas 8 Pinos de fixaccedilatildeo 9 Parafusos 10 Extrator 11 Guias da chapa 12 Matriz e 13 Base inferior

A qualidade de um determinado ldquoproduto finalrdquo depende em grande parte de um per-

feito ajuste em centeacutesimo de miliacutemetros entre as partes moacuteveis e as partes fixas Portanto natildeo

eacute um exagero afirmar que os ferramenteiros constroem maacutequinas complexas O fato de que a

maioria dos componentes de uma ferramenta possuem medidas tiacutepicas da ldquomecacircnica de preci-

satildeordquo e ainda que os materiais de uma ferramenta satildeo metais muito especiais com altiacutessima

dureza jaacute seria suficiente para alccedilar este trabalho a um alto niacutevel de dificuldade Todavia o

processo de trabalho na ferramentaria apresenta ainda outras questotildees que exigem do ferra-

menteiro saberes muito aleacutem daqueles necessaacuterios para fabricar uma peccedila com toleracircncia em

centeacutesimos de miliacutemetro Ou seja se de um lado o trabalho prescrito na ferramentaria por si

soacute jaacute faz um apelo a um grande nuacutemero de saberes por outro lado satildeo muitos os fatores do

87

trabalho real que solicitam do ferramenteiro saberes de outra ordem muitas das vezes vincu-

lados agrave sua experiecircncia os chamados saberes taacutecitos

322 A Excepcionalidade do ferramenteiro breve nota sobre um trabalho muito aleacutem

das prescriccedilotildees

Diferentemente das premissas tayloristas a organizaccedilatildeo do trabalho dentro de uma fer-

ramentaria quase sempre exigiu do ferramenteiro uma participaccedilatildeo em todas as fases do pro-

cesso de trabalho dado que uma ferramenta apresenta um grande nuacutemero de etapas para a sua

construccedilatildeo A obtenccedilatildeo de um bom produto final depende em boa medida do domiacutenio de

todas as fases da construccedilatildeo por parte dos ferramenteiros uma vez que essa ldquovisatildeo do todordquo eacute

fundamental para antever os possiacuteveis problemas em cada fase de construccedilatildeo da ferramenta

que natildeo foram apontados pelo trabalho prescrito neste caso o desenho da ferramenta Dessa

forma o apelo a um excepcional conjunto de saberes fez da ferramentaria um terreno sem

muita fecundidade para a fragmentaccedilatildeo do trabalho

Poderiacuteamos dizer que agrave distacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho real na ferra-

mentaria comeccedila na elaboraccedilatildeo do projeto de uma ferramenta dado que um mesmo produto

pode ser obtido por projetos de ferramentas totalmente diferentes Essa possibilidade que eacute

muito comum dentro da ferramentaria pode ocorrer de um lado por questotildees objetivas como

maacutequinas disponiacuteveis e recursos de informaacutetica e por outro lado por aspectos subjetivos

como experiecircncia dos projetistas9

Do ponto de vista da construccedilatildeo mecacircnica da ferramenta os ferramenteiros atraveacutes

dos seus saberes taacutecitos podem submeter o trabalho prescrito aos condicionantes do trabalho

real antes mesmo do iniacutecio da construccedilatildeo ldquofiacutesicardquo ou seja antes de construir ou montar as 9 Neste caso a experiecircncia natildeo eacute tida somente pelas situaccedilotildees vivenciadas pelo projetista mas por exemplo a origem da ferramentaria com a qual ele trabalhou pois franceses japoneses e espanhoacuteis apresentam estilos dife-rentes

88

peccedilas da ferramenta Tomemos por exemplo o caso da leitura e interpretaccedilatildeo que o ferra-

menteiro faz do desenho natildeo soacute por ser a primeira fase de construccedilatildeo da ferramenta mas

tambeacutem pelas possibilidades de antecipar falhas no produto final Trata-se em uma primeira

anaacutelise de um saber formal que pode ser aprendido na escola Entretanto a experiecircncia do

ferramenteiro pode potencializar a sua capacidade de ler e interpretar desenhos a ponto de lhe

permitir compreender e superar tecnicamente alguns equiacutevocos no projeto da ferramenta

Os saberes taacutecitos que os ferramenteiros usam na leitura de desenho satildeo de tal sorte

vinculados agrave sua experiecircncia que buscamos apresentaacute-los em trecircs exemplos Primeiro haacute que

se dizer que o desenho de uma ferramenta de grande porte pode apresentar quinhentas ou

mais peccedilas diferentes o que inviabiliza que haja uma folha de desenho por peccedila Dessa forma

a ferramenta eacute desenhada apresentando as peccedilas em conjuntos podendo ter aproximadamente

sessenta folhas Diante desta situaccedilatildeo o ferramenteiro ao ler o desenho deve interpretar as

medidas das peccedilas ldquoisoladamenterdquo de seu conjunto Natildeo eacute raro que nesta fase do processo de

trabalho ocorram descobertas de erros na prescriccedilatildeo como medidas que natildeo se encontram

furos fora de lugar Nesta fase da leitura do desenho a experiecircncia do ferramenteiro lhe per-

mite se localizar ldquodentro do projetordquo forma pela qual ele associa uma determinada peccedila com

o estaacutegio em que estaacute a construccedilatildeo da ferramenta ou seja nesse primeiro caso o ferramentei-

ro faz muito mais do que ldquoler um desenhordquo ele se depara com um conjunto de peccedilas e apre-

ende uma delas ldquopor vezrdquo com todas as suas implicaccedilotildees para a construccedilatildeo da ferramenta

Segundo trata-se de um saber importantiacutessimo para antecipar eventuais problemas Ao

ler o desenho o ferramenteiro busca ldquovisualizarrdquo mentalmente a montagem das peccedilas em uma

projeccedilatildeo tridimensional ou seja paradoxalmente ocorre um processo inverso ao primeiro

exemplo Neste segundo caso a experiecircncia do ferramenteiro pode lhe permitir ao ler um

desenho compreender ldquotodardquo a ferramenta por meio de uma articulaccedilatildeo entre as vaacuterias inter-

pretaccedilotildees das ldquopartesrdquo da ferramenta A dificuldade em se desenvolver este saber taacutecito se

89

apresenta pelo fato de que o desenho eacute elaborado em uma forma planificada ou seja o ferra-

menteiro enxerga bidimensionalmente e tem que ldquovisualizarrdquo tridimensionalmente Uma das

contribuiccedilotildees desta capacidade eacute que neste momento o ferramenteiro comeccedila a associar a

ferramenta em construccedilatildeo com o produto final

Terceiro eacute um saber taacutecito que remete a uma complexa articulaccedilatildeo de saberes que o-

corre normalmente com ferramenteiros mais experientes que possuem uma refinadiacutessima

capacidade de ler um desenho por meio da qual conseguem ldquovisualizarrdquo a fabricaccedilatildeo de um

determinado produto atraveacutes de uma ldquosimulaccedilatildeo mental da movimentaccedilatildeordquo da ferramenta

que corresponde tambeacutem agrave movimentaccedilatildeo de uma seacuterie de componentes mecacircnicos Neste

caso a mobilizaccedilatildeo de saberes taacutecitos permite ao ferramenteiro levar um entendimento sobre

algo estaacutetico o desenho para uma situaccedilatildeo dinacircmica formalizada por meio de uma extraor-

dinaacuteria noccedilatildeo de ldquocinemaacuteticardquo10

Haacute ainda outros aspectos do processo que fazem emergir o saber taacutecito do ferramen-

teiro A espetacular capacidade cinemaacutetica dos ferramenteiros em ldquosimular mentalmente a

movimentaccedilatildeordquo da ferramenta pode ocorrer tambeacutem mediante a observaccedilatildeo da movimenta-

ccedilatildeo fiacutesica da ferramenta ou mesmo somente analisando-se o produto final ou seja sem o

desenho Nestas situaccedilotildees os saberes taacutecitos dos ferramenteiros lhe permitem interpretar al-

gumas variaacuteveis de difiacutecil mensuraccedilatildeo cientiacutefica como por exemplo ldquoo desgaste das prensas

ou a resistecircncia de materiaisrdquo11

Por fim um outro caso no qual o ferramenteiro se vale de seu saber taacutecito refere-se

aos limites teacutecnicos de maacutequinas avanccediladiacutessimas que agraves vezes natildeo conseguem por exemplo

alcanccedilar um determinado grau de acabamento ou mesmo medidas como as de raios pequenos

10 De acordo com FERREIRA (1986) Cinemaacutetica pode ser tomada como um campo da fiacutesica que se dedica ao estudo dos movimentos sem se preocupar com as forccedilas que o colocam em movimento (p 406) 11 Satildeo vaacuterios e frequumlentes os fenocircmenos que se relacionam ao comportamento dos accedilos e que escapam de uma padronizaccedilatildeo cientiacutefica Situaccedilotildees como o retorno de chapa tambeacutem chamado de springback soacute satildeo soluciona-das por ferramenteiros bem experientes uma vez que os caacutelculos apenas aproximam e mesmo o uso de avanccedila-dos softwares natildeo garante a prescriccedilatildeo das medidas e de geometria necessaacuterias para a obtenccedilatildeo de peccedilas confor-me o desejado

90

combinados Nestas situaccedilotildees apela-se para a destreza do ferramenteiro que lanccedila matildeo de

habilidades corporais desenvolvidas ao longo de sua vida como o tato e a visatildeo como vere-

mos no capiacutetulo seguinte

33 O GRUPO B E A EMPRESA T

O grupo empresarial que abriga a Empresa T tambeacutem dirige outras trecircs empresas to-

das voltadas para o setor de autopeccedilas As atividades que deram origem a esse grupo tiveram

o seu ponto de partida com a criaccedilatildeo de uma serralheria em 1974 que sob a iniciativa do seu

presidente um italiano ldquocarpinteiro metaacutelicordquo12 se dedicava agrave produccedilatildeo de esquadrias metaacuteli-

cas

A partir de 1980 inicia-se uma grande virada nas atividades desse grupo quando a sua

inserccedilatildeo como fornecedora para a Fiat Automoacuteveis permitiu-lhe uma orientaccedilatildeo rumo ao setor

de autopeccedilas especialmente para o trabalho de ferramentaria Instalando-se no canteiro de

obras da Fiat produzem inicialmente o quebra-vento para o automoacutevel ldquoFiat 147rdquo Em 1986

a empresa opta por um projeto de crescimento na aacuterea de ferramentaria A empresa passou a

ter o seu proacuteprio galpatildeo na regiatildeo metropolitana de Belo Horizonte aleacutem de fazer um signifi-

cativo investimento em compras de maacutequinas-ferramentas Isto lhe possibilitou ampliar a sua

produccedilatildeo fornecendo para a Fiat Automoacuteveis outras peccedilas como defletores de calor traves-

sas e bagageiros A partir desse novo momento deu-se um grande impulso por parte da em-

presa para ampliar o seu know how em ferramentaria

Agrave medida que as atividades de ferramentaria dessa empresa foram ganhando espaccedilo no

setor de autopeccedilas iniciou-se um projeto de expansatildeo que viabilizasse a incorporaccedilatildeo de no-

vas demandas de serviccedilo do setor automotivo como a montagem de conjuntos soldados de- 12 Segundo alguns trabalhadores mais antigos na empresa eacute assim que este senhor se refere a si mesmo

91

senho e projetos e outras atividades Dessa forma foi organizado um grupo13 de serviccedilos au-

tomotivos subdivididos em empresas que trabalham com ferramenaria design e autopeccedilas

com filiais em Minas Gerais Paranaacute e escritoacuterios em Satildeo Paulo e na Itaacutelia

O desenvolvimento das empresas que formam o grupo B muito embora a maior parte

de suas peccedilas fossem dirigidas para a produccedilatildeo da Fiat Automoacuteveis comeccedila a se vincular

com as demandas de outras montadoras Neste sentido a produccedilatildeo das empresas do grupo B

ganha cada vez mais sofisticaccedilatildeo teacutecnica bem como ao aumentar o volume de sua produ-

ccedilatildeo passaram a ter tambeacutem um aumento significativo no seu quadro de funcionaacuterios14

Atualmente o grupo B fornece peccedilas para as seguintes montadoras GM Mercedes

Fiat Nissam e Peugeot Aleacutem do fornecimento de peccedilas de acordo com just in time as empre-

sas do grupo ldquoBrdquo desenvolvem pesquisa e projetos sobre o leiaute de produccedilatildeo linhas de

montagem e soldagem desenvolvem e constroem protoacutetipos De acordo com o balanccedilo anual

da Gazeta Mercantil (2003)15 o grupo ldquoBrdquo eacute o quarto maior entre as autopeccedilas brasileiras

Desde 1997 o grupo B exporta suas peccedilas referentes aos carros Paacutelio e Uno para unidades da

Fiat na Argentina Turquia e Polocircnia

331 As empresas do grupo B

1) Empresa 1 Localiza-se no Centro Industrial de Contagem na grande Belo Horizon-

te Trabalha com produccedilatildeo de defletores de calor e bagageiros Possui 364 funcionaacuterios

13 Noacutes abordaremos como o grupo ldquoBrdquo 14 De acordo com vaacuterias pesquisas podemos inferir que a expansatildeo do grupo ldquoBrdquo se deu de forma articulada ao processo de reestruturaccedilatildeo produtiva promovida pelas montadoras em geral especialmente a Fiat Automoacuteveis Segundo POSTHUMA (1997) ldquoAs montadoras estatildeo diminuindo o nuacutemero de fornecedores com os quais man-tecircm um contato direto orientando-se para uma relaccedilatildeo com um grupo seleto com base em contratos mais estaacute-veis e na cooperaccedilatildeo nas aacutereas de projeto e desenvolvimento de novos produtosrdquo (p 397) Ainda segundo essa pesquisadora ldquoEm alguns casos as montadoras desenvolveram programas para intervir e ajudar os fornecedores a melhorar a sua qualidade e a modernizar seus sistemas de manufaturardquo (p 400) 15 Balanccedilo Anual da Gazeta Mercantil Satildeo Paulo 2003

92

2) Empresa 2 Localiza-se tambeacutem em Contagem Trabalha com a produccedilatildeo de es-

tampados e conjuntos soldados Possui 364 funcionaacuterios

3) Empresa 3 Situa-se em Betim na Grande Belo Horizonte Trabalha com a produ-

ccedilatildeo de suspensatildeo dianteira eixo traseiro e tanques de combustiacutevel Possui 488 funcionaacuterios

4) Empresa T Localiza-se em Belo Horizonte e Contagem Eacute a ferramentaria do gru-

po trabalha com projetos e construccedilatildeo de ferramentas dispositivos de controle e montagem

Possui 232 funcionaacuterios

332 A Empresa T

A Empresa T eacute a ferramentaria do grupo B Localiza-se em Belo Horizonte e em Con-

tagem Trabalha com projetos e com a construccedilatildeo de ferramentas de estampagem e dispositi-

vos de controle e montagem A unidade de Belo Horizonte vem se inscrevendo cada vez me-

nos no processo de construccedilatildeo direta da ferramenta e se dedicando agraves chamadas usinagem ldquo2

Drdquo16 ao desenvolvimento de protoacutetipos junto aos clientes para uma ldquofuturardquo construccedilatildeo de

ferramenta A faacutebrica de Contagem responde pela maior parte de construccedilatildeo da ferramenta

uma vez que nesta unidade encontram-se a chamada usinagem ldquo3 Drdquo17 a montagem os ajus-

te da ferramenta Deve ser considerado ainda o fato de que nesta mesma planta encontra-se

tambeacutem a linha de produccedilatildeo de peccedilas conformadas pela ferramenta o que facilita o acompa-

nhamento pelo pessoal da ferramentaria sobre o ajuste final das ferramentas conhecido como

try-out

16 Segundo FERRARESI (1977) usinagem eacute uma operaccedilatildeo que confere a peccedila formas dimensotildees e acabamento () Esses trecircs itens satildeo obtidos por meio da retirada de material Jaacute a usinagem ldquo2 Drdquo eacute o trabalho que do ponto de vista da linguagem usada dentro da Empresa T corresponde agrave parte da ferramenta que natildeo tem definiraacute as formas e as medidas do produto Uma parte desse trabalho eacute terceirizada 17 Jaacute a usinagem ldquo3 Drdquo eacute exatamente aquela que iraacute gerar o produto tal como ele deve ser Esse processo tam-beacutem eacute chamado de coacutepia

93

Ainda sobre a usinagem eacute importante salientar que a empresa T dispotildee de modernas

maacutequinas operatrizes com tecnologia de ldquoCNCrdquo comandadas a partir de um sofisticado siste-

ma de CADCAMD Um outro recurso tecnoloacutegico de ponta disponiacutevel para a engenharia da

Empresa T eacute um software que simula o trabalho da ferramenta ou seja trata-se de um pro-

grama que mediante as informaccedilotildees da prescriccedilatildeo apresenta as provaacuteveis ocorrecircncias no

trabalho da ferramenta De acordo com a gerecircncia dessa empresa a estrutura tecnoloacutegica da

Empresa T eacute de certa forma uma imposiccedilatildeo posta pelo tipo de trabalho que a empresa execu-

ta e ainda daqueles trabalhos que ela pretende passar a executar Neste sentido por exemplo

a gerecircncia e os trabalhadores do ldquochatildeo de faacutebricardquo por mais de uma vez nos falaram a respei-

to da construccedilatildeo de uma ferramenta para a lateral de um carro a primeira a ser feita no Brasil

Todavia os trabalhadores quando se referiam a essa ferramenta natildeo faziam apologia agrave tecno-

logia das maacutequinas operatizes e agraves vezes pelo contraacuterio enfatizavam outros aspectos Um

ferramenteiro por exemplo fez o seguinte comentaacuterio ldquoAiacute oh Uma ferramenta difiacutecil igual

essa aqui o acabamento tem que ser dado na matildeo eacute na matildeo mesmo Eles falam que a maacutequi-

na vai substituir o homem eu natildeo acredito taacute vendo esse caso aqui a maacutequina eacute uma das me-

lhores e mesmo assim deixa certas marquinhasrdquo

Dos 232 funcionaacuterios da Empresa T cerca de 80 satildeo ferramenteiros classificados pro-

gressivamente como ferramenteiro aprendiz I II e III De acordo com o pessoal do RH a

contrataccedilatildeo de um ferramenteiro do niacutevel II e principalmente do niacutevel III eacute muito difiacutecil po-

dendo demorar meses Essa dificuldade pode ser percebida na fala dos ferramenteiros Veja-

mos o depoimento de um deles ldquoO ferramenteiro III vamos dizer assim eacute um ferramenteiro

que consegue pegar o projeto construir a ferramenta sem grandes problemas sem precisar de

toda hora ficar consultando o seu superior que seria o mestre Ele consegue sozinho tocar

uma ferramentardquo

94

333 A organizaccedilatildeo do trabalho na Empresa T

De uma forma geral como jaacute foi afirmado anteriormente o processo de trabalho de

uma ferramentaria apresenta caracteriacutesticas que favorecem pouco a divisatildeo do trabalho ou

pelo menos a divisatildeo extrema que foi preconizada pelo taylorismo A organizaccedilatildeo do trabalho

na Empresa T reflete essa caracteriacutestica de forma ambiacutegua pois ao mesmo tempo em que a

engenharia projeta uma prescriccedilatildeo do processo de trabalho que integre o ferramenteiro em boa

parte do processo de construccedilatildeo da ferramenta por outro lado ao recorrer agraves maacutequinas sofisti-

cadas essa ferramentaria tal como outras ferramentarias18 passou a retirar formalmente das

matildeos dos ferramenteiros uma parte preciosa da construccedilatildeo mecacircnica a usinagem das peccedilas

agora facilitadas pela introduccedilatildeo das maacutequinas de tipo CNC Essa ldquosaiacutedardquo do ferramenteiro de

parte da construccedilatildeo da ferramenta eacute assimilada com uma certa lamentaccedilatildeo por parte dos fer-

ramenteiros Em uma conversa durante o periacuteodo de observaccedilatildeo nessa empresa um dos fer-

ramenteiros nos disse que ldquoquando a gente trabalha em gatinho a gente se sente ferramenteiro

de verdade laacute a gente faz de tudo pega no torno na retiacutefica acaba que vocecirc usa a sua inteli-

gecircncia toda horardquo19 Um outro depoente faz o seguinte comentaacuterio

Um ferramenteiro completo eacute exatamente aquele que passa por todas as etapas de construccedilatildeo da ferramenta () Antigamente vou dar um exemplo para vocecirc um ferramenteiro fazia de tudo ele ia no torno na frezadora e usinava a peccedila dele ele fazia a montagem e ele ia para debaixo da prensa tirar o produto final Entatildeo esse sim eacute um ferramenteiro completo Hoje pelo volume de serviccedilo e pelo recurso que a gente tem um ferramenteiro natildeo passa por todas as etapas ele tinha que passar mas natildeo passa (Mestre de ferramentaria)

Do ponto de vista formal qual seja da organizaccedilatildeo do trabalho o trabalho prescrito

nessa ferramentaria natildeo eacute menos complexo do que as caracteriacutesticas dessa atividade Todavia

18 O perfil da empresas prestadoras de serviccedilos de ferramentaria In Maacutequinas e Metais ano XXXVII n 424 Aranda Editora maio 2001 19 O termo ldquogatinhardquo eacute um diminutivo do termo ldquogatardquo que na linguagem do peatildeo corresponde agrave empresa Por extensatildeo normalmente os trabalhadores de referem agraves pequenas oficinas como ldquogatinhardquo

95

antes de discutirmos a prescriccedilatildeo do trabalho nessa ferramentaria entendemos ser importante

apresentar o conjunto dessa prescriccedilatildeo por meio de uma breve perspectiva do processo de

construccedilatildeo de uma ferramenta

334 A ferramentaria como ela eacute o trabalho prescrito e o trabalho real na

ferramentaria

Ao elegermos a distacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho real como ponto de

partida para discutir os saberes taacutecitos dos ferramenteiros optamos tambeacutem por um recorte

sobre a noccedilatildeo de trabalho prescrito na empresa pesquisada pelo qual desconsideramos uma

fase desse processo onde o cliente aponta para o fabricante as suas exigecircncias e necessidades

em relaccedilatildeo agrave ferramenta encomendada o que poderia caracterizar uma prescriccedilatildeo das

montadoras para a Empresa T Dessa forma a noccedilatildeo de trabalho prescrito explorada nesta

pesquisa apareceraacute fortemente marcada pelas situaccedilotildees que remetem agrave construccedilatildeo material da

ferramenta propriamente dita

1) Usinagem ldquo2 Drdquo

A usinagem ldquo2 Drsquorsquo eacute a primeira grande etapa do processo de construccedilatildeo da ferramenta

na Empresa T cujo principal objetivo eacute retirar a parte bruta da ferramenta ateacute entatildeo apenas

um material fundido e dar-lhe uma medida de relativa precisatildeo que sirva de referecircncia para as

etapas seguintes do processo de construccedilatildeo da ferramenta Nesta fase a principal prescriccedilatildeo eacute

posta pelo desenho mecacircnico no dizer de alguns trabalhadores ou no projeto da ferramenta

como dizem outros Sobre este tipo de trabalho prescrito eacute importante esclarecer que dada a

organizaccedilatildeo do trabalho da Empresa T ela natildeo envolve muito os ferramenteiros pois as

medidas deixadas pela usinagem ldquo2 Drdquo seratildeo alteradas posteriormente Daiacute o principal

96

motivo de natildeo abordamos com profundidade as caracteriacutesticas desta parte do processo de

construccedilatildeo da ferramenta Entretanto na usinagem ldquo2Drdquo o saber taacutecito do trabalhador se faz

necessaacuterio tendo em vista as limitaccedilotildees do trabalho prescrito perante o trabalho real De uma

forma mais contundente e complexa estas limitaccedilotildees estaratildeo presentes nas outras fases de

construccedilatildeo da ferramenta o que gera a necessidade de os trabalhadores realizarem um grande

esforccedilo para compreender o trabalho prescrito adaptar essas prescriccedilotildees agraves condiccedilotildees do

trabalho real e quando for o caso identificar os erros da prescriccedilatildeo Trata-se de situaccedilotildees em

que os operadores das maacutequinas operatrizes frezadores e mandrilhadores buscam usar os seus

saberes taacutecitos para compreender mais rapidamente a prescriccedilatildeo isto eacute o desenho mecacircnico

Os saberes taacutecitos dos operadores de usnagem ldquo2 Drsquorsquo podem ser mobilizados ainda porque

que o trabalho prescrito natildeo considera aspectos como os desgastes das maacutequinas operatrizes e

ferramentas ou mesmo a temperatura ambiente que pode influenciar o comportamento fiacutesico

dos metais tais como a dilataccedilatildeo e o atrito20

2) Leiaute

Apoacutes o trabalho de usinagem ldquo2Drdquo daacute-se iniacutecio o chamado trabalho de leiaute que

basicamente eacute um trabalho de verificaccedilatildeo das medidas trabalhadas pela usinagem ldquo2Drdquo bem

como uma orientaccedilatildeo por meio de marcaccedilotildees21 para os proacuteximos passos de construccedilatildeo da

ferramenta O trabalho de leiaute tem tambeacutem como principal prescriccedilatildeo o desenho ou o

projeto da ferramenta e tal como na usinagem ldquo2 Drdquo solicita dos trabalhadores o uso de

saberes taacutecitos para interpretaacute-lo Neste sentido o trabalho real no leiaute se inscreve por

meio do saber taacutecito dos ferramenteiros dado que a prescriccedilatildeo ainda que correta eacute

dependente da experiecircncia dos ferramenteiros que identificam a localizaccedilatildeo de determinadas

20 A dilataccedilatildeo de um material pode por exemplo dificultar a mediccedilatildeo de uma peccedila principalmente se esta tiver medidas com precisatildeo em centeacutesimos de miliacutemetros Jaacute a relaccedilatildeo entre temperatura ambiente e o atrito pode exercer uma influecircncia no corte dos metais 21 Estas marcas satildeo escritas com pinceacuteis especiais delimitando por exemplo que um furo deve estar a 50 miliacute-metros da lateral direita e agrave 1000 mm do centro da ferramenta

97

medidas que agraves vezes natildeo satildeo indicadas facilmente no desenho Segundo o depoimento de um

ferramenteiro

Um projeto ruim eacute aquele projeto que igual eu te falei que tem duplicidade de coacutepias uma medida numa folha na outra folha tem outra medida projeto que natildeo apresenta muitos detalhes quando eu falo muitos detalhes vocecirc natildeo tem muitas vistas o projetista desenhou aquilo designou uma quantidade de vistas mas quanto mais ele colocar mais facilidade tem o ferramenteiro de enxergar

O projeto da ferramenta ateacute o momento em que os ferramenteiros fazem o leiaute eacute

uma prescriccedilatildeo natildeo mediada pouco interpretada ou quase ldquovirgemrdquo Neste sentido eacute possiacutevel

afirmar que a partir desta fase do processo de trabalho se evidencia mais ainda a importacircncia

do trabalho real e dos saberes taacutecitos na ferramentaria atraveacutes do leiaute feito pelos

ferramenteiros Embora o projeto da ferramenta continue sendo muito importante as medidas

indicadas pelo leiaute passam tambeacutem a orientar a construccedilatildeo da ferramenta Portanto a

partir do leiaute feito pelos ferramenteiros eacute gerada uma prescriccedilatildeo paralela e complementar

ao projeto da ferramenta especialmente para os trabalhos de preacute-montagem e de usinagem

ldquo3Drdquo

3) Preacute-montagem

O trabalho de preacute-montagem eacute a fase de construccedilatildeo da ferramenta onde de fato os

ferramenteiros usam os seus saberes taacutecitos tanto para interpretar a prescriccedilatildeo posta pelo

desenho da ferramenta ou pelo proacuteprio leiaute quanto para fazer materialmente o seu

trabalho ou seja trabalhar com as peccedilas e os equipamentos que constituiratildeo a ferramenta

Logo a partir do trabalho de preacute-montagem a distacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho

real torna-se mais complexa pois aleacutem das possibilidades de equiacutevocos nas interpretaccedilotildees do

que o desenho prescreve e o que de fato eacute feito nesta fase temos ainda um aumento dos

98

imprevistos de ordem material dado pelos meios fiacutesicos com os quais satildeo realizadas as

atividades de preacute-montagem

No caso da preacute-montagem os limites da prescriccedilatildeo perante o trabalho real satildeo postos

pelos meios fiacutesicos da seguinte forma as usinagens apesar do aparato tecnoloacutegico das

maacutequinas natildeo garantem uma precisatildeo do trabalho necessaacuterio em uma ferramenta Daiacute que

apesar do trabalho prescrito indicar atraveacutes do desenho as medidas das peccedilas ou mesmo

alguns instrumentos que podem controlar este trabalho a precisatildeo nos ajustes de centeacutesimos

de miliacutemetros soacute eacute obtida de forma manual pelos ferramenteiros Neste caso eles proacuteprios tecircm

que superar a prescriccedilatildeo do desenho da ferramenta no que se refere agrave natildeo precisatildeo das

maacutequinas e ainda agrave ausecircncia de uma prescriccedilatildeo sobre por exemplo qual pressatildeo exercer

com as matildeos sobre a peccedila que eacute objeto de trabalho ou como usar a visatildeo e o tato para

localizar a parte a ser mais trabalhada e ateacute mesmo como manipular o que foi disponibilizado

pela prescriccedilatildeo para controlar este trabalho como por exemplo as chamadas pastastintas de

estecagem22 Observamos que essa distacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho real na

empresa T aleacutem de ser conhecida pelos ferramenteiros eacute tambeacutem objeto de reflexatildeo sobre o

seu trabalho Um dos depoimentos explicita de forma exemplar essa possibilidade

Um vez aqui aconteceu o seguinte o pessoal laacute da programaccedilatildeo passou para o projeto que o tempo gasto na operaccedilatildeo de estecagem tinha de ser de mais ou menos uma hora Aiacute noacutes chamamos o nosso mestre que concordou com a gente que era pouco tempo e foi reclamar laacute na engenharia Eu soacute lembro que um rapaz laacute um teacutecnico falou que natildeo deveria ser um trabalho muito demorado porque era pouco material para ser retirado toda estecagem normalmente se retira alguns centeacutesimos ou no maacuteximo alguns deacutecimos de miliacutemetro Entatildeo um dos nossos chefes trouxe o rapaz para uma bancada e pediu para ele realizar o trabalho de ldquouma horardquo Esse cara ficou muitos dias e natildeo conseguiu estecar nem uma superfiacutecie Aiacute todos os ferramenteiros falaram o que noacutes demoramos trecircs ou quatro horas e fazemos bem feito natildeo foi feito em cinquumlenta horas (Ferramenteiro)

22 Em relaccedilatildeo a estecagem natildeo encontramos nenhuma definiccedilatildeo formalizada Entre os ferramenteiros a esteca-gem significa um trabalho de ajuste manual onde os ferramenteiros buscam deixar uma superfiacutecie plana com precisatildeo de centeacutesimos de miliacutemetro a qual natildeo eacute viabilizada por meio das maacutequinas mesmo as de CNC

99

4) Usinagem ldquo3 Drdquo

Apoacutes a preacute-montagem o processo de construccedilatildeo da ferramenta se concentra no

trabalho de usinagem de ldquo3drsquorsquo Nesta fase a ferramenta passa a ter as formas e as medidas

proacuteximas agravequelas que devem ter o produto final Embora por uma lado a usinagem dentro da

Empresa T seja de responsabilidade dos operadores das maacutequinas CNC por outro lado o tra-

balho prescrito por natildeo ser totalmente capaz de orientar essa atividade solicita uma parti-

cipaccedilatildeo do saber taacutecito dos ferramenteiros O proacuteprio leiaute realizado pelos ferramenteiros jaacute

citado anteriormente eacute uma referecircncia para a usinagem de ldquo3Drdquo uma vez que por meio do

leiaute estatildeo identificados algumas medidas de difiacutecil interpretaccedilatildeo dentro do desenho A

inserccedilatildeo de saberes taacutecitos dos ferramenteiros nesta fase menos do que sinalizar um natildeo saber

dos operadores CNC expressa a dimensatildeo do trabalho real na ferramentaria O ferramenteiro

por conhecer todo o processo de construccedilatildeo e funcionamento da ferramenta consegue abstrair

a prescriccedilatildeo neste caso o desenho com mais rapidez e ainda identificar a relaccedilatildeo da parte

usinada com o produto que seraacute produzido pela ferramenta

Dessa forma um dos limites da prescriccedilatildeo estaacute intriacutenseco agrave proacutepria formalizaccedilatildeo do

desenho pois se o trabalho de usinagem de ldquo3Drdquo desenvolve-se sobre uma ferramenta em seu

conjunto portanto portadora de vaacuterias peccedilas o desenho natildeo poderia apresentar uma ou outra

parte isolada de toda a ferramenta A usinagem ldquo3 Drdquo revela que os limites do trabalho

prescrito podem ser dados pela sua proacutepria forma qual seja um desenho sempre incompleto

onde se aponta como teoricamente deve ser construiacuteda a ferramenta Jaacute o ferramenteiro

conhecedor que eacute do trabalho real pode abstrair das partes para o todo ou do todo para as

partes do passado para o presente ou do presente para o futuro Enfim o ferramenteiro a

partir de sua experiecircncia consegue ver uma ferramenta aleacutem da que estaacute explicitada no

desenho

100

e) Acabamento

Apoacutes a usinagem ldquo3Drdquo a ferramenta retorna paras as bancadas da ferramentaria para

ser iniciado o trabalho de acabamento Nesta fase os ferramenteiros a partir do que natildeo foi

possiacutevel fazer na usinagem ldquo3 Drsquorsquo buscam definir as medidas as formas e o acabamento mais

proacuteximos do produto final Nesta parte do processo de trabalho o trabalho prescrito pode ser

tomado pelo desenho e ainda pela indicaccedilatildeo de quais pedras e lixas devem ser usadas para

obter o grau de acabamento desejado Todavia no trabalho real o acabamento solicita alguns

saberes que escapam agraves prescriccedilotildees da Empresa T Em nossa investigaccedilatildeo pudemos constatar

que a distacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho real na fase de acabamento guarda

inicialmente uma relaccedilatildeo com os limites teacutecnicos das maacutequinas CNC uma vez que apesar de

serem maacutequinas extremamente sofisticadas no trabalho de ferramentaria elas natildeo capazes de

produzir todas as medidas e os acabamentos prescritos pelo desenho Aleacutem do proacuteprio

desgaste que eacute caracteriacutestico em qualquer maquinaria as peccedilas que compotildeem uma

ferramenta normalmente possuem uma geometria complexa onde satildeo combinados por

exemplo vaacuterias curvaturas e inclinaccedilotildees Por outro lado a identificaccedilatildeo e o controle sobre do

acabamento dessas formas geomeacutetricas natildeo contam com o apoio do trabalho prescrito no

sentido de se indicar como usar o tato ou a visatildeo bem como natildeo haacute no trabalho prescrito uma

indicaccedilatildeo que relacione a pressatildeo manual exercida com a lixa ou com a pedra sobre uma

determinada peccedila e a quantidade de material que estaacute saindo e o grau de acabamento que estaacute

sendo obtido E ainda em funccedilatildeo da complexidade posta pelas formas geomeacutetricas um

gabarito usado em uma ferramenta nunca serve para se usar em outra porque uma ferramenta

nunca tem as mesmas medidas e formas daiacute que haacute pouca prescriccedilatildeo no que se refere ao uso

de gabaritos

101

f) Montagem do funcional da ferramenta

Apoacutes o trabalho de acabamento inicia-se a montagem do funcional da ferramenta

Nesta fase vaacuterias peccedilas ateacute entatildeo separadas passam a ganhar um aspecto de conjunto cujo

maior objetivo eacute colocar a ferramenta em condiccedilotildees de produzir Constatamos que a partir

desta fase do processo de trabalho os ferramenteiros passam a se preocupar mais com o

funcionamento por completo de toda a ferramenta De acordo com o depoimento de um deles

ldquoO ferramenteiro tem que enxergar tudo que compotildee a ferramenta porque vai facilitar neacute

facilita no tempo facilita numa montagem vocecirc jaacute tem o ferramental na mente vocecirc consegue

adiantar neacute antecipar muitas coisas no seu trabalhordquo

Em que pese o uso do desenho pelos ferramenteiros na montagem do funcional da

ferramenta o trabalho prescrito na empresa T por meio do proacuteprio desenho reconhece certas

imposiccedilotildees do trabalho real Dessa forma haacute no trabalho prescrito espaccedilo para os

trabalhadores agirem sobre vaacuterios pontos que satildeo enriquecidos pelo trabalho real Podemos

encontrar no projeto da ferramenta elementos como ldquodefinir furos na ferramentariardquo como

citam alguns desenhos Para alguns ferramenteiros essa ocorrecircncia indica que em um

determinado momento da construccedilatildeo da ferramenta a prescriccedilatildeo quase desaparece

Eacute eu te falo o seguinte vocecirc trabalha com o projeto ateacute um certo ponto na mon-tagem na primeira montagem ateacute ela ir para a coacutepia Depois que a ferramenta vol-ta da coacutepia o projeto jaacute nem conta tanto mais assim Tanto eacute que a linha de corte nunca eacute a primeira ela sempre tem modificaccedilatildeo ela sempre tem correccedilatildeo Por quecirc Porque a linha de corte eacute desenvolvida ela eacute uma matemaacutetica e ela natildeo bate por exemplo quando eacute feito as conferecircncias de uma aba Entatildeo aqui natildeo bate tem que fazer uma correccedilatildeo entatildeo por ele ser teoacuterico nunca bate geralmente eacute na praacutetica Na realidade o projeto numa hora dessa jaacute natildeo existe mais aiacute eacute soacute para como diz liberar o produto Entatildeo pode ser colocada uma solda naquele ponto que foi medido e detectado que a aba estaacute menor (Ferramenteiro)

O que se chama de funcional da ferramenta eacute na verdade um funcionamento improdu-

tivo isso porque a ferramenta se movimenta sem produzir peccedilas Isso porque o principal obje-

tivo desta fase de trabalho eacute garantir que os componentes da ferramenta possam ser movimen-

102

tados sem problema Neste sentido o trabalho prescrito se natildeo bastassem as possibilidades de

conter erros o trabalho prescrito tambeacutem natildeo aponta como considerar uma seacuterie de elemen-

tos presentes no trabalho real tais como o comportamento fiacutesico das chapas metaacutelicas no

momento em que seratildeo conformadas ou cortadas ou mesmo os desgastes dos componentes

mecacircnicos das prensas que podem influenciar na forccedila na pressatildeo ou no alinhamento deste

equipamento

g) Try-out

No trabalho de try-out a ferramenta que estaacute basicamente montada eacute instalada em

uma prensa e submetida a circunstacircncias proacuteximas do trabalho real qual seja da linha de pro-

duccedilatildeo Nesta fase o trabalho prescrito pela gerecircncia pode aparecer em indicaccedilotildees de laudos

obtidos a partir de sofisticadas maacutequinas que controlam as medidas das peccedilas prensadas En-

tretanto esse laudo natildeo garante ao trabalho prescrito um domiacutenio sobre o processo de trabalho

do try-out dado que esse processo proacuteximo que eacute do trabalho real guarda problemas que soacute

os saberes taacutecitos dos ferramenteiros podem solucionar Essa questatildeo incomoda tanto a gerecircn-

cia da Empresa T que eles fizeram um alto investimento na compra de um software que a par-

tir de dados do projeto da ferramenta simula o que ocorre no Try-out sem no entanto gerar

um projeto que prescinda dos saberes taacutecitos dos ferramenteiros

Segundo alguns depoimentos dos ferramenteiros eacute muito difiacutecil de se prescrever com

precisatildeo as situaccedilotildees que possam ocorrer no try-out uma vez que satildeo muitos os fenocircmenos

que envolvem o funcionamento real de ferramenta principalmente os casos ligados ao com-

portamento fiacutesico das chapas de accedilo tal como o retorno de chapa Foi possiacutevel observar pelas

frequumlentes citaccedilotildees dos ferramenteiros que esses fenocircmenos por serem de difiacutecil formaliza-

ccedilatildeo inclusive pelo conhecimento cientiacutefico fazem com que um know how adquirido na cons-

truccedilatildeo de uma ferramenta seja apenas relativo na construccedilatildeo de uma outra ferramenta O fe-

103

nocircmeno de retorno de chapa ou spring-back expressa bem essa possibilidade Trata-se de um

determinado comportamento fiacutesico da chapa onde ela deveria ter por exemplo de acordo

com a ferramenta um acircngulo de 90ordm e ao ser prensada ela pode ficar com 89ordm Em um dos

depoimentos que coletamos o retorno de chapa foi analisado da seguinte forma

O retorno de chapa eu acho que eacute o pior com certeza eacute um dos piores inimigos do ferramenteiro Natildeo tem caacutelculo um caacutelculo especificadamente para isso porque A chapa a estrutura de uma chapa hoje qualquer outro material ela tem porcenta-gem de carbono cromo ou niacutequel ela varia Nesta variaccedilatildeo nenhuma chapa vai ser exatamente igual a outra tanto eacute que noacutes temos uma ferramenta que estaacute laacute em produccedilatildeo haacute dois anos um fardo de chapa hoje exatamente especificado como se pede o cliente ela vai bater daqui a uma semana vem outro fardo e ela daacute uma rea-ccedilatildeo diferente o porque disso porque a composiccedilatildeo que a chapa tem varia o que eacute essa variaccedilatildeo Eacute a porcentagem de niacutequel cromo de ferro que a chapa tem e isso ocasiona muito o retorno de chapa O que eacute esse retorno de chapa eacute o que noacutes chamamos de sprig-back eacute exatamente a resistecircncia que a chapa tem em confor-mar a figura a figura que foi matematizada entatildeo ela resiste mais a esta situaccedilatildeo ela daacute o retorno ela volta e realmente soacute na praacutetica a gente consegue tirar isso fa-zendo exatamente o try-out (Ferramenteiro)

A dimensatildeo que o trabalho real assume na ferramentaria evidencia-se de tal forma a

partir do try-out que os ferramenteiros protagonistas deste processo prescrevem de forma

quase independente do projeto da ferramenta o que deve ser feito de significativo nas

proacuteximas fases do processo de construccedilatildeo da ferramenta quando ela retornar para as bancadas

da ferramentaria O try-out figura na ferramentaria como um laboratoacuterio por excelecircncia De

acordo com o depoimento de um ferramenteiro ldquoo try-out nada mais eacute do que o teste para

vocecirc tirar uma ferramenta uma chapa boa um produto que o cliente agrada dele entatildeo eacute soacute

mediante debaixo de prensa nada mais natildeo tem jeito e soacute assim para vocecirc ver a reaccedilatildeo da

chapardquo Um outro ferramenteiro ironizou o try-out da seguinte forma ldquoBom o try-out como

dizia um chefe que tinha aqui eacute a junccedilatildeo de vaacuterios erros ateacute chegar ao produto final quais satildeo

esses erros O projetista o ferramenteiro na construccedilatildeo o programador que natildeo soube abrir

os raios necessaacuteriosrdquo

104

h) Ajuste final da ferramenta

Apoacutes passar pelo try-out a ferramenta fica sob um trabalho de ajuste final cuja prin-

cipal prescriccedilatildeo eacute dada pelas indicaccedilotildees do try-out Nesta fase do processo de construccedilatildeo a

prescriccedilatildeo inicial soacute prevalece para se referir agrave cor que seraacute pintada a ferramenta Natildeo obstan-

te a finalizaccedilatildeo da construccedilatildeo de uma ferramenta que pode durar de cinco a oito meses gera

um acervo de documentos que se torna o chamado ldquohistoacuterico da ferramentardquo suficiente para

gerar um material de consulta o que pode ateacute subsidiar a construccedilatildeo de um know-how Entre-

tanto pelas observaccedilotildees feitas na empresa T uma simples mudanccedila do que se prescreve como

produto na ferramentaria gera novos fenocircmenos Assim por exemplo a produccedilatildeo da porta de

um automoacutevel por ter ou deixar de ter um friso muda o comportamento da chapa na hora da

prensagem o que torna o trabalho real neste setor da mecacircnica um espaccedilo de afirmaccedilatildeo de

saberes para os seus principais protagonistas os ferramenteiros

Neste capiacutetulo procuramos ao apresentar as fases de construccedilatildeo da ferramenta evi-

denciar as lacunas do trabalho prescrito perante as demandas do trabalho real na Empresa T Eacute

mister apresentar como os ferramenteiros da Empresa T buscam superar essa limitaccedilatildeo do

trabalho prescrito Eacute o que buscaremos fazer a partir do proacuteximo capiacutetulo onde analisaremos

os dados coletados em nossa pesquisa de campo

105

4 O TRABALHO REAL NA FERRAMENTARIA A HORA E A VEZ DOS

SABERES TAacuteCITOS DOS FERRAMENTEIROS

Marinheiro que natildeo sabe para onde vai tem medo do vento jaacute ouviu falar isso Pois eacute quem natildeo conhece como a ferramenta funciona soacute monta as peccedilas o ferra-menteiro natildeo ele monta mas ele usa a sua compreensatildeo se o projeto estiver ruim ele consegue fazer a ferramenta se a prensa estiver desgastada ele daacute um jeito eacute is-so aiacute

Neste capiacutetulo buscaremos fazer uma anaacutelise dos elementos coletados em nossa pes-

quisa de campo realccedilando as estrateacutegias que os ferramenteiros usam para produzir mobilizar

e formalizar os seus saberes taacutecitos

Como jaacute dissemos anteriormente os estudos oriundos do campo da ergonomia afir-

mam que o andamento de um determinado processo produtivo eacute caracterizado dentre outras

coisas por uma distacircncia entre o que eacute planejado e formalizado pela gerecircncia da empresa o

chamado trabalho prescrito e o que de fato ocorre no chatildeo de faacutebrica para que essa produccedilatildeo

seja realizada O que diz respeito ao andamento do processo produtivo e que natildeo pertence ao

domiacutenio da prescriccedilatildeo eacute chamado de trabalho real (LIMA 1998 DANIELLOU 1989) Dian-

te da insuficiecircncia do trabalho prescrito em dominar o trabalho real o andamento do processo

produtivo eacute garantido pela intervenccedilatildeo dos trabalhadores do chatildeo de faacutebrica principais prota-

gonistas do trabalho real que complementam ou superam as limitaccedilotildees do trabalho prescrito

(ARANHA 1997 SANTOS 1997)

Neste sentido para nos aproximarmos melhor dos elementos que tomamos como sen-

do os saberes taacutecitos presentes na ferramentaria entendemos que eacute necessaacuterio dividir em toacutepi-

cos as estrateacutegias que os ferramenteiros usam para produzir mobilizar e formalizar os seus

106

saberes taacutecitos Sendo assim cada uma delas seraacute discutida em toacutepicos diferentes Entretanto

eacute importante salientar que essa divisatildeo por toacutepicos natildeo significa que as estrateacutegias satildeo usadas

pelos ferramenteiros de forma independente umas das outras A nossa opccedilatildeo em estruturar a

anaacutelise dos dados dessa forma justifica-se pelo nosso interesse em tornar mais claros os ele-

mentos que encontramos em nosso campo de pesquisa sobretudo pela complexidade do traba-

lho de ferramentaria De certa forma essa opccedilatildeo de apresentar as estrateacutegias separadamente

tem um deacutebito com o cuidado que os ferramenteiros manifestaram conosco Em um dos pri-

meiros contatos que tivemos com os ferramenteiros um deles nos disse o seguinte ldquoVou te

explicar tim-tim por tim-tim mas se vocecirc natildeo souber por que eu faccedilo por que a gente tem que

improvisar vocecirc natildeo vai entender como eu faccedilordquo

Todavia tanto em nossas observaccedilotildees quanto nas entrevistas nos deparamos com si-

tuaccedilotildees em que as estrateacutegias criadas pelos ferramenteiros para produzir mobilizar e formali-

zar os seus saberes taacutecitos apareceram de forma integrada em que pese ter sido possiacutevel en-

contrar em uma mesma situaccedilatildeo de trabalho o uso destacado de uma dessas estrateacutegias Em

todo caso as estrateacutegias que os ferramenteiros criam para produzir os seus saberes taacutecitos nos

parecem antes de tudo influir e ser influenciadas pelas estrateacutegias que eles criam para mobi-

lizar e formalizar os seus saberes taacutecitos

41 AS ESTRATEacuteGIAS DOS FERRAMENTEIROS PARA PRODUZIR OS SEUS SABERES TAacuteCITOS

Conforme jaacute explicamos no primeiro capiacutetulo estamos considerando como estrateacutegias

de produccedilatildeo de saberes taacutecitos os caminhos natildeo previstos de trabalho que os ferramenteiros

desenvolvem para pocircr em uso saberes de natureza diversa em especial os saberes taacutecitos

Muito embora tiveacutessemos constatado que a Empresa T mobiliza vaacuterios recursos materiais e

humanos para o seu trabalho prescrito em nossa pesquisa de campo foi possiacutevel verificar que

107

os ferramenteiros descobrem e inventam formas de realizar o seu trabalho portanto produzem

saberes diferentes daqueles indicados pela prescriccedilatildeo Ademais os proacuteprios ferramenteiros

em seus depoimentos frequumlentemente nos disseram que o trabalho na ferramentaria sempre os

leva a ldquocriar uma forma especiacutefica de fazer as coisasrdquo como dizem uns ou a ldquobolar um certo

jeito de produzir saberesrdquo no dizer de outros Daiacute que tomamos esse ldquocerto jeito de fazer coi-

sas ou produzir saberesrdquo como estrateacutegias que os ferramenteiros criam para produzir os seus

saberes taacutecitos Identificamos as seguintes estrateacutegias de produccedilatildeo de saberes taacutecitos usadas

pelos ferramenteiros ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo ldquover o todordquo ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo e ldquome-

lhor jeito para trabalharrdquo

Se de um lado muitos autores afirmam que o trabalho eacute caracterizado por um princiacute-

pio educativo1 por outro podemos afirmar com base em nossas observaccedilotildees de campo que

as caracteriacutesticas da ferramentaria potencializam esse princiacutepio Um depoimento que obtive-

mos evidencia bem essa questatildeo

O que a gente aprende no curso de ferramentaria eacute apenas uma base para vocecirc fazer a sua inicializaccedilatildeo porque na verdade o ferramenteiro nunca se forma cada dia que se passa eacute uma escola cada dia que vocecirc vai trabalhando como ferramenteiro vai aprendendo coisas novas Uma ferramenta sempre eacute diferente vocecirc nunca que faz uma ferramenta igual agrave outra tambeacutem porque nunca se monta um carro igual ao outro Entatildeo sempre quando vocecirc lanccedila carros diferentes as ferramentas satildeo feitas diferentes vocecirc nunca repete a mesma coisa e eacute essa diversidade de ferra-mentas que faz com que seu aprendizado cada vez se diferencie mais se aprende a ter um maior jogo justamente pela diversidade do seu trabalho (Ferramenteiro)

Apresentaremos as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros para produzir os seus sabe-

res taacutecitos organizando a nossa discussatildeo respectivamente a partir dos seguintes toacutepicos

ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo ldquover o todordquo ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo e ldquomelhor jeito para traba-

lharrdquo

1 Haacute uma vasta literatura no conjunto de estudos sobre trabalho e educaccedilatildeo que se debruccedila sobre esta temaacutetica sobretudo a partir das contribuiccedilotildees de MARX e GRAMSCI

108

a) ldquoFiltragem de informaccedilotildeesrdquo

Se a literatura que discute a presenccedila de saberes no processo de trabalho a qual jaacute a-

presentamos aponta que o saber taacutecito se inscreve a partir de situaccedilotildees postas pelo trabalho

real o que de fato verificamos por outro lado em nossa pesquisa de campo foi que antes

mesmo de as demandas especiacuteficas do trabalho real se apresentarem para os ferramenteiros

eles buscam criar antecipadamente suas proacuteprias estrateacutegias para produzir saberes taacutecitos pa-

ra melhor compreender o trabalho prescrito essencialmente o desenho da ferramenta Todos

os ferramenteiros com1 que travamos contato natildeo hesitaram em dizer que o desenho de uma

ferramenta guarda um alto niacutevel de complexidade o que faz com que eles tenham que criar

saberes taacutecitos para interpretaacute-lo ainda que este desenho por se tratar de uma linguagem for-

malizada por meio de normas internacionais possa ser ensinado na escola formal Constata-

mos ainda em nossas observaccedilotildees que a interpretaccedilatildeo do desenho eacute mais tranquumlila para os

ferramenteiros mais experientes Alguns depoimentos explicitam de forma clara o ponto de

vista dos ferramenteiros sobre a necessidade de se usar os saberes taacutecitos na interpretaccedilatildeo do

desenho de uma ferramenta como forma de enfrentar a complexidade como jaacute foi dito deste

tipo de prescriccedilatildeo Vejamos

Bom na realidade esta questatildeo de projeto eacute meio complicada pelo seguinte quando a gente estuda no Senai vocecirc vecirc vocecirc lecirc desenhos e desenhos que agraves vezes eacute dese-nho de uma folha A4 no maacuteximo uma folha A3 Quando vocecirc chega na empresa do porte satildeo ferramentas grandes de ateacute 4 metros de comprimento e 20 toneladas Entatildeo vocecirc se depara agraves vezes vocecirc viu no Senai o desenho ficava numa folha A3 o desenho todo numa ferramentinha sua numa peccedila sua Quando vocecirc chega na empresa uma folha de desenho ela daacute 2 metros por um metro de altura entatildeo vocecirc natildeo consegue ver nada quando vocecirc sai do Senai vocecirc natildeo consegue ver pratica-mente nada do desenho Com o tempo vocecirc vai aprendendo a ler o desenho A ver-dade eacute o seguinte vocecirc aprende a ler desenho laacute dentro porque o Senai natildeo te daacute base nisso Pelo tipo de desenho que a gente trabalha (Ferramenteiro)

A possibilidade de que os ferramenteiros por meio de sua experiecircncia profissional

criem estrateacutegias para enfrentar a complexidade do desenho pode ser percebida em um outro

109

depoimento que demonstra inclusive uma compreensatildeo sobre o que torna difiacutecil a leitura

desse desenho

Um desenho de ferramenta ou de qualquer outra construccedilatildeo mecacircnica na matildeo de um profissional no Japatildeo na matildeo de um profissional no Brasil seraacute um desenho porque existe uma linguagem universal Entatildeo essa linguagem universal vocecirc a-prende no campo da teoria estudando o desenho mesmo dentro da escola Agora existe um viver praacutetico onde o lidar com determinadas peccedilas eacute muito importante a experiecircncia do dia-a-dia porque agraves vezes o projetista ele tem que ver muitas coisas e o nosso desenho tem um agravante muito grave que ele natildeo tem detalhes Todos os elementos da ferramentaria estatildeo desenhados num soacute desenho entatildeo a pessoa precisa enxergar todos os elementos naquele desenho de conjunto com muitas li-nhas Se vocecirc me perguntar sobre a experiecircncia eacute importante Eacute claro ueacute (Mestre de ferramentaria)

Eacute para superar a complexidade do desenho da ferramenta que os ferramenteiros aca-

bam por desenvolver estrateacutegias para produzir os saberes taacutecitos Um dos aspectos mais recor-

rentes nas falas dos nossos entrevistados daacute conta de que a dificuldade em interpretar dese-

nhos como os que satildeo usados na Empresa T refere-se ao grande nuacutemero de componentes e

por conseguinte tambeacutem agrave grande quantidade de linhas e medidas que constituem esse tipo de

prescriccedilatildeo ou como eles dizem ldquoEacute um desenho muito cheio de coisasrdquo Segundo um dos fer-

ramenteiros ldquoEacute impossiacutevel enxergar o desenho de uma vezada soacute o ferramenteiro mais espe-

cializado do mundo ele natildeo consegue enxergar de imediato tudo que o ferramental vai fazerrdquo

Em relaccedilatildeo a essa dificuldade em se compreender o trabalho prescrito sobressaem algumas

estrateacutegias desenvolvidas pelos ferramenteiros para produzir seus saberes taacutecitos como ex-

pressam alguns depoimentos

Primeiramente o ferramenteiro deve ter paciecircncia porque desenho vocecirc natildeo con-segue interpretar da primeira vez que vocecirc vecirc A cada vez que vocecirc olha vocecirc taacute identificando uma coisa nova entatildeo leva-se um tempo pra vocecirc falar assim eu tocirc sabendo tudo uma porcentagem bem grande deste desenho pra mim taacute comeccedilando a executar esse trabalho Isso pode levar uma hora duas dois dias ou ateacute mais de-pende da complexidade deste desenho e essa evoluccedilatildeo realmente vem vindo grada-tivo conhecendo pedaccedilos eacute pedaccedilos separados deste desenho Eu natildeo conseguia ver abrir o projeto e ver aquela imensidatildeo de componentes que se situam dentro deste projeto entatildeo eu fui comeccedilando por partes fui comeccedilando por legenda as coisas mais simples primeiro pra depois entrar realmente no interior da ferramen-ta realmente ver o que estaacute querendo expressar aquele monte de linha aquele de-senho pra mim (Ferramenteiro grifo nosso)

110

Outros ferramenteiros tambeacutem fizeram referecircncia agrave necessidade de se buscar uma es-

trateacutegia que lhes permitam como foi colocado pela fala anterior amenizar a confusatildeo propor-

cionada pelo grande nuacutemero de informaccedilotildees contidas no desenho Em alguns casos as falas

dos ferramenteiros notoriamente dos mais experientes apontam que a experiecircncia lhes permi-

te usar ldquomacetesrdquo para retirar do imenso repertoacuterio de informaccedilotildees posta pelo desenho aqueles

dados necessaacuterios para a realizaccedilatildeo do seu trabalho Vejamos como um dos ferramenteiros re-

latou a sua experiecircncia nessa situaccedilatildeo

Vocecirc nunca deve abrir o desenho todo A experiecircncia ajuda e muito Porque vamos assim analisar vocecirc inicia sua etapa entatildeo geralmente vocecirc jaacute sabe a linha que eacute da coluna Vocecirc consegue neacute cair direto em cima daqueles elementos que cecirc jaacute taacute traba-lhando no momento Entatildeo por exemplo vocecirc vai usar o alojamento tal vocecirc jaacute sabe bucha que taacute ali e desse jeito vocecirc consegue eliminar o que vocecirc natildeo precisa saber Entatildeo eacute mais faacutecil se vocecirc jaacute sabe vocecirc abre sua planta vocecirc observa e passa a ver o corte tal e aiacute cecirc jaacute vai direto em cima do corte C (Ferramenteiro)

Pudemos observar que as formas usadas pelos ferramenteiros para selecionar alguns

elementos fornecidos pelo desenho podem ser remetidas a uma tentativa por parte deles de

criar estrateacutegias de ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo Tomamos por ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo a

tentativa dos ferramenteiros de selecionar alguns dados de dentro do enorme repertoacuterio de in-

formaccedilotildees guardadas pela prescriccedilatildeo do desenho e pela proacutepria ferramenta Sobre essa possi-

bilidade de os ferramenteiros ldquofiltrarem informaccedilotildeesrdquo para facilitar a interpretaccedilatildeo do dese-

nho um dos nossos entrevistados nos disse que coloria com caneta hidrocor as linhas do de-

senho agrave medida que conseguia associar essas linhas com as peccedilas que compotildeem a ferramenta

Quando eu comecei a mexer com Autocad2 e quando se trabalha em Autocad se trabalha com vaacuterios leires os leires satildeo as cores das linhas cores de tamanho e es-pessura da linha Isso te ajuda a ver se aquela linha eacute uma linha de cota se aquela linha eacute uma linha do accedilo se aquela linha eacute uma linha invisiacutevel se aquela linha eacute uma linha de produto Entatildeo vocecirc vecirc isto em vaacuterios leires azul vermelho amarelo Soacute que quando vocecirc pega o desenho no papel todas as linhas satildeo pretas e por isso eacute difiacutecil distinguir as linhas Com base no Autocad eu passei a colorir os desenhos no papel e ficou mais faacutecil para interpretar as linhas (ferramenteiro)

2 Segundo FARIA (1992 p 13) CAD eacute Computer Aided Design ou desenho auxiliado por computador

111

Dessa forma tanto a complexidade de linguagem do trabalho prescrito essencialmente

o desenho quanto a sua distacircncia em relaccedilatildeo ao processo de trabalho real na empresa T levam

os ferramenteiros a construiacuterem estrateacutegias que chamamos de ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo pa-

ra produzir saberes taacutecitos Todavia se por um lado esses depoimentos demonstram que uma

atividade de trabalho complexa como a ferramentaria solicita dos ferramenteiros uma com-

preensatildeo do que eacute apontado pelo desenho portanto valorizando o trabalho prescrito por outro

lado essa busca dos ferramenteiros em compreender a prescriccedilatildeo talvez possa ser um indica-

tivo do cuidado que eles tecircm com o que de fato acontece no trabalho real

Aleacutem das estrateacutegias criadas antes mesmo de o trabalho prescrito se mostrar insufici-

ente para garantir o andamento do processo de trabalho na empresa T as nossas observaccedilotildees e

entrevistas nos permitiram identificar outras estrateacutegias que os ferramenteiros criam para pro-

duzir saberes taacutecitos como uma resposta ao trabalho prescrito que natildeo consegue dar conta de

situaccedilotildees marcadas pelo imprevisto ou por variaacuteveis ateacute previsiacuteveis mas de difiacutecil mensura-

ccedilatildeo como os desgastes das maacutequinas ou o comportamento fiacutesico das chapas de accedilo Ainda

que na empresa T como constatamos se usem sofisticadas tecnologias de CADCAMCNC3

ou de um simulador de estampagem4 o maacuteximo que se consegue eacute uma aproximaccedilatildeo com o

indicado pela prescriccedilatildeo Seguindo esta trilha pudemos observar que no trabalho real da fer-

ramentaria pesquisada a intervenccedilatildeo dos ferramenteiros eacute mediada por outras estrateacutegias de

produccedilatildeo de saberes taacutecitos

b) ldquoVer o todordquo

Se de um lado foi possiacutevel observar que em um primeiro momento do processo de

trabalho os ferramenteiros lanccedilam matildeo de estrateacutegias de ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo para os

auxiliarem na compreensatildeo do trabalho prescrito por outro lado no trabalho real de constru-

3 Este tipo de tecnologia eacute respectivamente Computer Aided Design ou Desenho Auxiliado por Computador Computer Aided Manufacturing ou Manufatura Auxiliada por Computador Controle Numeacuterico Computadoriza-do (FARIA 1992 p 13) 4 Embora natildeo tenhamos conhecido este software tomamos ciecircncia do seu uso pela engenharia Trata-se de um programa que busca apontar o possiacutevel comportamento da chapa de accedilo durante a sua transformaccedilatildeo em produto

112

ccedilatildeo da ferramenta as estrateacutegias criadas apontam para uma certa inversatildeo da estrateacutegia ante-

rior em vez de fazer uma filtragem busca-se uma associaccedilatildeo de informaccedilotildees Os ferramentei-

ros buscam criar estrateacutegias que lhes permitam integrar as partes da ferramenta em um ldquotodordquo

ou seja ir do domiacutenio das particularidades para o domiacutenio da ferramenta como um ldquotodordquo ateacute

porque como jaacute dissemos uma ferramenta eacute um conjunto de peccedilas Os ferramenteiros criam

estrateacutegias para ldquover o todordquo Chamamos de estrateacutegias de ldquover o todordquo o esforccedilo dos ferra-

menteiros para ultrapassar os limites impostos pela fragmentaccedilatildeo do conhecimento formaliza-

do no trabalho prescrito Em vaacuterios depoimentos eles indicam que uma compreensatildeo do ldquoto-

dordquo em relaccedilatildeo agrave ferramenta eacute importante para poder dar conta do trabalho real o que tem a-

inda a propriedade de fazer entender tambeacutem as particularidades da ferramenta Ao ser inda-

gado sobre a importacircncia de se ter uma visatildeo da ferramenta em seu conjunto um deles nos re-

latou o seguinte

Quando vocecirc comeccedila a montar a ferramenta sem ter essa noccedilatildeo neacute de enxergar a ferramenta trabalhando quando vocecirc comeccedila a montar a ferramenta vocecirc vai sim-plesmente montando evidenciando o que o projeto vai te mostrando vocecirc vai montando vai montando soacute que vocecirc vai montando peccedilas vai montando itens sem observar que este item que vocecirc taacute montando quando ele trabalhar quando ti-ver numa prensa trabalhando a ferramenta funcionando vocecirc pode estar simples-mente montando itens Vocecirc monta itens quando chega no final da ferramenta vo-cecirc tem todos os itens montados da ferramenta e aiacute sua ferramenta natildeo funciona (Ferramenteiro)

De uma forma geral quase todos os ferramenteiros na medida em que faziam suas

exposiccedilotildees sobre a importacircncia de se ldquover toda a ferramentardquo expressavam tambeacutem uma criacute-

tica ao trabalho prescrito que segundo eles eacute portador de visatildeo fragmentada da construccedilatildeo da

ferramenta No depoimento abaixo o ferramenteiro fala da fragmentaccedilatildeo no trabalho do pro-

jetista

Eacute noacutes temos caso neacute na nossa proacutepria empresa de que acontecem erros de deta-lhamento Quando a pessoa (o projetista) pega o desenho todo e retira soacute um item para desenhar aquele item entatildeo a pessoa tem essa dificuldade Porque a pessoa natildeo sabe a pessoa taacute vendo o desenho a pessoa vecirc o desenho em 3D agraves vezes mas a pessoa natildeo sabe como aquilo funciona ela natildeo tem vivecircncia ela natildeo vecirc como

113

aquela peccedila chega em bruto eacute montada eacute parafusada eacute copiada eacute temperada e chega na sua forma final para ser enviada Entatildeo a pessoa natildeo tem essa noccedilatildeo ela sabe que aquilo eacute um accedilo e desenha aquele accedilo Eacute o que ela sabe essa eacute a diferenccedila do desenhista (Ferramenteiro)

Em um outro depoimento um dos entrevistados ao fazer uma criacutetica ao trabalho pres-

crito apresenta elementos ainda mais contundente quanto agrave fragmentaccedilatildeo

O projetista enxerga o que estaacute fazendo dentro de uma tela de no maacuteximo 20 pole-gadas que eacute no Autocad e noacutes vemos no fiacutesico Entatildeo ele tem que imaginar um sem-fim de coisas mas ele natildeo apalpa nenhuma delas entatildeo eacute muito difiacutecil para um projetista acertar tudo A primeira coisa eacute essa Enquanto noacutes temos os outros sentidos que estatildeo a nosso favor que eacute a audiccedilatildeo o tato a visatildeo noacutes estamos vendo a peccedila noacutes estamos tateando as peccedilas e na hora que vamos manusear noacutes estamos ouvindo o barulho que a peccedila faz Ele natildeo tem nenhum desses amigos ao seu lado soacute tem soacute a visatildeo e a experiecircncia Entatildeo o que ocorre Dentre aquele sem-fim de linhas que ele taacute vendo dentro do CAD dentro da sua estaccedilatildeo de CAD por mais que ele vislumbre nunca traz a medida real eles projetam uma lateral de 5 metros dentro de uma tela de 20 polegadas (Ferramenteiro)

A partir das nossas observaccedilotildees bem como das entrevistas que realizamos eacute possiacutevel

considerar que a distacircncia de escala entre o desenho que eacute usado pelo ferramenteiro e o dese-

nho que eacute usado pelo projetista se constitua como um fator que explica por que as estrateacutegias

de produccedilatildeo de saberes taacutecitos satildeo necessaacuterias no trabalho real O que testemunha tambeacutem a

existecircncia de uma lacuna no trabalho prescrito A nosso ver essa possibilidade eacute corroborada

por algumas falas

Por mais que o projetista tente imaginar puxa vida a tela do computador eacute 40 ve-zes menor do que a ferramenta Entatildeo soacute se o cara tiver um diminutivo um proje-tor de perfil soacute que inverso na sua mente Segundo a grande maioria dos projetis-tas da atualidade natildeo foram ferramenteiros eles natildeo tiveram a base praacutetica eles ti-veram soacute a base teoacuterica entatildeo eles nunca entraram de baixo de uma prensa para ver a dificuldade que eacute estampar que eacute obter um produto Ele coloca tabelas de tole-racircncias5 mas ele na verdade nunca travou uma coluna para ver se realmente aque-la pressatildeo eacute o essencial Ele entatildeo comeccedila a trabalhar com normas que outras pes-soas fizeram mas que ele mesmo natildeo experimentou e durante o processo essa difi-culdade uma hora vai aparecer (Ferramenteiro)

5De acordo com NOVASKI (1994) toleracircncia eacute a variaccedilatildeo admissiacutevel da dimensatildeo da peccedila dada a diferenccedila entre as dimensotildees maacuteximas e miacutenimas (p 3)

114

c) ldquoVisualizaccedilatildeo em 3Drdquo

Uma outra estrateacutegia que os ferramenteiros criam para produzir os seus saberes e que

de certa forma lhes permite articular as estrateacutegias de ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo com as es-

trateacutegias para ldquover o todordquo remete ao esforccedilo que eles fazem para abstrair a ferramenta o que

eacute chamado por eles de ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo Chamaremos de estrateacutegias de ldquovisualizaccedilatildeo em

3Drdquo a projeccedilatildeo mental que os ferramenteiros fazem no sentido de imaginar a ferramenta pela

perspectiva tridimensional As vaacuterias possibilidades de ldquovisualizaccedilatildeo 3Drdquo podem correspon-

der a determinados niacuteveis de dificuldade Assim pode-se dizer que em situaccedilotildees mais sim-

ples os ferramenteiros buscam visualizar as peccedilas que compotildeem a ferramenta para localizaacute-

las espacialmente dentro do seu conjunto que eacute a proacutepria ferramenta6 De acordo com um

ferramenteiro a ldquovisualizaccedilao em 3D eacute quando vocecirc vecirc um desenho soacutelido vocecirc vecirc um cubo

vocecirc vecirc a ferramenta em soacutelido aiacute eacute muito mais faacutecil de vocecirc ter esta visualizaccedilatildeordquo Outro

ferramenteiro apresenta a sua a noccedilatildeo de ldquovisualizaccedilatildeo 3Drdquo relacionado-a com a sua experi-

ecircncia da seguinte forma

Com certeza isso acontece conosco todos os dias porque nem sempre vocecirc estaacute com o desenho em matildeos e vocecirc precisa visualizar Agraves vezes no iniacutecio do processo de construccedilatildeo vocecirc natildeo tem nem a peccedila na matildeo mas vocecirc jaacute tem o desenho Aiacute a gente jaacute comeccedila a modificar determinadas coisas soacute a partir da experiecircncia que vo-cecirc adquiriu Isso soacute eacute possiacutevel porque o ferramenteiro vecirc uma coisa bidimensional que eacute o desenho e pensa de forma tridimensional que eacute a ferramenta Pois eacute por causa disso a visualizaccedilatildeo faz do ferramenteiro mais do que um montador de peccedilas jaacute que ele vecirc ele tem ver tudo antes de funcionar

Entretanto observamos que embora a ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo seja citada por todos os

entrevistados soacute os ferramenteiros mais experientes satildeo tidos como capazes de realizaacute-la nos

niacuteveis mais complexos em que ela se apresenta Eacute o caso por exemplo do que eles chamam

de ldquosimulaccedilatildeo mental do movimento da ferramentardquo Trata-se de uma complexa estrateacutegia que

os ferramenteiros usam para aleacutem de localizar as peccedilas dentro do seu conjunto supor a sua

reaccedilatildeo em uma situaccedilatildeo de movimento ldquoEssa visatildeo de 3D noacutes temos a noccedilatildeo de funciona-

6 Mais uma vez cabe lembrar que uma ferramenta pode chegar a ter cerca de 800 componentes

115

mento da ferramenta antes mesmo dela taacute construiacuteda A gente taacute olhando o projeto e taacute conse-

guindo mentalizar a movimentaccedilatildeo de todos os componentes da ferramenta executando aque-

le trabalho que ela foi projetada para fazerrdquo E um outro depoimento completa

Eacute possiacutevel visualizar a peccedila antes dela estar terminada Tenho nove anos que eu trabalho com ferramentaria eu durante cerca de quatro anos eu via o desenho mas eu natildeo imaginava uma ferramenta em 3D Depois de uns 4 anos trabalhando em ferramentaria eu consigo analisar o projeto durante um dia dois dias analisar um projeto inteiro de 40 folhas eu consigo imaginar a ferramenta trabalhando e isso eu natildeo conseguia antes (Ferramenteiro)

Observamos que essa ldquosimulaccedilatildeo mental do movimento da ferramentardquo se manifesta

por meio da capacidade que eles possuem de ao imaginar uma ferramenta em movimento

projetar possiacuteveis defeitos no produto final

Bom quando o ferramenteiro consegue olhar o projeto e imaginar a situaccedilatildeo a fer-ramenta trabalhando ele consegue entender ele trabalha observando aquilo que taacute acontecendo ele antecipa este erro porque ele tem esse entendimento de olhar o projeto imaginar a ferramenta pronta imaginar que todos os itens da ferramenta estatildeo trabalhando Desta forma ele consegue vamos supor ele consegue entender a peccedila a ferramenta baixa a estampa aberta dessa forma natildeo aconteceu nenhum problema natildeo trombou nada a peccedila natildeo trombou nada a peccedila natildeo foi danificada a peccedila que eu falo eacute o produto (Ferramenteiro)

Em um outro exemplo

Vocecirc tem que imaginar o produto ali Ele eacute projetado em linhas que natildeo eacute em soacuteli-do soacute linha e imaginar o funcional daquilo Um bom ferramenteiro ele jaacute imagina a ferramenta produzindo O que eacute produzindo Ela estaacute debaixo da prensa e ele sa-be qual altura ela vai subir vai descer e fechar a ferramenta ele vecirc o acircngulo de saiacute-da dos retalhos ele jaacute imagina toda ela na mente O que acontece vai ter coisa que se o ferramenteiro faz exatamente igual ao projeto ele jaacute vecirc que natildeo vai funcionar (Ferramenteiro)

Ainda um outro depoimento confirma

Vocecirc natildeo tem nem a peccedila na matildeo mas vocecirc jaacute tem o desenho entatildeo a gente jaacute co-meccedila a modificar determinadas coisas soacute a partir da experiecircncia que vocecirc adquiriu Porque quando eu imagino uma peccedila eu natildeo imagino a peccedila que estaacute na minha frente imagino ela laacute na frente estampada Um painel de porta por exemplo para mim soacute vai mudar o design mas eu jaacute tenho aquela configuraccedilatildeo de que eacute uma por-ta ou uma lateral e quais satildeo os pontos que vatildeo dar mais problemas (Mestre de ferramentaria)

116

Figura 1 Desenho ldquobidimensionalrdquo de uma ferramenta

117

Apesar de que na Empresa T haacute um software que fornece um desenho em 3D os

ferramenteiros conseguem esse tipo de projeccedilatildeo por meio de uma abstraccedilatildeo ou como eles

dizem ldquovisualizando em 3Drdquo Para ilustrar a estrateacutegia de ldquovisualizar em 3Drdquo tomemos como

exemplo as Figuras 1 2 3 4 e 5 A Figura 1 corresponde ao desenho de uma ferramenta

posto em uma forma plana isto eacute bidimensional As Figuras 2 3 4 e 5 correspondem agrave Figura

1 em uma forma tridimensional Eacute importante comentar que o avanccedilo das figuras indica uma

visualizaccedilatildeo mais depurada da ferramenta ou seja para se chegar agrave visualizaccedilatildeo em 3D da

Figura 4 eacute necessaacuterio uma maior capacidade de abstraccedilatildeo do ferramenteiro

Figura 2 a 5 A mesma ferramenta vista em ldquo3Drdquo

d) ldquoMelhor jeito de trabalharrdquo

Se jaacute foi dito anteriormente que o processo de trabalho na Empresa T revela uma dis-

tacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho real foi possiacutevel observar tambeacutem que a com-

118

plexidade do trabalho real na ferramentaria ao mesmo tempo em que solicita dos ferramentei-

ros a criaccedilatildeo de estrateacutegias para produzir saberes taacutecitos acaba por lhes permitir imprimir as

suas ldquomarcasrdquo no trabalho Assim podemos afirmar que o trabalho real natildeo revela somente as

demandas teacutecnicas da produccedilatildeo mas tambeacutem alguns aspectos que estatildeo vinculados aos inte-

resses dos proacuteprios ferramenteiros Eles se manifestam por exemplo em suas preocupaccedilotildees

em fazer um trabalho mais bonito menos cansativo que os integre no coletivo de trabalho ou

mesmo que lhes permita ser menos presos agrave prescriccedilatildeo Chamamos essas estrateacutegias ldquomelhor

jeito para trabalharrdquo Ao ser indagado sobre a importacircncia da experiecircncia para o ferramentei-

ro a fala de um deles parece indicar que este tipo de recurso lhe permite ser menos ldquovigiadordquo

Acho que esse eacute o grande ponto de virada do ferramenteiro que hoje ele chama de ferramenteiro II ele sabe o jeito mais faacutecil de trabalhar O ferramenteiro III no ca-so da nossa escala da firma ele eacute um ferramenteiro que ele pode montar a ferra-menta sem o monitoramento de outra pessoa acima dele

Pudemos perceber que os ferramenteiros com certa frequumlecircncia se referem a ldquoum me-

lhor jeito de trabalharrdquo Ao indagarmos sobre o que seria esse ldquomelhor jeito de trabalharrdquo ob-

tivemos respostas de uma forma quase consensual nas quais os ferramenteiros ressaltavam

que cada profissional encontra o seu ldquomelhor jeito para trabalharrdquo Eis alguns depoimentos

Para mim o jeito mais faacutecil de trabalhar eacute quando vocecirc usa recursos para te ajudar quando vocecirc usa daquela ferramenta que estaacute ao seu redor pra taacute executando o tra-balho de uma maneira mais faacutecil eficaz Para mim eu evito fazer forccedila por isso que eu penso mais pra taacute executando esse trabalho Para mim eacute menos forccedila que esse modo me garante me garanta um niacutevel de acerto maior eacute o que eu costumo fazer (Ferramenteiro)

O uso do ldquomelhor jeito de trabalharrdquo reduz o sofrimento que estaacute presente no trabalho

do ferramenteiro

Eacute quando vocecirc trabalha muito vocecirc faz um esforccedilo fiacutesico muito grande porque vocecirc natildeo pensou antes de realizar tal tarefa natildeo pensou nos objetivos pegou o ser-viccedilo e tocou o serviccedilo soacute que na metade do caminho vocecirc vecirc que jaacute natildeo taacute compen-

119

sando mais ter tomado aquela atitude soacute que aiacute natildeo daacute mais para vocecirc voltar atraacutes vocecirc tem que continuar e terminar o serviccedilo isso eacute sofrer por causa do esforccedilo fiacute-sico que vocecirc faz (Ferramenteiro)

Esse ldquomelhor jeito de trabalharrdquo pode ser encontrado tambeacutem quando em alguns de-

poimentos os ferramenteiros mencionaram que as suas invenccedilotildees no processo de trabalho de-

vem-se a uma tentativa de realizar um trabalho com mais teacutecnica Muitas vezes essa noccedilatildeo de

um trabalho com mais teacutecnica se aproxima de uma noccedilatildeo de um trabalho mais bonito ou mais

limpo Constatamos essa possibilidade quando um ferramenteiro nos explicou a sua forma de

realizar um trabalho chamado por ele de localizaccedilatildeo de punccedilotildees Segundo ele a maioria dos

colegas fazia este trabalho usando uma massa plaacutestica Entretanto o seu ldquomelhor jeito de tra-

balharrdquo dispensava a massa plaacutestica o que fazia o trabalho ficar mais bonito e ainda natildeo o

incomodava tanto porque natildeo exalava cheiro Vejamos este depoimento

Para localizar um punccedilatildeo eu uso uma forma mais teacutecnica A outra que o pessoal usa eacute com massa plaacutestica soacute que desta forma eacute feio a massa plaacutestica eacute um produto quiacutemico e deixa marcas e aleacutem disso para vocecirc tirar o punccedilatildeo vocecirc tem que tirar a massa plaacutestica Eu natildeo gosto primeiro pelo fato do cheiro da massa plaacutestica natildeo gosto do cheiro da massa plaacutestica e segundo pelo fato do tempo que demora pra massa plaacutestica secar Por isso na minha concepccedilatildeo eacute melhor usar o reloacutegio apalpa-dor eacute mais limpo e mais bonito (Ferramenteiro)

Durante as nossas observaccedilotildees natildeo muito raro alguns ferramenteiros nos disseram

que o seu trabalho tem um lado que o aproxima do trabalho de um artesatildeo Ao falarmos sobre

isso com os ferramenteiros constatamos a busca do ldquomelhor jeito de trabalharrdquo aqui associado

a um trabalho mais bonito

O artesatildeo geralmente ele faz aquilo que estaacute na cabeccedila dele ele imagina sei laacute uma escultura um quadro sei laacute e a partir daiacute ele comeccedila a trabalhar O ferramenteiro tem que ter carinho com a peccedila ele natildeo pode chegar e jogar uma peccedila de qualquer jeito ele pode estragar uma peccedila ela fica com aspecto ruim Quatro meses de tra-balho vocecirc trabalha quatro meses para fazer uma ferramenta entatildeo de certa for-ma vocecirc jaacute estaacute habituado a todo dia chegar pro seu trabalho e vocecirc encontrar a-quelas ferramentas do seu setor Natildeo eacute que vocecirc pega amor por aquilo mas vocecirc sente prazer em fazer aquilo Um artesatildeo natildeo trabalha soacute porque tem que trabalhar ele gosta de fazer aquilo ele gosta de modelar aquilo o ferramenteiro eacute um mode-

120

lador A ferramenta em construccedilatildeo eacute a cara do ferramenteiro isso eacute dito na ferra-mentaria (grifo nosso)

Satildeo muitos os motivos que fazem do trabalho real por sua complexidade um campo

feacutertil para apresentar as estrateacutegias que os ferramenteiros criam para produzir os seus saberes

taacutecitos chamadas por noacutes de ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo ldquover o todordquo ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo

e ldquomelhor jeito de trabalharrdquo

Nossas observaccedilotildees nos permitem dizer que a complexidade do trabalho real faz com

que essas estrateacutegias de produccedilatildeo de saberes estejam intimamente articuladas com as estrateacute-

gias de mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes taacutecitos Ateacute o momento discutimos os dados

de nossa pesquisa indicando as estrateacutegias que os ferramenteiros usam para produzir os seus

saberes taacutecitos e as situaccedilotildees que convocam o uso deste tipo de saber Faz-se necessaacuterio de

agora em diante apresentar as estrateacutegias que os ferramenteiros criam para mobilizar diversos

tipos de saberes em especial os saberes taacutecitos

42 AS ESTRATEacuteGIAS DOS FERRAMENTEIROS PARA MOBILIZAR OS SEUS SABERES

Se ateacute entatildeo apresentamos as estrateacutegias para a produccedilatildeo do saber taacutecito sem nos re-

ferirmos ao conjunto de saberes que satildeo mobilizados por esse tipo de estrateacutegia eacute porque co-

mo jaacute foi dito nos preocupamos em explorar e evidenciar de maneira mais compreensiacutevel al-

gumas situaccedilotildees que convocam o saber taacutecito Todavia gostariacuteamos de chamar a atenccedilatildeo aqui

para as estrateacutegias que os ferramenteiros criam para mobilizar os seus saberes pois em nossa

pesquisa de campo deparamos com vaacuterias situaccedilotildees evidenciadas em algumas entrevistas em

que o uso de um determinado saber taacutecito demanda a mobilizaccedilatildeo de saberes de diversas or-

dens

121

Bom para mim o ferramenteiro precisa passar por todas as etapas que constituem uma ferramenta ele precisa de passar pela etapa ao contraacuterio O que eacute pelo contraacute-rio O contraacuterio eacute ele viver a faacutebrica viver o planejamento e viver a projeccedilatildeo da ferramenta entatildeo isso consiste o ferramenteiro O que eacute que ele vai ser para ele ser um bom ferramenteiro ele precisa ter estas trecircs etapas que geralmente eacute para cons-truir uma ferramenta projetar planejar a sua construccedilatildeo e saber executar esta cons-truccedilatildeo Tanto eacute que para interpretar muito bem o desenho o desenho eacute o iniacutecio de tudo se vocecirc tiver alguma duacutevida em relaccedilatildeo ao desenho vai ser complexo vocecirc in-terferir no final da ferramenta vocecirc desenvolver a ferramenta (Ferramenteiro)

Em Charlot (2000) a noccedilatildeo de mobilizaccedilatildeo relaciona-se agrave ideacuteia de movimento que de-

riva do interior das pessoas ldquomobilizar eacute pocircr recursos em movimento Mobilizar-se eacute reunir

suas forccedilas para fazer uso de si como recurso () mobilizar-se poreacutem eacute tambeacutem engajar-se

em uma atividade originada por moacutebilesrdquo (p 55) Tomamos de empreacutestimo a perspectiva de

Charlot sobre mobilizaccedilatildeo para evidenciar que os ferramenteiros trabalham recorrendo a es-

trateacutegias para mobilizar muacuteltiplos saberes Estes profissionais se mobilizam por inteiro para

construir uma ferramenta colocando em movimento estrateacutegias variadas dentre os quais pu-

demos identificar ldquorecorrer aos saberes do coletivo de trabalho lsquoesforccedilo de abstraccedilatildeorsquo lsquosaber

usar o proacuteprio corporsquo aleacutem de lsquorecorrer aos saberes cientiacuteficos e tecnoloacutegicosrsquordquo

Conforme apontamos anteriormente as nossas observaccedilotildees e entrevistas indicam que

o primeiro momento em que os saberes taacutecitos se apresentam daacute-se na tentativa por parte dos

ferramenteiros de interpretar o desenho da ferramenta Esse tipo de prescriccedilatildeo como vimos

caracteriza-se pela enorme quantidade de informaccedilotildees na forma de linhas e medidas Quase

todos os ferramenteiros disseram que aprenderam a ler um desenho mecacircnico no Senai o que

em tese demonstra que esse tipo de saber pode ser ensinado Entretanto todos eles afirmaram

que a experiecircncia com a construccedilatildeo de ferramenta eacute o elemento chave para que eles possam

aprender a interpretar o desenho que se usa na ferramentaria Segundo um dos ferramenteiros

ldquono Senai a gente aprende a matar largatixa aqui no dia-a-dia noacutes temos que aprender a ma-

tar jacareacuterdquo Em um outro depoimento mais contundente um ferramenteiro nos relatou o se-

guinte

122

O desenho sempre vai ter uma base que eacute o conhecimento teoacuterico Se vocecirc pegar um desenho em primeiro ou em terceiro diedro7 ele vai ser primeiro diedro e ter-ceiro diedro em qualquer parte do mundo A linguagem universal vocecirc aprende no campo da teoria estudando o desenho mesmo dentro da escola Agora existe um viver praacutetico eacute muito importante o lidar com determinadas peccedilas a experiecircncia do dia-a-dia porque o nosso desenho tem um agravante muito grave que ele natildeo tem detalhes Todos os elementos da ferramentaria estatildeo desenhados num soacute desenho entatildeo a pessoa precisa de enxergar todos os elementos naquele desenho de conjun-to (Ferramenteiro)

Para realizar o seu trabalho os ferramenteiros mobilizam saberes jaacute formalizados pela

ciecircncia e tecnologia bem como saberes taacutecitos que nascem na experiecircncia cotidiana indivi-

dual e coletivamente Entre os ferramenteiros que abordamos alguns natildeo tinham passado pelo

Senai ou seja natildeo tinham acessado atraveacutes da escola formal os saberes necessaacuterios agrave inter-

pretaccedilatildeo de desenho Ao longo de sua experiecircncia em chatildeo de faacutebrica eles aprenderam a mo-

bilizar saberes para interpretar o desenho e realizar o seu trabalho Apresentaremos a seguir

algumas situaccedilotildees que expressam as estrateacutegias que os ferramenteiros que passaram ou natildeo

pela escola formal criam para mobilizar os seus saberes variados

a) Recurso aos saberes do coletivo de trabalho

Pudemos observar que ao relativizarem a contribuiccedilatildeo da escola formal sempre ci-

tando o Senai e enfatizarem o papel da experiecircncia no chatildeo de faacutebrica no desenvolvimento de

um saber taacutecito que lhes permita interpretar o desenho da ferramenta os ferramenteiros se re-

feriram positivamente ao papel dos ldquosaberes do coletivo de trabalhordquo Um dos ferramenteiros

ao ser indagado sobre como conseguiu superar a sua dificuldade inicial com o desenho nos

relatou o seguinte

Houve momentos que pessoas me auxiliaram agraves vezes porque eu tive dificuldade de taacute entendendo aquelas linhas o que elas estavam querendo demonstrar para mim e agraves vezes pelo tempo por esse tempo para executar um determinado trabalho Pelo fato de eu natildeo ter aquele conhecimento ainda eu estava demorando para fazer neacute conseguir interpretar feito isso pessoas mais experientes chegam e te ajudam para

7 Segundo a explicaccedilatildeo dos ferramenteiros diedro eacute o rebatimento que se faz das vistas laterais da planta de qualquer desenho Dessa forma o chamado primeiro diedro a lateral da planta eacute projetada do lado direito jaacute no terceiro diedro a lateral da planta eacute projetada do lado esquerdo

123

que aquilo ali se consiga resolver aquela determinada tarefa (Ferramenteiro grifo nosso)

Em um outro depoimento novamente aparece uma referecircncia agrave possibilidade de os

ferramenteiros estarem aprendendo com um colega geralmente mais experiente

Na maioria das vezes quando vocecirc entra para trabalhar eles te apresentam o traba-lho vocecirc entra para trabalhar junto com alguma pessoa nunca vocecirc entra com o cargo de chefe da ferramenta Dificilmente vocecirc consegue aprender o projeto sozi-nho vocecirc comeccedila com o acompanhamento de uma pessoa que te auxilie te mostre alguns macetes para vocecirc comeccedilar a ver raacutepido uma determinada medida porque o nosso desenho eacute muito tracejado muita linha tracejada Entatildeo esse macete essa experiecircncia saber onde que taacute passando realmente a linha tracejada onde eacute que a linha eacute visiacutevel eacute que vocecirc sabe qual plano de altura que taacute a peccedila isso te confunde muito (Ferramenteiro)

Para aleacutem da interpretaccedilatildeo do desenho os ldquosaberes do coletivo de trabalhordquo satildeo tidos

pelos ferramenteiros como fundamentais para que eles se desenvolvam profissionalmente Na

empresa T de certa forma a interferecircncia dos ldquosaberes do coletivo no trabalhordquo de cada fer-

ramenteiro individualmente se vincula agrave organizaccedilatildeo do trabalho adotada pela empresa Os

ferramenteiros satildeo agrupados em ceacutelulas de forma que todos embora faccedilam diferentes traba-

lhos satildeo responsaacuteveis pela mesma ferramenta E ainda essa organizaccedilatildeo do trabalho preco-

niza uma hierarquia pela qual os ferramenteiros III coordenam e auxiliam o trabalho dos fer-

ramenteiros II sendo que estes coordenam e auxiliam o trabalho dos ferramenteiros I que

por sua vez satildeo auxiliados pelos aprendizes de ferramenteiro Foi possiacutevel constatar que essa

organizaccedilatildeo da ceacutelula natildeo impede que o mestre por exemplo faccedila interlocuccedilotildees com os a-

prendizes de ferramentaria Verificamos inclusive que uma das funccedilotildees dos mestres em fer-

ramentaria eacute acompanhar a formaccedilatildeo praacutetica dos aprendizes de ferramentaria e o do ferramen-

teiro I E ainda foi possiacutevel observar que os mestres veladamente dividem essa tarefa com

os ferramenteiros III

Apesar de a organizaccedilatildeo das ceacutelulas da ferramentaria na Empresa T obedecer a uma

oficialidade prescrita pela gerecircncia foi possiacutevel observar que entre os ferramenteiros circulam

124

normas e valores alheios ao que estaacute disponibilizado pelo trabalho prescrito que podem fun-

cionar como estrateacutegias para mobilizar saberes Segundo Daniellou Laville e Teiger (1989) a

socializaccedilatildeo de saberes entre os trabalhadores ocorre normalmente de maneira informal ou

seja natildeo-oficial Neste sentido encontramos diversas situaccedilotildees em que os ferramenteiros se

valem dos saberes do seu coletivo de trabalho para realizar uma determinada atividade cujo

conteuacutedo natildeo eacute totalmente conhecido pela gerecircncia Segundo a fala de um ferramenteiro

Tem coisa que eacute simples mas que vai te ajudar a resolver um problema complexo Muitas vezes pelo fato da sua duacutevida ser boba vocecirc fica sem jeito de perguntar o seu chefe o seu mestre vocecirc pergunta para um ferramenteiro que vocecirc confia tan-to porque ele sabe agraves vezes mais do que o mestre e porque ele natildeo vai te reprimir Inclusive jaacute aconteceu comigo um ferramenteiro experiente acaba te mostrando que a sua duacutevida natildeo era boba (Ferramenteiro)

Em um outro depoimento um ferramenteiro fez a seguinte reflexatildeo sobre os saberes

compartilhados pelos colegas de trabalho

Tem coisa que vocecirc aprende sozinho mas a ajuda dos colegas eacute importante demais Vocecirc sai igual aconteceu comigo do Senai e cai em uma ferramentaria de verdade eacute outro papo Se os ferramenteiros mais experientes natildeo te ajudarem vocecirc vai cus-tar a aprender Num eacute soacute nessa empresa natildeo eacute em qualquer outra Na ferramentaria tem coisa que parece ser mais natildeo eacute tem coisa que se vocecirc fizer igualzinho o de-senho natildeo vai funcionar Eacute por isso a ajuda dos colegas faz a diferenccedila O cara che-ga e te fala ldquoVocecirc tem fazer um aliacutevio aqui se natildeo acontece isso e issordquo Pois eacute igual eu te falei na ferramentaria por mais que vocecirc aprenda sozinho sem ajuda de um cara experiente fica complicado Eu tenho que agradecer porque sempre traba-lhei com ferramenteiro que gosta de ensinar (Ferramenteiro)

Observamos que a relaccedilatildeo dos ferramenteiros com os saberes do seu coletivo de traba-

lho natildeo eacute de simples transmissatildeo Neste sentido a constataccedilatildeo que fizemos de que os ferra-

menteiros mobilizam saberes reapropriados do seu coletivo de trabalho nos favoreceu a iden-

tificar ainda um outro tipo de mobilizaccedilatildeo de saber o ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo

b) ldquoEsforccedilo de abstraccedilatildeordquo

Ainda que possuam uma razoaacutevel compreensatildeo do trabalho prescrito os ferramentei-

ros concentram as suas estrateacutegias para mobilizar os seus saberes tambeacutem na construccedilatildeo da

125

ferramenta Em um grande nuacutemero de situaccedilotildees eles mobilizam os seus saberes taacutecitos para

ldquoajustar peccedilas para preacute-montar a ferramenta para dar acabamento e na montagem finalrdquo en-

fim para colocaacute-la em condiccedilatildeo de trabalho Os ferramenteiros elegem o ldquoesforccedilo de abstra-

ccedilatildeordquo dos movimentos da ferramenta como um recurso essencial para compreender o trabalho

prescrito Chamaremos de ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo o empenho que os ferramenteiros fazem pa-

ra associar a fala de um colega a um determinado componente ou mesmo para compreender

uma determinada situaccedilatildeo de funcionamento da ferramenta

Durante a construccedilatildeo da ferramenta o apelo a esse ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo coloca-se

tambeacutem como uma estrateacutegia de mobilizaccedilatildeo de saberes Mesmo com a ferramenta jaacute em

construccedilatildeo o recurso ao ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo eacute utilizado para que eles possam superar as

deficiecircncias do trabalho prescrito e ainda como uma forma de viabilizar a comunicaccedilatildeo entre

os colegas

Se o cara natildeo imaginar o que vocecirc estaacute falando ele natildeo enxerga ele natildeo aprende aliaacutes ele tem que enxergar para entender o que estaacute sendo falado Na ferramentaria vocecirc aprende todo dia mas o ferramenteiro experiente aprende mais Aprende mais por quecirc Porque ele enxerga mais coisas A mente do ferramenteiro tem que entrar dentro da ferramenta pelo menos comigo foi assim (Ferramenteiro)

O esforccedilo para abstrair a movimentaccedilatildeo da ferramenta pode colocar-se como um meio

de estabelecer uma complexa forma de ldquocomunicaccedilatildeo virtual com o trabalho prescritordquo Para

alguns ferramenteiros na medida em que se visualiza a ferramenta pode-se tambeacutem entender

melhor por que certas coisas satildeo exigidas na ferramenta Observamos que alguns ferramentei-

ros buscam simular um diaacutelogo com quem concebeu o trabalho prescrito qual seja o projetis-

ta da ferramenta

Quando vocecirc analisa bem o projeto vocecirc jaacute o tem em mente Sem conhecer o pro-jetista vocecirc sabe o que ele jaacute taacute pensando vocecirc jaacute sabe o que ele pensou quando projetou aquela ferramenta Por exemplo um ferramenteiro me chamou saacutebado porque ele natildeo estava conseguindo entender uma coisa Ele via aquilo no desenho mas natildeo conseguia imaginar aquilo funcionando entatildeo foi a partir desse ponto que eu peguei e noacutes sentamos juntos eu peguei e simulei eu fui desenhando e imagi-

126

nando Neste ponto eu vi o que ele tinha projetado Quando vocecirc projeta vocecirc pro-jeta as linhas e elas satildeo paradas entatildeo eu vi juntamente com ele observamos aque-la situaccedilatildeo Eu peguei e falei com ele olha o projetista ele pensou da seguinte forma ldquoessa cunha vai encostar no lado de caacute ela vai cortar do lado de caacuterdquo Natildeo necessariamente o desenho contou isso mas foi olhando o desenho e imaginando que soacute poderia considerar daquela forma ou entatildeo natildeo ia funcionar O projetista ti-nha pensado de alguma forma a gente ficou ali sentado uma meia hora mas aiacute eu consegui entender o que ele realmente pensava Ele pensava o funcionamento dessa forma e consultando outras pessoas depois para tirar as duacutevidas o pessoal da en-genharia a coisa eacute do jeito que a gente tinha imaginado (Ferramenteiro)

Ainda um outro depoimento confirma

Natildeo adianta muitas vezes vocecirc querer tomar uma decisatildeo precipitada Muitas ve-zes vocecirc tem que dar aquela paradinha para fazer uma reflexatildeo analisar direitinho muitas vezes vocecirc chega ali e opa Natildeo o que que taacute acontecendo aqui Vocecirc vai analisar se for possiacutevel vocecirc bate um papo com o outro colega ou chama o superi-or ou tal vai na engenharia Muita vezes a gente tem que procurar neacute esse povo porque vocecirc pode chegar aqui e taacute interpretando aquilo ali vocecirc taacute vendo uma for-ma mas talvez se vocecirc fala mas o que o cara estava querendo expressar o que que o cara quis determinar nisso aqui Vocecirc taacute lendo um desenho muitas vezes vocecirc precisa dessa ajuda ou vocecirc tem que saber o que o cara quis pensar o que o cara pensou (Ferramenteiro)

O ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo ao mesmo tempo em que lhes facilita compreender um de-

terminado raciociacutenio de um colega associando-o a uma situaccedilatildeo de trabalho acaba por lhes

permitir tambeacutem uma reapropriaccedilatildeo dos saberes do seu coletivo de trabalho o que lhes permi-

te uma construccedilatildeo pessoal do seu proacuteprio saber Verificamos que essa reapropriaccedilatildeo de sabe-

res manifestada pelos ferramenteiros indica tambeacutem que eles podem mobilizar saberes por

meio de uma estrateacutegia que chamamos de ldquosaber usar o corpordquo Eacute o que apresentaremos no

proacuteximo toacutepico

c) ldquoSaber usar o corpordquo

Ao tentar identificar as estrateacutegias utilizadas pelos ferramenteiros para mobilizar os

seus saberes verificamos uma frequumlente referecircncia a um certo ldquosaber usar o corpordquo no traba-

lho Conforme jaacute dissemos alguns pensadores (ARANHA 1997 SANTOS 1997) criticam as

concepccedilotildees que naturalizam os saberes taacutecitos Portanto ao abordar o saber taacutecito pelos atri-

127

butos corporais poderiacuteamos correr o risco de corroborar a loacutegica de naturalizaccedilatildeo deste tipo de

saber Natildeo obstante inuacutemeras vezes os ferramenteiros se referem ao ldquosaber usar o corpordquo co-

mo estrateacutegia fundamental para mobilizar os seus saberes taacutecitos Muitos apontam inclusive

que o uso do corpo eacute um dos aspectos que confere ao ferramenteiro uma vantagem sobre o

projetista

O projetista tem um grande problema hoje em dia Antes ele trabalhava com a prancheta agora ele trabalha no computador em uma tela de no maacuteximo 20 pole-gadas As nossas ferramentas aleacutem de ter vaacuterios componentes agraves vezes 700 ou 800 mede quase 3 ou 4 metros E tem mais no computador vocecirc natildeo pega com a matildeo natildeo ouve e natildeo vecirc direto as peccedilas Noacutes olhamos escutamos ateacute para usar a visatildeo tem macete que no computador deve ser mais difiacutecil neacute (Ferramenteiro)

Ademais pudemos constatar que esse ldquosaber usar o corpordquo eacute parte de uma trama que

envolve outros diversos saberes os quais satildeo mediados por estrateacutegias que mobilizam o cole-

tivo no trabalho a reapropriaccedilatildeo de saberes formais a memoacuteria e aspectos subjetivos como a

esteacutetica Em muitas situaccedilotildees com que nos deparamos em nosso campo de pesquisa eviden-

ciou-se que o uso do corpo pelos ferramenteiros para realizar uma determinada atividade natildeo

prescinde de outros saberes

Existe uma outra coisa chamada habilidade A habilidade do ferramenteiro se faz com os anos Para vocecirc estabelecer fazer uma correccedilatildeo de uma superfiacutecie se eu te perguntasse vocecirc compraria um carro com amassamento Natildeo Entatildeo vocecirc compra um carro com ondulaccedilatildeo De jeito nenhum Agora tem homens inclusive eu que satildeo especialistas em passar pedra para criar superfiacutecies em condiccedilotildees para quando estampar a chapa Para isso a experiecircncia eacute fundamental porque vocecirc tem que sa-ber usar a matildeo o tato e a visatildeo mas vocecirc tem que saber por que um acabamento eacute assim e assado Quando vocecirc sabe por que que uma parte da ferramenta tem um ti-po de acabamento e uma outra parte tem outro tipo fica mais faacutecil vocecirc se sente mais seguro vocecirc sabe ateacute onde daacute para inventar (Mestre de ferramentaria)

Uma outra situaccedilatildeo em que verificamos o ldquosaber usar o corpordquo deu-se a partir da ob-

servaccedilatildeo que fizemos do trabalho de um ferramenteiro tido pelos colegas como excelente

profissional para dar acabamento Ao nos aproximarmos desse profissional observamos que

ele fitava a ferramenta abaixava e levantava a cabeccedila inclinando levemente o peito para fren-

128

te Este estranho movimento nos chamou muito a atenccedilatildeo Foi quando o abordamos e ele nos

convidou a localizar um problema no acabamento de uma ferramenta Jaacute sabiacuteamos que se tra-

tava de um trabalho de acabamento e ao perguntarmos o porquecirc daqueles movimentos com o

corpo esse ferramenteiro iniciou o seu relato

Esse trabalho depende muito da visatildeo depende muito da posiccedilatildeo que vocecirc olha Taacute vendo essa quina aqui taacute vendo ela tem um raio se isso ficar errado perde o servi-ccedilo todo Soacute para vocecirc ter uma ideacuteia esse tipo de ferramenta eacute a primeira vez que eacute feita no Brasil Esse trabalho aqui as maacutequinas natildeo conseguem fazer eacute com a matildeo de um ferramenteiro que ela eacute feita Eacute igual eu te falei vocecirc tem que procurar uma posiccedilatildeo para poder enxergar os buraquinhos8 eu ateacute torccedilo um pouco a cabeccedila vou para laacute e para caacute ateacute achar um ponto para ver melhor (Ferramenteiro)

Ao ser indagado por que o seu trabalho de acabamento eacute tido como diferente dos de-

mais colegas a resposta dada por este ferramenteiro nos revela que aleacutem do ldquosaber usar o

corpordquo eles mobilizam saberes formais reapropriados da ciecircncia e tecnologia

Para dar acabamento tem um monte de conhecimento Tem uns caras que usam umas pedra mais fina porque ela corta menos e natildeo precisa a pessoa pocircr forccedila Po-de ser pouquinha forccedila se vocecirc quiser que um trabalho rende entatildeo a pessoa tem que usar uma pedra mais grossa uma sessenta dependendo do material se for mui-to duro se for material duro tem que ser uma pedra sessenta entendeu Eu aprendi uma coisa laacute na Fiat Eu faccedilo o seguinte eu uso lixa grossa e uma pedra grossa e o acabamento fica bom Porque eu faccedilo igual as maacutequinas da usinagem Para dar a-cabamento elas (as maacutequinas) trabalham com alta rotaccedilatildeo entatildeo eu passo a lixa ou a pedra com rapidez Na ferramentaria a pessoa tem que ter entusiasmo tem que gostar tem gente que natildeo gosta eacute cego quem natildeo vecirc tem gente que natildeo gosta natildeo tem entusiasmo Eu natildeo toda vida eu tive entusiasmo por ferramentaria por meca-nizaccedilatildeo pneumaacutetica graccedilas a Deus Por isso eu tocirc aiacute ateacute hoje garrado (risos) por-que eu gosto eu gosto de fazer o meu trabalho (Ferramenteiro)

Um depoimento de outro ferramenteiro aleacutem de corroborar a possibilidade de um cer-

to ldquosaber usar o corpordquo ndash no caso a visatildeo e o tato ndash ser tomado como um saber taacutecito aponta

tambeacutem a contribuiccedilatildeo de outros saberes formais como as noccedilotildees de desenho mecacircnico e de

geometria

8 Embora esse ferramenteiro e outros tenham falado em buraquinhos eacute importante esclarecer que trata-se de alteraccedilotildees de relevo da ordem de centeacutesimo de miliacutemetros ou seja dificiacutelimos de serem vistos a olho nu

129

Geralmente vocecirc olha a peccedila num plano horizontal vocecirc consegue ver que a super-fiacutecie estaacute um pouco ondulada quando a superfiacutecie estaacute com o acabamento constan-te O outro ponto eacute o horizontal quando vocecirc enxerga a peccedila entre a curvatura e o plano vocecirc natildeo consegue ver isso na terra Quando vocecirc natildeo consegue ver vocecirc tem que sentir a peccedila vocecirc vai passando a matildeo na superfiacutecie da peccedila vocecirc sabe se ela estaacute ondulada se precisa de mais acabamento e um raio por exemplo a gente chama de raio quebrado eacute quando o raio tem quina essa quina na verdade nada mais eacute do que o encontro aonde termina e onde comeccedila o desenho do raio Esse ponto tem que ter concordacircncia exata no plano se ele natildeo tem concordacircncia no plano ele vai ter quina e essa quina vocecirc soacute observa no tato vocecirc passa a matildeo e sente opa esse raio aqui estaacute precisando ter um acabamento melhor (Ferramentei-ro)

Observamos que o trabalho prescrito na Empresa T natildeo soacute reconhece a validade deste

ldquosaber usar o sentido da visatildeordquo bem como vem procurando dotar uma estrutura fiacutesica para

que ele possa ocorrer com mais facilidade Ainda tendo como base as indicaccedilotildees do depoi-

mento anterior fomos ateacute a linha do try-out da Empresa T e verificamos que haacute uma espeacutecie

de cabana equipada com lacircmpadas fluorescentes Segundo os ferramenteiros a incidecircncia de

luzes ajuda na identificaccedilatildeo dos ldquoburaquinhosrdquo na chapa praacutetica bem conhecida nas ferra-

mentarias

Jaacute passei por esta experiecircncia dentro da Fiat Tinha uma peccedila laacute a tampa traseira do Palio a primeira peccedila tava boa quando noacutes entregamos a peccedila para o pessoal da qualidade da Fiat eles pegaram a peccedila levaram ela pra debaixo do jogo de luz de-veria ter umas vinte lacircmpadas fluorescentes pegaram o oacuteleo e passaram sobre ela e olham pela horizontal eles foram observando e o pessoal foi mostrando para a gen-te olha por este ponto por este ponto dava pra ver manchas na peccedila (Ferramentei-ro)

Ainda um outro depoimento

Vocecirc olha no plano horizontal soacute que existe diferenccedila de vocecirc olhar no plano hori-zontal ou no plano vertical quando vocecirc olha a peccedila de cima pra baixo vocecirc natildeo consegue ver estas manchas se vocecirc olhar as peccedilas de cima pra baixo vocecirc natildeo tem noccedilatildeo de profundidade quando vocecirc olha a peccedila no plano horizontal vocecirc tem noccedilatildeo de profundidade Essa que eacute a diferenccedila de vocecirc olhar a peccedila no plano hori-zontal Quando vocecirc olha a peccedila assim vista grossa sem observar os pontos quando vocecirc observa os pontos no plano horizontal com noccedilatildeo de profundidade entatildeo daacute pra vocecirc ver se a peccedila estaacute ondulada ou natildeo Quando vocecirc olha por cima vocecirc natildeo vecirc que estaacute peccedila taacute ondulada entatildeo este eacute o ponto que a pessoa precisa ser um bom observador (Ferramenteiro)

130

Ao perguntarmos ao ferramenteiro como interpretar a incidecircncia das luzes sobre as pe-

ccedilas nos foi relatado que haacute uma influecircncia de saberes que circulam na ldquoescola formalrdquo como

por exemplo uma certa noccedilatildeo de oacuteptica No entanto se evidenciou tambeacutem que esses sabe-

res natildeo foram formalizados ainda pelo trabalho prescrito

Quando vocecirc passa o oacuteleo e com a luz refletida sobre ele eacute ateacute um pouco de fiacutesica neacute que eacute a refraccedilatildeo da luz e quando a luz bate sobre o oacuteleo quando vocecirc tem o mesmo plano de superfiacutecie constante essa superfiacutecie ela eacute refletida igualmente a luz eacute refletida igualmente Se vocecirc tem planos diferentes o plano superior ele eacute mais refletido o plano inferior a luz eacute refletida menor entatildeo justamente sobre esta sombra que vocecirc vecirc que a superfiacutecie natildeo taacute igual tem alguma ondulaccedilatildeo eacute justa-mente aiacute (Ferramenteiro)

e) ldquoRecurso aos saberes cientiacuteficos e tecnoloacutegicosrdquo

Haacute ainda outros tipos de saberes pertencentes ao campo da ciecircncia e da tecnologia

que satildeo mobilizados pelos ferramenteiros Alguns destes saberes jaacute foram inclusive indica-

dos em depoimentos anteriores Trata-se especialmente de saberes ligados ldquoao desenho me-

cacircnico agrave geometria agrave trigonometria e agrave tecnologia mecacircnicardquo9

Se de um lado demonstramos ao longo deste capiacutetulo que os ferramenteiros usam os

seus saberes taacutecitos para facilitar a interpretaccedilatildeo do desenho da ferramenta por outro lado a

maioria dos ferramenteiros apontam tambeacutem que conhecer as ldquonormas do desenho mecacircni-

cordquo eacute importantiacutessimo para poder interpretaacute-lo Em um depoimento nos foi relatado o seguin-

te ldquoquem natildeo souber ler o desenho dificilmente faraacute a ferramenta Apesar de que a gente a-

prende mesmo eacute na praacutetica a teoria ajuda bastante Se vocecirc jaacute sabe o que significa tal linha o

que significa tal siacutembolo eacute muito mais faacutecil para um outro cara te explicar o desenhordquo A fala

de um outro ferramenteiro aleacutem de corroborar o depoimento anterior aponta outras vanta-

gens de ter como eles dizem ldquouma base de desenho mecacircnicordquo

Se vocecirc jaacute tem uma base uma noccedilatildeo de desenho mecacircnico jaacute facilita muito O de-senho da ferramentaria eacute um desenho muito cheio de linhas e medidas Se vocecirc tem

9 Dentre os diversos processos associados agrave tecnologia mecacircnica Aqui tomaremos apenas alguns exemplos vinculados agrave usinagem agrave metrologia e agrave resistecircncia de materiais e evidentemente agrave proacutepria ferramentaria

131

essa noccedilatildeo de desenho vocecirc pode falar bem ou mal do projetista Vocecirc vai ver se ele estaacute te oferecendo tudo que ele podia te oferecer de informaccedilotildees Outra coisa importante da teoria eacute o detalhamento do desenho Vocecirc natildeo precisa ficar procu-rando uma medida porque agraves vezes o detalhe do desenho vai te explicar Entatildeo eacute bom vocecirc saber o que eacute um detalhe eacute bom ter uma certa teoria (Ferramenteiro)

Durante as nossas observaccedilotildees e tambeacutem nas entrevistas que realizamos pudemos

observar que uma boa parte dos ferramenteiros fazem valer os seus ldquosaberes de geometria e

trigonometriardquo Estes saberes nos foram explicitados ainda que somados aos saberes oriundos

da praacutetica em diversas situaccedilotildees que exigiam dos ferramenteiros a localizaccedilatildeo de uma deter-

minada medida ou de uma determinada peccedila a qual natildeo havia sido indicada pelo desenho da

ferramenta (ver Fig 6)

Apesar de ser um trabalho que pede bastante praacutetica a ferramentaria tambeacutem exi-ge uma noccedilatildeo de teoria Ontem mesmo tinha umas medidas faltando no desenho e natildeo tinha jeito de saber qual que seria essa medida porque a peccedila que seria monta-da natildeo estava pronta Eu fui e chamei o mestre da nossa ceacutelula e para adiantar o serviccedilo noacutes fizemos o caacutelculo pela trigonometria Nessa hora aleacutem da praacutetica eu ti-ve que usar a matemaacutetica a trigonometria (Ferramenteiro)

Figura 6 Croqui feito a partir de uma superposiccedilatildeo de triacircngulo retacircngulo

Em alguns casos pudemos observar que a noccedilatildeo de ldquogeometriardquo dos ferramenteiros

era enriquecida pelos saberes relacionados agrave ldquotecnologia mecacircnicardquo Essa possibilidade foi

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constatada quando observamos que os ferramenteiros para explicar um trabalho uns aos ou-

tros mobilizam seus saberes de ldquogeometriardquo associando-os ao trabalho executado pela ferra-

menta Em um desses casos verificamos que conceitos oriundos da geometria como por e-

xemplo esquadro paralelismo ou perpendicularidade satildeo discutidos a partir da construccedilatildeo e

do funcionamento da ferramenta Vejamos um depoimento

Na ferramenta tudo depende do esquadro Eacute a partir do esquadro que a gente traba-lha todas as medidas da ferramenta Por quecirc A ferramenta faz o movimento de su-bir e descer Entatildeo ela tem que ter perpendicularidade tem que ter esquadro O que eacute um esquadro Noacutes chamamos de esquadro o encontro de duas superfiacutecies for-mando um acircngulo de 90 (graus) Aiacute eacute que eu te falo a teoria tambeacutem eacute importan-te porque se o ferramenteiro jaacute tem uma noccedilatildeo do que que eacute um esquadro na hora que ele ver ou imaginar a ferramenta trabalhando ele vai pensar no esquadro da ferramenta ele vai ficar preocupado Aiacute com certeza quando ele estiver constru-indo ele vai usar essa noccedilatildeo para controlar o seu proacuteprio trabalho (Mestre de fer-ramentaria)

Foi possiacutevel constatar tambeacutem que os ferramenteiros mobilizam um outro saber vin-

culado agrave ldquotecnologia mecacircnicardquo mais precisamente a ldquometrologiardquo parte da ciecircncia que cuida

do sistema de medidas voltadas para a construccedilatildeo (NOVASKI 1994) A mobilizaccedilatildeo dos sa-

beres vinculados agrave ldquometrologiardquo nos foi explicitada pelos ferramenteiros ao longo de toda a

construccedilatildeo da ferramenta muitas vezes associada agrave mobilizaccedilatildeo de um determinado saber taacute-

cito Segundo um ferramenteiro

O ferramenteiro tem que saber o que eacute um ajuste de precisatildeo natildeo basta ele seguir o desenho Ele tem que saber que dois centeacutesimos (de miliacutemetro) de erro pode com-prometer o funcionamento da ferramenta Por quecirc Eacute muito pouca coisa ele pode achar que natildeo errou nada Se ele entender de metrologia ele vai saber a importacircn-cia do ajuste Ateacute mesmo para criticar o desenho vocecirc tem que saber a influecircncia das medidas Eu jaacute vi acontecer o ferramenteiro tentar encaixar uma peccedila e ela natildeo entra de jeito nenhum Se tiver um centeacutesimo a mais natildeo encaixa mesmo vai te forccedilar para encaixar Se o cara conhece de ajuste de medidas ele natildeo vai forccedilar a peccedila Ele vai ajustar a medida para depois montar a peccedila (Ferramenteiro)

Para realizar o trabalho de acabamento pudemos verificar que os ferramenteiros mobi-

lizam outros saberes aleacutem daqueles oriundos da ldquometrologiardquo Observamos que para realizar

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o acabamento eles se valem da sua percepccedilatildeo de centeacutesimos de miliacutemetros e da tecnologia de

corte da ldquousinagemrdquo

Esse trabalho de acabamento a gente tem que trabalhar buscando fazer um X tem passar a pedra sempre de forma cruzada sempre fazendo um X Sabe por quecirc Porque vocecirc nunca retira material por igual na superfiacutecie sempre sai mais de um lado do que do outro Isso acontece na maacutequina tambeacutem aliaacutes a gente soacute faz o acabamento na matildeo porque natildeo tem maacutequina que garanta dois centeacutesimos de preci-satildeo em toda superfiacutecie Se vocecirc compreender como o corte de material eacute feito na maacutequina vocecirc passa a compreender melhor como usar a pedra Entatildeo se vocecirc pas-sa a pedra em forma de X diminui a possibilidade de vocecirc passar a pedra num lu-gar soacute (Ferramenteiro)

Podemos afirmar embora esta possibilidade seja tratada com mais profundidade no

proacuteximo toacutepico que foram muitos os elementos encontrados em nossa pesquisa de campo que

demonstram que os ferramenteiros quaisquer que sejam os saberes que eles mobilizam soacute o

fazem por terem como referecircncia saberes que de alguma forma foram registrados e que por

isso mesmo podem em uma determinada circunstacircncia serem consultados ou ainda porque

foram disponibilizados por um outro colega de trabalho Dessa forma gostariacuteamos de salien-

tar que alguns saberes taacutecitos que os ferramenteiros mobilizam seratildeo mais bem percebidos

quando apresentarmos as estrateacutegias que eles criam para formalizar esses saberes

43 As ESTRATEacuteGIAS DOS FERRAMENTEIROS PARA FORMALIZAR OS SEUS SABERES TAacuteCITOS

O que eacute conhecido sempre parece sistemaacutetico provado aplicaacutevel e evidente para aquele que conhece Da mesma forma todo sistema alheio de conhecimento sem-pre parece contraditoacuterio natildeo provado inaplicaacutevel irreal e miacutestico (FLECK apud BURKE 2003)

Durante o periacuteodo em que ficamos imersos no campo de pesquisa foram muitas as ve-

zes em que os ferramenteiros sinalizaram uma preocupaccedilatildeo com a eficiecircncia ou com a vali-

dade dos seus saberes taacutecitos Constatamos tambeacutem que os ferramenteiros se mobilizavam

para tornaacute-los um objeto passiacutevel de ser comunicado de ser consultado para realizar um de-

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terminado trabalho isto eacute um tipo de paracircmetro que de alguma forma eles pudessem usar em

situaccedilotildees futuras ou entatildeo para comunicaacute-lo aos seus pares no trabalho Ao nosso olhar esse

esforccedilo dos ferramenteiros em criar mecanismos que permitam comunicar os seus saberes taacute-

citos ou consultaacute-los quando for necessaacuterio pode ser entendido como estrateacutegias que eles

mesmos criam para formalizaacute-los De acordo com o dicionaacuterio Ferreira (1986 p 800) for-

malizar eacute ldquo[De forma + izar] vtd 1 ndash Dar forma a formar 2 ndash Realizar segundo as formulas

ou formalidades 3 ndash Executar conforme regras ou claacuteusulasrdquo Chamamos de estrateacutegias de

formalizaccedilatildeo ldquoos diaacuterios de bordo os croquis e os gabaritosrdquo que os ferramenteiros usam co-

mo forma de registrarem ou comunicarem os seus saberes taacutecitos No entanto ousaremos a-

presentar ldquoa memoacuteria e a reflexatildeordquo como uma espeacutecie de estrateacutegias particulares de formalizar

os saberes taacutecitos por parte dos ferramenteiros Eacute o que buscaremos apresentar de agora em

diante

Para Santos (1997) a imprevisibilidade e variabilidade das situaccedilotildees de trabalho a in-

fidelidade dos materiais e as vicissitudes do trabalho humano satildeo alguns dos fatores do traba-

lho real que resistem agrave formalizaccedilatildeo no trabalho prescrito Nossas observaccedilotildees no campo de

pesquisa bem como as entrevistas realizadas nos mostraram que de fato satildeo muitos os sabe-

res taacutecitos que escapam agraves estrateacutegias dos ferramenteiros em formalizaacute-los De acordo com

Santos (1997) o saber taacutecito pode ser da ordem do informalizaacutevel por dois motivos baacutesicos

Primeiro porque podem faltar na atualidade recursos de linguagem ou epistemoloacutegicos para a

formalizaccedilatildeo desse tipo de saber tal como para alguns saberes da engenharia Essa autora a-

inda fala que uma outra dificuldade em formalizar o saber taacutecito pode estar vinculada agraves bar-

reiras sociais e psiacutequicas que os trabalhadores podem ter para verbalizar uma experiecircncia En-

tretanto a proacutepria autora afirma que se de um lado isto significa que nem tudo pode ser sim-

bolizado codificado ou formalizado ldquopor outro lado demonstra que a experiecircncia deste in-

formalizaacutevel pode ser expressa em linguagens diferentes das usuaisrdquo (SANTOS 1997 p 20)

135

Santos (1997) entende que primeiro haacute saberes que ainda natildeo foram formalizados

mas que podem secirc-lo Segundo que haacute saberes que natildeo satildeo formalizaacuteveis Isto se aplica tanto

agravequeles que se inscrevem no trabalho real quanto a outros que satildeo oriundos da engenharia

De acordo com essa autora ldquoevidentemente o fato de que um saber natildeo foi ainda formalizado

natildeo significa que ele natildeo possa secirc-lo um diardquo (p 23) Santos (1997) faz uma criacutetica agrave perspec-

tiva que contesta a possibilidade de formalizaccedilatildeo dos saberes oriundos do chatildeo de faacutebrica

pois considera que tal noccedilatildeo se funda exclusivamente em um certo modelo de linguagem

proacuteprio do saber dos engenheiros ou seja do trabalho prescrito A autora aponta que um sa-

ber ainda natildeo formalizado pode se exprimir com os recursos de linguagem disponiacuteveis ao tra-

balhador da faacutebrica ou seja por linguagens que escapam ao modelo de formalizaccedilatildeo do traba-

lho prescrito pela engenharia

Como jaacute afirmamos anteriormente as estrateacutegias que os ferramenteiros usam para

formalizar os seus saberes taacutecitos se inscrevem tanto como um meio de registro desses sabe-

res quanto como uma forma de tornaacute-los comunicaacuteveis para si proacuteprio ou mesmo para o seu

coletivo de trabalho no presente ou no futuro

Dentre os vaacuterios relatos que coletamos alguns corroboram essa perspectiva apontada

por Santos (1997) de que os trabalhadores podem com sua proacutepria linguagem formalizar os

seus saberes taacutecitos Quando perguntamos aos ferramenteiros em que medida os saberes cons-

truiacutedos a partir da sua experiecircncia eram confiaacuteveis ou mesmo necessaacuterios um depoimento

nos pareceu revelador pelo seu conteuacutedo Ele indica que uma visatildeo mais ampliada do proces-

so de trabalho pode estar associada agrave capacidade dos ferramenteiros em formalizar os seus sa-

beres taacutecitos

E aiacute professor outro dia vocecirc me perguntou o que um ferramenteiro precisa saber tem um exemplo que estaacute acontecendo agora Eles estatildeo precisando da gente laacute na Fiat tem uma ferramenta dando problema laacute a linha estaacute parada Nessa hora o fer-ramenteiro natildeo pode soacute saber que o galo canta a gente tem que saber aonde o galo canta Quando a gente chegar laacute natildeo adianta falar que o produto natildeo estaacute bom a gente tem que localizar e acabar com o problema Eacute por isso que eu te falei o fer-ramenteiro completo um ferramenteiro bom natildeo eacute soacute aquele que monta as peccedilas

136

direitinho ele tem que saber o que eacute o quecirc Por que uma peccedila movimenta Ele tem que ter uma capacidade de monitorar a ferramenta quem sabe por que construiu com certeza vai ter mais facilidade para resolver qualquer problema (Ferramentei-ro)

Observamos que o uso das estrateacutegias por parte dos ferramenteiros para viabilizar a

comunicaccedilatildeo dos saberes taacutecitos no coletivo de trabalho serve tambeacutem como uma forma so-

cial de certificar a validade desse tipo de saber De certa forma isso indica que os saberes taacute-

citos dos ferramenteiros podem se inscrever a partir de uma ldquoperspectiva coletivardquo De acordo

com Collins apud Lima (1998) ldquoo saber estaacute nas situaccedilotildees no contexto em que se desenrola

a accedilatildeo o seu lugar por excelecircncia eacute o grupo social e natildeo a cabeccedila de seus membrosrdquo (p 144)

Em um depoimento que coletamos a necessidade que os ferramenteiros tecircm de se a-

poiar no seu coletivo de trabalho ao mesmo tempo em que remete agrave preocupaccedilatildeo em validar

os seus saberes taacutecitos nos revela tambeacutem a possibilidade de dar-lhes uma forma para co-

municaacute-los

O ferramenteiro nunca trabalha sozinho O que estaacute do lado de fora tem uma visatildeo do trabalho e pode ajudar o ferramenteiro que estaacute ligado diretamente trabalho Talvez uma opiniatildeo de quem estaacute do lado de fora da equipe dele que natildeo estaacute vi-vendo exatamente o trabalho mas a equipe que eacute composta por uma ceacutelula pode algueacutem chegar e dar uma opiniatildeo ele natildeo vai mudar soacute porque o outro falou os dois vatildeo discutir vatildeo saber exatamente qual que eacute melhor e vai fazer o que ele a-cha melhor (Mestre de ferramentaria)

Em um outro depoimento

Primeiro eu vou fazer uma colocaccedilatildeo eacute o seguinte quando a gente toma uma me-todologia de trabalho quando a gente de certa forma inventa o processo de traba-lho a ser feito eu particularmente nunca faccedilo isso soacute Eu tenho a minha opiniatildeo proacutepria mas sempre eu busco conselho eu busco opiniotildees de outras pessoas pra poder ver se as pessoas concordam com o meu pensamento porque a gente pode ser que esteja vendo a coisa por um lado com a opiniatildeo de outra pessoa a pessoa me apoacuteia e a gente realiza aquilo que eu imaginei ou entatildeo a pessoa me alerta so-bre determinado tipo de problema que pode acontecer se eu realmente levar em frente o que eu estou pensando sempre no meu caso eu procuro buscar opiniatildeo de outras pessoas e de preferecircncia pessoas mais experientes (Ferramenteiro)

137

A possibilidade de que a formalizaccedilatildeo dos saberes taacutecitos dos ferramenteiros dentre

outros motivos se decirc articulada ao coletivo do trabalho natildeo soacute eacute de conhecimento da empresa

T mas eacute assumida pela loacutegica do capital no sentido de melhorar o processo de trabalho Ve-

jamos a fala de um dos coordenadores da Ferramentaria

Hoje a metodologia que a gente implantou aqui na empresa eacute total liberdade do fer-ramenteiro desde de que ele discuta se tiver alguma duacutevida discuta com a chefia imediata ou colega sempre criaccedilatildeo e inovaccedilatildeo seraacute bem-vinda Mesmo se todo mundo que discutiu o assunto teve consciecircncia de que aquilo ia dar certo no final deu errado natildeo tem problema nenhum isso quer dizer que noacutes demos espaccedilo para ele criar talvez o resultado natildeo seja tatildeo satisfatoacuterio quanto imaginamos mas para outros que trabalham com certeza seraacute mais eficaz (Coordenador da ferramentaria)

a) Reflexatildeo

Aleacutem da influecircncia do coletivo de trabalho na formalizaccedilatildeo dos saberes taacutecitos mobili-

zados pelos ferramenteiros observamos que eles quase sempre submetiam estes saberes a um

ldquomomento de reflexatildeordquo o que de certa forma indica uma possibilidade de formalizaccedilatildeo Fo-

ram muitas as vezes em que nos deparamos com alguns ferramenteiros aparentemente sem

trabalhar Constatamos em alguns diaacutelogos inclusive junto agrave gerecircncia que dentro da Empresa

T esse ldquotempo paradordquo eacute tido como necessaacuterio ldquopara o tipo de trabalho que se faz na ferra-

mentariardquo Observamos que esse tempo para reflexatildeo permitia ao ferramenteiro aleacutem de uma

melhor compreensatildeo sobre o trabalho prescrito monitorar a mobilizaccedilatildeo dos seus saberes taacute-

citos e dar uma organizaccedilatildeo agraves suas ideacuteias Neste sentido torna-se exequumliacutevel por parte dos fer-

ramenteiros mobilizar saberes taacutecitos e ter uma razoaacutevel compreensatildeo sobre este processo

Essa possibilidade eacute bem explicitada nas situaccedilotildees em que os ferramenteiros manifestaram

uma sofisticada capacidade de abstraccedilatildeo ilustrada pela capacidade de fazer um trabalho e ao

mesmo tempo pensar em outro

Fazer uma coisa e estar pensando em outra eacute uma constante para o ferramenteiro porque para vocecirc realizar um trabalho vocecirc precisa pensar em como realizar o tra-balho A partir do momento que vocecirc comeccedila a realizar aquele trabalho manual de ajuste de acabamento soacute que a sua mente de certa forma estaacute um pouco vazia

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porque aquele trabalho que vocecirc estaacute fazendo ateacute entatildeo jaacute foi projetado de como vocecirc deveria fazer Vocecirc pode estar executando da forma que vocecirc natildeo tinha pen-sado em fazer Aiacute no proacuteximo trabalho que vocecirc tem que fazer vocecirc estaacute pensando nele ainda entatildeo vocecirc estaacute executando o trabalho como vocecirc jaacute pensou em como fazer e vocecirc jaacute estaacute pensando no trabalho a ser feito Isso eacute constante (Ferramentei-ro)

Vejamos um outro depoimento

Natildeo tenha duacutevida que o ser humano tem essa capacidade de estar trabalhando e au-tomaticamente vislumbrando algo agrave frente Mas eacute interessante ressaltar que durante o processo de trabalho sua mente e sua visatildeo o seu processo de trabalho tem que estar focado na sua atividade principal Eacute loacutegico o seu ceacuterebro tem uma capacidade de comando e de raciociacutenio que eacute incalculaacutevel quem sou eu para mensurar isso Mas a atividade primaacuteria eacute que te demanda maior concentraccedilatildeo e isso natildeo te impe-de de ver outras coisas ou imaginar outras coisas mas com certeza o foco principal vocecirc estaacute concentrado na operaccedilatildeo que vocecirc estaacute executando naquela hora (Ferra-menteiro)

Ainda sobre a possibilidade de a reflexatildeo expressar uma certa formalizaccedilatildeo de saberes

Por exemplo fazer uma alteraccedilatildeo e aiacute eu pensei em como vou fazer essa alteraccedilatildeo Eu vou prender a peccedila dessa forma eu vou colocar essa broca vou furar o preacute-furo vou fazer esse furo de 17mm e vou pegar uma broca de 18mm Comeccedila a realizar o trabalho Eacute aquilo que eu falei anteriormente eu natildeo posso estar executando uma tarefa atraacutes da outra tarefa sem pensar no todo sem pensar no funcionamento E eu tenho que pensar no funcionamento Aiacute eu consigo ter soluccedilotildees para problemas fu-turos Isso jaacute estaacute na minha cabeccedila memorizado desde a primeira vez que eu fiz o trabalho e esse trabalho ficou memorizado entatildeo eu jaacute tenho uma noccedilatildeo de como realizar (Ferramenteiro)

Mesmo quando a rotina parece recobrir a capacidade de reflexatildeo podemos pensar num

conjunto de saberes acumulados portanto num niacutevel qualquer de formalizaccedilatildeo

Aiacute que eu falo tem uns pulos do gato a gente daacute uma paradinha para monitorar o que estamos fazendo quando eu falo que a gente jaacute sabe e natildeo precisa pensar de-mais eacute jeito de falar eacute claro que dou umas paradinhas soacute que pela minha experiecircn-cia eu natildeo preciso ficar uma hora duas horas pensando (Ferramenteiro)

Um outro depoimento tambeacutem expressa a possibilidade de haver como diz Schon

(2000) uma ldquoreflexatildeo no meio da accedilatildeordquo

139

A gente parte do pressuposto que toda vez que vocecirc quer ajustar uma determinada peccedila eacute porque vocecirc visa que essa peccedila eacute fundamental que ela tem acoplamento com a outra peccedila Durante o processo vocecirc vai fazendo uma microgestatildeo deste a-juste vocecirc vai passando a pasta de ajuste e a pasta de ajuste vai revelando para vo-cecirc quanto que a superfiacutecie taacute tocando se ela taacute tocando 50 da peccedila se taacute tocando 60 da peccedila cada ajuste que vocecirc vai aumentando vai chegando ateacute o limite miacute-nimo qual vocecirc precisa (Ferramenteiro grifo nosso)

Em nosso entendimento o uso da expressatildeo ldquonatildeo pensarrdquo por parte dos ferramenteiros

pode ser tomado como gastar ldquomenos tempo pensando ou pensar sem prestar muita atenccedilatildeo

neste atordquo o que envolve finalmente um tipo de ldquoreflexatildeordquo

b) Memoacuteria

Observamos ainda um outro caso que se articula com a preocupaccedilatildeo dos ferramentei-

ros com registro e comunicaccedilatildeo dos seus saberes taacutecitos e que se relaciona com as suas estra-

teacutegias de formalizaccedilatildeo desses saberes Trata-se do ldquouso da memoacuteriardquo ou dos artifiacutecios utiliza-

dos para preservaacute-la De acordo com Wisner (1987)

As tomadas de decisatildeo estatildeo longe de ser os uacutenicos componentes da atividade cog-nitiva ou mesmo os principais Existe a questatildeo das dificuldades perceptivas e das de identificaccedilatildeo e de reconhecimento O elemento mais criacutetico eacute provavelmente a memoacuteria quer seja imediata ou de longo prazo (p 175)

No que se refere aos ferramenteiros que abordamos ao mesmo tempo em que a me-

moacuteria eacute indicada por eles como um fator fundamental eles tambeacutem reconhecem os limites

da memoacuteria ou como eles proacuteprios dizem ldquoeacute difiacutecil de se guardar tudo na cabeccedilardquo Na maio-

ria dos depoimentos o uso da memoacuteria foi relacionado com a grande quantidade de compo-

nentes e informaccedilotildees contidas no desenho da ferramenta

O ferramenteiro usa muito a sua memoacuteria entatildeo ele sabe que natildeo deu certo Eacute soacute mediante a situaccedilatildeo de trabalho que ele vai lembrar porque ele tem uma etapa to-da um ferramental tem 300 500 itens eacute muita coisa pra ele lembrar mediante a si-tuaccedilatildeo eacute automaacutetico ele vai lembrar ldquoeu fiz daquele jeito deu errado agora eu fiz melhorei meu modo de pensarrdquo melhorei desenvolvi um meacutetodo melhor exata-

140

mente para aplicar na hora aquele passado vai ser apagado vai deletando a experi-ecircncia que deu errado (Ferramenteiro)

O depoimento seguinte ilustra o uso da memoacuteria como registro

Na ferramentaria um dia nunca eacute igual ao outro hoje eu tocirc mexendo com determi-nado serviccedilo pode este mesmo serviccedilo ou outro parecido voltar daqui uns anos Entatildeo eu natildeo posso simplesmente estaacute deixando aquilo pra traacutes eu tenho que guar-dar aqui na minha cabeccedila para quando eu encontrar aquela primeira dificuldade que eu tive na primeira vez Eacute esse o sentido que a gente tem de estaacute analisando um de-terminado serviccedilo e quando vocecirc torna a analisar de novo aquilo jaacute estaacute predefini-do daacute esta impressatildeo que estaacute guardado numa parte do seu ceacuterebro soacute quando vocecirc necessita que vocecirc vai laacute e resgata natildeo eacute em todo momento que vai ficar vin-do na sua cabeccedila (Ferramenteiro grifo nosso)

Verificamos ainda que os ferramenteiros em tese os mais experientes associaram o

registro por meio da ldquomemoacuteriardquo com o uso da visatildeo Ao encontrarmos um ferramenteiro com

quem jaacute viacutenhamos conversando observamos um aparente nervosismo com um colega que ha-

via mudado a sua ferramenta de posiccedilatildeo Ao justificar o porquecirc de tal nevorsismo ele acabou

por nos dizer que um colega lhe ensinou um macete para ter uma memoacuteria ldquofotograacuteficardquo atra-

veacutes de um certo jeito de olhar a ferramenta pelo melhor acircngulo

Eu sempre gosto de trabalhar com a ferramenta sempre numa posiccedilatildeo com a parte da frente virada para mim porque depois que vocecirc jaacute tem um certo contato com a ferramenta basicamente vocecirc decorou a ferramenta vocecirc quase nem olha mais o projeto Entatildeo se eu tenho sempre uma posiccedilatildeo aquela posiccedilatildeo eu decoro entatildeo agraves vezes eu brinco com os caras falo assim se eu estou nessa posiccedilatildeo olhando todos os componentes eu jaacute decorei entatildeo se eu tenho algum problema que eu natildeo consi-go resolver ele aqui agraves vezes laacute em casa pensando entatildeo eu jaacute estou em frente agrave ferramenta entatildeo aqui acontece isso ali acontece assim e tal Soacute desse jeito eu soacute trabalho com a ferramenta de frente pra mim de frente para minha bancada eacute a po-siccedilatildeo que eu trabalho Porque eu condicionei minha mente tambeacutem nisso Se eu te-nho uma dificuldade eu penso isso aqui vai nessa posiccedilatildeo ateacute mesmo pelo desenho mais para frente Vocecirc jaacute olha assim rapidinho jaacute sabe onde estaacute tal coisa (Ferra-menteiro)

Pudemos constatar que a ldquomemoacuteriardquo natildeo eacute somente uma forma passiva de subtrair in-

formaccedilotildees de um repertoacuterio dado pela experiecircncia de os ferramenteiros O uso da memoacuteria

permite ao ferramenteiro resgatar os saberes necessaacuterios agrave construccedilatildeo de uma nova ferramen-

141

ta Por isso podemos considerar a memoacuteria como parte de uma trama fundamental na forma-

lizaccedilatildeo dos saberes taacutecitos dos ferramenteiros

Gostariacuteamos de apresentar a partir de agora situaccedilotildees concretas que ao nosso ver

expressam as possibilidades dos ferramenteiros lanccedilarem matildeo de estrateacutegias mais comumente

reconhecidas no campo da linguagem para formalizarem os seus saberes taacutecitos Para aleacutem

das perspectivas anteriores de uso da memoacuteria e da reflexatildeo foi possiacutevel observar que os fer-

ramenteiros buscam formalizar os seus saberes taacutecitos principalmente por meio de ldquogabari-

tos diaacuterios de bordo e croquisrdquo que eles proacuteprios fazem

c) Diaacuterio de bordo

Como jaacute afirmamos anteriormente um dos fatores que tornam complexo o trabalho

dos ferramenteiros eacute a grande quantidade de informaccedilotildees sejam as postas pelo trabalho pres-

crito ou mesmo aquelas que tecircm a sua origem no trabalho real Constatamos que diante da ne-

cessidade de se trabalhar com um vasto repertoacuterio de informaccedilotildees e tambeacutem como jaacute foi di-

to pelo proacuteprio limite da memoacuteria em arquivar todas essas informaccedilotildees os ferramenteiros

buscam criar suas formas de registrar as situaccedilotildees que eles vivenciam Uma dessas formas de

registro eacute o chamado diaacuterio de bordo Os diaacuterios de bordo satildeo organizados quase sempre na

forma de pequenos textos registrados em blocos cadernetas ou mesmo em alguns desenhos

Em um depoimento fica explicitado como as anotaccedilotildees escritas por um ferramenteiro podem

lhe servir de registro

Eu particularmente eu anoto eu tenho como se fosse um diaacuterio de bordo onde eu anoto todas as ocorrecircncias mais importantes do meu dia-a-dia loacutegico que natildeo daacute pra gente anotar tudo mas as coisas mais importantes as decisotildees mais importan-tes do meu dia-a-dia eu sempre anoto no meu caderno e quando eu estou fora eu jaacute tive na Honda tive na Ford jaacute tive na Fiat eu sempre faccedilo um rascunhozinho para mim transcrever por meu diaacuterio de bordo isso eacute minha base de dados eacute a par-tir disso aiacute que eu vou manter certo conhecimento do trabalho a ser feito porque de certa forma vocecirc natildeo pode confiar tanto na memoacuteria entatildeo detalhes mesmo vocecirc soacute consegue se vocecirc anotar se vocecirc arquivar isso que vocecirc tomou aquela de-cisatildeo no momento (Ferramenteiro)

142

Mais adiante

Eu tento usar a minha memoacuteria para poder tentar buscar a soluccedilatildeo de certos pro-blemas e tentar reativar certos procedimentos de trabalho recentes A partir do momento que eu comecei a anotar no imediato as provas as decisotildees importantes que eu tomei as coisas que aconteciam durante a construccedilatildeo da ferramenta eu pas-sei a natildeo sobrecarregar tanto a memoacuteria com estes pontos Eu sei onde estaacute escrita determinada experiecircncia eu sei aonde tem um documento referente a um problema acontecido uma coisa que aconteceu natildeo tem que usar tanto a memoacuteria porque se natildeo se eu fizer isso eu posso estar de certa forma confundindo com o aconteci-mento que jaacute aconteceu com alguma coisa bem parecida Eu tento usar sempre al-guma coisa que eu escrevi uma coisa que eu jaacute deixei escrito (Ferramenteiro)

Chama a atenccedilatildeo tambeacutem um outro tipo de registro que nos foi revelado por esse

mesmo ferramenteiro e que vamos incluir aqui como uma modalidade de diaacuterio de bordo Tra-

ta-se de uma espeacutecie de minidicionaacuterio do tipo PortuguecircsInglecircs constituiacutedo por termos usa-

dos na ferramentaria Segundo esse ferramenteiro o seu interesse em realizar o minidicionaacuterio

deu-se a partir das aulas de inglecircs realizadas dentro da Empresa T

Nos primeiros dias do curso de inglecircs o professor pedia muito para a gente falar palavras do dia-a-dia da gente Eu fiquei curioso e usei muitas palavras da ferra-mentaria e inclusive aqui na empresa jaacute que a gente faz ferramenta para um seacuterie de montadoras tem normas em outras liacutenguas francecircs inglecircs Eu peguei e reparei que algumas palavras giacuterias da ferramentaria satildeo idecircnticas no inglecircs Depois disso eu comecei a anotar uns termos e o professor ficou interessado Entatildeo eu e ele es-tamos montando esse minidicionaacuterio (Ferramenteiro)

Aleacutem das anotaccedilotildees na forma de pequenos textos explicitadas em depoimentos anteri-

ores verificamos que as muacuteltiplas anotaccedilotildees feitas pelos ferramenteiros datildeo-se por meio de

outras linguagens tais como a matemaacutetica mais especificamente a geometria e a trigonome-

tria e ainda como veremos no proacuteximo item o croqui uma linguagem proacutexima das normas

do desenho mecacircnico Observamos ainda que essas linguagens podem ser usadas uma inde-

pendente da outra ou agraves vezes de maneira entrelaccedilada

No que se refere agrave presenccedila da ldquolinguagem matemaacutetica nas anotaccedilotildees dos ferramentei-

rosrdquo pudemos observar dentre aquelas que nos foram apresentadas que a maior parte satildeo

projeccedilotildees de um triacircngulo retacircngulo normalmente usado para dimensionar o deslocamento

de uma determinada parte da ferramenta Em uma das situaccedilotildees que presenciamos dois fer-

ramenteiros debatiam sobre o deslocamento de um componente da ferramenta na hora em que

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a mesma estiver sendo movimentada isto eacute em funcionamento Ao nos aproximarmos desses

ferramenteiros um deles nos apresentou o problema ldquoesse tipo de ferramenta eacute muito faacutecil de

ter trombamento10 e a gente tem que dar uma estudada Isso aqui eacute igual agrave gente sempre fala

o ferramenteiro tem que imaginar a ferramenta trabalhando antes mesmo dela estar construiacute-

dardquo Ao perguntarmos se os dois se entendiam soacute simulando mentalmente a ferramenta traba-

lhando um dos ferramenteiros fez uma seacuterie de traccedilados na forma de triacircngulos retacircngulos

(Fig 7) mostrando como funciona uma movimentaccedilatildeo por cunha

Nesse caso aqui taacute vendo A gente para entender melhor para explicar para o co-lega agraves vezes eacute necessaacuterio fazer um croqui fazer um tipo de desenho soacute para ver o tanto que a peccedila vai deslocar Usando o desenho do triacircngulo daacute para ver Na ver-dade a cunha eacute um triacircngulo Se vocecirc disser que para resolver esse problema eacute bom o cara conhecer trigonometria eacute claro que ajuda mas aqui noacutes resolvemos is-so soacute simulando a movimentaccedilatildeo pelo croqui Aleacutem de resolver o problema eacute mais faacutecil para explicar (Ferramenteiro)

Figura 7 Croqui elaborado a partir de uma projeccedilatildeo simulada do deslocamen-to de triacircngulo retacircngulo

10 Os ferramenteiros chamam de trombamento quando os componentes moacuteveis da ferramenta natildeo terminam sua trajetoacuteria por trombarem literalmente em um outro componente

144

Em uma conversa com um dos mestres em ferramentaria da Empresa T ele nos rela-

tou a capacidade dos ferramenteiros em trabalhar com relaccedilotildees trigonomeacutetricas sem terem um

domiacutenio preciso dos caacutelculos dessa aacuterea ou mesmo por uma questatildeo de opccedilatildeo de trabalho

Tem serviccedilo que ele vai te exigir um caacutelculo de trigonometria mas quando o fer-ramenteiro natildeo se lembra ou natildeo sabe a foacutermula ele pode simular Por exemplo vocecirc desenha o trabalho da ferramenta depois recorta com tesoura aiacute vocecirc desce por exemplo uns 40 mm e vocecirc mede o tanto que a outra parte avanccediloursquorsquo (Mestre de ferramentaria)

d) Croquis

Muito embora desde o iniacutecio do trabalho de campo os ferramenteiros nos revelassem

uma certa necessidade de anotar algumas informaccedilotildees foi a partir do interesse de alguns deles

em nos explicar o seu trabalho que percebemos a possibilidade de eles usarem as suas anota-

ccedilotildees como um tipo de formalizaccedilatildeo que viabilizasse a comunicaccedilatildeo com seus colegas de tra-

balho Durante os vaacuterios diaacutelogos que travamos com os ferramenteiros observamos que eles

de forma insistente a todo o momento para se fazerem compreender desenhavam ldquocroquisrdquo

em papeacuteis para facilitar as suas explicaccedilotildees A partir de um determinado momento observa-

mos que mais do que uma mania os ferramenteiros elaboravam ldquocroquisrdquo ou mesmo alguns

traccedilos geomeacutetricos para se orientarem na execuccedilatildeo da sua atividade ou para facilitar a interlo-

cuccedilatildeo com um colegaVejamos um depoimento

Esse eacute um dos lados bons da ferramentaria vocecirc aprende muitas formas de pensar de fazer um trabalho diferente Soacute para te dar um exemplo tem cara aqui que te en-sina soacute com um croqui isso eacute muito comum na ferramentaria Quando tem um de-senho complicado eu falo o desenho da ferramenta eacute comum um cara mais expe-riente pegar o papel fazer um croqui e te falar oh essa peccedila aqui vai fazer esse movimento e ao mesmo tempo essa outra vai fazer isso aqui Isso ajuda demais tem hora que um papinho com um colega um croqui te ajuda sair do sufoco (Fer-ramenteiro)

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Quando comentamos com um mestre de ferramentaria sobre a dificuldade de comuni-

caccedilatildeo de saberes entre dois ferramenteiros ainda que experientes coletamos a seguinte anaacuteli-

se

Uma coisa eacute vocecirc ter domiacutenio e conhecimento de um determinado trabalho outra coisa eacute vocecirc conseguir transmitir isso em palavras ou ateacute mesmo em accedilotildees Porque agraves vezes vocecirc pode ser muito bom para fazer e natildeo tem essa faculdade de ensinar entatildeo aleacutem de saber fazer eacute bom que vocecirc aprenda pelo menos um miacutenimo de transmitir para o outro Como Atraveacutes da fala atraveacutes de um desenho atraveacutes de um croqui atraveacutes de um exemplo agraves vezes vocecirc fazendo ateacute mesmo a primeira peccedila para que a outra pessoa que tem menos experiecircncia possa aprender com vo-cecirc (Mestre de ferramentaria grifo nosso)

Encontramos uma outra situaccedilatildeo interessante onde tambeacutem nos pareceu possiacutevel que

os ferramenteiros usem o croqui como uma estrateacutegia de formalizaccedilatildeo dos seus saberes taacuteci-

tos Em uma de nossas estadias na faacutebrica um dos ferramenteiros nos disse que um outro co-

lega lhe ajuda muito a compreender ldquoos segredos da ferramenta e da vida tambeacutemrdquo Vejamos

o relato desse ferramenteiro

Tem uma cara aqui que me ajuda muito eacute o neguinho Quando o serviccedilo daacute uma caiacuteda aqui e sobra um tempinho a gente fica fazendo uns testes com o desenho da ferramenta a gente fica fazendo croqui treinando caacutelculo O neguinho sabe muita coisa Tudo dele eacute no croqui ele quer te ensinar um caacutelculo explicar um movimen-to da ferramenta eacute no croqui Tem coisa na ferramenta que eacute difiacutecil de enxergar Pois eacute jaacute aconteceu um monte de vez eu natildeo enxergo um negoacutecio faccedilo um croqui e fico pensando como a ferramenta funciona e aos poucos a gente vai enxergando (Ferramenteiro)

Identificamos uma outra forma de anotar ou registrar dos ferramenteiros que se articu-

la com a mobilizaccedilatildeo de diversos saberes taacutecitos e que foi inclusive incorporada pelo traba-

lho prescrito na organizaccedilatildeo do trabalho da Empresa T Trata-se de um trabalho que caracteri-

zamos no capiacutetulo anterior chamado por eles de leiaute Neste tipo de trabalho os ferramen-

teiros por meio de um pincel atocircmico ou um pincel do tipo ldquomarcatudordquo fazem as suas anota-

ccedilotildees na proacutepria ferramenta indicando medidas que natildeo estatildeo claras no desenho da ferramenta

Vejamos como um dos ferramenteiros argumenta sobre a importacircncia do leiaute

146

Sempre que eu pego independente do projeto se eacute um projeto que eu estou traba-lhando ou se eacute um projeto que eu vou mandar pra usinagem eu costumo pegar as coordenadas que o operador da maacutequina vai usar Se por exemplo ele vai ter que fazer quatro furos de coluna eu pego o projeto modifico as quatro coordenadas e marco com o marca texto Porque eu vou auxiliar ele tambeacutem o operador ele natildeo precisa ficar procurando onde eacute que estaacute as coordenadas e de certa forma o dese-nho ele tem muita coordenada entatildeo ele natildeo vai errar porque se eu marquei para ele a coordenada ele jaacute sabe opa a coordenada eacute essa aqui porque fui eu que marquei Agora se ele for olhar que tem duas coordenadas com diferenccedila de cinco miliacutemetros uma do lado da outra ele pega a de baixo ele pega e matou o furo (Ferramenteiro)

Ainda sobre a importacircncia do leiaute

O leiaute eacute muito importante pode ateacute parecer bobagem mas o cara que faz o lei-aute tem que ter muita responsabilidade Aquelas marcaccedilotildees que o ferramenteiro faz na ferramenta mostra um monte de coisa coisas que agraves vezes o desenho natildeo mostra ou mostra de forma muito confusa Agora para fazer o leiaute o ferramen-teiro tem que saber ler o desenho ele tem que ter uma manha (Ferramenteiro)

Neste sentido eacute importante reafirmar que o acesso agrave linguagem no trabalho (NOU-

ROUDINE 2002) ou seja agravequela que circula entre os ferramenteiros eacute fundamental para

formalizar os saberes taacutecitos Aleacutem da constataccedilatildeo de que os ferramenteiros se valem de suas

anotaccedilotildees em variadas formas para auxiliar na formalizaccedilatildeo dos seus saberes taacutecitos verifi-

camos tambeacutem que haacute situaccedilotildees que solicitam dos ferramenteiros estrateacutegias de formalizaccedilatildeo

de saberes taacutecitos alternativas agraves suas anotaccedilotildees

e) Gabaritos

Observamos que os saberes taacutecitos mobilizados pelos ferramenteiros aleacutem de apontar

uma lacuna do trabalho prescrito acabam por lhe favorecer comunicar esses saberes com o

seu coletivo de trabalho Isso ficou constatado nos ldquogabaritosrdquo que os ferramenteiros usam pa-

ra aferir um trabalho conhecido como ajuste da ldquolinha de corte da ferramentardquo11 Constata-

11 A linha de corte eacute responsaacutevel pelas medidas que indicam onde o produto se separa da chapa em bruto Assim por exemplo se um produto a ser estampado for um disco com 100 mm de diacircmetro a linha de corte seria toda a

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mos dada a sua recorrecircncia que estes gabaritos satildeo de certa forma consagrados pelos ferra-

menteiros para formalizar os seus saberes taacutecitos Dentre os gabaritos mais usados para servir

de paracircmetro no ajuste da linha de corte observamos o uso da ldquofita crepe do papel do tipo lsquoo-

ficiorsquo e do papel alumiacuteniordquo Esses materiais satildeo colocados sobre a linha de corte da ferramen-

ta e depois de movimentaacute-la eles verificam a sua aparecircncia Por exemplo a ldquofita creperdquo ras-

gada indica o que deve ser feito em termos de ajuste ocorrendo o mesmo se ela estiver intacta

ou esticada Em uma determinada situaccedilatildeo um ferramenteiro se dispocircs a nos demonstrar co-

mo ele usava a ldquofita creperdquo para verificar o ajuste da linha de corte Apoacutes nos mostrar o estado

em que ficou a ldquofita creperdquo e fazer a sua anaacutelise ele nos disse o seguinte ldquoViu Ela quase natildeo

foi tocada agora vocecirc pode perguntar para a maioria dos ferramenteiros aqui dentro pelo me-

nos os mais experientes tenho certeza todo mundo vai dizer para natildeo ajustar maisrdquo Este fer-

ramenteiro fez um sinal com a matildeo para que um outro ferramenteiro se aproximasse de onde

estaacutevamos e neste iacutenterim nos sugeriu que perguntaacutessemos a este ferramenteiro mostrando-

lhe a ldquofita creperdquo em que ponto estava o trabalho de ajustagem da linha de corte Apoacutes fazer-

mos a pergunta ouvimos o seguinte comentaacuterio

Pela minha praacutetica posso te dizer que esse ajuste estaacute basicamente pronto agora eacute no leiaute Vocecirc pode usar outro tipo papel sabia Eacute bom fazer esses testes Soacute com a medida do desenho natildeo daacute para dizer se taacute bom Chega uma hora que esse trabalho tem que ser devagar mesmo ah Natildeo sei se vocecirc sabe mas o corte pode ser ajustado com tinta tambeacutem Natildeo vou falar que eacute um segredo porque muito fer-ramenteiro sabe mas isso eacute soacute na praacutetica mesmo (Ferramenteiro)

Observamos que os ferramenteiros elaboram outros ldquogabaritosrdquo a partir de uma rea-

propriaccedilatildeo de ldquogabaritosrdquo postos pelo trabalho prescrito A situaccedilatildeo que melhor expressa essa

possibilidade manifestou-se tambeacutem no ajuste da linha de corte da ferramenta Primeiramen-

te este trabalho como jaacute foi dito anteriormente eacute apontado no trabalho prescrito como a ser

definido pelo ferramenteiro Segundo que em relaccedilatildeo a este tipo de trabalho existe um saber

borda externa do disco Entretanto dados os fenocircmenos fiacutesicos no comportamento da chapa de accedilo a medida da linha de corte eacute sempre objeto de estudos anaacutelises da engenharia e dos ferramenteiros

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tido como cientiacutefico formalizado pelo trabalho prescrito em forma de tabelas que apenas se

aproximam do real Todavia o trabalho prescrito indica ainda o uso de recurso material uma

ldquopasta coloridardquo para fazer o controle desse trabalho de ajustagem da linha de corte da ferra-

menta

Eacute importante salientar que o uso desses gabaritos pelos ferramenteiros muitas vezes eacute

acompanhado do uso dos sentidos corporais tais como ldquoa visatildeo o tato e a audiccedilatildeordquo Vejamos

um depoimento de um ferramenteiro sobre a sua forma de ajustar a linha de corte da ferra-

menta

O ajuste da linha de corte eacute o seguinte no projeto as medidas estatildeo todas maiores e aiacute eacute a gente que define Soacute que o seguinte de acordo com o projeto a peccedila macho deve descer 10 miliacutemetros eu soacute desccedilo 1 mm por que no iniacutecio o ajuste entre a peccedila macho e a peccedila fecircmea estaacute muito justo pode ateacute estragar a ferramenta Antes de descer a peccedila a gente passa uma pasta vermelha em uma das partes entatildeo depois que vocecirc separa as partes uma delas fica marcada de vermelho no lugar mostrando a parte que deve ser ajustada Ai eacute que tem outro pulo do gato vocecirc natildeo ir soacute pela marca vermelha porque tem diferenccedila tem um vermelho que eacute mais fraco outro mais escuro ou mais forte E daiacute Acontece que se o cara natildeo for maldoso natildeo for experiente ele natildeo repara direito que tem mais de um vermelho e tira co-mo base o vermelho fraco ele soacute vai ver esse erro na hora que a peccedila sair com rebarba Ele vai dizer que fez tudo certo e fez mesmo soacute que ele natildeo viu ou natildeo sabe que de acordo com a pressatildeo do ajuste a cor da pasta muda (Ferramenteiro)

Ao comentar o que o teria levado a desenvolver esse tipo de saber este ferramenteiro

nos relatou o seguinte

Eacute depois que eu matei algumas eu aprendi isso eu passei a deixar bem escuro porque eu sei que estaacute forccedilando agraves vezes ateacute range na entrada O que eacute ranger Eacute quando a peccedila entra raspando outra peccedila tocando a outra peccedila forccedilando mesmo Entatildeo vocecirc percebe que tem interferecircncia eacute uma peccedila empurrando a outra se natildeo range eacute o quecirc Estaacute uma passando bem proacutexima da outra mas sem tocar sem es-barrar Entatildeo aquele vermelho fica escuro porque uma peccedila toca a outra com muita forccedila (Ferramenteiro)

De um modo geral os ferramenteiros demonstraram que o uso de um determinado sa-

ber taacutecito eacute mediado por estrateacutegias de formalizaccedilatildeo dos seus saberes taacutecitos que dentre ou-

tros objetivos coloca-se como uma forma de os deixar mais seguros no uso destes saberes

Um dos nossos entrevistados ao tentar explicar o porquecirc da sua confianccedila na coloraccedilatildeo das

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peccedilas acabou por nos indicar mais elementos que vinculam o uso de sentidos do corpo com

momentos de abstraccedilatildeo sobre o funcionamento da ferramenta

Isso eacute garantido mesmo natildeo falha natildeo Vocecirc pode usar a tinta vermelha ou a azul A tinta azul eacute bom para trabalhar agrave noite porque o azul quando ele passa uma parte para outra forccedilando mesmo para rangir ele fica branco entatildeo ele mostra a parte do accedilo que estaacute refilado O vermelho para o dia eacute melhor porque ele fica preto entatildeo eacute mais faacutecil identificar o preto do vermelho entatildeo vocecirc sabe que ali tem uma parte-zinha para sair Para um ferramenteiro experiente eacute bem faacutecil porque natildeo tem co-mo errar a diferenccedila de coloraccedilatildeo ela eacute bem notoacuteria entatildeo o ferramenteiro ele sabe distinguir o vermelho normal que foi a tinta que ele passou inicialmente e o ver-melho escuro que eacute onde estaacute refilando que eacute onde deveria ser tirado (Ferramen-teiro)

Por outro lado observamos ainda que os ferramenteiros mesmo se valendo dos ldquodiaacute-

rios de bordo dos croquisrdquo ou dos seus ldquogabaritosrdquo apresentam um certo desconforto diante

da complexidade do trabalho de ferramentaria

Esse eacute o sofrimento do ferramenteiro ele soacute vai ter certeza daquilo que ele fez mediante ao resultado Se ele estaacute em duacutevida todos noacutes temos duacutevidas mas vocecirc tem que executar pra saber se realmente aquilo vai ser um resultado satisfatoacuterio Existem situaccedilotildees que natildeo tem jeito de fazer um raio o modelo do carro que eles estatildeo querendo o ferramental natildeo consegue executar por isso que tem que ter todo um processo antes disto que eacute o processo de protoacutetipo para saber se realmente vai conseguir fazer (Ferramenteiro)

Se em alguns depoimentos os ferramenteiros lamentam que a certeza na ferramenta-

ria soacute eacute dada pelo produto final por outro lado percebemos tambeacutem que eles valorizam a

sua praacutetica no chatildeo de faacutebrica como um momento educativo ldquoO ferramenteiro aprende todo

diardquo Dessa forma o ldquover na praacuteticardquo menos do que um limite pode ser tomado como uma

etapa na elaboraccedilatildeo das suas estrateacutegias de produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes

taacutecitos Ateacute porque observamos que os ferramenteiros buscam fazer pequenos testes micro-

experiecircncias com provaacuteveis situaccedilotildees que envolvem a construccedilatildeo da ferramenta E ainda ve-

rificamos que muitos saberes taacutecitos para serem desenvolvidos demoraram anos de trabalho e

demandaram muitas observaccedilotildees Segundo a fala de um dos ferramenteiros ldquoTem um tempatildeo

que eu jaacute vinha observando esse negoacutecio do retorno de chapa entatildeo eu fui pegando a manha

150

de como a chapa se comportardquo Em um outro depoimento ldquoTem coisas que a gente desconfia

vocecirc observa um dia ali depois fala com colega aqui e fica com aquilo na cabeccedila Agraves vezes eacute

laacute no final que vocecirc compreende tudo eacute laacute no final que vocecirc vecirc que uma coisa que vocecirc jaacute

desconfiava tinha um certo sentido uma certa loacutegicardquo

Dessa forma fica constatado natildeo soacute que os saberes taacutecitos se inscrevem ao longo da

vida dos ferramenteiros bem como se verifica um princiacutepio racional que alimenta estes sabe-

res Observamos que estes saberes ainda que natildeo formalizados numa linguagem cientiacutefica ou

precariamente formalizados pelas estrateacutegias dos ferramenteiros natildeo satildeo na maioria dos ca-

sos soluccedilotildees produzidas em alguns minutos ou para ser mais contundente estes saberes natildeo

satildeo um lance de uacuteltima hora Daiacute decorrem as constantes referecircncias que ferramenteiros mes-

tres e gerecircncia fazem agrave experiecircncia desses profissionais na ferramentaria

Gostariacuteamos de relembrar que se ateacute entatildeo apresentamos em toacutepicos isolados as es-

trateacutegias dos ferramenteiros para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos eacute

porque como jaacute dissemos buscamos uma forma de tornar mais claras as situaccedilotildees deste com-

plexo campo de trabalho que eacute a ferramentaria Neste sentido eacute necessaacuterio salientar que nos-

sa pesquisa de campo aponta que as estrateacutegias de produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo se

articulam entre si Por fim a possibilidade de que ferramenteiros criem estrateacutegias tambeacutem

taacutecitas para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos indica natildeo soacute a distacircncia

entre o trabalho prescrito e o trabalho real bem como revela o seu caraacuteter histoacuterico social

cultural e subjetivo o que nos permite afirmar que o trabalho dos ferramenteiros se articula

como diz Santos (1997) ao movimento da vida Para finalizar um uacuteltimo depoimento de um

ferramenteiro sobre a insuficiecircncia do trabalho prescrito em determinar as medidas da linha de

corte da ferramenta

O certo seria pela folga que a tabela indica entendeu Soacute que nunca daacute aiacute se jaacute der rebarba natildeo tem como acertar isso mais natildeo Que dizer igual eu te falei para dar certo chega uma hora o projeto deixa de existir Essas coisas satildeo assim vocecirc erra ali faz um teste aqui quando vocecirc assusta vocecirc jaacute estaacute sabendo muita coisa (gri-fo nosso)

151

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ocultar o modo de presenccedila na Histoacuteria de certas classes ou camadas sociais eacute sem duacutevida um meio de lhes negar um papel Questatildeo poliacutetica sim mas que envolve uma outra epistemoloacutegica Se a cultura integra mal as transformaccedilotildees sociais e humanas que satildeo tecidas em niacutevel das forccedilas produtivas noacutes podemos falar de uma cultura empobrecida E se a ciecircncia eacute uma forma de cultura eacute provaacutevel que a uma cultura pobre corresponda uma ciecircncia empobrecida A articulaccedilatildeo entre estas duas dimensotildees eacute portanto necessaacuteria (Schwartz apud Santos 1997 p 123)

Acreditamos que nossa pesquisa atingiu em boa medida o objetivo de identificar as

estrateacutegias tambeacutem taacutecitas elaboradas pelos ferramenteiros da Empresa T para produzir

mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos Mesmo reconhecendo as limitaccedilotildees do nosso

trabalho entendemos que a anaacutelise dos dados obtidos na pesquisa pode contribuir para o

debate em diversos foacuteruns e segmentos sociais

Assim identificamos caminhos que chamamos de estrateacutegias criados pelos

trabalhadores ferramenteiros a partir da sua relaccedilatildeo com o cotidiano de trabalho para produzir

mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos aleacutem de apresentar situaccedilotildees nas quais os

trabalhadores reuacutenem condiccedilotildees de reapropriar saberes oriundos da ciecircncia e da tecnologia

Neste sentido ao nosso ver evidenciamos as vaacuterias possibilidades de o trabalho se constituir

como um espaccedilo educativo

Acreditamos que trouxemos elementos que podem ser aproveitados pelas poliacuteticas

puacuteblicas e privadas de educaccedilatildeo profissional tais como o uso dos sentidos como a visatildeo o

tato a audiccedilatildeo a influecircncia da dimensatildeo do coletivo de trabalho assim como o recurso a

formas racionais ainda que distintas da formalidade cientiacutefica quando se trata de produzir

mobilizar e formalizar saberes pelos trabalhadores no trabalho Consideramos tambeacutem que

152

essa pesquisa possa se somar agravequelas voltadas para a educaccedilatildeo de jovens e adultos agrave medida

que demonstra as possibilidades de formaccedilatildeo humana presentes no trabalho o que se traduz na

importacircncia de se considerar o trabalho como dimensatildeo fundamental nas experiecircncias de

educaccedilatildeo de jovens e adultos Por fim acreditamos que ao identificar o poder de produzir

mobilizar e formalizar saberes taacutecitos praacutetica que envolve atividade de criaccedilatildeo interpretaccedilatildeo

e reflexatildeo dos trabalhadores ferramenteiros chamamos a atenccedilatildeo para a necessidade de se

levar em consideraccedilatildeo os seus pontos de vista sobre o trabalho e sobre a educaccedilatildeo em

qualquer proposta de formaccedilatildeo de trabalhadores

Acreditamos ainda que nossa pesquisa traz elementos que auxiliam os trabalhadores

e as suas entidades representativas a refletir sobre a presenccedila e o valor de saberes taacutecitos no

processo produtivo contribuindo para a construccedilatildeo de estrateacutegias que possam como diz

Santos (1997) resgatar o valor epistemoloacutegico social econocircmico poliacutetico e cultural do saber

do trabalhador Neste sentido ressaltamos o caraacuteter histoacuterico social e subjetivo dos saberes

taacutecitos refutando a tendecircncia a considerar este tipo de saber de forma naturalizada Por fim

salientamos que os trabalhadores capazes que satildeo de dialogar com saberes de diversas

ordens se apresentam como interlocutores privilegiados na construccedilatildeo do projeto de

sociedade que queremos sobretudo no que se refere aos assuntos ligados ao trabalho

Haacute que se dizer que ao mesmo tempo em que a complexidade teacutecnica da

ferramentaria enriqueceu esta pesquisa ela tambeacutem nos exigiu um enorme esforccedilo para

interpretar os dados que coletamos bem como para tornar o nosso texto compreensiacutevel Como

acreditamos ter evidenciado satildeo poucas as atividades industriais que apresentam tatildeo intenso

apelo agrave sofisticaccedilatildeo tecnoloacutegica e ao mesmo tempo um consideraacutevel reconhecimento de

saberes oriundos da experiecircncia do ldquochatildeo de fabricardquo como eacute o caso da ferramentaria

Podemos afirmar que a nossa pesquisa corrobora as reflexotildees de Aranha 1997

Santos 1997 Daniellou Teiger e Laville 1989 Lima 1998 que apresentam a distacircncia entre

153

o trabalho prescrito e o trabalho real como um fator que solicita dos trabalhadores o uso de

saberes taacutecitos nas lacunas deixadas neste caso pela prescriccedilatildeo do desenho da ferramenta Os

limites do trabalho prescrito se evidenciaram ainda mais agrave medida que constatamos que a

proacutepria gerecircncia reserva um espaccedilo para que os ferramenteiros faccedilam eles proacuteprios uma

prescriccedilatildeo para o andamento da construccedilatildeo da ferramenta como por exemplo no try-out

Constatamos tambeacutem que a maioria dos ferramenteiros principalmente os mais experientes

satildeo cocircnscios dos limites do trabalho prescrito

Curioso observar que os ferramenteiros mobilizam uma parte dos seus saberes taacutecitos

antes mesmo de emergirem as demandas do trabalho real ao interpretarem o trabalho

prescrito notoriamente o desenho da ferramenta Podemos inferir que se eles usam os seus

saberes taacutecitos para interpretar o desenho da ferramenta antes que esse tipo de prescriccedilatildeo se

mostre distante do trabalho real isso significa que os seus saberes taacutecitos satildeo mobilizados

todo o tempo independentemente de constatarem as lacunas do trabalho prescrito Em nosso

entendimento ao inveacutes de demonstrar uma submissatildeo agrave prescriccedilatildeo confere-se aos saberes dos

ferramenteiros uma exigecircncia de reflexatildeo nem sempre percebida imediatamente

Em nossa pesquisa foi possiacutevel verificar que de fato os ferramenteiros tecircm uma

grande dificuldade de explicitar os saberes taacutecitos Diversas vezes observamos que falta a eles

e tambeacutem aos engenheiros termos para expressar uma determinada situaccedilatildeo Entretanto

verificamos que essa dificuldade em explicitar os saberes taacutecitos natildeo impede que os

ferramenteiros os mobilizem ou os comuniquem na relaccedilatildeo que manteacutem com o seu coletivo

de trabalho O uso dos termos ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo ldquomelhor jeito de

trabalharrdquo expressa que por meio de suas proacuteprias estrateacutegias eles podem com as linguagens

que lhes satildeo disponiacuteveis formalizar os seus saberes taacutecitos Daiacute podermos afirmar que o uso

dessas estrateacutegias representa natildeo soacute uma tentativa dos ferramenteiros de formalizar os seus

saberes mas indica tambeacutem que eles tecircm uma certa consciecircncia dos limites e possibilidades

154

dos diversos tipos de linguagem Em alguns casos a nossa experiecircncia de operaacuterio somada ao

tempo que ficamos imersos no campo de pesquisa foram fundamentais para acessarmos parte

das linguagens e dos coacutedigos usados pelos ferramenteiros da Empresa T

Se por um lado como jaacute dissemos nossa pesquisa foi enriquecida pela complexidade

teacutecnica da ferramentaria que exige que os ferramenteiros criem estrateacutegias para dar conta da

produccedilatildeo por outro lado essa mesma complexidade se transfere para a temaacutetica do saber

taacutecito o que nos colocou diante de desafios nem sempre facilmente equacionados

Confessamos que muitas vezes a riqueza dos dados coletados natildeo ganhou uma

correspondecircncia de riqueza da anaacutelise

Verificamos que algumas situaccedilotildees se mostraram mais intensas durante o trabalho de

campo do que pudemos explicitar na escrita da dissertaccedilatildeo como por exemplo a relaccedilatildeo do

uso do corpo com a criaccedilatildeo de estrateacutegias para produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de

saberes Alguns atributos fiacutesicos podem demandar o uso de um determinado tipo de saber

taacutecito ou mesmo explicar em parte as diferenccedilas entre as estrateacutegias usadas pelos

ferramenteiros Ao observamos que eles buscam uma melhor posiccedilatildeo para por exemplo

identificar uma falha na superfiacutecie de uma peccedila podemos inferir que a partir de uma mesma

distacircncia do alvo no caso a ferramenta alturas diferentes resultam em acircngulos diferentes

Eacute importante dizer que essa dissertaccedilatildeo apresenta alguns limites que podem vir a

constituir objetos para futuras pesquisas Nesse sentido por exemplo o nosso trabalho de

campo evidenciou a importacircncia do uso do corpo nas estrateacutegias que os ferramenteiros criam

para produzir mobilizar e formalizar os sus saberes taacutecitos No entanto tivemos imensa

dificuldade em encontrar na literatura especializada subsiacutedios que nos permitissem avanccedilar na

anaacutelise desse fenocircmeno

Ainda um outro limite da nossa pesquisa deu-se pela dificuldade posta pela anaacutelise das

estrateacutegias de formalizaccedilatildeo Uma parte dessa dificuldade pode ser tributada agrave dimensatildeo

155

imaterial de algumas estrateacutegias como por exemplo a ldquomemoacuteriardquo e a ldquoreflexatildeordquo Uma anaacutelise

mais aprofundada sobre os limites e as possibilidades dessas estrateacutegias e da contribuiccedilatildeo

delas para a formalizaccedilatildeo de saberes taacutecitos resta por fazer Por outro lado mesmo as

estrateacutegias revestidas de uma materialidade como os ldquodiaacuterios de bordordquo os ldquocroquisrdquo e os

ldquogabaritosrdquo apresentaram uma dificuldade para serem analisados uma vez que natildeo foi faacutecil

compreendermos totalmente como essas estrateacutegias se articulam entre um uso individual e um

compartilhamento coletivo no esforccedilo dos ferramenteiros para formalizarem os seus saberes

taacutecitos

Por fim uma outra dificuldade de analisar as estrateacutegias de formalizaccedilatildeo foi posta pela

linguagem muitas vezes extremamente teacutecnica nos depoimentos o que dificultou natildeo soacute a

exposiccedilatildeo desses depoimentos mas tambeacutem a anaacutelise dos dados e a da nossa redaccedilatildeo da

dissertaccedilatildeo E ainda em alguns casos as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros e que

poderiam ilustrar a nossa anaacutelise eram formalizadas em linguagens compreensiacuteveis apenas

para estes profissionais

Todavia mesmo diante das dificuldades encontradas ao longo dessa pesquisa

podemos afirmar que os ferramenteiros da empresa T criam estrateacutegias tambeacutem taacutecitas para

produzir mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos Ousamos afirmar tambeacutem que os

saberes produzidos mobilizados e formalizados pelos ferramenteiros diversas vezes

colocados agrave prova no processo de trabalho expressam uma racionalidade ainda que distinta

dos padrotildees formais da ciecircncia Verificamos ainda que uma parte dessas estrateacutegias eacute

parcialmente formalizada e transformada em um procedimento utilizado frequumlentemente pelos

ferramenteiros e que as suas estrateacutegias de produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes

taacutecitos lhes datildeo a confianccedila necessaacuteria para realizar o seu trabalho

156

Obs 1 Caro Eduardo favor incluir esse texto antecedendo a figura 1 2 3 4 e 5 Achei melhor que esse texto vaacute para depois de todas as citaccedilotildees na pg 117 antecedendo o toacutepico Melhor jeito de trabalhar Outra coisa a definiccedilatildeo das figuras em 3d ficaria melhor se elas fossem divididas duas por paacuteg Apesar de que na Empresa T haacute um software que fornece um desenho em 3D os ferramenteiros

conseguem esse tipo de projeccedilatildeo por meio de uma abstraccedilatildeo ou como eles dizem ldquovisualizando

em 3Drdquo Para ilustrar a estrateacutegia de ldquovisualizar em 3Drdquo tomemos como exemplo as Figuras 1

2 3 4 e 5 A Figura 1 corresponde ao desenho de uma ferramenta posto em uma forma plana

isto eacute bidimensional As Figuras 2 3 4 e 5 correspondem agrave Figura 1 em uma forma

tridimensional Eacute importante comentar que o avanccedilo das figuras indica uma visualizaccedilatildeo mais

depurada da ferramenta ou seja para se chegar agrave visualizaccedilatildeo em 3D da Figura 4 eacute necessaacuterio

uma maior capacidade de abstraccedilatildeo do ferramenteiro

Obs 2 Em relaccedilatildeo a pg 131 favor incluir fig 5 no iniacutecio da pg

() Estes saberes nos foram explicitados (fig 5) ainda que somados aos saberes

Obs 3 manter no texto do jeito que estaacute ou seja apenas fig 6

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160

  • 1 parte corrigidodoc
    • Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Conhecimento e Inclusatildeo social
    • SUMAacuteRIO
      • Agradecimentosdoc
      • Cap 01doc
        • Eacute salutar que um trabalho de pesquisa para ser apreendido em sua totalidade seja abordado desde a sua concepccedilatildeo O objeto dessa pesquisa qual seja as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros de uma induacutestria metaluacutergica da regiatildeo metropolitana de Belo Horizonte para a produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e organizaccedilatildeo de seus saberes no trabalho surgiu de uma perspectiva aberta pelo encontro da nossa formaccedilatildeo escolar da vivecircncia como trabalhador de uma induacutestria metaluacutergica com o debate sobre o mundo do trabalho o que gerou um interesse em compreender os saberes produzidos no processo de trabalho Neste sentido entendemos que eacute importante fazer uma recuperaccedilatildeo de uma parte dessa experiecircncia no setor fabril da nossa inserccedilatildeo no universo teoacuterico sobre o mundo do trabalho e a dimensatildeo que esse encontro tomou na construccedilatildeo do objeto que norteia esta pesquisa
        • A nossa formaccedilatildeo iniciou-se no Senai aos 14 anos de idade por meio do curso de Torneiro Mecacircnico de um ano e meio e posteriormente no periacuteodo da noite mais um ano de Frezador Mecacircnico Logo depois iniciamos tambeacutem no turno da noite o Curso Teacutecnico em Mecacircnica no Cefet-MG A esta formaccedilatildeo somou-se a nossa entrada no trabalho ocorrida aos 15 anos de idade Nesse periacuteodo o nosso discernimento a respeito do trabalho comeccedilou a ganhar contornos mais elaborados influenciado pelo intercacircmbio que havia entre noacutes colegas de trabalho e de curso o que produzia uma troca de informaccedilotildees ricas e variadas
          • Se por um lado entendemos como necessaacuterio apresentar a nossa problematizaccedilatildeo sobre a hipoacutetese de que os ferramenteiros possam desenvolver estrateacutegias para produzir mobilizar e formalizar seus saberes por outro lado eacute importante salientar que ao definirmos as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros como produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes natildeo buscamos demarcar uma separaccedilatildeo hermeacutetica entre elas e sim analisar se as suas semelhanccedilas e diferenccedilas se articulam Por este motivo apresentaremos um breve debate sobre essas trecircs categorizaccedilotildees
          • 13 O referencial teoacuterico
          • 14 As estrateacutegias metodoloacutegicas
            • 142 Instrumentos de pesquisa
              • Cap 02doc
                • Eacute mesmo agrave praacutetica que por definiccedilatildeo se refere o saber fazer () Em numerosos casos o saber-fazer designa uma competecircncia global um ofiacutecio ou uma destreza num domiacutenio mais ou menos amplo da praacutetica humana () Os saberes-fazer satildeo portanto para noacutes actos humanos disponiacuteveis em virtude de terem sido apreendidos (seja de que maneira for) e experimentados (p 79)
                • Sobre a fecundidade da relaccedilatildeo entre linguagem e trabalho Faita e Souza-e-Silva (2002) afirmam que ldquoDiversos fatores podem explicar a emergecircncia de tal interesse o mais importante deles encontra-se no peso e na importacircncia que as atividades de simbolizaccedilatildeo passaram a ter na realizaccedilatildeo do trabalhordquo (p 7) Ainda que o interesse dos linguumlistas pelo trabalho como objeto de estudo seja um fenocircmeno recente a literatura sobre essa temaacutetica jaacute acumula importantes reflexotildees para apontar a diversidade de enfoques e de campos de intervenccedilatildeo caracteriacutesticos da aacuterea Dentre as vaacuterias possibilidades de contribuiccedilatildeo para esta pesquisa uma foi acolhida com maior profundidade pois nos permitiu analisar a relaccedilatildeo entre o trabalho e a linguagem em uma perspectiva multifacetada Trata-se de uma abordagem defendida por Nouroudine (2002) que apresenta uma triparticcedilatildeo da relaccedilatildeo trabalholinguagem cujos eixos seriam dados pelas modalidades ldquolinguagem como trabalhordquo ldquolinguagem no trabalhordquo e ldquolinguagem sobre o trabalhordquo
                • Para Lacoste apud Nouroudine (2002) a elaboraccedilatildeo dessa triparticcedilatildeo ldquopermitiu remediar confusotildees disseminadas separando como verbalizaccedilatildeo falas provocadas e exteriores agrave situaccedilatildeo e como comunicaccedilatildeo falas que fazem parte da atividade de trabalhordquo (p 17) De acordo com Nouroudine (2002 p 18) a distinccedilatildeo entre esses trecircs aspectos da linguagem atende a uma opccedilatildeo metodoloacutegica que busca identificar os mecanismos de funcionamento da relaccedilatildeo trabalholinguagem e ainda a um interesse epistemoloacutegico na medida em que poderia evidenciar as ligaccedilotildees e as diferenccedilas desses mecanismos de funcionamento Neste sentido eacute importante salientar que de modo algum os diferentes aspectos da relaccedilatildeo trabalholinguagem satildeo estanques entre si e sim que existe uma estreita ligaccedilatildeo entre os trecircs aspectos da linguagem embora como afirma Nouroudine (2002) cada um deles possa aparentar ainda problemas de ordem praacutetica e epistemoloacutegica bem distintos No que se refere agrave nossa pesquisa a distinccedilatildeo entre as vaacuterias dimensotildees da relaccedilatildeo linguagem e trabalho pode lanccedilar luzes sobre a explicitaccedilatildeo ou natildeo dos saberes taacutecitos pois nos facilita compreender as estrateacutegias que os trabalhadores mobilizam para viabilizar a comunicaccedilatildeo de saberes no trabalho Essa triparticcedilatildeo considera que respectivamente haacute linguagens que fazem o trabalho que circulam no trabalho e que interpretam o trabalho as quais seratildeo explicadas a seguir
                  • 244 Comentaacuterios sobre as estrateacutegias taacutecitas
                      • Cap 03doc
                        • 332 A Empresa T
                          • Cap 04doc
                          • Cap 05 Consideraccedilotildees finais definitivadoc
                          • Observaccedilotildeesdoc
                          • Referecircncias bibliograacuteficasdoc
                            • REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Page 3: A pedagogia da ferramenta: estratégias de produção, mobilização … · 2019. 11. 14. · entrevistas semi-estruturadas realizadas com os ferramenteiros e observações de campo

SUMAacuteRIO

Agradecimentos v Resumo viii Reacutesumeacute ix 1 Introduccedilatildeo 1 11 Estruturaccedilatildeo da pesquisa 4 12 Porquecirc investigar a presenccedila de saberes no processo de trabalho 6 121 A Produccedilatildeo de saberes 11 122 A mobilizaccedilatildeo de saberes 15 123 A formalizaccedilatildeo de saberes 18 13 O referencial teoacuterico 22 14 As estrateacutegias metodoloacutegicas 27 141 Revisatildeo bibliograacutefica 28 142 Instrumentos de pesquisa 29 1421 A pesquisa documental 29 1422 Entrevistas semi-estruturadas 29 1423 Observaccedilatildeo de campo 31 143 Os sujeitos da pesquisa 31 144 O desenvolvimento da pesquisa o meu contato com a empresa pesquisada 32 145 No olho do furaccedilatildeo entre homens e maacutequinas 33 2 O ldquolugarrdquo do saber no mundo do trabalho 37 21 O saber nos modelos de organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho 37 22 O saber no trabalho 40 23 O saber taacutecito do trabalhador 44 24 Do saber vinculado agrave praacutetica um ponto de vista sobre o saber taacutecito 47 241 Saber taacutecito entre um uso instrumental e a construccedilatildeo de saberes 53 242 O saber taacutecito e a linguagem 59 243 Corpo mente e o saber taacutecito 69 244 Comentaacuterios sobre as estrateacutegias taacutecitas 75 3 A ferramentaria e as atividades industriais 78 31 A escolha do setor automotivo e especificamente do setor de autopeccedilas 79 311 As autopeccedilas 80 312 Relaccedilatildeo entre fornecedores de autopeccedilas e montadoras 82 32 A ferramentaria 83 321 Quem eacute e o que faz um ferramenteiro 85 322 A excepcionalidade do ferramenteiro breve nota sobre um trabalho muito aleacutem das prescriccedilotildees 88 33 O grupo B e a Empresa T 91

iii

331 As empresas do grupo B 92 332 A Empresa T 93 333 A organizaccedilatildeo do trabalho na Empresa T 95 334 A ferramentaria como ela eacute o trabalho prescrito e o trabalho real na ferramentaria 91 4 O trabalho real na ferramentaria a hora e a vez dos saberes taacutecitos dos ferramenteiros 106 41 As estrateacutegias dos ferramenteiros para produzir os seus saberes taacutecitos107 42 As estrateacutegias dos ferramenteiros para mobilizar os seus saberes121 43 As estrateacutegias dos ferramenteiros para formalizar os seus saberes taacutecitos134 Consideraccedilotildees finais 152 Referecircncias bibliograacuteficas 157

iv

AGRADECIMENTOS

A minha matildee Adelina que desde a minha infacircncia foi tambeacutem meu pai e me

ensinou a ver na feacute Cristatilde o valor da perseveranccedila do amor ao proacuteximo e da compreensatildeo Agrave

memoacuteria do meu pai Geraldo Alves que em nossa curta relaccedilatildeo deixou o legado da luta pela

vida A minha famiacutelia e ldquoamigos de casardquo Kaacutetia Clebinho Cidinha Roberto Ofeacutelia Caio

Paula Ciro Humberto Carlatildeo e ao pequeno Lucas

A Eloiacutesa Helena Santos a difiacutecil tarefa de agradecer Antes de tudo pelo seu passado

de respeito aos trabalhadores Os seus ensinamentos as suas orientaccedilotildees e as bibliografias

indicadas me permitiram um razoaacutevel avanccedilo acadecircmico Desde os primeiros encontros a sua

ajuda esteve aleacutem da orientaccedilatildeo do estilo da escrita agrave coragem do debate da paciecircncia agrave

amizade Serei sempre grato

A Antocircnia Vitoacuteria pela carinhosa acolhida agraves minhas inquietaccedilotildees pela

disponibilidade de sempre por ter me mostrado a importacircncia de voltar ao chatildeo de faacutebrica

Agradeccedilo por ter aceitado o convite para estar em nossa Banca

Ao professor Francisco de Paula Lima pela sua disponibilidade para o debate pelo

seu interesse em transformar o trabalho por ter aceitado participar da nossa Banca

Ao professor Antocircnio Juacutelio de Menezes por estar sempre aberto ao diaacutelogo pelo seu

interesse com as causas sociais por ter aceitado participar da nossa Banca

Aos professores e colegas do Nete que sempre nos acolheram e estiveram abertos ao

diaacutelogo Adriana Fernando Daisy Cunha Luciacutelia Dalila Justino Walter Ude Rosacircngela

Bebeto Mariana Veriacutessimo e Rogeacuterio Cunha

Aos funcionaacuterios da FAE em especial Rose Claacuteudio Elcio Claudia Adriana

Aos colegas de mestrado que estiveram conosco

Aos amigos do Uni-bh que desde a nossa graduaccedilatildeo satildeo solidaacuterios com a nossa

caminhada Em nome de todos esses eu dedico este trabalho ao professor e excepcional

amigo Wellington de Oliveira pelas inuacutemeras orientaccedilotildees por ter nos mostrado a

possibilidade de avanccedilar sobre o mundo do trabalho

Aos trabalhadores da Empresa T do chatildeo de faacutebrica ao escritoacuterio e Recursos

Humanos que ao seu modo sempre compartilharam os seus saberes conosco em especial aos

ferramenteiros que nos ensinaram um pouco do seu complexo ofiacutecio e nos encheram de

orgulho pela noccedilatildeo que tecircm dos seus saberes e da ideacuteia de coletivo Sabemos que

historicamente os trabalhadores tecircm motivos de sobra para escolher o que falar a hora de

falar e com quem falar Por isso achamos legiacutetima a posiccedilatildeo dos que falaram menos

v

O SER HOMEM SEGUNDO OS METALUacuteRGICOS

Haveria entre os metaluacutergicos um ponto de vista particular uma eacutetica ou uma forma

de se sentir homem Para aleacutem do risco de estar sendo machista o termo ser homem guarda

uma valorizaccedilatildeo para os que satildeo humanos com os colegas Daiacute que agradeccedilo aos inuacutemeros

colegas que me ensinaram a ser homem digo mais humano Desde o iniacutecio aos quinze anos

como torneiro mecacircnico pudemos aprender o que eacute ser e que natildeo eacute ser humano que a vida eacute

dentro e fora da faacutebrica Cleydson Fernando Vladimir Rocircmulo Minhoca Ater Ribeiro

Agradecemos aos que nos pagaram um pingado nas portarias das faacutebricas no

CincoContagem metaluacutergico que se preze jaacute procurou emprego no Cinco Aliaacutes quer

conhecer um metaluacutergico Vaacute a portaria de uma faacutebrica nos dias em que estatildeo ldquofichando

genterdquo Em uma dessas portarias eu ouvi pela primeira vez uma voz um carro de som e

algueacutem dizer ldquoCompanheirosrdquo Era a voz de Paulo Funghi e em seu nome eu dedico aos

outros tantos que satildeo exemplos da dignidade e da inteligecircncia operaacuteria Ao Marcelino

Edmundo Edgar e Faustatildeo em nome dos outros sindicalistas de Betim que debaixo do sol de

meio-dia ou sob o frio ou sob a chuva em vaacuterias madrugadas resistiram agraves provocaccedilotildees da

vigilacircncia e se posicionaram por melhores condiccedilotildees de trabalho Aos metaluacutergicos da Teksid

com os quais eu compartilhei muitas alegrias e anguacutestias dentro e fora da faacutebrica Zeacute Carlos

Jonas Vandeir Marcatildeo Chaveco Faacutebio Juacutelio Martinez Juacutelio (de Monlevade) Camilo Tiatildeo

Loctite Levi Adenor Joaquim Jaime Olimpio Chicos Elcio Paulo Couto Julinho do

Bolinha Baiano Buiuacute Nelson Pescador Liu Maacuterio Seacutergio

Um agradecimento especial ao Juracy Caratildeo e Orlando dois exemplos de honestidade

e solidariedade aos colegas dois homens que natildeo se importando com a truculecircncia natildeo se

deixaram intimidar e defenderam o direito a uma Cipa que funcione a sauacutede no trabalho dois

homens que devem ficar em nossa memoacuteria como exemplo de solidariedade Muito obrigado

por terem entendido que esta pesquisa eacute tambeacutem de vocecircs

Por fim retiraremos do anonimato um ferramenteiro da Teksid Era comum entre noacutes

fazermos uma lista de contribuiccedilotildees para ajudar um colega em situaccedilatildeo difiacutecil Em uma delas

ao levar a lista a este ferramenteiro ele me passou o dinheiro e no lugar onde deveria assinar

acabou fazendo um risco Ao dizer a ele para escrever o seu nome pois assim o nosso colega

poderia agradecer-lhe ele me respondeu mais ao menos assim ldquoNatildeo importa o nome importa

o exemplo que ele saiba que algueacutem o ajudou que ele jamais se esqueccedila dissordquo O nome

desse ferramenteiro eu natildeo lembro acho que nunca soube mas seu apelido era XUXA

ferramenteiro da manutenccedilatildeo do alumiacutenio Afinal natildeo importa o nome o importante eacute que o

vi

feito do homem permaneccedila em nossa memoacuteria como exemplo de humanismo O que eacute ser um

homem Eacute provaacutevel que a resposta esteja em construccedilatildeo mas natildeo me faltaram exemplos Daiacute

assumo daiacute confesso fui um metaluacutergico digo um peatildeo metaluacutergico

vii

RESUMO

Esta dissertaccedilatildeo tem como objeto de estudo as estrateacutegias que os ferramenteiros de uma induacutestria metaluacutergica da regiatildeo metropolitana de Belo Horizonte criam para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos Trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo que utilizou aleacutem da revisatildeo bibliograacutefica e documentos produzidos pelos trabalhadores entrevistas semi-estruturadas realizadas com os ferramenteiros e observaccedilotildees de campo O interesse pelo objeto dessa pesquisa surgiu das nossas reflexotildees como trabalhador metaluacutergico e da constataccedilatildeo de que a literatura que discute a presenccedila de saberes no processo de trabalho natildeo aborda as estrateacutegias criadas por um tipo de trabalhador o ferramenteiro Para desvelar o objeto dessa dissertaccedilatildeo utilizamos referenciais teoacutericos que discutem os modelos de organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho bem como os autores que seguindo a tradiccedilatildeo marxiana referendam o princiacutepio educativo do trabalho Contamos tambeacutem com os autores que a partir da noccedilatildeo oriunda da ergonomia de trabalho prescrito e trabalho real discutem a presenccedila do saber taacutecito no processo produtivo E ainda recorremos aos autores que analisam os saberes taacutecitos sob pontos de vistas variados

viii

REacuteSUMEacute

Cette recherche a comme objet drsquoeacutetude les strateacutegies creacuteeacutees par les outilleurs drsquoune industrie meacutetalurgique de la reacutegion de Belo Horizonte pour produire mobiliser et formaliser leurs savoirs tacites Il srsquoagit drsquoune recherche qualitative qui a utiliseacute au deacutelagrave de la reacutevision bibliografique lrsquoanalyse de documents produits par lrsquoenterprise et les travailleurs des entrevieus semi-structureacutees reacutealiseacutees avec les outilleurs et des observations Lrsquointeacuterecirct pour cet objet est neacute de nocirctres reflexions comme travailleur de la meacutetalurgie et de la constatation que la liteacuterature qui discute la preacutesence des savoirs dans le processus de travail ne prend pas les strateacutegies creacuteeacutees par un type de travailleur le outilleur Pour deacutevoiler lrsquoobject de recherche nous utilisons des reacutefeacuterences theacuteoriques qui discutent les modegraveles drsquoorganisation et de gestion du travaille aussi bien que les auteurs qui drsquoapregraves la tradition marxiste discutent le principie eacuteducatif du travail Nous avons pris aussi des auteurs qui font la distintion entre travail prescrit et travail reacuteel drsquoapregraves lrsquoergonomie pour signaler la preacutesence de savoirs tacites dans la production Nous avons pris encore des auteurs que analysent les savoirs tacites lons plusieurs angles

ix

BANCA EXAMINADORA

Professora Dra Eloiacutesa Helena Santos (Orientadora)- Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade

Federal de Minas GeraisUFMG

Professora Dra Antocircnia Vitoacuteria Soares Aranha - Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade Federal de Minas GeraisUFMG

Professor Dr Francisco de Paula Antunes Lima - Departamento de engenharia da produccedilatildeo da Universidade Federal de Minas GeraisUFMG

Professor Dr Antocircnio Juacutelio de Menezes Neto (suplente) - Faculdade de Educaccedilatildeo da

Universidade Federal de Minas GeraisUFMG

x

AGRADECIMENTOS

A minha matildee Adelina que desde a minha infacircncia foi tambeacutem meu pai e me

ensinou a ver na feacute Cristatilde o valor da perseveranccedila do amor ao proacuteximo e da compreensatildeo Agrave

memoacuteria do meu pai Geraldo Alves que em nossa curta relaccedilatildeo deixou o legado da luta pela

vida A minha famiacutelia e ldquoamigos de casardquo Kaacutetia Clebinho Cidinha Roberto Ofeacutelia Caio

Paula Ciro Humberto Carlatildeo e ao pequeno Lucas

A Eloiacutesa Helena Santos a difiacutecil tarefa de agradecer Antes de tudo pelo seu passado

de respeito aos trabalhadores Os seus ensinamentos as suas orientaccedilotildees e as bibliografias

indicadas me permitiram um razoaacutevel avanccedilo acadecircmico Desde os primeiros encontros a sua

ajuda esteve aleacutem da orientaccedilatildeo do estilo da escrita agrave coragem do debate da paciecircncia agrave

amizade Serei sempre grato

A Antocircnia Vitoacuteria pela carinhosa acolhida agraves minhas inquietaccedilotildees pela

disponibilidade de sempre por ter me mostrado a importacircncia de voltar ao chatildeo de faacutebrica

Agradeccedilo por ter aceitado o convite para estar em nossa Banca

Ao professor Francisco de Paula Lima pela sua disponibilidade para o debate pelo

seu interesse em transformar o trabalho por ter aceitado participar da nossa Banca

Ao professor Antocircnio Juacutelio de Menezes por estar sempre aberto ao diaacutelogo pelo seu

interesse com as causas sociais por ter aceitado participar da nossa Banca

Aos professores e colegas do NETE que sempre nos acolheram e estiveram abertos ao

diaacutelogo Adriana Fernando Daisy Cunha Luciacutelia Dalila Justino Walter Ude Rosacircngela

Bebeto Mariana Veriacutessimo e Rogeacuterio Cunha

Aos funcionaacuterios da FAE em especial Rose Claacuteudio Elcio Claudia Adriana

Aos colegas de mestrado que estiveram conosco

Aos amigos do Uni-bh que desde a nossa graduaccedilatildeo satildeo solidaacuterios com a nossa

caminhada Em nome de todos esses eu dedico este trabalho ao professor e excepcional

amigo Wellington de Oliveira pelas inuacutemeras orientaccedilotildees por ter nos mostrado a

possibilidade de avanccedilar sobre o mundo do trabalho

Aos trabalhadores da Empresa T do chatildeo de faacutebrica ao escritoacuterio e Recursos

Humanos que ao seu modo sempre compartilharam os seus saberes conosco em especial aos

ferramenteiros que nos ensinaram um pouco do seu complexo ofiacutecio e nos encheram de

orgulho pela noccedilatildeo que tecircm dos seus saberes e da ideacuteia de coletivo Sabemos que

historicamente os trabalhadores tecircm motivos de sobra para escolher o que falar a hora de

falar e com quem falar Por isso achamos legiacutetima a posiccedilatildeo dos que falaram menos

O SER HOMEM SEGUNDO OS METALUacuteRGICOS

Haveria entre os metaluacutergicos um ponto de vista particular uma eacutetica ou uma forma

de se sentir homem Para aleacutem do risco de estar sendo machista o termo ser homem guarda

uma valorizaccedilatildeo para os que satildeo humanos com os colegas Daiacute que agradeccedilo aos inuacutemeros

colegas que me ensinaram a ser homem digo mais humano Desde o iniacutecio aos quinze anos

como torneiro mecacircnico pudemos aprender o que eacute ser e que natildeo eacute ser humano que a vida eacute

dentro e fora da faacutebrica Cleydson Fernando Vladimir Rocircmulo Minhoca Ater Ribeiro

Agradecemos aos que nos pagaram um pingado nas portarias das faacutebricas no

CincoContagem metaluacutergico que se preze jaacute procurou emprego no Cinco Aliaacutes quer

conhecer um metaluacutergico Vaacute a portaria de uma faacutebrica nos dias em que estatildeo ldquofichando

genterdquo Em uma dessas portarias eu ouvi pela primeira vez uma voz um carro de som e

algueacutem dizer ldquoCompanheirosrdquo Era a voz de Paulo Funghi e em seu nome eu dedico aos

outros tantos que satildeo exemplos da dignidade e da inteligecircncia operaacuteria Ao Marcelino

Edmundo Edgar e Faustatildeo em nome dos outros sindicalistas de Betim que debaixo do sol de

meio-dia ou sob o frio ou sob a chuva em vaacuterias madrugadas resistiram agraves provocaccedilotildees da

vigilacircncia e se posicionaram por melhores condiccedilotildees de trabalho Aos metaluacutergicos da Teksid

com os quais eu compartilhei muitas alegrias e anguacutestias dentro e fora da faacutebrica Zeacute Carlos

Jonas Vandeir Marcatildeo Chaveco Faacutebio Juacutelio Martinez Juacutelio (de Monlevade) Camilo Tiatildeo

Loctite Levi Adenor Joaquim Jaime Olimpio Chicos Elcio Paulo Couto Julinho do

Bolinha Baiano Buiuacute Nelson Pescador Liu Maacuterio Seacutergio

Um agradecimento especial ao Juracy Caratildeo e Orlando dois exemplos de honestidade

e solidariedade aos colegas dois homens que natildeo se importando com a truculecircncia natildeo se

deixaram intimidar e defenderam o direito a uma Cipa que funcione a sauacutede no trabalho dois

homens que devem ficar em nossa memoacuteria como exemplo de solidariedade Muito obrigado

por terem entendido que esta pesquisa eacute tambeacutem de vocecircs

Por fim retiraremos do anonimato um ferramenteiro da Teksid Era comum entre noacutes

fazermos uma lista de contribuiccedilotildees para ajudar um colega em situaccedilatildeo difiacutecil Em uma delas

ao levar a lista a este ferramenteiro ele me passou o dinheiro e no lugar onde deveria assinar

acabou fazendo um risco Ao dizer a ele para escrever o seu nome pois assim o nosso colega

poderia agradecer-lhe ele me respondeu mais ao menos assim ldquoNatildeo importa o nome importa

o exemplo que ele saiba que algueacutem o ajudou que ele jamais se esqueccedila dissordquo O nome

desse ferramenteiro eu natildeo lembro acho que nunca soube mas seu apelido era XUXA

ferramenteiro da manutenccedilatildeo do alumiacutenio Afinal natildeo importa o nome o importante eacute que o

feito do homem permaneccedila em nossa memoacuteria como exemplo de humanismo O que eacute ser um

homem Eacute provaacutevel que a resposta esteja em construccedilatildeo mas natildeo me faltaram exemplos Daiacute

assumo daiacute confesso fui um metaluacutergico digo um peatildeo metaluacutergico

1 INTRODUCcedilAtildeO

Eacute salutar que um trabalho de pesquisa para ser apreendido em sua totalidade seja abor-

dado desde a sua concepccedilatildeo O objeto dessa pesquisa qual seja as estrateacutegias usadas pelos

ferramenteiros de uma induacutestria metaluacutergica da regiatildeo metropolitana de Belo Horizonte para a

produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e organizaccedilatildeo de seus saberes no trabalho surgiu de uma perspectiva

aberta pelo encontro da nossa formaccedilatildeo escolar da vivecircncia como trabalhador de uma induacutes-

tria metaluacutergica com o debate sobre o mundo do trabalho o que gerou um interesse em com-

preender os saberes produzidos no processo de trabalho Neste sentido entendemos que eacute

importante fazer uma recuperaccedilatildeo de uma parte dessa experiecircncia no setor fabril da nossa

inserccedilatildeo no universo teoacuterico sobre o mundo do trabalho e a dimensatildeo que esse encontro to-

mou na construccedilatildeo do objeto que norteia esta pesquisa

A nossa formaccedilatildeo iniciou-se no Senai aos 14 anos de idade por meio do curso de

Torneiro Mecacircnico de um ano e meio e posteriormente no periacuteodo da noite mais um ano de

Frezador Mecacircnico Logo depois iniciamos tambeacutem no turno da noite o Curso Teacutecnico em

Mecacircnica no Cefet-MG A esta formaccedilatildeo somou-se a nossa entrada no trabalho ocorrida aos

15 anos de idade Nesse periacuteodo o nosso discernimento a respeito do trabalho comeccedilou a ga-

nhar contornos mais elaborados influenciado pelo intercacircmbio que havia entre noacutes colegas

de trabalho e de curso o que produzia uma troca de informaccedilotildees ricas e variadas

Em que pese a contribuiccedilatildeo da formaccedilatildeo teacutecnica que tivemos foi no cotidiano do meu

trabalho e na realidade concreta da produccedilatildeo que surgiram as nossas inquietaccedilotildees mais impor-

1

tantes Estas foram encontrar guarida no nosso contato com os estudos da aacuterea de trabalho e

educaccedilatildeo em suas argumentaccedilotildees em defesa da centralidade da categoria trabalho e do princiacute-

pio educativo aiacute presente possibilitando a construccedilatildeo de uma problemaacutetica que gerou este

objeto de pesquisa

Logo em nosso iniacutecio como trabalhador metaluacutergico em 1986 o contato com a reali-

dade do trabalho nos colocou diante de novidades que contribuiacuteram para a construccedilatildeo da nos-

sa identidade de trabalhador e nos proporcionou uma aprendizagem que ultrapassou os limi-

tes da educaccedilatildeo formal Ainda movido pela disciplina dos tempos de Senai qualquer condiccedilatildeo

adversa era encarada como desafio a ser enfrentado por quem pretendia ser ldquobom de serviccedilordquo

o que implicava executar um trabalho muitas vezes sem o devido preparo ou o uso de equi-

pamentos de seguranccedila obsoletos Esta realidade nos fazia mobilizar saberes de toda ordem e

chamava a nossa atenccedilatildeo para os saberes dos meus colegas

Em 1992 iniciamos um estaacutegio de teacutecnico mecacircnico em uma empresa metaluacutergica do

setor de autopeccedilas pertencente ao grupo Fiat Apoacutes seis meses de estaacutegio fomos efetivado

como teacutecnico no setor de manutenccedilatildeo e implantaccedilatildeo de equipamentos Isso se deu exatamente

no momento em que a empresa iniciou um trabalho preparatoacuterio para sua certificaccedilatildeo de a-

cordo com as exigecircncias do mercado automobiliacutestico tal como a ISO 90001 Em seguida

veio a QS 9000 uma adaptaccedilatildeo da anterior feita pelas empresas automobiliacutesticas norte- ame-

ricanas Chrysler Ford e General Motors A adequaccedilatildeo agrave reestruturaccedilatildeo produtiva atraveacutes des-

tes sistemas de normas busca tornar o processo produtivo mais confiaacutevel tecnicamente e mais

controlaacutevel tambeacutem Ambos os sistemas determinam que sejam criados registros conhecidos

como procedimentos por meio dos quais descreve-se ldquotodordquo o processo de produccedilatildeo desde a

chegada da mateacuteria-prima agrave embalagem do produto

1 De acordo com CARVALHO (1996) A ISO (International Stander Organization) no paracircmetro 9000 especi-fica requisitos para um sistema de gestatildeo da qualidade que podem ser usados pelas organizaccedilotildees para uma apli-caccedilatildeo interna para certificaccedilotildees ou para fins contratuais

2

Chamou a nossa atenccedilatildeo o fato de que esta dinacircmica significava uma apropriaccedilatildeo do

saber dos operaacuterios uma vez que muitas das pequenas modificaccedilotildees por eles feitas para facili-

tar o seu trabalho eram obrigatoriamente documentadas tornando-se um know how da empre-

sa A partir desses registros era possiacutevel por exemplo mapear os passos dados para o sucesso

de determinadas atividades bem como identificar as possiacuteveis falhas da engenharia

Fazia parte desta dinacircmica uma gama de programas que incentivavam os trabalhadores

a se integrarem ao projeto de desenvolvimento de boas ideacuteias para a melhoria da produtivida-

de e qualidade da empresa Tambeacutem observaacutevamos quais eram as circunstacircncias que nos fa-

voreciam produzir saberes e como os usaacutevamos a influecircncia do ensino formal na produccedilatildeo de

saberes no processo de trabalho propriamente dito e sobretudo a cooperaccedilatildeo dos colegas

Esta experiecircncia enriquecida de outras da mesma natureza vividas por nossos colegas

trabalhadores nos levou a problematizar as situaccedilotildees que envolvem o saber no processo de

trabalho Sabiacuteamos possuir um modo proacuteprio de produzir saberes de mobilizaacute-los e organizaacute-

los inclusive com troca de informaccedilotildees longe das maacutequinas agraves vezes no horaacuterio de almoccedilo

na hora do banho ou no trajeto para a aula entre aqueles que frequumlentavam a mesma escola O

trabalho se apresentava como afirmaccedilatildeo da nossa inteligecircncia e do gosto pela profissatildeo

Foi neste mesmo espaccedilo que noacutes nos percebemos enquanto um trabalhador que aleacutem

de produzir um saber nem sempre imaginado pelo capital mas necessaacuterio para a produccedilatildeo

desenvolvia condiccedilotildees de viver o trabalho enquanto espaccedilo de afirmaccedilatildeo pessoal e identitaacuteria

com a nossa classe

O interesse em conhecer melhor o mundo do trabalho nos levou ao curso superior de

Histoacuteria Paralelamente o nosso trabalho na faacutebrica continuou a ser um objeto de observaccedilatildeo

cada vez mais instigante agrave medida que iacuteamos associando o nosso cotidiano no trabalho com as

disciplinas do curso e especialmente com o tema da reestruturaccedilatildeo capitalista tratada na sala

de aula Nesse processo tambeacutem dava primazia agrave questatildeo da presenccedila de saberes no trabalho

3

As nossas possibilidades de fazer uma leitura da dimensatildeo positiva do trabalho o que

segundo Charlot (2000 p 30) significa ldquoler de outra maneira o que eacute lido como falta pela

leitura negativardquo foram sendo ampliadas e refinadas a partir do ano de 2001 quando nos a-

proximamos das atividades do Nete ndash Nuacutecleo de Estudos sobre Trabalho e Educaccedilatildeo da FAE-

UFMG especialmente dos trabalhos das professoras Antocircnia Vitoacuteria Aranha (1997) e Eloiacutesa

Helena Santos (1997 2000) Estas pesquisadoras ao ldquodesnaturalizaremrdquo o saber taacutecito situ-

ando-o como um processo histoacuterico social e subjetivo acabaram nos permitindo definir o

saber taacutecito no processo de trabalho mais especificamente as estrateacutegias usadas pelos traba-

lhadores para produzir mobilizar e organizar o seu saber como objeto desta pesquisa Portan-

to o nosso objetivo nesta dissertaccedilatildeo eacute analisar as estrateacutegias que os ferramenteiros de uma

induacutestria metaluacutergica mineira usam para produzir mobilizar e organizar os seus saberes no

trabalho

11 ESTRUTURACcedilAtildeO DA PESQUISA

Esta dissertaccedilatildeo estaacute organizada do seguinte modo

No primeiro capiacutetulo buscaremos apresentar a presenccedila de saberes no processo de tra-

balho pela seguinte trilha

bull A partir do diaacutelogo com a literatura que aborda a presenccedila de saberes no processo

de trabalho e da nossa experiecircncia em chatildeo de faacutebrica apresentaremos a relevacircncia

acadecircmica e social desta pesquisa bem como os seus objetivos

bull Tambeacutem a partir do que encontramos nas pesquisas sobre esse tema e de alguns

casos que vivenciamos como metaluacutergico seraacute apresentada a nossa hipoacutetese qual

4

seja que os ferramenteiros para dar conta do trabalho real criam estrateacutegias de pro-

duccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo dos seus saberes taacutecitos

bull Apresentaccedilatildeo do nosso referencial teoacuterico e das estrateacutegias metodoloacutegicas que u-

samos na pesquisa para coletar os dados

bull e por fim a nossa imersatildeo no campo da pesquisa

No segundo capiacutetulo apresentaremos como a literatura trata o saber taacutecito Esta parte

estaacute organizada da seguinte forma

bull O saber do trabalhador nos modelos de organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho preconiza-

do pelo taylorismofordismo e pelo modelo japonecircs

bull A importacircncia que a literatura atribui agrave presenccedila de saberes no processo do trabalho

e sobretudo ao saber taacutecito do trabalhador

bull O saber taacutecito como objeto de discussatildeo segundo a literatura que aborda essa temaacute-

tica

No terceiro capiacutetulo iremos descrever o nosso campo de pesquisa caracterizando os

seguintes aspectos

bull O setor automotivo

bull O setor de autopeccedilas

bull A ferramentaria

bull Os ferramenteiros

bull O grupo da empresa pesquisada

bull A empresa pesquisada

No quarto capiacutetulo faremos a anaacutelise dos dados obtidos na pesquisa de campo

Por fim apresentaremos as nossas consideraccedilotildees finais pelas quais proporemos alguns

desdobramentos bem como consideraremos os resultados deste trabalho em relaccedilatildeo agraves aacutereas

que investigam a presenccedila de saberes no processo de trabalho

5

12 Por que investigar a presenccedila de saberes no processo de trabalho

A questatildeo dos saberes presentes no processo de trabalho vem se constituindo como um

dos temas mais discutidos na atualidade A complexidade e a importacircncia deste assunto torna-

ram-no um tema multidisciplinar abrangendo aacutereas da educaccedilatildeo sociologia psicologia ciecircn-

cias da informaccedilatildeo engenharia mobilizando vaacuterios pesquisadores (SANTOS 19852 ARA-

NHA 19973 LIMA 19984 ASSIS 20005) De acordo com Evangelista (2002) ldquoDesde a

deacutecada de 60 autores como Drucker e Galbrait jaacute indicavam que o conhecimento tenderia a

ser o principal fator de produccedilatildeordquo (p 13)

Na medida em que se concretiza a importacircncia do saber no atual mundo do trabalho

aumenta tambeacutem o interesse de pesquisadores por essa temaacutetica Trein (1996 p 32) por e-

xemplo avalia que o interesse do capital por esta questatildeo ocorre ldquodiante do imperativo da

flexibilizaccedilatildeo da economia mundializadardquo Evangelista (2002 p 15) aponta alguns aspectos

da atual fase do capitalismo que reforccedilam o interesse do capital pela presenccedila de saberes no

processo de trabalho ldquoSer diferente e criativo significa maior lucro no mercado competitivo e

para o capital esses elementos podem estar focados nas informaccedilotildees e conhecimentos que

circulam no acircmbito da produccedilatildeordquo

A importacircncia do saber para as empresas no atual momento se configura de forma tal

que os empresaacuterios se organizaram em torno de discussotildees sobre a educaccedilatildeo fazendo coro

2 Dissertaccedilatildeo SANTOS E H Trabalho e educaccedilatildeo o cotidiano do operaacuterio na faacutebrica Belo Horizonte FA-EUFMG 1985 SANTOS E H Le savoir en travail lrsquoexpeacuterience de deacuteveloppement technologique par les travailleurs drsquoune industrie breacutesilienne Paris Universiteacute de Paris VIII 1991 (Tese Doutorado Deacutepartament des Sciences drsquo Education) 3 ARANHA A V S O conhecimento taacutecito e qualificaccedilatildeo do trabalhador Trabalho e Educaccedilatildeo Belo Hori-zonte NeteFAEUFMG n 2 p 13-29 agodez 1997 4 LIMA F P A SILVA C A D A objetivaccedilatildeo do saber praacutetico na concepccedilatildeo de sistemas especialistas das regras formais agraves situaccedilotildees de accedilatildeo Belo Horizonte 1998 (Mimeo) 5 Dissertaccedilatildeo ASSIS R W Os impactos das novas tecnologias nas formas de sociabilidade e no savoir-faire dos operadores um estudo de caso do setor sideruacutergico Belo Horizonte Faculdade de Psicologia da UFMG 2000

6

por uma formaccedilatildeo baseada na noccedilatildeo de competecircncia6 Aleacutem disso os empresaacuterios atraveacutes de

organismos como Senai Fiemg Fiesp e outros constantemente promovem seminaacuterios em

torno do tema (CARVALHO 1999 HORTA et al 2000)

A problemaacutetica dos saberes no trabalho posta em diaacutelogo com os interesses dos traba-

lhadores vem encontrando guarida tambeacutem nas reflexotildees em vaacuterios nuacutecleos de estudos7e jaacute

haacute algum tempo mobiliza pesquisas e debates No que se refere ao campo de estudos sobre

trabalho e educaccedilatildeo dentre outros destacam-se as abordagens sobre a presenccedila de saberes do

trabalhador no processo de trabalho as novas tecnologias e a organizaccedilatildeo do processo produ-

tivo e as poliacuteticas puacuteblicas e privadas para a educaccedilatildeo profissional (TREIN 1996 p 32 FI-

DALGO amp MACHADO 2000 p 338)

Alguns elementos verificados pelas pesquisas realizadas nesse campo bem como a

nossa experiecircncia em chatildeo de faacutebrica assinalam que esse tema tambeacutem mobiliza os interes-

ses dos trabalhadores Entretanto entendemos que ainda faltam elementos que favoreccedilam uma

organizaccedilatildeo coletiva dos trabalhadores centrada na valorizaccedilatildeo e uso dos seus saberes sendo

que muito do que foi colocado como relevante para os interesses dos trabalhadores ainda natildeo

foi suficientemente esclarecido como por exemplo as possibilidades de formalizaccedilatildeo e legi-

timaccedilatildeo dos seus saberes (ARANHA 1997 SANTOS 1985 1997 2000)

As pesquisas que enveredaram pela investigaccedilatildeo da presenccedila de saberes no processo

de trabalho discutem o reconhecimento do proacuteprio capital sobre a importacircncia do saber do

trabalhador no processo produtivo No entanto questionam este reconhecimento pode ser

traduzido em ganhos para os trabalhadores Se haacute algum ganho quais satildeo eles Na tentativa

de responder a essas questotildees Aranha (1997) Santos (1985 1997 2000) Machado (1999)

6 A polecircmica sobre o uso da noccedilatildeo de competecircncia pode ser encontrada em FIDALGO amp MACHADO (2000 p 56 e120) SANTOS (2003) 7 Segundo FIDALGO amp OLIVEIRA (2001) NETEFAEUFMG Nuacutecleo de Estudo sobre Trabalho e Educaccedilatildeo da Faculdade de Educaccedilatildeo da UFMG NESTHFAFICHUFMG Nuacutecleo de Estudo sobre o Trabalho Humano NEDATEUFF Nuacutecleo de documentaccedilatildeo e dados sobre trabalho e educaccedilatildeo Grupo Trabalho - Educaccedilatildeo Carlos Chagas e da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo NTEUFC Nuacutecleo Trabalho e Educaccedilatildeo da Univer-sidade Federal do Cearaacute Conferir dossiecirc trabalho e educaccedilatildeo publicado em Educaccedilatildeo em Revista (2001)

7

defendem a necessidade de se investigar o saber no trabalho a partir da perspectiva que o tra-

balhador confere a este saber Nesse sentido eacute vaacutelido acrescentar uma observaccedilatildeo feita por

Santos (1997)

A capitalizaccedilatildeo dos benefiacutecios proporcionados pelo saber do trabalhador agrave produ-ccedilatildeo eacute uma estrateacutegia jaacute colocada em marcha pelos empresaacuterios Fica a tarefa de construir uma alternativa que deixando de ser resistecircncia passiva e natildeo caindo na co-gestatildeo do saber no trabalho resgate o valor epistemoloacutegico social poliacutetico e cultural do saber do trabalhador (p 26)

Apresentada a importacircncia do tema na perspectiva dos trabalhadores emerge uma

pergunta como as pesquisas sobre este tema poderiam favorecer a proposta de Santos A

nosso ver uma possibilidade de resposta pode ser construiacuteda a partir de uma investigaccedilatildeo que

considere a capacidade dos trabalhadores de chatildeo de faacutebrica de interpretar o mundo do traba-

lho

Esse tema tambeacutem se faz presente na literatura que discute a questatildeo das poliacuteticas

puacuteblicas em educaccedilatildeo mais precisamente aquelas voltadas para a formaccedilatildeo profissional No

atual momento como demonstraram Evangelista (2002) Machado (1999) Souza (2002) e

Kuenzer (1997) o processo de reestruturaccedilatildeo produtiva vem requisitando um trabalhador com

uma formaccedilatildeo baacutesica mais soacutelida e ampliada As pesquisas revelam que os capitalistas pres-

sionam por uma concepccedilatildeo de educaccedilatildeo pautada em um modelo de competecircncias que garanta

a formaccedilatildeo de um trabalhador que exerccedila com excelecircncia multitarefas (KUENZER 1997

CARVALHO 1999)

Dessa forma investigar a presenccedila de saberes no trabalho corresponde a uma demanda

extremamente atual seja qual for o foco privilegiado Todavia entendemos que para avanccedilar

em relaccedilatildeo ao que estaacute disponiacutevel na literatura apreciada eacute necessaacuterio conhecer mais sobre os

saberes produzidos pelos trabalhadores Nossa contribuiccedilatildeo se refere aos caminhos que os

trabalhadores percorrem para produzir seus saberes e ao fato de apresentar de que forma eles

8

satildeo mobilizados e formalizados Daiacute que elegemos investigar as estrateacutegias usadas pelos fer-

ramenteiros de uma induacutestria metaluacutergica para produzir mobilizar e formalizar os seus sabe-

res

Se de um lado as pesquisas demonstram que o saber taacutecito do trabalhador estaacute se

constituindo como um objeto que mobiliza diversos interesses por outro lado alguns pesqui-

sadores explicitaram a necessidade de se ampliarem as investigaccedilotildees De acordo com Aranha

(1997)

O conhecimento taacutecito embora decisivo natildeo tem merecido ainda o enfoque neces-saacuterio Primeiro por sua dificuldade em expressar-se de forma sistematizada ou pela ausecircncia de interesses reais de quem deteacutem o controle dos processos de trabalho e de formaccedilatildeo de alccedilaacute-lo no niacutevel de ldquoconhecimento cientiacuteficorsquorsquo Segundo porque muitas vezes eacute tido como ldquoalgordquo natural e natildeo fruto de um processo social de cons-truccedilatildeo (p 26)

Neste sentido esta investigaccedilatildeo se justifica tambeacutem pela possibilidade de trazer novos

elementos teoacutericos e praacuteticos que subsidiem os trabalhadores nos seus esforccedilos de formalizar

e legitimar os seus saberes

As investigaccedilotildees sobre o saber no trabalho podem contribuir com as poliacuteticas puacuteblicas

educacionais na medida em que permitem conhecer outras formas de apreensatildeo da realidade e

de construccedilatildeo de saberes bem como verificar a influecircncia da escola formal na produccedilatildeo des-

ses saberes Tem-se ainda a chance de validar os saberes dos trabalhadores ao se incorporar

essas novas formas no debate escolar reforccedilando a perspectiva de uma formaccedilatildeo pelo traba-

lho e natildeo exclusivamente para o trabalho Essa praacutetica jaacute eacute relativamente consagrada no setor

produtivo conforme esclarece Therrien (1996) ldquoO debate da lsquoqualidade totalrsquo nascido do

chatildeo das interaccedilotildees da faacutebrica evidenciou capacidades de elaboraccedilatildeo de soluccedilotildees de constru-

ccedilotildees de saberes que manifestam lsquoexistecircncia de racionalidadersquo que fogem aos padrotildees formais

da ciecircncia e da tecnologiardquo (p 67)

9

A investigaccedilatildeo sobre o saber taacutecito do trabalhador poderaacute contribuir tambeacutem com o

debate sobre o ldquoalavancamentordquo tecnoloacutegico do Brasil uma vez que as pesquisas apontam

que a tecnologia presente no processo de trabalho tem um deacutebito com o saber taacutecito do traba-

lhador Essa possibilidade se apresenta em uma reflexatildeo de Santos (2000)

O desenvolvimento tecnoloacutegico as inovaccedilotildees teacutecnicas se concretizam por uma so-ma de pequenas e grandes iniciativas de pequenas e grandes decisotildees de pequenas e grandes conquistas dos trabalhadores O domiacutenio dos processos teacutecnicos se expe-rimenta dia apoacutes dia

Em que pese a contribuiccedilatildeo das pesquisas sobre a questatildeo do saber no processo de tra-

balho persistem ainda algumas lacunas que ficam evidenciadas pelo aparente consenso de

que o saber taacutecito natildeo eacute formalizaacutevel Aranha afirma que segundo Machado ldquoAs qualifica-

ccedilotildees taacutecitas satildeo como um saber-fazer complementar e necessaacuterio ao sistema teacutecnico intuitivo

e natildeo codificaacutevelrdquo (ARANHA 1997 p 13)

Em nosso entendimento o debate dessa perspectiva aparentemente consensual eacute pos-

siacutevel e se constitui como um desafio a ser perseguido cuja expectativa eacute contribuir para a va-

lorizaccedilatildeo do saber do trabalhador como diz Santos (1997) em suas dimensotildees ldquo() epistecircmi-

ca econocircmica e culturalrdquo

Por fim mesmo reconhecendo o saber do trabalhador como um objeto complexo con-

sideramos que uma parte da lacuna sobre o saber taacutecito se deva ao fato de que a maioria das

pesquisas sobre esse tema tenha privilegiado uma abordagem que natildeo explora em profundida-

de o como estes saberes satildeo produzidos mobilizados e formalizados por um segmento impor-

tante da induacutestria mecacircnica os ferramenteiros Dessa forma a nossa pesquisa pretende conhe-

cer os caminhos percorridos pelos trabalhadores ferramenteiros para produzir mobilizar e

formalizar os seus saberes

Neste sentido acreditamos que esta pesquisa ao aceitar o desafio de apreender as es-

trateacutegias usadas pelos ferramenteiros para produzir mobilizar e formalizar seus saberes con-

10

tribuiraacute com elementos de ordem teoacuterica e praacutetica para a discussatildeo em torno da legitimidade

do saber taacutecito e cobriraacute uma lacuna no campo de trabalho e educaccedilatildeo com novas descobertas

acerca dos saberes presentes no processo de trabalho Auxiliaraacute tambeacutem as poliacuteticas puacuteblicas

voltadas para a formaccedilatildeo do trabalhador ao apresentar outras formas de produccedilatildeo de saberes e

de apreensatildeo da realidade Portanto os objetivos que nortearam esta pesquisa satildeo

bull Conhecer os caminhos que os ferramenteiros percorrem para produzir mobilizar e

formalizar os seus saberes taacutecitos

bull Verificar se esses caminhos se transformam ou natildeo em meacutetodos de trabalho dos fer-

ramenteiros

bull Verificar a legitimidade que os ferramenteiros atribuem agraves suas estrateacutegias de pro-

duccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes taacutecitos

Se por um lado entendemos como necessaacuterio apresentar a nossa problematizaccedilatildeo so-

bre a hipoacutetese de que os ferramenteiros possam desenvolver estrateacutegias para produzir mobili-

zar e formalizar seus saberes por outro lado eacute importante salientar que ao definirmos as es-

trateacutegias usadas pelos ferramenteiros como produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes

natildeo buscamos demarcar uma separaccedilatildeo hermeacutetica entre elas e sim analisar se as suas seme-

lhanccedilas e diferenccedilas se articulam Por este motivo apresentaremos um breve debate sobre

essas trecircs categorizaccedilotildees

121 A produccedilatildeo de saberes

As pesquisas que abordam a questatildeo da produccedilatildeo de saberes pelo trabalhador afirmam

que esses saberes se apresentam perante a necessidade do trabalhador superar determinadas

dificuldades no processo de trabalho dados os limites da engenharia em prescrever o que de-

ve ser feito para garantir a realizaccedilatildeo de uma atividade trabalho (MACHADO 1999 ASSIS

11

2000) A partir dessa perspectiva quando discutimos o saber taacutecito acabamos por aproximar

essa noccedilatildeo de uso do saber com a inventividade e a criatividade do trabalhador dentro do pro-

cesso de trabalho ou seja com as ldquosaiacutedasrdquo e as ldquogambiarrasrdquo criadas pelos trabalhadores para

realizarem um determinado trabalho

Um dos pressupostos que sustenta a possibilidade de que os trabalhadores possam

produzir saberes reside na tese de que o trabalho eacute marcado por um princiacutepio educativo San-

tos (2000) faz uma consideraccedilatildeo sobre essa possibilidade

() trabalhar eacute satisfazer uma exigecircncia - produzir - mas estreitamente ligada ao fa-to de criar de aprender de desenvolver de dominar de adquirir um saber Traba-lhar eacute procurar preencher certas lacunas do saber e desse modo as suas proacuteprias Quer dizer desenvolver se informar se formar Se transformar se experimentar e experimentar sua inteligecircncia (p 129)

A consideraccedilatildeo de que o trabalho eacute marcado por um princiacutepio educativo se potenciali-

za segundo as pesquisas mediante a incapacidade da engenharia enquanto um conjunto de

saberes formalizados em dar conta das demandas reais e que satildeo necessaacuterias para garantir o

andamento do processo produtivo (SANTOS 1997 SALERNO 1994) Essa incapacidade da

gerecircncia deixa um espaccedilo no processo de trabalho para as chamadas situaccedilotildees imprevistas Eacute

diante do inesperado que a criatividade do trabalhador em solucionar os problemas do traba-

lho faz a diferenccedila entre o que a engenharia prescreve e o que realmente ocorre no processo

de trabalho O capital usa esse expediente de forma que a gerecircncia convoca e pressiona por

soluccedilotildees do chatildeo de faacutebrica mesmo sabendo que a situaccedilatildeo se desenvolve dentro do inespe-

rado Evangelista (2002) fez a seguinte observaccedilatildeo a esse respeito ldquoSe as situaccedilotildees estatildeo fora

do previsto natildeo importa eacute preciso produzir garantindo o ecircxitordquo (p 131)

Ao usar a sua inteligecircncia para superar os entraves do ldquoinesperadordquo o trabalhador i-

nova produzindo saberes e tambeacutem aprende a aprender A possibilidade de que a relaccedilatildeo do

trabalhador com os imprevistos do processo produtivo se configure como um momento peda-

12

goacutegico foi apontada por Machado (1999) ldquoHaacute uma escolha a ser feita e que nas situaccedilotildees de

trabalho entra em uma perspectiva dialeacutetica entre as regras do saber estabelecido e o natildeo-

saber que o acaso impotildee promovendo um processo de construccedilatildeo de saber no trabalhordquo (p

151)

A inteligecircncia do trabalhador lhe permite ir aleacutem da superaccedilatildeo do inesperado Ao pocircr a

sua criatividade em marcha os trabalhadores buscam realizar o seu trabalho da forma mais

confortaacutevel mais bonita ou mais faacutecil8 Eacute nesse contexto que surgem os ldquoatalhosrdquo Santos

(1985) em uma pesquisa sobre o trabalho dos caldeireiros nos revela que esses profissionais

a partir da produccedilatildeo de ldquomacetesrdquo ou ldquogambiarrasrdquo criavam soluccedilotildees para facilitarem a reali-

zaccedilatildeo do seu trabalho Essa pesquisadora (1985 p 62) apresenta o depoimento de um traba-

lhador sobre essa questatildeo ldquoA gente costuma fazer ferramentas para facilitar o nosso trabalho

espaacutetula cachorro e gabarito () Vamos dizer que a gente vai fazer um cone que eacute a peccedila

mais difiacutecil de calandrar A gente sempre usa um macete qualquer e adianta maisrdquo

Se de um lado eacute o imprevisiacutevel e o natildeo-prescrito pela engenharia que convocam o sa-

ber taacutecito do trabalhador por outro lado a fecundidade dos macetes e das intervenccedilotildees do

trabalhador dialoga com os tipos de meio de produccedilatildeo especiacuteficos em cada processo de traba-

lho De acordo com Evangelista (2002) ldquoA tecnologia e o maquinaacuterio usado na produccedilatildeo

influem significativamente na possibilidade que os trabalhadores tecircm de construccedilatildeo e de

controle do conhecimento mobilizado no processo de trabalhordquo (p 134)

Essa consideraccedilatildeo aparece nas pesquisas principalmente nos processos automatizados

como um algo a mais na produccedilatildeo de saber no trabalho Assis (2000) ao investigar o monito-

ramento da produccedilatildeo em uma siderurgia feita pelos operadores atraveacutes dos paineacuteis de contro-

le observa que a obrigaccedilatildeo de anular os possiacuteveis danos causados pelos imprevistos leva-os a

produzir um novo saber

8 Em vaacuterias induacutestrias em que trabalhamos existia a expressatildeo ldquojogar faacutecilrdquo

13

Observamos tambeacutem que a ldquovigilacircnciardquo dos operadores no acompanhamento natildeo significa apenas uma qualidade visual ou sensorial mas faz emergir um saber mais abstrato sendo tudo isto necessaacuterio quando se reconhece a falibilidade dos meios teacutecnicos e a possibilidade de imprevistos (p 94)

Outro exemplo dessa natureza que consideramos importante eacute o caso da produccedilatildeo de

saberes em empresas que possuem maacutequinas com CNC9 Essas empresas frequumlentemente op-

tam por colocarem como operadores de CNC torneiros mecacircnicos com experiecircncia em maacute-

quina convencional Ao fazerem essa opccedilatildeo as empresas levam em consideraccedilatildeo a capacida-

de dos torneiros mecacircnicos de anteciparem os possiacuteveis problemas com o CNC Um desses

casos foi identificado por Vieira apud Evangelista (2002)

No caso do trabalhador possuir um conhecimento preacutevio adquirido no uso de tec-nologia convencional quando ele se depara com uma maacutequina do tipo CNC de tecnologia avanccedilada eacute possiacutevel unir teoria e praacutetica essa uacuteltima adquirida na maacute-quina convencional No entanto para aqueles que iniciaram a praacutetica diretamente nesta maacutequina CNC fica mais difiacutecil diagnosticar por exemplo a origem de deter-minado problema no processo (p 135)

No caso do CNC apresenta-se ainda uma produccedilatildeo de saber muito complexa Um

exemplo concreto de resoluccedilatildeo de um problema e antecipaccedilatildeo de outro cujo tipo de maacutequina

e tecnologia interfere na produccedilatildeo de saber eacute abordado por Salerno (1994) O saber adquirido

no trabalho em maacutequinas convencionais auxiliou os trabalhadores natildeo somente na detecccedilatildeo de

um problema no programa do CNC mas permitiu-lhes elaborar um programa melhor do que o

da engenharia

Numa faacutebrica que visitamos um programa consistia em fazer um pesado corte num bloco de alumiacutenio - uma operaccedilatildeo que gera calor consideraacutevel ndash e entatildeo fazer dois furos com distacircncia precisa entre eles Quando os passos do programa satildeo carrega-dos nessa ordem a distacircncia entre os furos diminui agrave medida em que o alumiacutenio es-fria O operaacuterio foi capaz de corrigir o problema alterando o programa para fazer primeiro a furaccedilatildeo (SHAIKEN apud SALERNO 1994 p 73)

9 De acordo com FARIA (1997) CNC ndash Comando Numeacuterico Computadorizado eacute um ldquocomando com capacida-de de receber informaccedilotildees memorizar executar caacutelculos e transmiti-los agrave maacutequina para execuccedilatildeo da peccedilardquo (p 39)

14

122 A mobilizaccedilatildeo de saberes

Se as pesquisas confirmam a chance de o trabalhador produzir saberes no trabalho em

nosso entendimento quando avanccedilamos sobre essa possibilidade nos remetemos a algumas

indagaccedilotildees dentre as quais quais elementos os trabalhadores mobilizam para produzir seus

saberes taacutecitos A literatura que aborda o tema aponta alguns elementos que poderiam favore-

cecirc-lo tais como a escolarizaccedilatildeo formal a experiecircncia no trabalho e as relaccedilotildees sociais dentro

e fora do ldquochatildeo de faacutebricardquo

No que se refere agraves influecircncias recebidas pelos trabalhadores da escola formal temos

um debate multifacetado De um lado as pesquisas revelam que no padratildeo flexiacutevel e integra-

do haacute uma exigecircncia por parte das empresas de uma maior escolarizaccedilatildeo dos trabalhadores

com base na suposiccedilatildeo de que em funccedilatildeo das multitarefas e da presenccedila da informaacutetica no

processo de trabalho as tarefas exigem uma maior cogniccedilatildeo do operaacuterio (KUENZER1996

EVANGELISTA 2002 ARAUacuteJO 2001 SOUZA 2002) Ainda nessa seara investigar as

estrateacutegias que os trabalhadores possuem para produzir mobilizar e formalizar seus saberes

poderaacute revelar de que forma os saberes aprendidos na escola formal influenciam ou natildeo as

soluccedilotildees criadas pelos operaacuterios nas situaccedilotildees de trabalho

Por outro lado alguns autores defendem que a convivecircncia com o processo de traba-

lho ou seja a experiecircncia profissional continua sendo um fator fundamental que subsidia a

elaboraccedilatildeo do saber do trabalhador e que a influecircncia da escolarizaccedilatildeo formal ocuparia um

plano secundaacuterio Vieira apud Evangelista (2002 p 124) apresenta por exemplo uma anaacuteli-

se que questiona a cobranccedila do ensino meacutedio por parte da Fiat em relaccedilatildeo agraves exigecircncias reais

do processo de trabalho ldquo() considerando o contexto da empresa conclui-se que o quadro

funcional do motor Fire com trabalhadores mais escolarizados decorre mais de uma questatildeo

de oferta (de trabalhadores formados) do que de demanda (da proacutepria produccedilatildeo)rdquo Carvalho

15

apud Evangelista (2002 p 133) aprofunda esse questionamento e afirma ldquo() os trabalhado-

res tecircm consciecircncia de que a formaccedilatildeo profissional natildeo abrange amplamente a praacutetica cotidia-

na de trabalho e que o valor formativo da experiecircncia tem que ser levado em contardquo

Outro exemplo que articula a construccedilatildeo do saber taacutecito com experiecircncia profissional

se remete agrave questatildeo do erro no processo do trabalho O capital tende a se posicionar distinta-

mente em relaccedilatildeo aos erros da concepccedilatildeo e da execuccedilatildeo Essa distinccedilatildeo eacute conhecida pelos

trabalhadores o que torna o erro um momento de aprendizagem para o trabalhador e parte

fundamental da construccedilatildeo do seu saber taacutecito

Um comentaacuterio acerca do erro foi feito por Vieira apud Evangelista (2002) quando

relata a fala de um trabalhador da Fiat ldquoSegundo o entrevistado os trabalhadores brasileiros

em comparaccedilatildeo aos italianos ofereciam uma vantagem importante nessa dinacircmica competiti-

va pois inovam bastante e natildeo tecircm medo de errar () a gente vai tentando fazendo diferente

uma hora daacute certordquo (p 132)

Alves Carvalho aponta a demanda de um outro saber-fazer em um contexto de incerte-

zas no mundo do trabalho Como cita Machado (1999) ldquoA gestatildeo da competecircncia requisita

habilidades cognitivas e comportamentais para lidar com o novo e com o incertordquo (p 186) O

que estas pesquisas natildeo problematizaram eacute como os trabalhadores se apropriam dos seus erros

e dos erros dos seus colegas e de como estes erros se transformam em saberes

Por fim alguns autores destacam a influecircncia do aspecto coletivo ou das relaccedilotildees soci-

ais na produccedilatildeo do saber Evangelista (2002) Assis (2000) Arauacutejo (2002) Souza (2002) e

Machado (1999) afirmam que o capital ao reconhecer a dimensatildeo coletiva do saber do traba-

lhador busca ao seu modo recriar espaccedilos de coletividade para facilitar a integraccedilatildeo do saber

do trabalhador no processo produtivo O capital trabalha ainda com a hipoacutetese de que saberes

diferenciados possam se complementar no processo produtivo Um desses casos pode ser ve-

rificado na pesquisa de Evangelista (2002 p 76) onde se destaca a introduccedilatildeo de uma outra

16

sociabilidade no processo produtivo feita pela Fiat na figura das UTEs (Unidades Tecnoloacutegi-

cas Elementares) ldquoTrata-se de uma estrateacutegia que visa reunir profissionais de vaacuterias aacutereas e

favorecer o trabalho em equiperdquo Vejamos uma reflexatildeo de Santos (1997) sobre essa questatildeo

ldquoO saber e as relaccedilotildees que os trabalhadores estabelecem entre si e com o saber deixam de ser

resultados fortuitos da vida e no trabalho e tornam-se fonte de toda produtividaderdquo (p 18)

Assis (2000) conferiu tanta importacircncia a essa questatildeo que acabou por tornaacute-la foco de

sua dissertaccedilatildeo Dentre outras coisas Assis verifica que a empresa ldquoexige que os trabalhado-

res coloquem constantemente em praacutetica o seu savoir-faire Este deve ser construiacutedo de forma

prioritariamente coletiva com constantes trocas de saberes e discussotildees sobre as representa-

ccedilotildees que cada trabalhador possui dos acontecimentosrdquo (p 16)

Em relaccedilatildeo aos interesses dos trabalhadores a dimensatildeo coletiva da produccedilatildeo do saber

eacute interpretada por muitos pesquisadores como uma vantagem dos trabalhadores que ateacute certo

ponto poderiam escolher com quem compartilhar o seu saber uma vez que ele estaacute inscrito

em uma ldquorederdquo com coacutedigos e interesses proacuteprios dos trabalhadores Aranha (1997) chega a

falar em ldquodomiacutenio coletivo do processo de trabalhordquo (p 20) Evangelista (2002) faz uma re-

flexatildeo sobre a inserccedilatildeo do saber nas relaccedilotildees sociais que recupera as possibilidades de resis-

tecircncia do trabalhador

Esse conhecimento praacutetico produzido tambeacutem para ser empregado no cotidiano fa-bril supotildee a comunicaccedilatildeo verbal ou natildeo de um conjunto de siacutembolos a se interpre-tar Exata interpretaccedilatildeo implica que emissores e receptores de informaccedilotildees estejam dispostos a ajustar continuamente suas accedilotildees em funccedilatildeo de expectativas e reaccedilotildees do outro (p 56)

Se de um lado o capital cria novas estrateacutegias para apropriar o saber do trabalhador

por outro lado os trabalhadores continuam criando novos saberes e reapropriando outros for-

malizados pela concepccedilatildeo (ASSIS 2000 SALERNO 1994) e inclusive alguns saberes jaacute

formalizados pela ciecircncia como por exemplo o tratamento teacutermico usado para melhorar as

17

caracteriacutesticas de resistecircncia do accedilo ou mesmo saberes escolares tais como geometria e tri-

gonometria

Estes satildeo alguns dos pontos cruciais que nossa investigaccedilatildeo pretende abordar quando

priorizamos a possibilidade de os trabalhadores produzirem mobilizarem e formalizarem es-

trateacutegias que lhe permitam produzir mobilizar e organizar os seus saberes

123 A formalizaccedilatildeo de saberes

As possibilidades de os trabalhadores formalizarem os seus saberes ao nosso olhar

implicam duas questotildees baacutesicas primeira uma necessidade de conferir ao seu saber um miacute-

nimo de confiabilidade para ser usado Segunda a capacidade dos trabalhadores em gerenciar

a sua atividade de trabalho Essas possibilidades dos trabalhadores bem como as do capital

aleacutem de encontrar guarida em algumas situaccedilotildees concretas correspondem a uma avaliaccedilatildeo

feita por Polany apud Frade (2003) ldquoO fato de um conhecimento taacutecito natildeo poder ser total-

mente declarado natildeo significa que ele natildeo possa ser comunicado ou compartilhadordquo

Na nossa proacutepria experiecircncia como metaluacutergico tomamos contato com alguns casos de

saberes formalizados tanto pelos trabalhadores quanto pelo capital Citaremos um caso que

ficamos conhecendo pelo contato com os colegas mais experientes durante a nossa vivecircncia

de trabalhador na induacutestria Os torneiros mecacircnicos modificavam a inclinaccedilatildeo do acircngulo de

suas ferramentas para obter um melhor corte no material a ser trabalhado Neste caso a inter-

venccedilatildeo exigia do torneiro experiecircncia na profissatildeo e noccedilotildees de geometria e estaacutetica Essa praacute-

tica possibilitou que a engenharia realizasse estudos com auxiacutelio dos saberes dos torneiros

mecacircnicos no sentido de estabelecer o acircngulo correto para cada situaccedilatildeo de trabalho Esse

caso permitiu a padronizaccedilatildeo de um grande nuacutemero de ferramentas e criaccedilatildeo de uma tecnolo-

18

gia conhecida como geometria de corte Tamanho efeito teve essa modificaccedilatildeo que ela gerou

um ramo paralelo as induacutestrias de pastilhas intercambiaacuteveis

A ideacuteia da natildeo-formalizaccedilatildeo absoluta do saber do trabalhador aleacutem de contrariar al-

guns casos concretos pode tambeacutem colaborar para a sua natildeo-legitimaccedilatildeo reforccedilando a con-

cepccedilatildeo que hierarquiza o trabalho manual e intelectual Essa possibilidade foi colocada por

Santos ldquoO que distingue o saber da concepccedilatildeo - da engenharia- e lhe daacute legitimidade eacute a sua

formalizaccedilatildeo sancionada por um conhecimento social e epistemologicamente reconhecidordquo

(SANTOS 1997 p 21)

A dificuldade de apreensatildeo do saber taacutecito natildeo pode ser traduzida e este risco existe

em uma inconsistecircncia do saber produzido pelo trabalhador Ateacute mesmo a engenharia possui

seus niacuteveis de saberes natildeo-formalizados e natildeo arca com o mesmo ocircnus que os trabalhadores

Santos (1997) propotildee uma distinccedilatildeo ldquoComo em qualquer campo do conhecimento haacute ao niacute-

vel da concepccedilatildeo na engenharia um saber que pode se apresentar como natildeo formalizado sim-

plesmente por natildeo ser ainda formalizaacutevelrdquo (p 23)

Ainda neste artigo Santos ao relatar o depoimento de um engenheiro demonstra que

essa ocorrecircncia eacute reconhecida pela proacutepria engenharia De acordo com essa autora este enge-

nheiro da Usimec responsaacutevel pelo desenvolvimento de projetos de turbinas eleacutetricas comen-

tou sobre a dificuldade de se prever o comportamento de um material fluiacutedo fundamental

para a tecnologia de turbina Segundo o engenheiro abordado por Santos (1997) ldquoMesmo

centros internacionais Franccedila Alemanha Estados Unidos possuem computadores capazes

apenas de definir um comportamento proacuteximo daquele fluiacutedo realrdquo (p 22)

Outro exemplo embora sutil que tivemos oportunidade de perceber em nossa experi-

ecircncia como metaluacutergico eacute que a proacutepria engenharia reconhece os limites de alguns de seus

saberes cuja expressatildeo aparece no uso sistematizado do fator de seguranccedila (fs) uma constan-

te matemaacutetica presente nos caacutelculos da engenharia onde o tabelamento varia para cada proje-

19

to incorporando uma margem de erro Como por exemplo se em um caacutelculo para dimensio-

nar um cabo de accedilo de uma caccedilamba o resultado for de 100mm de diacircmetro este valor eacute mul-

tiplicado por (fs) = 1210 resultando em uma medida de 120mm

Ao nosso ver a ideacuteia de que o saber taacutecito natildeo pode ser formalizado peca pelo seu o-

lhar excessivamente imediato sobre a situaccedilatildeo de trabalho o que tende a reduzir o saber do

trabalhador somente a uma accedilatildeo momentacircnea a uma habilidade manual de uacuteltima hora uma

naturalizaccedilatildeo enfim Essa interpretaccedilatildeo poderia reproduzir a imagem de um trabalhador que o

capital sempre desejou aquele que interveacutem cria colabora e natildeo sabe por quecirc

Essa perspectiva parece estar presente na proacutepria legislaccedilatildeo sobre a propriedade inte-

lectual Lei n 009279 de 1451999 que ao inveacutes de contribuir para a legitimaccedilatildeo do saber

taacutecito acaba por perceber a produccedilatildeo de saberes restringida ao espaccedilo e agraves condiccedilotildees de tra-

balho dentro das empresas conforme aponta em seus artigos 90 e 91

ldquoArt 90 Pertenceraacute exclusivamente ao empregado a invenccedilatildeo ou o modelo de uti-lidade por ele desenvolvido desde que desvinculado do contrato de trabalho e natildeo decorrente da utilizaccedilatildeo de recursos meios materiais instalaccedilotildees ou equipamen-tos do empregadorrdquo ldquoArt 91 A propriedade de invenccedilatildeo ou de modelo de utilidade seraacute comum em partes iguais quando resultar da contribuiccedilatildeo pessoal do empregado e de recursos dados meios materiais instalaccedilotildees ou equipamentos do empregador ressalvado expressa disposiccedilatildeo contratual em contraacuteriordquo

Embora a discussatildeo legal natildeo seja o foco de nossa pesquisa o fato eacute que a proacutepria lei

natildeo acolhe todas as condiccedilotildees de produccedilatildeo do saber no trabalho Essa lacuna pode ser produto

de uma abordagem reducionista do valor desse saber e de certa forma faz com que esta pes-

quisa ganhe mais uma relevacircncia

Nossa hipoacutetese comeccedila a ser construiacuteda a partir da consideraccedilatildeo de que quando o tra-

balhador passa a ter uma noccedilatildeo do valor do seu saber no processo de trabalho ele tende a au-

10 Valor aleatoacuterio para efeito de exemplo Em algumas induacutestrias em que trabalhamos o fator de Seguranccedila eacute ironicamente chamado de fator de ignoracircncia

20

mentar o zelo com a construccedilatildeo deste saber e que este zelo pode ser traduzido em um empe-

nho dos trabalhadores em formalizarem os seus saberes Fica ainda a seguinte questatildeo qual a

linguagem usada pelos trabalhadores para formalizar o seu saber

A nossa hipoacutetese eacute que a produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saber pelos traba-

lhadores no processo de trabalho se realizariam atraveacutes da produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formaliza-

ccedilatildeo de estrateacutegias taacutecitas Neste caso a questatildeo do saber natildeo se limita agrave aplicaccedilatildeo do savoir-

faire do trabalhador na produccedilatildeo mas tambeacutem agrave forma de como esse saber foi construiacutedo

mobilizado e formalizado pois a proacutepria estrateacutegia jaacute seria um sofisticado saber Talvez seja

esse saber o saber das estrateacutegias taacutecitas o elemento que decirc confianccedila ao trabalhador para

ldquofugirrdquo da prescriccedilatildeo da engenharia ou da concepccedilatildeo e que lhe permite ainda emancipar e

adaptar o seu saber ao princiacutepio dinacircmico presente em todos os processos de trabalho

Eacute mister salientar que optar por apreender estas estrateacutegias eacute priorizar uma aproxima-

ccedilatildeo com o trabalhador e com as condiccedilotildees que o favoreccedilam criaacute-las uma vez que o saber taacuteci-

to se apresenta como patrimocircnio coletivo de uma determinada eacutepoca Em nossa vivecircncia de

operaacuterio tivemos a oportunidade de observar e conhecer casos de intervenccedilatildeo do trabalhador

em que soluccedilotildees semelhantes foram elaboradas em situaccedilatildeo de trabalho nem sempre iguais

em espaccedilos distintos e por sujeitos que natildeo se conheceram Esse exemplo demonstra que a

questatildeo do saber taacutecito do trabalhador dialoga com a proacutepria histoacuteria do conhecimento Essa

possibilidade pode ser percebida em uma anaacutelise feita por Machado (1996)

Para compreender o sentido e o significado das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas eacute necessaacuterio situaacute-las no contexto social em que se desenvolvem pois elas expressam o movi-mento contraditoacuterio da ciecircncia e da teacutecnica (aspecto loacutegico) e a natureza soacutecio-poliacutetica do modo de produccedilatildeo (aspecto soacutecio-histoacuterico) (p 112)

Considerando a relevacircncia e a complexidade do saber taacutecito acreditamos ser possiacutevel

por meio desta pesquisa contribuir para o esclarecimento das estrateacutegias que os ferramentei-

ros usam para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes no trabalho

21

13 O REFERENCIAL TEOacuteRICO

Desde os primeiros momentos de desenvolvimento desta pesquisa buscamos apoio em

referenciais teoacutericos que nos permitissem tomar o nosso objeto de forma articulada com cate-

gorias como a centralidade do trabalho na constituiccedilatildeo da sociabilidade a presenccedila de saberes

no processo de trabalho o saber taacutecito do trabalhador e a relaccedilatildeo entre teoria e praacutetica na

construccedilatildeo deste tipo de saber Todavia o proacuteprio objeto desta pesquisa nos mobilizou no

sentido de buscar no referencial teoacuterico tambeacutem uma possibilidade de tomar a presenccedila de

saber no trabalho por um olhar mais proacuteximo aos protagonistas do chatildeo de faacutebrica no caso

especiacutefico desta pesquisa os ferramenteiros

Para dar conta do desafio de investigar as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros para

produzir organizar e mobilizar seus saberes nos apoiamos em autores que seguindo a tradi-

ccedilatildeo do materialismo histoacuterico referendam o trabalho como categoria central na formaccedilatildeo do

homem e por conseguinte na constituiccedilatildeo da sociabilidade (MARX 1985 GRAMSCI

1995) Contamos tambeacutem com os pensadores que a partir da ldquonoccedilatildeo ergonocircmicardquo de ldquotraba-

lho prescrito e trabalho realrdquo discutem o saber taacutecito do trabalhador no processo de trabalho

(ARANHA 1997 SANTOS 1991 1997 2000 SALERNO 1994 LIMA 1998) bem como

os pesquisadores que abordam os atuais impactos do processo de reestruturaccedilatildeo produtiva no

mundo do trabalho (ANTUNES 2001 CORIAT 1994 GOUNET 1999) E ainda buscamos

dialogar com pensadores que abordam a relaccedilatildeo entre a praacutetica e a teoria na construccedilatildeo do

saber taacutecito (NOUROUDINE 2002 MALGLAIVE 1990 POLANY 1967 SCHON 2000)

Em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo e ao conceito de trabalho11 eleito para este projeto compartilha-

mos com os autores que percebem o trabalho como a atividade constituidora da humanidade

11 Diante dos objetivos desta pesquisa nos limitaremos ao diaacutelogo com os autores que discutem o trabalho no modo de produccedilatildeo capitalista mais especificamente aqueles que abordam o processo de reestruturaccedilatildeo produti-va e suas principais referecircncias de organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho quais sejam o taylorismofordismo e toyo-tismo (ANTUNES 2001 CORIAT 1994 GOUNET 1999)

22

e portanto categoria central na formaccedilatildeo do homem (MARX 1985 GRAMSCI 1995 AN-

TUNES 2001) Essa perspectiva como jaacute foi mencionado anteriormente tem sua matriz nas

ideacuteias marxistas Vejamos uma citaccedilatildeo do proacuteprio Marx (1985)

Antes de tudo o trabalho eacute um processo entre o homem e a natureza () Ele potildee em movimento as forccedilas naturais pertencentes agrave sua corporalidade braccedilos e pernas cabeccedila e matildeo a fim de apropriar-se da mateacuteria natural numa forma uacutetil para a sua proacutepria vida Ao atuar por meio desse movimento sobre a natureza externa a ele e ao modificaacute-la ele modifica ao mesmo tempo sua proacutepria natureza (p 149)

Eacute por esta trilha que se ergue tambeacutem um dos aspectos educativos do trabalho pois

ao modificar a sua proacutepria natureza o trabalho permite ao homem dirigir-se a si mesmo Se-

gundo Macaacuterio (1999) ldquoO domiacutenio do homem sobre si mesmo eacute de fato um pressuposto

imprescindiacutevel para o sucesso do trabalhordquo (p 89)12

Ainda sobre a centralidade do trabalho Junior (2000 p335) afirma que para Marx tra-

ta-se de uma categoria central a partir da qual ldquopode-se pensar o indiviacuteduo a sociedade com

seus sistemas poliacuteticos juriacutedicos e ideoloacutegicos sua cultura etcrdquo

Outra possibilidade de o trabalho ser tido como determinante na constituiccedilatildeo da socia-

bilidade pode ser dada por ele ser tido por alguns pensadores como uma atividade exclusiva-

mente humana Conforme afirma Alves Carvalho apud Machado (2001) ldquoO trabalho natildeo

pode ser conhecido fora do humano pois ele eacute uma atividade especificadamente humana que

se desenvolve dentro da contradiccedilatildeo entre o singular e o coletivo sendo inseparaacutevel das rela-

ccedilotildees sociais que ele engendrardquo (p 46) Para Macaacuterio (1999) o desvelamento da categoria tra-

12 Este pensador sustenta essa posiccedilatildeo tomando como referecircncia as reflexotildees de LUCKAacuteCS sobre trabalho e o ldquopocircr teleoloacutegicordquo Segundo LUCKAacuteCS apud MACAacuteRIO (1999) ldquoO homem foi definido como o animal que constroacutei os seus proacuteprios utensiacutelios Eacute correto mas eacute preciso acrescentar que construir e usar instrumentos impli-ca necessariamente como pressuposto imprescindiacutevel para o sucesso do trabalho que o homem tenha domiacutenio sobre si mesmo Esse tambeacutem eacute um momento do salto a que nos referimos da saiacuteda do homem da existecircncia puramente animalescardquo (p 89)

23

balho ldquorevelaraacute a essecircncia humana isto eacute aquilo que ontologicamente faz do homem um ser

pertencente a uma esfera superior agraves naturaisrdquo (p 84)13

Se de um lado o referencial marxista aponta o trabalho como uma categoria central

protoforma da sociedade por outro lado encontramos tambeacutem em Marx uma criacutetica agrave forma

sob a qual o trabalho se constitui no capitalismo Neste sentido outras consideraccedilotildees sobre o

trabalho satildeo discutidas nesta pesquisa sobretudo aquelas que abordam como a importacircncia da

presenccedila de saberes vem se inscrevendo nos modelos de organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho

Dessa forma entendemos ser importante apresentar uma anaacutelise feita por Santos e Ferreira

(1996) sobre dois significados de trabalho historicamente construiacutedos

bull ldquotrabalho tomado como a ativa criaccedilatildeo de uma obra por um sujeito que implica uma ideacuteia de liberdade de transformaccedilatildeo de prazer

bull trabalho no sentido de labor onde ganham ecircnfase os conteuacutedos de esforccedilo rotineiro e repe-titivo sem liberdade de resultado consumiacutevel e incocircmodo inevitaacutevelrdquo (p 23)

Em relaccedilatildeo agraves contradiccedilotildees que o trabalho apresenta no modo de produccedilatildeo capitalista

buscamos estabelecer um diaacutelogo com pesquisadores que a partir das investigaccedilotildees sobre o

processo de reestruturaccedilatildeo produtiva abordam a presenccedila de saber no processo trabalho (AN-

TUNES 2001 CORIAT 1994 GOUNET 1999) e sobretudo as pesquisas que atraveacutes do

estudo de situaccedilotildees concretas remetem agrave temaacutetica do saber taacutecito dos trabalhadores (Santos

1985 1991 1997 2000 Aranha 1997 Lima 1998 Salerno 1994 Machado 2001 Assis

2000)

Para prosseguir o percurso de apreensatildeo do nosso objeto de pesquisa entendemos co-

mo necessaacuterio dialogar tambeacutem com os autores que ao discutirem o trabalho no capitalismo

13 Sobre a centralidade do trabalho acreditamos que esta pesquisa ao propor conhecer as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes corrobora a contestaccedilatildeo feita por ANTU-NES (2001) de que a ciecircncia seja a principal forccedila produtiva De acordo com ANTUNES (20001) a aparente autonomia da ciecircncia perante o trabalho natildeo elimina o trabalho como gerador de valor Na atual fase do capita-lismo o trabalho inscreve-se como sempre se fez em uma metamorfose e a ciecircncia permite a extraccedilatildeo do sobre-trabalho

24

fazem referecircncia agrave relaccedilatildeo entre o trabalho prescrito e o trabalho real14 De acordo com Santos

(2000) trabalho prescrito eacute ldquoA definiccedilatildeo preacutevia da maneira como o trabalhador deve executar

o trabalho o modo de usar os equipamentos e as ferramentas o tempo concedido para cada

operaccedilatildeo o como fazer e as regras que devem ser respeitadasrdquo O trabalho real se remete agraves

condiccedilotildees necessaacuterias em que se realiza uma parte do trabalho que sempre escapa agrave prescri-

ccedilatildeo Santos (2000) Para alguns pesquisadores a realizaccedilatildeo do trabalho real soacute se torna possiacute-

vel pela intervenccedilatildeo do saber taacutecito do trabalhador (SANTOS 1991 1997 ARANHA 1997

SALERNO 1994) Essa possibilidade eacute respaldada pelo entendimento de que o trabalho tem

um princiacutepio educativo (NOSELLA 1992) Essa perspectiva jaacute havia sido desenhada por

Gramsci conforme afirma Manacorda (2000) ldquoO trabalho para Gramsci eacute essencialmente

um elemento constitutivo de ensinordquo (p 135)

Optar por investigar os caminhos percorridos pelo trabalhador para a produccedilatildeo orga-

nizaccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo de seus saberes implica ao nosso olhar acreditar que eacute possiacutevel uma

aproximaccedilatildeo com o mundo do trabalho atraveacutes da lente do trabalhador A pesquisa biblio-

graacutefica que realizamos aliada agrave nossa experiecircncia como operaacuterio metaluacutergico nos permite

inferir sobre a possibilidade de o trabalhador se apropriar de saberes formalizados bem como

reapropriar seus saberes que foram incorporados ao saber da engenharia Neste sentido eacute im-

portante salientar que esta pesquisa se orientou tambeacutem pelas reflexotildees de pesquisadores que

defendem a possibilidade de o saber taacutecito do trabalhador favorecer uma leitura positiva do

trabalho (ARANHA 1997 SANTOS 1997 2000) Vejamos uma afirmaccedilatildeo de Santos

(2000) ldquoO trabalhador natildeo eacute um mero executante determinado pelo seu lugar nas relaccedilotildees

sociais e pelos dispositivos teacutecnicos mas tambeacutem um homem sujeito vivente com todo hori-

zonte de universalidade que isto implicardquo (p 123) Neste sentido seria possiacutevel que os traba-

lhadores se afirmassem como sujeitos de interesses proacuteprios pois mesmo que o capital busque 14 Essa perspectiva tem um deacutebito original com os trabalhos vinculados ao campo da ergonomia Neste sentido nos apoiamos especialmente em alguns pensadores desse campo (DANIELLOU 1989 SALERNO 1994 WIS-NER 1987 LIMA 1998)

25

controlar o seu saber ele natildeo lhe expropria a sua condiccedilatildeo de sujeito como nos afirma Char-

lot (2000) ldquoTodo indiviacuteduo eacute um sujeito por mais dominado que seja Um sujeito que inter-

preta o mundo resiste agrave dominaccedilatildeo afirma positivamente seus interesses procura transformar

a ordem do mundo em seu proacuteprio proveitordquo (p 31)

Ao considerar a capacidade transformadora do trabalho nossa pesquisa se referendou

em pesquisadores que recuperam a dimensatildeo concreta do trabalho Daiacute decorre a grande im-

portacircncia de Santos (1997 2000) para esta pesquisa Essa pesquisadora ao mesmo tempo em

que trata das contradiccedilotildees do trabalho no capitalismo e talvez por isso mesmo recupera tam-

beacutem as possibilidades de os trabalhadores atraveacutes de seus saberes se afirmarem como sujei-

tos de interesses proacuteprios Para isto se apoacuteia em Schwartz que ldquointerroga o trabalho como

experiecircncia individual e coletiva como ldquouso de sirdquo que pode ser feito por si e por outros

analisando a natureza epistemoloacutegica das interrogaccedilotildees que lhe concernemrdquo (SANTOS 2000

p 121) Para abordar a possibilidade de ldquouso de sirdquo por parte dos ferramenteiros nos remete-

remos tambeacutem agraves discussotildees propostas pela ergologia (SANTOS 1997 2000 SCHWARTZ

2000 2004)15

Essa perspectiva somada as nossas reflexotildees como operaacuterio nos permitiu ainda tra-

balhar com a ideacuteia de que o trabalhador ao buscar fazer melhor uso de seu saber desenvol-

vesse ele proacuteprio estrateacutegias que lhe garantissem um certo rigor na produccedilatildeo organizaccedilatildeo e

mobilizaccedilatildeo de seu saber

Ao elegermos como nosso objeto de pesquisa as estrateacutegias usadas pelos trabalhadores

para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes entendemos como necessaacuterio conhecer

tambeacutem as condiccedilotildees em que este saber foi produzido e como o trabalhador mobiliza e for-

15 Segundo SCHWARTZ a ergologia natildeo eacute uma nova disciplina Trata-se de uma proposta que congrega natildeo soacute muitas disciplinas que abordam o trabalho portanto multidisciplinar bem como interroga o ponto de vista dos protagonistas do trabalho e ainda o proacuteprio processo histoacuterico que fundamenta respectivamente o olhar cientiacute-fico das disciplinas e o olhar oriundo da experiecircncia no trabalho A ergologia ao tratar das ldquoatividades humanasrdquo inscreve o trabalho em sua dimensatildeo histoacuterica e social reconhecendo-o como uma experiecircncia individual e cole-tiva ldquono seu trabalho o trabalhador eacute sempre uma pessoa inteirardquo (SANTOS 2000 SCHWARTZ 2000 2004 FAITA e SOUZA-e-SILVA 2002)

26

maliza este saber Neste sentido fizemos uma investigaccedilatildeo sobre a literatura que aborda a

relaccedilatildeo entre teoria e praacutetica no que se refere ao saber taacutecito (FRADE 2003 SCHON 2000

POLANY 1967 MALGLAIVE 1990)16

14 AS ESTRATEacuteGIAS METODOLOacuteGICAS

A literatura sobre a pesquisa cientiacutefica faz duas proposiccedilotildees de abordagens metodoloacute-

gicas as pesquisas quantitativas e qualitativas que podem quando for o caso aparecer como

complementares O uso da pesquisa quantitativa eacute indicado quando se apresenta a possibilida-

de de quantificar e mensurar os resultados da investigaccedilatildeo A pesquisa qualitativa normal-

mente eacute marcada pela natildeo-quantificaccedilatildeo dos resultados A sua aplicaccedilatildeo privilegia as dimen-

sotildees subjetivas das relaccedilotildees entre pessoas e entre pessoas e instituiccedilotildees De acordo com Mi-

nayo (1993) a pesquisa qualitativa

() se preocupa com um niacutevel de realidade que natildeo pode ser quantificado Ou seja ela tra-balha com o universo de significados motivos aspiraccedilotildees crenccedilas valores e atitudes o que corresponde a um espaccedilo mais profundo das relaccedilotildees dos processos e dos fenocircmenos que natildeo podem ser reduzidos agrave operacionalizaccedilatildeo de variaacuteveis (p 15)

A opccedilatildeo pela abordagem qualitativa dialoga de certa forma com as caracteriacutesticas do

nosso objeto e com as pretensotildees desta investigaccedilatildeo Uma vez que esta pesquisa se insere no

campo das ciecircncias sociais o seu objeto eacute ldquoessencialmente qualitativordquo (MINAYO 1993 p

16 O uso do termo ldquosaber taacutecitordquo embora citado pelos autores natildeo eacute assumido igualmente por todos eles Con-forme veremos mais adiante seratildeo usados termos que buscam identificar um saber de ordem praacutetica Neste sen-tido aparecem os termos savoir-faire saber praacutetico talento artiacutestico e conhecimento taacutecito Eacute importante ressal-tar que ao orientarmos nossa pesquisa com o uso de ldquosaber taacutecitordquo em detrimento do termo ldquoconhecimento taacuteci-tordquo acatamos a distinccedilatildeo feita por alguns pesquisadores entre saber e conhecimento entendendo que conheci-mento estaacute proacuteximo da ordem do formalizado de acordo com COLLINS (1992) apud LIMA e SILVA (1998) Jaacute o termo ldquosaberrdquo pode responder a saberes natildeo-formalizados e tambeacutem se articular com a ideacuteia de ldquofazerrdquo SAN-TOS (2001) Essa escolha se daacute por ser a situaccedilatildeo mais proacutexima da delimitaccedilatildeo do objeto desta pesquisa bem como por permitir perceber a questatildeo do saber taacutecito na perspectiva empresarial acadecircmica e tambeacutem dos traba-lhadores As razotildees da opccedilatildeo pelo termo saber taacutecito ficaram a nosso ver justificadas no desenvolvimento desta dissertaccedilatildeo

27

15) Essa pesquisadora (1993 p 14-15) aponta quatro caracteriacutesticas importantes do objeto

das ciecircncias sociais

bull Eacute histoacuterico () cuja formaccedilatildeo social e configuraccedilatildeo satildeo especiacuteficas vivem o presente marcado pelo passado e projetado para o futuro () portanto a provisoriedade o dina-mismo e a especificidade satildeo caracteriacutesticas essenciais de qualquer questatildeo social

bull () natildeo eacute apenas o investigador que daacute sentido ao seu trabalho intelectual mas os seres humanos os grupos e a sociedade datildeo significado e intencionalidade a suas accedilotildees e a suas construccedilotildees na medida em que as estruturas sociais nada mais satildeo que accedilotildees objetivadas

bull () existe uma relaccedilatildeo entre sujeito e objeto () por serem da mesma natureza bull () o fato de que ela eacute intriacutenseca e extrinsecamente ideoloacutegica () Ela veicula interesses e

visotildees de mundo historicamente construiacutedas embora suas contribuiccedilotildees e seus efeitos teoacute-ricos e teacutecnicos ultrapassem as intenccedilotildees de seu desenvolvimento

A proposta de investigar os meacutetodos usados pelo trabalhador para a produccedilatildeo mobili-

zaccedilatildeo e a formalizaccedilatildeo dos seus saberes constitui-se para noacutes como um misto de aventura e

desafio Essas dimensotildees se devem pela possibilidade de poder articular as abordagens teoacuteri-

cas sobre o mundo do trabalho com a minha vivecircncia de operaacuterio ldquometaluacutergicordquo Ao se carac-

terizar tambeacutem pela relaccedilatildeo proacutexima entre sujeito e objeto a pesquisa qualitativa ganha mais

validade para esta pesquisa dada a nossa intimidade com o objeto Conforme elucida Minayo

(1993) ldquo() a pesquisa nessa aacuterea lida com seres humanos que por razotildees culturais de clas-

se de faixa etaacuteria ou por qualquer outro motivo tecircm um substrato comum de identidade com

o investigador tornando-os solidariamente imbricados e comprometidos rdquo (p 14) Essa pro-

ximidade no entanto nos alerta para a necessidade de estarmos atentos aos efeitos da subjeti-

vidade para alcanccedilarmos a objetividade na pesquisa (SANTOS 1991)

141 Revisatildeo bibliograacutefica

Esta pesquisa contou com um momento de vital importacircncia por meio do qual foi

possiacutevel nos aproximarmos do nosso objeto Neste sentido eacute importante salientar a nossa re-

28

visatildeo bibliograacutefica sobre o mundo trabalho sobretudo a presenccedila de saberes no processo de

trabalho

142 Instrumentos de pesquisa

Os instrumentos de pesquisa constituem-se de vital relevacircncia para as perspectivas

desta pesquisa dada a complexidade imposta pelo proacuteprio objeto As teacutecnicas de pesquisas

para a coleta de dados foram a pesquisa documental entrevistas semi-estruturadas e a obser-

vaccedilatildeo

1421 A pesquisa documental

Para esta pesquisa a coleta de dados documentais fez-se importante natildeo soacute por lanccedilar

luzes sobre a prescriccedilatildeo do trabalho feita pela empresa mas ainda pela possibilidade de ilus-

trar algumas formalizaccedilotildees de saberes feitas pelos sujeitos de nossa pesquisa Foram identifi-

cados e analisados materiais produzidos na empresa apostilas manuais de seguranccedila proce-

dimentos para o processo produtivo fichas de conclusatildeo de serviccedilo e tambeacutem materiais pro-

duzidos pelos trabalhadores como anotaccedilotildees tabelas e croquis17

1422 Entrevistas semi-estruturadas

O uso de entrevistas semi-estruturadas se constitui como uma das fases mais marcan-

tes desta pesquisa De um lado a proacutepria literatura sobre a metodologia cientiacutefica nas ciecircncias

sociais jaacute seria suficiente para justificar a relevacircncia desse instrumento de coleta de dados

Atraveacutes dessa modalidade de entrevista segundo Minayo (1993) ldquoO pesquisador busca obter

informes contidos na fala dos atores sociaisrdquo (p 57) O uso da entrevista semi-estruturada

facilita a participaccedilatildeo do entrevistado e auxilia na eventualidade de haver problemas de co- 17 Croquis satildeo desenhos feitos agrave matildeo podendo ser agraves vezes um rascunho de um desenho ou mesmo um desenho dentro de normas teacutecnicas

29

municaccedilatildeo pois de acordo com Mazzotti (1998) ldquoO entrevistador faz perguntas especiacuteficas

mas tambeacutem deixa que o entrevistado responda em seus proacuteprios termosrdquo Por outro lado natildeo

eacute menos farto o arsenal teoacuterico que aponta a dificuldade que uma pessoa possa ter para se ex-

pressar e especialmente no que se refere agrave questatildeo do saber taacutecito onde predomina um forte

debate sobre as possibilidade de explicitaccedilatildeo ou natildeo deste saber18 Diante desta questatildeo eacute

prudente que o pesquisador ldquodeixerdquo o entrevistado falar ou como afirma Thiollent (1980)

que o pesquisador se mantenha com uma ldquoatenccedilatildeo flutuanterdquo afim de ldquoestimular o entrevista-

do a explorar o seu universo cultural sem questionamento forccediladordquo Em relaccedilatildeo a essa pesqui-

sa haacute que se dizer em favor de Santos e Aranha que estas pesquisadoras sempre apontaram

que o respeito do pesquisador diante das ldquofalasrdquo do entrevistado remete tambeacutem a uma pos-

tura epistecircmica do pesquisador pela qual ele deve permitir que os protagonistas do trabalho

busquem seus proacuteprios meios para se fazerem entender19 Em relaccedilatildeo agraves entrevistas realiza-

das uma delas realizou-se dentro da proacutepria oficina20 Embora tenha ocorrido nos intervalos

do horaacuterio de almoccedilo tivemos que contar com barulhos e algumas interrupccedilotildees Diante desse

problema apresentado ao pessoal dos Recursos Humanos nos foi oferecida uma sala de trei-

namento para realizar a entrevista Observamos que nesta sala de treinamento as entrevistas

perderam um pouco da espontaneidade Passamos a buscar um espaccedilo para realizaacute-las que

fosse longe do barulho e das interrupccedilotildees mas que natildeo colocasse os ferramenteiros como

ldquoestrangeirosrdquo ao espaccedilo Neste momento optamos por usar uma sala onde no horaacuterio de

almoccedilo os trabalhadores jogavam cartas ou dominoacute Ainda que este espaccedilo se localizasse fora

do galpatildeo aproximadamente a uns 50 metros tratava-se de uma sala dentro da faacutebrica o que

18 Esta temaacutetica seraacute abordada mais adiante no capiacutetulo teoacuterico 19 Essa contribuiccedilatildeo deu-se em aulas durante a disciplina Sujeito trabalho e educaccedilatildeo oferecida por essas pes-quisadoras no curso de poacutes-graduaccedilatildeo da FAEUFMG em 2002 Outro momento tambeacutem muito importante foi uma experiecircncia de um grupo de trabalho com entrevistas ldquopilotordquo anterior agrave nossa entrada no campo de pesqui-sa onde foi possiacutevel debater sobre a relaccedilatildeo do pesquisador com as falas dos sujeitos de sua pesquisa Essa expe-riecircncia contou tambeacutem com a participaccedilatildeo da pesquisadora Rosacircngela Pereira 20 As entrevistas dentro da faacutebrica foram motivadas pela dificuldade de alguns dos entrevistados cujos depoi-mentos noacutes natildeo gostariacuteamos de ldquoperderrdquo em dispor de tempo fora do horaacuterio de trabalho Alguns desses estuda-vam uns tinham que ldquoolharrdquo os filhos para as esposas estudarem e outros moravam muito longe

30

nos deixou em sinal de alerta No entanto neste ldquonovordquo espaccedilo foi possiacutevel perceber um outro

posicionamento por parte dos entrevistados maior espontaneidade para com as questotildees a-

bordadas na entrevista e intimidade com este espaccedilo21

1423 Observaccedilatildeo de campo

Satildeo muitos os fatores que tornam a observaccedilatildeo in loco um instrumento valioso na co-

leta de dados para esta pesquisa De um lado o nosso objeto estaacute inexoravelmente articulado

com a situaccedilatildeo de trabalho Dessa forma a teacutecnica de observaccedilatildeo nos permitiu aproximar

dessas situaccedilotildees a fim de permitir jogar luzes no ldquotaacutecitordquo E ainda a observaccedilatildeo in loco nos

proporcionou uma aproximaccedilatildeo com os protagonistas dessas situaccedilotildees de trabalho o que nos

permitiu afirmar melhor nosso objeto bem como acrescentar novas possibilidades de abordaacute-

lo Segundo Minayo (1993) a observaccedilatildeo possibilita ldquo() captar uma seacuterie de situaccedilotildees ou

fenocircmenos que natildeo satildeo obtidos por meio de ndash perguntas uma vez que satildeo observados direta-

mente na realidade transmitem o que haacute de mais importante e evasivo na vida realrdquo (p 59)

143 Os sujeitos da pesquisa

Como sujeitos da nossa pesquisa foram escolhidos os ferramenteiros de uma induacutestria

metaluacutergica da regiatildeo metropolitana de Belo Horizonte Em uma pesquisa de cunho qualitati-

vo a delimitaccedilatildeo numeacuterica dos sujeitos a serem entrevistados natildeo eacute relevante (THIOLLENT

1980) Segundo Minayo (1993) ldquoA amostragem boa eacute aquela que possibilita abranger a tota-

lidade do problema investigado em suas muacuteltiplas dimensotildeesrdquo (p 43) Nesta pesquisa bus-

camos entrevistar aqueles protagonistas do trabalho cuja experiecircncia em ferramentaria fosse

reconhecida pelo seu coletivo de trabalho As escolhas natildeo geraram nenhum impedimento por

21 Nesta sala eles proacuteprios os ferramenteiros nos interrogavam se desejaacutevamos abrir mais a janela ir ao banhei-ro ou que ligar o ventilador

31

parte da empresa embora uma parte das entrevistas tenha ocorrido fora do espaccedilo fabril Esse

fato acabou por gerar um dividendo a mais para as nossas reflexotildees dado que foi possiacutevel

analisar a relaccedilatildeo espacial que os trabalhadores mantecircm com o seu trabalho Todavia a teacutecni-

ca da observaccedilatildeo nos permitiu ainda dialogar com outros trabalhadores gerando dados aleacutem

dos que foram coletados nas entrevistas22 Usamos como formas de registro

bull Diaacuterio de bordo com anotaccedilotildees na faacutebrica e fora dela

bull Entrevistas gravadas e transcritas

Foram entrevistados cinco Ferramenteiros sendo que um dos entrevistados tem entre

20 e 30 anos de idade dois dos entrevistados possuem pouco menos do que 40 anos de idade

e outros dois ferramenteiros possuem mais do que 40 anos de idade Dois dos ferramenteiros

tecircm 10 anos de experiecircncia em ferramentaria Jaacute outros trecircs ferramenteiros tecircm mais de 20

anos de experiecircncia Trecircs dos entrevistados fizeram o curso de ferramenteiro pelo Senai Os

outros dois fizeram o curso de ajustador mecacircnico pelo Senai e aprenderam o ofiacutecio de ferra-

menteiro na praacutetica dois Mestres em ferramentaria Um dos mestres possui 30 anos e quase

15 anos dentro da ferramentaria O outro mestre possui 35 anos e quase 20 anos de experiecircn-

cia em ferramentaria Ambos fizeram o curso de torneiro mecacircnico pelo Senai Um dos entre-

vistados fez tambeacutem pelo Senai o curso de ferramenteiro chegando inclusive a representar o

Brasil em uma ldquomaratonardquo internacional de ferramentaria na Holanda

144 O desenvolvimento da pesquisa o meu contato com a empresa pesquisada

De um lado a escolha da empresa deu-se por se tratar de uma grande ferramentaria

voltada para o setor automobiliacutestico Por outro lado estavam em curso tambeacutem contatos com

outras empresas A decisatildeo por pesquisar essa empresa foi sendo construiacuteda primeiramente

22 Todas as entrevistas foram gravadas totalizando nove horas de gravaccedilatildeo

32

pela boa recepccedilatildeo do pessoal do Recursos Humanos Em segundo lugar emergiu um motivo

que depois se tornou um dos grandes aspectos dessa ferramentaria enquanto campo para a

nossa pesquisa Trata-se de um projeto conduzido pela empresa que pretende colocaacute-la como

a maior ferramentaria da Ameacuterica Latina Ao se aprofundar as anaacutelises preliminares sobre a

Empresa T foi possiacutevel constatar que essa intenccedilatildeo estava proacutexima de se tornar real

Em algumas conversas informais com o pessoal do Recursos Humanos foi demons-

trado um grande interesse pela escolha da empresa como objeto de pesquisa Foi considerado

tambeacutem o fato de que outras empresas do grupo jaacute haviam sido abordadas por uma pesquisa-

dora da UFMG23 Apesar de nos ter sido feita somente uma solicitaccedilatildeo formal por parte da

universidade juntamente com a nossa proposta de pesquisa fomos tomados por um receio

pois tiacutenhamos plena consciecircncia de que o respeito e atenccedilatildeo por parte dos trabalhadores do

chatildeo de faacutebrica natildeo satildeo obtidos pelas apresentaccedilotildees formais e sim adquiridos pela convivecircn-

cia cotidiana natildeo haacute pior comeccedilo em uma faacutebrica do que parecer ser apadrinhado por um

chefe

145 No olho do furacatildeo entre homens e maacutequinas

Ao recebermos a liberaccedilatildeo definitiva por parte da empresa para iniciar a pesquisa den-

tro da faacutebrica acertamos um cronograma com o responsaacutevel pelo Recursos Humanos Em

nosso primeiro dia dentro da faacutebrica fomos acompanhados por um estagiaacuterio do Recursos

Humanos que nos apresentou aos gerentes da ferramentaria e tambeacutem ao coordenador dos

ferramenteiros Toda a chefia se mostrou interessada pela possibilidade de se levar a puacuteblico

algum esclarecimento sobre a ferramentaria24 Em seguida foi proposto pelo gerente geral

23 VERIacuteSSIMO (2000) tambeacutem orientanda da prof Eloisa SANTOS 24 Essa posiccedilatildeo foi frequumlente entre os ferramenteiros que tambeacutem lamentaram que ldquoningueacutem aiacute fora sabe dizer o que eacute uma ferramentariardquo As falas dos ferramenteiros agraves vezes pareciam quase como as fala de um artista que desejasse que sua arte fosse reconhecida ldquoSe o pessoal soubesse que para se ter uma colher qualquer em casa eacute

33

que o coordenador da ferramentaria nos apresentasse os processos de trabalho da mesma e aos

cinco mestres que chefiam as cinco ceacutelulas de ferramenteiros

Tatildeo logo comeccedilamos a conversar o coordenador da ferramentaria se declarou um a-

paixonado pelo seu trabalho e afirmou ter quase 50 anos de experiecircncia na ferramentaria dos

quais mais de 30 dentro da ferramentaria da Ford em Satildeo Bernardo do Campo Agrave medida que

esse senhor foi nos apresentando os setores dentro da ferramentaria pudemos conversar com

entusiasmo sobre as transformaccedilotildees sofridas no mundo do trabalho especialmente o setor

metaluacutergico Sem muita profundidade ele comentou sobre a dificuldade de se encontrar hoje

bons ferramenteiros e sobre os ldquobons temposrdquo do ferramenteiro em Satildeo Paulo quando ganha-

vam ldquomais do que a maioria dos meacutedicosrdquo Conversamos ainda sobre a reorganizaccedilatildeo sindi-

cal no ABC paulista na deacutecada de 1970

Ao ser apresentado aos mestres da ferramentaria acolhemos a sugestatildeo feita por um

deles de que ldquoseria interessante que junto com um dos mestres fizeacutessemos um mapa do pro-

cesso de construccedilatildeo de uma ferramenta e que a partir deste roteiro poderiacuteamos analisar todas

as fases do trabalho do ferramenteiro em cada uma das ceacutelulasrdquo25 Foi a partir do mapeamento

sobre o processo de construccedilatildeo da ferramenta que escolhemos a primeira ceacutelula de ferramen-

teiros para iniciarmos a nossa investigaccedilatildeo

Apoacutes os primeiros dias de observaccedilatildeo dentro dessa empresa nos demos conta ou

mesmo afirmamos a ideacuteia de que a faacutebrica marca profundamente os que nela trabalham bem

como estes tambeacutem imprimem de forma objetiva e subjetiva as suas marcas neste espaccedilo As

formas das cicatrizes a vermelhidatildeo dos olhos e o jeito de carregar uma ferramenta ou mes-

mo um cigarro denunciam se foi com a limalha do torno ou com o gaacutes da solda que o operaacute-

um negoacutecio difiacutecil e bonito eles dariam mais valor para o nosso trabalhordquo ldquoSempre que a gente vai agrave uma loja e eacute preciso fazer a ficha de crediaacuterio o pessoal vecirc o nosso salaacuterio eles se assustam e natildeo acreditam que nosso trabalho eacute difiacutecilrdquo 25 Essa sugestatildeo se justifica por que a construccedilatildeo de uma ferramenta pode durar de seis a oito meses Neste caso poderiam ser conhecidas todas as fases desde que fosse acompanhada mais de uma ferramenta o que foi possiacute-vel pois cada ceacutelula cuida no miacutenimo de uma ferramenta

34

rio esteve em trabalho Enfim foi boa a sensaccedilatildeo de estar de volta ao barulho inconfundiacutevel

das maacutequinas e agrave imagem viva de homens com seus gestos e as suas brincadeiras que por

mais estranhos que sejam acabam unindo pessoas Ateacute mesmo as ldquovelhas piadasrdquo estavam de

volta26

Ainda nos primeiros dias fomos tomados por um estranhamento em relaccedilatildeo ao espaccedilo

fiacutesico e quantidade de trabalhadores Tivemos a impressatildeo de que natildeo estaacutevamos em uma

faacutebrica claacutessica com pessoas tendo que ldquoficar espertasrdquo com a ponte rolante e as empilhadei-

ras Depois de algumas observaccedilotildees foi possiacutevel perceber algumas preacute-instalaccedilotildees para outras

maacutequinas o que mais tarde foi confirmado pelos trabalhadores a dimensatildeo do galpatildeo era a

projeccedilatildeo de uma futura expansatildeo para esta ferramentaria

Os primeiros momentos de observaccedilatildeo nos permitiram aproximar da realidade daquela

faacutebrica buscamos perceber o ritmo de trabalho dos ferramenteiros os riscos de acidentes e as

relaccedilotildees de poder inscritos naquele espaccedilo Outro aspecto possibilitado a partir desses primei-

ros momentos foi o ldquodeixarrdquo que os trabalhadores tambeacutem nos conhecessem elemento essen-

cial para a nossa pesquisa evidenciado pela proacutepria fala dos trabalhadores ldquono iniacutecio a turma

ficou ldquocismadardquo pensando que vocecirc poderia ser um espiatildeordquo27

Apoacutes aproximadamente a quarta semana de observaccedilatildeo iniciamos uma pequena sis-

tematizaccedilatildeo de nosso diaacuterio de bordo a fim de ldquoreorientarrdquo nosso roteiro de entrevistas Embo-

ra jaacute houvesse obtido a permissatildeo para realizar as entrevistas dentro da faacutebrica optamos em

fazer as duas primeiras delas em outro espaccedilo Foi um momento importante pois aleacutem dos 26 ldquoO peatildeo adora fazer alusatildeo ao parentesco entre os colegas lsquoVocecircs satildeo irmatildeosrsquo lsquoQuem era o mais choratildeo laacute na sua casarsquordquo 27 Foram muitas falas com essa conotaccedilatildeo Em algumas delas os ferramenteiros citaram certos comportamentos de nossa parte que favoreceram a nossa entrada no coletivo de trabalho Explicitaremos apenas uma delas pelo teor do seu conteuacutedo irocircnico mas revelador mdash ldquoVou te falar a verdade no iniacutecio a turma toda ficou falando ou ele eacute mais um chefe ou esse cara eacute um espi-atildeo Depois vocecirc foi se entrosando com a gente Soacute que eu vou te falar um negoacutecio vocecirc pode ateacute ser professor mas vocecirc deve ser filho de peatildeo vocecirc tem umas lsquomaniasrsquo de peatildeordquo Eu mdash Seraacute Uma hora dessas vou te contar a minha Histoacuteria se vocecirc estiver certo eu te pago uma cerveja se vocecirc estiver errado vocecirc me paga uma cerveja taacute combinado mdash Taacute vendo num tocirc te falando isso eacute coisa de peatildeo Esse mesmo estranhamento foi relatado por SANTOS (1985) ao entrar na faacutebrica em que realizou sua pesquisa de mestrado

35

ricos elementos coletados nos permitiu projetar um olhar mais refinado para as futuras obser-

vaccedilotildees e ainda para as outras entrevistas

36

2 O ldquoLUGARrdquo DO SABER NO MUNDO DO TRABALHO

A presenccedila de saberes no processo de trabalho tem despertado interesse em vaacuterios

segmentos da sociedade trabalhadores empresaacuterios poder puacuteblico e privado trabalho e esco-

la Apresentaremos a seguir parte da discussatildeo feita pelos autores que se interessam pelo

tema inicialmente localizando os modelos de organizaccedilatildeo de trabalho capitalista em seguida

a importacircncia atribuiacuteda ao tema do saber no processo de trabalho e os diversos acircngulos em

que ele eacute tratado

21 O SABER NOS MODELOS DE ORGANIZACcedilAtildeO E GESTAtildeO DO TRABALHO

Os modelos de organizaccedilatildeo do trabalho satildeo engendrados num determinado contexto

histoacuterico econocircmico e social e respondem agraves condiccedilotildees da base material da sociedade Muitos

autores como Gounet (1999) Coriat (1994) Salerno (1994) e Bravermam (1987) que discu-

tem a questatildeo do saber e os modelos de organizaccedilatildeo do trabalho destacam dois paradigmas

dessa organizaccedilatildeo o taylorismo e o toyotismo O primeiro marcou a organizaccedilatildeo dos proces-

sos de trabalho em todo o seacuteculo XX e sobrevive fortemente ateacute hoje o segundo surge no

Brasil a partir principalmente dos anos de 1970

O Taylorismo preconiza uma racionalizaccedilatildeo da organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho que

elimine as porosidades na linha produtiva Essa perspectiva aponta para uma aparente oposi-

37

ccedilatildeo entre o operaacuterio e a gerecircncia no que se refere ao niacutevel de autonomia sobre os saberes pre-

sentes no processo de trabalho1

Em relaccedilatildeo agraves suas principais caracteriacutesticas o taylorismo foi analisado da seguinte

forma por Aranha (1997)

O taylorismo caracteriza-se entre outras coisas por seu rigor em tentar submeter o trabalhador a um trabalho prescrito pela gerecircncia () A radical separaccedilatildeo entre e-xecuccedilatildeo e concepccedilatildeo e a otimizaccedilatildeo da produtividade do trabalho com a reduccedilatildeo de tempos mortos constituiacuteam algumas das suas principais metas (p 20)

Por discutirem com mais profundidade o taylorismo Bravermam (1987) Coriat

(1994) e Antunes (2001) afirmam que a proposta de Taylor estrutura-se sobre um trabalho

parcelar e fragmentado de tarefas que supostamente exige dos operaacuterios saberes e habilida-

des especiacuteficas agrave sua funccedilatildeo O taylorismo notabiliza-se ainda pela radical separaccedilatildeo entre a

execuccedilatildeo e a concepccedilatildeo onde a prescriccedilatildeo do trabalho caberia agrave gerecircncia que dentre outras

atribuiccedilotildees poderia e deveria conhecer organizar e controlar o saber dos trabalhadores ou

como afirma o proacuteprio Taylor (1980) ldquoA gerecircncia tem a funccedilatildeo de reunir os conhecimentos

tradicionais que no passado possuiacuteram os trabalhadores e entatildeo classificaacute-los tabulaacute-los e

reduzi-los em normas leis ou foacutermulas grandemente uacuteteis ao operaacuteriordquo (p 49)

O toyotismo2 eacute um modelo de organizaccedilatildeo do trabalho que surge a partir de fins dos

anos sessenta e chega ao Brasil uma deacutecada depois Este modelo introduz novidades em rela-

ccedilatildeo ao saber do operaacuterio quando passa a valorizaacute-lo no processo produtivo (CORIAT 1994

HARVEY 1993) Sob o vieacutes da gestatildeo participativa essa perspectiva procura encurtar a dis-

tacircncia entre a concepccedilatildeo e a execuccedilatildeo com a criaccedilatildeo de mecanismos que facilitam a integra-

1 Essa questatildeo jaacute eacute discutida em uma extensa bibliografia (BRAVERMAM 1987 CORIAT 1994 GOUNET 1999) 2 O aprofundamento desse modelo se encontra em uma extensa bibliografia (CORIAT 1994 ANTUNES 2001 GOUNET 1999)

38

ccedilatildeo do saber do trabalhador ao processo de trabalho e agraves poliacuteticas da empresa de melhoria da

produtividade e qualidade

Aleacutem de uma maior participaccedilatildeo do trabalhador no processo produtivo esse modelo

diferentemente da rigidez taylorista valoriza um trabalhador que possua saberes e habilidades

que lhe permitam aprender continuamente adaptar e alocar seus saberes em multitarefas O

toyotismo se caracteriza ainda por um forte apelo ao uso da microeletrocircnica o que combi-

nado com as caracteriacutesticas anteriores acaba requisitando um perfil de trabalhador que tenha

uma formaccedilatildeo baacutesica mais soacutelida e ampla (EVANGELISTA 2002 ANTUNES 2001) Entre-

tanto o toyotismo ao mesmo tempo em que demanda uma forccedila de trabalho mais qualificada

tambeacutem ldquopressupotildee um trabalho precaacuterio e excludenterdquo (KUENZER apud EVANGELISTA

2002 p 40)3

Eacute necessaacuterio ainda afirmar que vaacuterias pesquisas (ARANHA 1997 ANTUNES

2001) questionam ou ateacute mesmo negam a total superaccedilatildeo do taylorismo pelo toyotismo Con-

forme esclarece Aranha (1997) ldquoestudos empiacutericos mostram que processos de trabalho alta-

mente neotecnizados convivem com esquemas tayloristas e mesmo com outros esquemas de

gerenciar a produccedilatildeo ainda mais atrasadosrdquo (p 22) Esse hibridismo eacute percebido criticamente

por alguns pesquisadores Hirata (1994) por exemplo afirma que a qualificaccedilatildeo exigida pelo

padratildeo flexiacutevel e integrado ldquo() se aplica menos agraves trabalhadoras do sexo feminino e aos ope-

raacuterios de empreiteiras subcontratados pela empresardquo (p 130) De acordo com essa pesquisa-

dora esse modelo ao mesmo tempo em que favorece o surgimento de trabalhadores super-

qualificados proporciona tambeacutem o crescimento do nuacutemero de trabalhadores pouco qualifi-

cados (HIRATA 1994)

3 Em relaccedilatildeo a esta questatildeo haacute uma vasta bibliografia (HIRATA 1994 CARVALHO 1996 KUENZER 1994 ANTUNES 2001)

39

Dentre as accedilotildees colocadas em uso pelo capital na tentativa de gerenciar os saberes dos

trabalhadores algumas nos parecem bem sofisticadas Assis (2000) em sua dissertaccedilatildeo4 ob-

serva que a empresa na qual realizou a sua pesquisa se apoiava em um excepcional sistema de

comunicaccedilatildeo informatizado para tentar mobilizar e apropriar os saberes dos trabalhadores

Em outros estudos como os realizados por Souza (2002)5 e Machado (1999)6 aparecem ele-

mentos que revelam uma proposta de organizaccedilatildeo do trabalho que busca combinar as novas

tecnologias para mobilizar a ldquoautonomiardquo do operaacuterio no processo produtivo no que diz res-

peito aos saberes

Por outro lado Santos (1985 1997 2000) Aranha (1997) Machado (1999) e Lima

(1998) ampliam a importacircncia do tema na medida em que ao problematizaacute-lo apontam para

dimensotildees relativas aos interesses dos trabalhadores Evangelista (2002) mostra ainda que os

trabalhadores sempre estiveram interessados em interpretar a presenccedila dos seus saberes no

processo de trabalho

22 O SABER NO TRABALHO

Os vaacuterios segmentos sociais trabalhadores empresaacuterios e poder puacuteblico ao mesmo

tempo em que de diversas formas consagram a importacircncia do saber no processo de trabalho

reclamam tambeacutem por estudos que o esclareccedilam melhor

No sentido de avanccedilar na problematizaccedilatildeo do saber no trabalho torna-se necessaacuterio

conhecer como a literatura vem abordando a temaacutetica Seguindo por esta trilha o debate aber- 4 ASSIS RicardoWagner Os impactos das novas tecnologias nas formas de sociabilidade e no savoir-faire dos operadores um estudo de caso do setor sideruacutergico Belo Horizonte Dissertaccedilatildeo de mestrado apresentada agrave Faculdade de Psicologia da UFMG 2000 5 SOUZA P R Autonomia dos operadores e trabalho de convencimento na produccedilatildeo contiacutenua Belo Hori-zonte (Dissertaccedilatildeo de mestrado apresentada agrave Escola de Engenharia da UFMG) 2002 6 MACHADO M L M Sujeito e trabalho impasses e possibilidades frente as novas tecnologias de gestatildeo no trabalho ndash o caso Gessy Lever Belo Horizonte Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Faculdade de Filosofia Ciecircncias e LetrasUFMG como requisito parcial agrave obtenccedilatildeo do tiacutetulo de mestre em psicologia Belo Horizonte 1999

40

to sobre a presenccedila do saber no trabalho perpassa reflexotildees teoacutericas e investigaccedilotildees de casos

concretos que apontam o tratamento dado agrave concepccedilatildeo e agrave execuccedilatildeo no processo de trabalho

Em relaccedilatildeo ao atual debate sobre o saber no processo de trabalho destaca-se a gestatildeo

participativa capitaneada pelo modelo toyotista que aparentemente elimina a separaccedilatildeo entre

execuccedilatildeo e concepccedilatildeo no processo de trabalho Segundo Aranha (1997) ldquoAs chamadas lsquoges-

totildees participativasrsquo buscam a integraccedilatildeo do trabalhador no processo produtivo alargando a

margem de sua interferecircncia e concretamente colocando em suas matildeos um conjunto de deci-

sotildees antes apenas restrito agrave gerecircnciardquo (p 22) Entretanto essa autora faz uma advertecircncia

ldquoEssas alteraccedilotildees natildeo foram colocadas por qualquer atitude de benevolecircncia do empresariado

para com a forccedila de trabalhordquo Antunes (2000) tambeacutem aponta a participaccedilatildeo do operaacuterio em

algumas decisotildees na linha produtiva como uma das inovaccedilotildees do toyotismo ldquoOs ciacuterculos de

controle de qualidade (CCQs) construindo grupos de trabalhadores que satildeo instigados pelo

capital a discutir seu trabalho e desempenho com vistas a melhorar a produtividade das em-

presasrdquo (p 55)

Por outro lado Evangelista (2002) afirma que as pesquisas indicam a existecircncia de

uma separaccedilatildeo entre execuccedilatildeo e concepccedilatildeo em empresas que adotaram o padratildeo flexiacutevel e

integrado como por exemplo a Fiat Automoacuteveis

A partir mesmo das relaccedilotildees estabelecidas entre a unidade fabril de Betim e a faacute-brica da matriz vaacuterios dos projetos dos carros produzidos no Brasil satildeo importados da Itaacutelia mostrando que a autonomia local eacute apenas relativa Alguns desses proje-tos satildeo definidos no Brasil mas as diretrizes vecircm da empresa matildee (p 84)

Evangelista (2002) afirma ainda que ldquoEsse processo se reproduz na relaccedilatildeo que a uni-

dade de Betim estabelece com o coletivo dos trabalhadores locais proporcionando-lhes uma

certa autonomia mas natildeo sem abrir matildeo naturalmente da coordenaccedilatildeo e do controlerdquo (p 85)

Eacute necessaacuterio considerar que mesmo estando as grandes decisotildees sob as ordens do ca-

pital haacute uma forte evidecircncia de que a reconfiguraccedilatildeo do saber dentro do processo de trabalho

41

por parte dos trabalhadores esteja inscrita natildeo somente como importante mas como uma ne-

cessidade fundamental para o capital

Avanccedilando nessa discussatildeo Santos (1997) contesta o fim da prescriccedilatildeo anunciado pe-

los processos flexiacuteveis e integrados ao trabalhar com a ideacuteia de que a separaccedilatildeo entre execu-

ccedilatildeo e concepccedilatildeo nos processos integrados e flexiacuteveis possa estar inserida em uma outra pers-

pectiva de organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho onde a prescriccedilatildeo de objetivos toma o lugar da

prescriccedilatildeo das atividades de trabalho Segundo essa pesquisadora ldquoA prescriccedilatildeo passa desse

modo a se referir aos objetivos amplos do processo produtivo direcionados ao sistema como

um todo Haacute um deslocamento das exigecircncias em relaccedilatildeo agraves teacutecnicas operatoacuterias especializa-

das para uma regulaccedilatildeo tecnoloacutegica do conjuntordquo (p 18)

Essa reflexatildeo eacute corroborada por vaacuterias pesquisas que verificam que a integraccedilatildeo do

saber do trabalhador no processo de trabalho natildeo eliminou a existecircncia de uma gerecircncia que

centraliza e controla os objetivos da empresa Assis (2000) por exemplo verificou em sua

dissertaccedilatildeo que o trabalho dos operadores da aciaria em uma sideruacutergica mineira que optou

pelo padratildeo integrado e flexiacutevel eacute marcado por procedimentos prescritos pela gerecircncia A

chance de os operadores burlarem esses procedimentos eacute travada por um sistema de comuni-

caccedilatildeo informatizado que soacute admite o uso de alternativas quando se faz uma justificativa re-

gistrada junto agrave gerecircncia Esse processo eacute percebido pelos proacuteprios operadores como cita As-

sis (2000) ldquoSe vocecirc mudar alguma coisa tem que explicar na telardquo (p 46) Dessa forma o

trabalho da gerecircncia pode ficar facilitado com o acesso a um maior nuacutemero de informaccedilotildees

De acordo com Assis (2000)

() as gerecircncias tecircm hoje um volume de informaccedilotildees sobre o que ocorre muito maior que antes jaacute que no caso dos operadores suas intervenccedilotildees satildeo registradas eletronicamente ou seja grande parte do que afeta o processo eacute introduzido no sis-tema informatizado passando muito pouca coisa despercebida (p 46)

42

Uma outra observaccedilatildeo feita por Assis (2000) indica que ao mesmo tempo em que a

empresa aperfeiccediloa seus mecanismos de controle e de prescriccedilatildeo contraditoriamente ela con-

voca o saber dos trabalhadores e depende da integraccedilatildeo para que funcione o seu sistema de

controle e prescriccedilatildeo Nas palavras de Assis (2000)

O que pode parecer paradoxal eacute que quanto mais a organizaccedilatildeo exige um acompa-nhamento das prescriccedilotildees por parte dos operadores mais ela busca neles autonomia e flexibilidade para que possam dar soluccedilotildees criativas frente agraves mudanccedilas lidar com as variabilidades do processo superar a falta de confiabilidade de algumas in-formaccedilotildees e as falhas dos sistemas automatizados que natildeo param de se complexi-ficar e insistem em natildeo funcionar exatamente como desejam os manuais e os enge-nheiros (p 41)

Ainda sobre a possibilidade de existir dentro do padratildeo flexiacutevel e integrado uma pers-

pectiva de hierarquia que separa a execuccedilatildeo da concepccedilatildeo no processo de trabalho Evangelis-

ta (2002) afirma que

Os trabalhadores natildeo teriam qualquer possibilidade de decidir sobre os cursos a se-rem oferecidos pela empresa e consequumlentemente sobre os conteuacutedos que com-preendem esses cursos Estes tecircm sido definidos pelo Desenvolvimento Organiza-cional ndash DO ndash setor que junto com o de treinamento e outros determina as neces-sidades e os alvos das atividades de formaccedilatildeo (p 86)

Dentre os autores que discutem a implantaccedilatildeo do padratildeo flexiacutevel e integrado alguns

chegam a projetar uma certa vantagem deste modelo de organizaccedilatildeo do trabalho para os traba-

lhadores Coriat (1994) por exemplo vai vislumbrar a possibilidade de haver uma intelectua-

lizaccedilatildeo do trabalhador em funccedilatildeo de o padratildeo flexiacutevel valorizar um saber amplo e versaacutetil

Arauacutejo (2002) cuja dissertaccedilatildeo aborda a reestruturaccedilatildeo produtiva em duas induacutestrias sideruacuter-

gicas mineiras no contexto da privatizaccedilatildeo salienta que ldquoA privatizaccedilatildeo gerou uma transiccedilatildeo

do autoritarismo para um estilo gerencial menos autoritaacuteriordquo (p 113) A autora tambeacutem en-

tende que ldquoO novo perfil do trabalhador abrange uma aacuterea muito maior bem como o relacio-

43

namento interpessoal e a comunicaccedilatildeo aliados ao conhecimento e agrave habilidade teacutecnicardquo (p

114)

Embora o trabalho no padratildeo flexiacutevel e integrado possa conservar praacuteticas tayloristas

as pesquisas natildeo hesitam em indicar que de fato vem ocorrendo uma nova interaccedilatildeo do ho-

mem com o processo de trabalho e que a implantaccedilatildeo das novas tecnologias estimulou o de-

sencadeamento de novos saberes que Assis (2000) classificou como saberes complexos dada

a combinaccedilatildeo de domiacutenio do processo produtivo com o uso da linguagem informatizada

Se as pesquisas confirmam a importacircncia da presenccedila de saberes dos trabalhadores no

trabalho surgem tambeacutem algumas indagaccedilotildees a convocaccedilatildeo destes saberes por parte do ca-

pital seria suficiente para mobilizar os trabalhadores a produzi-los E neste caso como isto

se daria E ainda quais saberes dos trabalhadores interessam ao capital

23 O SABER TAacuteCITO DO TRABALHADOR

A expressatildeo saber taacutecito tem sido muito usada quando se discute a presenccedila do saber

do trabalhador no processo de trabalho De acordo com o dicionaacuterio Ferreira (1986) o saber

eacute ldquo[Do latim sapere ter gosto] Ter conhecimento ciecircncia informaccedilatildeo ou notiacutecia () ter

conhecimento teacutecnicos e especiais relativos a ou proacuteprios para () Estar convencido de ter a

certeza de () Ter capacidade () julgar considerar () experiecircncia praacuteticardquo (p 1530) Nes-

te mesmo dicionaacuterio () a definiccedilatildeo de taacutecito eacute ldquo[Do latim Tacitu] silencioso calado () Em

que natildeo haacute rumor () que natildeo se exprime por palavras subentendido impliacutecito () Oculto

secretordquo

No dicionaacuterio da educaccedilatildeo profissional (2000) saber eacute apresentado com as seguintes

definiccedilotildees ldquo1 ndash o ato de saber ou o processo atraveacutes do qual um sujeito aprende 2 ndash o fato

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ou a situaccedilatildeo daquele que aprendeu algo 3 ndash o produto da aprendizagem do sujeito ou obje-

tos culturais institucionais sociaisrdquo (p 294) Ainda neste dicionaacuterio o saber taacutecito eacute apresen-

tado como sinocircnimo de conhecimento taacutecito (2000) e assim eacute definido ldquo() eacute o conhecimen-

to que a pessoa tem mas do qual natildeo estaacute ciente de modo consciente Eacute resultante da experi-

ecircncia da histoacuteria individual ou coletiva dos indiviacuteduosrdquo (p 298)

O saber taacutecito pode ainda aparecer com o nome de savoir-faire Essa expressatildeo eacute a-

presentada no dicionaacuterio de formaccedilatildeo profissional como ldquo() o produto de uma aprendiza-

gem do trabalhador e sua disposiccedilatildeo para mobilizar os seus saberes no trabalho sempre que

necessaacuterio Compreende os saberes praacuteticos empiacutericos as manhas do ofiacutecio o golpe de vis-

tardquo

Em relaccedilatildeo agrave presenccedila de saberes no processo produtivo Santos (1997) Aranha

(1997) e Antunes (2001) entendem que o saber do trabalhador sempre esteve presente no pro-

cesso de trabalho mesmo em um modelo de gestatildeo extremamente marcado pela divisatildeo teacutec-

nica do trabalho como foi o taylorismo Dentre eles o chamado saber taacutecito eacute o que veremos

a seguir Aranha (1997) afirma que ldquoEste conhecimento taacutecito muitas vezes reprimido pela

gerecircncia nunca deixou de ser continuamente produzido e demonstra que apesar de seus es-

forccedilos o capital ficou longe de conseguir separaccedilatildeo completa (ou mesmo parcial) entre matildeo e

ceacuterebrordquo (p 21)

Do ponto de vista teoacuterico essa questatildeo natildeo eacute nova O divoacutercio entre o trabalho intelec-

tual e o trabalho manual jaacute tinha sido contestado por Gramsci de acordo com Kuenzer (1985)

ldquoNatildeo podemos separar o homo faber do homo sapiensrdquo (p 185)

As pesquisas evidenciam a natildeo-separaccedilatildeo entre trabalho intelectual e trabalho manual

ao demonstrarem o avanccedilo do capital sobre o saber do trabalhador mesmo nos processos pro-

dutivos mais automatizados Essa situaccedilatildeo foi analisada da seguinte forma por Machado

(1999)

45

Portanto se todo o aparato estampado na automatizaccedilatildeo e informatizaccedilatildeo da planta de produccedilatildeo aludem agrave possibilidade de prescindir do sujeito-trabalhador as situa-ccedilotildees inesperadas convocam os sujeitos a se pronunciar a arbitrar sobre o imprevi-siacutevel Afinal de contas soacute o que eacute previsiacutevel eacute passiacutevel de ser automatizado e con-trolado pela rotina (p 138)

Um ponto de partida mais consistente sobre a inserccedilatildeo do saber taacutecito no processo de

trabalho encontra-se em um pressuposto oriundo da ergonomia cujo entendimento mostra que

o trabalho prescrito ou seja aquele que foi concebido planejado e calculado pela engenharia

natildeo corresponde a todas as necessidades reais do processo de produccedilatildeo demonstrando a fragi-

lidade da ideacuteia que sustenta a total separaccedilatildeo entre execuccedilatildeo e concepccedilatildeo Essa concepccedilatildeo do

processo de trabalho foi assimilada por pesquisadores de vaacuterias aacutereas do conhecimento San-

tos (1997) por exemplo discute a existecircncia de uma ldquodistacircncia entre o trabalho prescrito e o

trabalho realrdquo Como dissemos em nossa introduccedilatildeo de acordo com essa pesquisadora (2000)

trabalho prescrito ldquo() eacute a definiccedilatildeo preacutevia da maneira como o trabalhador deve executar o

trabalho o modo de usar os equipamentos e as ferramentas o tempo concedido para cada

operaccedilatildeo o como fazer e as regras que devem ser respeitadasrdquo (p 344) O trabalho real reme-

te agraves condiccedilotildees necessaacuterias em que se realiza um trabalho que sempre escapa agrave prescriccedilatildeo De

fato essa possibilidade foi verificada concretamente por algumas pesquisas Assis (2000) em

sua dissertaccedilatildeo afirma que ldquoNa nossa pesquisa pudemos perceber a niacutetida distacircncia entre o

trabalho prescrito e o trabalho real o que implica a presenccedila ativa do homem e do seu conhe-

cimento taacutecitordquo (p 42)

As abordagens sobre o saber taacutecito entram em um consenso sobre a sua definiccedilatildeo

quando afirmam que a produccedilatildeo deste saber remete a uma intimidade da vivecircncia do traba-

lhador com o processo de trabalho e que este saber apresenta uma enorme dificuldade em ser

sistematizado Crivellari e Melo apud Assis (2000) entendem e assim o definem

46

Saber taacutecito refere-se agrave capacidade que o trabalhador possui de apreensatildeo e identi-ficaccedilatildeo pela vivecircncia dos estados de normalidade ou anormalidade do processo A aquisiccedilatildeo desse saber se daacute no conviacutevio com a produccedilatildeo havendo uma concepccedilatildeo praacutetica e complexa para ser integralmente apreendida em formalizaccedilotildees (p 18)

Evangelista (2002) trabalha com uma definiccedilatildeo mais ampliada sobre o ldquoconhecimento

taacutecitordquo ao considerar outros espaccedilos aleacutem do trabalho

Esse conhecimento embora proveniente da vivecircncia de trabalho tambeacutem expressa as aquisiccedilotildees obtidas na formaccedilatildeo profissional na escolarizaccedilatildeo formal e na expe-riecircncia de vida do trabalhador Ele conteacutem elaboraccedilotildees individuais e coletivas que por sua vez estatildeo dentro de um quadro de relaccedilotildees e produccedilotildees sociais (p 94)

24 Do saber vinculado agrave praacutetica um ponto de vista sobre o saber taacutecito

() A pertinecircncia de um saber investido numa praacutetica diz ainda B Charlot natildeo es-taacute diretamente ligada ao seu estatuto cientiacutefico Em primeiro lugar um saber pode ser mais pertinente na sua forma ldquocomumrdquo que na sua forma cientiacutefica Assim para nos orientarmos eacute mais pertinente saber que o sol nasce a leste e se potildee a oeste do que saber se a Terra gira em torno do Sol Em segundo lugar natildeo basta que um sa-ber seja cientiacutefico para ser pertinente na praacutetica Eacute preciso ainda que ele se torne instrumento ao serviccedilo visado Natildeo basta conhecer as leis da eletricidade para mon-tar uma aparelhagem eleacutetrica (MALGLAIVE 1990 p 38)7

Se de um lado a literatura que aborda a presenccedila de saberes no processo produtivo

(ARANHA 1997 SANTOS 1997 2000 MACHADO 2000) indica que os trabalhadores

satildeo produtores de saberes por outro lado segundo essa mesma literatura existe um campo

aberto e necessaacuterio agraves pesquisas que possam contribuir para que o estatuto social poliacutetico e

espistemoloacutegico do saber taacutecito do trabalhador supere a sua ldquotimidezrdquo perante os saberes for-

malizados pela ciecircncia Posto ainda que o proacuteprio objeto desta pesquisa remete agrave possibili-

dade de que as atividades de trabalho sejam praacuteticas inteligentes entendemos que eacute importan-

te aprofundar a discussatildeo sobre a validade sobretudo epistemoloacutegica do saber taacutecito Diante

7 Esta obra eacute uma ediccedilatildeo portuguesa

47

dessa questatildeo que para noacutes eacute muito cara recorremos ao diaacutelogo com os pesquisadores que

refletem sobre a relaccedilatildeo entre a praacutetica e a construccedilatildeo de saberes taacutecitos

De um modo geral os pesquisadores (SCHON 2000 POLANY 1967 MALGLAI-

VE 1990) que discutem o saber taacutecito o tomam como um saber vinculado agrave praacutetica ou asso-

ciado a uma determinada experiecircncia em fazer algo Estes pesquisadores ao buscarem desve-

lar o saber taacutecito apontam como chave de seu entendimento a anaacutelise da relaccedilatildeo entre a praacuteti-

ca8 e a produccedilatildeo desse tipo de saber Pode-se dizer ainda que a perspectiva que confere im-

portacircncia ao estudo da relaccedilatildeo entre a praacutetica e a construccedilatildeo do saber taacutecito se apoacuteia no pres-

suposto de que sendo este saber vinculado agrave accedilatildeo humana o saber taacutecito eacute por excelecircncia

uma praacutetica potencialmente inteligente Essa perspectiva eacute apontada por Malglaive (1990) ldquoA

praacutetica eacute tudo o que diz respeito a acccedilatildeo humana isto eacute a transformaccedilatildeo intencional da reali-

dade pelos homens Implica portanto um desiacutegnio um fim o estado do real ao qual se aplica

a acccedilatildeordquo (p 40) Em Polany apud Frade (2003) a praacutetica pode ser percebida quando realiza-

mos alguma atividade ou ainda quando compreendemos algo podendo ser por meio de ldquoex-

periecircncias diretas ou sensoriais e com uso de conhecimentosrdquo (p 13)

Antes de avanccedilarmos na discussatildeo da relaccedilatildeo entre a praacutetica e o saber taacutecito vejamos

as diversas denominaccedilotildees sobre saberes vinculados agrave praacutetica e que ao nosso ver podem ser

tidos como da ordem do taacutecito Encontramos termos como ldquosaber-fazer ou savoir-fairerdquo ldquosa-

ber taacutecitordquo ldquoconhecimento taacutecitordquo ldquosaber do trabalhadorrdquo ou ldquotalento artiacutesticordquo (FRADE

2003 SCHON 2000 POLANY 1967 MALGLAIVE 1990) Todavia em que pesem algu-

mas especificidades que marcam o uso desses termos por esses pensadores satildeo muitos os

motivos que nos levam a tomar como importante as diferentes reflexotildees sobre o saber taacutecito

8 De acordo com o dicionaacuterio Ferreira (1986) a noccedilatildeo de praacutetica pode se referir as seguintes possibilidades ldquo1 ndash ato ou efeito de praticar 2 ndash uso experiecircncia exerciacutecio 3 ndash rotina 4 ndash saber provindo da experiecircncia teacutecnica 5 ndash aplicaccedilatildeo da teoria ()rdquo (p 1377) Jaacute a teoria eacute apresentada em Ferreira (1986) como ldquo[Do grego theoria] 1 ndash Conhecimento especulativo meramente racional 2 ndash Conjunto de princiacutepios fundamentais duma ciecircncia ou duma arte 4 ndash Opiniotildees sistematizadas () 6 ndash suposiccedilatildeo hipoacutetese ()rdquo (p 1644)

48

no sentido de compreendermos a sua relaccedilatildeo com a praacutetica Dessa forma mostraremos agora

como alguns autores usam a ideacuteia de praacutetica e que termos utilizam para designar o saber taacuteci-

to Malglaive (1990) apresenta como saber-fazer

Eacute mesmo agrave praacutetica que por definiccedilatildeo se refere o saber fazer () Em numerosos casos o saber-fazer designa uma competecircncia global um ofiacutecio ou uma destreza num domiacutenio mais ou menos amplo da praacutetica humana () Os saberes-fazer satildeo portanto para noacutes actos humanos disponiacuteveis em virtude de terem sido apreendidos (seja de que maneira for) e experimentados (p 79)

Outro autor Polany (1967) apresenta os saberes vinculados a uma ideacuteia de praacutetica pe-

lo termo de conhecimento taacutecito9 De acordo com Frade (2003) Polany declara natildeo ser possiacute-

vel tratar o conhecimento humano sem partir do princiacutepio de que sabemos mais do que pode-

mos dizer () Embora esse princiacutepio pareccedila oacutebvio ele espelha um dos principais pilares de

sua concepccedilatildeo de conhecimento o reconhecimento da existecircncia de um tipo de conhecimento

que natildeo pode ser completamente exposto e mais especificamente que natildeo pode ser descrito

em regras ou palavras o conhecimento taacutecito (p 11 grifo nosso) Segundo Polany (1967)

todo conhecimento humano eacute perpassado por uma dimensatildeo taacutecita10 Esta afirmaccedilatildeo eacute susten-

tada na ideacuteia de que todo conhecimento natildeo eacute totalmente explicitaacutevel ou seja todo conheci-

mento guarda uma face obscura portanto uma dimensatildeo taacutecita O debate sobre a explicitaccedilatildeo

ou natildeo de um determinado saber seraacute apresentado mais adiante neste capiacutetulo Uma outra

caracteriacutestica do conhecimento taacutecito em Polany segundo Frade (2003) pode ser dada ainda

pelo fato de se tratar de uma ldquohabilidade pessoal que natildeo pode ser disponibilizada a outros

pois natildeo sabemos explicar exatamente como a operamosrdquo (p 12) Dessa forma como jaacute a-

firmamos o ldquoconhecimento taacutecitordquo em Polany apresenta-se tambeacutem norteado pela ideacuteia de

praacutetica

9 Embora jaacute tenhamos explicado a nossa opccedilatildeo pelo termo saber em detrimento do termo conhecimento eacute mister explicar que em POLANY prevalece o uso do uacuteltimo termo Daiacute que nas diversas vezes em que nos reportamos a este autor aparece o termo conhecimento taacutecito 10 Eacute este inclusive o nome de um livro sobre o tema The tacit dimension (1967)

49

A aproximaccedilatildeo entre o ldquoconhecimento taacutecitordquo e a ideacuteia de praacutetica proposta por Polany

nos permite identificar de acordo com Frade (2003 p 13) um conhecimento praacutetico como

um conhecimento adquirido de experiecircncias diretas ou sensoriais Segundo essa autora ldquopo-

demos identificar um conhecimento praacutetico com um conhecimento taacutecito no sentido que natildeo eacute

faacutecil especificar como adquirimos conhecimento dessas experiecircncias e nem como usamos um

conhecimentordquo (grifo nosso) Ainda de acordo com essa pesquisadora em Polany foi possiacutevel

articular o conhecimento taacutecito com a ideacuteia de praacutetica agrave medida que

Analisando os diversos exemplos apresentados por POLANY (1962 1983 1975) para ilustrar o que consiste um conhecimento dessa natureza constata-se que o co-nhecimento taacutecito estaacute estritamente vinculado a uma praacutetica da seguinte maneira quando realizamos uma tarefa seja fiacutesica ou mental () acionamos um processo de funcionamento das nossas accedilotildees cujo propoacutesito eacute nos auxiliar na concretizaccedilatildeo des-sa tarefa Ao ser acionado tal processo mobiliza um conjunto especiacutefico de conhe-cimentos que possuiacutemos que funcionaram como instrumentos para realizarmos a tarefa bem como para monitorarmos sua realizaccedilatildeo (FRADE 2003 p 12 grifo nosso)

Em Schon (2000) tambeacutem encontramos uma reflexatildeo que aproxima a noccedilatildeo de saber

taacutecito agrave ideacuteia de praacutetica Para compreendermos melhor a aproximaccedilatildeo que esse autor faz entre

um tipo de saber e uma ideacuteia de praacutetica eacute necessaacuterio apresentarmos duas perspectivas o co-

nhecimento profissional e a competecircncia profissional A primeira perspectiva segundo Schon

(2000) normalmente eacute vinculada a saberes teoacutericos e teacutecnicas baseadas em pesquisas a qual

ele chama de ldquoracionalidade teacutecnicardquo e assim eacute definida

A racionalidade teacutecnica eacute uma epistemologia da praacutetica derivada da filosofia posi-tivista construiacuteda nas proacuteprias fundaccedilotildees da universidade moderna A racionalida-de teacutecnica diz que os profissionais satildeo aqueles que solucionam problemas instru-mentais selecionando os meios teacutecnicos mais apropriados para propoacutesitos especiacutefi-cos Profissionais rigorosos solucionam problemas instrumentais claros atraveacutes da aplicaccedilatildeo da teoria e da teacutecnica derivadas de conhecimento sistemaacutetico de prefe-recircncia cientiacutefico (p 15)

50

Entretanto na segunda perspectiva Schon (2000) aponta que sempre haacute uma zona de

incerteza a qual ldquoescapa da racionalidade teacutecnicardquo Eacute a partir das demandas de um espaccedilo

nutrido de incertezas que surge um apelo a um tipo de saber inerente a uma determinada praacute-

tica Tal saber foi nomeado por esse autor como ldquotalento artiacutestico profissionalrdquo Segundo as

palavras de Schon (2000) o termo ldquotalento artiacutestico profissionalrdquo se refere ldquoaos tipos de com-

petecircncia que os profissionais demonstram em certas situaccedilotildees da praacutetica que satildeo uacutenicas incer-

tas e conflituosasrdquo (p 29) Ainda sobre o ldquotalento artiacutestico profissionalrdquo de acordo com esse

autor ldquoO que chega a ser surpreendente sobre esses tipos de competecircncia eacute que eles natildeo de-

pendem de nossa capacidade de descrever o que sabemos fazer ou mesmo considerar consci-

entemente o que nossas accedilotildees revelamrdquo (p 29) Eacute nesta segunda perspectiva qual seja a que

interroga os saberes natildeo disponibilizados pela ldquoracionalidade teacutecnicardquo que encontramos em

Schon (2000) uma interlocuccedilatildeo com o saber taacutecito e a ideacuteia de praacutetica

A relevacircncia que Frade 2003 Schon 2000 Polany 1967 e Malglaive 1990 atribuem

ao imbricamento do saber taacutecito com a ideacuteia de praacutetica suscitou algumas indagaccedilotildees sobre

este tipo de saber quais as possibilidades de este saber ser comunicado E ainda o saber

taacutecito quando eacute acionado prescinde da mobilizaccedilatildeo de outros saberes Estas indagaccedilotildees antes

mesmo de serem respondidas acabam por nos fornecer algumas trilhas para que possamos

aprofundar a discussatildeo sobre a explicitaccedilatildeo ou natildeo deste tipo de saber bem como as suas

possibilidades de conter uma racionalidade ainda que natildeo cientiacutefica Eacute o que buscaremos fa-

zer no desenrolar desta parte em diante Neste sentido apresentamos uma discussatildeo sobre o

saber taacutecito dividida em trecircs perspectivas

Na primeira perspectiva procuramos analisar alguns aspectos da relaccedilatildeo do saber taacuteci-

to com a ideacuteia de praacutetica a partir de uma discussatildeo com alguns autores (FRADE 2003 S-

CHON 2000 POLANY 1967 MALGLAIVE 1990) na qual o saber taacutecito eacute caracterizado

por duas dimensotildees Em uma delas eacute apresentado um saber de uso instrumental ou seja um

51

saber que eacute disponibilizado para a realizaccedilatildeo de uma atividade orientando-se pelo seu resulta-

do final (FRADE 2003 POLANY 1967) Jaacute na outra o saber taacutecito se inscreve em um pro-

cesso de construccedilatildeo de saberes De acordo com Frade 2003 Schon 2000 Polany 1967

Malglaive 1990 este tipo de saber pode ainda ser acionado para monitorar e compreender a

realizaccedilatildeo de uma determinada atividade A partir da possibilidade de uso do saber taacutecito para

monitorar e compreender a realizaccedilatildeo de uma atividade debatemos ainda se esse tipo de sa-

ber possui algum niacutevel de formalizaccedilatildeo

Na segunda perspectiva discute-se a possibilidade de comunicaccedilatildeo do saber taacutecito a-

traveacutes da relaccedilatildeo entre este tipo de saber e uma linguagem que possa expressaacute-lo A partir

desta discussatildeo satildeo engendrados vaacuterios desdobramentos da explicitaccedilatildeo ou natildeo do saber taacuteci-

to Neste sentido satildeo analisadas as possibilidades de uma ou mais pessoas acessarem o saber

taacutecito de uma outra pessoa por meio da comunicaccedilatildeo as contradiccedilotildees entre uma linguagem

que busca expressar um saber taacutecito e uma outra linguagem que expressa um saber teoacuterico de

preferecircncia formalizado pelos padrotildees da ciecircncia Eacute abordada ainda a relaccedilatildeo do saber taacutecito

e uma linguagem que possa expressaacute-lo dentro de um recorte nas atividades e situaccedilotildees de

trabalho

Jaacute na terceira perspectiva a partir da anaacutelise da relaccedilatildeo entre o corpo e a mente satildeo

discutidas as possibilidades de produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo do saber taacutecito A abor-

dagem da relaccedilatildeo entre o corpo e a mente se apresenta com especial importacircncia por ser um

desdobramento das perspectivas apresentadas anteriormente na medida em que o corpo pode

ser considerado o meio pelo qual se realiza uma atividade fiacutesica ou mesmo mental Eacute analisa-

da tambeacutem a possibilidade de haver a mobilizaccedilatildeo de um ldquosaber usar o corpordquo A discussatildeo

sobre o corpo objetiva cumprir ainda um outro papel natildeo menos importante de buscar com-

preender os sujeitos de nossa pesquisa em sua complexidade ao incluir tambeacutem os aspectos

corporais na anaacutelise da produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes taacutecitos

52

Por fim a partir de uma anaacutelise dessas trecircs perspectivas articuladas com alguns ele-

mentos do mundo do trabalho buscaremos esclarecer uma hipoacutetese que norteia essa pesquisa

qual seja que os ferramenteiros produzem saberes taacutecitos e que para usarem os seus saberes

taacutecitos mobilizam mediante estrateacutegias tambeacutem taacutecitas saberes de vaacuterias ordens e ainda os

ferramenteiros criam estrateacutegias tambeacutem taacutecitas para formalizar os saberes taacutecitos que eles

produzem e mobilizam

241 Saber taacutecito entre um uso instrumental e a construccedilatildeo de saberes

Para alguns pesquisadores as reflexotildees sobre o saber taacutecito tecircm o seu ponto de partida

na tese de que este saber eacute caracterizado dentre outras coisas como um saber de uso instru-

mental (FRADE 2003 POLANY 1967) Segundo o dicionaacuterio Ferreira (1986) o termo ins-

trumental eacute uma derivaccedilatildeo da palavra instrumento cujo significado pode ser ldquo[Do Latim

Instrumentu] 1 ndash () 2 ndash Qualquer objeto considerado em sua funccedilatildeo ou utilidade 3 ndash Recur-

so empregado para alcanccedilar um objetivo conseguir um resultadordquo (p 1119) De acordo

com Santos (2003) a ldquofinalidade instrumental pode ser entendida como na seguinte proposi-

ccedilatildeo dado um fim ndash formaccedilatildeo de matildeo-de-obra para responder agraves necessidades do projeto de

desenvolvimento em curso ndash ponderam-se os meios de obtecirc-lo dado um conjunto de meios

ponderam-se os fins que podem ser alcanccediladosrdquo (p 37)11

De acordo com Frade (2003) o saber taacutecito em Polany tambeacutem caracteriza-se pelo

seu uso instrumental

De fato segundo Polany tais conhecimentos satildeo taacutecitos na medida em que satildeo u-sados de maneira instrumental e natildeo explicitamente como objetos Nesse sentido enquanto estatildeo sendo mobilizados eles natildeo satildeo percebidos em si mesmos mas sim em termos daquilo que eles contribuem para a realizaccedilatildeo da tarefa (p 12)

11 SANTOS (2003) associa a recente primazia dada a perspectiva instrumental do saber do trabalhador agrave emer-gecircncia do discurso da competecircncia em detrimento do tema do saber do trabalhador no trabalho (p 37)

53

Para Frade (2003) a faceta instrumental do saber taacutecito pode ser dada por uma forte

tendecircncia que noacutes temos em focalizar o saber taacutecito no resultado final de uma atividade ou na

conquista de uma determinada compreensatildeo logo estes objetivos iniciais satildeo o ldquoobjeto foco

de nossa atenccedilatildeordquo Dessa forma um conhecimento taacutecito natildeo eacute percebido em si mesmo na

medida em que noacutes o usamos apenas de maneira instrumental auxiliar ou seja noacutes mobili-

zamos o saber taacutecito prioritariamente para atingir uma determinada finalidade Portanto o

saber taacutecito que foi mobilizado natildeo eacute o foco principal de nossa atenccedilatildeo porque eacute usado como

um meio um instrumento de realizaccedilatildeo de uma finalidade que pretendemos atingir

Frade (2003) e Polany (1967) desdobram a tese de uso instrumental do saber taacutecito em

uma outra explicaccedilatildeo De acordo com esses pesquisadores a proacutepria estrutura do ato de co-

nhecer do saber taacutecito favorece para que este saber se caracterize por uma forma instrumental

Isso ocorre da seguinte maneira quando um saber taacutecito eacute mobilizado para que possamos rea-

lizar uma atividade significa que noacutes sabemos porque mobilizamos tal ou tais saberes Daiacute

que segundo Polany (1967) este saber eacute tido como um saber ldquoproacuteximo de noacutesrdquo pelo simples

fato de que sabemos da sua existecircncia ou porque ldquoconfiamos na ciecircncia que temos dele para

dirigirmos nossa atenccedilatildeo a uma determinada realizaccedilatildeordquo (p 10) ou ainda como afirma Frade

(2003) porque somos cientes da sua existecircncia (p 15) Por outro lado o saber taacutecito que eacute

mobilizado para conquistar uma compreensatildeo sobre a realizaccedilatildeo de uma determinada ativida-

de coloca-se ldquolonge de noacutesrdquo (POLANY 1967) pois nem sempre temos total consciecircncia so-

bre quais fatores compotildeem o saber taacutecito que usamos na realizaccedilatildeo de uma determinada ativi-

dade

A grande contradiccedilatildeo segundo esses pesquisadores eacute que o saber taacutecito que foi mobi-

lizado natildeo eacute percebido em si mesmo e noacutes soacute conseguiremos percebecirc-lo se o projetarmos no

resultado de uma determinada atividade ou na conquista de uma compreensatildeo Portanto os

54

significados deste saber taacutecito passam a se estabelecer ldquolonge de noacutesrdquo (POLANY apud FRA-

DE 2003) Dessa forma mesmo possuindo consciecircncia de um saber taacutecito para compreendecirc-

lo noacutes temos que projetaacute-lo sobre algo de que natildeo temos ainda uma total consciecircncia e que

por isso eacute algo ldquolonge de noacutesrdquo algo estranho agrave nossa consciecircncia A partir dessa trilha deixada

por Polany (1967) poderiacuteamos usar de forma hipoteacutetica a seguinte ilustraccedilatildeo para enxer-

garmos um desniacutevel em uma peccedila poderiacuteamos usar um saber taacutecito que consiste em molhar

esta peccedila com um determinado oacuteleo e por meio do reflexo da luz na peccedila com oacuteleo poderiacutea-

mos identificar as partes danificadas Se tomarmos como referecircncia as reflexotildees de Polany

(1967) a nossa total compreensatildeo do uso do oacuteleo demandaria tambeacutem uma compreensatildeo de

como se integram o oacuteleo a chapa de accedilo e a incidecircncia da luz e outros aspectos que poderiam

influenciar a nossa visatildeo daiacute que neste caso a nossa compreensatildeo depende de algo que estaacute

fora do nosso domiacutenio e por isso Polany (1967) os define como ldquolonge de noacutesrdquo Estabelece-

se assim uma contradiccedilatildeo na qual um determinado saber taacutecito que em tese estaria ldquoproacutexi-

mo de noacutesrdquo soacute eacute percebido se for projetado em um saber ldquolonge de noacutesrdquo

De acordo com Frade (2003) eacute possiacutevel que o saber taacutecito ainda que na sua forma ins-

trumental se constitua foco de nossa atenccedilatildeo tornando-se portanto um saber passiacutevel de ser

compreendido Entretanto essa autora afirma que se de um lado existe a possibilidade de

focar o saber taacutecito durante a realizaccedilatildeo de uma atividade por outro lado ao concentrar a ob-

servaccedilatildeo nas etapas de realizaccedilatildeo da atividade e natildeo no seu resultado final corre-se o risco de

perder a noccedilatildeo do objetivo de tal atividade Segundo Frade (2003) em uma situaccedilatildeo igual a

essa ldquonossa performance tende a ser paralisada de uma maneira ou de outra porque os ins-

trumentos natildeo satildeo reconhecidos por noacutes como instrumentosrdquo ou seja o objetivo pelo qual

haviacuteamos inicialmente mobilizado o nosso saber taacutecito ainda que em sua forma instrumen-

tal deixa de ser realizado ou o eacute precariamente Isso ocorre porque ao redirecionarmos nosso

55

foco em direccedilatildeo ao saber taacutecito ldquoinstrumentalrdquo acabamos por privilegiar a nossa atenccedilatildeo no

saber taacutecito em si em detrimento daquilo que eacute da atividade que queremos realizar

A anaacutelise sobre o uso instrumental do saber constitui-se nesta pesquisa em uma parte

essencial uma vez que por meio desse debate foi possiacutevel tomar o saber taacutecito como produto

bem como processo de produccedilatildeo de saber (FRADE 2003) Ao considerarmos a chance apon-

tada por Frade (2003) e Polany (1967) de que eacute possiacutevel mobilizar saberes para diminuir o

estranhamento da forma instrumental do saber taacutecito ainda que haja um prejuiacutezo em relaccedilatildeo agrave

realizaccedilatildeo do objetivo inicial acabamos por entender que uma coisa eacute debater o saber taacutecito

enquanto produto ou realizaccedilatildeo de uma atividade e outra coisa eacute abordar o processo que

construiu o saber necessaacuterio agrave realizaccedilatildeo dessa atividade Neste sentido se um saber taacutecito

ainda que instrumental pode requerer uma quantidade de reflexatildeo para ser acionado poderia

este saber ser um componente de um processo de construccedilatildeo de outros saberes taacutecitos

De acordo com Frade (2003) ao usar a palavra ldquoconhecimentordquo ldquoPolany se refere tan-

to ao produto ou realizaccedilatildeo de uma aprendizagem quanto ao processo dinacircmico de um ato de

conhecerrdquo Em Polany (1967) a possibilidade de o saber taacutecito se inscrever em um processo

de construccedilatildeo de saberes aparece associada agrave necessidade de que o uso de um determinado

saber taacutecito seja monitorado por outros saberes taacutecitos Para esse autor o uso de um saber

taacutecito para realizar uma atividade seja fiacutesica ou mental mobiliza um conjunto especiacutefico de

conhecimentos como instrumentos para realizarmos a tarefa ldquobem como para monitorarmos a

sua realizaccedilatildeordquo (FRADE 2003 p 12) Neste sentido podemos inferir que quanto maior for a

possibilidade de o saber taacutecito se inscrever em um processo de construccedilatildeo de saberes maiores

satildeo as chances de um saber taacutecito monitorar a realizaccedilatildeo de uma determinada atividade Daiacute

indagamos pode haver um saber taacutecito que monitore a realizaccedilatildeo de atividades Se o saber

taacutecito eacute resultado da mobilizaccedilatildeo de outros saberes quais seriam eles

56

Apesar de tanto Schon (2000) quanto Polany (1967) tomarem o saber taacutecito por um

olhar proacuteximo agrave perspectiva instrumental esses dois autores nos ajudam a pensar a possibili-

dade de que possa haver um saber taacutecito que monitore a realizaccedilatildeo de uma atividade De a-

cordo com Polany apud Frade (2003) mesmo de forma instrumental o uso do saber taacutecito

natildeo pode ser garantido pelo uso de accedilotildees repetidas De acordo com Frade (2003) ldquoPolany

observa que a passagem de uma experiecircncia para o plano operacional isto eacute para o uso de um

conhecimento enquanto instrumento natildeo se daacute por meio de meras repeticcedilotildeesrdquo (p 23 grifo

nosso) Esse entendimento nos sugere que o uso do saber de forma sucessiva demanda alguma

reflexatildeo Em Schon (2003) a possibilidade de o saber taacutecito se situar para aleacutem do uso ins-

trumental se apresenta agrave medida que este autor relativiza a tese de que temos uma tendecircncia

em focalizar o saber taacutecito no resultado final de uma atividade As reflexotildees deste autor apon-

tam que se toda atividade guarda sempre um lado imprevisiacutevel portanto natildeo eacute possiacutevel em

face dessa imprevisibilidade garantir que simplesmente repetindo um determinado saber taacuteci-

to possa se realizar com sucesso uma segunda ou terceira atividade De acordo com Schon

(2000)

Quando aprendemos a fazer algo estamos aptos a executar sequumlecircncias faacuteceis de a-tividade reconhecimento decisatildeo e ajuste sem ter como se diz que pensar a res-peito () No entanto nem sempre eacute bem assim Uma rotina comum produz um re-sultado inesperado um erro teima em resistir agrave correccedilatildeo () Todas essas experiecircn-cias agradaacuteveis e desagradaacuteveis conteacutem um elemento de surpresa (p 32)

Entretanto a abordagem de Schon (2000) ao associar o elemento da imprevisibilidade

agrave relevacircncia do ldquotalento artiacutesticordquo nos permitiu desdobrar o debate sobre o saber taacutecito Neste

sentido se o imprevisto eacute um problema real em qualquer atividade poderiacuteamos dizer que o

uso de um saber taacutecito para realizar uma atividade depende de uma constante reflexatildeo E nes-

te caso essa reflexatildeo pode ser associada ao saber taacutecito em um processo de construccedilatildeo de

saberes Essas indagaccedilotildees satildeo enriquecidas e em parte respondidas pela tese de ldquoreflexatildeo-

57

na-accedilatildeordquo desenvolvida por Schon (2000) Segundo esse pensador a reflexatildeo-na-accedilatildeo pode ser

apresentada ldquoem duas formasrdquo A primeira ldquopodemos refletir sobre a accedilatildeo pensando retros-

pectivamente sobre o que fizemos de modo a descobrir como nosso ato de conhecer-na-accedilatildeo

pode ter contribuiacutedo para um resultado inesperadordquo (p 32)

Em uma segunda alternativa Schon (2000) afirma que sem uma interrupccedilatildeo podemos

refletir no meio da accedilatildeo

Em um presente-da-accedilatildeo um periacuteodo de tempo variaacutevel com o contexto durante o qual ainda se pode interferir na situaccedilatildeo em desenvolvimento nosso pensar serve para dar nova forma ao que estamos fazendo enquanto ainda o fazemos Eu diria em casos como este que refletimos-na-accedilatildeo (p 32)

De acordo com Schon (2000) a reflexatildeo-na-accedilatildeo ldquoeacute uma parte fundamental do proces-

so que este autor chama de conhecer-na-accedilatildeordquo De acordo com Schon (2000) ldquoconhecer-na-

accedilatildeordquo refere-se aos

tipos de conhecimento que revelamos em nossas accedilotildees inteligentes performances fiacutesicas publicamente observaacuteveis como andar de bicicleta ou operaccedilotildees privadas como anaacutelise instantacircnea de uma folha de balanccedilo Nos dois casos o ato de conhe-cer estaacute na accedilatildeo Noacutes o revelamos pela nossa execuccedilatildeo capacitada e espontacircnea da performance e eacute uma caracteriacutestica nossa sermos incapazes de tornaacute-la verbalmen-te expliacutecita (p 31)

A reflexatildeo-na-accedilatildeo se diferencia dos outros tipos de reflexotildees pela sua ldquoimediata sig-

nificaccedilatildeo para a accedilatildeordquo o que nem sempre eacute claro e perceptiacutevel conforme afirma esse pensa-

dor ldquoAssim como o conhecer-na-accedilatildeo a reflexatildeo-na-accedilatildeo eacute um processo que podemos de-

senvolver sem que precisemos dizer o que estamos fazendordquo mesmo porque para Schon

(2000) o fato de ldquo() sermos capazes de refletir-na-accedilatildeo eacute diferente de sermos capazes de

refletir sobre nossa reflexatildeo-na-accedilatildeo de modo a produzir uma boa descriccedilatildeo verbal dela E eacute

ainda diferente de sermos capazes de refletir sobre a descriccedilatildeo resultanterdquo (p 35)

58

Se os elementos trabalhados ateacute o momento nos permitem associar a possibilidade de

haver um saber taacutecito que monitore a realizaccedilatildeo de uma atividade como um processo de cons-

truccedilatildeo de saberes por outro lado a possibilidade de haver um saber taacutecito inscrito num pro-

cesso de construccedilatildeo de saberes pode guardar ainda uma relaccedilatildeo com as exigecircncias de comu-

nicaccedilatildeo deste saber Segundo Frade (2003) ldquoa comunicaccedilatildeo de um saber taacutecito entre duas ou

mais pessoas exige que essas pessoas acionem os seus saberes taacutecitosrdquo Entretanto a comuni-

caccedilatildeo ou natildeo de um saber taacutecito eacute uma discussatildeo necessariamente mais extensa Neste senti-

do desenvolveremos a seguir a relaccedilatildeo entre o saber taacutecito e uma linguagem que possa ex-

pressaacute-lo

242 O saber taacutecito e a linguagem

No que se refere agrave comunicaccedilatildeo do saber taacutecito a literatura apresenta como debate

principal o problema em torno da relaccedilatildeo entre o saber taacutecito e uma linguagem que possa ex-

pressaacute-lo (FRADE 2003 SCHON 2000 POLANY 1967 MALGLAIVE 1990) De acordo

com Frade (2000 p 1) Polany valoriza a questatildeo da linguagem no debate sobre o saber taacutecito

a partir da ideacuteia de que ldquosabemos mais do que podemos dizerrdquo (Polany 1967) Outros pensa-

dores tambeacutem reafirmam a insuficiecircncia da linguagem na traduccedilatildeo de um determinado saber

Segundo Lima ldquosabemos mais do que podemos dizer sobre o que sabemos como sabemos e

o que sabemosrdquo (COLLINS apud LIMA 1998 p 144) O problema da insuficiecircncia da lin-

guagem potencializa-se de acordo com Polany (1967) porque todo conhecimento guarda

uma parte que natildeo pode ser totalmente exposta logo todo conhecimento eacute construiacutedo a partir

do taacutecito Daiacute que em Polany apud Frade (2003) o saber taacutecito pode ser aprendido mas natildeo

pode ser ensinado de uma forma simples uma vez que a relaccedilatildeo de aprendizagem exige co-

nhecimentos subsidiaacuterios que tambeacutem satildeo taacutecitos

59

Muito embora Schon (2000) corrobore a tese da insuficiecircncia da linguagem em expli-

citar um determinado saber taacutecito esse autor afirma que ldquoeacute possiacutevel agraves vezes atraveacutes da ob-

servaccedilatildeo e da reflexatildeo sobre nossas accedilotildees fazermos uma descriccedilatildeo do saber taacutecito que estaacute

impliacutecito nelasrdquo Dentre as vaacuterias abordagens sobre os limites da linguagem na explicitaccedilatildeo

do saber taacutecito (FRADE 2003 SCHON 2000 POLANY 1967 MALGLAIVE 1990) en-

contramos em Schon (2000) uma discussatildeo que nos parece ser interessante apresentar As

reflexotildees desse autor desenvolvem-se a partir da ideacuteia de que ldquoo pensar o que estou fazendo

natildeo implica ao mesmo tempo pensar o que fazer e fazecirc-lo Quando faccedilo algo de forma inteli-

gente () estou fazendo uma coisa e natildeo duasrdquo (RYLE apud SCHON 2000 p 29) Segundo

a perspectiva desse autor saberes do tipo do saber taacutecito estabelecem em seu proacuteprio processo

de conhecer uma dificuldade de explicitaccedilatildeo uma vez que esses tipos de saberes satildeo construiacute-

dos normalmente na praacutetica mediante um processo de ldquoconhecer-na-accedilatildeordquo De acordo com

esse pensador o processo de ldquoconhecer-na-accedilatildeordquo por ser da ordem da praacutetica eacute inexoravel-

mente ldquoum processo dinacircmicordquo o que poderia criar pelo menos uma distorccedilatildeo na explicita-

ccedilatildeo de um saber taacutecito jaacute que de acordo com Schon (2000) ldquoo processo de conhecer na accedilatildeo

eacute dinacircmico e os lsquofatosrsquo os lsquoprocedimentosrsquo e as lsquoteoriasrsquo satildeo estaacuteticosrdquo (p 31)

Sznelwar e Mascia (1997) tambeacutem levantam a possibilidade de haver uma relaccedilatildeo as-

siacutencrona entre uma linguagem que busca explicitar perspectivas teoacutericas e outra linguagem

que em tese explicitaria uma situaccedilatildeo praacutetica Essa distinccedilatildeo sobre a natureza da linguagem

engendraria uma incompatibilidade que eacute apontada por esses autores como um ldquodeacuteficit semi-

oacuteticordquo que eles esclarecem ao afirmar que

O leacutexico usado para descrever o trabalho estaacute fortemente dominado pelas produ-ccedilotildees linguumliacutesticas e conceituais formuladas por engenheiros peritos projetistas saacute-bios e pesquisadores O que eacute dito sobre o trabalho natildeo tem a ver com o vivenciado por quem trabalha Existe um deacuteficit semioacutetico para descrever a experiecircncia de tra-balho dos trabalhadores de base (p 224)

60

A possibilidade de haver um descompasso entre uma linguagem que busca explicitar

uma teoria e outra linguagem que busca explicitar uma situaccedilatildeo praacutetica talvez possa ser e-

xemplificada em algumas relaccedilotildees entre o homem e a informaacutetica

A informaacutetica tomou empreacutestimo de toda uma seacuterie de palavras que designam ati-vidades do homem como memoacuteria linguagem inteligecircncia para nomear ativida-des informatizadas Esta confusatildeo eacute particularmente perigosa porque quando re-tornam ao homem eles pensam que o homem tem o mesmo modo de funcionamen-to do computador nas atividades designadas por palavras que se referem ao ho-mem (LIMA 1998 p 124)

Seria possiacutevel inferir que parte da dificuldade de explicitar o saber taacutecito deve-se agrave in-

compatibilidade de sintonia entre uma linguagem que busca traduzir um processo vinculado agrave

praacutetica caracterizado como dinacircmico e uma outra linguagem que traduz conceitos e teorias

portanto de natureza essencialmente estaacutetica Por outro lado ao apontarmos um descompasso

entre uma linguagem vinculada agrave teoria e uma linguagem vinculada agrave praacutetica natildeo estariacuteamos

restringindo o saber teoacuterico agrave reflexatildeo e o saber taacutecito ao ldquopraacuteticofiacutesicordquo E neste caso esta-

riacuteamos reproduzindo a perspectiva que hierarquiza os saberes formalizados pelo estatuto cien-

tiacutefico em detrimento dos saberes formalizados pela experiecircncia Neste sentido ao ser coloca-

do como uma questatildeo complexa o debate sobre as possibilidades de explicitaccedilatildeo ou natildeo do

saber taacutecito mais do apontar as contradiccedilotildees entre uma linguagem que busca expressar um

saber taacutecito e uma linguagem teoacuterica nos permite tambeacutem abordar em que medida estes ti-

pos de saberes podem demandar e articular niacuteveis de reflexatildeo e abstraccedilatildeo

Se uma das questotildees que norteiam o debate sobre a relaccedilatildeo entre o saber taacutecito e a lin-

guagem eacute a possibilidade ou natildeo de este saber ser comunicado eacute portanto importante abor-

dar alguns aspectos das relaccedilotildees sociais em que o saber taacutecito se insere Muitos pensadores

apontam as relaccedilotildees sociais como um espaccedilo privilegiado na construccedilatildeo de saberes De acor-

do com Malglaive (1990) ldquoNuma imensa maioria de casos a actividade humana natildeo eacute solitaacute-

ria mas colectiva eacute uma lsquoco-acccedilatildeorsquo que implica parceiros e portanto uma organizaccedilatildeo uma

61

distribuiccedilatildeo das operaccedilotildees exercidas em comum para atingir o mesmo fimrdquo (p 76) Malglaive

(1990) faz a consideraccedilatildeo de que ldquoa teoria ignora certas caracteriacutesticas da accedilatildeordquo e por este

motivo ldquo() natildeo eacute possiacutevel conhecer um conceito sem conhecer o conjunto das relaccedilotildees nas

quais ele se insere e que por isso mesmo o definem ()rdquo (p 44) Neste sentido ao se consi-

derar as dimensotildees coletivas do processo de construccedilatildeo de saberes a linguagem aparece como

aspecto preponderante

Se por um lado ficou evidenciado na literatura abordada que satildeo muitas as tramas en-

gendradas pela relaccedilatildeo entre a linguagem e o saber taacutecito jaacute em nosso entendimento satildeo mui-

tos os argumentos que nos permitem tomar como importantes os caminhos apontados pelas

reflexotildees oriundas do campo de conhecimento que articula ldquotrabalho e linguagemrdquo (FAITA e

SOUZA-E-SILVA 2002 NOUROUDINE 2002)

Sobre a fecundidade da relaccedilatildeo entre linguagem e trabalho Faita e Souza-e-Silva

(2002) afirmam que ldquoDiversos fatores podem explicar a emergecircncia de tal interesse o mais

importante deles encontra-se no peso e na importacircncia que as atividades de simbolizaccedilatildeo pas-

saram a ter na realizaccedilatildeo do trabalhordquo (p 7) Ainda que o interesse dos linguumlistas pelo traba-

lho como objeto de estudo seja um fenocircmeno recente a literatura sobre essa temaacutetica jaacute acu-

mula importantes reflexotildees para apontar a diversidade de enfoques e de campos de interven-

ccedilatildeo caracteriacutesticos da aacuterea Dentre as vaacuterias possibilidades de contribuiccedilatildeo para esta pesquisa

uma foi acolhida com maior profundidade pois nos permitiu analisar a relaccedilatildeo entre o traba-

lho e a linguagem em uma perspectiva multifacetada Trata-se de uma abordagem defendida

por Nouroudine (2002)12 que apresenta uma triparticcedilatildeo da relaccedilatildeo trabalholinguagem cujos

eixos seriam dados pelas modalidades ldquolinguagem como trabalhordquo ldquolinguagem no trabalhordquo

e ldquolinguagem sobre o trabalhordquo

12 De acordo com esse autor essa reflexatildeo tem origem em LACOSTE M Paroles activiteacute situation In BOU-TET J Paroles ou travail Paris LrsquoHarmattan (1995)

62

Para Lacoste apud Nouroudine (2002) a elaboraccedilatildeo dessa triparticcedilatildeo ldquopermitiu reme-

diar confusotildees disseminadas separando como verbalizaccedilatildeo falas provocadas e exteriores agrave

situaccedilatildeo e como comunicaccedilatildeo falas que fazem parte da atividade de trabalhordquo (p 17) De

acordo com Nouroudine (2002 p 18) a distinccedilatildeo entre esses trecircs aspectos da linguagem a-

tende a uma opccedilatildeo metodoloacutegica que busca identificar os mecanismos de funcionamento da

relaccedilatildeo trabalholinguagem e ainda a um interesse epistemoloacutegico na medida em que pode-

ria evidenciar as ligaccedilotildees e as diferenccedilas desses mecanismos de funcionamento Neste senti-

do eacute importante salientar que de modo algum os diferentes aspectos da relaccedilatildeo traba-

lholinguagem satildeo estanques entre si e sim que existe uma estreita ligaccedilatildeo entre os trecircs as-

pectos da linguagem embora como afirma Nouroudine (2002) cada um deles possa aparen-

tar ainda problemas de ordem praacutetica e epistemoloacutegica bem distintos No que se refere agrave nos-

sa pesquisa a distinccedilatildeo entre as vaacuterias dimensotildees da relaccedilatildeo linguagem e trabalho pode lanccedilar

luzes sobre a explicitaccedilatildeo ou natildeo dos saberes taacutecitos pois nos facilita compreender as estra-

teacutegias que os trabalhadores mobilizam para viabilizar a comunicaccedilatildeo de saberes no trabalho

Essa triparticcedilatildeo considera que respectivamente haacute linguagens que fazem o trabalho que cir-

culam no trabalho e que interpretam o trabalho as quais seratildeo explicadas a seguir

A ldquolinguagem como trabalhordquo eacute dada a partir do momento em que a proacutepria linguagem

eacute mobilizada como uma atividade de trabalho (NOUROUDINE 2002) Nesta condiccedilatildeo de

acordo com esse autor a linguagem assume tambeacutem as complexas contradiccedilotildees que consti-

tuem o trabalho13 e uma das consequumlecircncias eacute a existecircncia de dois niacuteveis de linguagem ldquopor

um lado os gestos falas que o protagonista utiliza ao se dirigir a seus colegas envolvidos em

uma atividade executada coletivamente por outro lado as falas que o protagonista do traba-

13 De acordo NOUROUDINE (2002) parte das contradiccedilotildees do trabalho se devem ao seu caraacuteter multidimensio-nal composto de dimensatildeo econocircmica social cultural juriacutedica etc Para esse autor ldquoo caraacuteter multidimensional e total do trabalho eacute irredutiacutevel visto ser marca e o reflexo da natureza mesma do humano ao mesmo tempo sujeito social econocircmico juriacutedico etc Poreacutem o trabalho tambeacutem eacute complexo na medida em que integra propri-edades muacuteltiplas cada uma participando da formaccedilatildeo de uma significaccedilatildeo dinacircmica e variaacutevel nos campos social e histoacutericordquo (p 19)

63

lho dirige a si proacuteprio para acompanhar e orientar seus proacuteprios gestos no momento mesmo

em que trabalhardquo (NOUROUDINE 2002 p 20) Conforme esse pensador eacute ainda importan-

te apontar que a linguagem como trabalho natildeo eacute somente uma dimensatildeo dentre outras do

trabalho mas ela proacutepria se reveste de uma seacuterie de dimensotildees Neste sentido a ldquolinguagem

como trabalhordquo eacute econocircmica dado que a comunicaccedilatildeo em situaccedilatildeo de trabalho e durante a

atividade eacute utilizada como meio de gestatildeo do tempo de trabalho A linguagem eacute ainda dada

pela sua dimensatildeo social uma vez que a relaccedilatildeo entre o locutor e o interlocutor constitui-se

entre duas pessoas socialmente organizadas Dessa forma a interaccedilatildeo entre o locutor e o inter-

locutor torna a linguagem fundamentalmente social integrando ao mesmo tempo a coesatildeo e

o conflito Nas situaccedilotildees de trabalho em meio aos coletivos a linguagem permite em especi-

al travar e manter relaccedilotildees sociais entre parceiros E por fim a linguagem possui uma di-

mensatildeo eacutetica que eacute extensatildeo do seu caraacuteter social Eacute a partir desse viacutenculo com o mundo so-

cial que a linguagem como trabalho demanda uma eacutetica ldquoEacute enquanto dimensatildeo do trabalho

que se apresenta ela proacutepria sob a forma de uma seacuterie de dimensotildees que a linguagem eacute ativi-

dade atravessada pelos saberes pelos valores etcrdquo E por isso mesmo prossegue essa pensa-

dora ldquono exame das situaccedilotildees de trabalho natildeo se analisa a linguagem unicamente como dis-

curso preacute eou poacutes-experiecircncia mas sobretudo como parte da atividade em que constituintes

fisioloacutegicos cognitivos subjetivos e sociais se cruzam em um complexo que se torna ele proacute-

prio uma marca distintiva de uma experiecircncia especiacutefica em relaccedilatildeo a outrasrdquo (NOUROUDI-

NE 2002) Com efeito ao capturarmos a ldquolinguagem como trabalhordquo com afirma esse autor

natildeo como uma dimensatildeo a mais do trabalho mas ela proacutepria possuidora de outras dimensotildees

quais sejam econocircmica social e eacutetica eacute possiacutevel afirmar que a efetivaccedilatildeo de um saber na

praacutetica natildeo eacute dada apenas por questotildees teacutecnicas mas tambeacutem pelos aspectos econocircmicos

sociais subjetivos Daiacute que nos parece importante continuar explorando a ampliaccedilatildeo da rela-

64

ccedilatildeo entre trabalho e linguagem proposta pela tese da ldquotriparticcedilatildeordquo o que faremos a seguir com

a abordagem da ldquolinguagem no trabalhordquo

A ldquolinguagem no trabalhordquo eacute tomada a partir da consideraccedilatildeo de que existe ainda no

trabalho uma dimensatildeo da linguagem que mesmo posta como atividade natildeo participa dire-

tamente da atividade especiacutefica em que se concretiza uma intenccedilatildeo de trabalho Dessa forma

nem toda linguagem presente no trabalho pode ser considerada uma ldquolinguagem como traba-

lhordquo (NOUROUDINE 2002) Para esse autor o entendimento que permite distinguir a ldquolin-

guagem como trabalhordquo da ldquolinguagem no trabalhordquo daacute-se primeiramente pela distinccedilatildeo en-

tre a atividade de trabalho e a situaccedilatildeo de trabalho A primeira qual seja a atividade de traba-

lho eacute ldquoexpressa pelo autor eou coletivo dentro da atividade (de trabalho) em tempo e lugar

reaisrdquo Jaacute a segunda a situaccedilatildeo de trabalho ldquoseria antes uma das realidades constitutivas da

situaccedilatildeo de trabalho global na qual se desenrola a atividaderdquo (NOUROUDINE 2002)

Para Nouroudine (2002) ldquoos constituintes da situaccedilatildeo de trabalho podem ir do mais

proacuteximo ao mais distanciado da atividade nutrindo-se de dimensotildees social econocircmica juriacute-

dica artiacutestica etcrdquo No que se refere ao debate presente em nossa pesquisa a consideraccedilatildeo da

ldquosituaccedilatildeo de trabalhordquo sugere uma reflexatildeo mais ampla sobre a relaccedilatildeo trabalholinguagem e

natildeo um desprezo das possibilidades de entendimento que a apreensatildeo da atividade de trabalho

representa

Se eacute verdade que o ergonomista se interessa geralmente pelos determinantes proacute-ximos da atividade a fim de tentar compreender o trabalho e considerar os meios de sua transformaccedilatildeo outros determinantes mais distanciados histoacuterica social es-pacialmente tambeacutem satildeo componentes da situaccedilatildeo de trabalho (p 23)

A ldquoampliaccedilatildeordquo apresentada pela perspectiva da ldquosituaccedilatildeo de trabalhordquo desdobrou-se

em outras abordagens como por exemplo os trabalhos de Yves Schwartz e Alain Wisner

Para Nouroudine (2002) a antropotecnologia criada por Alain Wisner na esteira da ergono-

mia a fim de intervir nas questotildees de transferecircncia de tecnologias efetua um alongamento

65

ainda mais importante da situaccedilatildeo de trabalho Conforme afirma o proacuteprio Wisner apud Nou-

roudine (2002) ldquoEm antropotecnologia iremos mais longe na procura das origens das difi-

culdades encontradas e construiremos uma aacutervore das causas que natildeo se limitaraacute aos aspec-

tos teacutecnicos e organizacionais mais proacuteximos do posto de trabalhordquo (p 23) Uma outra pers-

pectiva a ergologia14 quando toma por objeto de pesquisa e de intervenccedilatildeo as atividades hu-

manas aborda por isso mesmo a situaccedilatildeo de trabalho dentro de uma dimensatildeo antropoloacutegica

em que determinantes mais proacuteximos da atividade se relacionam dialeticamente com os de-

terminantes mais distanciados (NOUROUDINE 2002) Em boa medida podemos afirmar

que a abordagem da ldquosituaccedilatildeo de trabalhordquo estaacute imbricada com uma certa subversatildeo epistemo-

loacutegica uma vez que este tipo de abordagem reconhece que a experiecircncia de trabalho eacute a en-

grenagem ldquomestrerdquo na produccedilatildeo de saberes taacutecitos15

A partir da trilha possibilitada pela ldquosituaccedilatildeo de trabalhordquo a linguagem no trabalho

pode ser entendida como uma linguagem que circula no trabalho podendo influenciar ou natildeo

a realizaccedilatildeo imediata de uma atividade Ao nosso olhar a possibilidade de distinguir uma

ldquolinguagem no trabalhordquo de uma ldquolinguagem como trabalhordquo traz como importante contribui-

ccedilatildeo uma leitura que busca conhecer e aproximar os protagonistas do trabalho em sua totalida-

de histoacuterica social e cultural Neste sentido a abordagem da linguagem no trabalho talvez

possa evitar ou diminuir a chance de que o saber taacutecito seja tido apenas no seu ato imediato

14 Neste sentido a ergologia nos fornece uma contribuiccedilatildeo com uma proposta de abordagem que agrave luz de um debate entre ciecircncia e cultura percebe que saberes formalizados pela ciecircncia e saberes oriundos da experiecircncia possuem cada qual seu niacutevel de cultura e incultura (SANTOS 2000 SCHWARTZ 2000 FAITA e SOUZA-E-SILVA 2002) 15 A possibilidade de ocorrer uma certa subversatildeo epistemoloacutegica ao nosso ver tem um deacutebito com as reflexotildees de SANTOS (2000) e SCHWARTZ (2000) Esses pensadores propotildeem que a experiecircncia de trabalho complexa que eacute seja tomada a partir de uma ldquosolidariedade entre uma ideacuteia forte de ciecircncia e uma ideacuteia forte de culturardquo (SANTOS 2000 p 121) SANTOS (2000) ao se referir a uma solidariedade entre uma ideacuteia forte de ciecircncia e uma ideacuteia forte de cultura fala de ldquocultura tomada em dois sentidos como eacuteter do pensamento elemento de formaccedilatildeo dos conceitos e das lsquohierarquias do saberrsquo e como lsquoaquilo que produz a humanidadersquo teria uma pro-pensatildeo agrave obstruir o elemento da experiecircncia Esta obstruccedilatildeo proveacutem de uma exigecircncia forte concernindo a cons-tituiccedilatildeo de um discurso cientiacuteficordquo (p 121)

66

como um truque ou um lance de uacuteltima hora16 pois ao recorrermos a ldquosituaccedilatildeo de trabalhordquo

criamos condiccedilotildees para que o saber taacutecito seja tomado como expressatildeo de um saber histoacuterico

e socialmente construiacutedo isto eacute ao longo da vida do seu protagonista contrapondo-se assim

ao que chamamos de olhar imediato sobre o trabalho A ldquolinguagem no trabalhordquo apresenta

ainda uma outra caracteriacutestica por ser uma linguagem que circula nas relaccedilotildees sociais do

coletivo de trabalho ela pode ser indiretamente fundamental para o desenvolvimento do pro-

cesso produtivo Nouroudine (2002) afirma que ldquofalar de futebol poderia revelar-se beneacutefico agrave

realizaccedilatildeo da atividade em curso com eficaacutecia e seguranccedilardquo (p 24)

A linguagem sobre o trabalho somada agraves jaacute apresentadas ldquolinguagem como trabalhordquo

e ldquolinguagem no trabalhordquo fecha a tese de ldquotriparticcedilatildeordquo da relaccedilatildeo trabalholinguagem A e-

xistecircncia de uma linguagem sobre o trabalho inscreve-se como uma modalidade de linguagem

que busca interpretar o trabalho Essa interpretaccedilatildeo satildeo falas sobre o trabalho que pode advir

tanto do interior quanto do exterior do coletivo de trabalho (NOUROUDINE 2002) Neste

sentido se foi dada relevacircncia agrave possibilidade de que a ldquolinguagem como trabalhordquo e a ldquolin-

guagem no trabalhordquo por expressarem uma historicidade possam reportar uma fala mais

ldquoproacuteximardquo do ponto de vista dos trabalhadores eacute igualmente importante considerar a possibi-

lidade de a ldquolinguagem sobre o trabalhordquo nos permitir ldquolocalizarrdquo o lugar de origem dessas

falas o que segundo Nouroudine (2002) daacute voz tanto aos que pesquisam o trabalho quanto

aos protagonistas do trabalho uma vez que

A linguagem sobre o trabalho natildeo seria portanto exclusividade do pesquisador visto que na atividade produtividade pode ser encontrada tambeacutem sem com isso ser confundida com as outras formas de linguagem Eacute sem duacutevida pertinente o questionamento acerca de ldquoquem falardquo ldquode onde eleela falardquo ldquoquando eleela falardquo para que se compreenda onde se situa o campo de validade e de pertinecircncia da ldquolinguagem sobre o trabalhordquo (p 25-26)

16 Ao nosso ver a ideacuteia de truque eacute um desdobramento do imbricamento entre a naturalizaccedilatildeo do saber taacutecito com um olhar excessivamente restrito sobre a accedilatildeo a atividade em que este saber taacutecito foi percebido uma vez que a experiecircncia ponto fundamental do saber taacutecito eacute tributaacuteria de vivecircncias Daiacute que buscar um rastro histoacuterico pode esclarecer melhor a questatildeo do saber taacutecito

67

O reconhecimento de que haacute uma linguagem que interpreta o trabalho uma linguagem

que faz o trabalho e outra que circula no trabalho mais do que ldquolocalizar as falasrdquo remete agrave

possibilidade de que os protagonistas do trabalho sejam tomados como capazes de interpretar

a sua proacutepria relaccedilatildeo com o trabalho Eacute nessa trilha qual seja uma abordagem que busca per-

ceber a histoacuteria dos protagonistas do trabalho e por isso mesmo a proacutepria pluralidade da rela-

ccedilatildeo trabalholinguagem que a tese da triparticcedilatildeo da relaccedilatildeo trabalholinguagem nos parece

mais fecunda especialmente no que concerne agrave legitimaccedilatildeo dos saberes taacutecitos dos protago-

nistas do trabalho pois ao trataacute-lo como um processo histoacuterico social e subjetivo acaba por

desnaturalizaacute-lo Todavia o simples reconhecimento de que possa haver entre os trabalhado-

res uma linguagem usada para interpretar o seu trabalho eacute insuficiente para representar um

equiliacutebrio no reconhecimento social poliacutetico econocircmico e epistemoloacutegico entre uma lingua-

gem de base cientiacutefica e outra oriunda da experiecircncia Para Nouroudine (2000) ldquo() os meacute-

todos usados pelas disciplinas que focalizam o trabalho como lsquoobjetorsquo de pesquisa e de inter-

venccedilatildeo para produzir uma lsquolinguagem sobre o trabalhorsquo natildeo satildeo desse ponto de vista neu-

trosrdquo (p 27) Outros pensadores como Sznelwar e Mascia (1997) ao discutirem a relaccedilatildeo

trabalholinguagem afirmam que existe um ldquodesequiliacutebrio comunicacional que joga em favor

da hierarquia em detrimento dos subordinados e do ponto de vista dos homens em detrimento

do das mulheresrdquo (p 224) Ainda sobre a possibilidade de a linguagem privilegiar um deter-

minado ponto de vista sobre o trabalho as reflexotildees de Schwartz (apud NOUROUDINE

2002) satildeo mais contundentes

Todo posicionamento de exteritorialiteacute17 (Y SCHWARTZ 1996) do pesquisador em relaccedilatildeo ao trabalho dos demais elimina de fato os protagonistas dos processos de produccedilatildeo de saber sobre suas atividades e ao mesmo tempo sua proacutepria ldquolin-guagem sobre o trabalhordquo acaba sendo desqualificada e neutralizada (p 27)

17 Exterritorialiteacute extraterritorialidade

68

A tese de triparticcedilatildeo da relaccedilatildeo trabalholinguagem ao buscar articular de forma am-

pliada as vaacuterias dimensotildees ldquolinguagem no trabalhordquo ldquolinguagem como trabalhordquo e a ldquolingua-

gem sobre o trabalhordquo nos permitiu elaborar algumas indagaccedilotildees sobre a explicitaccedilatildeo ou

natildeo do saber taacutecito e dentre as quais analisar um saber taacutecito exclusivamente na atividade

de trabalho natildeo seria um ldquoolharrdquo excessivamente imediato sobre o protagonista do trabalho E

neste caso um olhar imediato natildeo inviabilizaria o acesso do pesquisador agrave ldquolinguagem no

trabalhordquo dos seus protagonistas E ainda como o domiacutenio de uma linguagem no coletivo do

trabalho pode influenciar a produccedilatildeo a mobilizaccedilatildeo e a formalizaccedilatildeo de saberes taacutecitos por

parte dos trabalhadores

Se de uma maneira recorrente como demonstra a literatura analisada anteriormente

apresentamos como caracteriacutesticas centrais para se analisar o saber taacutecito aspectos como a

relaccedilatildeo entre a teoria e a praacutetica o uso instrumental ou natildeo deste saber e ainda a relaccedilatildeo

com a linguagem foi apontado tambeacutem que esses aspectos guardam uma complexa articula-

ccedilatildeo entre si (FRADE 2003 SCHON 2000 POLANY 1967 MALGLAIVE 1990 NOU-

ROUDINE 2002 SZNELWAR e MASCIA 1997) Em nosso entendimento essa articulaccedilatildeo

pode ser mais bem compreendida por meio da anaacutelise do uso do corpo pelo sujeito na produ-

ccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes

243 Corpo mente e o saber taacutecito

Eacute importante salientar que ao tomarmos a relaccedilatildeo entre o corpo e a mente como um

vieacutes de anaacutelise sobre o saber taacutecito natildeo buscamos de modo algum apontar a possibilidade de

que este saber seja determinado por atributos bioloacutegicas em detrimento dos aspectos sociais e

histoacutericos epistemoloacutegicos e subjetivos Neste sentido eacute importante salientar que comparti-

lhamos a posiccedilatildeo de Snelwar e Mascia (1997) quando esses apontam que o favorecimento dos

69

aspectos bioloacutegicos na discussatildeo do saber taacutecito poderia corroborar o engodo taylorista de que

eacute possiacutevel ldquoaleacutem da divisatildeo de tarefas na produccedilatildeo dividir uma pessoa em diferentes partes

fiacutesicafisioloacutegica mentalcognitiva e afetivapsiacutequica Cada uma destas partes poderia ser uti-

lizada em momentos determinados conforme necessidade de produccedilatildeordquo (p 210)18

Entretanto como jaacute foi dito anteriormente satildeo muitas as questotildees que tornam impor-

tante bem como necessaacuteria uma discussatildeo sobre o saber taacutecito pelo vieacutes da relaccedilatildeo entre o

corpo e a mente Como ponto de partida podemos considerar que o corpo eacute o meio baacutesico

sem o qual natildeo se realiza uma atividade fiacutesica ou mesmo mental De acordo com Polany

ldquotodas as nossas transaccedilotildees conscientes com o mundo envolvem o uso subsidiaacuterio do corpo E

o nosso corpo eacute o uacutenico agregado de coisas das quais noacutes estamos quase exclusivamente aten-

tos de tal maneira subsidiaacuterios19 Em favor da abordagem sobre os aspectos corporais haacute

ainda a possibilidade de que o corpo possa se estruturar como uma linguagem na medida em

que ele representa valores em um determinado coletivo20 A questatildeo do corpo pode ter mais

uma relevacircncia se considerarmos tambeacutem o termo incorporar como ldquodar uma forma corpoacute-

reardquo21 pois assim ao discutirmos os aspectos corporais poderiacuteamos como jaacute foi mencionado

cumprir um papel natildeo menos importante de dar um corpo com todos os seus significados

culturais histoacutericos e subjetivos aos trabalhadores sujeitos nesta pesquisa

18 Para esses pensadores ldquoEssa excrescecircncia conceitual sobre o que seria um ser humano pode ser considerada na medida em que se procurou implantaacute-la nas induacutestrias e mais recentemente no setor de serviccedilos como res-ponsaacutevel pelo sofrimento de uma enorme quantidade de pessoas no seu ambiente de trabalho Este sofrimento se expressa atraveacutes dos mais variados tipos de doenccedilas e tambeacutem na deterioraccedilatildeo das relaccedilotildees humanas no trabalho Esta deterioraccedilatildeo natildeo se limita ao trabalho atinge tambeacutem a vida social e familiarrdquo (SNELWAR e MASCIA 1997 p 210) 19 httpwwwmwsceduorgspolanymp-body-and-mindhtm 20 Embora natildeo seja um objeto de anaacutelise nesta pesquisa consideramos com base em nossa experiecircncia em chatildeo de faacutebrica que entre os trabalhadores circula uma linguagem expressa pelo corpo tais como cicatrizes muacutesculos Haacute que se dizer ainda conforme nos foi confidenciado por alguns trabalhadores sujeitos da nossa pesquisa que este aspecto nos auxiliou enquanto pesquisador uma vez que por sermos portadores de algumas dessas marcas fomos identificados como uma pessoa proacutexima aos trabalhadores 21 De acordo com o dicionaacuterio Ferreira (1986 p 934) [Do lat Incorporare] v t d 1 ndash Dar uma forma corpoacute-rea

70

Uma vez mais cabe ressaltar a contribuiccedilatildeo de Polany em nossa abordagem sobre o

saber taacutecito atraveacutes das suas reflexotildees sobre a relaccedilatildeo entre o corpo22 e a mente23 apresenta-

das nos textos ldquoCorpo e menterdquo24 e os ldquodois tipos de consciecircnciardquo25 Ainda sobre a possibi-

lidade de analisar o saber taacutecito levando em consideraccedilatildeo a questatildeo do corpo uma outra refe-

recircncia nos foi oferecida pelas reflexotildees de Damaacutesio (1994 2000) sobre as bases neurais do

conhecimento ou como ele proacuteprio diz ldquoneurobiologia da racionalidaderdquo26

Embora ao analisarmos alguns aspectos corporais recorramos agraves reflexotildees de Damaacutesio

(1994) eacute importante salientar que tomamos o corpo como uma noccedilatildeo para aleacutem dos aspectos

bioloacutegicos o que nos leva a contrapor uma outra ideacuteia agrave noccedilatildeo de corpo explicitada pelo au-

tor ldquoSempre que me refiro ao corpo tenho em mente o organismo menos o tecido nervoso (os

componentes central e perifeacuterico do sistema nervoso) embora num sentido convencional o

ceacuterebro tambeacutem faccedila parte do corpordquo (p 112) Parece-nos mais coerente tomar o corpo como

uma construccedilatildeo sociocultural portanto histoacuterica como propotildee Daolio (1995) De acordo com

esse autor ldquono corpo estatildeo inscritos todas as regras todas as normas e todos os valores de

uma sociedade especiacutefica por ser ele o meio de contato primaacuterio do indiviacuteduo com o ambien-

te que o cercardquo (p 39)

No que se refere aos aspectos corporais da mesma forma que o fez em The tacit di-

mension Polany discute tanto ao longo do texto ldquoCorpo e menterdquo quanto em ldquoOs dois tipos

de consciecircnciardquo a ideacuteia de ldquoconhecimento taacutecitordquo em sua dimensatildeo instrumental de realizar

tarefas bem como pelo niacutevel de compreensatildeo que uma pessoa possa ter sobre o processo que

construiu os saberes necessaacuterios para a realizaccedilatildeo de uma determinada atividade Ao avanccedilar

22 De acordo com Ferreira (1986 p 482) [Do lat Corpus Corporis] s m 1 ndash Parte central ou principal de um edifiacutecio 2 ndash Substacircncia fiacutesica ou estrutura de cada homem ou animal 23 De acordo com Ferreira (1986 p 1119) [Do lat Mente] s f 1 ndash Intelecto pensamento entendimento alma espiacuterito 2 ndash Concepccedilatildeo imaginaccedilatildeo a mente feacutertil do artista 3 ndash Intenccedilatildeo intuito desiacutegnio disposiccedilatildeo 24 httpwwwmwsceduorgspolanymp-body-and-mindhtm 25 httpwwwmwsceduorgspolanymp-STRUCTUREhtm 26 A discussatildeo que DAMAacuteSIO (1994 2000) faz sobre corpo ceacuterebro mente e a consciecircncia extrapola dados os objetivos deste trabalho as ideacuteias apresentadas neste texto Limitar-nos-emos a tomar a contribuiccedilatildeo desse autor no que se refere agrave apresentaccedilatildeo de elementos que nos ajudem a apreender a dimensatildeo do corpo dentro do debate sobre o saber em face da distinccedilatildeo entre mente e ceacuterebro

71

por essa trilha Polany aponta dois termos no saber taacutecito o conhecimento subsidiaacuterio aquele

que auxilia na realizaccedilatildeo de uma tarefa e o conhecimento apreendido aquele que se adquire

apoacutes o domiacutenio conceitual de todo o processo de realizaccedilatildeo de uma determinada tarefa Eacute com

essa perspectiva que Polany27 aborda a relaccedilatildeo entre o corpo e a mente no processo de cons-

truccedilatildeo do conhecimento taacutecito

Polany busca explicar a relaccedilatildeo entre o corpo e a mente na construccedilatildeo do conhecimen-

to taacutecito usando como exemplo a capacidade humana de selecionar ou reconhecer determina-

dos objetos a partir do uso da visatildeo Segundo esse pensador a observaccedilatildeo de uma determina-

da imagem objetivamente captada pelos olhos pode estar condicionada por um conjunto de

fenocircmenos pouco mensuraacuteveis tais como quantidade de luzes que entram pelos olhos e tem-

peratura ambiente que acabam se convertendo em variaacuteveis taacutecitas e marginais O domiacutenio

sobre o impacto que essas variaacuteveis taacutecitas podem ter sobre um determinado objeto eacute funda-

mental para possibilitar ao homem a captaccedilatildeo de imagem mais completa desse objeto Neste

sentido essas variaacuteveis funcionam como pistas que podem com menor ou maior intensidade

compor um conhecimento taacutecito De acordo com Polany28 na medida em que o domiacutenio des-

sas variaacuteveis forma o conhecimento taacutecito elas acabam se tornando uma extensatildeo do corpo

humano pois ampliam as possibilidades de uso da visatildeo Dessa forma por exemplo a tradu-

ccedilatildeo da imagem eacute feita por um certo saber mobilizar o uso do corpo ou saber que aciona um

processo mental que seleciona e articula os sentidos que passam pelo corpo no caso da visatildeo

em boa parte pelos olhos A dimensatildeo que um certo saber mobilizar o uso do corpo representa

nas accedilotildees humanas pode ser avaliada pela forma como esse autor percebe a interaccedilatildeo do ho-

mem com o seu meio Vejamos a reflexatildeo de Polany

Eu direi que noacutes observamos objetos externos sendo subsidiaacuterios atentos do im-pacto que eles fazem em nosso corpo e das respostas que nosso corpo oferece a ele

27 httpwwwmwsceduorgspolanymp-body-and-mindhtm 28 httpwwwmwsceduorgspolanymp-body-and-mindhtm

72

Todas as nossas accedilotildees conscientes com o mundo envolvem nosso uso subsidiaacuterio do nosso corpo Esse eacute o ponto pelo qual o nosso corpo eacute relacionado agrave nossa men-te29

Ao abordar a relaccedilatildeo entre o corpo e a mente as reflexotildees de Polany natildeo soacute nos permi-

tem o entendimento de que um determinado saber mobilizar o uso do corpo eacute parte fundamen-

tal do saber taacutecito bem como explicam nossa dificuldade de reconhecer uma atividade de uso

do corpo se eacute que existe alguma que natildeo dependa desse equipamento como sendo uma accedilatildeo

consciente Polany explica essa dificuldade em percebermos o uso do corpo como algo cons-

ciente a partir de uma argumentaccedilatildeo semelhante agrave que ele utilizou para tentar explicar o pro-

cesso de mudanccedilas de foco quando se busca compreender o uso instrumental de um determi-

nado saber taacutecito De acordo com esse autor ocorre o mesmo quando buscamos compreender

o uso do corpo ou seja se focalizarmos o uso do corpo perderemos de vista o objetivo pelo

qual ele foi mobilizado A perspectiva de Polany parece apontar para uma escolha ou se per-

cebe o que se faz por meio do corpo ou se compreende como o corpo o faz ldquoO fato que qual-

quer elemento subsidiaacuterio perde seu significado quando noacutes enfocamos nossa atenccedilatildeo nisto

explica o fato que quando examinando o corpo em accedilatildeo consciente noacutes natildeo conhecemos

nenhum rastro de consciecircncia em seu organismordquo30

Se de um lado eacute possiacutevel o entendimento de que o saber taacutecito se caracteriza tam-

beacutem por meio da relaccedilatildeo do corpo com a mente por outro lado em que medida esse certo

saber mobilizar o uso do corpo pode expressar um niacutevel de racionalidade E ainda eacute possiacutevel

compreender o processo de aquisiccedilatildeo de um saber mobilizar o uso do corpo

Por uma perspectiva inicial pode-se dizer que o domiacutenio sobre o corpo isto eacute sobre os

sentidos corporais natildeo ocorre com facilidade (POLANY 1967 FRADE 2003) No que se

refere ao saber taacutecito a necessidade de haver um esforccedilo de mobilizaccedilatildeo de saberes para do-

minar ou regular a relaccedilatildeo entre o corpo e a mente pode ser dada tanto para realizar uma ati- 29 httpwwwmwsceduorgspolanymp-STRUCTURE htm 30 httpwwwmwsceduorgspolanymp-STRUCTUREhtm

73

vidade quanto para a comunicaccedilatildeo de um saber taacutecito entre dois ou mais sujeitos Neste sen-

tido se um certo saber mobilizar o corpo viabiliza o uso de um saber taacutecito para realizaccedilatildeo de

uma determinada atividade bem como a comunicaccedilatildeo deste saber entre seus protagonistas

perguntamos em que medida um saber taacutecito eacute viabilizado por uma reflexatildeo sobre o uso do

corpo

Para alguns autores a construccedilatildeo do saber taacutecito ao depender de uma certa reflexatildeo

acaba por demandar um enorme esforccedilo de abstraccedilatildeo (POLANY 1967 SCHON 2000

MALGLAIVE 1999) Em Polany31 encontramos um termo que nos parece mais adequado

Trata-se de uma formulaccedilatildeo que esse autor apresenta como ldquoesforccedilo de imaginaccedilatildeordquo que se-

gundo ele estaacute presente em qualquer situaccedilatildeo de aprendizagem Segundo Polany quando es-

tamos ensinando alguma coisa a algueacutem noacutes confiamos no esforccedilo intelectual desse algueacutem

em reconhecer o que estamos ldquocarregandordquo como objeto de ensino como por exemplo a ten-

tativa de se ensinar a identificar qualidades sensoriais como a pulsaccedilatildeo sanguumliacutenea Ao avan-

ccedilar sobre essa discussatildeo no texto Corpo e Mente Polany tenta esclarecer o que ele chama de

esforccedilo de imaginaccedilatildeo da seguinte forma

Ainda haacute outra conexatildeo na qual noacutes temos que confiar no esforccedilo de imaginaccedilatildeo para ensinar e aprender Um exemplo eacute o estudo de anatomia topograacutefica vocecirc po-de ver vaacuterias fases da dissecaccedilatildeo de fotos ou quadros mas vocecirc tem que reconstru-ir pelo esforccedilo da imaginaccedilatildeo como o organismo com seus vaacuterios elementos fun-ciona (na decomposiccedilatildeo) de forma que vocecirc saiba como ocorre tudo ()32

De acordo com Frade (2003) ldquoem Polany qualquer ato de conhecer envolve um com-

prometimento pessoal uma contribuiccedilatildeo apaixonada do sujeito que eacute um componente vital do

conhecimento e natildeo meras imperfeiccedilotildees desse conhecimentordquo (p 10) Quando afirma que a

comunicaccedilatildeo do saber taacutecito exige das pessoas envolvidas o uso de seus saberes taacutecitos para

viabilizar a comunicaccedilatildeo segundo Frade (2003) eacute possiacutevel encontrar em Polany um apelo agrave

31 httpwwwmwsceduorgspolanymp-body-and-mindhtm 32 Ibidem

74

ideacuteia de esforccedilo ainda que essa autora natildeo fale em ldquoesforccedilo de imaginaccedilatildeordquo Para explicar

como Polany aborda a possibilidade de comunicaccedilatildeo do saber taacutecito Frade (2003) afirma que

esse pensador usa a seguinte metaacutefora quando a primeira pessoa precisa ocupar ou deixar-se

ocupar pela mente da segunda pessoa acompanhar os movimentos dessa mente para que pos-

sa descobrir seu conhecimento taacutecito ldquoconhecemos a mente de um jogador de xadrez ocupan-

do-nos dos estratagemas de seus jogos e conhecemos a dor de outra pessoa ocupando-nos de

sua face distorcida pelo sofrimentordquo (p 21)

O que Polany chama de esforccedilo de imaginaccedilatildeo apresenta-se em nosso entendimento

como uma trama essencial no processo de construccedilatildeo do saber taacutecito Neste sentido em que

medida o esforccedilo de imaginaccedilatildeo poderia manter interface com o saber usar o corpo E ainda

poderia o ldquoesforccedilo de imaginaccedilatildeordquo contribuir a superaccedilatildeo de uma suposta insuficiecircncia da

linguagem em explicitar o saber taacutecito A partir dessas indagaccedilotildees e das que foram desenvol-

vidas ao longo deste capiacutetulo entendemos ser necessaacuterio tentar percebecirc-las agrave luz de nossas

hipoacuteteses o que buscaremos fazer a seguir em nossos comentaacuterios

244 Comentaacuterios sobre as estrateacutegias taacutecitas

Se de um lado foi possiacutevel evidenciar que o saber taacutecito eacute marcado por uma validade

e pertinecircncia no que se refere agrave realizaccedilatildeo de uma determinada atividade por outro lado eacute

possiacutevel afirmar tambeacutem que o fato de este saber ser tido como taacutecito favorece em muito

para que haja duacutevidas em relaccedilatildeo a sua relevacircncia epistemoloacutegica Todavia entendemos ain-

da que os debates sobre o saber taacutecito natildeo evidenciaram todas as possibilidades de formaliza-

ccedilatildeo deste tipo de saber e tampouco desvelaram em que medida ele pode ser tido realmente

como taacutecito

Neste sentido elaboramos uma hipoacutetese na qual consideramos que o uso do saber taacute-

cito ocorra mediante o uso de estrateacutegias tambeacutem taacutecitas de produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e forma-

75

lizaccedilatildeo de saberes Consideramos ainda hipoteticamente que estas estrateacutegias taacutecitas poderi-

am se desenvolver em um esquema de retroalimentaccedilatildeo ciacuteclica isso quer dizer que o uso de

estrateacutegias taacutecitas para produzir saberes eacute dependente de estrateacutegias taacutecitas de mobilizaccedilatildeo de

saberes que por sua vez dependeriam do acionamento de estrateacutegias taacutecitas para formalizar

os saberes a serem mobilizados ou seja todas as estrateacutegias taacutecitas se realimentam constan-

temente Por esta trilha as estrateacutegias taacutecitas para produzir mobilizar e formalizar soacute encon-

tram um sentido uma perante a outra

Essas estrateacutegias taacutecitas aleacutem de garantir a validade e pertinecircncia do saber taacutecito so-

bretudo para quem as realizam uma vez que por meio delas entrariam em marcha os saberes

que monitoram a realizaccedilatildeo de uma determinada atividade poderiam tambeacutem funcionar co-

mo um mecanismo de ldquofiltragemrdquo que permitiria ao sujeito selecionar os saberes a serem mo-

bilizados para realizar uma tarefa Essa hipoacutetese encontra respaldo em Malglaive (1990) com

a expressatildeo ldquosaber em usordquo que designa um determinado conjunto de saberes que regem uma

accedilatildeo De acordo com esse autor

O conjunto destes saberes forma uma totalidade complexa e moacutevel operatoacuteria quer dizer ajustada agrave acccedilatildeo e agraves suas diferentes ocorrecircncias uma totalidade substi-tutiva no seio da qual os diversos tipos de saber se substituem uns aos outros agrave mercecirc das modalidades sucessivas da actividade uma totalidade que eventualmente se deforma sem todavia modificar a sua arquitetura mas alterando por vezes o modo e a qualidade dos seus constituinte (p 87)

Em que pese a possibilidade de um determinado grupo social criar e consagrar deter-

minadas estrateacutegias que mobilizam um tipo de regulagem entre o corpo e a mente a hipoacutetese

de haver um esquema de retroalimentaccedilatildeo entre as estrateacutegias ldquotaacutecitasrdquo por parte daqueles que

fazem uso de saberes taacutecitos nos remete ainda a uma uacuteltima pergunta o sujeito que faz uso

do saber taacutecito poderia criar e recriar uma regulagem na relaccedilatildeo entre o seu corpo e a sua

mente Se o saber possui uma dimensatildeo individual e subjetiva a singularidade do sujeito po-

deria estar na forma de como ele regula a relaccedilatildeo entre o seu corpo e a sua mente E ainda a

76

partir dessa regulagem o sujeito criaria formas natildeo soacute de produzir mobilizar e formalizar

saberes mas tambeacutem de expressaacute-los

A ideacuteia de que possa haver estrateacutegias de regulaccedilatildeo entre o corpo e a mente para a a-

preensatildeo da realidade eacute de certa forma sugerida por Damaacutesio (1994)

() A escolha de uma decisatildeo quanto a um problema pessoal tiacutepico colocado em ambiente social que eacute complexo e cujo resultado final eacute incerto requer tanto o am-plo conhecimento de generalidades como estrateacutegias de raciociacutenio que operem so-bre esse conhecimento () Mas como as decisotildees pessoais e sociais se encontram inextricavelmente ligadas agrave sobrevivecircncia esse conhecimento inclui tambeacutem fatos e mecanismos relacionados com a regulaccedilatildeo do organismo como um todo (p 109)

Todavia se foi importante apresentar a nossa hipoacutetese mais refinada qual seja a ideacuteia

de que o sujeito que faz uso do saber taacutecito o faccedila mediante o uso de estrateacutegias taacutecitas de

produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes eacute igualmente importante lembrar que a

construccedilatildeo dessa hipoacutetese tem deacutebito com situaccedilotildees concretas do chatildeo de faacutebrica que corrobo-

ram a possibilidade de que haja saberes produzidos mobilizados e formalizados a partir de

uma racionalidade distinta da formalidade cientiacutefica33

Neste sentido acreditamos que a atividade de trabalho se constitua como um excep-

cional campo para se analisar o saber taacutecito dado que as contradiccedilotildees presentes neste espaccedilo

satildeo marcadas por um apelo agrave inteligecircncia operaacuteria que de um lado eacute um alvo cada vez maior

dos interesses do capital e que por outro lado como afirma a literatura especializada os tra-

balhadores nunca ficaram sem produzir saberes e tampouco deixaram de imprimir o seu inte-

resse no trabalho (EVANGELISTA 2001 SANTOS 1997 ARANHA 1997)

33 Essa possibilidade eacute apresentada por diversos pesquisadores (SANTOS 1997 ARANHA 1997 e SALERNO 1994)

77

3 A FERRAMENTARIA E AS ATIVIDADES INDUSTRIAIS

O trabalho de ferramentaria se insere em diversas atividades industriais como por e-

xemplo a induacutestria alimentiacutecia farmacecircutica automobiliacutestica e eletro-eletrocircnica Nesta pes-

quisa seraacute abordada a ferramentaria de autopeccedilas portanto aquela que se vincula ao setor

automotivo No que se refere agrave inserccedilatildeo da ferramentaria no ramo autopeccedilas haacute que se dizer

que o crescimento nas vendas de automoacuteveis de passeio no seacuteculo XX eacute apontado como um

dos eventos responsaacuteveis pela expansatildeo desta atividade Ainda hoje ela responde por boa

parte dos componentes automotivos dado que dentre outras caracteriacutesticas o emprego deste

processo de fabricaccedilatildeo eacute apropriado para as grandes seacuteries de peccedilas ou seja a produccedilatildeo em

larga escala (NAVARRO 1954 SENAI 1998) No caso brasileiro podemos apontar que o

impulso da ferramentaria se vincula agrave induacutestria automotiva dada principalmente pela poliacutetica

de nacionalizaccedilatildeo das peccedilas a partir de meados da deacutecada de 1950 (GATTAacuteS 1981) Em Mi-

nas Gerais eacute tambeacutem a chegada de uma montadora que vai impulsionar a atividade de ferra-

mentaria como recordou um dos ferramenteiros com quem conversamos ldquono inicio da deacutecada

de 1970 tinha muito pouco serviccedilo de ferramentaria aqui em Minas depois veio a Fiat e a

Ferramentaria evolui aquirdquo Um outro ferramenteiro disse que ldquoQuando saiacute do Senai e fui

parar na Fiat eu era um ajustador mecacircnico laacute na Fiat eles perguntaram quem queria ir para a

ferramentaria No iniacutecio eu natildeo queria eu natildeo sabia o que era aquilo aiacute um cara laacute me falou

pode ir que esse negoacutecio eacute bom o ferramenteiro ganha mais do que qualquer peatildeordquo

78

31 A ESCOLHA DO SETOR AUTOMOTIVO E ESPECIFICAMENTE DO SETOR DE AUTOPECcedilAS

A importacircncia da induacutestria automotiva na sociedade contemporacircnea pode ser justifica-

da por uma seacuterie de fatores Eacute um setor onde prevalecem equipamentos de base microeletrocircni-

ca que tem adotado as mais modernas tecnologias de gestatildeo e representa um certo pioneiris-

mo comumente seguido por outros setores industriais Eacute o setor em que tecircm ocorrido os maio-

res esforccedilos em prol da modernizaccedilatildeo da produccedilatildeo (ARBIX e ZILBOVICIUS 1997 POS-

THUMA 1997 WOMACK 1992)

A escolha do setor automotiv4o como foco da nossa pesquisa reflete natildeo soacute a impor-

tacircncia de sua dimensatildeo produtiva mas tambeacutem a sua capacidade de definir comportamentos

Satildeo muitos os pensadores que destacam o papel que este seguimento representa na sociedade

contemporacircnea Segundo Womack (1992)

() a induacutestria automobiliacutestica continua sendo a maior atividade industrial () No entanto a induacutestria automobiliacutestica eacute ainda mais importante para noacutes do que pare-ce Duas vezes neste seacuteculo ela alterou nossas noccedilotildees mais fundamentais de como produzir bens E a maneira como os produzimos determina natildeo somente como tra-balhamos mas como pensamos o que compramos e como vivemos (p 1)

No que se refere ao caso brasileiro tambeacutem satildeo muitas as facetas quais sejam a eco-

nocircmica e poliacutetica que fazem a induacutestria automotiva figurar com acentuado destaque social

Arbix e Zilbovicius (1997) reforccedilam a importacircncia deste setor quando afirmam que o auto-

moacutevel jaacute foi tudo na Histoacuteria do Brasil

Nos anos 50 era o motor do progresso nacional E a sua produccedilatildeo em terras brasi-leiras uma espeacutecie de passaporte para a modernidade No poacutes-guerra poucas fo-ram as visotildees de desenvolvimento que prescindiram da induacutestria de autoveiacuteculos () Frequumlentou os sonhos de ricos e pobres de governantes e governados Foi si-nocircnimo de progresso Sua locomotiva E literalmente o carro-chefe da naccedilatildeo () O surpreendente eacute que quarenta anos depois apesar de todas as metamorfoses de economia brasileira e mundial neste final de seacuteculo a induacutestria de autoveiacuteculos continua destilando seus encantos (p 7-8)

79

Na realidade natildeo se pode falar em induacutestria mundial sem deixar legitimado o papel do

setor automotivo e isso eacute bem visiacutevel no Brasil Crescendo a taxas de 20 ao ano foi tambeacutem

o setor que conduziu o chamado ldquomilagre brasileirordquo que ocorreu de 1968 a 1973 (SHAPIRO

1997 p 65)

311 As autopeccedilas

Na trilha do setor automotivo a induacutestria de autopeccedilas inscreve-se como um ramo

com significativa influecircncia na economia brasileira e ainda como um poacutelo gerador de tecno-

logia e de uma forccedila de trabalho relativamente numerosa e extremamente qualificada De a-

cordo com o Sindipeccedilas (2003)1 este setor obteve um faturamento de 10920000 bilhotildees de

reais em 2002 o que corresponde aproximadamente a 24 do PIB nacional e empregando

diretamente cerca de 168000 trabalhadores

Eacute importante ressaltar o fato de as empresas de autopeccedilas estarem sempre acompa-

nhando os avanccedilos da induacutestria automobiliacutestica tendo com isso que fazer contiacutenuos investi-

mentos em atualizaccedilatildeo tecnologias e novos processos assim como em alguns casos fazer

alianccedilas com empresas estrangeiras Enfim precisam seguir e antecipar todos os esforccedilos das

montadoras O desenvolvimento da induacutestria de autopeccedilas no Brasil embora remonte ao iniacute-

cio do seacuteculo XX ganha impulso com a vinda e o posterior crescimento da induacutestria auto-

motiva a partir da deacutecada de 1950 Segundo boa parte dos pesquisadores o alavancamento da

induacutestria automotiva no Brasil em meados da deacutecada de 1950 contaraacute com o apoio de accedilotildees

do governo como a proposta de restringir as importaccedilotildees de veiacuteculos e componentes automo-

tivos e a de incentivar financeiramente a produccedilatildeo de veiacuteculos que contivessem de 90 a 95

de peccedilas produzidas no Brasil o que foi mais relevante apoacutes 1956 com a posse do presidente 1 Ver hiperlink hppwwwsindipeccedilasorgBr Sindicato das empresas de autopeccedilas

80

Juscelino Kubitschek e sua poliacutetica dos ldquocinquumlenta anos em cincordquo Surgem o CDI ndash Conselho

de Desenvolvimento Industrial e a Geia ndash Grupo Executivo para a Induacutestria Automotiva ndash que

propunham estimular os investimentos no paiacutes e tomar as decisotildees para o desenvolvimento do

setor criando uma sequumlecircncia desenvolvimentista que soacute veio conhecer crise no periacuteodo de

1963 a 1968 (POSTHUMA 1997 SHAPIRO 1997) O Geia chegou inclusive a estabelecer

um cronograma sobre a nacionalizaccedilatildeo da induacutestria automobiliacutestica conforme aponta Gattaacutes

(1981)

Tabela 1 Cronograma do Geia para nacionalizaccedilatildeo da induacutes-tria automobiliacutestica no Brasil

Prazos limites Caminhotildees Jipes Caminhotildees leves 31121956 35 50 40 01071957 40 60 50 01071958 65 75 65 01071959 75 85 75 01071960 90 95 90

Fonte GATTAacuteS (1981)

A partir da deacutecada de 1970 ainda que possa parecer paradoxal as empresas de auto-

peccedilas ao mesmo tempo em que se estruturaram para atender as determinaccedilotildees das montadoras

passaram tambeacutem a influenciar a gestatildeo do trabalho nas montadoras De acordo com Addis

(1997)

Ao contraacuterio das consideraccedilotildees predominantes sobre a induacutestria brasileira as em-presas de autopeccedilas foram na realidade a forccedila motriz para a consolidaccedilatildeo e o de-senvolvimento do setor automotivo () Na implantaccedilatildeo da induacutestria mas tambeacutem durante os anos 80 quando algumas empresas fornecedoras formaram carteacuteis as tendecircncias das induacutestrias foram em grande parte determinadas pelas firmas de au-topeccedilas Em outras palavras a produccedilatildeo de veiacuteculos no Brasil acabou gerando ca-deias de desenvolvimento e a sua natureza foi profundamente condicionada pelas empresas de autopeccedilas Por volta de 1951 algumas empresas de autopeccedilas perten-centes em sua maioria a imigrantes decidiram criar uma associaccedilatildeo industrial Um ano depois esta associaccedilatildeo transformar-se-ia no Sindicato Nacional da Induacutestria de peccedilas para Veiacuteculos Automotivos ndash Sindipeccedilas (p 134)

81

312 Relaccedilatildeo entre fornecedores de autopeccedilas e montadoras

A relaccedilatildeo entre as empresas de autopeccedilas e as montadoras tem apresentado uma gran-

de correspondecircncia com a transformaccedilatildeo na organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho Em outras pa-

lavras a produccedilatildeo de veiacuteculos no Brasil acabou gerando cadeias de desenvolvimento e a sua

natureza foi profundamente condicionada pelas empresas de autopeccedilas Neste sentido a capa-

cidade das autopeccedilas em absorver e assimilar as mudanccedilas na organizaccedilatildeo e gestatildeo do traba-

lho vem sendo fundamental para a adoccedilatildeo do padratildeo flexiacutevel e integrado conduzido pelas

montadoras notoriamente a partir da deacutecada de 1990

De acordo com Salerno num primeiro momento os fornecedores foram instados a fa-

zer entregas mais frequumlentes e em lotes menores numa tentativa de aproximaccedilatildeo de um just in

time Depois foram chamados a colaborar nos projetos de produto Daiacute foi um pulo passar ao

fornecimento de Subconjuntos ao inveacutes do fornecimento de uma seacuterie de peccedilas separadas que

seriam montadas pela montadora final Por um lado uma tentativa de reduccedilatildeo de custos da-

das as condiccedilotildees de trabalho e de salaacuterio em geral relativamente piores nas autopeccedilas por

outro lado uma tentativa de reduzir investimentos necessaacuterios das montadoras pois parte do

ferramental dispositivos equipamentos destinados agrave montagem satildeo agora de responsabilidade

do fornecedor ainda uma economia de espaccedilo fiacutesico e uma simplificaccedilatildeo da gestatildeo interna da

produccedilatildeo (SALERNO 1997 p 509)

Nos uacuteltimos anos outras mudanccedilas contribuiacuteram para o aumento da importacircncia do

setor de autopeccedilas dentro da produccedilatildeo industrial Posthuma (1997) afirma que

cada vez mais apenas os liacutederes mundiais de autopeccedilas tecircm os recursos tecnoloacutegi-cos e financeiros para atender as demandas para se tornarem fornecedores de pri-meira linha Essa tendecircncia favorece a consolidaccedilatildeo do setor de peccedilas que tradi-cionalmente sempre foi uma induacutestria pulverizada Nesse sentido a induacutestria de au-topeccedilas estaacute comeccedilando a assemelhar-se agrave induacutestria de montagem tornando-se uma induacutestria globalizada composta de grandes companhias transnacionais (p 400)

82

Em relaccedilatildeo agrave induacutestria brasileira o setor de autopeccedilas passou a viver uma situaccedilatildeo de

turbulecircncia que transformou a estrutura do setor A partir da liberaccedilatildeo comercial da vinda de

novas montadoras e de um novo surto de investimentos a induacutestria de autopeccedilas estaacute passan-

do por um processo de concentraccedilatildeo envolvendo a extinccedilatildeo de parcelas significativas de seus

integrantes E das suas cinzas estaacute surgindo hoje uma nova induacutestria de autopeccedilas compostas

basicamente por empresas de maior porte e capital estrangeiro (Posthuma 1997 p 390)

Essa autora afirma ainda que ao fornecer para os mercados de maior demanda tanto

no Brasil como no exterior estas empresas foram levadas a atualizar a qualidade e o design de

seus produtos e meacutetodos de produccedilatildeo procurando acompanhar os padrotildees internacionais

Dessa forma um grupo intermediaacuterio de firmas credenciou-se para as disputas em uma eco-

nomia aberta que estaacute sempre exigindo a melhoria dos meacutetodos de fabricaccedilatildeo de tecnologia e

de design (POSTHUMA 1997 p 392)

32 A FERRAMENTARIA

A escolha da aacuterea de ferramentaria como campo desta investigaccedilatildeo se justifica por as-

pectos que a colocam como um dos setores mais complexos da atividade industrial tanto pe-

las suas caracteriacutesticas teacutecnicas quanto pela sua dimensatildeo econocircmica e social Dentre as pe-

culiaridades da ferramentaria poderiacuteamos iniciar pela consideraccedilatildeo de que muito embora este

trabalho esteja vinculado ao campo da metalomecacircnica a ferramentaria subsidia tecnologica-

mente a concretizaccedilatildeo de projetos em quase todos os setores produtivos Eacute a partir das possi-

bilidades de construccedilatildeo da ferramentaria que satildeo definidos por exemplo o tamanho e a forma

geomeacutetrica de computadores oacuteculos remeacutedios lacircmpadas canetas talheres telefones carros

instrumentos ciruacutergicos componentes eletrocircnicos e uma seacuterie de outros produtos

83

A teacutecnica de ferramentaria permite a produccedilatildeo de peccedilas que possuem uma geometria

que combina vaacuterias formas Neste sentido uma questatildeo relevante em relaccedilatildeo agrave teacutecnica de fer-

ramentaria remete ao apelo comercial sobre a esteacutetica dos produtos No caso do automoacutevel

por exemplo eacute notoacuterio que um dos grandes chamativos das propagandas se dirige ao design

dos carros

Uma outra grande relevacircncia da aacuterea de ferramentaria para esta pesquisa se refere agrave

particularidade das relaccedilotildees de trabalho dentro deste setor e sobretudo a forma paradoxal de

como os saberes articulados agrave mecacircnica de precisatildeo2 portadores de tecnologia de ponta como

o CAD CAM e CNC3 parecem prescindir em muito de saberes produzidos mobilizados e

formalizados a partir de uma racionalidade natildeo-cientiacutefica caracterizada por intervenccedilotildees

ldquomanuaisrdquo dos ferramenteiros muitas vezes tidas como artesanais

A ferramentaria tradicionalmente figura como um setor diferenciado dentro da induacutes-

tria metaluacutergica cujo ldquonomerdquo exerce uma forte influecircncia no imaginaacuterio dos trabalhadores

metaluacutergicos4 bem como das proacuteprias chefias que fazem referecircncia agrave forte coesatildeo entre os

ferramenteiros e a grande auto-estima que eles demonstram por sua profissatildeo Talvez por isso

mesmo encontram-se aqui tambeacutem formas menos submissas de negociar situaccedilotildees cotidia-

nas com a gerecircncia Negro (1997) atribui aos ferramenteiros um papel especial no desenvol-

vimento do ldquonovo sindicalismordquo

() os ferramenteiros aparecem como empregados temperamentais dotados de um bolso hipersensiacutevel e cocircnscios da carecircncia que as empresas sentiam deles Enquan-to permaneceram apenas defensores de suas condiccedilotildees especiacuteficas bastante especi-ais diante da imensa maioria promoveram um tipo de sindicalismo baseado na de-fesa da dignidade do trabalho mas que ao mesmo tempo natildeo oferecia respostas para as demandas mais gerais existentes Um movimento onde natildeo cabiam todos Poreacutem foi esse um dos setores que manteve o sindicalismo vivo dentro das faacutebri-

2 De acordo com as normas ISO a mecacircnica de precisatildeo trabalha com ajustes abaixo de cinco centeacutesimos de miliacutemetro (NOVASKI 1994 p 3) 3 CAD ndash Computer Aided Design CAM ndash Computer Aided Manufacturing CNC ndash Controle Numeacuterico Compu-tadorizado (FARIA 1997 p 13) 4 Este proacuteprio pesquisador se recorda de que em certas situaccedilotildees de ldquoconflito no chatildeo de faacutebricardquo era comum surgirem falas como ldquoSe fosse laacute na ferramentaria eles ndash a chefia ndash natildeo fariam issordquo

84

cas nos seus anos iniciais e nos duros tempos de ditadura militar constituindo-se como estiacutemulo e escola por onde passaram ativistas de vaacuterios matizes (p 122)

Outros aspectos que reforccedilam o status do ferramenteiro dentro da faacutebrica satildeo a sua su-

perioridade salarial5 a reconhecida capacidade de trabalhar em mais de uma maacutequina opera-

triz e ainda a aproximaccedilatildeo do seu trabalho com a ideacuteia de arte6

321 Quem eacute e o que faz um ferramenteiro7

De uma forma simples poderiacuteamos definir como ferramentaria a teacutecnica de construir

ferramentas para obter peccedilas por meio de golpes de prensa que permitem cortar deformar ou

moldar um determinado material (ROSSI 1971 NAVARRO 1954)

O ferramenteiro eacute o profissional que constroacutei a ferramenta De acordo com a CBO ndash

Classificaccedilatildeo Brasileira de Ocupaccedilotildees a Onet ndash Ocuppation Information Network a Rome ndash

Reacutepertoire Opeacuterationnel des Meacutetiers et Emplois

Os trabalhadores da famiacutelia ocupacional dos ferramenteiros e afins estudam es-quemas e especificaccedilotildees para a construccedilatildeo de ferramentas e dispositivos conferin-do dimensotildees de montagem e planejando a sequumlecircncia de operaccedilotildees de construccedilatildeo Medem e marcam metais utilizando instrumentos de mediccedilatildeo tais como o microcirc-metro reloacutegio apalpador Operam maacutequinas ferramentas para usinar peccedilas Lixam e datildeo polimento em superfiacutecies e partes de ferramentas () Aplicam tratamento teacutermico em materiais e peccedilas Reparam ou modificam ferramentas e dispositivos utilizando ferramentas manuais ou maacutequinas ferramenta8

5 Segundo o hiperlink httpdnsenaibrrepertoacuterioferramenteiro e afinshtm a remuneraccedilatildeo meacutedia eacute de 106 salaacuterios miacutenimos De acordo com o Rais ndash Relatoacuterio Anual de Relaccedilotildees Sociais do Ministeacuterio do Trabalho e Emprego de 1999 cerca de 21 dos ferramenteiros ganham entre dez e quinze salaacuterios miacutenimos 18 ganham entre sete e dez salaacuterios miacutenimos 12 ganham entre quinze e vinte salaacuterios miacutenimos 75 ganham mais do que vinte salaacuterios miacutenimos e os demais ganham menos de sete salaacuterios miacutenimos 6 Essa ideacuteia possui uma certa dimensatildeo histoacuterica No dicionaacuterio FERREIRA (1986) dentre outras definiccedilotildees a arte eacute apresentada como ldquo[Do lat arte] sf Capacidade que tem o homem de pocircr em praacutetica uma ideacuteia valendo-se da faculdade de dominar a mateacuteria Jaacute a induacutestria pode ser entendida segundo Ferreira (1986 p 940) como ldquo[Do lat Industria atividade] sf 1 ndash Destreza ou arte na execuccedilatildeo de um trabalho manual aptidatildeo periacutecia () 3 ndash Fig Invenccedilatildeo astuacutecia engenho (p 176) 7 Neste trabalho nos limitaremos a uma breve apresentaccedilatildeo de uma parte da ferramentaria que trabalha com chapas metaacutelicas pois trata-se de um atividade muito ampla que trabalha com outros processos injeccedilatildeo de plaacutes-ticos fundiccedilatildeo e outros 8 Ver hiperlink httpdnsenaibrrepertoacuterioferramenteiro e afinshtm Onde aponta-se tambeacutem que de acordo com RAIS Registro Anual de Informaccedilotildees Sociais do Ministeacuterio do Trabalho e Emprego no ano de 2000 a

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A apresentaccedilatildeo formal das qualificaccedilotildees prescritas do ferramenteiro embora demons-

tre a enorme gama de saberes desta atividade natildeo eacute suficiente para revelar a complexidade

desta profissatildeo Neste sentido eacute necessaacuterio esclarecer que o ferramenteiro natildeo faz uma peccedila

ele constroacutei uma ferramenta E o que eacute uma ferramenta Na verdade uma ferramenta eacute um

conjunto de peccedilas um mecanismo com vaacuterias partes moacuteveis e fixas que quando postas em

movimento produzem peccedilas que satildeo os produtos finais Para abstrairmos a composiccedilatildeo de

uma ferramenta apresentaremos um desenho de uma ferramenta bastante simples

Figura 1 Ferramenta vista em ldquo3Drdquo Nomenclatura 1 Espiga 2 Cabeccedilote 3 Placa de choque 4 Porta-punccedilatildeo 5 Punccedilatildeo 6 Colunas de guia 7 Buchas 8 Pinos de fixaccedilatildeo 9 Parafusos 10 Extrator 11 Guias da chapa 12 Matriz e 13 Base inferior

famiacutelia ocupacional dos ferramenteiros e afins tinha 239 com 10 anos ou mais de viacutenculo empregatiacutecio 175 entre 5 e 99 anos de viacutenculo e 129 entre 4 e 9 anos

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Figura 2 A mesma ferramenta da Figura 1 vista em plano bidimensional Nomenclatura 1 Espiga 2 Cabeccedilote 3 Placa de choque 4 Porta-punccedilatildeo 5 Punccedilatildeo 6 Colunas de guia 7 Buchas 8 Pinos de fixaccedilatildeo 9 Parafusos 10 Extrator 11 Guias da chapa 12 Matriz e 13 Base inferior

A qualidade de um determinado ldquoproduto finalrdquo depende em grande parte de um per-

feito ajuste em centeacutesimo de miliacutemetros entre as partes moacuteveis e as partes fixas Portanto natildeo

eacute um exagero afirmar que os ferramenteiros constroem maacutequinas complexas O fato de que a

maioria dos componentes de uma ferramenta possuem medidas tiacutepicas da ldquomecacircnica de preci-

satildeordquo e ainda que os materiais de uma ferramenta satildeo metais muito especiais com altiacutessima

dureza jaacute seria suficiente para alccedilar este trabalho a um alto niacutevel de dificuldade Todavia o

processo de trabalho na ferramentaria apresenta ainda outras questotildees que exigem do ferra-

menteiro saberes muito aleacutem daqueles necessaacuterios para fabricar uma peccedila com toleracircncia em

centeacutesimos de miliacutemetro Ou seja se de um lado o trabalho prescrito na ferramentaria por si

soacute jaacute faz um apelo a um grande nuacutemero de saberes por outro lado satildeo muitos os fatores do

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trabalho real que solicitam do ferramenteiro saberes de outra ordem muitas das vezes vincu-

lados agrave sua experiecircncia os chamados saberes taacutecitos

322 A Excepcionalidade do ferramenteiro breve nota sobre um trabalho muito aleacutem

das prescriccedilotildees

Diferentemente das premissas tayloristas a organizaccedilatildeo do trabalho dentro de uma fer-

ramentaria quase sempre exigiu do ferramenteiro uma participaccedilatildeo em todas as fases do pro-

cesso de trabalho dado que uma ferramenta apresenta um grande nuacutemero de etapas para a sua

construccedilatildeo A obtenccedilatildeo de um bom produto final depende em boa medida do domiacutenio de

todas as fases da construccedilatildeo por parte dos ferramenteiros uma vez que essa ldquovisatildeo do todordquo eacute

fundamental para antever os possiacuteveis problemas em cada fase de construccedilatildeo da ferramenta

que natildeo foram apontados pelo trabalho prescrito neste caso o desenho da ferramenta Dessa

forma o apelo a um excepcional conjunto de saberes fez da ferramentaria um terreno sem

muita fecundidade para a fragmentaccedilatildeo do trabalho

Poderiacuteamos dizer que agrave distacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho real na ferra-

mentaria comeccedila na elaboraccedilatildeo do projeto de uma ferramenta dado que um mesmo produto

pode ser obtido por projetos de ferramentas totalmente diferentes Essa possibilidade que eacute

muito comum dentro da ferramentaria pode ocorrer de um lado por questotildees objetivas como

maacutequinas disponiacuteveis e recursos de informaacutetica e por outro lado por aspectos subjetivos

como experiecircncia dos projetistas9

Do ponto de vista da construccedilatildeo mecacircnica da ferramenta os ferramenteiros atraveacutes

dos seus saberes taacutecitos podem submeter o trabalho prescrito aos condicionantes do trabalho

real antes mesmo do iniacutecio da construccedilatildeo ldquofiacutesicardquo ou seja antes de construir ou montar as 9 Neste caso a experiecircncia natildeo eacute tida somente pelas situaccedilotildees vivenciadas pelo projetista mas por exemplo a origem da ferramentaria com a qual ele trabalhou pois franceses japoneses e espanhoacuteis apresentam estilos dife-rentes

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peccedilas da ferramenta Tomemos por exemplo o caso da leitura e interpretaccedilatildeo que o ferra-

menteiro faz do desenho natildeo soacute por ser a primeira fase de construccedilatildeo da ferramenta mas

tambeacutem pelas possibilidades de antecipar falhas no produto final Trata-se em uma primeira

anaacutelise de um saber formal que pode ser aprendido na escola Entretanto a experiecircncia do

ferramenteiro pode potencializar a sua capacidade de ler e interpretar desenhos a ponto de lhe

permitir compreender e superar tecnicamente alguns equiacutevocos no projeto da ferramenta

Os saberes taacutecitos que os ferramenteiros usam na leitura de desenho satildeo de tal sorte

vinculados agrave sua experiecircncia que buscamos apresentaacute-los em trecircs exemplos Primeiro haacute que

se dizer que o desenho de uma ferramenta de grande porte pode apresentar quinhentas ou

mais peccedilas diferentes o que inviabiliza que haja uma folha de desenho por peccedila Dessa forma

a ferramenta eacute desenhada apresentando as peccedilas em conjuntos podendo ter aproximadamente

sessenta folhas Diante desta situaccedilatildeo o ferramenteiro ao ler o desenho deve interpretar as

medidas das peccedilas ldquoisoladamenterdquo de seu conjunto Natildeo eacute raro que nesta fase do processo de

trabalho ocorram descobertas de erros na prescriccedilatildeo como medidas que natildeo se encontram

furos fora de lugar Nesta fase da leitura do desenho a experiecircncia do ferramenteiro lhe per-

mite se localizar ldquodentro do projetordquo forma pela qual ele associa uma determinada peccedila com

o estaacutegio em que estaacute a construccedilatildeo da ferramenta ou seja nesse primeiro caso o ferramentei-

ro faz muito mais do que ldquoler um desenhordquo ele se depara com um conjunto de peccedilas e apre-

ende uma delas ldquopor vezrdquo com todas as suas implicaccedilotildees para a construccedilatildeo da ferramenta

Segundo trata-se de um saber importantiacutessimo para antecipar eventuais problemas Ao

ler o desenho o ferramenteiro busca ldquovisualizarrdquo mentalmente a montagem das peccedilas em uma

projeccedilatildeo tridimensional ou seja paradoxalmente ocorre um processo inverso ao primeiro

exemplo Neste segundo caso a experiecircncia do ferramenteiro pode lhe permitir ao ler um

desenho compreender ldquotodardquo a ferramenta por meio de uma articulaccedilatildeo entre as vaacuterias inter-

pretaccedilotildees das ldquopartesrdquo da ferramenta A dificuldade em se desenvolver este saber taacutecito se

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apresenta pelo fato de que o desenho eacute elaborado em uma forma planificada ou seja o ferra-

menteiro enxerga bidimensionalmente e tem que ldquovisualizarrdquo tridimensionalmente Uma das

contribuiccedilotildees desta capacidade eacute que neste momento o ferramenteiro comeccedila a associar a

ferramenta em construccedilatildeo com o produto final

Terceiro eacute um saber taacutecito que remete a uma complexa articulaccedilatildeo de saberes que o-

corre normalmente com ferramenteiros mais experientes que possuem uma refinadiacutessima

capacidade de ler um desenho por meio da qual conseguem ldquovisualizarrdquo a fabricaccedilatildeo de um

determinado produto atraveacutes de uma ldquosimulaccedilatildeo mental da movimentaccedilatildeordquo da ferramenta

que corresponde tambeacutem agrave movimentaccedilatildeo de uma seacuterie de componentes mecacircnicos Neste

caso a mobilizaccedilatildeo de saberes taacutecitos permite ao ferramenteiro levar um entendimento sobre

algo estaacutetico o desenho para uma situaccedilatildeo dinacircmica formalizada por meio de uma extraor-

dinaacuteria noccedilatildeo de ldquocinemaacuteticardquo10

Haacute ainda outros aspectos do processo que fazem emergir o saber taacutecito do ferramen-

teiro A espetacular capacidade cinemaacutetica dos ferramenteiros em ldquosimular mentalmente a

movimentaccedilatildeordquo da ferramenta pode ocorrer tambeacutem mediante a observaccedilatildeo da movimenta-

ccedilatildeo fiacutesica da ferramenta ou mesmo somente analisando-se o produto final ou seja sem o

desenho Nestas situaccedilotildees os saberes taacutecitos dos ferramenteiros lhe permitem interpretar al-

gumas variaacuteveis de difiacutecil mensuraccedilatildeo cientiacutefica como por exemplo ldquoo desgaste das prensas

ou a resistecircncia de materiaisrdquo11

Por fim um outro caso no qual o ferramenteiro se vale de seu saber taacutecito refere-se

aos limites teacutecnicos de maacutequinas avanccediladiacutessimas que agraves vezes natildeo conseguem por exemplo

alcanccedilar um determinado grau de acabamento ou mesmo medidas como as de raios pequenos

10 De acordo com FERREIRA (1986) Cinemaacutetica pode ser tomada como um campo da fiacutesica que se dedica ao estudo dos movimentos sem se preocupar com as forccedilas que o colocam em movimento (p 406) 11 Satildeo vaacuterios e frequumlentes os fenocircmenos que se relacionam ao comportamento dos accedilos e que escapam de uma padronizaccedilatildeo cientiacutefica Situaccedilotildees como o retorno de chapa tambeacutem chamado de springback soacute satildeo soluciona-das por ferramenteiros bem experientes uma vez que os caacutelculos apenas aproximam e mesmo o uso de avanccedila-dos softwares natildeo garante a prescriccedilatildeo das medidas e de geometria necessaacuterias para a obtenccedilatildeo de peccedilas confor-me o desejado

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combinados Nestas situaccedilotildees apela-se para a destreza do ferramenteiro que lanccedila matildeo de

habilidades corporais desenvolvidas ao longo de sua vida como o tato e a visatildeo como vere-

mos no capiacutetulo seguinte

33 O GRUPO B E A EMPRESA T

O grupo empresarial que abriga a Empresa T tambeacutem dirige outras trecircs empresas to-

das voltadas para o setor de autopeccedilas As atividades que deram origem a esse grupo tiveram

o seu ponto de partida com a criaccedilatildeo de uma serralheria em 1974 que sob a iniciativa do seu

presidente um italiano ldquocarpinteiro metaacutelicordquo12 se dedicava agrave produccedilatildeo de esquadrias metaacuteli-

cas

A partir de 1980 inicia-se uma grande virada nas atividades desse grupo quando a sua

inserccedilatildeo como fornecedora para a Fiat Automoacuteveis permitiu-lhe uma orientaccedilatildeo rumo ao setor

de autopeccedilas especialmente para o trabalho de ferramentaria Instalando-se no canteiro de

obras da Fiat produzem inicialmente o quebra-vento para o automoacutevel ldquoFiat 147rdquo Em 1986

a empresa opta por um projeto de crescimento na aacuterea de ferramentaria A empresa passou a

ter o seu proacuteprio galpatildeo na regiatildeo metropolitana de Belo Horizonte aleacutem de fazer um signifi-

cativo investimento em compras de maacutequinas-ferramentas Isto lhe possibilitou ampliar a sua

produccedilatildeo fornecendo para a Fiat Automoacuteveis outras peccedilas como defletores de calor traves-

sas e bagageiros A partir desse novo momento deu-se um grande impulso por parte da em-

presa para ampliar o seu know how em ferramentaria

Agrave medida que as atividades de ferramentaria dessa empresa foram ganhando espaccedilo no

setor de autopeccedilas iniciou-se um projeto de expansatildeo que viabilizasse a incorporaccedilatildeo de no-

vas demandas de serviccedilo do setor automotivo como a montagem de conjuntos soldados de- 12 Segundo alguns trabalhadores mais antigos na empresa eacute assim que este senhor se refere a si mesmo

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senho e projetos e outras atividades Dessa forma foi organizado um grupo13 de serviccedilos au-

tomotivos subdivididos em empresas que trabalham com ferramenaria design e autopeccedilas

com filiais em Minas Gerais Paranaacute e escritoacuterios em Satildeo Paulo e na Itaacutelia

O desenvolvimento das empresas que formam o grupo B muito embora a maior parte

de suas peccedilas fossem dirigidas para a produccedilatildeo da Fiat Automoacuteveis comeccedila a se vincular

com as demandas de outras montadoras Neste sentido a produccedilatildeo das empresas do grupo B

ganha cada vez mais sofisticaccedilatildeo teacutecnica bem como ao aumentar o volume de sua produ-

ccedilatildeo passaram a ter tambeacutem um aumento significativo no seu quadro de funcionaacuterios14

Atualmente o grupo B fornece peccedilas para as seguintes montadoras GM Mercedes

Fiat Nissam e Peugeot Aleacutem do fornecimento de peccedilas de acordo com just in time as empre-

sas do grupo ldquoBrdquo desenvolvem pesquisa e projetos sobre o leiaute de produccedilatildeo linhas de

montagem e soldagem desenvolvem e constroem protoacutetipos De acordo com o balanccedilo anual

da Gazeta Mercantil (2003)15 o grupo ldquoBrdquo eacute o quarto maior entre as autopeccedilas brasileiras

Desde 1997 o grupo B exporta suas peccedilas referentes aos carros Paacutelio e Uno para unidades da

Fiat na Argentina Turquia e Polocircnia

331 As empresas do grupo B

1) Empresa 1 Localiza-se no Centro Industrial de Contagem na grande Belo Horizon-

te Trabalha com produccedilatildeo de defletores de calor e bagageiros Possui 364 funcionaacuterios

13 Noacutes abordaremos como o grupo ldquoBrdquo 14 De acordo com vaacuterias pesquisas podemos inferir que a expansatildeo do grupo ldquoBrdquo se deu de forma articulada ao processo de reestruturaccedilatildeo produtiva promovida pelas montadoras em geral especialmente a Fiat Automoacuteveis Segundo POSTHUMA (1997) ldquoAs montadoras estatildeo diminuindo o nuacutemero de fornecedores com os quais man-tecircm um contato direto orientando-se para uma relaccedilatildeo com um grupo seleto com base em contratos mais estaacute-veis e na cooperaccedilatildeo nas aacutereas de projeto e desenvolvimento de novos produtosrdquo (p 397) Ainda segundo essa pesquisadora ldquoEm alguns casos as montadoras desenvolveram programas para intervir e ajudar os fornecedores a melhorar a sua qualidade e a modernizar seus sistemas de manufaturardquo (p 400) 15 Balanccedilo Anual da Gazeta Mercantil Satildeo Paulo 2003

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2) Empresa 2 Localiza-se tambeacutem em Contagem Trabalha com a produccedilatildeo de es-

tampados e conjuntos soldados Possui 364 funcionaacuterios

3) Empresa 3 Situa-se em Betim na Grande Belo Horizonte Trabalha com a produ-

ccedilatildeo de suspensatildeo dianteira eixo traseiro e tanques de combustiacutevel Possui 488 funcionaacuterios

4) Empresa T Localiza-se em Belo Horizonte e Contagem Eacute a ferramentaria do gru-

po trabalha com projetos e construccedilatildeo de ferramentas dispositivos de controle e montagem

Possui 232 funcionaacuterios

332 A Empresa T

A Empresa T eacute a ferramentaria do grupo B Localiza-se em Belo Horizonte e em Con-

tagem Trabalha com projetos e com a construccedilatildeo de ferramentas de estampagem e dispositi-

vos de controle e montagem A unidade de Belo Horizonte vem se inscrevendo cada vez me-

nos no processo de construccedilatildeo direta da ferramenta e se dedicando agraves chamadas usinagem ldquo2

Drdquo16 ao desenvolvimento de protoacutetipos junto aos clientes para uma ldquofuturardquo construccedilatildeo de

ferramenta A faacutebrica de Contagem responde pela maior parte de construccedilatildeo da ferramenta

uma vez que nesta unidade encontram-se a chamada usinagem ldquo3 Drdquo17 a montagem os ajus-

te da ferramenta Deve ser considerado ainda o fato de que nesta mesma planta encontra-se

tambeacutem a linha de produccedilatildeo de peccedilas conformadas pela ferramenta o que facilita o acompa-

nhamento pelo pessoal da ferramentaria sobre o ajuste final das ferramentas conhecido como

try-out

16 Segundo FERRARESI (1977) usinagem eacute uma operaccedilatildeo que confere a peccedila formas dimensotildees e acabamento () Esses trecircs itens satildeo obtidos por meio da retirada de material Jaacute a usinagem ldquo2 Drdquo eacute o trabalho que do ponto de vista da linguagem usada dentro da Empresa T corresponde agrave parte da ferramenta que natildeo tem definiraacute as formas e as medidas do produto Uma parte desse trabalho eacute terceirizada 17 Jaacute a usinagem ldquo3 Drdquo eacute exatamente aquela que iraacute gerar o produto tal como ele deve ser Esse processo tam-beacutem eacute chamado de coacutepia

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Ainda sobre a usinagem eacute importante salientar que a empresa T dispotildee de modernas

maacutequinas operatrizes com tecnologia de ldquoCNCrdquo comandadas a partir de um sofisticado siste-

ma de CADCAMD Um outro recurso tecnoloacutegico de ponta disponiacutevel para a engenharia da

Empresa T eacute um software que simula o trabalho da ferramenta ou seja trata-se de um pro-

grama que mediante as informaccedilotildees da prescriccedilatildeo apresenta as provaacuteveis ocorrecircncias no

trabalho da ferramenta De acordo com a gerecircncia dessa empresa a estrutura tecnoloacutegica da

Empresa T eacute de certa forma uma imposiccedilatildeo posta pelo tipo de trabalho que a empresa execu-

ta e ainda daqueles trabalhos que ela pretende passar a executar Neste sentido por exemplo

a gerecircncia e os trabalhadores do ldquochatildeo de faacutebricardquo por mais de uma vez nos falaram a respei-

to da construccedilatildeo de uma ferramenta para a lateral de um carro a primeira a ser feita no Brasil

Todavia os trabalhadores quando se referiam a essa ferramenta natildeo faziam apologia agrave tecno-

logia das maacutequinas operatizes e agraves vezes pelo contraacuterio enfatizavam outros aspectos Um

ferramenteiro por exemplo fez o seguinte comentaacuterio ldquoAiacute oh Uma ferramenta difiacutecil igual

essa aqui o acabamento tem que ser dado na matildeo eacute na matildeo mesmo Eles falam que a maacutequi-

na vai substituir o homem eu natildeo acredito taacute vendo esse caso aqui a maacutequina eacute uma das me-

lhores e mesmo assim deixa certas marquinhasrdquo

Dos 232 funcionaacuterios da Empresa T cerca de 80 satildeo ferramenteiros classificados pro-

gressivamente como ferramenteiro aprendiz I II e III De acordo com o pessoal do RH a

contrataccedilatildeo de um ferramenteiro do niacutevel II e principalmente do niacutevel III eacute muito difiacutecil po-

dendo demorar meses Essa dificuldade pode ser percebida na fala dos ferramenteiros Veja-

mos o depoimento de um deles ldquoO ferramenteiro III vamos dizer assim eacute um ferramenteiro

que consegue pegar o projeto construir a ferramenta sem grandes problemas sem precisar de

toda hora ficar consultando o seu superior que seria o mestre Ele consegue sozinho tocar

uma ferramentardquo

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333 A organizaccedilatildeo do trabalho na Empresa T

De uma forma geral como jaacute foi afirmado anteriormente o processo de trabalho de

uma ferramentaria apresenta caracteriacutesticas que favorecem pouco a divisatildeo do trabalho ou

pelo menos a divisatildeo extrema que foi preconizada pelo taylorismo A organizaccedilatildeo do trabalho

na Empresa T reflete essa caracteriacutestica de forma ambiacutegua pois ao mesmo tempo em que a

engenharia projeta uma prescriccedilatildeo do processo de trabalho que integre o ferramenteiro em boa

parte do processo de construccedilatildeo da ferramenta por outro lado ao recorrer agraves maacutequinas sofisti-

cadas essa ferramentaria tal como outras ferramentarias18 passou a retirar formalmente das

matildeos dos ferramenteiros uma parte preciosa da construccedilatildeo mecacircnica a usinagem das peccedilas

agora facilitadas pela introduccedilatildeo das maacutequinas de tipo CNC Essa ldquosaiacutedardquo do ferramenteiro de

parte da construccedilatildeo da ferramenta eacute assimilada com uma certa lamentaccedilatildeo por parte dos fer-

ramenteiros Em uma conversa durante o periacuteodo de observaccedilatildeo nessa empresa um dos fer-

ramenteiros nos disse que ldquoquando a gente trabalha em gatinho a gente se sente ferramenteiro

de verdade laacute a gente faz de tudo pega no torno na retiacutefica acaba que vocecirc usa a sua inteli-

gecircncia toda horardquo19 Um outro depoente faz o seguinte comentaacuterio

Um ferramenteiro completo eacute exatamente aquele que passa por todas as etapas de construccedilatildeo da ferramenta () Antigamente vou dar um exemplo para vocecirc um ferramenteiro fazia de tudo ele ia no torno na frezadora e usinava a peccedila dele ele fazia a montagem e ele ia para debaixo da prensa tirar o produto final Entatildeo esse sim eacute um ferramenteiro completo Hoje pelo volume de serviccedilo e pelo recurso que a gente tem um ferramenteiro natildeo passa por todas as etapas ele tinha que passar mas natildeo passa (Mestre de ferramentaria)

Do ponto de vista formal qual seja da organizaccedilatildeo do trabalho o trabalho prescrito

nessa ferramentaria natildeo eacute menos complexo do que as caracteriacutesticas dessa atividade Todavia

18 O perfil da empresas prestadoras de serviccedilos de ferramentaria In Maacutequinas e Metais ano XXXVII n 424 Aranda Editora maio 2001 19 O termo ldquogatinhardquo eacute um diminutivo do termo ldquogatardquo que na linguagem do peatildeo corresponde agrave empresa Por extensatildeo normalmente os trabalhadores de referem agraves pequenas oficinas como ldquogatinhardquo

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antes de discutirmos a prescriccedilatildeo do trabalho nessa ferramentaria entendemos ser importante

apresentar o conjunto dessa prescriccedilatildeo por meio de uma breve perspectiva do processo de

construccedilatildeo de uma ferramenta

334 A ferramentaria como ela eacute o trabalho prescrito e o trabalho real na

ferramentaria

Ao elegermos a distacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho real como ponto de

partida para discutir os saberes taacutecitos dos ferramenteiros optamos tambeacutem por um recorte

sobre a noccedilatildeo de trabalho prescrito na empresa pesquisada pelo qual desconsideramos uma

fase desse processo onde o cliente aponta para o fabricante as suas exigecircncias e necessidades

em relaccedilatildeo agrave ferramenta encomendada o que poderia caracterizar uma prescriccedilatildeo das

montadoras para a Empresa T Dessa forma a noccedilatildeo de trabalho prescrito explorada nesta

pesquisa apareceraacute fortemente marcada pelas situaccedilotildees que remetem agrave construccedilatildeo material da

ferramenta propriamente dita

1) Usinagem ldquo2 Drdquo

A usinagem ldquo2 Drsquorsquo eacute a primeira grande etapa do processo de construccedilatildeo da ferramenta

na Empresa T cujo principal objetivo eacute retirar a parte bruta da ferramenta ateacute entatildeo apenas

um material fundido e dar-lhe uma medida de relativa precisatildeo que sirva de referecircncia para as

etapas seguintes do processo de construccedilatildeo da ferramenta Nesta fase a principal prescriccedilatildeo eacute

posta pelo desenho mecacircnico no dizer de alguns trabalhadores ou no projeto da ferramenta

como dizem outros Sobre este tipo de trabalho prescrito eacute importante esclarecer que dada a

organizaccedilatildeo do trabalho da Empresa T ela natildeo envolve muito os ferramenteiros pois as

medidas deixadas pela usinagem ldquo2 Drdquo seratildeo alteradas posteriormente Daiacute o principal

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motivo de natildeo abordamos com profundidade as caracteriacutesticas desta parte do processo de

construccedilatildeo da ferramenta Entretanto na usinagem ldquo2Drdquo o saber taacutecito do trabalhador se faz

necessaacuterio tendo em vista as limitaccedilotildees do trabalho prescrito perante o trabalho real De uma

forma mais contundente e complexa estas limitaccedilotildees estaratildeo presentes nas outras fases de

construccedilatildeo da ferramenta o que gera a necessidade de os trabalhadores realizarem um grande

esforccedilo para compreender o trabalho prescrito adaptar essas prescriccedilotildees agraves condiccedilotildees do

trabalho real e quando for o caso identificar os erros da prescriccedilatildeo Trata-se de situaccedilotildees em

que os operadores das maacutequinas operatrizes frezadores e mandrilhadores buscam usar os seus

saberes taacutecitos para compreender mais rapidamente a prescriccedilatildeo isto eacute o desenho mecacircnico

Os saberes taacutecitos dos operadores de usnagem ldquo2 Drsquorsquo podem ser mobilizados ainda porque

que o trabalho prescrito natildeo considera aspectos como os desgastes das maacutequinas operatrizes e

ferramentas ou mesmo a temperatura ambiente que pode influenciar o comportamento fiacutesico

dos metais tais como a dilataccedilatildeo e o atrito20

2) Leiaute

Apoacutes o trabalho de usinagem ldquo2Drdquo daacute-se iniacutecio o chamado trabalho de leiaute que

basicamente eacute um trabalho de verificaccedilatildeo das medidas trabalhadas pela usinagem ldquo2Drdquo bem

como uma orientaccedilatildeo por meio de marcaccedilotildees21 para os proacuteximos passos de construccedilatildeo da

ferramenta O trabalho de leiaute tem tambeacutem como principal prescriccedilatildeo o desenho ou o

projeto da ferramenta e tal como na usinagem ldquo2 Drdquo solicita dos trabalhadores o uso de

saberes taacutecitos para interpretaacute-lo Neste sentido o trabalho real no leiaute se inscreve por

meio do saber taacutecito dos ferramenteiros dado que a prescriccedilatildeo ainda que correta eacute

dependente da experiecircncia dos ferramenteiros que identificam a localizaccedilatildeo de determinadas

20 A dilataccedilatildeo de um material pode por exemplo dificultar a mediccedilatildeo de uma peccedila principalmente se esta tiver medidas com precisatildeo em centeacutesimos de miliacutemetros Jaacute a relaccedilatildeo entre temperatura ambiente e o atrito pode exercer uma influecircncia no corte dos metais 21 Estas marcas satildeo escritas com pinceacuteis especiais delimitando por exemplo que um furo deve estar a 50 miliacute-metros da lateral direita e agrave 1000 mm do centro da ferramenta

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medidas que agraves vezes natildeo satildeo indicadas facilmente no desenho Segundo o depoimento de um

ferramenteiro

Um projeto ruim eacute aquele projeto que igual eu te falei que tem duplicidade de coacutepias uma medida numa folha na outra folha tem outra medida projeto que natildeo apresenta muitos detalhes quando eu falo muitos detalhes vocecirc natildeo tem muitas vistas o projetista desenhou aquilo designou uma quantidade de vistas mas quanto mais ele colocar mais facilidade tem o ferramenteiro de enxergar

O projeto da ferramenta ateacute o momento em que os ferramenteiros fazem o leiaute eacute

uma prescriccedilatildeo natildeo mediada pouco interpretada ou quase ldquovirgemrdquo Neste sentido eacute possiacutevel

afirmar que a partir desta fase do processo de trabalho se evidencia mais ainda a importacircncia

do trabalho real e dos saberes taacutecitos na ferramentaria atraveacutes do leiaute feito pelos

ferramenteiros Embora o projeto da ferramenta continue sendo muito importante as medidas

indicadas pelo leiaute passam tambeacutem a orientar a construccedilatildeo da ferramenta Portanto a

partir do leiaute feito pelos ferramenteiros eacute gerada uma prescriccedilatildeo paralela e complementar

ao projeto da ferramenta especialmente para os trabalhos de preacute-montagem e de usinagem

ldquo3Drdquo

3) Preacute-montagem

O trabalho de preacute-montagem eacute a fase de construccedilatildeo da ferramenta onde de fato os

ferramenteiros usam os seus saberes taacutecitos tanto para interpretar a prescriccedilatildeo posta pelo

desenho da ferramenta ou pelo proacuteprio leiaute quanto para fazer materialmente o seu

trabalho ou seja trabalhar com as peccedilas e os equipamentos que constituiratildeo a ferramenta

Logo a partir do trabalho de preacute-montagem a distacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho

real torna-se mais complexa pois aleacutem das possibilidades de equiacutevocos nas interpretaccedilotildees do

que o desenho prescreve e o que de fato eacute feito nesta fase temos ainda um aumento dos

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imprevistos de ordem material dado pelos meios fiacutesicos com os quais satildeo realizadas as

atividades de preacute-montagem

No caso da preacute-montagem os limites da prescriccedilatildeo perante o trabalho real satildeo postos

pelos meios fiacutesicos da seguinte forma as usinagens apesar do aparato tecnoloacutegico das

maacutequinas natildeo garantem uma precisatildeo do trabalho necessaacuterio em uma ferramenta Daiacute que

apesar do trabalho prescrito indicar atraveacutes do desenho as medidas das peccedilas ou mesmo

alguns instrumentos que podem controlar este trabalho a precisatildeo nos ajustes de centeacutesimos

de miliacutemetros soacute eacute obtida de forma manual pelos ferramenteiros Neste caso eles proacuteprios tecircm

que superar a prescriccedilatildeo do desenho da ferramenta no que se refere agrave natildeo precisatildeo das

maacutequinas e ainda agrave ausecircncia de uma prescriccedilatildeo sobre por exemplo qual pressatildeo exercer

com as matildeos sobre a peccedila que eacute objeto de trabalho ou como usar a visatildeo e o tato para

localizar a parte a ser mais trabalhada e ateacute mesmo como manipular o que foi disponibilizado

pela prescriccedilatildeo para controlar este trabalho como por exemplo as chamadas pastastintas de

estecagem22 Observamos que essa distacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho real na

empresa T aleacutem de ser conhecida pelos ferramenteiros eacute tambeacutem objeto de reflexatildeo sobre o

seu trabalho Um dos depoimentos explicita de forma exemplar essa possibilidade

Um vez aqui aconteceu o seguinte o pessoal laacute da programaccedilatildeo passou para o projeto que o tempo gasto na operaccedilatildeo de estecagem tinha de ser de mais ou menos uma hora Aiacute noacutes chamamos o nosso mestre que concordou com a gente que era pouco tempo e foi reclamar laacute na engenharia Eu soacute lembro que um rapaz laacute um teacutecnico falou que natildeo deveria ser um trabalho muito demorado porque era pouco material para ser retirado toda estecagem normalmente se retira alguns centeacutesimos ou no maacuteximo alguns deacutecimos de miliacutemetro Entatildeo um dos nossos chefes trouxe o rapaz para uma bancada e pediu para ele realizar o trabalho de ldquouma horardquo Esse cara ficou muitos dias e natildeo conseguiu estecar nem uma superfiacutecie Aiacute todos os ferramenteiros falaram o que noacutes demoramos trecircs ou quatro horas e fazemos bem feito natildeo foi feito em cinquumlenta horas (Ferramenteiro)

22 Em relaccedilatildeo a estecagem natildeo encontramos nenhuma definiccedilatildeo formalizada Entre os ferramenteiros a esteca-gem significa um trabalho de ajuste manual onde os ferramenteiros buscam deixar uma superfiacutecie plana com precisatildeo de centeacutesimos de miliacutemetro a qual natildeo eacute viabilizada por meio das maacutequinas mesmo as de CNC

99

4) Usinagem ldquo3 Drdquo

Apoacutes a preacute-montagem o processo de construccedilatildeo da ferramenta se concentra no

trabalho de usinagem de ldquo3drsquorsquo Nesta fase a ferramenta passa a ter as formas e as medidas

proacuteximas agravequelas que devem ter o produto final Embora por uma lado a usinagem dentro da

Empresa T seja de responsabilidade dos operadores das maacutequinas CNC por outro lado o tra-

balho prescrito por natildeo ser totalmente capaz de orientar essa atividade solicita uma parti-

cipaccedilatildeo do saber taacutecito dos ferramenteiros O proacuteprio leiaute realizado pelos ferramenteiros jaacute

citado anteriormente eacute uma referecircncia para a usinagem de ldquo3Drdquo uma vez que por meio do

leiaute estatildeo identificados algumas medidas de difiacutecil interpretaccedilatildeo dentro do desenho A

inserccedilatildeo de saberes taacutecitos dos ferramenteiros nesta fase menos do que sinalizar um natildeo saber

dos operadores CNC expressa a dimensatildeo do trabalho real na ferramentaria O ferramenteiro

por conhecer todo o processo de construccedilatildeo e funcionamento da ferramenta consegue abstrair

a prescriccedilatildeo neste caso o desenho com mais rapidez e ainda identificar a relaccedilatildeo da parte

usinada com o produto que seraacute produzido pela ferramenta

Dessa forma um dos limites da prescriccedilatildeo estaacute intriacutenseco agrave proacutepria formalizaccedilatildeo do

desenho pois se o trabalho de usinagem de ldquo3Drdquo desenvolve-se sobre uma ferramenta em seu

conjunto portanto portadora de vaacuterias peccedilas o desenho natildeo poderia apresentar uma ou outra

parte isolada de toda a ferramenta A usinagem ldquo3 Drdquo revela que os limites do trabalho

prescrito podem ser dados pela sua proacutepria forma qual seja um desenho sempre incompleto

onde se aponta como teoricamente deve ser construiacuteda a ferramenta Jaacute o ferramenteiro

conhecedor que eacute do trabalho real pode abstrair das partes para o todo ou do todo para as

partes do passado para o presente ou do presente para o futuro Enfim o ferramenteiro a

partir de sua experiecircncia consegue ver uma ferramenta aleacutem da que estaacute explicitada no

desenho

100

e) Acabamento

Apoacutes a usinagem ldquo3Drdquo a ferramenta retorna paras as bancadas da ferramentaria para

ser iniciado o trabalho de acabamento Nesta fase os ferramenteiros a partir do que natildeo foi

possiacutevel fazer na usinagem ldquo3 Drsquorsquo buscam definir as medidas as formas e o acabamento mais

proacuteximos do produto final Nesta parte do processo de trabalho o trabalho prescrito pode ser

tomado pelo desenho e ainda pela indicaccedilatildeo de quais pedras e lixas devem ser usadas para

obter o grau de acabamento desejado Todavia no trabalho real o acabamento solicita alguns

saberes que escapam agraves prescriccedilotildees da Empresa T Em nossa investigaccedilatildeo pudemos constatar

que a distacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho real na fase de acabamento guarda

inicialmente uma relaccedilatildeo com os limites teacutecnicos das maacutequinas CNC uma vez que apesar de

serem maacutequinas extremamente sofisticadas no trabalho de ferramentaria elas natildeo capazes de

produzir todas as medidas e os acabamentos prescritos pelo desenho Aleacutem do proacuteprio

desgaste que eacute caracteriacutestico em qualquer maquinaria as peccedilas que compotildeem uma

ferramenta normalmente possuem uma geometria complexa onde satildeo combinados por

exemplo vaacuterias curvaturas e inclinaccedilotildees Por outro lado a identificaccedilatildeo e o controle sobre do

acabamento dessas formas geomeacutetricas natildeo contam com o apoio do trabalho prescrito no

sentido de se indicar como usar o tato ou a visatildeo bem como natildeo haacute no trabalho prescrito uma

indicaccedilatildeo que relacione a pressatildeo manual exercida com a lixa ou com a pedra sobre uma

determinada peccedila e a quantidade de material que estaacute saindo e o grau de acabamento que estaacute

sendo obtido E ainda em funccedilatildeo da complexidade posta pelas formas geomeacutetricas um

gabarito usado em uma ferramenta nunca serve para se usar em outra porque uma ferramenta

nunca tem as mesmas medidas e formas daiacute que haacute pouca prescriccedilatildeo no que se refere ao uso

de gabaritos

101

f) Montagem do funcional da ferramenta

Apoacutes o trabalho de acabamento inicia-se a montagem do funcional da ferramenta

Nesta fase vaacuterias peccedilas ateacute entatildeo separadas passam a ganhar um aspecto de conjunto cujo

maior objetivo eacute colocar a ferramenta em condiccedilotildees de produzir Constatamos que a partir

desta fase do processo de trabalho os ferramenteiros passam a se preocupar mais com o

funcionamento por completo de toda a ferramenta De acordo com o depoimento de um deles

ldquoO ferramenteiro tem que enxergar tudo que compotildee a ferramenta porque vai facilitar neacute

facilita no tempo facilita numa montagem vocecirc jaacute tem o ferramental na mente vocecirc consegue

adiantar neacute antecipar muitas coisas no seu trabalhordquo

Em que pese o uso do desenho pelos ferramenteiros na montagem do funcional da

ferramenta o trabalho prescrito na empresa T por meio do proacuteprio desenho reconhece certas

imposiccedilotildees do trabalho real Dessa forma haacute no trabalho prescrito espaccedilo para os

trabalhadores agirem sobre vaacuterios pontos que satildeo enriquecidos pelo trabalho real Podemos

encontrar no projeto da ferramenta elementos como ldquodefinir furos na ferramentariardquo como

citam alguns desenhos Para alguns ferramenteiros essa ocorrecircncia indica que em um

determinado momento da construccedilatildeo da ferramenta a prescriccedilatildeo quase desaparece

Eacute eu te falo o seguinte vocecirc trabalha com o projeto ateacute um certo ponto na mon-tagem na primeira montagem ateacute ela ir para a coacutepia Depois que a ferramenta vol-ta da coacutepia o projeto jaacute nem conta tanto mais assim Tanto eacute que a linha de corte nunca eacute a primeira ela sempre tem modificaccedilatildeo ela sempre tem correccedilatildeo Por quecirc Porque a linha de corte eacute desenvolvida ela eacute uma matemaacutetica e ela natildeo bate por exemplo quando eacute feito as conferecircncias de uma aba Entatildeo aqui natildeo bate tem que fazer uma correccedilatildeo entatildeo por ele ser teoacuterico nunca bate geralmente eacute na praacutetica Na realidade o projeto numa hora dessa jaacute natildeo existe mais aiacute eacute soacute para como diz liberar o produto Entatildeo pode ser colocada uma solda naquele ponto que foi medido e detectado que a aba estaacute menor (Ferramenteiro)

O que se chama de funcional da ferramenta eacute na verdade um funcionamento improdu-

tivo isso porque a ferramenta se movimenta sem produzir peccedilas Isso porque o principal obje-

tivo desta fase de trabalho eacute garantir que os componentes da ferramenta possam ser movimen-

102

tados sem problema Neste sentido o trabalho prescrito se natildeo bastassem as possibilidades de

conter erros o trabalho prescrito tambeacutem natildeo aponta como considerar uma seacuterie de elemen-

tos presentes no trabalho real tais como o comportamento fiacutesico das chapas metaacutelicas no

momento em que seratildeo conformadas ou cortadas ou mesmo os desgastes dos componentes

mecacircnicos das prensas que podem influenciar na forccedila na pressatildeo ou no alinhamento deste

equipamento

g) Try-out

No trabalho de try-out a ferramenta que estaacute basicamente montada eacute instalada em

uma prensa e submetida a circunstacircncias proacuteximas do trabalho real qual seja da linha de pro-

duccedilatildeo Nesta fase o trabalho prescrito pela gerecircncia pode aparecer em indicaccedilotildees de laudos

obtidos a partir de sofisticadas maacutequinas que controlam as medidas das peccedilas prensadas En-

tretanto esse laudo natildeo garante ao trabalho prescrito um domiacutenio sobre o processo de trabalho

do try-out dado que esse processo proacuteximo que eacute do trabalho real guarda problemas que soacute

os saberes taacutecitos dos ferramenteiros podem solucionar Essa questatildeo incomoda tanto a gerecircn-

cia da Empresa T que eles fizeram um alto investimento na compra de um software que a par-

tir de dados do projeto da ferramenta simula o que ocorre no Try-out sem no entanto gerar

um projeto que prescinda dos saberes taacutecitos dos ferramenteiros

Segundo alguns depoimentos dos ferramenteiros eacute muito difiacutecil de se prescrever com

precisatildeo as situaccedilotildees que possam ocorrer no try-out uma vez que satildeo muitos os fenocircmenos

que envolvem o funcionamento real de ferramenta principalmente os casos ligados ao com-

portamento fiacutesico das chapas de accedilo tal como o retorno de chapa Foi possiacutevel observar pelas

frequumlentes citaccedilotildees dos ferramenteiros que esses fenocircmenos por serem de difiacutecil formaliza-

ccedilatildeo inclusive pelo conhecimento cientiacutefico fazem com que um know how adquirido na cons-

truccedilatildeo de uma ferramenta seja apenas relativo na construccedilatildeo de uma outra ferramenta O fe-

103

nocircmeno de retorno de chapa ou spring-back expressa bem essa possibilidade Trata-se de um

determinado comportamento fiacutesico da chapa onde ela deveria ter por exemplo de acordo

com a ferramenta um acircngulo de 90ordm e ao ser prensada ela pode ficar com 89ordm Em um dos

depoimentos que coletamos o retorno de chapa foi analisado da seguinte forma

O retorno de chapa eu acho que eacute o pior com certeza eacute um dos piores inimigos do ferramenteiro Natildeo tem caacutelculo um caacutelculo especificadamente para isso porque A chapa a estrutura de uma chapa hoje qualquer outro material ela tem porcenta-gem de carbono cromo ou niacutequel ela varia Nesta variaccedilatildeo nenhuma chapa vai ser exatamente igual a outra tanto eacute que noacutes temos uma ferramenta que estaacute laacute em produccedilatildeo haacute dois anos um fardo de chapa hoje exatamente especificado como se pede o cliente ela vai bater daqui a uma semana vem outro fardo e ela daacute uma rea-ccedilatildeo diferente o porque disso porque a composiccedilatildeo que a chapa tem varia o que eacute essa variaccedilatildeo Eacute a porcentagem de niacutequel cromo de ferro que a chapa tem e isso ocasiona muito o retorno de chapa O que eacute esse retorno de chapa eacute o que noacutes chamamos de sprig-back eacute exatamente a resistecircncia que a chapa tem em confor-mar a figura a figura que foi matematizada entatildeo ela resiste mais a esta situaccedilatildeo ela daacute o retorno ela volta e realmente soacute na praacutetica a gente consegue tirar isso fa-zendo exatamente o try-out (Ferramenteiro)

A dimensatildeo que o trabalho real assume na ferramentaria evidencia-se de tal forma a

partir do try-out que os ferramenteiros protagonistas deste processo prescrevem de forma

quase independente do projeto da ferramenta o que deve ser feito de significativo nas

proacuteximas fases do processo de construccedilatildeo da ferramenta quando ela retornar para as bancadas

da ferramentaria O try-out figura na ferramentaria como um laboratoacuterio por excelecircncia De

acordo com o depoimento de um ferramenteiro ldquoo try-out nada mais eacute do que o teste para

vocecirc tirar uma ferramenta uma chapa boa um produto que o cliente agrada dele entatildeo eacute soacute

mediante debaixo de prensa nada mais natildeo tem jeito e soacute assim para vocecirc ver a reaccedilatildeo da

chapardquo Um outro ferramenteiro ironizou o try-out da seguinte forma ldquoBom o try-out como

dizia um chefe que tinha aqui eacute a junccedilatildeo de vaacuterios erros ateacute chegar ao produto final quais satildeo

esses erros O projetista o ferramenteiro na construccedilatildeo o programador que natildeo soube abrir

os raios necessaacuteriosrdquo

104

h) Ajuste final da ferramenta

Apoacutes passar pelo try-out a ferramenta fica sob um trabalho de ajuste final cuja prin-

cipal prescriccedilatildeo eacute dada pelas indicaccedilotildees do try-out Nesta fase do processo de construccedilatildeo a

prescriccedilatildeo inicial soacute prevalece para se referir agrave cor que seraacute pintada a ferramenta Natildeo obstan-

te a finalizaccedilatildeo da construccedilatildeo de uma ferramenta que pode durar de cinco a oito meses gera

um acervo de documentos que se torna o chamado ldquohistoacuterico da ferramentardquo suficiente para

gerar um material de consulta o que pode ateacute subsidiar a construccedilatildeo de um know-how Entre-

tanto pelas observaccedilotildees feitas na empresa T uma simples mudanccedila do que se prescreve como

produto na ferramentaria gera novos fenocircmenos Assim por exemplo a produccedilatildeo da porta de

um automoacutevel por ter ou deixar de ter um friso muda o comportamento da chapa na hora da

prensagem o que torna o trabalho real neste setor da mecacircnica um espaccedilo de afirmaccedilatildeo de

saberes para os seus principais protagonistas os ferramenteiros

Neste capiacutetulo procuramos ao apresentar as fases de construccedilatildeo da ferramenta evi-

denciar as lacunas do trabalho prescrito perante as demandas do trabalho real na Empresa T Eacute

mister apresentar como os ferramenteiros da Empresa T buscam superar essa limitaccedilatildeo do

trabalho prescrito Eacute o que buscaremos fazer a partir do proacuteximo capiacutetulo onde analisaremos

os dados coletados em nossa pesquisa de campo

105

4 O TRABALHO REAL NA FERRAMENTARIA A HORA E A VEZ DOS

SABERES TAacuteCITOS DOS FERRAMENTEIROS

Marinheiro que natildeo sabe para onde vai tem medo do vento jaacute ouviu falar isso Pois eacute quem natildeo conhece como a ferramenta funciona soacute monta as peccedilas o ferra-menteiro natildeo ele monta mas ele usa a sua compreensatildeo se o projeto estiver ruim ele consegue fazer a ferramenta se a prensa estiver desgastada ele daacute um jeito eacute is-so aiacute

Neste capiacutetulo buscaremos fazer uma anaacutelise dos elementos coletados em nossa pes-

quisa de campo realccedilando as estrateacutegias que os ferramenteiros usam para produzir mobilizar

e formalizar os seus saberes taacutecitos

Como jaacute dissemos anteriormente os estudos oriundos do campo da ergonomia afir-

mam que o andamento de um determinado processo produtivo eacute caracterizado dentre outras

coisas por uma distacircncia entre o que eacute planejado e formalizado pela gerecircncia da empresa o

chamado trabalho prescrito e o que de fato ocorre no chatildeo de faacutebrica para que essa produccedilatildeo

seja realizada O que diz respeito ao andamento do processo produtivo e que natildeo pertence ao

domiacutenio da prescriccedilatildeo eacute chamado de trabalho real (LIMA 1998 DANIELLOU 1989) Dian-

te da insuficiecircncia do trabalho prescrito em dominar o trabalho real o andamento do processo

produtivo eacute garantido pela intervenccedilatildeo dos trabalhadores do chatildeo de faacutebrica principais prota-

gonistas do trabalho real que complementam ou superam as limitaccedilotildees do trabalho prescrito

(ARANHA 1997 SANTOS 1997)

Neste sentido para nos aproximarmos melhor dos elementos que tomamos como sen-

do os saberes taacutecitos presentes na ferramentaria entendemos que eacute necessaacuterio dividir em toacutepi-

cos as estrateacutegias que os ferramenteiros usam para produzir mobilizar e formalizar os seus

106

saberes taacutecitos Sendo assim cada uma delas seraacute discutida em toacutepicos diferentes Entretanto

eacute importante salientar que essa divisatildeo por toacutepicos natildeo significa que as estrateacutegias satildeo usadas

pelos ferramenteiros de forma independente umas das outras A nossa opccedilatildeo em estruturar a

anaacutelise dos dados dessa forma justifica-se pelo nosso interesse em tornar mais claros os ele-

mentos que encontramos em nosso campo de pesquisa sobretudo pela complexidade do traba-

lho de ferramentaria De certa forma essa opccedilatildeo de apresentar as estrateacutegias separadamente

tem um deacutebito com o cuidado que os ferramenteiros manifestaram conosco Em um dos pri-

meiros contatos que tivemos com os ferramenteiros um deles nos disse o seguinte ldquoVou te

explicar tim-tim por tim-tim mas se vocecirc natildeo souber por que eu faccedilo por que a gente tem que

improvisar vocecirc natildeo vai entender como eu faccedilordquo

Todavia tanto em nossas observaccedilotildees quanto nas entrevistas nos deparamos com si-

tuaccedilotildees em que as estrateacutegias criadas pelos ferramenteiros para produzir mobilizar e formali-

zar os seus saberes taacutecitos apareceram de forma integrada em que pese ter sido possiacutevel en-

contrar em uma mesma situaccedilatildeo de trabalho o uso destacado de uma dessas estrateacutegias Em

todo caso as estrateacutegias que os ferramenteiros criam para produzir os seus saberes taacutecitos nos

parecem antes de tudo influir e ser influenciadas pelas estrateacutegias que eles criam para mobi-

lizar e formalizar os seus saberes taacutecitos

41 AS ESTRATEacuteGIAS DOS FERRAMENTEIROS PARA PRODUZIR OS SEUS SABERES TAacuteCITOS

Conforme jaacute explicamos no primeiro capiacutetulo estamos considerando como estrateacutegias

de produccedilatildeo de saberes taacutecitos os caminhos natildeo previstos de trabalho que os ferramenteiros

desenvolvem para pocircr em uso saberes de natureza diversa em especial os saberes taacutecitos

Muito embora tiveacutessemos constatado que a Empresa T mobiliza vaacuterios recursos materiais e

humanos para o seu trabalho prescrito em nossa pesquisa de campo foi possiacutevel verificar que

107

os ferramenteiros descobrem e inventam formas de realizar o seu trabalho portanto produzem

saberes diferentes daqueles indicados pela prescriccedilatildeo Ademais os proacuteprios ferramenteiros

em seus depoimentos frequumlentemente nos disseram que o trabalho na ferramentaria sempre os

leva a ldquocriar uma forma especiacutefica de fazer as coisasrdquo como dizem uns ou a ldquobolar um certo

jeito de produzir saberesrdquo no dizer de outros Daiacute que tomamos esse ldquocerto jeito de fazer coi-

sas ou produzir saberesrdquo como estrateacutegias que os ferramenteiros criam para produzir os seus

saberes taacutecitos Identificamos as seguintes estrateacutegias de produccedilatildeo de saberes taacutecitos usadas

pelos ferramenteiros ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo ldquover o todordquo ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo e ldquome-

lhor jeito para trabalharrdquo

Se de um lado muitos autores afirmam que o trabalho eacute caracterizado por um princiacute-

pio educativo1 por outro podemos afirmar com base em nossas observaccedilotildees de campo que

as caracteriacutesticas da ferramentaria potencializam esse princiacutepio Um depoimento que obtive-

mos evidencia bem essa questatildeo

O que a gente aprende no curso de ferramentaria eacute apenas uma base para vocecirc fazer a sua inicializaccedilatildeo porque na verdade o ferramenteiro nunca se forma cada dia que se passa eacute uma escola cada dia que vocecirc vai trabalhando como ferramenteiro vai aprendendo coisas novas Uma ferramenta sempre eacute diferente vocecirc nunca que faz uma ferramenta igual agrave outra tambeacutem porque nunca se monta um carro igual ao outro Entatildeo sempre quando vocecirc lanccedila carros diferentes as ferramentas satildeo feitas diferentes vocecirc nunca repete a mesma coisa e eacute essa diversidade de ferra-mentas que faz com que seu aprendizado cada vez se diferencie mais se aprende a ter um maior jogo justamente pela diversidade do seu trabalho (Ferramenteiro)

Apresentaremos as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros para produzir os seus sabe-

res taacutecitos organizando a nossa discussatildeo respectivamente a partir dos seguintes toacutepicos

ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo ldquover o todordquo ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo e ldquomelhor jeito para traba-

lharrdquo

1 Haacute uma vasta literatura no conjunto de estudos sobre trabalho e educaccedilatildeo que se debruccedila sobre esta temaacutetica sobretudo a partir das contribuiccedilotildees de MARX e GRAMSCI

108

a) ldquoFiltragem de informaccedilotildeesrdquo

Se a literatura que discute a presenccedila de saberes no processo de trabalho a qual jaacute a-

presentamos aponta que o saber taacutecito se inscreve a partir de situaccedilotildees postas pelo trabalho

real o que de fato verificamos por outro lado em nossa pesquisa de campo foi que antes

mesmo de as demandas especiacuteficas do trabalho real se apresentarem para os ferramenteiros

eles buscam criar antecipadamente suas proacuteprias estrateacutegias para produzir saberes taacutecitos pa-

ra melhor compreender o trabalho prescrito essencialmente o desenho da ferramenta Todos

os ferramenteiros com1 que travamos contato natildeo hesitaram em dizer que o desenho de uma

ferramenta guarda um alto niacutevel de complexidade o que faz com que eles tenham que criar

saberes taacutecitos para interpretaacute-lo ainda que este desenho por se tratar de uma linguagem for-

malizada por meio de normas internacionais possa ser ensinado na escola formal Constata-

mos ainda em nossas observaccedilotildees que a interpretaccedilatildeo do desenho eacute mais tranquumlila para os

ferramenteiros mais experientes Alguns depoimentos explicitam de forma clara o ponto de

vista dos ferramenteiros sobre a necessidade de se usar os saberes taacutecitos na interpretaccedilatildeo do

desenho de uma ferramenta como forma de enfrentar a complexidade como jaacute foi dito deste

tipo de prescriccedilatildeo Vejamos

Bom na realidade esta questatildeo de projeto eacute meio complicada pelo seguinte quando a gente estuda no Senai vocecirc vecirc vocecirc lecirc desenhos e desenhos que agraves vezes eacute dese-nho de uma folha A4 no maacuteximo uma folha A3 Quando vocecirc chega na empresa do porte satildeo ferramentas grandes de ateacute 4 metros de comprimento e 20 toneladas Entatildeo vocecirc se depara agraves vezes vocecirc viu no Senai o desenho ficava numa folha A3 o desenho todo numa ferramentinha sua numa peccedila sua Quando vocecirc chega na empresa uma folha de desenho ela daacute 2 metros por um metro de altura entatildeo vocecirc natildeo consegue ver nada quando vocecirc sai do Senai vocecirc natildeo consegue ver pratica-mente nada do desenho Com o tempo vocecirc vai aprendendo a ler o desenho A ver-dade eacute o seguinte vocecirc aprende a ler desenho laacute dentro porque o Senai natildeo te daacute base nisso Pelo tipo de desenho que a gente trabalha (Ferramenteiro)

A possibilidade de que os ferramenteiros por meio de sua experiecircncia profissional

criem estrateacutegias para enfrentar a complexidade do desenho pode ser percebida em um outro

109

depoimento que demonstra inclusive uma compreensatildeo sobre o que torna difiacutecil a leitura

desse desenho

Um desenho de ferramenta ou de qualquer outra construccedilatildeo mecacircnica na matildeo de um profissional no Japatildeo na matildeo de um profissional no Brasil seraacute um desenho porque existe uma linguagem universal Entatildeo essa linguagem universal vocecirc a-prende no campo da teoria estudando o desenho mesmo dentro da escola Agora existe um viver praacutetico onde o lidar com determinadas peccedilas eacute muito importante a experiecircncia do dia-a-dia porque agraves vezes o projetista ele tem que ver muitas coisas e o nosso desenho tem um agravante muito grave que ele natildeo tem detalhes Todos os elementos da ferramentaria estatildeo desenhados num soacute desenho entatildeo a pessoa precisa enxergar todos os elementos naquele desenho de conjunto com muitas li-nhas Se vocecirc me perguntar sobre a experiecircncia eacute importante Eacute claro ueacute (Mestre de ferramentaria)

Eacute para superar a complexidade do desenho da ferramenta que os ferramenteiros aca-

bam por desenvolver estrateacutegias para produzir os saberes taacutecitos Um dos aspectos mais recor-

rentes nas falas dos nossos entrevistados daacute conta de que a dificuldade em interpretar dese-

nhos como os que satildeo usados na Empresa T refere-se ao grande nuacutemero de componentes e

por conseguinte tambeacutem agrave grande quantidade de linhas e medidas que constituem esse tipo de

prescriccedilatildeo ou como eles dizem ldquoEacute um desenho muito cheio de coisasrdquo Segundo um dos fer-

ramenteiros ldquoEacute impossiacutevel enxergar o desenho de uma vezada soacute o ferramenteiro mais espe-

cializado do mundo ele natildeo consegue enxergar de imediato tudo que o ferramental vai fazerrdquo

Em relaccedilatildeo a essa dificuldade em se compreender o trabalho prescrito sobressaem algumas

estrateacutegias desenvolvidas pelos ferramenteiros para produzir seus saberes taacutecitos como ex-

pressam alguns depoimentos

Primeiramente o ferramenteiro deve ter paciecircncia porque desenho vocecirc natildeo con-segue interpretar da primeira vez que vocecirc vecirc A cada vez que vocecirc olha vocecirc taacute identificando uma coisa nova entatildeo leva-se um tempo pra vocecirc falar assim eu tocirc sabendo tudo uma porcentagem bem grande deste desenho pra mim taacute comeccedilando a executar esse trabalho Isso pode levar uma hora duas dois dias ou ateacute mais de-pende da complexidade deste desenho e essa evoluccedilatildeo realmente vem vindo grada-tivo conhecendo pedaccedilos eacute pedaccedilos separados deste desenho Eu natildeo conseguia ver abrir o projeto e ver aquela imensidatildeo de componentes que se situam dentro deste projeto entatildeo eu fui comeccedilando por partes fui comeccedilando por legenda as coisas mais simples primeiro pra depois entrar realmente no interior da ferramen-ta realmente ver o que estaacute querendo expressar aquele monte de linha aquele de-senho pra mim (Ferramenteiro grifo nosso)

110

Outros ferramenteiros tambeacutem fizeram referecircncia agrave necessidade de se buscar uma es-

trateacutegia que lhes permitam como foi colocado pela fala anterior amenizar a confusatildeo propor-

cionada pelo grande nuacutemero de informaccedilotildees contidas no desenho Em alguns casos as falas

dos ferramenteiros notoriamente dos mais experientes apontam que a experiecircncia lhes permi-

te usar ldquomacetesrdquo para retirar do imenso repertoacuterio de informaccedilotildees posta pelo desenho aqueles

dados necessaacuterios para a realizaccedilatildeo do seu trabalho Vejamos como um dos ferramenteiros re-

latou a sua experiecircncia nessa situaccedilatildeo

Vocecirc nunca deve abrir o desenho todo A experiecircncia ajuda e muito Porque vamos assim analisar vocecirc inicia sua etapa entatildeo geralmente vocecirc jaacute sabe a linha que eacute da coluna Vocecirc consegue neacute cair direto em cima daqueles elementos que cecirc jaacute taacute traba-lhando no momento Entatildeo por exemplo vocecirc vai usar o alojamento tal vocecirc jaacute sabe bucha que taacute ali e desse jeito vocecirc consegue eliminar o que vocecirc natildeo precisa saber Entatildeo eacute mais faacutecil se vocecirc jaacute sabe vocecirc abre sua planta vocecirc observa e passa a ver o corte tal e aiacute cecirc jaacute vai direto em cima do corte C (Ferramenteiro)

Pudemos observar que as formas usadas pelos ferramenteiros para selecionar alguns

elementos fornecidos pelo desenho podem ser remetidas a uma tentativa por parte deles de

criar estrateacutegias de ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo Tomamos por ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo a

tentativa dos ferramenteiros de selecionar alguns dados de dentro do enorme repertoacuterio de in-

formaccedilotildees guardadas pela prescriccedilatildeo do desenho e pela proacutepria ferramenta Sobre essa possi-

bilidade de os ferramenteiros ldquofiltrarem informaccedilotildeesrdquo para facilitar a interpretaccedilatildeo do dese-

nho um dos nossos entrevistados nos disse que coloria com caneta hidrocor as linhas do de-

senho agrave medida que conseguia associar essas linhas com as peccedilas que compotildeem a ferramenta

Quando eu comecei a mexer com Autocad2 e quando se trabalha em Autocad se trabalha com vaacuterios leires os leires satildeo as cores das linhas cores de tamanho e es-pessura da linha Isso te ajuda a ver se aquela linha eacute uma linha de cota se aquela linha eacute uma linha do accedilo se aquela linha eacute uma linha invisiacutevel se aquela linha eacute uma linha de produto Entatildeo vocecirc vecirc isto em vaacuterios leires azul vermelho amarelo Soacute que quando vocecirc pega o desenho no papel todas as linhas satildeo pretas e por isso eacute difiacutecil distinguir as linhas Com base no Autocad eu passei a colorir os desenhos no papel e ficou mais faacutecil para interpretar as linhas (ferramenteiro)

2 Segundo FARIA (1992 p 13) CAD eacute Computer Aided Design ou desenho auxiliado por computador

111

Dessa forma tanto a complexidade de linguagem do trabalho prescrito essencialmente

o desenho quanto a sua distacircncia em relaccedilatildeo ao processo de trabalho real na empresa T levam

os ferramenteiros a construiacuterem estrateacutegias que chamamos de ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo pa-

ra produzir saberes taacutecitos Todavia se por um lado esses depoimentos demonstram que uma

atividade de trabalho complexa como a ferramentaria solicita dos ferramenteiros uma com-

preensatildeo do que eacute apontado pelo desenho portanto valorizando o trabalho prescrito por outro

lado essa busca dos ferramenteiros em compreender a prescriccedilatildeo talvez possa ser um indica-

tivo do cuidado que eles tecircm com o que de fato acontece no trabalho real

Aleacutem das estrateacutegias criadas antes mesmo de o trabalho prescrito se mostrar insufici-

ente para garantir o andamento do processo de trabalho na empresa T as nossas observaccedilotildees e

entrevistas nos permitiram identificar outras estrateacutegias que os ferramenteiros criam para pro-

duzir saberes taacutecitos como uma resposta ao trabalho prescrito que natildeo consegue dar conta de

situaccedilotildees marcadas pelo imprevisto ou por variaacuteveis ateacute previsiacuteveis mas de difiacutecil mensura-

ccedilatildeo como os desgastes das maacutequinas ou o comportamento fiacutesico das chapas de accedilo Ainda

que na empresa T como constatamos se usem sofisticadas tecnologias de CADCAMCNC3

ou de um simulador de estampagem4 o maacuteximo que se consegue eacute uma aproximaccedilatildeo com o

indicado pela prescriccedilatildeo Seguindo esta trilha pudemos observar que no trabalho real da fer-

ramentaria pesquisada a intervenccedilatildeo dos ferramenteiros eacute mediada por outras estrateacutegias de

produccedilatildeo de saberes taacutecitos

b) ldquoVer o todordquo

Se de um lado foi possiacutevel observar que em um primeiro momento do processo de

trabalho os ferramenteiros lanccedilam matildeo de estrateacutegias de ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo para os

auxiliarem na compreensatildeo do trabalho prescrito por outro lado no trabalho real de constru-

3 Este tipo de tecnologia eacute respectivamente Computer Aided Design ou Desenho Auxiliado por Computador Computer Aided Manufacturing ou Manufatura Auxiliada por Computador Controle Numeacuterico Computadoriza-do (FARIA 1992 p 13) 4 Embora natildeo tenhamos conhecido este software tomamos ciecircncia do seu uso pela engenharia Trata-se de um programa que busca apontar o possiacutevel comportamento da chapa de accedilo durante a sua transformaccedilatildeo em produto

112

ccedilatildeo da ferramenta as estrateacutegias criadas apontam para uma certa inversatildeo da estrateacutegia ante-

rior em vez de fazer uma filtragem busca-se uma associaccedilatildeo de informaccedilotildees Os ferramentei-

ros buscam criar estrateacutegias que lhes permitam integrar as partes da ferramenta em um ldquotodordquo

ou seja ir do domiacutenio das particularidades para o domiacutenio da ferramenta como um ldquotodordquo ateacute

porque como jaacute dissemos uma ferramenta eacute um conjunto de peccedilas Os ferramenteiros criam

estrateacutegias para ldquover o todordquo Chamamos de estrateacutegias de ldquover o todordquo o esforccedilo dos ferra-

menteiros para ultrapassar os limites impostos pela fragmentaccedilatildeo do conhecimento formaliza-

do no trabalho prescrito Em vaacuterios depoimentos eles indicam que uma compreensatildeo do ldquoto-

dordquo em relaccedilatildeo agrave ferramenta eacute importante para poder dar conta do trabalho real o que tem a-

inda a propriedade de fazer entender tambeacutem as particularidades da ferramenta Ao ser inda-

gado sobre a importacircncia de se ter uma visatildeo da ferramenta em seu conjunto um deles nos re-

latou o seguinte

Quando vocecirc comeccedila a montar a ferramenta sem ter essa noccedilatildeo neacute de enxergar a ferramenta trabalhando quando vocecirc comeccedila a montar a ferramenta vocecirc vai sim-plesmente montando evidenciando o que o projeto vai te mostrando vocecirc vai montando vai montando soacute que vocecirc vai montando peccedilas vai montando itens sem observar que este item que vocecirc taacute montando quando ele trabalhar quando ti-ver numa prensa trabalhando a ferramenta funcionando vocecirc pode estar simples-mente montando itens Vocecirc monta itens quando chega no final da ferramenta vo-cecirc tem todos os itens montados da ferramenta e aiacute sua ferramenta natildeo funciona (Ferramenteiro)

De uma forma geral quase todos os ferramenteiros na medida em que faziam suas

exposiccedilotildees sobre a importacircncia de se ldquover toda a ferramentardquo expressavam tambeacutem uma criacute-

tica ao trabalho prescrito que segundo eles eacute portador de visatildeo fragmentada da construccedilatildeo da

ferramenta No depoimento abaixo o ferramenteiro fala da fragmentaccedilatildeo no trabalho do pro-

jetista

Eacute noacutes temos caso neacute na nossa proacutepria empresa de que acontecem erros de deta-lhamento Quando a pessoa (o projetista) pega o desenho todo e retira soacute um item para desenhar aquele item entatildeo a pessoa tem essa dificuldade Porque a pessoa natildeo sabe a pessoa taacute vendo o desenho a pessoa vecirc o desenho em 3D agraves vezes mas a pessoa natildeo sabe como aquilo funciona ela natildeo tem vivecircncia ela natildeo vecirc como

113

aquela peccedila chega em bruto eacute montada eacute parafusada eacute copiada eacute temperada e chega na sua forma final para ser enviada Entatildeo a pessoa natildeo tem essa noccedilatildeo ela sabe que aquilo eacute um accedilo e desenha aquele accedilo Eacute o que ela sabe essa eacute a diferenccedila do desenhista (Ferramenteiro)

Em um outro depoimento um dos entrevistados ao fazer uma criacutetica ao trabalho pres-

crito apresenta elementos ainda mais contundente quanto agrave fragmentaccedilatildeo

O projetista enxerga o que estaacute fazendo dentro de uma tela de no maacuteximo 20 pole-gadas que eacute no Autocad e noacutes vemos no fiacutesico Entatildeo ele tem que imaginar um sem-fim de coisas mas ele natildeo apalpa nenhuma delas entatildeo eacute muito difiacutecil para um projetista acertar tudo A primeira coisa eacute essa Enquanto noacutes temos os outros sentidos que estatildeo a nosso favor que eacute a audiccedilatildeo o tato a visatildeo noacutes estamos vendo a peccedila noacutes estamos tateando as peccedilas e na hora que vamos manusear noacutes estamos ouvindo o barulho que a peccedila faz Ele natildeo tem nenhum desses amigos ao seu lado soacute tem soacute a visatildeo e a experiecircncia Entatildeo o que ocorre Dentre aquele sem-fim de linhas que ele taacute vendo dentro do CAD dentro da sua estaccedilatildeo de CAD por mais que ele vislumbre nunca traz a medida real eles projetam uma lateral de 5 metros dentro de uma tela de 20 polegadas (Ferramenteiro)

A partir das nossas observaccedilotildees bem como das entrevistas que realizamos eacute possiacutevel

considerar que a distacircncia de escala entre o desenho que eacute usado pelo ferramenteiro e o dese-

nho que eacute usado pelo projetista se constitua como um fator que explica por que as estrateacutegias

de produccedilatildeo de saberes taacutecitos satildeo necessaacuterias no trabalho real O que testemunha tambeacutem a

existecircncia de uma lacuna no trabalho prescrito A nosso ver essa possibilidade eacute corroborada

por algumas falas

Por mais que o projetista tente imaginar puxa vida a tela do computador eacute 40 ve-zes menor do que a ferramenta Entatildeo soacute se o cara tiver um diminutivo um proje-tor de perfil soacute que inverso na sua mente Segundo a grande maioria dos projetis-tas da atualidade natildeo foram ferramenteiros eles natildeo tiveram a base praacutetica eles ti-veram soacute a base teoacuterica entatildeo eles nunca entraram de baixo de uma prensa para ver a dificuldade que eacute estampar que eacute obter um produto Ele coloca tabelas de tole-racircncias5 mas ele na verdade nunca travou uma coluna para ver se realmente aque-la pressatildeo eacute o essencial Ele entatildeo comeccedila a trabalhar com normas que outras pes-soas fizeram mas que ele mesmo natildeo experimentou e durante o processo essa difi-culdade uma hora vai aparecer (Ferramenteiro)

5De acordo com NOVASKI (1994) toleracircncia eacute a variaccedilatildeo admissiacutevel da dimensatildeo da peccedila dada a diferenccedila entre as dimensotildees maacuteximas e miacutenimas (p 3)

114

c) ldquoVisualizaccedilatildeo em 3Drdquo

Uma outra estrateacutegia que os ferramenteiros criam para produzir os seus saberes e que

de certa forma lhes permite articular as estrateacutegias de ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo com as es-

trateacutegias para ldquover o todordquo remete ao esforccedilo que eles fazem para abstrair a ferramenta o que

eacute chamado por eles de ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo Chamaremos de estrateacutegias de ldquovisualizaccedilatildeo em

3Drdquo a projeccedilatildeo mental que os ferramenteiros fazem no sentido de imaginar a ferramenta pela

perspectiva tridimensional As vaacuterias possibilidades de ldquovisualizaccedilatildeo 3Drdquo podem correspon-

der a determinados niacuteveis de dificuldade Assim pode-se dizer que em situaccedilotildees mais sim-

ples os ferramenteiros buscam visualizar as peccedilas que compotildeem a ferramenta para localizaacute-

las espacialmente dentro do seu conjunto que eacute a proacutepria ferramenta6 De acordo com um

ferramenteiro a ldquovisualizaccedilao em 3D eacute quando vocecirc vecirc um desenho soacutelido vocecirc vecirc um cubo

vocecirc vecirc a ferramenta em soacutelido aiacute eacute muito mais faacutecil de vocecirc ter esta visualizaccedilatildeordquo Outro

ferramenteiro apresenta a sua a noccedilatildeo de ldquovisualizaccedilatildeo 3Drdquo relacionado-a com a sua experi-

ecircncia da seguinte forma

Com certeza isso acontece conosco todos os dias porque nem sempre vocecirc estaacute com o desenho em matildeos e vocecirc precisa visualizar Agraves vezes no iniacutecio do processo de construccedilatildeo vocecirc natildeo tem nem a peccedila na matildeo mas vocecirc jaacute tem o desenho Aiacute a gente jaacute comeccedila a modificar determinadas coisas soacute a partir da experiecircncia que vo-cecirc adquiriu Isso soacute eacute possiacutevel porque o ferramenteiro vecirc uma coisa bidimensional que eacute o desenho e pensa de forma tridimensional que eacute a ferramenta Pois eacute por causa disso a visualizaccedilatildeo faz do ferramenteiro mais do que um montador de peccedilas jaacute que ele vecirc ele tem ver tudo antes de funcionar

Entretanto observamos que embora a ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo seja citada por todos os

entrevistados soacute os ferramenteiros mais experientes satildeo tidos como capazes de realizaacute-la nos

niacuteveis mais complexos em que ela se apresenta Eacute o caso por exemplo do que eles chamam

de ldquosimulaccedilatildeo mental do movimento da ferramentardquo Trata-se de uma complexa estrateacutegia que

os ferramenteiros usam para aleacutem de localizar as peccedilas dentro do seu conjunto supor a sua

reaccedilatildeo em uma situaccedilatildeo de movimento ldquoEssa visatildeo de 3D noacutes temos a noccedilatildeo de funciona-

6 Mais uma vez cabe lembrar que uma ferramenta pode chegar a ter cerca de 800 componentes

115

mento da ferramenta antes mesmo dela taacute construiacuteda A gente taacute olhando o projeto e taacute conse-

guindo mentalizar a movimentaccedilatildeo de todos os componentes da ferramenta executando aque-

le trabalho que ela foi projetada para fazerrdquo E um outro depoimento completa

Eacute possiacutevel visualizar a peccedila antes dela estar terminada Tenho nove anos que eu trabalho com ferramentaria eu durante cerca de quatro anos eu via o desenho mas eu natildeo imaginava uma ferramenta em 3D Depois de uns 4 anos trabalhando em ferramentaria eu consigo analisar o projeto durante um dia dois dias analisar um projeto inteiro de 40 folhas eu consigo imaginar a ferramenta trabalhando e isso eu natildeo conseguia antes (Ferramenteiro)

Observamos que essa ldquosimulaccedilatildeo mental do movimento da ferramentardquo se manifesta

por meio da capacidade que eles possuem de ao imaginar uma ferramenta em movimento

projetar possiacuteveis defeitos no produto final

Bom quando o ferramenteiro consegue olhar o projeto e imaginar a situaccedilatildeo a fer-ramenta trabalhando ele consegue entender ele trabalha observando aquilo que taacute acontecendo ele antecipa este erro porque ele tem esse entendimento de olhar o projeto imaginar a ferramenta pronta imaginar que todos os itens da ferramenta estatildeo trabalhando Desta forma ele consegue vamos supor ele consegue entender a peccedila a ferramenta baixa a estampa aberta dessa forma natildeo aconteceu nenhum problema natildeo trombou nada a peccedila natildeo trombou nada a peccedila natildeo foi danificada a peccedila que eu falo eacute o produto (Ferramenteiro)

Em um outro exemplo

Vocecirc tem que imaginar o produto ali Ele eacute projetado em linhas que natildeo eacute em soacuteli-do soacute linha e imaginar o funcional daquilo Um bom ferramenteiro ele jaacute imagina a ferramenta produzindo O que eacute produzindo Ela estaacute debaixo da prensa e ele sa-be qual altura ela vai subir vai descer e fechar a ferramenta ele vecirc o acircngulo de saiacute-da dos retalhos ele jaacute imagina toda ela na mente O que acontece vai ter coisa que se o ferramenteiro faz exatamente igual ao projeto ele jaacute vecirc que natildeo vai funcionar (Ferramenteiro)

Ainda um outro depoimento confirma

Vocecirc natildeo tem nem a peccedila na matildeo mas vocecirc jaacute tem o desenho entatildeo a gente jaacute co-meccedila a modificar determinadas coisas soacute a partir da experiecircncia que vocecirc adquiriu Porque quando eu imagino uma peccedila eu natildeo imagino a peccedila que estaacute na minha frente imagino ela laacute na frente estampada Um painel de porta por exemplo para mim soacute vai mudar o design mas eu jaacute tenho aquela configuraccedilatildeo de que eacute uma por-ta ou uma lateral e quais satildeo os pontos que vatildeo dar mais problemas (Mestre de ferramentaria)

116

Figura 1 Desenho ldquobidimensionalrdquo de uma ferramenta

117

Apesar de que na Empresa T haacute um software que fornece um desenho em 3D os

ferramenteiros conseguem esse tipo de projeccedilatildeo por meio de uma abstraccedilatildeo ou como eles

dizem ldquovisualizando em 3Drdquo Para ilustrar a estrateacutegia de ldquovisualizar em 3Drdquo tomemos como

exemplo as Figuras 1 2 3 4 e 5 A Figura 1 corresponde ao desenho de uma ferramenta

posto em uma forma plana isto eacute bidimensional As Figuras 2 3 4 e 5 correspondem agrave Figura

1 em uma forma tridimensional Eacute importante comentar que o avanccedilo das figuras indica uma

visualizaccedilatildeo mais depurada da ferramenta ou seja para se chegar agrave visualizaccedilatildeo em 3D da

Figura 4 eacute necessaacuterio uma maior capacidade de abstraccedilatildeo do ferramenteiro

Figura 2 a 5 A mesma ferramenta vista em ldquo3Drdquo

d) ldquoMelhor jeito de trabalharrdquo

Se jaacute foi dito anteriormente que o processo de trabalho na Empresa T revela uma dis-

tacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho real foi possiacutevel observar tambeacutem que a com-

118

plexidade do trabalho real na ferramentaria ao mesmo tempo em que solicita dos ferramentei-

ros a criaccedilatildeo de estrateacutegias para produzir saberes taacutecitos acaba por lhes permitir imprimir as

suas ldquomarcasrdquo no trabalho Assim podemos afirmar que o trabalho real natildeo revela somente as

demandas teacutecnicas da produccedilatildeo mas tambeacutem alguns aspectos que estatildeo vinculados aos inte-

resses dos proacuteprios ferramenteiros Eles se manifestam por exemplo em suas preocupaccedilotildees

em fazer um trabalho mais bonito menos cansativo que os integre no coletivo de trabalho ou

mesmo que lhes permita ser menos presos agrave prescriccedilatildeo Chamamos essas estrateacutegias ldquomelhor

jeito para trabalharrdquo Ao ser indagado sobre a importacircncia da experiecircncia para o ferramentei-

ro a fala de um deles parece indicar que este tipo de recurso lhe permite ser menos ldquovigiadordquo

Acho que esse eacute o grande ponto de virada do ferramenteiro que hoje ele chama de ferramenteiro II ele sabe o jeito mais faacutecil de trabalhar O ferramenteiro III no ca-so da nossa escala da firma ele eacute um ferramenteiro que ele pode montar a ferra-menta sem o monitoramento de outra pessoa acima dele

Pudemos perceber que os ferramenteiros com certa frequumlecircncia se referem a ldquoum me-

lhor jeito de trabalharrdquo Ao indagarmos sobre o que seria esse ldquomelhor jeito de trabalharrdquo ob-

tivemos respostas de uma forma quase consensual nas quais os ferramenteiros ressaltavam

que cada profissional encontra o seu ldquomelhor jeito para trabalharrdquo Eis alguns depoimentos

Para mim o jeito mais faacutecil de trabalhar eacute quando vocecirc usa recursos para te ajudar quando vocecirc usa daquela ferramenta que estaacute ao seu redor pra taacute executando o tra-balho de uma maneira mais faacutecil eficaz Para mim eu evito fazer forccedila por isso que eu penso mais pra taacute executando esse trabalho Para mim eacute menos forccedila que esse modo me garante me garanta um niacutevel de acerto maior eacute o que eu costumo fazer (Ferramenteiro)

O uso do ldquomelhor jeito de trabalharrdquo reduz o sofrimento que estaacute presente no trabalho

do ferramenteiro

Eacute quando vocecirc trabalha muito vocecirc faz um esforccedilo fiacutesico muito grande porque vocecirc natildeo pensou antes de realizar tal tarefa natildeo pensou nos objetivos pegou o ser-viccedilo e tocou o serviccedilo soacute que na metade do caminho vocecirc vecirc que jaacute natildeo taacute compen-

119

sando mais ter tomado aquela atitude soacute que aiacute natildeo daacute mais para vocecirc voltar atraacutes vocecirc tem que continuar e terminar o serviccedilo isso eacute sofrer por causa do esforccedilo fiacute-sico que vocecirc faz (Ferramenteiro)

Esse ldquomelhor jeito de trabalharrdquo pode ser encontrado tambeacutem quando em alguns de-

poimentos os ferramenteiros mencionaram que as suas invenccedilotildees no processo de trabalho de-

vem-se a uma tentativa de realizar um trabalho com mais teacutecnica Muitas vezes essa noccedilatildeo de

um trabalho com mais teacutecnica se aproxima de uma noccedilatildeo de um trabalho mais bonito ou mais

limpo Constatamos essa possibilidade quando um ferramenteiro nos explicou a sua forma de

realizar um trabalho chamado por ele de localizaccedilatildeo de punccedilotildees Segundo ele a maioria dos

colegas fazia este trabalho usando uma massa plaacutestica Entretanto o seu ldquomelhor jeito de tra-

balharrdquo dispensava a massa plaacutestica o que fazia o trabalho ficar mais bonito e ainda natildeo o

incomodava tanto porque natildeo exalava cheiro Vejamos este depoimento

Para localizar um punccedilatildeo eu uso uma forma mais teacutecnica A outra que o pessoal usa eacute com massa plaacutestica soacute que desta forma eacute feio a massa plaacutestica eacute um produto quiacutemico e deixa marcas e aleacutem disso para vocecirc tirar o punccedilatildeo vocecirc tem que tirar a massa plaacutestica Eu natildeo gosto primeiro pelo fato do cheiro da massa plaacutestica natildeo gosto do cheiro da massa plaacutestica e segundo pelo fato do tempo que demora pra massa plaacutestica secar Por isso na minha concepccedilatildeo eacute melhor usar o reloacutegio apalpa-dor eacute mais limpo e mais bonito (Ferramenteiro)

Durante as nossas observaccedilotildees natildeo muito raro alguns ferramenteiros nos disseram

que o seu trabalho tem um lado que o aproxima do trabalho de um artesatildeo Ao falarmos sobre

isso com os ferramenteiros constatamos a busca do ldquomelhor jeito de trabalharrdquo aqui associado

a um trabalho mais bonito

O artesatildeo geralmente ele faz aquilo que estaacute na cabeccedila dele ele imagina sei laacute uma escultura um quadro sei laacute e a partir daiacute ele comeccedila a trabalhar O ferramenteiro tem que ter carinho com a peccedila ele natildeo pode chegar e jogar uma peccedila de qualquer jeito ele pode estragar uma peccedila ela fica com aspecto ruim Quatro meses de tra-balho vocecirc trabalha quatro meses para fazer uma ferramenta entatildeo de certa for-ma vocecirc jaacute estaacute habituado a todo dia chegar pro seu trabalho e vocecirc encontrar a-quelas ferramentas do seu setor Natildeo eacute que vocecirc pega amor por aquilo mas vocecirc sente prazer em fazer aquilo Um artesatildeo natildeo trabalha soacute porque tem que trabalhar ele gosta de fazer aquilo ele gosta de modelar aquilo o ferramenteiro eacute um mode-

120

lador A ferramenta em construccedilatildeo eacute a cara do ferramenteiro isso eacute dito na ferra-mentaria (grifo nosso)

Satildeo muitos os motivos que fazem do trabalho real por sua complexidade um campo

feacutertil para apresentar as estrateacutegias que os ferramenteiros criam para produzir os seus saberes

taacutecitos chamadas por noacutes de ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo ldquover o todordquo ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo

e ldquomelhor jeito de trabalharrdquo

Nossas observaccedilotildees nos permitem dizer que a complexidade do trabalho real faz com

que essas estrateacutegias de produccedilatildeo de saberes estejam intimamente articuladas com as estrateacute-

gias de mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes taacutecitos Ateacute o momento discutimos os dados

de nossa pesquisa indicando as estrateacutegias que os ferramenteiros usam para produzir os seus

saberes taacutecitos e as situaccedilotildees que convocam o uso deste tipo de saber Faz-se necessaacuterio de

agora em diante apresentar as estrateacutegias que os ferramenteiros criam para mobilizar diversos

tipos de saberes em especial os saberes taacutecitos

42 AS ESTRATEacuteGIAS DOS FERRAMENTEIROS PARA MOBILIZAR OS SEUS SABERES

Se ateacute entatildeo apresentamos as estrateacutegias para a produccedilatildeo do saber taacutecito sem nos re-

ferirmos ao conjunto de saberes que satildeo mobilizados por esse tipo de estrateacutegia eacute porque co-

mo jaacute foi dito nos preocupamos em explorar e evidenciar de maneira mais compreensiacutevel al-

gumas situaccedilotildees que convocam o saber taacutecito Todavia gostariacuteamos de chamar a atenccedilatildeo aqui

para as estrateacutegias que os ferramenteiros criam para mobilizar os seus saberes pois em nossa

pesquisa de campo deparamos com vaacuterias situaccedilotildees evidenciadas em algumas entrevistas em

que o uso de um determinado saber taacutecito demanda a mobilizaccedilatildeo de saberes de diversas or-

dens

121

Bom para mim o ferramenteiro precisa passar por todas as etapas que constituem uma ferramenta ele precisa de passar pela etapa ao contraacuterio O que eacute pelo contraacute-rio O contraacuterio eacute ele viver a faacutebrica viver o planejamento e viver a projeccedilatildeo da ferramenta entatildeo isso consiste o ferramenteiro O que eacute que ele vai ser para ele ser um bom ferramenteiro ele precisa ter estas trecircs etapas que geralmente eacute para cons-truir uma ferramenta projetar planejar a sua construccedilatildeo e saber executar esta cons-truccedilatildeo Tanto eacute que para interpretar muito bem o desenho o desenho eacute o iniacutecio de tudo se vocecirc tiver alguma duacutevida em relaccedilatildeo ao desenho vai ser complexo vocecirc in-terferir no final da ferramenta vocecirc desenvolver a ferramenta (Ferramenteiro)

Em Charlot (2000) a noccedilatildeo de mobilizaccedilatildeo relaciona-se agrave ideacuteia de movimento que de-

riva do interior das pessoas ldquomobilizar eacute pocircr recursos em movimento Mobilizar-se eacute reunir

suas forccedilas para fazer uso de si como recurso () mobilizar-se poreacutem eacute tambeacutem engajar-se

em uma atividade originada por moacutebilesrdquo (p 55) Tomamos de empreacutestimo a perspectiva de

Charlot sobre mobilizaccedilatildeo para evidenciar que os ferramenteiros trabalham recorrendo a es-

trateacutegias para mobilizar muacuteltiplos saberes Estes profissionais se mobilizam por inteiro para

construir uma ferramenta colocando em movimento estrateacutegias variadas dentre os quais pu-

demos identificar ldquorecorrer aos saberes do coletivo de trabalho lsquoesforccedilo de abstraccedilatildeorsquo lsquosaber

usar o proacuteprio corporsquo aleacutem de lsquorecorrer aos saberes cientiacuteficos e tecnoloacutegicosrsquordquo

Conforme apontamos anteriormente as nossas observaccedilotildees e entrevistas indicam que

o primeiro momento em que os saberes taacutecitos se apresentam daacute-se na tentativa por parte dos

ferramenteiros de interpretar o desenho da ferramenta Esse tipo de prescriccedilatildeo como vimos

caracteriza-se pela enorme quantidade de informaccedilotildees na forma de linhas e medidas Quase

todos os ferramenteiros disseram que aprenderam a ler um desenho mecacircnico no Senai o que

em tese demonstra que esse tipo de saber pode ser ensinado Entretanto todos eles afirmaram

que a experiecircncia com a construccedilatildeo de ferramenta eacute o elemento chave para que eles possam

aprender a interpretar o desenho que se usa na ferramentaria Segundo um dos ferramenteiros

ldquono Senai a gente aprende a matar largatixa aqui no dia-a-dia noacutes temos que aprender a ma-

tar jacareacuterdquo Em um outro depoimento mais contundente um ferramenteiro nos relatou o se-

guinte

122

O desenho sempre vai ter uma base que eacute o conhecimento teoacuterico Se vocecirc pegar um desenho em primeiro ou em terceiro diedro7 ele vai ser primeiro diedro e ter-ceiro diedro em qualquer parte do mundo A linguagem universal vocecirc aprende no campo da teoria estudando o desenho mesmo dentro da escola Agora existe um viver praacutetico eacute muito importante o lidar com determinadas peccedilas a experiecircncia do dia-a-dia porque o nosso desenho tem um agravante muito grave que ele natildeo tem detalhes Todos os elementos da ferramentaria estatildeo desenhados num soacute desenho entatildeo a pessoa precisa de enxergar todos os elementos naquele desenho de conjun-to (Ferramenteiro)

Para realizar o seu trabalho os ferramenteiros mobilizam saberes jaacute formalizados pela

ciecircncia e tecnologia bem como saberes taacutecitos que nascem na experiecircncia cotidiana indivi-

dual e coletivamente Entre os ferramenteiros que abordamos alguns natildeo tinham passado pelo

Senai ou seja natildeo tinham acessado atraveacutes da escola formal os saberes necessaacuterios agrave inter-

pretaccedilatildeo de desenho Ao longo de sua experiecircncia em chatildeo de faacutebrica eles aprenderam a mo-

bilizar saberes para interpretar o desenho e realizar o seu trabalho Apresentaremos a seguir

algumas situaccedilotildees que expressam as estrateacutegias que os ferramenteiros que passaram ou natildeo

pela escola formal criam para mobilizar os seus saberes variados

a) Recurso aos saberes do coletivo de trabalho

Pudemos observar que ao relativizarem a contribuiccedilatildeo da escola formal sempre ci-

tando o Senai e enfatizarem o papel da experiecircncia no chatildeo de faacutebrica no desenvolvimento de

um saber taacutecito que lhes permita interpretar o desenho da ferramenta os ferramenteiros se re-

feriram positivamente ao papel dos ldquosaberes do coletivo de trabalhordquo Um dos ferramenteiros

ao ser indagado sobre como conseguiu superar a sua dificuldade inicial com o desenho nos

relatou o seguinte

Houve momentos que pessoas me auxiliaram agraves vezes porque eu tive dificuldade de taacute entendendo aquelas linhas o que elas estavam querendo demonstrar para mim e agraves vezes pelo tempo por esse tempo para executar um determinado trabalho Pelo fato de eu natildeo ter aquele conhecimento ainda eu estava demorando para fazer neacute conseguir interpretar feito isso pessoas mais experientes chegam e te ajudam para

7 Segundo a explicaccedilatildeo dos ferramenteiros diedro eacute o rebatimento que se faz das vistas laterais da planta de qualquer desenho Dessa forma o chamado primeiro diedro a lateral da planta eacute projetada do lado direito jaacute no terceiro diedro a lateral da planta eacute projetada do lado esquerdo

123

que aquilo ali se consiga resolver aquela determinada tarefa (Ferramenteiro grifo nosso)

Em um outro depoimento novamente aparece uma referecircncia agrave possibilidade de os

ferramenteiros estarem aprendendo com um colega geralmente mais experiente

Na maioria das vezes quando vocecirc entra para trabalhar eles te apresentam o traba-lho vocecirc entra para trabalhar junto com alguma pessoa nunca vocecirc entra com o cargo de chefe da ferramenta Dificilmente vocecirc consegue aprender o projeto sozi-nho vocecirc comeccedila com o acompanhamento de uma pessoa que te auxilie te mostre alguns macetes para vocecirc comeccedilar a ver raacutepido uma determinada medida porque o nosso desenho eacute muito tracejado muita linha tracejada Entatildeo esse macete essa experiecircncia saber onde que taacute passando realmente a linha tracejada onde eacute que a linha eacute visiacutevel eacute que vocecirc sabe qual plano de altura que taacute a peccedila isso te confunde muito (Ferramenteiro)

Para aleacutem da interpretaccedilatildeo do desenho os ldquosaberes do coletivo de trabalhordquo satildeo tidos

pelos ferramenteiros como fundamentais para que eles se desenvolvam profissionalmente Na

empresa T de certa forma a interferecircncia dos ldquosaberes do coletivo no trabalhordquo de cada fer-

ramenteiro individualmente se vincula agrave organizaccedilatildeo do trabalho adotada pela empresa Os

ferramenteiros satildeo agrupados em ceacutelulas de forma que todos embora faccedilam diferentes traba-

lhos satildeo responsaacuteveis pela mesma ferramenta E ainda essa organizaccedilatildeo do trabalho preco-

niza uma hierarquia pela qual os ferramenteiros III coordenam e auxiliam o trabalho dos fer-

ramenteiros II sendo que estes coordenam e auxiliam o trabalho dos ferramenteiros I que

por sua vez satildeo auxiliados pelos aprendizes de ferramenteiro Foi possiacutevel constatar que essa

organizaccedilatildeo da ceacutelula natildeo impede que o mestre por exemplo faccedila interlocuccedilotildees com os a-

prendizes de ferramentaria Verificamos inclusive que uma das funccedilotildees dos mestres em fer-

ramentaria eacute acompanhar a formaccedilatildeo praacutetica dos aprendizes de ferramentaria e o do ferramen-

teiro I E ainda foi possiacutevel observar que os mestres veladamente dividem essa tarefa com

os ferramenteiros III

Apesar de a organizaccedilatildeo das ceacutelulas da ferramentaria na Empresa T obedecer a uma

oficialidade prescrita pela gerecircncia foi possiacutevel observar que entre os ferramenteiros circulam

124

normas e valores alheios ao que estaacute disponibilizado pelo trabalho prescrito que podem fun-

cionar como estrateacutegias para mobilizar saberes Segundo Daniellou Laville e Teiger (1989) a

socializaccedilatildeo de saberes entre os trabalhadores ocorre normalmente de maneira informal ou

seja natildeo-oficial Neste sentido encontramos diversas situaccedilotildees em que os ferramenteiros se

valem dos saberes do seu coletivo de trabalho para realizar uma determinada atividade cujo

conteuacutedo natildeo eacute totalmente conhecido pela gerecircncia Segundo a fala de um ferramenteiro

Tem coisa que eacute simples mas que vai te ajudar a resolver um problema complexo Muitas vezes pelo fato da sua duacutevida ser boba vocecirc fica sem jeito de perguntar o seu chefe o seu mestre vocecirc pergunta para um ferramenteiro que vocecirc confia tan-to porque ele sabe agraves vezes mais do que o mestre e porque ele natildeo vai te reprimir Inclusive jaacute aconteceu comigo um ferramenteiro experiente acaba te mostrando que a sua duacutevida natildeo era boba (Ferramenteiro)

Em um outro depoimento um ferramenteiro fez a seguinte reflexatildeo sobre os saberes

compartilhados pelos colegas de trabalho

Tem coisa que vocecirc aprende sozinho mas a ajuda dos colegas eacute importante demais Vocecirc sai igual aconteceu comigo do Senai e cai em uma ferramentaria de verdade eacute outro papo Se os ferramenteiros mais experientes natildeo te ajudarem vocecirc vai cus-tar a aprender Num eacute soacute nessa empresa natildeo eacute em qualquer outra Na ferramentaria tem coisa que parece ser mais natildeo eacute tem coisa que se vocecirc fizer igualzinho o de-senho natildeo vai funcionar Eacute por isso a ajuda dos colegas faz a diferenccedila O cara che-ga e te fala ldquoVocecirc tem fazer um aliacutevio aqui se natildeo acontece isso e issordquo Pois eacute igual eu te falei na ferramentaria por mais que vocecirc aprenda sozinho sem ajuda de um cara experiente fica complicado Eu tenho que agradecer porque sempre traba-lhei com ferramenteiro que gosta de ensinar (Ferramenteiro)

Observamos que a relaccedilatildeo dos ferramenteiros com os saberes do seu coletivo de traba-

lho natildeo eacute de simples transmissatildeo Neste sentido a constataccedilatildeo que fizemos de que os ferra-

menteiros mobilizam saberes reapropriados do seu coletivo de trabalho nos favoreceu a iden-

tificar ainda um outro tipo de mobilizaccedilatildeo de saber o ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo

b) ldquoEsforccedilo de abstraccedilatildeordquo

Ainda que possuam uma razoaacutevel compreensatildeo do trabalho prescrito os ferramentei-

ros concentram as suas estrateacutegias para mobilizar os seus saberes tambeacutem na construccedilatildeo da

125

ferramenta Em um grande nuacutemero de situaccedilotildees eles mobilizam os seus saberes taacutecitos para

ldquoajustar peccedilas para preacute-montar a ferramenta para dar acabamento e na montagem finalrdquo en-

fim para colocaacute-la em condiccedilatildeo de trabalho Os ferramenteiros elegem o ldquoesforccedilo de abstra-

ccedilatildeordquo dos movimentos da ferramenta como um recurso essencial para compreender o trabalho

prescrito Chamaremos de ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo o empenho que os ferramenteiros fazem pa-

ra associar a fala de um colega a um determinado componente ou mesmo para compreender

uma determinada situaccedilatildeo de funcionamento da ferramenta

Durante a construccedilatildeo da ferramenta o apelo a esse ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo coloca-se

tambeacutem como uma estrateacutegia de mobilizaccedilatildeo de saberes Mesmo com a ferramenta jaacute em

construccedilatildeo o recurso ao ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo eacute utilizado para que eles possam superar as

deficiecircncias do trabalho prescrito e ainda como uma forma de viabilizar a comunicaccedilatildeo entre

os colegas

Se o cara natildeo imaginar o que vocecirc estaacute falando ele natildeo enxerga ele natildeo aprende aliaacutes ele tem que enxergar para entender o que estaacute sendo falado Na ferramentaria vocecirc aprende todo dia mas o ferramenteiro experiente aprende mais Aprende mais por quecirc Porque ele enxerga mais coisas A mente do ferramenteiro tem que entrar dentro da ferramenta pelo menos comigo foi assim (Ferramenteiro)

O esforccedilo para abstrair a movimentaccedilatildeo da ferramenta pode colocar-se como um meio

de estabelecer uma complexa forma de ldquocomunicaccedilatildeo virtual com o trabalho prescritordquo Para

alguns ferramenteiros na medida em que se visualiza a ferramenta pode-se tambeacutem entender

melhor por que certas coisas satildeo exigidas na ferramenta Observamos que alguns ferramentei-

ros buscam simular um diaacutelogo com quem concebeu o trabalho prescrito qual seja o projetis-

ta da ferramenta

Quando vocecirc analisa bem o projeto vocecirc jaacute o tem em mente Sem conhecer o pro-jetista vocecirc sabe o que ele jaacute taacute pensando vocecirc jaacute sabe o que ele pensou quando projetou aquela ferramenta Por exemplo um ferramenteiro me chamou saacutebado porque ele natildeo estava conseguindo entender uma coisa Ele via aquilo no desenho mas natildeo conseguia imaginar aquilo funcionando entatildeo foi a partir desse ponto que eu peguei e noacutes sentamos juntos eu peguei e simulei eu fui desenhando e imagi-

126

nando Neste ponto eu vi o que ele tinha projetado Quando vocecirc projeta vocecirc pro-jeta as linhas e elas satildeo paradas entatildeo eu vi juntamente com ele observamos aque-la situaccedilatildeo Eu peguei e falei com ele olha o projetista ele pensou da seguinte forma ldquoessa cunha vai encostar no lado de caacute ela vai cortar do lado de caacuterdquo Natildeo necessariamente o desenho contou isso mas foi olhando o desenho e imaginando que soacute poderia considerar daquela forma ou entatildeo natildeo ia funcionar O projetista ti-nha pensado de alguma forma a gente ficou ali sentado uma meia hora mas aiacute eu consegui entender o que ele realmente pensava Ele pensava o funcionamento dessa forma e consultando outras pessoas depois para tirar as duacutevidas o pessoal da en-genharia a coisa eacute do jeito que a gente tinha imaginado (Ferramenteiro)

Ainda um outro depoimento confirma

Natildeo adianta muitas vezes vocecirc querer tomar uma decisatildeo precipitada Muitas ve-zes vocecirc tem que dar aquela paradinha para fazer uma reflexatildeo analisar direitinho muitas vezes vocecirc chega ali e opa Natildeo o que que taacute acontecendo aqui Vocecirc vai analisar se for possiacutevel vocecirc bate um papo com o outro colega ou chama o superi-or ou tal vai na engenharia Muita vezes a gente tem que procurar neacute esse povo porque vocecirc pode chegar aqui e taacute interpretando aquilo ali vocecirc taacute vendo uma for-ma mas talvez se vocecirc fala mas o que o cara estava querendo expressar o que que o cara quis determinar nisso aqui Vocecirc taacute lendo um desenho muitas vezes vocecirc precisa dessa ajuda ou vocecirc tem que saber o que o cara quis pensar o que o cara pensou (Ferramenteiro)

O ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo ao mesmo tempo em que lhes facilita compreender um de-

terminado raciociacutenio de um colega associando-o a uma situaccedilatildeo de trabalho acaba por lhes

permitir tambeacutem uma reapropriaccedilatildeo dos saberes do seu coletivo de trabalho o que lhes permi-

te uma construccedilatildeo pessoal do seu proacuteprio saber Verificamos que essa reapropriaccedilatildeo de sabe-

res manifestada pelos ferramenteiros indica tambeacutem que eles podem mobilizar saberes por

meio de uma estrateacutegia que chamamos de ldquosaber usar o corpordquo Eacute o que apresentaremos no

proacuteximo toacutepico

c) ldquoSaber usar o corpordquo

Ao tentar identificar as estrateacutegias utilizadas pelos ferramenteiros para mobilizar os

seus saberes verificamos uma frequumlente referecircncia a um certo ldquosaber usar o corpordquo no traba-

lho Conforme jaacute dissemos alguns pensadores (ARANHA 1997 SANTOS 1997) criticam as

concepccedilotildees que naturalizam os saberes taacutecitos Portanto ao abordar o saber taacutecito pelos atri-

127

butos corporais poderiacuteamos correr o risco de corroborar a loacutegica de naturalizaccedilatildeo deste tipo de

saber Natildeo obstante inuacutemeras vezes os ferramenteiros se referem ao ldquosaber usar o corpordquo co-

mo estrateacutegia fundamental para mobilizar os seus saberes taacutecitos Muitos apontam inclusive

que o uso do corpo eacute um dos aspectos que confere ao ferramenteiro uma vantagem sobre o

projetista

O projetista tem um grande problema hoje em dia Antes ele trabalhava com a prancheta agora ele trabalha no computador em uma tela de no maacuteximo 20 pole-gadas As nossas ferramentas aleacutem de ter vaacuterios componentes agraves vezes 700 ou 800 mede quase 3 ou 4 metros E tem mais no computador vocecirc natildeo pega com a matildeo natildeo ouve e natildeo vecirc direto as peccedilas Noacutes olhamos escutamos ateacute para usar a visatildeo tem macete que no computador deve ser mais difiacutecil neacute (Ferramenteiro)

Ademais pudemos constatar que esse ldquosaber usar o corpordquo eacute parte de uma trama que

envolve outros diversos saberes os quais satildeo mediados por estrateacutegias que mobilizam o cole-

tivo no trabalho a reapropriaccedilatildeo de saberes formais a memoacuteria e aspectos subjetivos como a

esteacutetica Em muitas situaccedilotildees com que nos deparamos em nosso campo de pesquisa eviden-

ciou-se que o uso do corpo pelos ferramenteiros para realizar uma determinada atividade natildeo

prescinde de outros saberes

Existe uma outra coisa chamada habilidade A habilidade do ferramenteiro se faz com os anos Para vocecirc estabelecer fazer uma correccedilatildeo de uma superfiacutecie se eu te perguntasse vocecirc compraria um carro com amassamento Natildeo Entatildeo vocecirc compra um carro com ondulaccedilatildeo De jeito nenhum Agora tem homens inclusive eu que satildeo especialistas em passar pedra para criar superfiacutecies em condiccedilotildees para quando estampar a chapa Para isso a experiecircncia eacute fundamental porque vocecirc tem que sa-ber usar a matildeo o tato e a visatildeo mas vocecirc tem que saber por que um acabamento eacute assim e assado Quando vocecirc sabe por que que uma parte da ferramenta tem um ti-po de acabamento e uma outra parte tem outro tipo fica mais faacutecil vocecirc se sente mais seguro vocecirc sabe ateacute onde daacute para inventar (Mestre de ferramentaria)

Uma outra situaccedilatildeo em que verificamos o ldquosaber usar o corpordquo deu-se a partir da ob-

servaccedilatildeo que fizemos do trabalho de um ferramenteiro tido pelos colegas como excelente

profissional para dar acabamento Ao nos aproximarmos desse profissional observamos que

ele fitava a ferramenta abaixava e levantava a cabeccedila inclinando levemente o peito para fren-

128

te Este estranho movimento nos chamou muito a atenccedilatildeo Foi quando o abordamos e ele nos

convidou a localizar um problema no acabamento de uma ferramenta Jaacute sabiacuteamos que se tra-

tava de um trabalho de acabamento e ao perguntarmos o porquecirc daqueles movimentos com o

corpo esse ferramenteiro iniciou o seu relato

Esse trabalho depende muito da visatildeo depende muito da posiccedilatildeo que vocecirc olha Taacute vendo essa quina aqui taacute vendo ela tem um raio se isso ficar errado perde o servi-ccedilo todo Soacute para vocecirc ter uma ideacuteia esse tipo de ferramenta eacute a primeira vez que eacute feita no Brasil Esse trabalho aqui as maacutequinas natildeo conseguem fazer eacute com a matildeo de um ferramenteiro que ela eacute feita Eacute igual eu te falei vocecirc tem que procurar uma posiccedilatildeo para poder enxergar os buraquinhos8 eu ateacute torccedilo um pouco a cabeccedila vou para laacute e para caacute ateacute achar um ponto para ver melhor (Ferramenteiro)

Ao ser indagado por que o seu trabalho de acabamento eacute tido como diferente dos de-

mais colegas a resposta dada por este ferramenteiro nos revela que aleacutem do ldquosaber usar o

corpordquo eles mobilizam saberes formais reapropriados da ciecircncia e tecnologia

Para dar acabamento tem um monte de conhecimento Tem uns caras que usam umas pedra mais fina porque ela corta menos e natildeo precisa a pessoa pocircr forccedila Po-de ser pouquinha forccedila se vocecirc quiser que um trabalho rende entatildeo a pessoa tem que usar uma pedra mais grossa uma sessenta dependendo do material se for mui-to duro se for material duro tem que ser uma pedra sessenta entendeu Eu aprendi uma coisa laacute na Fiat Eu faccedilo o seguinte eu uso lixa grossa e uma pedra grossa e o acabamento fica bom Porque eu faccedilo igual as maacutequinas da usinagem Para dar a-cabamento elas (as maacutequinas) trabalham com alta rotaccedilatildeo entatildeo eu passo a lixa ou a pedra com rapidez Na ferramentaria a pessoa tem que ter entusiasmo tem que gostar tem gente que natildeo gosta eacute cego quem natildeo vecirc tem gente que natildeo gosta natildeo tem entusiasmo Eu natildeo toda vida eu tive entusiasmo por ferramentaria por meca-nizaccedilatildeo pneumaacutetica graccedilas a Deus Por isso eu tocirc aiacute ateacute hoje garrado (risos) por-que eu gosto eu gosto de fazer o meu trabalho (Ferramenteiro)

Um depoimento de outro ferramenteiro aleacutem de corroborar a possibilidade de um cer-

to ldquosaber usar o corpordquo ndash no caso a visatildeo e o tato ndash ser tomado como um saber taacutecito aponta

tambeacutem a contribuiccedilatildeo de outros saberes formais como as noccedilotildees de desenho mecacircnico e de

geometria

8 Embora esse ferramenteiro e outros tenham falado em buraquinhos eacute importante esclarecer que trata-se de alteraccedilotildees de relevo da ordem de centeacutesimo de miliacutemetros ou seja dificiacutelimos de serem vistos a olho nu

129

Geralmente vocecirc olha a peccedila num plano horizontal vocecirc consegue ver que a super-fiacutecie estaacute um pouco ondulada quando a superfiacutecie estaacute com o acabamento constan-te O outro ponto eacute o horizontal quando vocecirc enxerga a peccedila entre a curvatura e o plano vocecirc natildeo consegue ver isso na terra Quando vocecirc natildeo consegue ver vocecirc tem que sentir a peccedila vocecirc vai passando a matildeo na superfiacutecie da peccedila vocecirc sabe se ela estaacute ondulada se precisa de mais acabamento e um raio por exemplo a gente chama de raio quebrado eacute quando o raio tem quina essa quina na verdade nada mais eacute do que o encontro aonde termina e onde comeccedila o desenho do raio Esse ponto tem que ter concordacircncia exata no plano se ele natildeo tem concordacircncia no plano ele vai ter quina e essa quina vocecirc soacute observa no tato vocecirc passa a matildeo e sente opa esse raio aqui estaacute precisando ter um acabamento melhor (Ferramentei-ro)

Observamos que o trabalho prescrito na Empresa T natildeo soacute reconhece a validade deste

ldquosaber usar o sentido da visatildeordquo bem como vem procurando dotar uma estrutura fiacutesica para

que ele possa ocorrer com mais facilidade Ainda tendo como base as indicaccedilotildees do depoi-

mento anterior fomos ateacute a linha do try-out da Empresa T e verificamos que haacute uma espeacutecie

de cabana equipada com lacircmpadas fluorescentes Segundo os ferramenteiros a incidecircncia de

luzes ajuda na identificaccedilatildeo dos ldquoburaquinhosrdquo na chapa praacutetica bem conhecida nas ferra-

mentarias

Jaacute passei por esta experiecircncia dentro da Fiat Tinha uma peccedila laacute a tampa traseira do Palio a primeira peccedila tava boa quando noacutes entregamos a peccedila para o pessoal da qualidade da Fiat eles pegaram a peccedila levaram ela pra debaixo do jogo de luz de-veria ter umas vinte lacircmpadas fluorescentes pegaram o oacuteleo e passaram sobre ela e olham pela horizontal eles foram observando e o pessoal foi mostrando para a gen-te olha por este ponto por este ponto dava pra ver manchas na peccedila (Ferramentei-ro)

Ainda um outro depoimento

Vocecirc olha no plano horizontal soacute que existe diferenccedila de vocecirc olhar no plano hori-zontal ou no plano vertical quando vocecirc olha a peccedila de cima pra baixo vocecirc natildeo consegue ver estas manchas se vocecirc olhar as peccedilas de cima pra baixo vocecirc natildeo tem noccedilatildeo de profundidade quando vocecirc olha a peccedila no plano horizontal vocecirc tem noccedilatildeo de profundidade Essa que eacute a diferenccedila de vocecirc olhar a peccedila no plano hori-zontal Quando vocecirc olha a peccedila assim vista grossa sem observar os pontos quando vocecirc observa os pontos no plano horizontal com noccedilatildeo de profundidade entatildeo daacute pra vocecirc ver se a peccedila estaacute ondulada ou natildeo Quando vocecirc olha por cima vocecirc natildeo vecirc que estaacute peccedila taacute ondulada entatildeo este eacute o ponto que a pessoa precisa ser um bom observador (Ferramenteiro)

130

Ao perguntarmos ao ferramenteiro como interpretar a incidecircncia das luzes sobre as pe-

ccedilas nos foi relatado que haacute uma influecircncia de saberes que circulam na ldquoescola formalrdquo como

por exemplo uma certa noccedilatildeo de oacuteptica No entanto se evidenciou tambeacutem que esses sabe-

res natildeo foram formalizados ainda pelo trabalho prescrito

Quando vocecirc passa o oacuteleo e com a luz refletida sobre ele eacute ateacute um pouco de fiacutesica neacute que eacute a refraccedilatildeo da luz e quando a luz bate sobre o oacuteleo quando vocecirc tem o mesmo plano de superfiacutecie constante essa superfiacutecie ela eacute refletida igualmente a luz eacute refletida igualmente Se vocecirc tem planos diferentes o plano superior ele eacute mais refletido o plano inferior a luz eacute refletida menor entatildeo justamente sobre esta sombra que vocecirc vecirc que a superfiacutecie natildeo taacute igual tem alguma ondulaccedilatildeo eacute justa-mente aiacute (Ferramenteiro)

e) ldquoRecurso aos saberes cientiacuteficos e tecnoloacutegicosrdquo

Haacute ainda outros tipos de saberes pertencentes ao campo da ciecircncia e da tecnologia

que satildeo mobilizados pelos ferramenteiros Alguns destes saberes jaacute foram inclusive indica-

dos em depoimentos anteriores Trata-se especialmente de saberes ligados ldquoao desenho me-

cacircnico agrave geometria agrave trigonometria e agrave tecnologia mecacircnicardquo9

Se de um lado demonstramos ao longo deste capiacutetulo que os ferramenteiros usam os

seus saberes taacutecitos para facilitar a interpretaccedilatildeo do desenho da ferramenta por outro lado a

maioria dos ferramenteiros apontam tambeacutem que conhecer as ldquonormas do desenho mecacircni-

cordquo eacute importantiacutessimo para poder interpretaacute-lo Em um depoimento nos foi relatado o seguin-

te ldquoquem natildeo souber ler o desenho dificilmente faraacute a ferramenta Apesar de que a gente a-

prende mesmo eacute na praacutetica a teoria ajuda bastante Se vocecirc jaacute sabe o que significa tal linha o

que significa tal siacutembolo eacute muito mais faacutecil para um outro cara te explicar o desenhordquo A fala

de um outro ferramenteiro aleacutem de corroborar o depoimento anterior aponta outras vanta-

gens de ter como eles dizem ldquouma base de desenho mecacircnicordquo

Se vocecirc jaacute tem uma base uma noccedilatildeo de desenho mecacircnico jaacute facilita muito O de-senho da ferramentaria eacute um desenho muito cheio de linhas e medidas Se vocecirc tem

9 Dentre os diversos processos associados agrave tecnologia mecacircnica Aqui tomaremos apenas alguns exemplos vinculados agrave usinagem agrave metrologia e agrave resistecircncia de materiais e evidentemente agrave proacutepria ferramentaria

131

essa noccedilatildeo de desenho vocecirc pode falar bem ou mal do projetista Vocecirc vai ver se ele estaacute te oferecendo tudo que ele podia te oferecer de informaccedilotildees Outra coisa importante da teoria eacute o detalhamento do desenho Vocecirc natildeo precisa ficar procu-rando uma medida porque agraves vezes o detalhe do desenho vai te explicar Entatildeo eacute bom vocecirc saber o que eacute um detalhe eacute bom ter uma certa teoria (Ferramenteiro)

Durante as nossas observaccedilotildees e tambeacutem nas entrevistas que realizamos pudemos

observar que uma boa parte dos ferramenteiros fazem valer os seus ldquosaberes de geometria e

trigonometriardquo Estes saberes nos foram explicitados ainda que somados aos saberes oriundos

da praacutetica em diversas situaccedilotildees que exigiam dos ferramenteiros a localizaccedilatildeo de uma deter-

minada medida ou de uma determinada peccedila a qual natildeo havia sido indicada pelo desenho da

ferramenta (ver Fig 6)

Apesar de ser um trabalho que pede bastante praacutetica a ferramentaria tambeacutem exi-ge uma noccedilatildeo de teoria Ontem mesmo tinha umas medidas faltando no desenho e natildeo tinha jeito de saber qual que seria essa medida porque a peccedila que seria monta-da natildeo estava pronta Eu fui e chamei o mestre da nossa ceacutelula e para adiantar o serviccedilo noacutes fizemos o caacutelculo pela trigonometria Nessa hora aleacutem da praacutetica eu ti-ve que usar a matemaacutetica a trigonometria (Ferramenteiro)

Figura 6 Croqui feito a partir de uma superposiccedilatildeo de triacircngulo retacircngulo

Em alguns casos pudemos observar que a noccedilatildeo de ldquogeometriardquo dos ferramenteiros

era enriquecida pelos saberes relacionados agrave ldquotecnologia mecacircnicardquo Essa possibilidade foi

132

constatada quando observamos que os ferramenteiros para explicar um trabalho uns aos ou-

tros mobilizam seus saberes de ldquogeometriardquo associando-os ao trabalho executado pela ferra-

menta Em um desses casos verificamos que conceitos oriundos da geometria como por e-

xemplo esquadro paralelismo ou perpendicularidade satildeo discutidos a partir da construccedilatildeo e

do funcionamento da ferramenta Vejamos um depoimento

Na ferramenta tudo depende do esquadro Eacute a partir do esquadro que a gente traba-lha todas as medidas da ferramenta Por quecirc A ferramenta faz o movimento de su-bir e descer Entatildeo ela tem que ter perpendicularidade tem que ter esquadro O que eacute um esquadro Noacutes chamamos de esquadro o encontro de duas superfiacutecies for-mando um acircngulo de 90 (graus) Aiacute eacute que eu te falo a teoria tambeacutem eacute importan-te porque se o ferramenteiro jaacute tem uma noccedilatildeo do que que eacute um esquadro na hora que ele ver ou imaginar a ferramenta trabalhando ele vai pensar no esquadro da ferramenta ele vai ficar preocupado Aiacute com certeza quando ele estiver constru-indo ele vai usar essa noccedilatildeo para controlar o seu proacuteprio trabalho (Mestre de fer-ramentaria)

Foi possiacutevel constatar tambeacutem que os ferramenteiros mobilizam um outro saber vin-

culado agrave ldquotecnologia mecacircnicardquo mais precisamente a ldquometrologiardquo parte da ciecircncia que cuida

do sistema de medidas voltadas para a construccedilatildeo (NOVASKI 1994) A mobilizaccedilatildeo dos sa-

beres vinculados agrave ldquometrologiardquo nos foi explicitada pelos ferramenteiros ao longo de toda a

construccedilatildeo da ferramenta muitas vezes associada agrave mobilizaccedilatildeo de um determinado saber taacute-

cito Segundo um ferramenteiro

O ferramenteiro tem que saber o que eacute um ajuste de precisatildeo natildeo basta ele seguir o desenho Ele tem que saber que dois centeacutesimos (de miliacutemetro) de erro pode com-prometer o funcionamento da ferramenta Por quecirc Eacute muito pouca coisa ele pode achar que natildeo errou nada Se ele entender de metrologia ele vai saber a importacircn-cia do ajuste Ateacute mesmo para criticar o desenho vocecirc tem que saber a influecircncia das medidas Eu jaacute vi acontecer o ferramenteiro tentar encaixar uma peccedila e ela natildeo entra de jeito nenhum Se tiver um centeacutesimo a mais natildeo encaixa mesmo vai te forccedilar para encaixar Se o cara conhece de ajuste de medidas ele natildeo vai forccedilar a peccedila Ele vai ajustar a medida para depois montar a peccedila (Ferramenteiro)

Para realizar o trabalho de acabamento pudemos verificar que os ferramenteiros mobi-

lizam outros saberes aleacutem daqueles oriundos da ldquometrologiardquo Observamos que para realizar

133

o acabamento eles se valem da sua percepccedilatildeo de centeacutesimos de miliacutemetros e da tecnologia de

corte da ldquousinagemrdquo

Esse trabalho de acabamento a gente tem que trabalhar buscando fazer um X tem passar a pedra sempre de forma cruzada sempre fazendo um X Sabe por quecirc Porque vocecirc nunca retira material por igual na superfiacutecie sempre sai mais de um lado do que do outro Isso acontece na maacutequina tambeacutem aliaacutes a gente soacute faz o acabamento na matildeo porque natildeo tem maacutequina que garanta dois centeacutesimos de preci-satildeo em toda superfiacutecie Se vocecirc compreender como o corte de material eacute feito na maacutequina vocecirc passa a compreender melhor como usar a pedra Entatildeo se vocecirc pas-sa a pedra em forma de X diminui a possibilidade de vocecirc passar a pedra num lu-gar soacute (Ferramenteiro)

Podemos afirmar embora esta possibilidade seja tratada com mais profundidade no

proacuteximo toacutepico que foram muitos os elementos encontrados em nossa pesquisa de campo que

demonstram que os ferramenteiros quaisquer que sejam os saberes que eles mobilizam soacute o

fazem por terem como referecircncia saberes que de alguma forma foram registrados e que por

isso mesmo podem em uma determinada circunstacircncia serem consultados ou ainda porque

foram disponibilizados por um outro colega de trabalho Dessa forma gostariacuteamos de salien-

tar que alguns saberes taacutecitos que os ferramenteiros mobilizam seratildeo mais bem percebidos

quando apresentarmos as estrateacutegias que eles criam para formalizar esses saberes

43 As ESTRATEacuteGIAS DOS FERRAMENTEIROS PARA FORMALIZAR OS SEUS SABERES TAacuteCITOS

O que eacute conhecido sempre parece sistemaacutetico provado aplicaacutevel e evidente para aquele que conhece Da mesma forma todo sistema alheio de conhecimento sem-pre parece contraditoacuterio natildeo provado inaplicaacutevel irreal e miacutestico (FLECK apud BURKE 2003)

Durante o periacuteodo em que ficamos imersos no campo de pesquisa foram muitas as ve-

zes em que os ferramenteiros sinalizaram uma preocupaccedilatildeo com a eficiecircncia ou com a vali-

dade dos seus saberes taacutecitos Constatamos tambeacutem que os ferramenteiros se mobilizavam

para tornaacute-los um objeto passiacutevel de ser comunicado de ser consultado para realizar um de-

134

terminado trabalho isto eacute um tipo de paracircmetro que de alguma forma eles pudessem usar em

situaccedilotildees futuras ou entatildeo para comunicaacute-lo aos seus pares no trabalho Ao nosso olhar esse

esforccedilo dos ferramenteiros em criar mecanismos que permitam comunicar os seus saberes taacute-

citos ou consultaacute-los quando for necessaacuterio pode ser entendido como estrateacutegias que eles

mesmos criam para formalizaacute-los De acordo com o dicionaacuterio Ferreira (1986 p 800) for-

malizar eacute ldquo[De forma + izar] vtd 1 ndash Dar forma a formar 2 ndash Realizar segundo as formulas

ou formalidades 3 ndash Executar conforme regras ou claacuteusulasrdquo Chamamos de estrateacutegias de

formalizaccedilatildeo ldquoos diaacuterios de bordo os croquis e os gabaritosrdquo que os ferramenteiros usam co-

mo forma de registrarem ou comunicarem os seus saberes taacutecitos No entanto ousaremos a-

presentar ldquoa memoacuteria e a reflexatildeordquo como uma espeacutecie de estrateacutegias particulares de formalizar

os saberes taacutecitos por parte dos ferramenteiros Eacute o que buscaremos apresentar de agora em

diante

Para Santos (1997) a imprevisibilidade e variabilidade das situaccedilotildees de trabalho a in-

fidelidade dos materiais e as vicissitudes do trabalho humano satildeo alguns dos fatores do traba-

lho real que resistem agrave formalizaccedilatildeo no trabalho prescrito Nossas observaccedilotildees no campo de

pesquisa bem como as entrevistas realizadas nos mostraram que de fato satildeo muitos os sabe-

res taacutecitos que escapam agraves estrateacutegias dos ferramenteiros em formalizaacute-los De acordo com

Santos (1997) o saber taacutecito pode ser da ordem do informalizaacutevel por dois motivos baacutesicos

Primeiro porque podem faltar na atualidade recursos de linguagem ou epistemoloacutegicos para a

formalizaccedilatildeo desse tipo de saber tal como para alguns saberes da engenharia Essa autora a-

inda fala que uma outra dificuldade em formalizar o saber taacutecito pode estar vinculada agraves bar-

reiras sociais e psiacutequicas que os trabalhadores podem ter para verbalizar uma experiecircncia En-

tretanto a proacutepria autora afirma que se de um lado isto significa que nem tudo pode ser sim-

bolizado codificado ou formalizado ldquopor outro lado demonstra que a experiecircncia deste in-

formalizaacutevel pode ser expressa em linguagens diferentes das usuaisrdquo (SANTOS 1997 p 20)

135

Santos (1997) entende que primeiro haacute saberes que ainda natildeo foram formalizados

mas que podem secirc-lo Segundo que haacute saberes que natildeo satildeo formalizaacuteveis Isto se aplica tanto

agravequeles que se inscrevem no trabalho real quanto a outros que satildeo oriundos da engenharia

De acordo com essa autora ldquoevidentemente o fato de que um saber natildeo foi ainda formalizado

natildeo significa que ele natildeo possa secirc-lo um diardquo (p 23) Santos (1997) faz uma criacutetica agrave perspec-

tiva que contesta a possibilidade de formalizaccedilatildeo dos saberes oriundos do chatildeo de faacutebrica

pois considera que tal noccedilatildeo se funda exclusivamente em um certo modelo de linguagem

proacuteprio do saber dos engenheiros ou seja do trabalho prescrito A autora aponta que um sa-

ber ainda natildeo formalizado pode se exprimir com os recursos de linguagem disponiacuteveis ao tra-

balhador da faacutebrica ou seja por linguagens que escapam ao modelo de formalizaccedilatildeo do traba-

lho prescrito pela engenharia

Como jaacute afirmamos anteriormente as estrateacutegias que os ferramenteiros usam para

formalizar os seus saberes taacutecitos se inscrevem tanto como um meio de registro desses sabe-

res quanto como uma forma de tornaacute-los comunicaacuteveis para si proacuteprio ou mesmo para o seu

coletivo de trabalho no presente ou no futuro

Dentre os vaacuterios relatos que coletamos alguns corroboram essa perspectiva apontada

por Santos (1997) de que os trabalhadores podem com sua proacutepria linguagem formalizar os

seus saberes taacutecitos Quando perguntamos aos ferramenteiros em que medida os saberes cons-

truiacutedos a partir da sua experiecircncia eram confiaacuteveis ou mesmo necessaacuterios um depoimento

nos pareceu revelador pelo seu conteuacutedo Ele indica que uma visatildeo mais ampliada do proces-

so de trabalho pode estar associada agrave capacidade dos ferramenteiros em formalizar os seus sa-

beres taacutecitos

E aiacute professor outro dia vocecirc me perguntou o que um ferramenteiro precisa saber tem um exemplo que estaacute acontecendo agora Eles estatildeo precisando da gente laacute na Fiat tem uma ferramenta dando problema laacute a linha estaacute parada Nessa hora o fer-ramenteiro natildeo pode soacute saber que o galo canta a gente tem que saber aonde o galo canta Quando a gente chegar laacute natildeo adianta falar que o produto natildeo estaacute bom a gente tem que localizar e acabar com o problema Eacute por isso que eu te falei o fer-ramenteiro completo um ferramenteiro bom natildeo eacute soacute aquele que monta as peccedilas

136

direitinho ele tem que saber o que eacute o quecirc Por que uma peccedila movimenta Ele tem que ter uma capacidade de monitorar a ferramenta quem sabe por que construiu com certeza vai ter mais facilidade para resolver qualquer problema (Ferramentei-ro)

Observamos que o uso das estrateacutegias por parte dos ferramenteiros para viabilizar a

comunicaccedilatildeo dos saberes taacutecitos no coletivo de trabalho serve tambeacutem como uma forma so-

cial de certificar a validade desse tipo de saber De certa forma isso indica que os saberes taacute-

citos dos ferramenteiros podem se inscrever a partir de uma ldquoperspectiva coletivardquo De acordo

com Collins apud Lima (1998) ldquoo saber estaacute nas situaccedilotildees no contexto em que se desenrola

a accedilatildeo o seu lugar por excelecircncia eacute o grupo social e natildeo a cabeccedila de seus membrosrdquo (p 144)

Em um depoimento que coletamos a necessidade que os ferramenteiros tecircm de se a-

poiar no seu coletivo de trabalho ao mesmo tempo em que remete agrave preocupaccedilatildeo em validar

os seus saberes taacutecitos nos revela tambeacutem a possibilidade de dar-lhes uma forma para co-

municaacute-los

O ferramenteiro nunca trabalha sozinho O que estaacute do lado de fora tem uma visatildeo do trabalho e pode ajudar o ferramenteiro que estaacute ligado diretamente trabalho Talvez uma opiniatildeo de quem estaacute do lado de fora da equipe dele que natildeo estaacute vi-vendo exatamente o trabalho mas a equipe que eacute composta por uma ceacutelula pode algueacutem chegar e dar uma opiniatildeo ele natildeo vai mudar soacute porque o outro falou os dois vatildeo discutir vatildeo saber exatamente qual que eacute melhor e vai fazer o que ele a-cha melhor (Mestre de ferramentaria)

Em um outro depoimento

Primeiro eu vou fazer uma colocaccedilatildeo eacute o seguinte quando a gente toma uma me-todologia de trabalho quando a gente de certa forma inventa o processo de traba-lho a ser feito eu particularmente nunca faccedilo isso soacute Eu tenho a minha opiniatildeo proacutepria mas sempre eu busco conselho eu busco opiniotildees de outras pessoas pra poder ver se as pessoas concordam com o meu pensamento porque a gente pode ser que esteja vendo a coisa por um lado com a opiniatildeo de outra pessoa a pessoa me apoacuteia e a gente realiza aquilo que eu imaginei ou entatildeo a pessoa me alerta so-bre determinado tipo de problema que pode acontecer se eu realmente levar em frente o que eu estou pensando sempre no meu caso eu procuro buscar opiniatildeo de outras pessoas e de preferecircncia pessoas mais experientes (Ferramenteiro)

137

A possibilidade de que a formalizaccedilatildeo dos saberes taacutecitos dos ferramenteiros dentre

outros motivos se decirc articulada ao coletivo do trabalho natildeo soacute eacute de conhecimento da empresa

T mas eacute assumida pela loacutegica do capital no sentido de melhorar o processo de trabalho Ve-

jamos a fala de um dos coordenadores da Ferramentaria

Hoje a metodologia que a gente implantou aqui na empresa eacute total liberdade do fer-ramenteiro desde de que ele discuta se tiver alguma duacutevida discuta com a chefia imediata ou colega sempre criaccedilatildeo e inovaccedilatildeo seraacute bem-vinda Mesmo se todo mundo que discutiu o assunto teve consciecircncia de que aquilo ia dar certo no final deu errado natildeo tem problema nenhum isso quer dizer que noacutes demos espaccedilo para ele criar talvez o resultado natildeo seja tatildeo satisfatoacuterio quanto imaginamos mas para outros que trabalham com certeza seraacute mais eficaz (Coordenador da ferramentaria)

a) Reflexatildeo

Aleacutem da influecircncia do coletivo de trabalho na formalizaccedilatildeo dos saberes taacutecitos mobili-

zados pelos ferramenteiros observamos que eles quase sempre submetiam estes saberes a um

ldquomomento de reflexatildeordquo o que de certa forma indica uma possibilidade de formalizaccedilatildeo Fo-

ram muitas as vezes em que nos deparamos com alguns ferramenteiros aparentemente sem

trabalhar Constatamos em alguns diaacutelogos inclusive junto agrave gerecircncia que dentro da Empresa

T esse ldquotempo paradordquo eacute tido como necessaacuterio ldquopara o tipo de trabalho que se faz na ferra-

mentariardquo Observamos que esse tempo para reflexatildeo permitia ao ferramenteiro aleacutem de uma

melhor compreensatildeo sobre o trabalho prescrito monitorar a mobilizaccedilatildeo dos seus saberes taacute-

citos e dar uma organizaccedilatildeo agraves suas ideacuteias Neste sentido torna-se exequumliacutevel por parte dos fer-

ramenteiros mobilizar saberes taacutecitos e ter uma razoaacutevel compreensatildeo sobre este processo

Essa possibilidade eacute bem explicitada nas situaccedilotildees em que os ferramenteiros manifestaram

uma sofisticada capacidade de abstraccedilatildeo ilustrada pela capacidade de fazer um trabalho e ao

mesmo tempo pensar em outro

Fazer uma coisa e estar pensando em outra eacute uma constante para o ferramenteiro porque para vocecirc realizar um trabalho vocecirc precisa pensar em como realizar o tra-balho A partir do momento que vocecirc comeccedila a realizar aquele trabalho manual de ajuste de acabamento soacute que a sua mente de certa forma estaacute um pouco vazia

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porque aquele trabalho que vocecirc estaacute fazendo ateacute entatildeo jaacute foi projetado de como vocecirc deveria fazer Vocecirc pode estar executando da forma que vocecirc natildeo tinha pen-sado em fazer Aiacute no proacuteximo trabalho que vocecirc tem que fazer vocecirc estaacute pensando nele ainda entatildeo vocecirc estaacute executando o trabalho como vocecirc jaacute pensou em como fazer e vocecirc jaacute estaacute pensando no trabalho a ser feito Isso eacute constante (Ferramentei-ro)

Vejamos um outro depoimento

Natildeo tenha duacutevida que o ser humano tem essa capacidade de estar trabalhando e au-tomaticamente vislumbrando algo agrave frente Mas eacute interessante ressaltar que durante o processo de trabalho sua mente e sua visatildeo o seu processo de trabalho tem que estar focado na sua atividade principal Eacute loacutegico o seu ceacuterebro tem uma capacidade de comando e de raciociacutenio que eacute incalculaacutevel quem sou eu para mensurar isso Mas a atividade primaacuteria eacute que te demanda maior concentraccedilatildeo e isso natildeo te impe-de de ver outras coisas ou imaginar outras coisas mas com certeza o foco principal vocecirc estaacute concentrado na operaccedilatildeo que vocecirc estaacute executando naquela hora (Ferra-menteiro)

Ainda sobre a possibilidade de a reflexatildeo expressar uma certa formalizaccedilatildeo de saberes

Por exemplo fazer uma alteraccedilatildeo e aiacute eu pensei em como vou fazer essa alteraccedilatildeo Eu vou prender a peccedila dessa forma eu vou colocar essa broca vou furar o preacute-furo vou fazer esse furo de 17mm e vou pegar uma broca de 18mm Comeccedila a realizar o trabalho Eacute aquilo que eu falei anteriormente eu natildeo posso estar executando uma tarefa atraacutes da outra tarefa sem pensar no todo sem pensar no funcionamento E eu tenho que pensar no funcionamento Aiacute eu consigo ter soluccedilotildees para problemas fu-turos Isso jaacute estaacute na minha cabeccedila memorizado desde a primeira vez que eu fiz o trabalho e esse trabalho ficou memorizado entatildeo eu jaacute tenho uma noccedilatildeo de como realizar (Ferramenteiro)

Mesmo quando a rotina parece recobrir a capacidade de reflexatildeo podemos pensar num

conjunto de saberes acumulados portanto num niacutevel qualquer de formalizaccedilatildeo

Aiacute que eu falo tem uns pulos do gato a gente daacute uma paradinha para monitorar o que estamos fazendo quando eu falo que a gente jaacute sabe e natildeo precisa pensar de-mais eacute jeito de falar eacute claro que dou umas paradinhas soacute que pela minha experiecircn-cia eu natildeo preciso ficar uma hora duas horas pensando (Ferramenteiro)

Um outro depoimento tambeacutem expressa a possibilidade de haver como diz Schon

(2000) uma ldquoreflexatildeo no meio da accedilatildeordquo

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A gente parte do pressuposto que toda vez que vocecirc quer ajustar uma determinada peccedila eacute porque vocecirc visa que essa peccedila eacute fundamental que ela tem acoplamento com a outra peccedila Durante o processo vocecirc vai fazendo uma microgestatildeo deste a-juste vocecirc vai passando a pasta de ajuste e a pasta de ajuste vai revelando para vo-cecirc quanto que a superfiacutecie taacute tocando se ela taacute tocando 50 da peccedila se taacute tocando 60 da peccedila cada ajuste que vocecirc vai aumentando vai chegando ateacute o limite miacute-nimo qual vocecirc precisa (Ferramenteiro grifo nosso)

Em nosso entendimento o uso da expressatildeo ldquonatildeo pensarrdquo por parte dos ferramenteiros

pode ser tomado como gastar ldquomenos tempo pensando ou pensar sem prestar muita atenccedilatildeo

neste atordquo o que envolve finalmente um tipo de ldquoreflexatildeordquo

b) Memoacuteria

Observamos ainda um outro caso que se articula com a preocupaccedilatildeo dos ferramentei-

ros com registro e comunicaccedilatildeo dos seus saberes taacutecitos e que se relaciona com as suas estra-

teacutegias de formalizaccedilatildeo desses saberes Trata-se do ldquouso da memoacuteriardquo ou dos artifiacutecios utiliza-

dos para preservaacute-la De acordo com Wisner (1987)

As tomadas de decisatildeo estatildeo longe de ser os uacutenicos componentes da atividade cog-nitiva ou mesmo os principais Existe a questatildeo das dificuldades perceptivas e das de identificaccedilatildeo e de reconhecimento O elemento mais criacutetico eacute provavelmente a memoacuteria quer seja imediata ou de longo prazo (p 175)

No que se refere aos ferramenteiros que abordamos ao mesmo tempo em que a me-

moacuteria eacute indicada por eles como um fator fundamental eles tambeacutem reconhecem os limites

da memoacuteria ou como eles proacuteprios dizem ldquoeacute difiacutecil de se guardar tudo na cabeccedilardquo Na maio-

ria dos depoimentos o uso da memoacuteria foi relacionado com a grande quantidade de compo-

nentes e informaccedilotildees contidas no desenho da ferramenta

O ferramenteiro usa muito a sua memoacuteria entatildeo ele sabe que natildeo deu certo Eacute soacute mediante a situaccedilatildeo de trabalho que ele vai lembrar porque ele tem uma etapa to-da um ferramental tem 300 500 itens eacute muita coisa pra ele lembrar mediante a si-tuaccedilatildeo eacute automaacutetico ele vai lembrar ldquoeu fiz daquele jeito deu errado agora eu fiz melhorei meu modo de pensarrdquo melhorei desenvolvi um meacutetodo melhor exata-

140

mente para aplicar na hora aquele passado vai ser apagado vai deletando a experi-ecircncia que deu errado (Ferramenteiro)

O depoimento seguinte ilustra o uso da memoacuteria como registro

Na ferramentaria um dia nunca eacute igual ao outro hoje eu tocirc mexendo com determi-nado serviccedilo pode este mesmo serviccedilo ou outro parecido voltar daqui uns anos Entatildeo eu natildeo posso simplesmente estaacute deixando aquilo pra traacutes eu tenho que guar-dar aqui na minha cabeccedila para quando eu encontrar aquela primeira dificuldade que eu tive na primeira vez Eacute esse o sentido que a gente tem de estaacute analisando um de-terminado serviccedilo e quando vocecirc torna a analisar de novo aquilo jaacute estaacute predefini-do daacute esta impressatildeo que estaacute guardado numa parte do seu ceacuterebro soacute quando vocecirc necessita que vocecirc vai laacute e resgata natildeo eacute em todo momento que vai ficar vin-do na sua cabeccedila (Ferramenteiro grifo nosso)

Verificamos ainda que os ferramenteiros em tese os mais experientes associaram o

registro por meio da ldquomemoacuteriardquo com o uso da visatildeo Ao encontrarmos um ferramenteiro com

quem jaacute viacutenhamos conversando observamos um aparente nervosismo com um colega que ha-

via mudado a sua ferramenta de posiccedilatildeo Ao justificar o porquecirc de tal nevorsismo ele acabou

por nos dizer que um colega lhe ensinou um macete para ter uma memoacuteria ldquofotograacuteficardquo atra-

veacutes de um certo jeito de olhar a ferramenta pelo melhor acircngulo

Eu sempre gosto de trabalhar com a ferramenta sempre numa posiccedilatildeo com a parte da frente virada para mim porque depois que vocecirc jaacute tem um certo contato com a ferramenta basicamente vocecirc decorou a ferramenta vocecirc quase nem olha mais o projeto Entatildeo se eu tenho sempre uma posiccedilatildeo aquela posiccedilatildeo eu decoro entatildeo agraves vezes eu brinco com os caras falo assim se eu estou nessa posiccedilatildeo olhando todos os componentes eu jaacute decorei entatildeo se eu tenho algum problema que eu natildeo consi-go resolver ele aqui agraves vezes laacute em casa pensando entatildeo eu jaacute estou em frente agrave ferramenta entatildeo aqui acontece isso ali acontece assim e tal Soacute desse jeito eu soacute trabalho com a ferramenta de frente pra mim de frente para minha bancada eacute a po-siccedilatildeo que eu trabalho Porque eu condicionei minha mente tambeacutem nisso Se eu te-nho uma dificuldade eu penso isso aqui vai nessa posiccedilatildeo ateacute mesmo pelo desenho mais para frente Vocecirc jaacute olha assim rapidinho jaacute sabe onde estaacute tal coisa (Ferra-menteiro)

Pudemos constatar que a ldquomemoacuteriardquo natildeo eacute somente uma forma passiva de subtrair in-

formaccedilotildees de um repertoacuterio dado pela experiecircncia de os ferramenteiros O uso da memoacuteria

permite ao ferramenteiro resgatar os saberes necessaacuterios agrave construccedilatildeo de uma nova ferramen-

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ta Por isso podemos considerar a memoacuteria como parte de uma trama fundamental na forma-

lizaccedilatildeo dos saberes taacutecitos dos ferramenteiros

Gostariacuteamos de apresentar a partir de agora situaccedilotildees concretas que ao nosso ver

expressam as possibilidades dos ferramenteiros lanccedilarem matildeo de estrateacutegias mais comumente

reconhecidas no campo da linguagem para formalizarem os seus saberes taacutecitos Para aleacutem

das perspectivas anteriores de uso da memoacuteria e da reflexatildeo foi possiacutevel observar que os fer-

ramenteiros buscam formalizar os seus saberes taacutecitos principalmente por meio de ldquogabari-

tos diaacuterios de bordo e croquisrdquo que eles proacuteprios fazem

c) Diaacuterio de bordo

Como jaacute afirmamos anteriormente um dos fatores que tornam complexo o trabalho

dos ferramenteiros eacute a grande quantidade de informaccedilotildees sejam as postas pelo trabalho pres-

crito ou mesmo aquelas que tecircm a sua origem no trabalho real Constatamos que diante da ne-

cessidade de se trabalhar com um vasto repertoacuterio de informaccedilotildees e tambeacutem como jaacute foi di-

to pelo proacuteprio limite da memoacuteria em arquivar todas essas informaccedilotildees os ferramenteiros

buscam criar suas formas de registrar as situaccedilotildees que eles vivenciam Uma dessas formas de

registro eacute o chamado diaacuterio de bordo Os diaacuterios de bordo satildeo organizados quase sempre na

forma de pequenos textos registrados em blocos cadernetas ou mesmo em alguns desenhos

Em um depoimento fica explicitado como as anotaccedilotildees escritas por um ferramenteiro podem

lhe servir de registro

Eu particularmente eu anoto eu tenho como se fosse um diaacuterio de bordo onde eu anoto todas as ocorrecircncias mais importantes do meu dia-a-dia loacutegico que natildeo daacute pra gente anotar tudo mas as coisas mais importantes as decisotildees mais importan-tes do meu dia-a-dia eu sempre anoto no meu caderno e quando eu estou fora eu jaacute tive na Honda tive na Ford jaacute tive na Fiat eu sempre faccedilo um rascunhozinho para mim transcrever por meu diaacuterio de bordo isso eacute minha base de dados eacute a par-tir disso aiacute que eu vou manter certo conhecimento do trabalho a ser feito porque de certa forma vocecirc natildeo pode confiar tanto na memoacuteria entatildeo detalhes mesmo vocecirc soacute consegue se vocecirc anotar se vocecirc arquivar isso que vocecirc tomou aquela de-cisatildeo no momento (Ferramenteiro)

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Mais adiante

Eu tento usar a minha memoacuteria para poder tentar buscar a soluccedilatildeo de certos pro-blemas e tentar reativar certos procedimentos de trabalho recentes A partir do momento que eu comecei a anotar no imediato as provas as decisotildees importantes que eu tomei as coisas que aconteciam durante a construccedilatildeo da ferramenta eu pas-sei a natildeo sobrecarregar tanto a memoacuteria com estes pontos Eu sei onde estaacute escrita determinada experiecircncia eu sei aonde tem um documento referente a um problema acontecido uma coisa que aconteceu natildeo tem que usar tanto a memoacuteria porque se natildeo se eu fizer isso eu posso estar de certa forma confundindo com o aconteci-mento que jaacute aconteceu com alguma coisa bem parecida Eu tento usar sempre al-guma coisa que eu escrevi uma coisa que eu jaacute deixei escrito (Ferramenteiro)

Chama a atenccedilatildeo tambeacutem um outro tipo de registro que nos foi revelado por esse

mesmo ferramenteiro e que vamos incluir aqui como uma modalidade de diaacuterio de bordo Tra-

ta-se de uma espeacutecie de minidicionaacuterio do tipo PortuguecircsInglecircs constituiacutedo por termos usa-

dos na ferramentaria Segundo esse ferramenteiro o seu interesse em realizar o minidicionaacuterio

deu-se a partir das aulas de inglecircs realizadas dentro da Empresa T

Nos primeiros dias do curso de inglecircs o professor pedia muito para a gente falar palavras do dia-a-dia da gente Eu fiquei curioso e usei muitas palavras da ferra-mentaria e inclusive aqui na empresa jaacute que a gente faz ferramenta para um seacuterie de montadoras tem normas em outras liacutenguas francecircs inglecircs Eu peguei e reparei que algumas palavras giacuterias da ferramentaria satildeo idecircnticas no inglecircs Depois disso eu comecei a anotar uns termos e o professor ficou interessado Entatildeo eu e ele es-tamos montando esse minidicionaacuterio (Ferramenteiro)

Aleacutem das anotaccedilotildees na forma de pequenos textos explicitadas em depoimentos anteri-

ores verificamos que as muacuteltiplas anotaccedilotildees feitas pelos ferramenteiros datildeo-se por meio de

outras linguagens tais como a matemaacutetica mais especificamente a geometria e a trigonome-

tria e ainda como veremos no proacuteximo item o croqui uma linguagem proacutexima das normas

do desenho mecacircnico Observamos ainda que essas linguagens podem ser usadas uma inde-

pendente da outra ou agraves vezes de maneira entrelaccedilada

No que se refere agrave presenccedila da ldquolinguagem matemaacutetica nas anotaccedilotildees dos ferramentei-

rosrdquo pudemos observar dentre aquelas que nos foram apresentadas que a maior parte satildeo

projeccedilotildees de um triacircngulo retacircngulo normalmente usado para dimensionar o deslocamento

de uma determinada parte da ferramenta Em uma das situaccedilotildees que presenciamos dois fer-

ramenteiros debatiam sobre o deslocamento de um componente da ferramenta na hora em que

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a mesma estiver sendo movimentada isto eacute em funcionamento Ao nos aproximarmos desses

ferramenteiros um deles nos apresentou o problema ldquoesse tipo de ferramenta eacute muito faacutecil de

ter trombamento10 e a gente tem que dar uma estudada Isso aqui eacute igual agrave gente sempre fala

o ferramenteiro tem que imaginar a ferramenta trabalhando antes mesmo dela estar construiacute-

dardquo Ao perguntarmos se os dois se entendiam soacute simulando mentalmente a ferramenta traba-

lhando um dos ferramenteiros fez uma seacuterie de traccedilados na forma de triacircngulos retacircngulos

(Fig 7) mostrando como funciona uma movimentaccedilatildeo por cunha

Nesse caso aqui taacute vendo A gente para entender melhor para explicar para o co-lega agraves vezes eacute necessaacuterio fazer um croqui fazer um tipo de desenho soacute para ver o tanto que a peccedila vai deslocar Usando o desenho do triacircngulo daacute para ver Na ver-dade a cunha eacute um triacircngulo Se vocecirc disser que para resolver esse problema eacute bom o cara conhecer trigonometria eacute claro que ajuda mas aqui noacutes resolvemos is-so soacute simulando a movimentaccedilatildeo pelo croqui Aleacutem de resolver o problema eacute mais faacutecil para explicar (Ferramenteiro)

Figura 7 Croqui elaborado a partir de uma projeccedilatildeo simulada do deslocamen-to de triacircngulo retacircngulo

10 Os ferramenteiros chamam de trombamento quando os componentes moacuteveis da ferramenta natildeo terminam sua trajetoacuteria por trombarem literalmente em um outro componente

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Em uma conversa com um dos mestres em ferramentaria da Empresa T ele nos rela-

tou a capacidade dos ferramenteiros em trabalhar com relaccedilotildees trigonomeacutetricas sem terem um

domiacutenio preciso dos caacutelculos dessa aacuterea ou mesmo por uma questatildeo de opccedilatildeo de trabalho

Tem serviccedilo que ele vai te exigir um caacutelculo de trigonometria mas quando o fer-ramenteiro natildeo se lembra ou natildeo sabe a foacutermula ele pode simular Por exemplo vocecirc desenha o trabalho da ferramenta depois recorta com tesoura aiacute vocecirc desce por exemplo uns 40 mm e vocecirc mede o tanto que a outra parte avanccediloursquorsquo (Mestre de ferramentaria)

d) Croquis

Muito embora desde o iniacutecio do trabalho de campo os ferramenteiros nos revelassem

uma certa necessidade de anotar algumas informaccedilotildees foi a partir do interesse de alguns deles

em nos explicar o seu trabalho que percebemos a possibilidade de eles usarem as suas anota-

ccedilotildees como um tipo de formalizaccedilatildeo que viabilizasse a comunicaccedilatildeo com seus colegas de tra-

balho Durante os vaacuterios diaacutelogos que travamos com os ferramenteiros observamos que eles

de forma insistente a todo o momento para se fazerem compreender desenhavam ldquocroquisrdquo

em papeacuteis para facilitar as suas explicaccedilotildees A partir de um determinado momento observa-

mos que mais do que uma mania os ferramenteiros elaboravam ldquocroquisrdquo ou mesmo alguns

traccedilos geomeacutetricos para se orientarem na execuccedilatildeo da sua atividade ou para facilitar a interlo-

cuccedilatildeo com um colegaVejamos um depoimento

Esse eacute um dos lados bons da ferramentaria vocecirc aprende muitas formas de pensar de fazer um trabalho diferente Soacute para te dar um exemplo tem cara aqui que te en-sina soacute com um croqui isso eacute muito comum na ferramentaria Quando tem um de-senho complicado eu falo o desenho da ferramenta eacute comum um cara mais expe-riente pegar o papel fazer um croqui e te falar oh essa peccedila aqui vai fazer esse movimento e ao mesmo tempo essa outra vai fazer isso aqui Isso ajuda demais tem hora que um papinho com um colega um croqui te ajuda sair do sufoco (Fer-ramenteiro)

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Quando comentamos com um mestre de ferramentaria sobre a dificuldade de comuni-

caccedilatildeo de saberes entre dois ferramenteiros ainda que experientes coletamos a seguinte anaacuteli-

se

Uma coisa eacute vocecirc ter domiacutenio e conhecimento de um determinado trabalho outra coisa eacute vocecirc conseguir transmitir isso em palavras ou ateacute mesmo em accedilotildees Porque agraves vezes vocecirc pode ser muito bom para fazer e natildeo tem essa faculdade de ensinar entatildeo aleacutem de saber fazer eacute bom que vocecirc aprenda pelo menos um miacutenimo de transmitir para o outro Como Atraveacutes da fala atraveacutes de um desenho atraveacutes de um croqui atraveacutes de um exemplo agraves vezes vocecirc fazendo ateacute mesmo a primeira peccedila para que a outra pessoa que tem menos experiecircncia possa aprender com vo-cecirc (Mestre de ferramentaria grifo nosso)

Encontramos uma outra situaccedilatildeo interessante onde tambeacutem nos pareceu possiacutevel que

os ferramenteiros usem o croqui como uma estrateacutegia de formalizaccedilatildeo dos seus saberes taacuteci-

tos Em uma de nossas estadias na faacutebrica um dos ferramenteiros nos disse que um outro co-

lega lhe ajuda muito a compreender ldquoos segredos da ferramenta e da vida tambeacutemrdquo Vejamos

o relato desse ferramenteiro

Tem uma cara aqui que me ajuda muito eacute o neguinho Quando o serviccedilo daacute uma caiacuteda aqui e sobra um tempinho a gente fica fazendo uns testes com o desenho da ferramenta a gente fica fazendo croqui treinando caacutelculo O neguinho sabe muita coisa Tudo dele eacute no croqui ele quer te ensinar um caacutelculo explicar um movimen-to da ferramenta eacute no croqui Tem coisa na ferramenta que eacute difiacutecil de enxergar Pois eacute jaacute aconteceu um monte de vez eu natildeo enxergo um negoacutecio faccedilo um croqui e fico pensando como a ferramenta funciona e aos poucos a gente vai enxergando (Ferramenteiro)

Identificamos uma outra forma de anotar ou registrar dos ferramenteiros que se articu-

la com a mobilizaccedilatildeo de diversos saberes taacutecitos e que foi inclusive incorporada pelo traba-

lho prescrito na organizaccedilatildeo do trabalho da Empresa T Trata-se de um trabalho que caracteri-

zamos no capiacutetulo anterior chamado por eles de leiaute Neste tipo de trabalho os ferramen-

teiros por meio de um pincel atocircmico ou um pincel do tipo ldquomarcatudordquo fazem as suas anota-

ccedilotildees na proacutepria ferramenta indicando medidas que natildeo estatildeo claras no desenho da ferramenta

Vejamos como um dos ferramenteiros argumenta sobre a importacircncia do leiaute

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Sempre que eu pego independente do projeto se eacute um projeto que eu estou traba-lhando ou se eacute um projeto que eu vou mandar pra usinagem eu costumo pegar as coordenadas que o operador da maacutequina vai usar Se por exemplo ele vai ter que fazer quatro furos de coluna eu pego o projeto modifico as quatro coordenadas e marco com o marca texto Porque eu vou auxiliar ele tambeacutem o operador ele natildeo precisa ficar procurando onde eacute que estaacute as coordenadas e de certa forma o dese-nho ele tem muita coordenada entatildeo ele natildeo vai errar porque se eu marquei para ele a coordenada ele jaacute sabe opa a coordenada eacute essa aqui porque fui eu que marquei Agora se ele for olhar que tem duas coordenadas com diferenccedila de cinco miliacutemetros uma do lado da outra ele pega a de baixo ele pega e matou o furo (Ferramenteiro)

Ainda sobre a importacircncia do leiaute

O leiaute eacute muito importante pode ateacute parecer bobagem mas o cara que faz o lei-aute tem que ter muita responsabilidade Aquelas marcaccedilotildees que o ferramenteiro faz na ferramenta mostra um monte de coisa coisas que agraves vezes o desenho natildeo mostra ou mostra de forma muito confusa Agora para fazer o leiaute o ferramen-teiro tem que saber ler o desenho ele tem que ter uma manha (Ferramenteiro)

Neste sentido eacute importante reafirmar que o acesso agrave linguagem no trabalho (NOU-

ROUDINE 2002) ou seja agravequela que circula entre os ferramenteiros eacute fundamental para

formalizar os saberes taacutecitos Aleacutem da constataccedilatildeo de que os ferramenteiros se valem de suas

anotaccedilotildees em variadas formas para auxiliar na formalizaccedilatildeo dos seus saberes taacutecitos verifi-

camos tambeacutem que haacute situaccedilotildees que solicitam dos ferramenteiros estrateacutegias de formalizaccedilatildeo

de saberes taacutecitos alternativas agraves suas anotaccedilotildees

e) Gabaritos

Observamos que os saberes taacutecitos mobilizados pelos ferramenteiros aleacutem de apontar

uma lacuna do trabalho prescrito acabam por lhe favorecer comunicar esses saberes com o

seu coletivo de trabalho Isso ficou constatado nos ldquogabaritosrdquo que os ferramenteiros usam pa-

ra aferir um trabalho conhecido como ajuste da ldquolinha de corte da ferramentardquo11 Constata-

11 A linha de corte eacute responsaacutevel pelas medidas que indicam onde o produto se separa da chapa em bruto Assim por exemplo se um produto a ser estampado for um disco com 100 mm de diacircmetro a linha de corte seria toda a

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mos dada a sua recorrecircncia que estes gabaritos satildeo de certa forma consagrados pelos ferra-

menteiros para formalizar os seus saberes taacutecitos Dentre os gabaritos mais usados para servir

de paracircmetro no ajuste da linha de corte observamos o uso da ldquofita crepe do papel do tipo lsquoo-

ficiorsquo e do papel alumiacuteniordquo Esses materiais satildeo colocados sobre a linha de corte da ferramen-

ta e depois de movimentaacute-la eles verificam a sua aparecircncia Por exemplo a ldquofita creperdquo ras-

gada indica o que deve ser feito em termos de ajuste ocorrendo o mesmo se ela estiver intacta

ou esticada Em uma determinada situaccedilatildeo um ferramenteiro se dispocircs a nos demonstrar co-

mo ele usava a ldquofita creperdquo para verificar o ajuste da linha de corte Apoacutes nos mostrar o estado

em que ficou a ldquofita creperdquo e fazer a sua anaacutelise ele nos disse o seguinte ldquoViu Ela quase natildeo

foi tocada agora vocecirc pode perguntar para a maioria dos ferramenteiros aqui dentro pelo me-

nos os mais experientes tenho certeza todo mundo vai dizer para natildeo ajustar maisrdquo Este fer-

ramenteiro fez um sinal com a matildeo para que um outro ferramenteiro se aproximasse de onde

estaacutevamos e neste iacutenterim nos sugeriu que perguntaacutessemos a este ferramenteiro mostrando-

lhe a ldquofita creperdquo em que ponto estava o trabalho de ajustagem da linha de corte Apoacutes fazer-

mos a pergunta ouvimos o seguinte comentaacuterio

Pela minha praacutetica posso te dizer que esse ajuste estaacute basicamente pronto agora eacute no leiaute Vocecirc pode usar outro tipo papel sabia Eacute bom fazer esses testes Soacute com a medida do desenho natildeo daacute para dizer se taacute bom Chega uma hora que esse trabalho tem que ser devagar mesmo ah Natildeo sei se vocecirc sabe mas o corte pode ser ajustado com tinta tambeacutem Natildeo vou falar que eacute um segredo porque muito fer-ramenteiro sabe mas isso eacute soacute na praacutetica mesmo (Ferramenteiro)

Observamos que os ferramenteiros elaboram outros ldquogabaritosrdquo a partir de uma rea-

propriaccedilatildeo de ldquogabaritosrdquo postos pelo trabalho prescrito A situaccedilatildeo que melhor expressa essa

possibilidade manifestou-se tambeacutem no ajuste da linha de corte da ferramenta Primeiramen-

te este trabalho como jaacute foi dito anteriormente eacute apontado no trabalho prescrito como a ser

definido pelo ferramenteiro Segundo que em relaccedilatildeo a este tipo de trabalho existe um saber

borda externa do disco Entretanto dados os fenocircmenos fiacutesicos no comportamento da chapa de accedilo a medida da linha de corte eacute sempre objeto de estudos anaacutelises da engenharia e dos ferramenteiros

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tido como cientiacutefico formalizado pelo trabalho prescrito em forma de tabelas que apenas se

aproximam do real Todavia o trabalho prescrito indica ainda o uso de recurso material uma

ldquopasta coloridardquo para fazer o controle desse trabalho de ajustagem da linha de corte da ferra-

menta

Eacute importante salientar que o uso desses gabaritos pelos ferramenteiros muitas vezes eacute

acompanhado do uso dos sentidos corporais tais como ldquoa visatildeo o tato e a audiccedilatildeordquo Vejamos

um depoimento de um ferramenteiro sobre a sua forma de ajustar a linha de corte da ferra-

menta

O ajuste da linha de corte eacute o seguinte no projeto as medidas estatildeo todas maiores e aiacute eacute a gente que define Soacute que o seguinte de acordo com o projeto a peccedila macho deve descer 10 miliacutemetros eu soacute desccedilo 1 mm por que no iniacutecio o ajuste entre a peccedila macho e a peccedila fecircmea estaacute muito justo pode ateacute estragar a ferramenta Antes de descer a peccedila a gente passa uma pasta vermelha em uma das partes entatildeo depois que vocecirc separa as partes uma delas fica marcada de vermelho no lugar mostrando a parte que deve ser ajustada Ai eacute que tem outro pulo do gato vocecirc natildeo ir soacute pela marca vermelha porque tem diferenccedila tem um vermelho que eacute mais fraco outro mais escuro ou mais forte E daiacute Acontece que se o cara natildeo for maldoso natildeo for experiente ele natildeo repara direito que tem mais de um vermelho e tira co-mo base o vermelho fraco ele soacute vai ver esse erro na hora que a peccedila sair com rebarba Ele vai dizer que fez tudo certo e fez mesmo soacute que ele natildeo viu ou natildeo sabe que de acordo com a pressatildeo do ajuste a cor da pasta muda (Ferramenteiro)

Ao comentar o que o teria levado a desenvolver esse tipo de saber este ferramenteiro

nos relatou o seguinte

Eacute depois que eu matei algumas eu aprendi isso eu passei a deixar bem escuro porque eu sei que estaacute forccedilando agraves vezes ateacute range na entrada O que eacute ranger Eacute quando a peccedila entra raspando outra peccedila tocando a outra peccedila forccedilando mesmo Entatildeo vocecirc percebe que tem interferecircncia eacute uma peccedila empurrando a outra se natildeo range eacute o quecirc Estaacute uma passando bem proacutexima da outra mas sem tocar sem es-barrar Entatildeo aquele vermelho fica escuro porque uma peccedila toca a outra com muita forccedila (Ferramenteiro)

De um modo geral os ferramenteiros demonstraram que o uso de um determinado sa-

ber taacutecito eacute mediado por estrateacutegias de formalizaccedilatildeo dos seus saberes taacutecitos que dentre ou-

tros objetivos coloca-se como uma forma de os deixar mais seguros no uso destes saberes

Um dos nossos entrevistados ao tentar explicar o porquecirc da sua confianccedila na coloraccedilatildeo das

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peccedilas acabou por nos indicar mais elementos que vinculam o uso de sentidos do corpo com

momentos de abstraccedilatildeo sobre o funcionamento da ferramenta

Isso eacute garantido mesmo natildeo falha natildeo Vocecirc pode usar a tinta vermelha ou a azul A tinta azul eacute bom para trabalhar agrave noite porque o azul quando ele passa uma parte para outra forccedilando mesmo para rangir ele fica branco entatildeo ele mostra a parte do accedilo que estaacute refilado O vermelho para o dia eacute melhor porque ele fica preto entatildeo eacute mais faacutecil identificar o preto do vermelho entatildeo vocecirc sabe que ali tem uma parte-zinha para sair Para um ferramenteiro experiente eacute bem faacutecil porque natildeo tem co-mo errar a diferenccedila de coloraccedilatildeo ela eacute bem notoacuteria entatildeo o ferramenteiro ele sabe distinguir o vermelho normal que foi a tinta que ele passou inicialmente e o ver-melho escuro que eacute onde estaacute refilando que eacute onde deveria ser tirado (Ferramen-teiro)

Por outro lado observamos ainda que os ferramenteiros mesmo se valendo dos ldquodiaacute-

rios de bordo dos croquisrdquo ou dos seus ldquogabaritosrdquo apresentam um certo desconforto diante

da complexidade do trabalho de ferramentaria

Esse eacute o sofrimento do ferramenteiro ele soacute vai ter certeza daquilo que ele fez mediante ao resultado Se ele estaacute em duacutevida todos noacutes temos duacutevidas mas vocecirc tem que executar pra saber se realmente aquilo vai ser um resultado satisfatoacuterio Existem situaccedilotildees que natildeo tem jeito de fazer um raio o modelo do carro que eles estatildeo querendo o ferramental natildeo consegue executar por isso que tem que ter todo um processo antes disto que eacute o processo de protoacutetipo para saber se realmente vai conseguir fazer (Ferramenteiro)

Se em alguns depoimentos os ferramenteiros lamentam que a certeza na ferramenta-

ria soacute eacute dada pelo produto final por outro lado percebemos tambeacutem que eles valorizam a

sua praacutetica no chatildeo de faacutebrica como um momento educativo ldquoO ferramenteiro aprende todo

diardquo Dessa forma o ldquover na praacuteticardquo menos do que um limite pode ser tomado como uma

etapa na elaboraccedilatildeo das suas estrateacutegias de produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes

taacutecitos Ateacute porque observamos que os ferramenteiros buscam fazer pequenos testes micro-

experiecircncias com provaacuteveis situaccedilotildees que envolvem a construccedilatildeo da ferramenta E ainda ve-

rificamos que muitos saberes taacutecitos para serem desenvolvidos demoraram anos de trabalho e

demandaram muitas observaccedilotildees Segundo a fala de um dos ferramenteiros ldquoTem um tempatildeo

que eu jaacute vinha observando esse negoacutecio do retorno de chapa entatildeo eu fui pegando a manha

150

de como a chapa se comportardquo Em um outro depoimento ldquoTem coisas que a gente desconfia

vocecirc observa um dia ali depois fala com colega aqui e fica com aquilo na cabeccedila Agraves vezes eacute

laacute no final que vocecirc compreende tudo eacute laacute no final que vocecirc vecirc que uma coisa que vocecirc jaacute

desconfiava tinha um certo sentido uma certa loacutegicardquo

Dessa forma fica constatado natildeo soacute que os saberes taacutecitos se inscrevem ao longo da

vida dos ferramenteiros bem como se verifica um princiacutepio racional que alimenta estes sabe-

res Observamos que estes saberes ainda que natildeo formalizados numa linguagem cientiacutefica ou

precariamente formalizados pelas estrateacutegias dos ferramenteiros natildeo satildeo na maioria dos ca-

sos soluccedilotildees produzidas em alguns minutos ou para ser mais contundente estes saberes natildeo

satildeo um lance de uacuteltima hora Daiacute decorrem as constantes referecircncias que ferramenteiros mes-

tres e gerecircncia fazem agrave experiecircncia desses profissionais na ferramentaria

Gostariacuteamos de relembrar que se ateacute entatildeo apresentamos em toacutepicos isolados as es-

trateacutegias dos ferramenteiros para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos eacute

porque como jaacute dissemos buscamos uma forma de tornar mais claras as situaccedilotildees deste com-

plexo campo de trabalho que eacute a ferramentaria Neste sentido eacute necessaacuterio salientar que nos-

sa pesquisa de campo aponta que as estrateacutegias de produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo se

articulam entre si Por fim a possibilidade de que ferramenteiros criem estrateacutegias tambeacutem

taacutecitas para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos indica natildeo soacute a distacircncia

entre o trabalho prescrito e o trabalho real bem como revela o seu caraacuteter histoacuterico social

cultural e subjetivo o que nos permite afirmar que o trabalho dos ferramenteiros se articula

como diz Santos (1997) ao movimento da vida Para finalizar um uacuteltimo depoimento de um

ferramenteiro sobre a insuficiecircncia do trabalho prescrito em determinar as medidas da linha de

corte da ferramenta

O certo seria pela folga que a tabela indica entendeu Soacute que nunca daacute aiacute se jaacute der rebarba natildeo tem como acertar isso mais natildeo Que dizer igual eu te falei para dar certo chega uma hora o projeto deixa de existir Essas coisas satildeo assim vocecirc erra ali faz um teste aqui quando vocecirc assusta vocecirc jaacute estaacute sabendo muita coisa (gri-fo nosso)

151

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ocultar o modo de presenccedila na Histoacuteria de certas classes ou camadas sociais eacute sem duacutevida um meio de lhes negar um papel Questatildeo poliacutetica sim mas que envolve uma outra epistemoloacutegica Se a cultura integra mal as transformaccedilotildees sociais e humanas que satildeo tecidas em niacutevel das forccedilas produtivas noacutes podemos falar de uma cultura empobrecida E se a ciecircncia eacute uma forma de cultura eacute provaacutevel que a uma cultura pobre corresponda uma ciecircncia empobrecida A articulaccedilatildeo entre estas duas dimensotildees eacute portanto necessaacuteria (Schwartz apud Santos 1997 p 123)

Acreditamos que nossa pesquisa atingiu em boa medida o objetivo de identificar as

estrateacutegias tambeacutem taacutecitas elaboradas pelos ferramenteiros da Empresa T para produzir

mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos Mesmo reconhecendo as limitaccedilotildees do nosso

trabalho entendemos que a anaacutelise dos dados obtidos na pesquisa pode contribuir para o

debate em diversos foacuteruns e segmentos sociais

Assim identificamos caminhos que chamamos de estrateacutegias criados pelos

trabalhadores ferramenteiros a partir da sua relaccedilatildeo com o cotidiano de trabalho para produzir

mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos aleacutem de apresentar situaccedilotildees nas quais os

trabalhadores reuacutenem condiccedilotildees de reapropriar saberes oriundos da ciecircncia e da tecnologia

Neste sentido ao nosso ver evidenciamos as vaacuterias possibilidades de o trabalho se constituir

como um espaccedilo educativo

Acreditamos que trouxemos elementos que podem ser aproveitados pelas poliacuteticas

puacuteblicas e privadas de educaccedilatildeo profissional tais como o uso dos sentidos como a visatildeo o

tato a audiccedilatildeo a influecircncia da dimensatildeo do coletivo de trabalho assim como o recurso a

formas racionais ainda que distintas da formalidade cientiacutefica quando se trata de produzir

mobilizar e formalizar saberes pelos trabalhadores no trabalho Consideramos tambeacutem que

152

essa pesquisa possa se somar agravequelas voltadas para a educaccedilatildeo de jovens e adultos agrave medida

que demonstra as possibilidades de formaccedilatildeo humana presentes no trabalho o que se traduz na

importacircncia de se considerar o trabalho como dimensatildeo fundamental nas experiecircncias de

educaccedilatildeo de jovens e adultos Por fim acreditamos que ao identificar o poder de produzir

mobilizar e formalizar saberes taacutecitos praacutetica que envolve atividade de criaccedilatildeo interpretaccedilatildeo

e reflexatildeo dos trabalhadores ferramenteiros chamamos a atenccedilatildeo para a necessidade de se

levar em consideraccedilatildeo os seus pontos de vista sobre o trabalho e sobre a educaccedilatildeo em

qualquer proposta de formaccedilatildeo de trabalhadores

Acreditamos ainda que nossa pesquisa traz elementos que auxiliam os trabalhadores

e as suas entidades representativas a refletir sobre a presenccedila e o valor de saberes taacutecitos no

processo produtivo contribuindo para a construccedilatildeo de estrateacutegias que possam como diz

Santos (1997) resgatar o valor epistemoloacutegico social econocircmico poliacutetico e cultural do saber

do trabalhador Neste sentido ressaltamos o caraacuteter histoacuterico social e subjetivo dos saberes

taacutecitos refutando a tendecircncia a considerar este tipo de saber de forma naturalizada Por fim

salientamos que os trabalhadores capazes que satildeo de dialogar com saberes de diversas

ordens se apresentam como interlocutores privilegiados na construccedilatildeo do projeto de

sociedade que queremos sobretudo no que se refere aos assuntos ligados ao trabalho

Haacute que se dizer que ao mesmo tempo em que a complexidade teacutecnica da

ferramentaria enriqueceu esta pesquisa ela tambeacutem nos exigiu um enorme esforccedilo para

interpretar os dados que coletamos bem como para tornar o nosso texto compreensiacutevel Como

acreditamos ter evidenciado satildeo poucas as atividades industriais que apresentam tatildeo intenso

apelo agrave sofisticaccedilatildeo tecnoloacutegica e ao mesmo tempo um consideraacutevel reconhecimento de

saberes oriundos da experiecircncia do ldquochatildeo de fabricardquo como eacute o caso da ferramentaria

Podemos afirmar que a nossa pesquisa corrobora as reflexotildees de Aranha 1997

Santos 1997 Daniellou Teiger e Laville 1989 Lima 1998 que apresentam a distacircncia entre

153

o trabalho prescrito e o trabalho real como um fator que solicita dos trabalhadores o uso de

saberes taacutecitos nas lacunas deixadas neste caso pela prescriccedilatildeo do desenho da ferramenta Os

limites do trabalho prescrito se evidenciaram ainda mais agrave medida que constatamos que a

proacutepria gerecircncia reserva um espaccedilo para que os ferramenteiros faccedilam eles proacuteprios uma

prescriccedilatildeo para o andamento da construccedilatildeo da ferramenta como por exemplo no try-out

Constatamos tambeacutem que a maioria dos ferramenteiros principalmente os mais experientes

satildeo cocircnscios dos limites do trabalho prescrito

Curioso observar que os ferramenteiros mobilizam uma parte dos seus saberes taacutecitos

antes mesmo de emergirem as demandas do trabalho real ao interpretarem o trabalho

prescrito notoriamente o desenho da ferramenta Podemos inferir que se eles usam os seus

saberes taacutecitos para interpretar o desenho da ferramenta antes que esse tipo de prescriccedilatildeo se

mostre distante do trabalho real isso significa que os seus saberes taacutecitos satildeo mobilizados

todo o tempo independentemente de constatarem as lacunas do trabalho prescrito Em nosso

entendimento ao inveacutes de demonstrar uma submissatildeo agrave prescriccedilatildeo confere-se aos saberes dos

ferramenteiros uma exigecircncia de reflexatildeo nem sempre percebida imediatamente

Em nossa pesquisa foi possiacutevel verificar que de fato os ferramenteiros tecircm uma

grande dificuldade de explicitar os saberes taacutecitos Diversas vezes observamos que falta a eles

e tambeacutem aos engenheiros termos para expressar uma determinada situaccedilatildeo Entretanto

verificamos que essa dificuldade em explicitar os saberes taacutecitos natildeo impede que os

ferramenteiros os mobilizem ou os comuniquem na relaccedilatildeo que manteacutem com o seu coletivo

de trabalho O uso dos termos ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo ldquomelhor jeito de

trabalharrdquo expressa que por meio de suas proacuteprias estrateacutegias eles podem com as linguagens

que lhes satildeo disponiacuteveis formalizar os seus saberes taacutecitos Daiacute podermos afirmar que o uso

dessas estrateacutegias representa natildeo soacute uma tentativa dos ferramenteiros de formalizar os seus

saberes mas indica tambeacutem que eles tecircm uma certa consciecircncia dos limites e possibilidades

154

dos diversos tipos de linguagem Em alguns casos a nossa experiecircncia de operaacuterio somada ao

tempo que ficamos imersos no campo de pesquisa foram fundamentais para acessarmos parte

das linguagens e dos coacutedigos usados pelos ferramenteiros da Empresa T

Se por um lado como jaacute dissemos nossa pesquisa foi enriquecida pela complexidade

teacutecnica da ferramentaria que exige que os ferramenteiros criem estrateacutegias para dar conta da

produccedilatildeo por outro lado essa mesma complexidade se transfere para a temaacutetica do saber

taacutecito o que nos colocou diante de desafios nem sempre facilmente equacionados

Confessamos que muitas vezes a riqueza dos dados coletados natildeo ganhou uma

correspondecircncia de riqueza da anaacutelise

Verificamos que algumas situaccedilotildees se mostraram mais intensas durante o trabalho de

campo do que pudemos explicitar na escrita da dissertaccedilatildeo como por exemplo a relaccedilatildeo do

uso do corpo com a criaccedilatildeo de estrateacutegias para produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de

saberes Alguns atributos fiacutesicos podem demandar o uso de um determinado tipo de saber

taacutecito ou mesmo explicar em parte as diferenccedilas entre as estrateacutegias usadas pelos

ferramenteiros Ao observamos que eles buscam uma melhor posiccedilatildeo para por exemplo

identificar uma falha na superfiacutecie de uma peccedila podemos inferir que a partir de uma mesma

distacircncia do alvo no caso a ferramenta alturas diferentes resultam em acircngulos diferentes

Eacute importante dizer que essa dissertaccedilatildeo apresenta alguns limites que podem vir a

constituir objetos para futuras pesquisas Nesse sentido por exemplo o nosso trabalho de

campo evidenciou a importacircncia do uso do corpo nas estrateacutegias que os ferramenteiros criam

para produzir mobilizar e formalizar os sus saberes taacutecitos No entanto tivemos imensa

dificuldade em encontrar na literatura especializada subsiacutedios que nos permitissem avanccedilar na

anaacutelise desse fenocircmeno

Ainda um outro limite da nossa pesquisa deu-se pela dificuldade posta pela anaacutelise das

estrateacutegias de formalizaccedilatildeo Uma parte dessa dificuldade pode ser tributada agrave dimensatildeo

155

imaterial de algumas estrateacutegias como por exemplo a ldquomemoacuteriardquo e a ldquoreflexatildeordquo Uma anaacutelise

mais aprofundada sobre os limites e as possibilidades dessas estrateacutegias e da contribuiccedilatildeo

delas para a formalizaccedilatildeo de saberes taacutecitos resta por fazer Por outro lado mesmo as

estrateacutegias revestidas de uma materialidade como os ldquodiaacuterios de bordordquo os ldquocroquisrdquo e os

ldquogabaritosrdquo apresentaram uma dificuldade para serem analisados uma vez que natildeo foi faacutecil

compreendermos totalmente como essas estrateacutegias se articulam entre um uso individual e um

compartilhamento coletivo no esforccedilo dos ferramenteiros para formalizarem os seus saberes

taacutecitos

Por fim uma outra dificuldade de analisar as estrateacutegias de formalizaccedilatildeo foi posta pela

linguagem muitas vezes extremamente teacutecnica nos depoimentos o que dificultou natildeo soacute a

exposiccedilatildeo desses depoimentos mas tambeacutem a anaacutelise dos dados e a da nossa redaccedilatildeo da

dissertaccedilatildeo E ainda em alguns casos as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros e que

poderiam ilustrar a nossa anaacutelise eram formalizadas em linguagens compreensiacuteveis apenas

para estes profissionais

Todavia mesmo diante das dificuldades encontradas ao longo dessa pesquisa

podemos afirmar que os ferramenteiros da empresa T criam estrateacutegias tambeacutem taacutecitas para

produzir mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos Ousamos afirmar tambeacutem que os

saberes produzidos mobilizados e formalizados pelos ferramenteiros diversas vezes

colocados agrave prova no processo de trabalho expressam uma racionalidade ainda que distinta

dos padrotildees formais da ciecircncia Verificamos ainda que uma parte dessas estrateacutegias eacute

parcialmente formalizada e transformada em um procedimento utilizado frequumlentemente pelos

ferramenteiros e que as suas estrateacutegias de produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes

taacutecitos lhes datildeo a confianccedila necessaacuteria para realizar o seu trabalho

156

Obs 1 Caro Eduardo favor incluir esse texto antecedendo a figura 1 2 3 4 e 5 Achei melhor que esse texto vaacute para depois de todas as citaccedilotildees na pg 117 antecedendo o toacutepico Melhor jeito de trabalhar Outra coisa a definiccedilatildeo das figuras em 3d ficaria melhor se elas fossem divididas duas por paacuteg Apesar de que na Empresa T haacute um software que fornece um desenho em 3D os ferramenteiros

conseguem esse tipo de projeccedilatildeo por meio de uma abstraccedilatildeo ou como eles dizem ldquovisualizando

em 3Drdquo Para ilustrar a estrateacutegia de ldquovisualizar em 3Drdquo tomemos como exemplo as Figuras 1

2 3 4 e 5 A Figura 1 corresponde ao desenho de uma ferramenta posto em uma forma plana

isto eacute bidimensional As Figuras 2 3 4 e 5 correspondem agrave Figura 1 em uma forma

tridimensional Eacute importante comentar que o avanccedilo das figuras indica uma visualizaccedilatildeo mais

depurada da ferramenta ou seja para se chegar agrave visualizaccedilatildeo em 3D da Figura 4 eacute necessaacuterio

uma maior capacidade de abstraccedilatildeo do ferramenteiro

Obs 2 Em relaccedilatildeo a pg 131 favor incluir fig 5 no iniacutecio da pg

() Estes saberes nos foram explicitados (fig 5) ainda que somados aos saberes

Obs 3 manter no texto do jeito que estaacute ou seja apenas fig 6

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  • 1 parte corrigidodoc
    • Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Conhecimento e Inclusatildeo social
    • SUMAacuteRIO
      • Agradecimentosdoc
      • Cap 01doc
        • Eacute salutar que um trabalho de pesquisa para ser apreendido em sua totalidade seja abordado desde a sua concepccedilatildeo O objeto dessa pesquisa qual seja as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros de uma induacutestria metaluacutergica da regiatildeo metropolitana de Belo Horizonte para a produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e organizaccedilatildeo de seus saberes no trabalho surgiu de uma perspectiva aberta pelo encontro da nossa formaccedilatildeo escolar da vivecircncia como trabalhador de uma induacutestria metaluacutergica com o debate sobre o mundo do trabalho o que gerou um interesse em compreender os saberes produzidos no processo de trabalho Neste sentido entendemos que eacute importante fazer uma recuperaccedilatildeo de uma parte dessa experiecircncia no setor fabril da nossa inserccedilatildeo no universo teoacuterico sobre o mundo do trabalho e a dimensatildeo que esse encontro tomou na construccedilatildeo do objeto que norteia esta pesquisa
        • A nossa formaccedilatildeo iniciou-se no Senai aos 14 anos de idade por meio do curso de Torneiro Mecacircnico de um ano e meio e posteriormente no periacuteodo da noite mais um ano de Frezador Mecacircnico Logo depois iniciamos tambeacutem no turno da noite o Curso Teacutecnico em Mecacircnica no Cefet-MG A esta formaccedilatildeo somou-se a nossa entrada no trabalho ocorrida aos 15 anos de idade Nesse periacuteodo o nosso discernimento a respeito do trabalho comeccedilou a ganhar contornos mais elaborados influenciado pelo intercacircmbio que havia entre noacutes colegas de trabalho e de curso o que produzia uma troca de informaccedilotildees ricas e variadas
          • Se por um lado entendemos como necessaacuterio apresentar a nossa problematizaccedilatildeo sobre a hipoacutetese de que os ferramenteiros possam desenvolver estrateacutegias para produzir mobilizar e formalizar seus saberes por outro lado eacute importante salientar que ao definirmos as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros como produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes natildeo buscamos demarcar uma separaccedilatildeo hermeacutetica entre elas e sim analisar se as suas semelhanccedilas e diferenccedilas se articulam Por este motivo apresentaremos um breve debate sobre essas trecircs categorizaccedilotildees
          • 13 O referencial teoacuterico
          • 14 As estrateacutegias metodoloacutegicas
            • 142 Instrumentos de pesquisa
              • Cap 02doc
                • Eacute mesmo agrave praacutetica que por definiccedilatildeo se refere o saber fazer () Em numerosos casos o saber-fazer designa uma competecircncia global um ofiacutecio ou uma destreza num domiacutenio mais ou menos amplo da praacutetica humana () Os saberes-fazer satildeo portanto para noacutes actos humanos disponiacuteveis em virtude de terem sido apreendidos (seja de que maneira for) e experimentados (p 79)
                • Sobre a fecundidade da relaccedilatildeo entre linguagem e trabalho Faita e Souza-e-Silva (2002) afirmam que ldquoDiversos fatores podem explicar a emergecircncia de tal interesse o mais importante deles encontra-se no peso e na importacircncia que as atividades de simbolizaccedilatildeo passaram a ter na realizaccedilatildeo do trabalhordquo (p 7) Ainda que o interesse dos linguumlistas pelo trabalho como objeto de estudo seja um fenocircmeno recente a literatura sobre essa temaacutetica jaacute acumula importantes reflexotildees para apontar a diversidade de enfoques e de campos de intervenccedilatildeo caracteriacutesticos da aacuterea Dentre as vaacuterias possibilidades de contribuiccedilatildeo para esta pesquisa uma foi acolhida com maior profundidade pois nos permitiu analisar a relaccedilatildeo entre o trabalho e a linguagem em uma perspectiva multifacetada Trata-se de uma abordagem defendida por Nouroudine (2002) que apresenta uma triparticcedilatildeo da relaccedilatildeo trabalholinguagem cujos eixos seriam dados pelas modalidades ldquolinguagem como trabalhordquo ldquolinguagem no trabalhordquo e ldquolinguagem sobre o trabalhordquo
                • Para Lacoste apud Nouroudine (2002) a elaboraccedilatildeo dessa triparticcedilatildeo ldquopermitiu remediar confusotildees disseminadas separando como verbalizaccedilatildeo falas provocadas e exteriores agrave situaccedilatildeo e como comunicaccedilatildeo falas que fazem parte da atividade de trabalhordquo (p 17) De acordo com Nouroudine (2002 p 18) a distinccedilatildeo entre esses trecircs aspectos da linguagem atende a uma opccedilatildeo metodoloacutegica que busca identificar os mecanismos de funcionamento da relaccedilatildeo trabalholinguagem e ainda a um interesse epistemoloacutegico na medida em que poderia evidenciar as ligaccedilotildees e as diferenccedilas desses mecanismos de funcionamento Neste sentido eacute importante salientar que de modo algum os diferentes aspectos da relaccedilatildeo trabalholinguagem satildeo estanques entre si e sim que existe uma estreita ligaccedilatildeo entre os trecircs aspectos da linguagem embora como afirma Nouroudine (2002) cada um deles possa aparentar ainda problemas de ordem praacutetica e epistemoloacutegica bem distintos No que se refere agrave nossa pesquisa a distinccedilatildeo entre as vaacuterias dimensotildees da relaccedilatildeo linguagem e trabalho pode lanccedilar luzes sobre a explicitaccedilatildeo ou natildeo dos saberes taacutecitos pois nos facilita compreender as estrateacutegias que os trabalhadores mobilizam para viabilizar a comunicaccedilatildeo de saberes no trabalho Essa triparticcedilatildeo considera que respectivamente haacute linguagens que fazem o trabalho que circulam no trabalho e que interpretam o trabalho as quais seratildeo explicadas a seguir
                  • 244 Comentaacuterios sobre as estrateacutegias taacutecitas
                      • Cap 03doc
                        • 332 A Empresa T
                          • Cap 04doc
                          • Cap 05 Consideraccedilotildees finais definitivadoc
                          • Observaccedilotildeesdoc
                          • Referecircncias bibliograacuteficasdoc
                            • REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Page 4: A pedagogia da ferramenta: estratégias de produção, mobilização … · 2019. 11. 14. · entrevistas semi-estruturadas realizadas com os ferramenteiros e observações de campo

331 As empresas do grupo B 92 332 A Empresa T 93 333 A organizaccedilatildeo do trabalho na Empresa T 95 334 A ferramentaria como ela eacute o trabalho prescrito e o trabalho real na ferramentaria 91 4 O trabalho real na ferramentaria a hora e a vez dos saberes taacutecitos dos ferramenteiros 106 41 As estrateacutegias dos ferramenteiros para produzir os seus saberes taacutecitos107 42 As estrateacutegias dos ferramenteiros para mobilizar os seus saberes121 43 As estrateacutegias dos ferramenteiros para formalizar os seus saberes taacutecitos134 Consideraccedilotildees finais 152 Referecircncias bibliograacuteficas 157

iv

AGRADECIMENTOS

A minha matildee Adelina que desde a minha infacircncia foi tambeacutem meu pai e me

ensinou a ver na feacute Cristatilde o valor da perseveranccedila do amor ao proacuteximo e da compreensatildeo Agrave

memoacuteria do meu pai Geraldo Alves que em nossa curta relaccedilatildeo deixou o legado da luta pela

vida A minha famiacutelia e ldquoamigos de casardquo Kaacutetia Clebinho Cidinha Roberto Ofeacutelia Caio

Paula Ciro Humberto Carlatildeo e ao pequeno Lucas

A Eloiacutesa Helena Santos a difiacutecil tarefa de agradecer Antes de tudo pelo seu passado

de respeito aos trabalhadores Os seus ensinamentos as suas orientaccedilotildees e as bibliografias

indicadas me permitiram um razoaacutevel avanccedilo acadecircmico Desde os primeiros encontros a sua

ajuda esteve aleacutem da orientaccedilatildeo do estilo da escrita agrave coragem do debate da paciecircncia agrave

amizade Serei sempre grato

A Antocircnia Vitoacuteria pela carinhosa acolhida agraves minhas inquietaccedilotildees pela

disponibilidade de sempre por ter me mostrado a importacircncia de voltar ao chatildeo de faacutebrica

Agradeccedilo por ter aceitado o convite para estar em nossa Banca

Ao professor Francisco de Paula Lima pela sua disponibilidade para o debate pelo

seu interesse em transformar o trabalho por ter aceitado participar da nossa Banca

Ao professor Antocircnio Juacutelio de Menezes por estar sempre aberto ao diaacutelogo pelo seu

interesse com as causas sociais por ter aceitado participar da nossa Banca

Aos professores e colegas do Nete que sempre nos acolheram e estiveram abertos ao

diaacutelogo Adriana Fernando Daisy Cunha Luciacutelia Dalila Justino Walter Ude Rosacircngela

Bebeto Mariana Veriacutessimo e Rogeacuterio Cunha

Aos funcionaacuterios da FAE em especial Rose Claacuteudio Elcio Claudia Adriana

Aos colegas de mestrado que estiveram conosco

Aos amigos do Uni-bh que desde a nossa graduaccedilatildeo satildeo solidaacuterios com a nossa

caminhada Em nome de todos esses eu dedico este trabalho ao professor e excepcional

amigo Wellington de Oliveira pelas inuacutemeras orientaccedilotildees por ter nos mostrado a

possibilidade de avanccedilar sobre o mundo do trabalho

Aos trabalhadores da Empresa T do chatildeo de faacutebrica ao escritoacuterio e Recursos

Humanos que ao seu modo sempre compartilharam os seus saberes conosco em especial aos

ferramenteiros que nos ensinaram um pouco do seu complexo ofiacutecio e nos encheram de

orgulho pela noccedilatildeo que tecircm dos seus saberes e da ideacuteia de coletivo Sabemos que

historicamente os trabalhadores tecircm motivos de sobra para escolher o que falar a hora de

falar e com quem falar Por isso achamos legiacutetima a posiccedilatildeo dos que falaram menos

v

O SER HOMEM SEGUNDO OS METALUacuteRGICOS

Haveria entre os metaluacutergicos um ponto de vista particular uma eacutetica ou uma forma

de se sentir homem Para aleacutem do risco de estar sendo machista o termo ser homem guarda

uma valorizaccedilatildeo para os que satildeo humanos com os colegas Daiacute que agradeccedilo aos inuacutemeros

colegas que me ensinaram a ser homem digo mais humano Desde o iniacutecio aos quinze anos

como torneiro mecacircnico pudemos aprender o que eacute ser e que natildeo eacute ser humano que a vida eacute

dentro e fora da faacutebrica Cleydson Fernando Vladimir Rocircmulo Minhoca Ater Ribeiro

Agradecemos aos que nos pagaram um pingado nas portarias das faacutebricas no

CincoContagem metaluacutergico que se preze jaacute procurou emprego no Cinco Aliaacutes quer

conhecer um metaluacutergico Vaacute a portaria de uma faacutebrica nos dias em que estatildeo ldquofichando

genterdquo Em uma dessas portarias eu ouvi pela primeira vez uma voz um carro de som e

algueacutem dizer ldquoCompanheirosrdquo Era a voz de Paulo Funghi e em seu nome eu dedico aos

outros tantos que satildeo exemplos da dignidade e da inteligecircncia operaacuteria Ao Marcelino

Edmundo Edgar e Faustatildeo em nome dos outros sindicalistas de Betim que debaixo do sol de

meio-dia ou sob o frio ou sob a chuva em vaacuterias madrugadas resistiram agraves provocaccedilotildees da

vigilacircncia e se posicionaram por melhores condiccedilotildees de trabalho Aos metaluacutergicos da Teksid

com os quais eu compartilhei muitas alegrias e anguacutestias dentro e fora da faacutebrica Zeacute Carlos

Jonas Vandeir Marcatildeo Chaveco Faacutebio Juacutelio Martinez Juacutelio (de Monlevade) Camilo Tiatildeo

Loctite Levi Adenor Joaquim Jaime Olimpio Chicos Elcio Paulo Couto Julinho do

Bolinha Baiano Buiuacute Nelson Pescador Liu Maacuterio Seacutergio

Um agradecimento especial ao Juracy Caratildeo e Orlando dois exemplos de honestidade

e solidariedade aos colegas dois homens que natildeo se importando com a truculecircncia natildeo se

deixaram intimidar e defenderam o direito a uma Cipa que funcione a sauacutede no trabalho dois

homens que devem ficar em nossa memoacuteria como exemplo de solidariedade Muito obrigado

por terem entendido que esta pesquisa eacute tambeacutem de vocecircs

Por fim retiraremos do anonimato um ferramenteiro da Teksid Era comum entre noacutes

fazermos uma lista de contribuiccedilotildees para ajudar um colega em situaccedilatildeo difiacutecil Em uma delas

ao levar a lista a este ferramenteiro ele me passou o dinheiro e no lugar onde deveria assinar

acabou fazendo um risco Ao dizer a ele para escrever o seu nome pois assim o nosso colega

poderia agradecer-lhe ele me respondeu mais ao menos assim ldquoNatildeo importa o nome importa

o exemplo que ele saiba que algueacutem o ajudou que ele jamais se esqueccedila dissordquo O nome

desse ferramenteiro eu natildeo lembro acho que nunca soube mas seu apelido era XUXA

ferramenteiro da manutenccedilatildeo do alumiacutenio Afinal natildeo importa o nome o importante eacute que o

vi

feito do homem permaneccedila em nossa memoacuteria como exemplo de humanismo O que eacute ser um

homem Eacute provaacutevel que a resposta esteja em construccedilatildeo mas natildeo me faltaram exemplos Daiacute

assumo daiacute confesso fui um metaluacutergico digo um peatildeo metaluacutergico

vii

RESUMO

Esta dissertaccedilatildeo tem como objeto de estudo as estrateacutegias que os ferramenteiros de uma induacutestria metaluacutergica da regiatildeo metropolitana de Belo Horizonte criam para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos Trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo que utilizou aleacutem da revisatildeo bibliograacutefica e documentos produzidos pelos trabalhadores entrevistas semi-estruturadas realizadas com os ferramenteiros e observaccedilotildees de campo O interesse pelo objeto dessa pesquisa surgiu das nossas reflexotildees como trabalhador metaluacutergico e da constataccedilatildeo de que a literatura que discute a presenccedila de saberes no processo de trabalho natildeo aborda as estrateacutegias criadas por um tipo de trabalhador o ferramenteiro Para desvelar o objeto dessa dissertaccedilatildeo utilizamos referenciais teoacutericos que discutem os modelos de organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho bem como os autores que seguindo a tradiccedilatildeo marxiana referendam o princiacutepio educativo do trabalho Contamos tambeacutem com os autores que a partir da noccedilatildeo oriunda da ergonomia de trabalho prescrito e trabalho real discutem a presenccedila do saber taacutecito no processo produtivo E ainda recorremos aos autores que analisam os saberes taacutecitos sob pontos de vistas variados

viii

REacuteSUMEacute

Cette recherche a comme objet drsquoeacutetude les strateacutegies creacuteeacutees par les outilleurs drsquoune industrie meacutetalurgique de la reacutegion de Belo Horizonte pour produire mobiliser et formaliser leurs savoirs tacites Il srsquoagit drsquoune recherche qualitative qui a utiliseacute au deacutelagrave de la reacutevision bibliografique lrsquoanalyse de documents produits par lrsquoenterprise et les travailleurs des entrevieus semi-structureacutees reacutealiseacutees avec les outilleurs et des observations Lrsquointeacuterecirct pour cet objet est neacute de nocirctres reflexions comme travailleur de la meacutetalurgie et de la constatation que la liteacuterature qui discute la preacutesence des savoirs dans le processus de travail ne prend pas les strateacutegies creacuteeacutees par un type de travailleur le outilleur Pour deacutevoiler lrsquoobject de recherche nous utilisons des reacutefeacuterences theacuteoriques qui discutent les modegraveles drsquoorganisation et de gestion du travaille aussi bien que les auteurs qui drsquoapregraves la tradition marxiste discutent le principie eacuteducatif du travail Nous avons pris aussi des auteurs qui font la distintion entre travail prescrit et travail reacuteel drsquoapregraves lrsquoergonomie pour signaler la preacutesence de savoirs tacites dans la production Nous avons pris encore des auteurs que analysent les savoirs tacites lons plusieurs angles

ix

BANCA EXAMINADORA

Professora Dra Eloiacutesa Helena Santos (Orientadora)- Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade

Federal de Minas GeraisUFMG

Professora Dra Antocircnia Vitoacuteria Soares Aranha - Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade Federal de Minas GeraisUFMG

Professor Dr Francisco de Paula Antunes Lima - Departamento de engenharia da produccedilatildeo da Universidade Federal de Minas GeraisUFMG

Professor Dr Antocircnio Juacutelio de Menezes Neto (suplente) - Faculdade de Educaccedilatildeo da

Universidade Federal de Minas GeraisUFMG

x

AGRADECIMENTOS

A minha matildee Adelina que desde a minha infacircncia foi tambeacutem meu pai e me

ensinou a ver na feacute Cristatilde o valor da perseveranccedila do amor ao proacuteximo e da compreensatildeo Agrave

memoacuteria do meu pai Geraldo Alves que em nossa curta relaccedilatildeo deixou o legado da luta pela

vida A minha famiacutelia e ldquoamigos de casardquo Kaacutetia Clebinho Cidinha Roberto Ofeacutelia Caio

Paula Ciro Humberto Carlatildeo e ao pequeno Lucas

A Eloiacutesa Helena Santos a difiacutecil tarefa de agradecer Antes de tudo pelo seu passado

de respeito aos trabalhadores Os seus ensinamentos as suas orientaccedilotildees e as bibliografias

indicadas me permitiram um razoaacutevel avanccedilo acadecircmico Desde os primeiros encontros a sua

ajuda esteve aleacutem da orientaccedilatildeo do estilo da escrita agrave coragem do debate da paciecircncia agrave

amizade Serei sempre grato

A Antocircnia Vitoacuteria pela carinhosa acolhida agraves minhas inquietaccedilotildees pela

disponibilidade de sempre por ter me mostrado a importacircncia de voltar ao chatildeo de faacutebrica

Agradeccedilo por ter aceitado o convite para estar em nossa Banca

Ao professor Francisco de Paula Lima pela sua disponibilidade para o debate pelo

seu interesse em transformar o trabalho por ter aceitado participar da nossa Banca

Ao professor Antocircnio Juacutelio de Menezes por estar sempre aberto ao diaacutelogo pelo seu

interesse com as causas sociais por ter aceitado participar da nossa Banca

Aos professores e colegas do NETE que sempre nos acolheram e estiveram abertos ao

diaacutelogo Adriana Fernando Daisy Cunha Luciacutelia Dalila Justino Walter Ude Rosacircngela

Bebeto Mariana Veriacutessimo e Rogeacuterio Cunha

Aos funcionaacuterios da FAE em especial Rose Claacuteudio Elcio Claudia Adriana

Aos colegas de mestrado que estiveram conosco

Aos amigos do Uni-bh que desde a nossa graduaccedilatildeo satildeo solidaacuterios com a nossa

caminhada Em nome de todos esses eu dedico este trabalho ao professor e excepcional

amigo Wellington de Oliveira pelas inuacutemeras orientaccedilotildees por ter nos mostrado a

possibilidade de avanccedilar sobre o mundo do trabalho

Aos trabalhadores da Empresa T do chatildeo de faacutebrica ao escritoacuterio e Recursos

Humanos que ao seu modo sempre compartilharam os seus saberes conosco em especial aos

ferramenteiros que nos ensinaram um pouco do seu complexo ofiacutecio e nos encheram de

orgulho pela noccedilatildeo que tecircm dos seus saberes e da ideacuteia de coletivo Sabemos que

historicamente os trabalhadores tecircm motivos de sobra para escolher o que falar a hora de

falar e com quem falar Por isso achamos legiacutetima a posiccedilatildeo dos que falaram menos

O SER HOMEM SEGUNDO OS METALUacuteRGICOS

Haveria entre os metaluacutergicos um ponto de vista particular uma eacutetica ou uma forma

de se sentir homem Para aleacutem do risco de estar sendo machista o termo ser homem guarda

uma valorizaccedilatildeo para os que satildeo humanos com os colegas Daiacute que agradeccedilo aos inuacutemeros

colegas que me ensinaram a ser homem digo mais humano Desde o iniacutecio aos quinze anos

como torneiro mecacircnico pudemos aprender o que eacute ser e que natildeo eacute ser humano que a vida eacute

dentro e fora da faacutebrica Cleydson Fernando Vladimir Rocircmulo Minhoca Ater Ribeiro

Agradecemos aos que nos pagaram um pingado nas portarias das faacutebricas no

CincoContagem metaluacutergico que se preze jaacute procurou emprego no Cinco Aliaacutes quer

conhecer um metaluacutergico Vaacute a portaria de uma faacutebrica nos dias em que estatildeo ldquofichando

genterdquo Em uma dessas portarias eu ouvi pela primeira vez uma voz um carro de som e

algueacutem dizer ldquoCompanheirosrdquo Era a voz de Paulo Funghi e em seu nome eu dedico aos

outros tantos que satildeo exemplos da dignidade e da inteligecircncia operaacuteria Ao Marcelino

Edmundo Edgar e Faustatildeo em nome dos outros sindicalistas de Betim que debaixo do sol de

meio-dia ou sob o frio ou sob a chuva em vaacuterias madrugadas resistiram agraves provocaccedilotildees da

vigilacircncia e se posicionaram por melhores condiccedilotildees de trabalho Aos metaluacutergicos da Teksid

com os quais eu compartilhei muitas alegrias e anguacutestias dentro e fora da faacutebrica Zeacute Carlos

Jonas Vandeir Marcatildeo Chaveco Faacutebio Juacutelio Martinez Juacutelio (de Monlevade) Camilo Tiatildeo

Loctite Levi Adenor Joaquim Jaime Olimpio Chicos Elcio Paulo Couto Julinho do

Bolinha Baiano Buiuacute Nelson Pescador Liu Maacuterio Seacutergio

Um agradecimento especial ao Juracy Caratildeo e Orlando dois exemplos de honestidade

e solidariedade aos colegas dois homens que natildeo se importando com a truculecircncia natildeo se

deixaram intimidar e defenderam o direito a uma Cipa que funcione a sauacutede no trabalho dois

homens que devem ficar em nossa memoacuteria como exemplo de solidariedade Muito obrigado

por terem entendido que esta pesquisa eacute tambeacutem de vocecircs

Por fim retiraremos do anonimato um ferramenteiro da Teksid Era comum entre noacutes

fazermos uma lista de contribuiccedilotildees para ajudar um colega em situaccedilatildeo difiacutecil Em uma delas

ao levar a lista a este ferramenteiro ele me passou o dinheiro e no lugar onde deveria assinar

acabou fazendo um risco Ao dizer a ele para escrever o seu nome pois assim o nosso colega

poderia agradecer-lhe ele me respondeu mais ao menos assim ldquoNatildeo importa o nome importa

o exemplo que ele saiba que algueacutem o ajudou que ele jamais se esqueccedila dissordquo O nome

desse ferramenteiro eu natildeo lembro acho que nunca soube mas seu apelido era XUXA

ferramenteiro da manutenccedilatildeo do alumiacutenio Afinal natildeo importa o nome o importante eacute que o

feito do homem permaneccedila em nossa memoacuteria como exemplo de humanismo O que eacute ser um

homem Eacute provaacutevel que a resposta esteja em construccedilatildeo mas natildeo me faltaram exemplos Daiacute

assumo daiacute confesso fui um metaluacutergico digo um peatildeo metaluacutergico

1 INTRODUCcedilAtildeO

Eacute salutar que um trabalho de pesquisa para ser apreendido em sua totalidade seja abor-

dado desde a sua concepccedilatildeo O objeto dessa pesquisa qual seja as estrateacutegias usadas pelos

ferramenteiros de uma induacutestria metaluacutergica da regiatildeo metropolitana de Belo Horizonte para a

produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e organizaccedilatildeo de seus saberes no trabalho surgiu de uma perspectiva

aberta pelo encontro da nossa formaccedilatildeo escolar da vivecircncia como trabalhador de uma induacutes-

tria metaluacutergica com o debate sobre o mundo do trabalho o que gerou um interesse em com-

preender os saberes produzidos no processo de trabalho Neste sentido entendemos que eacute

importante fazer uma recuperaccedilatildeo de uma parte dessa experiecircncia no setor fabril da nossa

inserccedilatildeo no universo teoacuterico sobre o mundo do trabalho e a dimensatildeo que esse encontro to-

mou na construccedilatildeo do objeto que norteia esta pesquisa

A nossa formaccedilatildeo iniciou-se no Senai aos 14 anos de idade por meio do curso de

Torneiro Mecacircnico de um ano e meio e posteriormente no periacuteodo da noite mais um ano de

Frezador Mecacircnico Logo depois iniciamos tambeacutem no turno da noite o Curso Teacutecnico em

Mecacircnica no Cefet-MG A esta formaccedilatildeo somou-se a nossa entrada no trabalho ocorrida aos

15 anos de idade Nesse periacuteodo o nosso discernimento a respeito do trabalho comeccedilou a ga-

nhar contornos mais elaborados influenciado pelo intercacircmbio que havia entre noacutes colegas

de trabalho e de curso o que produzia uma troca de informaccedilotildees ricas e variadas

Em que pese a contribuiccedilatildeo da formaccedilatildeo teacutecnica que tivemos foi no cotidiano do meu

trabalho e na realidade concreta da produccedilatildeo que surgiram as nossas inquietaccedilotildees mais impor-

1

tantes Estas foram encontrar guarida no nosso contato com os estudos da aacuterea de trabalho e

educaccedilatildeo em suas argumentaccedilotildees em defesa da centralidade da categoria trabalho e do princiacute-

pio educativo aiacute presente possibilitando a construccedilatildeo de uma problemaacutetica que gerou este

objeto de pesquisa

Logo em nosso iniacutecio como trabalhador metaluacutergico em 1986 o contato com a reali-

dade do trabalho nos colocou diante de novidades que contribuiacuteram para a construccedilatildeo da nos-

sa identidade de trabalhador e nos proporcionou uma aprendizagem que ultrapassou os limi-

tes da educaccedilatildeo formal Ainda movido pela disciplina dos tempos de Senai qualquer condiccedilatildeo

adversa era encarada como desafio a ser enfrentado por quem pretendia ser ldquobom de serviccedilordquo

o que implicava executar um trabalho muitas vezes sem o devido preparo ou o uso de equi-

pamentos de seguranccedila obsoletos Esta realidade nos fazia mobilizar saberes de toda ordem e

chamava a nossa atenccedilatildeo para os saberes dos meus colegas

Em 1992 iniciamos um estaacutegio de teacutecnico mecacircnico em uma empresa metaluacutergica do

setor de autopeccedilas pertencente ao grupo Fiat Apoacutes seis meses de estaacutegio fomos efetivado

como teacutecnico no setor de manutenccedilatildeo e implantaccedilatildeo de equipamentos Isso se deu exatamente

no momento em que a empresa iniciou um trabalho preparatoacuterio para sua certificaccedilatildeo de a-

cordo com as exigecircncias do mercado automobiliacutestico tal como a ISO 90001 Em seguida

veio a QS 9000 uma adaptaccedilatildeo da anterior feita pelas empresas automobiliacutesticas norte- ame-

ricanas Chrysler Ford e General Motors A adequaccedilatildeo agrave reestruturaccedilatildeo produtiva atraveacutes des-

tes sistemas de normas busca tornar o processo produtivo mais confiaacutevel tecnicamente e mais

controlaacutevel tambeacutem Ambos os sistemas determinam que sejam criados registros conhecidos

como procedimentos por meio dos quais descreve-se ldquotodordquo o processo de produccedilatildeo desde a

chegada da mateacuteria-prima agrave embalagem do produto

1 De acordo com CARVALHO (1996) A ISO (International Stander Organization) no paracircmetro 9000 especi-fica requisitos para um sistema de gestatildeo da qualidade que podem ser usados pelas organizaccedilotildees para uma apli-caccedilatildeo interna para certificaccedilotildees ou para fins contratuais

2

Chamou a nossa atenccedilatildeo o fato de que esta dinacircmica significava uma apropriaccedilatildeo do

saber dos operaacuterios uma vez que muitas das pequenas modificaccedilotildees por eles feitas para facili-

tar o seu trabalho eram obrigatoriamente documentadas tornando-se um know how da empre-

sa A partir desses registros era possiacutevel por exemplo mapear os passos dados para o sucesso

de determinadas atividades bem como identificar as possiacuteveis falhas da engenharia

Fazia parte desta dinacircmica uma gama de programas que incentivavam os trabalhadores

a se integrarem ao projeto de desenvolvimento de boas ideacuteias para a melhoria da produtivida-

de e qualidade da empresa Tambeacutem observaacutevamos quais eram as circunstacircncias que nos fa-

voreciam produzir saberes e como os usaacutevamos a influecircncia do ensino formal na produccedilatildeo de

saberes no processo de trabalho propriamente dito e sobretudo a cooperaccedilatildeo dos colegas

Esta experiecircncia enriquecida de outras da mesma natureza vividas por nossos colegas

trabalhadores nos levou a problematizar as situaccedilotildees que envolvem o saber no processo de

trabalho Sabiacuteamos possuir um modo proacuteprio de produzir saberes de mobilizaacute-los e organizaacute-

los inclusive com troca de informaccedilotildees longe das maacutequinas agraves vezes no horaacuterio de almoccedilo

na hora do banho ou no trajeto para a aula entre aqueles que frequumlentavam a mesma escola O

trabalho se apresentava como afirmaccedilatildeo da nossa inteligecircncia e do gosto pela profissatildeo

Foi neste mesmo espaccedilo que noacutes nos percebemos enquanto um trabalhador que aleacutem

de produzir um saber nem sempre imaginado pelo capital mas necessaacuterio para a produccedilatildeo

desenvolvia condiccedilotildees de viver o trabalho enquanto espaccedilo de afirmaccedilatildeo pessoal e identitaacuteria

com a nossa classe

O interesse em conhecer melhor o mundo do trabalho nos levou ao curso superior de

Histoacuteria Paralelamente o nosso trabalho na faacutebrica continuou a ser um objeto de observaccedilatildeo

cada vez mais instigante agrave medida que iacuteamos associando o nosso cotidiano no trabalho com as

disciplinas do curso e especialmente com o tema da reestruturaccedilatildeo capitalista tratada na sala

de aula Nesse processo tambeacutem dava primazia agrave questatildeo da presenccedila de saberes no trabalho

3

As nossas possibilidades de fazer uma leitura da dimensatildeo positiva do trabalho o que

segundo Charlot (2000 p 30) significa ldquoler de outra maneira o que eacute lido como falta pela

leitura negativardquo foram sendo ampliadas e refinadas a partir do ano de 2001 quando nos a-

proximamos das atividades do Nete ndash Nuacutecleo de Estudos sobre Trabalho e Educaccedilatildeo da FAE-

UFMG especialmente dos trabalhos das professoras Antocircnia Vitoacuteria Aranha (1997) e Eloiacutesa

Helena Santos (1997 2000) Estas pesquisadoras ao ldquodesnaturalizaremrdquo o saber taacutecito situ-

ando-o como um processo histoacuterico social e subjetivo acabaram nos permitindo definir o

saber taacutecito no processo de trabalho mais especificamente as estrateacutegias usadas pelos traba-

lhadores para produzir mobilizar e organizar o seu saber como objeto desta pesquisa Portan-

to o nosso objetivo nesta dissertaccedilatildeo eacute analisar as estrateacutegias que os ferramenteiros de uma

induacutestria metaluacutergica mineira usam para produzir mobilizar e organizar os seus saberes no

trabalho

11 ESTRUTURACcedilAtildeO DA PESQUISA

Esta dissertaccedilatildeo estaacute organizada do seguinte modo

No primeiro capiacutetulo buscaremos apresentar a presenccedila de saberes no processo de tra-

balho pela seguinte trilha

bull A partir do diaacutelogo com a literatura que aborda a presenccedila de saberes no processo

de trabalho e da nossa experiecircncia em chatildeo de faacutebrica apresentaremos a relevacircncia

acadecircmica e social desta pesquisa bem como os seus objetivos

bull Tambeacutem a partir do que encontramos nas pesquisas sobre esse tema e de alguns

casos que vivenciamos como metaluacutergico seraacute apresentada a nossa hipoacutetese qual

4

seja que os ferramenteiros para dar conta do trabalho real criam estrateacutegias de pro-

duccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo dos seus saberes taacutecitos

bull Apresentaccedilatildeo do nosso referencial teoacuterico e das estrateacutegias metodoloacutegicas que u-

samos na pesquisa para coletar os dados

bull e por fim a nossa imersatildeo no campo da pesquisa

No segundo capiacutetulo apresentaremos como a literatura trata o saber taacutecito Esta parte

estaacute organizada da seguinte forma

bull O saber do trabalhador nos modelos de organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho preconiza-

do pelo taylorismofordismo e pelo modelo japonecircs

bull A importacircncia que a literatura atribui agrave presenccedila de saberes no processo do trabalho

e sobretudo ao saber taacutecito do trabalhador

bull O saber taacutecito como objeto de discussatildeo segundo a literatura que aborda essa temaacute-

tica

No terceiro capiacutetulo iremos descrever o nosso campo de pesquisa caracterizando os

seguintes aspectos

bull O setor automotivo

bull O setor de autopeccedilas

bull A ferramentaria

bull Os ferramenteiros

bull O grupo da empresa pesquisada

bull A empresa pesquisada

No quarto capiacutetulo faremos a anaacutelise dos dados obtidos na pesquisa de campo

Por fim apresentaremos as nossas consideraccedilotildees finais pelas quais proporemos alguns

desdobramentos bem como consideraremos os resultados deste trabalho em relaccedilatildeo agraves aacutereas

que investigam a presenccedila de saberes no processo de trabalho

5

12 Por que investigar a presenccedila de saberes no processo de trabalho

A questatildeo dos saberes presentes no processo de trabalho vem se constituindo como um

dos temas mais discutidos na atualidade A complexidade e a importacircncia deste assunto torna-

ram-no um tema multidisciplinar abrangendo aacutereas da educaccedilatildeo sociologia psicologia ciecircn-

cias da informaccedilatildeo engenharia mobilizando vaacuterios pesquisadores (SANTOS 19852 ARA-

NHA 19973 LIMA 19984 ASSIS 20005) De acordo com Evangelista (2002) ldquoDesde a

deacutecada de 60 autores como Drucker e Galbrait jaacute indicavam que o conhecimento tenderia a

ser o principal fator de produccedilatildeordquo (p 13)

Na medida em que se concretiza a importacircncia do saber no atual mundo do trabalho

aumenta tambeacutem o interesse de pesquisadores por essa temaacutetica Trein (1996 p 32) por e-

xemplo avalia que o interesse do capital por esta questatildeo ocorre ldquodiante do imperativo da

flexibilizaccedilatildeo da economia mundializadardquo Evangelista (2002 p 15) aponta alguns aspectos

da atual fase do capitalismo que reforccedilam o interesse do capital pela presenccedila de saberes no

processo de trabalho ldquoSer diferente e criativo significa maior lucro no mercado competitivo e

para o capital esses elementos podem estar focados nas informaccedilotildees e conhecimentos que

circulam no acircmbito da produccedilatildeordquo

A importacircncia do saber para as empresas no atual momento se configura de forma tal

que os empresaacuterios se organizaram em torno de discussotildees sobre a educaccedilatildeo fazendo coro

2 Dissertaccedilatildeo SANTOS E H Trabalho e educaccedilatildeo o cotidiano do operaacuterio na faacutebrica Belo Horizonte FA-EUFMG 1985 SANTOS E H Le savoir en travail lrsquoexpeacuterience de deacuteveloppement technologique par les travailleurs drsquoune industrie breacutesilienne Paris Universiteacute de Paris VIII 1991 (Tese Doutorado Deacutepartament des Sciences drsquo Education) 3 ARANHA A V S O conhecimento taacutecito e qualificaccedilatildeo do trabalhador Trabalho e Educaccedilatildeo Belo Hori-zonte NeteFAEUFMG n 2 p 13-29 agodez 1997 4 LIMA F P A SILVA C A D A objetivaccedilatildeo do saber praacutetico na concepccedilatildeo de sistemas especialistas das regras formais agraves situaccedilotildees de accedilatildeo Belo Horizonte 1998 (Mimeo) 5 Dissertaccedilatildeo ASSIS R W Os impactos das novas tecnologias nas formas de sociabilidade e no savoir-faire dos operadores um estudo de caso do setor sideruacutergico Belo Horizonte Faculdade de Psicologia da UFMG 2000

6

por uma formaccedilatildeo baseada na noccedilatildeo de competecircncia6 Aleacutem disso os empresaacuterios atraveacutes de

organismos como Senai Fiemg Fiesp e outros constantemente promovem seminaacuterios em

torno do tema (CARVALHO 1999 HORTA et al 2000)

A problemaacutetica dos saberes no trabalho posta em diaacutelogo com os interesses dos traba-

lhadores vem encontrando guarida tambeacutem nas reflexotildees em vaacuterios nuacutecleos de estudos7e jaacute

haacute algum tempo mobiliza pesquisas e debates No que se refere ao campo de estudos sobre

trabalho e educaccedilatildeo dentre outros destacam-se as abordagens sobre a presenccedila de saberes do

trabalhador no processo de trabalho as novas tecnologias e a organizaccedilatildeo do processo produ-

tivo e as poliacuteticas puacuteblicas e privadas para a educaccedilatildeo profissional (TREIN 1996 p 32 FI-

DALGO amp MACHADO 2000 p 338)

Alguns elementos verificados pelas pesquisas realizadas nesse campo bem como a

nossa experiecircncia em chatildeo de faacutebrica assinalam que esse tema tambeacutem mobiliza os interes-

ses dos trabalhadores Entretanto entendemos que ainda faltam elementos que favoreccedilam uma

organizaccedilatildeo coletiva dos trabalhadores centrada na valorizaccedilatildeo e uso dos seus saberes sendo

que muito do que foi colocado como relevante para os interesses dos trabalhadores ainda natildeo

foi suficientemente esclarecido como por exemplo as possibilidades de formalizaccedilatildeo e legi-

timaccedilatildeo dos seus saberes (ARANHA 1997 SANTOS 1985 1997 2000)

As pesquisas que enveredaram pela investigaccedilatildeo da presenccedila de saberes no processo

de trabalho discutem o reconhecimento do proacuteprio capital sobre a importacircncia do saber do

trabalhador no processo produtivo No entanto questionam este reconhecimento pode ser

traduzido em ganhos para os trabalhadores Se haacute algum ganho quais satildeo eles Na tentativa

de responder a essas questotildees Aranha (1997) Santos (1985 1997 2000) Machado (1999)

6 A polecircmica sobre o uso da noccedilatildeo de competecircncia pode ser encontrada em FIDALGO amp MACHADO (2000 p 56 e120) SANTOS (2003) 7 Segundo FIDALGO amp OLIVEIRA (2001) NETEFAEUFMG Nuacutecleo de Estudo sobre Trabalho e Educaccedilatildeo da Faculdade de Educaccedilatildeo da UFMG NESTHFAFICHUFMG Nuacutecleo de Estudo sobre o Trabalho Humano NEDATEUFF Nuacutecleo de documentaccedilatildeo e dados sobre trabalho e educaccedilatildeo Grupo Trabalho - Educaccedilatildeo Carlos Chagas e da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo NTEUFC Nuacutecleo Trabalho e Educaccedilatildeo da Univer-sidade Federal do Cearaacute Conferir dossiecirc trabalho e educaccedilatildeo publicado em Educaccedilatildeo em Revista (2001)

7

defendem a necessidade de se investigar o saber no trabalho a partir da perspectiva que o tra-

balhador confere a este saber Nesse sentido eacute vaacutelido acrescentar uma observaccedilatildeo feita por

Santos (1997)

A capitalizaccedilatildeo dos benefiacutecios proporcionados pelo saber do trabalhador agrave produ-ccedilatildeo eacute uma estrateacutegia jaacute colocada em marcha pelos empresaacuterios Fica a tarefa de construir uma alternativa que deixando de ser resistecircncia passiva e natildeo caindo na co-gestatildeo do saber no trabalho resgate o valor epistemoloacutegico social poliacutetico e cultural do saber do trabalhador (p 26)

Apresentada a importacircncia do tema na perspectiva dos trabalhadores emerge uma

pergunta como as pesquisas sobre este tema poderiam favorecer a proposta de Santos A

nosso ver uma possibilidade de resposta pode ser construiacuteda a partir de uma investigaccedilatildeo que

considere a capacidade dos trabalhadores de chatildeo de faacutebrica de interpretar o mundo do traba-

lho

Esse tema tambeacutem se faz presente na literatura que discute a questatildeo das poliacuteticas

puacuteblicas em educaccedilatildeo mais precisamente aquelas voltadas para a formaccedilatildeo profissional No

atual momento como demonstraram Evangelista (2002) Machado (1999) Souza (2002) e

Kuenzer (1997) o processo de reestruturaccedilatildeo produtiva vem requisitando um trabalhador com

uma formaccedilatildeo baacutesica mais soacutelida e ampliada As pesquisas revelam que os capitalistas pres-

sionam por uma concepccedilatildeo de educaccedilatildeo pautada em um modelo de competecircncias que garanta

a formaccedilatildeo de um trabalhador que exerccedila com excelecircncia multitarefas (KUENZER 1997

CARVALHO 1999)

Dessa forma investigar a presenccedila de saberes no trabalho corresponde a uma demanda

extremamente atual seja qual for o foco privilegiado Todavia entendemos que para avanccedilar

em relaccedilatildeo ao que estaacute disponiacutevel na literatura apreciada eacute necessaacuterio conhecer mais sobre os

saberes produzidos pelos trabalhadores Nossa contribuiccedilatildeo se refere aos caminhos que os

trabalhadores percorrem para produzir seus saberes e ao fato de apresentar de que forma eles

8

satildeo mobilizados e formalizados Daiacute que elegemos investigar as estrateacutegias usadas pelos fer-

ramenteiros de uma induacutestria metaluacutergica para produzir mobilizar e formalizar os seus sabe-

res

Se de um lado as pesquisas demonstram que o saber taacutecito do trabalhador estaacute se

constituindo como um objeto que mobiliza diversos interesses por outro lado alguns pesqui-

sadores explicitaram a necessidade de se ampliarem as investigaccedilotildees De acordo com Aranha

(1997)

O conhecimento taacutecito embora decisivo natildeo tem merecido ainda o enfoque neces-saacuterio Primeiro por sua dificuldade em expressar-se de forma sistematizada ou pela ausecircncia de interesses reais de quem deteacutem o controle dos processos de trabalho e de formaccedilatildeo de alccedilaacute-lo no niacutevel de ldquoconhecimento cientiacuteficorsquorsquo Segundo porque muitas vezes eacute tido como ldquoalgordquo natural e natildeo fruto de um processo social de cons-truccedilatildeo (p 26)

Neste sentido esta investigaccedilatildeo se justifica tambeacutem pela possibilidade de trazer novos

elementos teoacutericos e praacuteticos que subsidiem os trabalhadores nos seus esforccedilos de formalizar

e legitimar os seus saberes

As investigaccedilotildees sobre o saber no trabalho podem contribuir com as poliacuteticas puacuteblicas

educacionais na medida em que permitem conhecer outras formas de apreensatildeo da realidade e

de construccedilatildeo de saberes bem como verificar a influecircncia da escola formal na produccedilatildeo des-

ses saberes Tem-se ainda a chance de validar os saberes dos trabalhadores ao se incorporar

essas novas formas no debate escolar reforccedilando a perspectiva de uma formaccedilatildeo pelo traba-

lho e natildeo exclusivamente para o trabalho Essa praacutetica jaacute eacute relativamente consagrada no setor

produtivo conforme esclarece Therrien (1996) ldquoO debate da lsquoqualidade totalrsquo nascido do

chatildeo das interaccedilotildees da faacutebrica evidenciou capacidades de elaboraccedilatildeo de soluccedilotildees de constru-

ccedilotildees de saberes que manifestam lsquoexistecircncia de racionalidadersquo que fogem aos padrotildees formais

da ciecircncia e da tecnologiardquo (p 67)

9

A investigaccedilatildeo sobre o saber taacutecito do trabalhador poderaacute contribuir tambeacutem com o

debate sobre o ldquoalavancamentordquo tecnoloacutegico do Brasil uma vez que as pesquisas apontam

que a tecnologia presente no processo de trabalho tem um deacutebito com o saber taacutecito do traba-

lhador Essa possibilidade se apresenta em uma reflexatildeo de Santos (2000)

O desenvolvimento tecnoloacutegico as inovaccedilotildees teacutecnicas se concretizam por uma so-ma de pequenas e grandes iniciativas de pequenas e grandes decisotildees de pequenas e grandes conquistas dos trabalhadores O domiacutenio dos processos teacutecnicos se expe-rimenta dia apoacutes dia

Em que pese a contribuiccedilatildeo das pesquisas sobre a questatildeo do saber no processo de tra-

balho persistem ainda algumas lacunas que ficam evidenciadas pelo aparente consenso de

que o saber taacutecito natildeo eacute formalizaacutevel Aranha afirma que segundo Machado ldquoAs qualifica-

ccedilotildees taacutecitas satildeo como um saber-fazer complementar e necessaacuterio ao sistema teacutecnico intuitivo

e natildeo codificaacutevelrdquo (ARANHA 1997 p 13)

Em nosso entendimento o debate dessa perspectiva aparentemente consensual eacute pos-

siacutevel e se constitui como um desafio a ser perseguido cuja expectativa eacute contribuir para a va-

lorizaccedilatildeo do saber do trabalhador como diz Santos (1997) em suas dimensotildees ldquo() epistecircmi-

ca econocircmica e culturalrdquo

Por fim mesmo reconhecendo o saber do trabalhador como um objeto complexo con-

sideramos que uma parte da lacuna sobre o saber taacutecito se deva ao fato de que a maioria das

pesquisas sobre esse tema tenha privilegiado uma abordagem que natildeo explora em profundida-

de o como estes saberes satildeo produzidos mobilizados e formalizados por um segmento impor-

tante da induacutestria mecacircnica os ferramenteiros Dessa forma a nossa pesquisa pretende conhe-

cer os caminhos percorridos pelos trabalhadores ferramenteiros para produzir mobilizar e

formalizar os seus saberes

Neste sentido acreditamos que esta pesquisa ao aceitar o desafio de apreender as es-

trateacutegias usadas pelos ferramenteiros para produzir mobilizar e formalizar seus saberes con-

10

tribuiraacute com elementos de ordem teoacuterica e praacutetica para a discussatildeo em torno da legitimidade

do saber taacutecito e cobriraacute uma lacuna no campo de trabalho e educaccedilatildeo com novas descobertas

acerca dos saberes presentes no processo de trabalho Auxiliaraacute tambeacutem as poliacuteticas puacuteblicas

voltadas para a formaccedilatildeo do trabalhador ao apresentar outras formas de produccedilatildeo de saberes e

de apreensatildeo da realidade Portanto os objetivos que nortearam esta pesquisa satildeo

bull Conhecer os caminhos que os ferramenteiros percorrem para produzir mobilizar e

formalizar os seus saberes taacutecitos

bull Verificar se esses caminhos se transformam ou natildeo em meacutetodos de trabalho dos fer-

ramenteiros

bull Verificar a legitimidade que os ferramenteiros atribuem agraves suas estrateacutegias de pro-

duccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes taacutecitos

Se por um lado entendemos como necessaacuterio apresentar a nossa problematizaccedilatildeo so-

bre a hipoacutetese de que os ferramenteiros possam desenvolver estrateacutegias para produzir mobili-

zar e formalizar seus saberes por outro lado eacute importante salientar que ao definirmos as es-

trateacutegias usadas pelos ferramenteiros como produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes

natildeo buscamos demarcar uma separaccedilatildeo hermeacutetica entre elas e sim analisar se as suas seme-

lhanccedilas e diferenccedilas se articulam Por este motivo apresentaremos um breve debate sobre

essas trecircs categorizaccedilotildees

121 A produccedilatildeo de saberes

As pesquisas que abordam a questatildeo da produccedilatildeo de saberes pelo trabalhador afirmam

que esses saberes se apresentam perante a necessidade do trabalhador superar determinadas

dificuldades no processo de trabalho dados os limites da engenharia em prescrever o que de-

ve ser feito para garantir a realizaccedilatildeo de uma atividade trabalho (MACHADO 1999 ASSIS

11

2000) A partir dessa perspectiva quando discutimos o saber taacutecito acabamos por aproximar

essa noccedilatildeo de uso do saber com a inventividade e a criatividade do trabalhador dentro do pro-

cesso de trabalho ou seja com as ldquosaiacutedasrdquo e as ldquogambiarrasrdquo criadas pelos trabalhadores para

realizarem um determinado trabalho

Um dos pressupostos que sustenta a possibilidade de que os trabalhadores possam

produzir saberes reside na tese de que o trabalho eacute marcado por um princiacutepio educativo San-

tos (2000) faz uma consideraccedilatildeo sobre essa possibilidade

() trabalhar eacute satisfazer uma exigecircncia - produzir - mas estreitamente ligada ao fa-to de criar de aprender de desenvolver de dominar de adquirir um saber Traba-lhar eacute procurar preencher certas lacunas do saber e desse modo as suas proacuteprias Quer dizer desenvolver se informar se formar Se transformar se experimentar e experimentar sua inteligecircncia (p 129)

A consideraccedilatildeo de que o trabalho eacute marcado por um princiacutepio educativo se potenciali-

za segundo as pesquisas mediante a incapacidade da engenharia enquanto um conjunto de

saberes formalizados em dar conta das demandas reais e que satildeo necessaacuterias para garantir o

andamento do processo produtivo (SANTOS 1997 SALERNO 1994) Essa incapacidade da

gerecircncia deixa um espaccedilo no processo de trabalho para as chamadas situaccedilotildees imprevistas Eacute

diante do inesperado que a criatividade do trabalhador em solucionar os problemas do traba-

lho faz a diferenccedila entre o que a engenharia prescreve e o que realmente ocorre no processo

de trabalho O capital usa esse expediente de forma que a gerecircncia convoca e pressiona por

soluccedilotildees do chatildeo de faacutebrica mesmo sabendo que a situaccedilatildeo se desenvolve dentro do inespe-

rado Evangelista (2002) fez a seguinte observaccedilatildeo a esse respeito ldquoSe as situaccedilotildees estatildeo fora

do previsto natildeo importa eacute preciso produzir garantindo o ecircxitordquo (p 131)

Ao usar a sua inteligecircncia para superar os entraves do ldquoinesperadordquo o trabalhador i-

nova produzindo saberes e tambeacutem aprende a aprender A possibilidade de que a relaccedilatildeo do

trabalhador com os imprevistos do processo produtivo se configure como um momento peda-

12

goacutegico foi apontada por Machado (1999) ldquoHaacute uma escolha a ser feita e que nas situaccedilotildees de

trabalho entra em uma perspectiva dialeacutetica entre as regras do saber estabelecido e o natildeo-

saber que o acaso impotildee promovendo um processo de construccedilatildeo de saber no trabalhordquo (p

151)

A inteligecircncia do trabalhador lhe permite ir aleacutem da superaccedilatildeo do inesperado Ao pocircr a

sua criatividade em marcha os trabalhadores buscam realizar o seu trabalho da forma mais

confortaacutevel mais bonita ou mais faacutecil8 Eacute nesse contexto que surgem os ldquoatalhosrdquo Santos

(1985) em uma pesquisa sobre o trabalho dos caldeireiros nos revela que esses profissionais

a partir da produccedilatildeo de ldquomacetesrdquo ou ldquogambiarrasrdquo criavam soluccedilotildees para facilitarem a reali-

zaccedilatildeo do seu trabalho Essa pesquisadora (1985 p 62) apresenta o depoimento de um traba-

lhador sobre essa questatildeo ldquoA gente costuma fazer ferramentas para facilitar o nosso trabalho

espaacutetula cachorro e gabarito () Vamos dizer que a gente vai fazer um cone que eacute a peccedila

mais difiacutecil de calandrar A gente sempre usa um macete qualquer e adianta maisrdquo

Se de um lado eacute o imprevisiacutevel e o natildeo-prescrito pela engenharia que convocam o sa-

ber taacutecito do trabalhador por outro lado a fecundidade dos macetes e das intervenccedilotildees do

trabalhador dialoga com os tipos de meio de produccedilatildeo especiacuteficos em cada processo de traba-

lho De acordo com Evangelista (2002) ldquoA tecnologia e o maquinaacuterio usado na produccedilatildeo

influem significativamente na possibilidade que os trabalhadores tecircm de construccedilatildeo e de

controle do conhecimento mobilizado no processo de trabalhordquo (p 134)

Essa consideraccedilatildeo aparece nas pesquisas principalmente nos processos automatizados

como um algo a mais na produccedilatildeo de saber no trabalho Assis (2000) ao investigar o monito-

ramento da produccedilatildeo em uma siderurgia feita pelos operadores atraveacutes dos paineacuteis de contro-

le observa que a obrigaccedilatildeo de anular os possiacuteveis danos causados pelos imprevistos leva-os a

produzir um novo saber

8 Em vaacuterias induacutestrias em que trabalhamos existia a expressatildeo ldquojogar faacutecilrdquo

13

Observamos tambeacutem que a ldquovigilacircnciardquo dos operadores no acompanhamento natildeo significa apenas uma qualidade visual ou sensorial mas faz emergir um saber mais abstrato sendo tudo isto necessaacuterio quando se reconhece a falibilidade dos meios teacutecnicos e a possibilidade de imprevistos (p 94)

Outro exemplo dessa natureza que consideramos importante eacute o caso da produccedilatildeo de

saberes em empresas que possuem maacutequinas com CNC9 Essas empresas frequumlentemente op-

tam por colocarem como operadores de CNC torneiros mecacircnicos com experiecircncia em maacute-

quina convencional Ao fazerem essa opccedilatildeo as empresas levam em consideraccedilatildeo a capacida-

de dos torneiros mecacircnicos de anteciparem os possiacuteveis problemas com o CNC Um desses

casos foi identificado por Vieira apud Evangelista (2002)

No caso do trabalhador possuir um conhecimento preacutevio adquirido no uso de tec-nologia convencional quando ele se depara com uma maacutequina do tipo CNC de tecnologia avanccedilada eacute possiacutevel unir teoria e praacutetica essa uacuteltima adquirida na maacute-quina convencional No entanto para aqueles que iniciaram a praacutetica diretamente nesta maacutequina CNC fica mais difiacutecil diagnosticar por exemplo a origem de deter-minado problema no processo (p 135)

No caso do CNC apresenta-se ainda uma produccedilatildeo de saber muito complexa Um

exemplo concreto de resoluccedilatildeo de um problema e antecipaccedilatildeo de outro cujo tipo de maacutequina

e tecnologia interfere na produccedilatildeo de saber eacute abordado por Salerno (1994) O saber adquirido

no trabalho em maacutequinas convencionais auxiliou os trabalhadores natildeo somente na detecccedilatildeo de

um problema no programa do CNC mas permitiu-lhes elaborar um programa melhor do que o

da engenharia

Numa faacutebrica que visitamos um programa consistia em fazer um pesado corte num bloco de alumiacutenio - uma operaccedilatildeo que gera calor consideraacutevel ndash e entatildeo fazer dois furos com distacircncia precisa entre eles Quando os passos do programa satildeo carrega-dos nessa ordem a distacircncia entre os furos diminui agrave medida em que o alumiacutenio es-fria O operaacuterio foi capaz de corrigir o problema alterando o programa para fazer primeiro a furaccedilatildeo (SHAIKEN apud SALERNO 1994 p 73)

9 De acordo com FARIA (1997) CNC ndash Comando Numeacuterico Computadorizado eacute um ldquocomando com capacida-de de receber informaccedilotildees memorizar executar caacutelculos e transmiti-los agrave maacutequina para execuccedilatildeo da peccedilardquo (p 39)

14

122 A mobilizaccedilatildeo de saberes

Se as pesquisas confirmam a chance de o trabalhador produzir saberes no trabalho em

nosso entendimento quando avanccedilamos sobre essa possibilidade nos remetemos a algumas

indagaccedilotildees dentre as quais quais elementos os trabalhadores mobilizam para produzir seus

saberes taacutecitos A literatura que aborda o tema aponta alguns elementos que poderiam favore-

cecirc-lo tais como a escolarizaccedilatildeo formal a experiecircncia no trabalho e as relaccedilotildees sociais dentro

e fora do ldquochatildeo de faacutebricardquo

No que se refere agraves influecircncias recebidas pelos trabalhadores da escola formal temos

um debate multifacetado De um lado as pesquisas revelam que no padratildeo flexiacutevel e integra-

do haacute uma exigecircncia por parte das empresas de uma maior escolarizaccedilatildeo dos trabalhadores

com base na suposiccedilatildeo de que em funccedilatildeo das multitarefas e da presenccedila da informaacutetica no

processo de trabalho as tarefas exigem uma maior cogniccedilatildeo do operaacuterio (KUENZER1996

EVANGELISTA 2002 ARAUacuteJO 2001 SOUZA 2002) Ainda nessa seara investigar as

estrateacutegias que os trabalhadores possuem para produzir mobilizar e formalizar seus saberes

poderaacute revelar de que forma os saberes aprendidos na escola formal influenciam ou natildeo as

soluccedilotildees criadas pelos operaacuterios nas situaccedilotildees de trabalho

Por outro lado alguns autores defendem que a convivecircncia com o processo de traba-

lho ou seja a experiecircncia profissional continua sendo um fator fundamental que subsidia a

elaboraccedilatildeo do saber do trabalhador e que a influecircncia da escolarizaccedilatildeo formal ocuparia um

plano secundaacuterio Vieira apud Evangelista (2002 p 124) apresenta por exemplo uma anaacuteli-

se que questiona a cobranccedila do ensino meacutedio por parte da Fiat em relaccedilatildeo agraves exigecircncias reais

do processo de trabalho ldquo() considerando o contexto da empresa conclui-se que o quadro

funcional do motor Fire com trabalhadores mais escolarizados decorre mais de uma questatildeo

de oferta (de trabalhadores formados) do que de demanda (da proacutepria produccedilatildeo)rdquo Carvalho

15

apud Evangelista (2002 p 133) aprofunda esse questionamento e afirma ldquo() os trabalhado-

res tecircm consciecircncia de que a formaccedilatildeo profissional natildeo abrange amplamente a praacutetica cotidia-

na de trabalho e que o valor formativo da experiecircncia tem que ser levado em contardquo

Outro exemplo que articula a construccedilatildeo do saber taacutecito com experiecircncia profissional

se remete agrave questatildeo do erro no processo do trabalho O capital tende a se posicionar distinta-

mente em relaccedilatildeo aos erros da concepccedilatildeo e da execuccedilatildeo Essa distinccedilatildeo eacute conhecida pelos

trabalhadores o que torna o erro um momento de aprendizagem para o trabalhador e parte

fundamental da construccedilatildeo do seu saber taacutecito

Um comentaacuterio acerca do erro foi feito por Vieira apud Evangelista (2002) quando

relata a fala de um trabalhador da Fiat ldquoSegundo o entrevistado os trabalhadores brasileiros

em comparaccedilatildeo aos italianos ofereciam uma vantagem importante nessa dinacircmica competiti-

va pois inovam bastante e natildeo tecircm medo de errar () a gente vai tentando fazendo diferente

uma hora daacute certordquo (p 132)

Alves Carvalho aponta a demanda de um outro saber-fazer em um contexto de incerte-

zas no mundo do trabalho Como cita Machado (1999) ldquoA gestatildeo da competecircncia requisita

habilidades cognitivas e comportamentais para lidar com o novo e com o incertordquo (p 186) O

que estas pesquisas natildeo problematizaram eacute como os trabalhadores se apropriam dos seus erros

e dos erros dos seus colegas e de como estes erros se transformam em saberes

Por fim alguns autores destacam a influecircncia do aspecto coletivo ou das relaccedilotildees soci-

ais na produccedilatildeo do saber Evangelista (2002) Assis (2000) Arauacutejo (2002) Souza (2002) e

Machado (1999) afirmam que o capital ao reconhecer a dimensatildeo coletiva do saber do traba-

lhador busca ao seu modo recriar espaccedilos de coletividade para facilitar a integraccedilatildeo do saber

do trabalhador no processo produtivo O capital trabalha ainda com a hipoacutetese de que saberes

diferenciados possam se complementar no processo produtivo Um desses casos pode ser ve-

rificado na pesquisa de Evangelista (2002 p 76) onde se destaca a introduccedilatildeo de uma outra

16

sociabilidade no processo produtivo feita pela Fiat na figura das UTEs (Unidades Tecnoloacutegi-

cas Elementares) ldquoTrata-se de uma estrateacutegia que visa reunir profissionais de vaacuterias aacutereas e

favorecer o trabalho em equiperdquo Vejamos uma reflexatildeo de Santos (1997) sobre essa questatildeo

ldquoO saber e as relaccedilotildees que os trabalhadores estabelecem entre si e com o saber deixam de ser

resultados fortuitos da vida e no trabalho e tornam-se fonte de toda produtividaderdquo (p 18)

Assis (2000) conferiu tanta importacircncia a essa questatildeo que acabou por tornaacute-la foco de

sua dissertaccedilatildeo Dentre outras coisas Assis verifica que a empresa ldquoexige que os trabalhado-

res coloquem constantemente em praacutetica o seu savoir-faire Este deve ser construiacutedo de forma

prioritariamente coletiva com constantes trocas de saberes e discussotildees sobre as representa-

ccedilotildees que cada trabalhador possui dos acontecimentosrdquo (p 16)

Em relaccedilatildeo aos interesses dos trabalhadores a dimensatildeo coletiva da produccedilatildeo do saber

eacute interpretada por muitos pesquisadores como uma vantagem dos trabalhadores que ateacute certo

ponto poderiam escolher com quem compartilhar o seu saber uma vez que ele estaacute inscrito

em uma ldquorederdquo com coacutedigos e interesses proacuteprios dos trabalhadores Aranha (1997) chega a

falar em ldquodomiacutenio coletivo do processo de trabalhordquo (p 20) Evangelista (2002) faz uma re-

flexatildeo sobre a inserccedilatildeo do saber nas relaccedilotildees sociais que recupera as possibilidades de resis-

tecircncia do trabalhador

Esse conhecimento praacutetico produzido tambeacutem para ser empregado no cotidiano fa-bril supotildee a comunicaccedilatildeo verbal ou natildeo de um conjunto de siacutembolos a se interpre-tar Exata interpretaccedilatildeo implica que emissores e receptores de informaccedilotildees estejam dispostos a ajustar continuamente suas accedilotildees em funccedilatildeo de expectativas e reaccedilotildees do outro (p 56)

Se de um lado o capital cria novas estrateacutegias para apropriar o saber do trabalhador

por outro lado os trabalhadores continuam criando novos saberes e reapropriando outros for-

malizados pela concepccedilatildeo (ASSIS 2000 SALERNO 1994) e inclusive alguns saberes jaacute

formalizados pela ciecircncia como por exemplo o tratamento teacutermico usado para melhorar as

17

caracteriacutesticas de resistecircncia do accedilo ou mesmo saberes escolares tais como geometria e tri-

gonometria

Estes satildeo alguns dos pontos cruciais que nossa investigaccedilatildeo pretende abordar quando

priorizamos a possibilidade de os trabalhadores produzirem mobilizarem e formalizarem es-

trateacutegias que lhe permitam produzir mobilizar e organizar os seus saberes

123 A formalizaccedilatildeo de saberes

As possibilidades de os trabalhadores formalizarem os seus saberes ao nosso olhar

implicam duas questotildees baacutesicas primeira uma necessidade de conferir ao seu saber um miacute-

nimo de confiabilidade para ser usado Segunda a capacidade dos trabalhadores em gerenciar

a sua atividade de trabalho Essas possibilidades dos trabalhadores bem como as do capital

aleacutem de encontrar guarida em algumas situaccedilotildees concretas correspondem a uma avaliaccedilatildeo

feita por Polany apud Frade (2003) ldquoO fato de um conhecimento taacutecito natildeo poder ser total-

mente declarado natildeo significa que ele natildeo possa ser comunicado ou compartilhadordquo

Na nossa proacutepria experiecircncia como metaluacutergico tomamos contato com alguns casos de

saberes formalizados tanto pelos trabalhadores quanto pelo capital Citaremos um caso que

ficamos conhecendo pelo contato com os colegas mais experientes durante a nossa vivecircncia

de trabalhador na induacutestria Os torneiros mecacircnicos modificavam a inclinaccedilatildeo do acircngulo de

suas ferramentas para obter um melhor corte no material a ser trabalhado Neste caso a inter-

venccedilatildeo exigia do torneiro experiecircncia na profissatildeo e noccedilotildees de geometria e estaacutetica Essa praacute-

tica possibilitou que a engenharia realizasse estudos com auxiacutelio dos saberes dos torneiros

mecacircnicos no sentido de estabelecer o acircngulo correto para cada situaccedilatildeo de trabalho Esse

caso permitiu a padronizaccedilatildeo de um grande nuacutemero de ferramentas e criaccedilatildeo de uma tecnolo-

18

gia conhecida como geometria de corte Tamanho efeito teve essa modificaccedilatildeo que ela gerou

um ramo paralelo as induacutestrias de pastilhas intercambiaacuteveis

A ideacuteia da natildeo-formalizaccedilatildeo absoluta do saber do trabalhador aleacutem de contrariar al-

guns casos concretos pode tambeacutem colaborar para a sua natildeo-legitimaccedilatildeo reforccedilando a con-

cepccedilatildeo que hierarquiza o trabalho manual e intelectual Essa possibilidade foi colocada por

Santos ldquoO que distingue o saber da concepccedilatildeo - da engenharia- e lhe daacute legitimidade eacute a sua

formalizaccedilatildeo sancionada por um conhecimento social e epistemologicamente reconhecidordquo

(SANTOS 1997 p 21)

A dificuldade de apreensatildeo do saber taacutecito natildeo pode ser traduzida e este risco existe

em uma inconsistecircncia do saber produzido pelo trabalhador Ateacute mesmo a engenharia possui

seus niacuteveis de saberes natildeo-formalizados e natildeo arca com o mesmo ocircnus que os trabalhadores

Santos (1997) propotildee uma distinccedilatildeo ldquoComo em qualquer campo do conhecimento haacute ao niacute-

vel da concepccedilatildeo na engenharia um saber que pode se apresentar como natildeo formalizado sim-

plesmente por natildeo ser ainda formalizaacutevelrdquo (p 23)

Ainda neste artigo Santos ao relatar o depoimento de um engenheiro demonstra que

essa ocorrecircncia eacute reconhecida pela proacutepria engenharia De acordo com essa autora este enge-

nheiro da Usimec responsaacutevel pelo desenvolvimento de projetos de turbinas eleacutetricas comen-

tou sobre a dificuldade de se prever o comportamento de um material fluiacutedo fundamental

para a tecnologia de turbina Segundo o engenheiro abordado por Santos (1997) ldquoMesmo

centros internacionais Franccedila Alemanha Estados Unidos possuem computadores capazes

apenas de definir um comportamento proacuteximo daquele fluiacutedo realrdquo (p 22)

Outro exemplo embora sutil que tivemos oportunidade de perceber em nossa experi-

ecircncia como metaluacutergico eacute que a proacutepria engenharia reconhece os limites de alguns de seus

saberes cuja expressatildeo aparece no uso sistematizado do fator de seguranccedila (fs) uma constan-

te matemaacutetica presente nos caacutelculos da engenharia onde o tabelamento varia para cada proje-

19

to incorporando uma margem de erro Como por exemplo se em um caacutelculo para dimensio-

nar um cabo de accedilo de uma caccedilamba o resultado for de 100mm de diacircmetro este valor eacute mul-

tiplicado por (fs) = 1210 resultando em uma medida de 120mm

Ao nosso ver a ideacuteia de que o saber taacutecito natildeo pode ser formalizado peca pelo seu o-

lhar excessivamente imediato sobre a situaccedilatildeo de trabalho o que tende a reduzir o saber do

trabalhador somente a uma accedilatildeo momentacircnea a uma habilidade manual de uacuteltima hora uma

naturalizaccedilatildeo enfim Essa interpretaccedilatildeo poderia reproduzir a imagem de um trabalhador que o

capital sempre desejou aquele que interveacutem cria colabora e natildeo sabe por quecirc

Essa perspectiva parece estar presente na proacutepria legislaccedilatildeo sobre a propriedade inte-

lectual Lei n 009279 de 1451999 que ao inveacutes de contribuir para a legitimaccedilatildeo do saber

taacutecito acaba por perceber a produccedilatildeo de saberes restringida ao espaccedilo e agraves condiccedilotildees de tra-

balho dentro das empresas conforme aponta em seus artigos 90 e 91

ldquoArt 90 Pertenceraacute exclusivamente ao empregado a invenccedilatildeo ou o modelo de uti-lidade por ele desenvolvido desde que desvinculado do contrato de trabalho e natildeo decorrente da utilizaccedilatildeo de recursos meios materiais instalaccedilotildees ou equipamen-tos do empregadorrdquo ldquoArt 91 A propriedade de invenccedilatildeo ou de modelo de utilidade seraacute comum em partes iguais quando resultar da contribuiccedilatildeo pessoal do empregado e de recursos dados meios materiais instalaccedilotildees ou equipamentos do empregador ressalvado expressa disposiccedilatildeo contratual em contraacuteriordquo

Embora a discussatildeo legal natildeo seja o foco de nossa pesquisa o fato eacute que a proacutepria lei

natildeo acolhe todas as condiccedilotildees de produccedilatildeo do saber no trabalho Essa lacuna pode ser produto

de uma abordagem reducionista do valor desse saber e de certa forma faz com que esta pes-

quisa ganhe mais uma relevacircncia

Nossa hipoacutetese comeccedila a ser construiacuteda a partir da consideraccedilatildeo de que quando o tra-

balhador passa a ter uma noccedilatildeo do valor do seu saber no processo de trabalho ele tende a au-

10 Valor aleatoacuterio para efeito de exemplo Em algumas induacutestrias em que trabalhamos o fator de Seguranccedila eacute ironicamente chamado de fator de ignoracircncia

20

mentar o zelo com a construccedilatildeo deste saber e que este zelo pode ser traduzido em um empe-

nho dos trabalhadores em formalizarem os seus saberes Fica ainda a seguinte questatildeo qual a

linguagem usada pelos trabalhadores para formalizar o seu saber

A nossa hipoacutetese eacute que a produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saber pelos traba-

lhadores no processo de trabalho se realizariam atraveacutes da produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formaliza-

ccedilatildeo de estrateacutegias taacutecitas Neste caso a questatildeo do saber natildeo se limita agrave aplicaccedilatildeo do savoir-

faire do trabalhador na produccedilatildeo mas tambeacutem agrave forma de como esse saber foi construiacutedo

mobilizado e formalizado pois a proacutepria estrateacutegia jaacute seria um sofisticado saber Talvez seja

esse saber o saber das estrateacutegias taacutecitas o elemento que decirc confianccedila ao trabalhador para

ldquofugirrdquo da prescriccedilatildeo da engenharia ou da concepccedilatildeo e que lhe permite ainda emancipar e

adaptar o seu saber ao princiacutepio dinacircmico presente em todos os processos de trabalho

Eacute mister salientar que optar por apreender estas estrateacutegias eacute priorizar uma aproxima-

ccedilatildeo com o trabalhador e com as condiccedilotildees que o favoreccedilam criaacute-las uma vez que o saber taacuteci-

to se apresenta como patrimocircnio coletivo de uma determinada eacutepoca Em nossa vivecircncia de

operaacuterio tivemos a oportunidade de observar e conhecer casos de intervenccedilatildeo do trabalhador

em que soluccedilotildees semelhantes foram elaboradas em situaccedilatildeo de trabalho nem sempre iguais

em espaccedilos distintos e por sujeitos que natildeo se conheceram Esse exemplo demonstra que a

questatildeo do saber taacutecito do trabalhador dialoga com a proacutepria histoacuteria do conhecimento Essa

possibilidade pode ser percebida em uma anaacutelise feita por Machado (1996)

Para compreender o sentido e o significado das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas eacute necessaacuterio situaacute-las no contexto social em que se desenvolvem pois elas expressam o movi-mento contraditoacuterio da ciecircncia e da teacutecnica (aspecto loacutegico) e a natureza soacutecio-poliacutetica do modo de produccedilatildeo (aspecto soacutecio-histoacuterico) (p 112)

Considerando a relevacircncia e a complexidade do saber taacutecito acreditamos ser possiacutevel

por meio desta pesquisa contribuir para o esclarecimento das estrateacutegias que os ferramentei-

ros usam para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes no trabalho

21

13 O REFERENCIAL TEOacuteRICO

Desde os primeiros momentos de desenvolvimento desta pesquisa buscamos apoio em

referenciais teoacutericos que nos permitissem tomar o nosso objeto de forma articulada com cate-

gorias como a centralidade do trabalho na constituiccedilatildeo da sociabilidade a presenccedila de saberes

no processo de trabalho o saber taacutecito do trabalhador e a relaccedilatildeo entre teoria e praacutetica na

construccedilatildeo deste tipo de saber Todavia o proacuteprio objeto desta pesquisa nos mobilizou no

sentido de buscar no referencial teoacuterico tambeacutem uma possibilidade de tomar a presenccedila de

saber no trabalho por um olhar mais proacuteximo aos protagonistas do chatildeo de faacutebrica no caso

especiacutefico desta pesquisa os ferramenteiros

Para dar conta do desafio de investigar as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros para

produzir organizar e mobilizar seus saberes nos apoiamos em autores que seguindo a tradi-

ccedilatildeo do materialismo histoacuterico referendam o trabalho como categoria central na formaccedilatildeo do

homem e por conseguinte na constituiccedilatildeo da sociabilidade (MARX 1985 GRAMSCI

1995) Contamos tambeacutem com os pensadores que a partir da ldquonoccedilatildeo ergonocircmicardquo de ldquotraba-

lho prescrito e trabalho realrdquo discutem o saber taacutecito do trabalhador no processo de trabalho

(ARANHA 1997 SANTOS 1991 1997 2000 SALERNO 1994 LIMA 1998) bem como

os pesquisadores que abordam os atuais impactos do processo de reestruturaccedilatildeo produtiva no

mundo do trabalho (ANTUNES 2001 CORIAT 1994 GOUNET 1999) E ainda buscamos

dialogar com pensadores que abordam a relaccedilatildeo entre a praacutetica e a teoria na construccedilatildeo do

saber taacutecito (NOUROUDINE 2002 MALGLAIVE 1990 POLANY 1967 SCHON 2000)

Em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo e ao conceito de trabalho11 eleito para este projeto compartilha-

mos com os autores que percebem o trabalho como a atividade constituidora da humanidade

11 Diante dos objetivos desta pesquisa nos limitaremos ao diaacutelogo com os autores que discutem o trabalho no modo de produccedilatildeo capitalista mais especificamente aqueles que abordam o processo de reestruturaccedilatildeo produti-va e suas principais referecircncias de organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho quais sejam o taylorismofordismo e toyo-tismo (ANTUNES 2001 CORIAT 1994 GOUNET 1999)

22

e portanto categoria central na formaccedilatildeo do homem (MARX 1985 GRAMSCI 1995 AN-

TUNES 2001) Essa perspectiva como jaacute foi mencionado anteriormente tem sua matriz nas

ideacuteias marxistas Vejamos uma citaccedilatildeo do proacuteprio Marx (1985)

Antes de tudo o trabalho eacute um processo entre o homem e a natureza () Ele potildee em movimento as forccedilas naturais pertencentes agrave sua corporalidade braccedilos e pernas cabeccedila e matildeo a fim de apropriar-se da mateacuteria natural numa forma uacutetil para a sua proacutepria vida Ao atuar por meio desse movimento sobre a natureza externa a ele e ao modificaacute-la ele modifica ao mesmo tempo sua proacutepria natureza (p 149)

Eacute por esta trilha que se ergue tambeacutem um dos aspectos educativos do trabalho pois

ao modificar a sua proacutepria natureza o trabalho permite ao homem dirigir-se a si mesmo Se-

gundo Macaacuterio (1999) ldquoO domiacutenio do homem sobre si mesmo eacute de fato um pressuposto

imprescindiacutevel para o sucesso do trabalhordquo (p 89)12

Ainda sobre a centralidade do trabalho Junior (2000 p335) afirma que para Marx tra-

ta-se de uma categoria central a partir da qual ldquopode-se pensar o indiviacuteduo a sociedade com

seus sistemas poliacuteticos juriacutedicos e ideoloacutegicos sua cultura etcrdquo

Outra possibilidade de o trabalho ser tido como determinante na constituiccedilatildeo da socia-

bilidade pode ser dada por ele ser tido por alguns pensadores como uma atividade exclusiva-

mente humana Conforme afirma Alves Carvalho apud Machado (2001) ldquoO trabalho natildeo

pode ser conhecido fora do humano pois ele eacute uma atividade especificadamente humana que

se desenvolve dentro da contradiccedilatildeo entre o singular e o coletivo sendo inseparaacutevel das rela-

ccedilotildees sociais que ele engendrardquo (p 46) Para Macaacuterio (1999) o desvelamento da categoria tra-

12 Este pensador sustenta essa posiccedilatildeo tomando como referecircncia as reflexotildees de LUCKAacuteCS sobre trabalho e o ldquopocircr teleoloacutegicordquo Segundo LUCKAacuteCS apud MACAacuteRIO (1999) ldquoO homem foi definido como o animal que constroacutei os seus proacuteprios utensiacutelios Eacute correto mas eacute preciso acrescentar que construir e usar instrumentos impli-ca necessariamente como pressuposto imprescindiacutevel para o sucesso do trabalho que o homem tenha domiacutenio sobre si mesmo Esse tambeacutem eacute um momento do salto a que nos referimos da saiacuteda do homem da existecircncia puramente animalescardquo (p 89)

23

balho ldquorevelaraacute a essecircncia humana isto eacute aquilo que ontologicamente faz do homem um ser

pertencente a uma esfera superior agraves naturaisrdquo (p 84)13

Se de um lado o referencial marxista aponta o trabalho como uma categoria central

protoforma da sociedade por outro lado encontramos tambeacutem em Marx uma criacutetica agrave forma

sob a qual o trabalho se constitui no capitalismo Neste sentido outras consideraccedilotildees sobre o

trabalho satildeo discutidas nesta pesquisa sobretudo aquelas que abordam como a importacircncia da

presenccedila de saberes vem se inscrevendo nos modelos de organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho

Dessa forma entendemos ser importante apresentar uma anaacutelise feita por Santos e Ferreira

(1996) sobre dois significados de trabalho historicamente construiacutedos

bull ldquotrabalho tomado como a ativa criaccedilatildeo de uma obra por um sujeito que implica uma ideacuteia de liberdade de transformaccedilatildeo de prazer

bull trabalho no sentido de labor onde ganham ecircnfase os conteuacutedos de esforccedilo rotineiro e repe-titivo sem liberdade de resultado consumiacutevel e incocircmodo inevitaacutevelrdquo (p 23)

Em relaccedilatildeo agraves contradiccedilotildees que o trabalho apresenta no modo de produccedilatildeo capitalista

buscamos estabelecer um diaacutelogo com pesquisadores que a partir das investigaccedilotildees sobre o

processo de reestruturaccedilatildeo produtiva abordam a presenccedila de saber no processo trabalho (AN-

TUNES 2001 CORIAT 1994 GOUNET 1999) e sobretudo as pesquisas que atraveacutes do

estudo de situaccedilotildees concretas remetem agrave temaacutetica do saber taacutecito dos trabalhadores (Santos

1985 1991 1997 2000 Aranha 1997 Lima 1998 Salerno 1994 Machado 2001 Assis

2000)

Para prosseguir o percurso de apreensatildeo do nosso objeto de pesquisa entendemos co-

mo necessaacuterio dialogar tambeacutem com os autores que ao discutirem o trabalho no capitalismo

13 Sobre a centralidade do trabalho acreditamos que esta pesquisa ao propor conhecer as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes corrobora a contestaccedilatildeo feita por ANTU-NES (2001) de que a ciecircncia seja a principal forccedila produtiva De acordo com ANTUNES (20001) a aparente autonomia da ciecircncia perante o trabalho natildeo elimina o trabalho como gerador de valor Na atual fase do capita-lismo o trabalho inscreve-se como sempre se fez em uma metamorfose e a ciecircncia permite a extraccedilatildeo do sobre-trabalho

24

fazem referecircncia agrave relaccedilatildeo entre o trabalho prescrito e o trabalho real14 De acordo com Santos

(2000) trabalho prescrito eacute ldquoA definiccedilatildeo preacutevia da maneira como o trabalhador deve executar

o trabalho o modo de usar os equipamentos e as ferramentas o tempo concedido para cada

operaccedilatildeo o como fazer e as regras que devem ser respeitadasrdquo O trabalho real se remete agraves

condiccedilotildees necessaacuterias em que se realiza uma parte do trabalho que sempre escapa agrave prescri-

ccedilatildeo Santos (2000) Para alguns pesquisadores a realizaccedilatildeo do trabalho real soacute se torna possiacute-

vel pela intervenccedilatildeo do saber taacutecito do trabalhador (SANTOS 1991 1997 ARANHA 1997

SALERNO 1994) Essa possibilidade eacute respaldada pelo entendimento de que o trabalho tem

um princiacutepio educativo (NOSELLA 1992) Essa perspectiva jaacute havia sido desenhada por

Gramsci conforme afirma Manacorda (2000) ldquoO trabalho para Gramsci eacute essencialmente

um elemento constitutivo de ensinordquo (p 135)

Optar por investigar os caminhos percorridos pelo trabalhador para a produccedilatildeo orga-

nizaccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo de seus saberes implica ao nosso olhar acreditar que eacute possiacutevel uma

aproximaccedilatildeo com o mundo do trabalho atraveacutes da lente do trabalhador A pesquisa biblio-

graacutefica que realizamos aliada agrave nossa experiecircncia como operaacuterio metaluacutergico nos permite

inferir sobre a possibilidade de o trabalhador se apropriar de saberes formalizados bem como

reapropriar seus saberes que foram incorporados ao saber da engenharia Neste sentido eacute im-

portante salientar que esta pesquisa se orientou tambeacutem pelas reflexotildees de pesquisadores que

defendem a possibilidade de o saber taacutecito do trabalhador favorecer uma leitura positiva do

trabalho (ARANHA 1997 SANTOS 1997 2000) Vejamos uma afirmaccedilatildeo de Santos

(2000) ldquoO trabalhador natildeo eacute um mero executante determinado pelo seu lugar nas relaccedilotildees

sociais e pelos dispositivos teacutecnicos mas tambeacutem um homem sujeito vivente com todo hori-

zonte de universalidade que isto implicardquo (p 123) Neste sentido seria possiacutevel que os traba-

lhadores se afirmassem como sujeitos de interesses proacuteprios pois mesmo que o capital busque 14 Essa perspectiva tem um deacutebito original com os trabalhos vinculados ao campo da ergonomia Neste sentido nos apoiamos especialmente em alguns pensadores desse campo (DANIELLOU 1989 SALERNO 1994 WIS-NER 1987 LIMA 1998)

25

controlar o seu saber ele natildeo lhe expropria a sua condiccedilatildeo de sujeito como nos afirma Char-

lot (2000) ldquoTodo indiviacuteduo eacute um sujeito por mais dominado que seja Um sujeito que inter-

preta o mundo resiste agrave dominaccedilatildeo afirma positivamente seus interesses procura transformar

a ordem do mundo em seu proacuteprio proveitordquo (p 31)

Ao considerar a capacidade transformadora do trabalho nossa pesquisa se referendou

em pesquisadores que recuperam a dimensatildeo concreta do trabalho Daiacute decorre a grande im-

portacircncia de Santos (1997 2000) para esta pesquisa Essa pesquisadora ao mesmo tempo em

que trata das contradiccedilotildees do trabalho no capitalismo e talvez por isso mesmo recupera tam-

beacutem as possibilidades de os trabalhadores atraveacutes de seus saberes se afirmarem como sujei-

tos de interesses proacuteprios Para isto se apoacuteia em Schwartz que ldquointerroga o trabalho como

experiecircncia individual e coletiva como ldquouso de sirdquo que pode ser feito por si e por outros

analisando a natureza epistemoloacutegica das interrogaccedilotildees que lhe concernemrdquo (SANTOS 2000

p 121) Para abordar a possibilidade de ldquouso de sirdquo por parte dos ferramenteiros nos remete-

remos tambeacutem agraves discussotildees propostas pela ergologia (SANTOS 1997 2000 SCHWARTZ

2000 2004)15

Essa perspectiva somada as nossas reflexotildees como operaacuterio nos permitiu ainda tra-

balhar com a ideacuteia de que o trabalhador ao buscar fazer melhor uso de seu saber desenvol-

vesse ele proacuteprio estrateacutegias que lhe garantissem um certo rigor na produccedilatildeo organizaccedilatildeo e

mobilizaccedilatildeo de seu saber

Ao elegermos como nosso objeto de pesquisa as estrateacutegias usadas pelos trabalhadores

para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes entendemos como necessaacuterio conhecer

tambeacutem as condiccedilotildees em que este saber foi produzido e como o trabalhador mobiliza e for-

15 Segundo SCHWARTZ a ergologia natildeo eacute uma nova disciplina Trata-se de uma proposta que congrega natildeo soacute muitas disciplinas que abordam o trabalho portanto multidisciplinar bem como interroga o ponto de vista dos protagonistas do trabalho e ainda o proacuteprio processo histoacuterico que fundamenta respectivamente o olhar cientiacute-fico das disciplinas e o olhar oriundo da experiecircncia no trabalho A ergologia ao tratar das ldquoatividades humanasrdquo inscreve o trabalho em sua dimensatildeo histoacuterica e social reconhecendo-o como uma experiecircncia individual e cole-tiva ldquono seu trabalho o trabalhador eacute sempre uma pessoa inteirardquo (SANTOS 2000 SCHWARTZ 2000 2004 FAITA e SOUZA-e-SILVA 2002)

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maliza este saber Neste sentido fizemos uma investigaccedilatildeo sobre a literatura que aborda a

relaccedilatildeo entre teoria e praacutetica no que se refere ao saber taacutecito (FRADE 2003 SCHON 2000

POLANY 1967 MALGLAIVE 1990)16

14 AS ESTRATEacuteGIAS METODOLOacuteGICAS

A literatura sobre a pesquisa cientiacutefica faz duas proposiccedilotildees de abordagens metodoloacute-

gicas as pesquisas quantitativas e qualitativas que podem quando for o caso aparecer como

complementares O uso da pesquisa quantitativa eacute indicado quando se apresenta a possibilida-

de de quantificar e mensurar os resultados da investigaccedilatildeo A pesquisa qualitativa normal-

mente eacute marcada pela natildeo-quantificaccedilatildeo dos resultados A sua aplicaccedilatildeo privilegia as dimen-

sotildees subjetivas das relaccedilotildees entre pessoas e entre pessoas e instituiccedilotildees De acordo com Mi-

nayo (1993) a pesquisa qualitativa

() se preocupa com um niacutevel de realidade que natildeo pode ser quantificado Ou seja ela tra-balha com o universo de significados motivos aspiraccedilotildees crenccedilas valores e atitudes o que corresponde a um espaccedilo mais profundo das relaccedilotildees dos processos e dos fenocircmenos que natildeo podem ser reduzidos agrave operacionalizaccedilatildeo de variaacuteveis (p 15)

A opccedilatildeo pela abordagem qualitativa dialoga de certa forma com as caracteriacutesticas do

nosso objeto e com as pretensotildees desta investigaccedilatildeo Uma vez que esta pesquisa se insere no

campo das ciecircncias sociais o seu objeto eacute ldquoessencialmente qualitativordquo (MINAYO 1993 p

16 O uso do termo ldquosaber taacutecitordquo embora citado pelos autores natildeo eacute assumido igualmente por todos eles Con-forme veremos mais adiante seratildeo usados termos que buscam identificar um saber de ordem praacutetica Neste sen-tido aparecem os termos savoir-faire saber praacutetico talento artiacutestico e conhecimento taacutecito Eacute importante ressal-tar que ao orientarmos nossa pesquisa com o uso de ldquosaber taacutecitordquo em detrimento do termo ldquoconhecimento taacuteci-tordquo acatamos a distinccedilatildeo feita por alguns pesquisadores entre saber e conhecimento entendendo que conheci-mento estaacute proacuteximo da ordem do formalizado de acordo com COLLINS (1992) apud LIMA e SILVA (1998) Jaacute o termo ldquosaberrdquo pode responder a saberes natildeo-formalizados e tambeacutem se articular com a ideacuteia de ldquofazerrdquo SAN-TOS (2001) Essa escolha se daacute por ser a situaccedilatildeo mais proacutexima da delimitaccedilatildeo do objeto desta pesquisa bem como por permitir perceber a questatildeo do saber taacutecito na perspectiva empresarial acadecircmica e tambeacutem dos traba-lhadores As razotildees da opccedilatildeo pelo termo saber taacutecito ficaram a nosso ver justificadas no desenvolvimento desta dissertaccedilatildeo

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15) Essa pesquisadora (1993 p 14-15) aponta quatro caracteriacutesticas importantes do objeto

das ciecircncias sociais

bull Eacute histoacuterico () cuja formaccedilatildeo social e configuraccedilatildeo satildeo especiacuteficas vivem o presente marcado pelo passado e projetado para o futuro () portanto a provisoriedade o dina-mismo e a especificidade satildeo caracteriacutesticas essenciais de qualquer questatildeo social

bull () natildeo eacute apenas o investigador que daacute sentido ao seu trabalho intelectual mas os seres humanos os grupos e a sociedade datildeo significado e intencionalidade a suas accedilotildees e a suas construccedilotildees na medida em que as estruturas sociais nada mais satildeo que accedilotildees objetivadas

bull () existe uma relaccedilatildeo entre sujeito e objeto () por serem da mesma natureza bull () o fato de que ela eacute intriacutenseca e extrinsecamente ideoloacutegica () Ela veicula interesses e

visotildees de mundo historicamente construiacutedas embora suas contribuiccedilotildees e seus efeitos teoacute-ricos e teacutecnicos ultrapassem as intenccedilotildees de seu desenvolvimento

A proposta de investigar os meacutetodos usados pelo trabalhador para a produccedilatildeo mobili-

zaccedilatildeo e a formalizaccedilatildeo dos seus saberes constitui-se para noacutes como um misto de aventura e

desafio Essas dimensotildees se devem pela possibilidade de poder articular as abordagens teoacuteri-

cas sobre o mundo do trabalho com a minha vivecircncia de operaacuterio ldquometaluacutergicordquo Ao se carac-

terizar tambeacutem pela relaccedilatildeo proacutexima entre sujeito e objeto a pesquisa qualitativa ganha mais

validade para esta pesquisa dada a nossa intimidade com o objeto Conforme elucida Minayo

(1993) ldquo() a pesquisa nessa aacuterea lida com seres humanos que por razotildees culturais de clas-

se de faixa etaacuteria ou por qualquer outro motivo tecircm um substrato comum de identidade com

o investigador tornando-os solidariamente imbricados e comprometidos rdquo (p 14) Essa pro-

ximidade no entanto nos alerta para a necessidade de estarmos atentos aos efeitos da subjeti-

vidade para alcanccedilarmos a objetividade na pesquisa (SANTOS 1991)

141 Revisatildeo bibliograacutefica

Esta pesquisa contou com um momento de vital importacircncia por meio do qual foi

possiacutevel nos aproximarmos do nosso objeto Neste sentido eacute importante salientar a nossa re-

28

visatildeo bibliograacutefica sobre o mundo trabalho sobretudo a presenccedila de saberes no processo de

trabalho

142 Instrumentos de pesquisa

Os instrumentos de pesquisa constituem-se de vital relevacircncia para as perspectivas

desta pesquisa dada a complexidade imposta pelo proacuteprio objeto As teacutecnicas de pesquisas

para a coleta de dados foram a pesquisa documental entrevistas semi-estruturadas e a obser-

vaccedilatildeo

1421 A pesquisa documental

Para esta pesquisa a coleta de dados documentais fez-se importante natildeo soacute por lanccedilar

luzes sobre a prescriccedilatildeo do trabalho feita pela empresa mas ainda pela possibilidade de ilus-

trar algumas formalizaccedilotildees de saberes feitas pelos sujeitos de nossa pesquisa Foram identifi-

cados e analisados materiais produzidos na empresa apostilas manuais de seguranccedila proce-

dimentos para o processo produtivo fichas de conclusatildeo de serviccedilo e tambeacutem materiais pro-

duzidos pelos trabalhadores como anotaccedilotildees tabelas e croquis17

1422 Entrevistas semi-estruturadas

O uso de entrevistas semi-estruturadas se constitui como uma das fases mais marcan-

tes desta pesquisa De um lado a proacutepria literatura sobre a metodologia cientiacutefica nas ciecircncias

sociais jaacute seria suficiente para justificar a relevacircncia desse instrumento de coleta de dados

Atraveacutes dessa modalidade de entrevista segundo Minayo (1993) ldquoO pesquisador busca obter

informes contidos na fala dos atores sociaisrdquo (p 57) O uso da entrevista semi-estruturada

facilita a participaccedilatildeo do entrevistado e auxilia na eventualidade de haver problemas de co- 17 Croquis satildeo desenhos feitos agrave matildeo podendo ser agraves vezes um rascunho de um desenho ou mesmo um desenho dentro de normas teacutecnicas

29

municaccedilatildeo pois de acordo com Mazzotti (1998) ldquoO entrevistador faz perguntas especiacuteficas

mas tambeacutem deixa que o entrevistado responda em seus proacuteprios termosrdquo Por outro lado natildeo

eacute menos farto o arsenal teoacuterico que aponta a dificuldade que uma pessoa possa ter para se ex-

pressar e especialmente no que se refere agrave questatildeo do saber taacutecito onde predomina um forte

debate sobre as possibilidade de explicitaccedilatildeo ou natildeo deste saber18 Diante desta questatildeo eacute

prudente que o pesquisador ldquodeixerdquo o entrevistado falar ou como afirma Thiollent (1980)

que o pesquisador se mantenha com uma ldquoatenccedilatildeo flutuanterdquo afim de ldquoestimular o entrevista-

do a explorar o seu universo cultural sem questionamento forccediladordquo Em relaccedilatildeo a essa pesqui-

sa haacute que se dizer em favor de Santos e Aranha que estas pesquisadoras sempre apontaram

que o respeito do pesquisador diante das ldquofalasrdquo do entrevistado remete tambeacutem a uma pos-

tura epistecircmica do pesquisador pela qual ele deve permitir que os protagonistas do trabalho

busquem seus proacuteprios meios para se fazerem entender19 Em relaccedilatildeo agraves entrevistas realiza-

das uma delas realizou-se dentro da proacutepria oficina20 Embora tenha ocorrido nos intervalos

do horaacuterio de almoccedilo tivemos que contar com barulhos e algumas interrupccedilotildees Diante desse

problema apresentado ao pessoal dos Recursos Humanos nos foi oferecida uma sala de trei-

namento para realizar a entrevista Observamos que nesta sala de treinamento as entrevistas

perderam um pouco da espontaneidade Passamos a buscar um espaccedilo para realizaacute-las que

fosse longe do barulho e das interrupccedilotildees mas que natildeo colocasse os ferramenteiros como

ldquoestrangeirosrdquo ao espaccedilo Neste momento optamos por usar uma sala onde no horaacuterio de

almoccedilo os trabalhadores jogavam cartas ou dominoacute Ainda que este espaccedilo se localizasse fora

do galpatildeo aproximadamente a uns 50 metros tratava-se de uma sala dentro da faacutebrica o que

18 Esta temaacutetica seraacute abordada mais adiante no capiacutetulo teoacuterico 19 Essa contribuiccedilatildeo deu-se em aulas durante a disciplina Sujeito trabalho e educaccedilatildeo oferecida por essas pes-quisadoras no curso de poacutes-graduaccedilatildeo da FAEUFMG em 2002 Outro momento tambeacutem muito importante foi uma experiecircncia de um grupo de trabalho com entrevistas ldquopilotordquo anterior agrave nossa entrada no campo de pesqui-sa onde foi possiacutevel debater sobre a relaccedilatildeo do pesquisador com as falas dos sujeitos de sua pesquisa Essa expe-riecircncia contou tambeacutem com a participaccedilatildeo da pesquisadora Rosacircngela Pereira 20 As entrevistas dentro da faacutebrica foram motivadas pela dificuldade de alguns dos entrevistados cujos depoi-mentos noacutes natildeo gostariacuteamos de ldquoperderrdquo em dispor de tempo fora do horaacuterio de trabalho Alguns desses estuda-vam uns tinham que ldquoolharrdquo os filhos para as esposas estudarem e outros moravam muito longe

30

nos deixou em sinal de alerta No entanto neste ldquonovordquo espaccedilo foi possiacutevel perceber um outro

posicionamento por parte dos entrevistados maior espontaneidade para com as questotildees a-

bordadas na entrevista e intimidade com este espaccedilo21

1423 Observaccedilatildeo de campo

Satildeo muitos os fatores que tornam a observaccedilatildeo in loco um instrumento valioso na co-

leta de dados para esta pesquisa De um lado o nosso objeto estaacute inexoravelmente articulado

com a situaccedilatildeo de trabalho Dessa forma a teacutecnica de observaccedilatildeo nos permitiu aproximar

dessas situaccedilotildees a fim de permitir jogar luzes no ldquotaacutecitordquo E ainda a observaccedilatildeo in loco nos

proporcionou uma aproximaccedilatildeo com os protagonistas dessas situaccedilotildees de trabalho o que nos

permitiu afirmar melhor nosso objeto bem como acrescentar novas possibilidades de abordaacute-

lo Segundo Minayo (1993) a observaccedilatildeo possibilita ldquo() captar uma seacuterie de situaccedilotildees ou

fenocircmenos que natildeo satildeo obtidos por meio de ndash perguntas uma vez que satildeo observados direta-

mente na realidade transmitem o que haacute de mais importante e evasivo na vida realrdquo (p 59)

143 Os sujeitos da pesquisa

Como sujeitos da nossa pesquisa foram escolhidos os ferramenteiros de uma induacutestria

metaluacutergica da regiatildeo metropolitana de Belo Horizonte Em uma pesquisa de cunho qualitati-

vo a delimitaccedilatildeo numeacuterica dos sujeitos a serem entrevistados natildeo eacute relevante (THIOLLENT

1980) Segundo Minayo (1993) ldquoA amostragem boa eacute aquela que possibilita abranger a tota-

lidade do problema investigado em suas muacuteltiplas dimensotildeesrdquo (p 43) Nesta pesquisa bus-

camos entrevistar aqueles protagonistas do trabalho cuja experiecircncia em ferramentaria fosse

reconhecida pelo seu coletivo de trabalho As escolhas natildeo geraram nenhum impedimento por

21 Nesta sala eles proacuteprios os ferramenteiros nos interrogavam se desejaacutevamos abrir mais a janela ir ao banhei-ro ou que ligar o ventilador

31

parte da empresa embora uma parte das entrevistas tenha ocorrido fora do espaccedilo fabril Esse

fato acabou por gerar um dividendo a mais para as nossas reflexotildees dado que foi possiacutevel

analisar a relaccedilatildeo espacial que os trabalhadores mantecircm com o seu trabalho Todavia a teacutecni-

ca da observaccedilatildeo nos permitiu ainda dialogar com outros trabalhadores gerando dados aleacutem

dos que foram coletados nas entrevistas22 Usamos como formas de registro

bull Diaacuterio de bordo com anotaccedilotildees na faacutebrica e fora dela

bull Entrevistas gravadas e transcritas

Foram entrevistados cinco Ferramenteiros sendo que um dos entrevistados tem entre

20 e 30 anos de idade dois dos entrevistados possuem pouco menos do que 40 anos de idade

e outros dois ferramenteiros possuem mais do que 40 anos de idade Dois dos ferramenteiros

tecircm 10 anos de experiecircncia em ferramentaria Jaacute outros trecircs ferramenteiros tecircm mais de 20

anos de experiecircncia Trecircs dos entrevistados fizeram o curso de ferramenteiro pelo Senai Os

outros dois fizeram o curso de ajustador mecacircnico pelo Senai e aprenderam o ofiacutecio de ferra-

menteiro na praacutetica dois Mestres em ferramentaria Um dos mestres possui 30 anos e quase

15 anos dentro da ferramentaria O outro mestre possui 35 anos e quase 20 anos de experiecircn-

cia em ferramentaria Ambos fizeram o curso de torneiro mecacircnico pelo Senai Um dos entre-

vistados fez tambeacutem pelo Senai o curso de ferramenteiro chegando inclusive a representar o

Brasil em uma ldquomaratonardquo internacional de ferramentaria na Holanda

144 O desenvolvimento da pesquisa o meu contato com a empresa pesquisada

De um lado a escolha da empresa deu-se por se tratar de uma grande ferramentaria

voltada para o setor automobiliacutestico Por outro lado estavam em curso tambeacutem contatos com

outras empresas A decisatildeo por pesquisar essa empresa foi sendo construiacuteda primeiramente

22 Todas as entrevistas foram gravadas totalizando nove horas de gravaccedilatildeo

32

pela boa recepccedilatildeo do pessoal do Recursos Humanos Em segundo lugar emergiu um motivo

que depois se tornou um dos grandes aspectos dessa ferramentaria enquanto campo para a

nossa pesquisa Trata-se de um projeto conduzido pela empresa que pretende colocaacute-la como

a maior ferramentaria da Ameacuterica Latina Ao se aprofundar as anaacutelises preliminares sobre a

Empresa T foi possiacutevel constatar que essa intenccedilatildeo estava proacutexima de se tornar real

Em algumas conversas informais com o pessoal do Recursos Humanos foi demons-

trado um grande interesse pela escolha da empresa como objeto de pesquisa Foi considerado

tambeacutem o fato de que outras empresas do grupo jaacute haviam sido abordadas por uma pesquisa-

dora da UFMG23 Apesar de nos ter sido feita somente uma solicitaccedilatildeo formal por parte da

universidade juntamente com a nossa proposta de pesquisa fomos tomados por um receio

pois tiacutenhamos plena consciecircncia de que o respeito e atenccedilatildeo por parte dos trabalhadores do

chatildeo de faacutebrica natildeo satildeo obtidos pelas apresentaccedilotildees formais e sim adquiridos pela convivecircn-

cia cotidiana natildeo haacute pior comeccedilo em uma faacutebrica do que parecer ser apadrinhado por um

chefe

145 No olho do furacatildeo entre homens e maacutequinas

Ao recebermos a liberaccedilatildeo definitiva por parte da empresa para iniciar a pesquisa den-

tro da faacutebrica acertamos um cronograma com o responsaacutevel pelo Recursos Humanos Em

nosso primeiro dia dentro da faacutebrica fomos acompanhados por um estagiaacuterio do Recursos

Humanos que nos apresentou aos gerentes da ferramentaria e tambeacutem ao coordenador dos

ferramenteiros Toda a chefia se mostrou interessada pela possibilidade de se levar a puacuteblico

algum esclarecimento sobre a ferramentaria24 Em seguida foi proposto pelo gerente geral

23 VERIacuteSSIMO (2000) tambeacutem orientanda da prof Eloisa SANTOS 24 Essa posiccedilatildeo foi frequumlente entre os ferramenteiros que tambeacutem lamentaram que ldquoningueacutem aiacute fora sabe dizer o que eacute uma ferramentariardquo As falas dos ferramenteiros agraves vezes pareciam quase como as fala de um artista que desejasse que sua arte fosse reconhecida ldquoSe o pessoal soubesse que para se ter uma colher qualquer em casa eacute

33

que o coordenador da ferramentaria nos apresentasse os processos de trabalho da mesma e aos

cinco mestres que chefiam as cinco ceacutelulas de ferramenteiros

Tatildeo logo comeccedilamos a conversar o coordenador da ferramentaria se declarou um a-

paixonado pelo seu trabalho e afirmou ter quase 50 anos de experiecircncia na ferramentaria dos

quais mais de 30 dentro da ferramentaria da Ford em Satildeo Bernardo do Campo Agrave medida que

esse senhor foi nos apresentando os setores dentro da ferramentaria pudemos conversar com

entusiasmo sobre as transformaccedilotildees sofridas no mundo do trabalho especialmente o setor

metaluacutergico Sem muita profundidade ele comentou sobre a dificuldade de se encontrar hoje

bons ferramenteiros e sobre os ldquobons temposrdquo do ferramenteiro em Satildeo Paulo quando ganha-

vam ldquomais do que a maioria dos meacutedicosrdquo Conversamos ainda sobre a reorganizaccedilatildeo sindi-

cal no ABC paulista na deacutecada de 1970

Ao ser apresentado aos mestres da ferramentaria acolhemos a sugestatildeo feita por um

deles de que ldquoseria interessante que junto com um dos mestres fizeacutessemos um mapa do pro-

cesso de construccedilatildeo de uma ferramenta e que a partir deste roteiro poderiacuteamos analisar todas

as fases do trabalho do ferramenteiro em cada uma das ceacutelulasrdquo25 Foi a partir do mapeamento

sobre o processo de construccedilatildeo da ferramenta que escolhemos a primeira ceacutelula de ferramen-

teiros para iniciarmos a nossa investigaccedilatildeo

Apoacutes os primeiros dias de observaccedilatildeo dentro dessa empresa nos demos conta ou

mesmo afirmamos a ideacuteia de que a faacutebrica marca profundamente os que nela trabalham bem

como estes tambeacutem imprimem de forma objetiva e subjetiva as suas marcas neste espaccedilo As

formas das cicatrizes a vermelhidatildeo dos olhos e o jeito de carregar uma ferramenta ou mes-

mo um cigarro denunciam se foi com a limalha do torno ou com o gaacutes da solda que o operaacute-

um negoacutecio difiacutecil e bonito eles dariam mais valor para o nosso trabalhordquo ldquoSempre que a gente vai agrave uma loja e eacute preciso fazer a ficha de crediaacuterio o pessoal vecirc o nosso salaacuterio eles se assustam e natildeo acreditam que nosso trabalho eacute difiacutecilrdquo 25 Essa sugestatildeo se justifica por que a construccedilatildeo de uma ferramenta pode durar de seis a oito meses Neste caso poderiam ser conhecidas todas as fases desde que fosse acompanhada mais de uma ferramenta o que foi possiacute-vel pois cada ceacutelula cuida no miacutenimo de uma ferramenta

34

rio esteve em trabalho Enfim foi boa a sensaccedilatildeo de estar de volta ao barulho inconfundiacutevel

das maacutequinas e agrave imagem viva de homens com seus gestos e as suas brincadeiras que por

mais estranhos que sejam acabam unindo pessoas Ateacute mesmo as ldquovelhas piadasrdquo estavam de

volta26

Ainda nos primeiros dias fomos tomados por um estranhamento em relaccedilatildeo ao espaccedilo

fiacutesico e quantidade de trabalhadores Tivemos a impressatildeo de que natildeo estaacutevamos em uma

faacutebrica claacutessica com pessoas tendo que ldquoficar espertasrdquo com a ponte rolante e as empilhadei-

ras Depois de algumas observaccedilotildees foi possiacutevel perceber algumas preacute-instalaccedilotildees para outras

maacutequinas o que mais tarde foi confirmado pelos trabalhadores a dimensatildeo do galpatildeo era a

projeccedilatildeo de uma futura expansatildeo para esta ferramentaria

Os primeiros momentos de observaccedilatildeo nos permitiram aproximar da realidade daquela

faacutebrica buscamos perceber o ritmo de trabalho dos ferramenteiros os riscos de acidentes e as

relaccedilotildees de poder inscritos naquele espaccedilo Outro aspecto possibilitado a partir desses primei-

ros momentos foi o ldquodeixarrdquo que os trabalhadores tambeacutem nos conhecessem elemento essen-

cial para a nossa pesquisa evidenciado pela proacutepria fala dos trabalhadores ldquono iniacutecio a turma

ficou ldquocismadardquo pensando que vocecirc poderia ser um espiatildeordquo27

Apoacutes aproximadamente a quarta semana de observaccedilatildeo iniciamos uma pequena sis-

tematizaccedilatildeo de nosso diaacuterio de bordo a fim de ldquoreorientarrdquo nosso roteiro de entrevistas Embo-

ra jaacute houvesse obtido a permissatildeo para realizar as entrevistas dentro da faacutebrica optamos em

fazer as duas primeiras delas em outro espaccedilo Foi um momento importante pois aleacutem dos 26 ldquoO peatildeo adora fazer alusatildeo ao parentesco entre os colegas lsquoVocecircs satildeo irmatildeosrsquo lsquoQuem era o mais choratildeo laacute na sua casarsquordquo 27 Foram muitas falas com essa conotaccedilatildeo Em algumas delas os ferramenteiros citaram certos comportamentos de nossa parte que favoreceram a nossa entrada no coletivo de trabalho Explicitaremos apenas uma delas pelo teor do seu conteuacutedo irocircnico mas revelador mdash ldquoVou te falar a verdade no iniacutecio a turma toda ficou falando ou ele eacute mais um chefe ou esse cara eacute um espi-atildeo Depois vocecirc foi se entrosando com a gente Soacute que eu vou te falar um negoacutecio vocecirc pode ateacute ser professor mas vocecirc deve ser filho de peatildeo vocecirc tem umas lsquomaniasrsquo de peatildeordquo Eu mdash Seraacute Uma hora dessas vou te contar a minha Histoacuteria se vocecirc estiver certo eu te pago uma cerveja se vocecirc estiver errado vocecirc me paga uma cerveja taacute combinado mdash Taacute vendo num tocirc te falando isso eacute coisa de peatildeo Esse mesmo estranhamento foi relatado por SANTOS (1985) ao entrar na faacutebrica em que realizou sua pesquisa de mestrado

35

ricos elementos coletados nos permitiu projetar um olhar mais refinado para as futuras obser-

vaccedilotildees e ainda para as outras entrevistas

36

2 O ldquoLUGARrdquo DO SABER NO MUNDO DO TRABALHO

A presenccedila de saberes no processo de trabalho tem despertado interesse em vaacuterios

segmentos da sociedade trabalhadores empresaacuterios poder puacuteblico e privado trabalho e esco-

la Apresentaremos a seguir parte da discussatildeo feita pelos autores que se interessam pelo

tema inicialmente localizando os modelos de organizaccedilatildeo de trabalho capitalista em seguida

a importacircncia atribuiacuteda ao tema do saber no processo de trabalho e os diversos acircngulos em

que ele eacute tratado

21 O SABER NOS MODELOS DE ORGANIZACcedilAtildeO E GESTAtildeO DO TRABALHO

Os modelos de organizaccedilatildeo do trabalho satildeo engendrados num determinado contexto

histoacuterico econocircmico e social e respondem agraves condiccedilotildees da base material da sociedade Muitos

autores como Gounet (1999) Coriat (1994) Salerno (1994) e Bravermam (1987) que discu-

tem a questatildeo do saber e os modelos de organizaccedilatildeo do trabalho destacam dois paradigmas

dessa organizaccedilatildeo o taylorismo e o toyotismo O primeiro marcou a organizaccedilatildeo dos proces-

sos de trabalho em todo o seacuteculo XX e sobrevive fortemente ateacute hoje o segundo surge no

Brasil a partir principalmente dos anos de 1970

O Taylorismo preconiza uma racionalizaccedilatildeo da organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho que

elimine as porosidades na linha produtiva Essa perspectiva aponta para uma aparente oposi-

37

ccedilatildeo entre o operaacuterio e a gerecircncia no que se refere ao niacutevel de autonomia sobre os saberes pre-

sentes no processo de trabalho1

Em relaccedilatildeo agraves suas principais caracteriacutesticas o taylorismo foi analisado da seguinte

forma por Aranha (1997)

O taylorismo caracteriza-se entre outras coisas por seu rigor em tentar submeter o trabalhador a um trabalho prescrito pela gerecircncia () A radical separaccedilatildeo entre e-xecuccedilatildeo e concepccedilatildeo e a otimizaccedilatildeo da produtividade do trabalho com a reduccedilatildeo de tempos mortos constituiacuteam algumas das suas principais metas (p 20)

Por discutirem com mais profundidade o taylorismo Bravermam (1987) Coriat

(1994) e Antunes (2001) afirmam que a proposta de Taylor estrutura-se sobre um trabalho

parcelar e fragmentado de tarefas que supostamente exige dos operaacuterios saberes e habilida-

des especiacuteficas agrave sua funccedilatildeo O taylorismo notabiliza-se ainda pela radical separaccedilatildeo entre a

execuccedilatildeo e a concepccedilatildeo onde a prescriccedilatildeo do trabalho caberia agrave gerecircncia que dentre outras

atribuiccedilotildees poderia e deveria conhecer organizar e controlar o saber dos trabalhadores ou

como afirma o proacuteprio Taylor (1980) ldquoA gerecircncia tem a funccedilatildeo de reunir os conhecimentos

tradicionais que no passado possuiacuteram os trabalhadores e entatildeo classificaacute-los tabulaacute-los e

reduzi-los em normas leis ou foacutermulas grandemente uacuteteis ao operaacuteriordquo (p 49)

O toyotismo2 eacute um modelo de organizaccedilatildeo do trabalho que surge a partir de fins dos

anos sessenta e chega ao Brasil uma deacutecada depois Este modelo introduz novidades em rela-

ccedilatildeo ao saber do operaacuterio quando passa a valorizaacute-lo no processo produtivo (CORIAT 1994

HARVEY 1993) Sob o vieacutes da gestatildeo participativa essa perspectiva procura encurtar a dis-

tacircncia entre a concepccedilatildeo e a execuccedilatildeo com a criaccedilatildeo de mecanismos que facilitam a integra-

1 Essa questatildeo jaacute eacute discutida em uma extensa bibliografia (BRAVERMAM 1987 CORIAT 1994 GOUNET 1999) 2 O aprofundamento desse modelo se encontra em uma extensa bibliografia (CORIAT 1994 ANTUNES 2001 GOUNET 1999)

38

ccedilatildeo do saber do trabalhador ao processo de trabalho e agraves poliacuteticas da empresa de melhoria da

produtividade e qualidade

Aleacutem de uma maior participaccedilatildeo do trabalhador no processo produtivo esse modelo

diferentemente da rigidez taylorista valoriza um trabalhador que possua saberes e habilidades

que lhe permitam aprender continuamente adaptar e alocar seus saberes em multitarefas O

toyotismo se caracteriza ainda por um forte apelo ao uso da microeletrocircnica o que combi-

nado com as caracteriacutesticas anteriores acaba requisitando um perfil de trabalhador que tenha

uma formaccedilatildeo baacutesica mais soacutelida e ampla (EVANGELISTA 2002 ANTUNES 2001) Entre-

tanto o toyotismo ao mesmo tempo em que demanda uma forccedila de trabalho mais qualificada

tambeacutem ldquopressupotildee um trabalho precaacuterio e excludenterdquo (KUENZER apud EVANGELISTA

2002 p 40)3

Eacute necessaacuterio ainda afirmar que vaacuterias pesquisas (ARANHA 1997 ANTUNES

2001) questionam ou ateacute mesmo negam a total superaccedilatildeo do taylorismo pelo toyotismo Con-

forme esclarece Aranha (1997) ldquoestudos empiacutericos mostram que processos de trabalho alta-

mente neotecnizados convivem com esquemas tayloristas e mesmo com outros esquemas de

gerenciar a produccedilatildeo ainda mais atrasadosrdquo (p 22) Esse hibridismo eacute percebido criticamente

por alguns pesquisadores Hirata (1994) por exemplo afirma que a qualificaccedilatildeo exigida pelo

padratildeo flexiacutevel e integrado ldquo() se aplica menos agraves trabalhadoras do sexo feminino e aos ope-

raacuterios de empreiteiras subcontratados pela empresardquo (p 130) De acordo com essa pesquisa-

dora esse modelo ao mesmo tempo em que favorece o surgimento de trabalhadores super-

qualificados proporciona tambeacutem o crescimento do nuacutemero de trabalhadores pouco qualifi-

cados (HIRATA 1994)

3 Em relaccedilatildeo a esta questatildeo haacute uma vasta bibliografia (HIRATA 1994 CARVALHO 1996 KUENZER 1994 ANTUNES 2001)

39

Dentre as accedilotildees colocadas em uso pelo capital na tentativa de gerenciar os saberes dos

trabalhadores algumas nos parecem bem sofisticadas Assis (2000) em sua dissertaccedilatildeo4 ob-

serva que a empresa na qual realizou a sua pesquisa se apoiava em um excepcional sistema de

comunicaccedilatildeo informatizado para tentar mobilizar e apropriar os saberes dos trabalhadores

Em outros estudos como os realizados por Souza (2002)5 e Machado (1999)6 aparecem ele-

mentos que revelam uma proposta de organizaccedilatildeo do trabalho que busca combinar as novas

tecnologias para mobilizar a ldquoautonomiardquo do operaacuterio no processo produtivo no que diz res-

peito aos saberes

Por outro lado Santos (1985 1997 2000) Aranha (1997) Machado (1999) e Lima

(1998) ampliam a importacircncia do tema na medida em que ao problematizaacute-lo apontam para

dimensotildees relativas aos interesses dos trabalhadores Evangelista (2002) mostra ainda que os

trabalhadores sempre estiveram interessados em interpretar a presenccedila dos seus saberes no

processo de trabalho

22 O SABER NO TRABALHO

Os vaacuterios segmentos sociais trabalhadores empresaacuterios e poder puacuteblico ao mesmo

tempo em que de diversas formas consagram a importacircncia do saber no processo de trabalho

reclamam tambeacutem por estudos que o esclareccedilam melhor

No sentido de avanccedilar na problematizaccedilatildeo do saber no trabalho torna-se necessaacuterio

conhecer como a literatura vem abordando a temaacutetica Seguindo por esta trilha o debate aber- 4 ASSIS RicardoWagner Os impactos das novas tecnologias nas formas de sociabilidade e no savoir-faire dos operadores um estudo de caso do setor sideruacutergico Belo Horizonte Dissertaccedilatildeo de mestrado apresentada agrave Faculdade de Psicologia da UFMG 2000 5 SOUZA P R Autonomia dos operadores e trabalho de convencimento na produccedilatildeo contiacutenua Belo Hori-zonte (Dissertaccedilatildeo de mestrado apresentada agrave Escola de Engenharia da UFMG) 2002 6 MACHADO M L M Sujeito e trabalho impasses e possibilidades frente as novas tecnologias de gestatildeo no trabalho ndash o caso Gessy Lever Belo Horizonte Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Faculdade de Filosofia Ciecircncias e LetrasUFMG como requisito parcial agrave obtenccedilatildeo do tiacutetulo de mestre em psicologia Belo Horizonte 1999

40

to sobre a presenccedila do saber no trabalho perpassa reflexotildees teoacutericas e investigaccedilotildees de casos

concretos que apontam o tratamento dado agrave concepccedilatildeo e agrave execuccedilatildeo no processo de trabalho

Em relaccedilatildeo ao atual debate sobre o saber no processo de trabalho destaca-se a gestatildeo

participativa capitaneada pelo modelo toyotista que aparentemente elimina a separaccedilatildeo entre

execuccedilatildeo e concepccedilatildeo no processo de trabalho Segundo Aranha (1997) ldquoAs chamadas lsquoges-

totildees participativasrsquo buscam a integraccedilatildeo do trabalhador no processo produtivo alargando a

margem de sua interferecircncia e concretamente colocando em suas matildeos um conjunto de deci-

sotildees antes apenas restrito agrave gerecircnciardquo (p 22) Entretanto essa autora faz uma advertecircncia

ldquoEssas alteraccedilotildees natildeo foram colocadas por qualquer atitude de benevolecircncia do empresariado

para com a forccedila de trabalhordquo Antunes (2000) tambeacutem aponta a participaccedilatildeo do operaacuterio em

algumas decisotildees na linha produtiva como uma das inovaccedilotildees do toyotismo ldquoOs ciacuterculos de

controle de qualidade (CCQs) construindo grupos de trabalhadores que satildeo instigados pelo

capital a discutir seu trabalho e desempenho com vistas a melhorar a produtividade das em-

presasrdquo (p 55)

Por outro lado Evangelista (2002) afirma que as pesquisas indicam a existecircncia de

uma separaccedilatildeo entre execuccedilatildeo e concepccedilatildeo em empresas que adotaram o padratildeo flexiacutevel e

integrado como por exemplo a Fiat Automoacuteveis

A partir mesmo das relaccedilotildees estabelecidas entre a unidade fabril de Betim e a faacute-brica da matriz vaacuterios dos projetos dos carros produzidos no Brasil satildeo importados da Itaacutelia mostrando que a autonomia local eacute apenas relativa Alguns desses proje-tos satildeo definidos no Brasil mas as diretrizes vecircm da empresa matildee (p 84)

Evangelista (2002) afirma ainda que ldquoEsse processo se reproduz na relaccedilatildeo que a uni-

dade de Betim estabelece com o coletivo dos trabalhadores locais proporcionando-lhes uma

certa autonomia mas natildeo sem abrir matildeo naturalmente da coordenaccedilatildeo e do controlerdquo (p 85)

Eacute necessaacuterio considerar que mesmo estando as grandes decisotildees sob as ordens do ca-

pital haacute uma forte evidecircncia de que a reconfiguraccedilatildeo do saber dentro do processo de trabalho

41

por parte dos trabalhadores esteja inscrita natildeo somente como importante mas como uma ne-

cessidade fundamental para o capital

Avanccedilando nessa discussatildeo Santos (1997) contesta o fim da prescriccedilatildeo anunciado pe-

los processos flexiacuteveis e integrados ao trabalhar com a ideacuteia de que a separaccedilatildeo entre execu-

ccedilatildeo e concepccedilatildeo nos processos integrados e flexiacuteveis possa estar inserida em uma outra pers-

pectiva de organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho onde a prescriccedilatildeo de objetivos toma o lugar da

prescriccedilatildeo das atividades de trabalho Segundo essa pesquisadora ldquoA prescriccedilatildeo passa desse

modo a se referir aos objetivos amplos do processo produtivo direcionados ao sistema como

um todo Haacute um deslocamento das exigecircncias em relaccedilatildeo agraves teacutecnicas operatoacuterias especializa-

das para uma regulaccedilatildeo tecnoloacutegica do conjuntordquo (p 18)

Essa reflexatildeo eacute corroborada por vaacuterias pesquisas que verificam que a integraccedilatildeo do

saber do trabalhador no processo de trabalho natildeo eliminou a existecircncia de uma gerecircncia que

centraliza e controla os objetivos da empresa Assis (2000) por exemplo verificou em sua

dissertaccedilatildeo que o trabalho dos operadores da aciaria em uma sideruacutergica mineira que optou

pelo padratildeo integrado e flexiacutevel eacute marcado por procedimentos prescritos pela gerecircncia A

chance de os operadores burlarem esses procedimentos eacute travada por um sistema de comuni-

caccedilatildeo informatizado que soacute admite o uso de alternativas quando se faz uma justificativa re-

gistrada junto agrave gerecircncia Esse processo eacute percebido pelos proacuteprios operadores como cita As-

sis (2000) ldquoSe vocecirc mudar alguma coisa tem que explicar na telardquo (p 46) Dessa forma o

trabalho da gerecircncia pode ficar facilitado com o acesso a um maior nuacutemero de informaccedilotildees

De acordo com Assis (2000)

() as gerecircncias tecircm hoje um volume de informaccedilotildees sobre o que ocorre muito maior que antes jaacute que no caso dos operadores suas intervenccedilotildees satildeo registradas eletronicamente ou seja grande parte do que afeta o processo eacute introduzido no sis-tema informatizado passando muito pouca coisa despercebida (p 46)

42

Uma outra observaccedilatildeo feita por Assis (2000) indica que ao mesmo tempo em que a

empresa aperfeiccediloa seus mecanismos de controle e de prescriccedilatildeo contraditoriamente ela con-

voca o saber dos trabalhadores e depende da integraccedilatildeo para que funcione o seu sistema de

controle e prescriccedilatildeo Nas palavras de Assis (2000)

O que pode parecer paradoxal eacute que quanto mais a organizaccedilatildeo exige um acompa-nhamento das prescriccedilotildees por parte dos operadores mais ela busca neles autonomia e flexibilidade para que possam dar soluccedilotildees criativas frente agraves mudanccedilas lidar com as variabilidades do processo superar a falta de confiabilidade de algumas in-formaccedilotildees e as falhas dos sistemas automatizados que natildeo param de se complexi-ficar e insistem em natildeo funcionar exatamente como desejam os manuais e os enge-nheiros (p 41)

Ainda sobre a possibilidade de existir dentro do padratildeo flexiacutevel e integrado uma pers-

pectiva de hierarquia que separa a execuccedilatildeo da concepccedilatildeo no processo de trabalho Evangelis-

ta (2002) afirma que

Os trabalhadores natildeo teriam qualquer possibilidade de decidir sobre os cursos a se-rem oferecidos pela empresa e consequumlentemente sobre os conteuacutedos que com-preendem esses cursos Estes tecircm sido definidos pelo Desenvolvimento Organiza-cional ndash DO ndash setor que junto com o de treinamento e outros determina as neces-sidades e os alvos das atividades de formaccedilatildeo (p 86)

Dentre os autores que discutem a implantaccedilatildeo do padratildeo flexiacutevel e integrado alguns

chegam a projetar uma certa vantagem deste modelo de organizaccedilatildeo do trabalho para os traba-

lhadores Coriat (1994) por exemplo vai vislumbrar a possibilidade de haver uma intelectua-

lizaccedilatildeo do trabalhador em funccedilatildeo de o padratildeo flexiacutevel valorizar um saber amplo e versaacutetil

Arauacutejo (2002) cuja dissertaccedilatildeo aborda a reestruturaccedilatildeo produtiva em duas induacutestrias sideruacuter-

gicas mineiras no contexto da privatizaccedilatildeo salienta que ldquoA privatizaccedilatildeo gerou uma transiccedilatildeo

do autoritarismo para um estilo gerencial menos autoritaacuteriordquo (p 113) A autora tambeacutem en-

tende que ldquoO novo perfil do trabalhador abrange uma aacuterea muito maior bem como o relacio-

43

namento interpessoal e a comunicaccedilatildeo aliados ao conhecimento e agrave habilidade teacutecnicardquo (p

114)

Embora o trabalho no padratildeo flexiacutevel e integrado possa conservar praacuteticas tayloristas

as pesquisas natildeo hesitam em indicar que de fato vem ocorrendo uma nova interaccedilatildeo do ho-

mem com o processo de trabalho e que a implantaccedilatildeo das novas tecnologias estimulou o de-

sencadeamento de novos saberes que Assis (2000) classificou como saberes complexos dada

a combinaccedilatildeo de domiacutenio do processo produtivo com o uso da linguagem informatizada

Se as pesquisas confirmam a importacircncia da presenccedila de saberes dos trabalhadores no

trabalho surgem tambeacutem algumas indagaccedilotildees a convocaccedilatildeo destes saberes por parte do ca-

pital seria suficiente para mobilizar os trabalhadores a produzi-los E neste caso como isto

se daria E ainda quais saberes dos trabalhadores interessam ao capital

23 O SABER TAacuteCITO DO TRABALHADOR

A expressatildeo saber taacutecito tem sido muito usada quando se discute a presenccedila do saber

do trabalhador no processo de trabalho De acordo com o dicionaacuterio Ferreira (1986) o saber

eacute ldquo[Do latim sapere ter gosto] Ter conhecimento ciecircncia informaccedilatildeo ou notiacutecia () ter

conhecimento teacutecnicos e especiais relativos a ou proacuteprios para () Estar convencido de ter a

certeza de () Ter capacidade () julgar considerar () experiecircncia praacuteticardquo (p 1530) Nes-

te mesmo dicionaacuterio () a definiccedilatildeo de taacutecito eacute ldquo[Do latim Tacitu] silencioso calado () Em

que natildeo haacute rumor () que natildeo se exprime por palavras subentendido impliacutecito () Oculto

secretordquo

No dicionaacuterio da educaccedilatildeo profissional (2000) saber eacute apresentado com as seguintes

definiccedilotildees ldquo1 ndash o ato de saber ou o processo atraveacutes do qual um sujeito aprende 2 ndash o fato

44

ou a situaccedilatildeo daquele que aprendeu algo 3 ndash o produto da aprendizagem do sujeito ou obje-

tos culturais institucionais sociaisrdquo (p 294) Ainda neste dicionaacuterio o saber taacutecito eacute apresen-

tado como sinocircnimo de conhecimento taacutecito (2000) e assim eacute definido ldquo() eacute o conhecimen-

to que a pessoa tem mas do qual natildeo estaacute ciente de modo consciente Eacute resultante da experi-

ecircncia da histoacuteria individual ou coletiva dos indiviacuteduosrdquo (p 298)

O saber taacutecito pode ainda aparecer com o nome de savoir-faire Essa expressatildeo eacute a-

presentada no dicionaacuterio de formaccedilatildeo profissional como ldquo() o produto de uma aprendiza-

gem do trabalhador e sua disposiccedilatildeo para mobilizar os seus saberes no trabalho sempre que

necessaacuterio Compreende os saberes praacuteticos empiacutericos as manhas do ofiacutecio o golpe de vis-

tardquo

Em relaccedilatildeo agrave presenccedila de saberes no processo produtivo Santos (1997) Aranha

(1997) e Antunes (2001) entendem que o saber do trabalhador sempre esteve presente no pro-

cesso de trabalho mesmo em um modelo de gestatildeo extremamente marcado pela divisatildeo teacutec-

nica do trabalho como foi o taylorismo Dentre eles o chamado saber taacutecito eacute o que veremos

a seguir Aranha (1997) afirma que ldquoEste conhecimento taacutecito muitas vezes reprimido pela

gerecircncia nunca deixou de ser continuamente produzido e demonstra que apesar de seus es-

forccedilos o capital ficou longe de conseguir separaccedilatildeo completa (ou mesmo parcial) entre matildeo e

ceacuterebrordquo (p 21)

Do ponto de vista teoacuterico essa questatildeo natildeo eacute nova O divoacutercio entre o trabalho intelec-

tual e o trabalho manual jaacute tinha sido contestado por Gramsci de acordo com Kuenzer (1985)

ldquoNatildeo podemos separar o homo faber do homo sapiensrdquo (p 185)

As pesquisas evidenciam a natildeo-separaccedilatildeo entre trabalho intelectual e trabalho manual

ao demonstrarem o avanccedilo do capital sobre o saber do trabalhador mesmo nos processos pro-

dutivos mais automatizados Essa situaccedilatildeo foi analisada da seguinte forma por Machado

(1999)

45

Portanto se todo o aparato estampado na automatizaccedilatildeo e informatizaccedilatildeo da planta de produccedilatildeo aludem agrave possibilidade de prescindir do sujeito-trabalhador as situa-ccedilotildees inesperadas convocam os sujeitos a se pronunciar a arbitrar sobre o imprevi-siacutevel Afinal de contas soacute o que eacute previsiacutevel eacute passiacutevel de ser automatizado e con-trolado pela rotina (p 138)

Um ponto de partida mais consistente sobre a inserccedilatildeo do saber taacutecito no processo de

trabalho encontra-se em um pressuposto oriundo da ergonomia cujo entendimento mostra que

o trabalho prescrito ou seja aquele que foi concebido planejado e calculado pela engenharia

natildeo corresponde a todas as necessidades reais do processo de produccedilatildeo demonstrando a fragi-

lidade da ideacuteia que sustenta a total separaccedilatildeo entre execuccedilatildeo e concepccedilatildeo Essa concepccedilatildeo do

processo de trabalho foi assimilada por pesquisadores de vaacuterias aacutereas do conhecimento San-

tos (1997) por exemplo discute a existecircncia de uma ldquodistacircncia entre o trabalho prescrito e o

trabalho realrdquo Como dissemos em nossa introduccedilatildeo de acordo com essa pesquisadora (2000)

trabalho prescrito ldquo() eacute a definiccedilatildeo preacutevia da maneira como o trabalhador deve executar o

trabalho o modo de usar os equipamentos e as ferramentas o tempo concedido para cada

operaccedilatildeo o como fazer e as regras que devem ser respeitadasrdquo (p 344) O trabalho real reme-

te agraves condiccedilotildees necessaacuterias em que se realiza um trabalho que sempre escapa agrave prescriccedilatildeo De

fato essa possibilidade foi verificada concretamente por algumas pesquisas Assis (2000) em

sua dissertaccedilatildeo afirma que ldquoNa nossa pesquisa pudemos perceber a niacutetida distacircncia entre o

trabalho prescrito e o trabalho real o que implica a presenccedila ativa do homem e do seu conhe-

cimento taacutecitordquo (p 42)

As abordagens sobre o saber taacutecito entram em um consenso sobre a sua definiccedilatildeo

quando afirmam que a produccedilatildeo deste saber remete a uma intimidade da vivecircncia do traba-

lhador com o processo de trabalho e que este saber apresenta uma enorme dificuldade em ser

sistematizado Crivellari e Melo apud Assis (2000) entendem e assim o definem

46

Saber taacutecito refere-se agrave capacidade que o trabalhador possui de apreensatildeo e identi-ficaccedilatildeo pela vivecircncia dos estados de normalidade ou anormalidade do processo A aquisiccedilatildeo desse saber se daacute no conviacutevio com a produccedilatildeo havendo uma concepccedilatildeo praacutetica e complexa para ser integralmente apreendida em formalizaccedilotildees (p 18)

Evangelista (2002) trabalha com uma definiccedilatildeo mais ampliada sobre o ldquoconhecimento

taacutecitordquo ao considerar outros espaccedilos aleacutem do trabalho

Esse conhecimento embora proveniente da vivecircncia de trabalho tambeacutem expressa as aquisiccedilotildees obtidas na formaccedilatildeo profissional na escolarizaccedilatildeo formal e na expe-riecircncia de vida do trabalhador Ele conteacutem elaboraccedilotildees individuais e coletivas que por sua vez estatildeo dentro de um quadro de relaccedilotildees e produccedilotildees sociais (p 94)

24 Do saber vinculado agrave praacutetica um ponto de vista sobre o saber taacutecito

() A pertinecircncia de um saber investido numa praacutetica diz ainda B Charlot natildeo es-taacute diretamente ligada ao seu estatuto cientiacutefico Em primeiro lugar um saber pode ser mais pertinente na sua forma ldquocomumrdquo que na sua forma cientiacutefica Assim para nos orientarmos eacute mais pertinente saber que o sol nasce a leste e se potildee a oeste do que saber se a Terra gira em torno do Sol Em segundo lugar natildeo basta que um sa-ber seja cientiacutefico para ser pertinente na praacutetica Eacute preciso ainda que ele se torne instrumento ao serviccedilo visado Natildeo basta conhecer as leis da eletricidade para mon-tar uma aparelhagem eleacutetrica (MALGLAIVE 1990 p 38)7

Se de um lado a literatura que aborda a presenccedila de saberes no processo produtivo

(ARANHA 1997 SANTOS 1997 2000 MACHADO 2000) indica que os trabalhadores

satildeo produtores de saberes por outro lado segundo essa mesma literatura existe um campo

aberto e necessaacuterio agraves pesquisas que possam contribuir para que o estatuto social poliacutetico e

espistemoloacutegico do saber taacutecito do trabalhador supere a sua ldquotimidezrdquo perante os saberes for-

malizados pela ciecircncia Posto ainda que o proacuteprio objeto desta pesquisa remete agrave possibili-

dade de que as atividades de trabalho sejam praacuteticas inteligentes entendemos que eacute importan-

te aprofundar a discussatildeo sobre a validade sobretudo epistemoloacutegica do saber taacutecito Diante

7 Esta obra eacute uma ediccedilatildeo portuguesa

47

dessa questatildeo que para noacutes eacute muito cara recorremos ao diaacutelogo com os pesquisadores que

refletem sobre a relaccedilatildeo entre a praacutetica e a construccedilatildeo de saberes taacutecitos

De um modo geral os pesquisadores (SCHON 2000 POLANY 1967 MALGLAI-

VE 1990) que discutem o saber taacutecito o tomam como um saber vinculado agrave praacutetica ou asso-

ciado a uma determinada experiecircncia em fazer algo Estes pesquisadores ao buscarem desve-

lar o saber taacutecito apontam como chave de seu entendimento a anaacutelise da relaccedilatildeo entre a praacuteti-

ca8 e a produccedilatildeo desse tipo de saber Pode-se dizer ainda que a perspectiva que confere im-

portacircncia ao estudo da relaccedilatildeo entre a praacutetica e a construccedilatildeo do saber taacutecito se apoacuteia no pres-

suposto de que sendo este saber vinculado agrave accedilatildeo humana o saber taacutecito eacute por excelecircncia

uma praacutetica potencialmente inteligente Essa perspectiva eacute apontada por Malglaive (1990) ldquoA

praacutetica eacute tudo o que diz respeito a acccedilatildeo humana isto eacute a transformaccedilatildeo intencional da reali-

dade pelos homens Implica portanto um desiacutegnio um fim o estado do real ao qual se aplica

a acccedilatildeordquo (p 40) Em Polany apud Frade (2003) a praacutetica pode ser percebida quando realiza-

mos alguma atividade ou ainda quando compreendemos algo podendo ser por meio de ldquoex-

periecircncias diretas ou sensoriais e com uso de conhecimentosrdquo (p 13)

Antes de avanccedilarmos na discussatildeo da relaccedilatildeo entre a praacutetica e o saber taacutecito vejamos

as diversas denominaccedilotildees sobre saberes vinculados agrave praacutetica e que ao nosso ver podem ser

tidos como da ordem do taacutecito Encontramos termos como ldquosaber-fazer ou savoir-fairerdquo ldquosa-

ber taacutecitordquo ldquoconhecimento taacutecitordquo ldquosaber do trabalhadorrdquo ou ldquotalento artiacutesticordquo (FRADE

2003 SCHON 2000 POLANY 1967 MALGLAIVE 1990) Todavia em que pesem algu-

mas especificidades que marcam o uso desses termos por esses pensadores satildeo muitos os

motivos que nos levam a tomar como importante as diferentes reflexotildees sobre o saber taacutecito

8 De acordo com o dicionaacuterio Ferreira (1986) a noccedilatildeo de praacutetica pode se referir as seguintes possibilidades ldquo1 ndash ato ou efeito de praticar 2 ndash uso experiecircncia exerciacutecio 3 ndash rotina 4 ndash saber provindo da experiecircncia teacutecnica 5 ndash aplicaccedilatildeo da teoria ()rdquo (p 1377) Jaacute a teoria eacute apresentada em Ferreira (1986) como ldquo[Do grego theoria] 1 ndash Conhecimento especulativo meramente racional 2 ndash Conjunto de princiacutepios fundamentais duma ciecircncia ou duma arte 4 ndash Opiniotildees sistematizadas () 6 ndash suposiccedilatildeo hipoacutetese ()rdquo (p 1644)

48

no sentido de compreendermos a sua relaccedilatildeo com a praacutetica Dessa forma mostraremos agora

como alguns autores usam a ideacuteia de praacutetica e que termos utilizam para designar o saber taacuteci-

to Malglaive (1990) apresenta como saber-fazer

Eacute mesmo agrave praacutetica que por definiccedilatildeo se refere o saber fazer () Em numerosos casos o saber-fazer designa uma competecircncia global um ofiacutecio ou uma destreza num domiacutenio mais ou menos amplo da praacutetica humana () Os saberes-fazer satildeo portanto para noacutes actos humanos disponiacuteveis em virtude de terem sido apreendidos (seja de que maneira for) e experimentados (p 79)

Outro autor Polany (1967) apresenta os saberes vinculados a uma ideacuteia de praacutetica pe-

lo termo de conhecimento taacutecito9 De acordo com Frade (2003) Polany declara natildeo ser possiacute-

vel tratar o conhecimento humano sem partir do princiacutepio de que sabemos mais do que pode-

mos dizer () Embora esse princiacutepio pareccedila oacutebvio ele espelha um dos principais pilares de

sua concepccedilatildeo de conhecimento o reconhecimento da existecircncia de um tipo de conhecimento

que natildeo pode ser completamente exposto e mais especificamente que natildeo pode ser descrito

em regras ou palavras o conhecimento taacutecito (p 11 grifo nosso) Segundo Polany (1967)

todo conhecimento humano eacute perpassado por uma dimensatildeo taacutecita10 Esta afirmaccedilatildeo eacute susten-

tada na ideacuteia de que todo conhecimento natildeo eacute totalmente explicitaacutevel ou seja todo conheci-

mento guarda uma face obscura portanto uma dimensatildeo taacutecita O debate sobre a explicitaccedilatildeo

ou natildeo de um determinado saber seraacute apresentado mais adiante neste capiacutetulo Uma outra

caracteriacutestica do conhecimento taacutecito em Polany segundo Frade (2003) pode ser dada ainda

pelo fato de se tratar de uma ldquohabilidade pessoal que natildeo pode ser disponibilizada a outros

pois natildeo sabemos explicar exatamente como a operamosrdquo (p 12) Dessa forma como jaacute a-

firmamos o ldquoconhecimento taacutecitordquo em Polany apresenta-se tambeacutem norteado pela ideacuteia de

praacutetica

9 Embora jaacute tenhamos explicado a nossa opccedilatildeo pelo termo saber em detrimento do termo conhecimento eacute mister explicar que em POLANY prevalece o uso do uacuteltimo termo Daiacute que nas diversas vezes em que nos reportamos a este autor aparece o termo conhecimento taacutecito 10 Eacute este inclusive o nome de um livro sobre o tema The tacit dimension (1967)

49

A aproximaccedilatildeo entre o ldquoconhecimento taacutecitordquo e a ideacuteia de praacutetica proposta por Polany

nos permite identificar de acordo com Frade (2003 p 13) um conhecimento praacutetico como

um conhecimento adquirido de experiecircncias diretas ou sensoriais Segundo essa autora ldquopo-

demos identificar um conhecimento praacutetico com um conhecimento taacutecito no sentido que natildeo eacute

faacutecil especificar como adquirimos conhecimento dessas experiecircncias e nem como usamos um

conhecimentordquo (grifo nosso) Ainda de acordo com essa pesquisadora em Polany foi possiacutevel

articular o conhecimento taacutecito com a ideacuteia de praacutetica agrave medida que

Analisando os diversos exemplos apresentados por POLANY (1962 1983 1975) para ilustrar o que consiste um conhecimento dessa natureza constata-se que o co-nhecimento taacutecito estaacute estritamente vinculado a uma praacutetica da seguinte maneira quando realizamos uma tarefa seja fiacutesica ou mental () acionamos um processo de funcionamento das nossas accedilotildees cujo propoacutesito eacute nos auxiliar na concretizaccedilatildeo des-sa tarefa Ao ser acionado tal processo mobiliza um conjunto especiacutefico de conhe-cimentos que possuiacutemos que funcionaram como instrumentos para realizarmos a tarefa bem como para monitorarmos sua realizaccedilatildeo (FRADE 2003 p 12 grifo nosso)

Em Schon (2000) tambeacutem encontramos uma reflexatildeo que aproxima a noccedilatildeo de saber

taacutecito agrave ideacuteia de praacutetica Para compreendermos melhor a aproximaccedilatildeo que esse autor faz entre

um tipo de saber e uma ideacuteia de praacutetica eacute necessaacuterio apresentarmos duas perspectivas o co-

nhecimento profissional e a competecircncia profissional A primeira perspectiva segundo Schon

(2000) normalmente eacute vinculada a saberes teoacutericos e teacutecnicas baseadas em pesquisas a qual

ele chama de ldquoracionalidade teacutecnicardquo e assim eacute definida

A racionalidade teacutecnica eacute uma epistemologia da praacutetica derivada da filosofia posi-tivista construiacuteda nas proacuteprias fundaccedilotildees da universidade moderna A racionalida-de teacutecnica diz que os profissionais satildeo aqueles que solucionam problemas instru-mentais selecionando os meios teacutecnicos mais apropriados para propoacutesitos especiacutefi-cos Profissionais rigorosos solucionam problemas instrumentais claros atraveacutes da aplicaccedilatildeo da teoria e da teacutecnica derivadas de conhecimento sistemaacutetico de prefe-recircncia cientiacutefico (p 15)

50

Entretanto na segunda perspectiva Schon (2000) aponta que sempre haacute uma zona de

incerteza a qual ldquoescapa da racionalidade teacutecnicardquo Eacute a partir das demandas de um espaccedilo

nutrido de incertezas que surge um apelo a um tipo de saber inerente a uma determinada praacute-

tica Tal saber foi nomeado por esse autor como ldquotalento artiacutestico profissionalrdquo Segundo as

palavras de Schon (2000) o termo ldquotalento artiacutestico profissionalrdquo se refere ldquoaos tipos de com-

petecircncia que os profissionais demonstram em certas situaccedilotildees da praacutetica que satildeo uacutenicas incer-

tas e conflituosasrdquo (p 29) Ainda sobre o ldquotalento artiacutestico profissionalrdquo de acordo com esse

autor ldquoO que chega a ser surpreendente sobre esses tipos de competecircncia eacute que eles natildeo de-

pendem de nossa capacidade de descrever o que sabemos fazer ou mesmo considerar consci-

entemente o que nossas accedilotildees revelamrdquo (p 29) Eacute nesta segunda perspectiva qual seja a que

interroga os saberes natildeo disponibilizados pela ldquoracionalidade teacutecnicardquo que encontramos em

Schon (2000) uma interlocuccedilatildeo com o saber taacutecito e a ideacuteia de praacutetica

A relevacircncia que Frade 2003 Schon 2000 Polany 1967 e Malglaive 1990 atribuem

ao imbricamento do saber taacutecito com a ideacuteia de praacutetica suscitou algumas indagaccedilotildees sobre

este tipo de saber quais as possibilidades de este saber ser comunicado E ainda o saber

taacutecito quando eacute acionado prescinde da mobilizaccedilatildeo de outros saberes Estas indagaccedilotildees antes

mesmo de serem respondidas acabam por nos fornecer algumas trilhas para que possamos

aprofundar a discussatildeo sobre a explicitaccedilatildeo ou natildeo deste tipo de saber bem como as suas

possibilidades de conter uma racionalidade ainda que natildeo cientiacutefica Eacute o que buscaremos fa-

zer no desenrolar desta parte em diante Neste sentido apresentamos uma discussatildeo sobre o

saber taacutecito dividida em trecircs perspectivas

Na primeira perspectiva procuramos analisar alguns aspectos da relaccedilatildeo do saber taacuteci-

to com a ideacuteia de praacutetica a partir de uma discussatildeo com alguns autores (FRADE 2003 S-

CHON 2000 POLANY 1967 MALGLAIVE 1990) na qual o saber taacutecito eacute caracterizado

por duas dimensotildees Em uma delas eacute apresentado um saber de uso instrumental ou seja um

51

saber que eacute disponibilizado para a realizaccedilatildeo de uma atividade orientando-se pelo seu resulta-

do final (FRADE 2003 POLANY 1967) Jaacute na outra o saber taacutecito se inscreve em um pro-

cesso de construccedilatildeo de saberes De acordo com Frade 2003 Schon 2000 Polany 1967

Malglaive 1990 este tipo de saber pode ainda ser acionado para monitorar e compreender a

realizaccedilatildeo de uma determinada atividade A partir da possibilidade de uso do saber taacutecito para

monitorar e compreender a realizaccedilatildeo de uma atividade debatemos ainda se esse tipo de sa-

ber possui algum niacutevel de formalizaccedilatildeo

Na segunda perspectiva discute-se a possibilidade de comunicaccedilatildeo do saber taacutecito a-

traveacutes da relaccedilatildeo entre este tipo de saber e uma linguagem que possa expressaacute-lo A partir

desta discussatildeo satildeo engendrados vaacuterios desdobramentos da explicitaccedilatildeo ou natildeo do saber taacuteci-

to Neste sentido satildeo analisadas as possibilidades de uma ou mais pessoas acessarem o saber

taacutecito de uma outra pessoa por meio da comunicaccedilatildeo as contradiccedilotildees entre uma linguagem

que busca expressar um saber taacutecito e uma outra linguagem que expressa um saber teoacuterico de

preferecircncia formalizado pelos padrotildees da ciecircncia Eacute abordada ainda a relaccedilatildeo do saber taacutecito

e uma linguagem que possa expressaacute-lo dentro de um recorte nas atividades e situaccedilotildees de

trabalho

Jaacute na terceira perspectiva a partir da anaacutelise da relaccedilatildeo entre o corpo e a mente satildeo

discutidas as possibilidades de produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo do saber taacutecito A abor-

dagem da relaccedilatildeo entre o corpo e a mente se apresenta com especial importacircncia por ser um

desdobramento das perspectivas apresentadas anteriormente na medida em que o corpo pode

ser considerado o meio pelo qual se realiza uma atividade fiacutesica ou mesmo mental Eacute analisa-

da tambeacutem a possibilidade de haver a mobilizaccedilatildeo de um ldquosaber usar o corpordquo A discussatildeo

sobre o corpo objetiva cumprir ainda um outro papel natildeo menos importante de buscar com-

preender os sujeitos de nossa pesquisa em sua complexidade ao incluir tambeacutem os aspectos

corporais na anaacutelise da produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes taacutecitos

52

Por fim a partir de uma anaacutelise dessas trecircs perspectivas articuladas com alguns ele-

mentos do mundo do trabalho buscaremos esclarecer uma hipoacutetese que norteia essa pesquisa

qual seja que os ferramenteiros produzem saberes taacutecitos e que para usarem os seus saberes

taacutecitos mobilizam mediante estrateacutegias tambeacutem taacutecitas saberes de vaacuterias ordens e ainda os

ferramenteiros criam estrateacutegias tambeacutem taacutecitas para formalizar os saberes taacutecitos que eles

produzem e mobilizam

241 Saber taacutecito entre um uso instrumental e a construccedilatildeo de saberes

Para alguns pesquisadores as reflexotildees sobre o saber taacutecito tecircm o seu ponto de partida

na tese de que este saber eacute caracterizado dentre outras coisas como um saber de uso instru-

mental (FRADE 2003 POLANY 1967) Segundo o dicionaacuterio Ferreira (1986) o termo ins-

trumental eacute uma derivaccedilatildeo da palavra instrumento cujo significado pode ser ldquo[Do Latim

Instrumentu] 1 ndash () 2 ndash Qualquer objeto considerado em sua funccedilatildeo ou utilidade 3 ndash Recur-

so empregado para alcanccedilar um objetivo conseguir um resultadordquo (p 1119) De acordo

com Santos (2003) a ldquofinalidade instrumental pode ser entendida como na seguinte proposi-

ccedilatildeo dado um fim ndash formaccedilatildeo de matildeo-de-obra para responder agraves necessidades do projeto de

desenvolvimento em curso ndash ponderam-se os meios de obtecirc-lo dado um conjunto de meios

ponderam-se os fins que podem ser alcanccediladosrdquo (p 37)11

De acordo com Frade (2003) o saber taacutecito em Polany tambeacutem caracteriza-se pelo

seu uso instrumental

De fato segundo Polany tais conhecimentos satildeo taacutecitos na medida em que satildeo u-sados de maneira instrumental e natildeo explicitamente como objetos Nesse sentido enquanto estatildeo sendo mobilizados eles natildeo satildeo percebidos em si mesmos mas sim em termos daquilo que eles contribuem para a realizaccedilatildeo da tarefa (p 12)

11 SANTOS (2003) associa a recente primazia dada a perspectiva instrumental do saber do trabalhador agrave emer-gecircncia do discurso da competecircncia em detrimento do tema do saber do trabalhador no trabalho (p 37)

53

Para Frade (2003) a faceta instrumental do saber taacutecito pode ser dada por uma forte

tendecircncia que noacutes temos em focalizar o saber taacutecito no resultado final de uma atividade ou na

conquista de uma determinada compreensatildeo logo estes objetivos iniciais satildeo o ldquoobjeto foco

de nossa atenccedilatildeordquo Dessa forma um conhecimento taacutecito natildeo eacute percebido em si mesmo na

medida em que noacutes o usamos apenas de maneira instrumental auxiliar ou seja noacutes mobili-

zamos o saber taacutecito prioritariamente para atingir uma determinada finalidade Portanto o

saber taacutecito que foi mobilizado natildeo eacute o foco principal de nossa atenccedilatildeo porque eacute usado como

um meio um instrumento de realizaccedilatildeo de uma finalidade que pretendemos atingir

Frade (2003) e Polany (1967) desdobram a tese de uso instrumental do saber taacutecito em

uma outra explicaccedilatildeo De acordo com esses pesquisadores a proacutepria estrutura do ato de co-

nhecer do saber taacutecito favorece para que este saber se caracterize por uma forma instrumental

Isso ocorre da seguinte maneira quando um saber taacutecito eacute mobilizado para que possamos rea-

lizar uma atividade significa que noacutes sabemos porque mobilizamos tal ou tais saberes Daiacute

que segundo Polany (1967) este saber eacute tido como um saber ldquoproacuteximo de noacutesrdquo pelo simples

fato de que sabemos da sua existecircncia ou porque ldquoconfiamos na ciecircncia que temos dele para

dirigirmos nossa atenccedilatildeo a uma determinada realizaccedilatildeordquo (p 10) ou ainda como afirma Frade

(2003) porque somos cientes da sua existecircncia (p 15) Por outro lado o saber taacutecito que eacute

mobilizado para conquistar uma compreensatildeo sobre a realizaccedilatildeo de uma determinada ativida-

de coloca-se ldquolonge de noacutesrdquo (POLANY 1967) pois nem sempre temos total consciecircncia so-

bre quais fatores compotildeem o saber taacutecito que usamos na realizaccedilatildeo de uma determinada ativi-

dade

A grande contradiccedilatildeo segundo esses pesquisadores eacute que o saber taacutecito que foi mobi-

lizado natildeo eacute percebido em si mesmo e noacutes soacute conseguiremos percebecirc-lo se o projetarmos no

resultado de uma determinada atividade ou na conquista de uma compreensatildeo Portanto os

54

significados deste saber taacutecito passam a se estabelecer ldquolonge de noacutesrdquo (POLANY apud FRA-

DE 2003) Dessa forma mesmo possuindo consciecircncia de um saber taacutecito para compreendecirc-

lo noacutes temos que projetaacute-lo sobre algo de que natildeo temos ainda uma total consciecircncia e que

por isso eacute algo ldquolonge de noacutesrdquo algo estranho agrave nossa consciecircncia A partir dessa trilha deixada

por Polany (1967) poderiacuteamos usar de forma hipoteacutetica a seguinte ilustraccedilatildeo para enxer-

garmos um desniacutevel em uma peccedila poderiacuteamos usar um saber taacutecito que consiste em molhar

esta peccedila com um determinado oacuteleo e por meio do reflexo da luz na peccedila com oacuteleo poderiacutea-

mos identificar as partes danificadas Se tomarmos como referecircncia as reflexotildees de Polany

(1967) a nossa total compreensatildeo do uso do oacuteleo demandaria tambeacutem uma compreensatildeo de

como se integram o oacuteleo a chapa de accedilo e a incidecircncia da luz e outros aspectos que poderiam

influenciar a nossa visatildeo daiacute que neste caso a nossa compreensatildeo depende de algo que estaacute

fora do nosso domiacutenio e por isso Polany (1967) os define como ldquolonge de noacutesrdquo Estabelece-

se assim uma contradiccedilatildeo na qual um determinado saber taacutecito que em tese estaria ldquoproacutexi-

mo de noacutesrdquo soacute eacute percebido se for projetado em um saber ldquolonge de noacutesrdquo

De acordo com Frade (2003) eacute possiacutevel que o saber taacutecito ainda que na sua forma ins-

trumental se constitua foco de nossa atenccedilatildeo tornando-se portanto um saber passiacutevel de ser

compreendido Entretanto essa autora afirma que se de um lado existe a possibilidade de

focar o saber taacutecito durante a realizaccedilatildeo de uma atividade por outro lado ao concentrar a ob-

servaccedilatildeo nas etapas de realizaccedilatildeo da atividade e natildeo no seu resultado final corre-se o risco de

perder a noccedilatildeo do objetivo de tal atividade Segundo Frade (2003) em uma situaccedilatildeo igual a

essa ldquonossa performance tende a ser paralisada de uma maneira ou de outra porque os ins-

trumentos natildeo satildeo reconhecidos por noacutes como instrumentosrdquo ou seja o objetivo pelo qual

haviacuteamos inicialmente mobilizado o nosso saber taacutecito ainda que em sua forma instrumen-

tal deixa de ser realizado ou o eacute precariamente Isso ocorre porque ao redirecionarmos nosso

55

foco em direccedilatildeo ao saber taacutecito ldquoinstrumentalrdquo acabamos por privilegiar a nossa atenccedilatildeo no

saber taacutecito em si em detrimento daquilo que eacute da atividade que queremos realizar

A anaacutelise sobre o uso instrumental do saber constitui-se nesta pesquisa em uma parte

essencial uma vez que por meio desse debate foi possiacutevel tomar o saber taacutecito como produto

bem como processo de produccedilatildeo de saber (FRADE 2003) Ao considerarmos a chance apon-

tada por Frade (2003) e Polany (1967) de que eacute possiacutevel mobilizar saberes para diminuir o

estranhamento da forma instrumental do saber taacutecito ainda que haja um prejuiacutezo em relaccedilatildeo agrave

realizaccedilatildeo do objetivo inicial acabamos por entender que uma coisa eacute debater o saber taacutecito

enquanto produto ou realizaccedilatildeo de uma atividade e outra coisa eacute abordar o processo que

construiu o saber necessaacuterio agrave realizaccedilatildeo dessa atividade Neste sentido se um saber taacutecito

ainda que instrumental pode requerer uma quantidade de reflexatildeo para ser acionado poderia

este saber ser um componente de um processo de construccedilatildeo de outros saberes taacutecitos

De acordo com Frade (2003) ao usar a palavra ldquoconhecimentordquo ldquoPolany se refere tan-

to ao produto ou realizaccedilatildeo de uma aprendizagem quanto ao processo dinacircmico de um ato de

conhecerrdquo Em Polany (1967) a possibilidade de o saber taacutecito se inscrever em um processo

de construccedilatildeo de saberes aparece associada agrave necessidade de que o uso de um determinado

saber taacutecito seja monitorado por outros saberes taacutecitos Para esse autor o uso de um saber

taacutecito para realizar uma atividade seja fiacutesica ou mental mobiliza um conjunto especiacutefico de

conhecimentos como instrumentos para realizarmos a tarefa ldquobem como para monitorarmos a

sua realizaccedilatildeordquo (FRADE 2003 p 12) Neste sentido podemos inferir que quanto maior for a

possibilidade de o saber taacutecito se inscrever em um processo de construccedilatildeo de saberes maiores

satildeo as chances de um saber taacutecito monitorar a realizaccedilatildeo de uma determinada atividade Daiacute

indagamos pode haver um saber taacutecito que monitore a realizaccedilatildeo de atividades Se o saber

taacutecito eacute resultado da mobilizaccedilatildeo de outros saberes quais seriam eles

56

Apesar de tanto Schon (2000) quanto Polany (1967) tomarem o saber taacutecito por um

olhar proacuteximo agrave perspectiva instrumental esses dois autores nos ajudam a pensar a possibili-

dade de que possa haver um saber taacutecito que monitore a realizaccedilatildeo de uma atividade De a-

cordo com Polany apud Frade (2003) mesmo de forma instrumental o uso do saber taacutecito

natildeo pode ser garantido pelo uso de accedilotildees repetidas De acordo com Frade (2003) ldquoPolany

observa que a passagem de uma experiecircncia para o plano operacional isto eacute para o uso de um

conhecimento enquanto instrumento natildeo se daacute por meio de meras repeticcedilotildeesrdquo (p 23 grifo

nosso) Esse entendimento nos sugere que o uso do saber de forma sucessiva demanda alguma

reflexatildeo Em Schon (2003) a possibilidade de o saber taacutecito se situar para aleacutem do uso ins-

trumental se apresenta agrave medida que este autor relativiza a tese de que temos uma tendecircncia

em focalizar o saber taacutecito no resultado final de uma atividade As reflexotildees deste autor apon-

tam que se toda atividade guarda sempre um lado imprevisiacutevel portanto natildeo eacute possiacutevel em

face dessa imprevisibilidade garantir que simplesmente repetindo um determinado saber taacuteci-

to possa se realizar com sucesso uma segunda ou terceira atividade De acordo com Schon

(2000)

Quando aprendemos a fazer algo estamos aptos a executar sequumlecircncias faacuteceis de a-tividade reconhecimento decisatildeo e ajuste sem ter como se diz que pensar a res-peito () No entanto nem sempre eacute bem assim Uma rotina comum produz um re-sultado inesperado um erro teima em resistir agrave correccedilatildeo () Todas essas experiecircn-cias agradaacuteveis e desagradaacuteveis conteacutem um elemento de surpresa (p 32)

Entretanto a abordagem de Schon (2000) ao associar o elemento da imprevisibilidade

agrave relevacircncia do ldquotalento artiacutesticordquo nos permitiu desdobrar o debate sobre o saber taacutecito Neste

sentido se o imprevisto eacute um problema real em qualquer atividade poderiacuteamos dizer que o

uso de um saber taacutecito para realizar uma atividade depende de uma constante reflexatildeo E nes-

te caso essa reflexatildeo pode ser associada ao saber taacutecito em um processo de construccedilatildeo de

saberes Essas indagaccedilotildees satildeo enriquecidas e em parte respondidas pela tese de ldquoreflexatildeo-

57

na-accedilatildeordquo desenvolvida por Schon (2000) Segundo esse pensador a reflexatildeo-na-accedilatildeo pode ser

apresentada ldquoem duas formasrdquo A primeira ldquopodemos refletir sobre a accedilatildeo pensando retros-

pectivamente sobre o que fizemos de modo a descobrir como nosso ato de conhecer-na-accedilatildeo

pode ter contribuiacutedo para um resultado inesperadordquo (p 32)

Em uma segunda alternativa Schon (2000) afirma que sem uma interrupccedilatildeo podemos

refletir no meio da accedilatildeo

Em um presente-da-accedilatildeo um periacuteodo de tempo variaacutevel com o contexto durante o qual ainda se pode interferir na situaccedilatildeo em desenvolvimento nosso pensar serve para dar nova forma ao que estamos fazendo enquanto ainda o fazemos Eu diria em casos como este que refletimos-na-accedilatildeo (p 32)

De acordo com Schon (2000) a reflexatildeo-na-accedilatildeo ldquoeacute uma parte fundamental do proces-

so que este autor chama de conhecer-na-accedilatildeordquo De acordo com Schon (2000) ldquoconhecer-na-

accedilatildeordquo refere-se aos

tipos de conhecimento que revelamos em nossas accedilotildees inteligentes performances fiacutesicas publicamente observaacuteveis como andar de bicicleta ou operaccedilotildees privadas como anaacutelise instantacircnea de uma folha de balanccedilo Nos dois casos o ato de conhe-cer estaacute na accedilatildeo Noacutes o revelamos pela nossa execuccedilatildeo capacitada e espontacircnea da performance e eacute uma caracteriacutestica nossa sermos incapazes de tornaacute-la verbalmen-te expliacutecita (p 31)

A reflexatildeo-na-accedilatildeo se diferencia dos outros tipos de reflexotildees pela sua ldquoimediata sig-

nificaccedilatildeo para a accedilatildeordquo o que nem sempre eacute claro e perceptiacutevel conforme afirma esse pensa-

dor ldquoAssim como o conhecer-na-accedilatildeo a reflexatildeo-na-accedilatildeo eacute um processo que podemos de-

senvolver sem que precisemos dizer o que estamos fazendordquo mesmo porque para Schon

(2000) o fato de ldquo() sermos capazes de refletir-na-accedilatildeo eacute diferente de sermos capazes de

refletir sobre nossa reflexatildeo-na-accedilatildeo de modo a produzir uma boa descriccedilatildeo verbal dela E eacute

ainda diferente de sermos capazes de refletir sobre a descriccedilatildeo resultanterdquo (p 35)

58

Se os elementos trabalhados ateacute o momento nos permitem associar a possibilidade de

haver um saber taacutecito que monitore a realizaccedilatildeo de uma atividade como um processo de cons-

truccedilatildeo de saberes por outro lado a possibilidade de haver um saber taacutecito inscrito num pro-

cesso de construccedilatildeo de saberes pode guardar ainda uma relaccedilatildeo com as exigecircncias de comu-

nicaccedilatildeo deste saber Segundo Frade (2003) ldquoa comunicaccedilatildeo de um saber taacutecito entre duas ou

mais pessoas exige que essas pessoas acionem os seus saberes taacutecitosrdquo Entretanto a comuni-

caccedilatildeo ou natildeo de um saber taacutecito eacute uma discussatildeo necessariamente mais extensa Neste senti-

do desenvolveremos a seguir a relaccedilatildeo entre o saber taacutecito e uma linguagem que possa ex-

pressaacute-lo

242 O saber taacutecito e a linguagem

No que se refere agrave comunicaccedilatildeo do saber taacutecito a literatura apresenta como debate

principal o problema em torno da relaccedilatildeo entre o saber taacutecito e uma linguagem que possa ex-

pressaacute-lo (FRADE 2003 SCHON 2000 POLANY 1967 MALGLAIVE 1990) De acordo

com Frade (2000 p 1) Polany valoriza a questatildeo da linguagem no debate sobre o saber taacutecito

a partir da ideacuteia de que ldquosabemos mais do que podemos dizerrdquo (Polany 1967) Outros pensa-

dores tambeacutem reafirmam a insuficiecircncia da linguagem na traduccedilatildeo de um determinado saber

Segundo Lima ldquosabemos mais do que podemos dizer sobre o que sabemos como sabemos e

o que sabemosrdquo (COLLINS apud LIMA 1998 p 144) O problema da insuficiecircncia da lin-

guagem potencializa-se de acordo com Polany (1967) porque todo conhecimento guarda

uma parte que natildeo pode ser totalmente exposta logo todo conhecimento eacute construiacutedo a partir

do taacutecito Daiacute que em Polany apud Frade (2003) o saber taacutecito pode ser aprendido mas natildeo

pode ser ensinado de uma forma simples uma vez que a relaccedilatildeo de aprendizagem exige co-

nhecimentos subsidiaacuterios que tambeacutem satildeo taacutecitos

59

Muito embora Schon (2000) corrobore a tese da insuficiecircncia da linguagem em expli-

citar um determinado saber taacutecito esse autor afirma que ldquoeacute possiacutevel agraves vezes atraveacutes da ob-

servaccedilatildeo e da reflexatildeo sobre nossas accedilotildees fazermos uma descriccedilatildeo do saber taacutecito que estaacute

impliacutecito nelasrdquo Dentre as vaacuterias abordagens sobre os limites da linguagem na explicitaccedilatildeo

do saber taacutecito (FRADE 2003 SCHON 2000 POLANY 1967 MALGLAIVE 1990) en-

contramos em Schon (2000) uma discussatildeo que nos parece ser interessante apresentar As

reflexotildees desse autor desenvolvem-se a partir da ideacuteia de que ldquoo pensar o que estou fazendo

natildeo implica ao mesmo tempo pensar o que fazer e fazecirc-lo Quando faccedilo algo de forma inteli-

gente () estou fazendo uma coisa e natildeo duasrdquo (RYLE apud SCHON 2000 p 29) Segundo

a perspectiva desse autor saberes do tipo do saber taacutecito estabelecem em seu proacuteprio processo

de conhecer uma dificuldade de explicitaccedilatildeo uma vez que esses tipos de saberes satildeo construiacute-

dos normalmente na praacutetica mediante um processo de ldquoconhecer-na-accedilatildeordquo De acordo com

esse pensador o processo de ldquoconhecer-na-accedilatildeordquo por ser da ordem da praacutetica eacute inexoravel-

mente ldquoum processo dinacircmicordquo o que poderia criar pelo menos uma distorccedilatildeo na explicita-

ccedilatildeo de um saber taacutecito jaacute que de acordo com Schon (2000) ldquoo processo de conhecer na accedilatildeo

eacute dinacircmico e os lsquofatosrsquo os lsquoprocedimentosrsquo e as lsquoteoriasrsquo satildeo estaacuteticosrdquo (p 31)

Sznelwar e Mascia (1997) tambeacutem levantam a possibilidade de haver uma relaccedilatildeo as-

siacutencrona entre uma linguagem que busca explicitar perspectivas teoacutericas e outra linguagem

que em tese explicitaria uma situaccedilatildeo praacutetica Essa distinccedilatildeo sobre a natureza da linguagem

engendraria uma incompatibilidade que eacute apontada por esses autores como um ldquodeacuteficit semi-

oacuteticordquo que eles esclarecem ao afirmar que

O leacutexico usado para descrever o trabalho estaacute fortemente dominado pelas produ-ccedilotildees linguumliacutesticas e conceituais formuladas por engenheiros peritos projetistas saacute-bios e pesquisadores O que eacute dito sobre o trabalho natildeo tem a ver com o vivenciado por quem trabalha Existe um deacuteficit semioacutetico para descrever a experiecircncia de tra-balho dos trabalhadores de base (p 224)

60

A possibilidade de haver um descompasso entre uma linguagem que busca explicitar

uma teoria e outra linguagem que busca explicitar uma situaccedilatildeo praacutetica talvez possa ser e-

xemplificada em algumas relaccedilotildees entre o homem e a informaacutetica

A informaacutetica tomou empreacutestimo de toda uma seacuterie de palavras que designam ati-vidades do homem como memoacuteria linguagem inteligecircncia para nomear ativida-des informatizadas Esta confusatildeo eacute particularmente perigosa porque quando re-tornam ao homem eles pensam que o homem tem o mesmo modo de funcionamen-to do computador nas atividades designadas por palavras que se referem ao ho-mem (LIMA 1998 p 124)

Seria possiacutevel inferir que parte da dificuldade de explicitar o saber taacutecito deve-se agrave in-

compatibilidade de sintonia entre uma linguagem que busca traduzir um processo vinculado agrave

praacutetica caracterizado como dinacircmico e uma outra linguagem que traduz conceitos e teorias

portanto de natureza essencialmente estaacutetica Por outro lado ao apontarmos um descompasso

entre uma linguagem vinculada agrave teoria e uma linguagem vinculada agrave praacutetica natildeo estariacuteamos

restringindo o saber teoacuterico agrave reflexatildeo e o saber taacutecito ao ldquopraacuteticofiacutesicordquo E neste caso esta-

riacuteamos reproduzindo a perspectiva que hierarquiza os saberes formalizados pelo estatuto cien-

tiacutefico em detrimento dos saberes formalizados pela experiecircncia Neste sentido ao ser coloca-

do como uma questatildeo complexa o debate sobre as possibilidades de explicitaccedilatildeo ou natildeo do

saber taacutecito mais do apontar as contradiccedilotildees entre uma linguagem que busca expressar um

saber taacutecito e uma linguagem teoacuterica nos permite tambeacutem abordar em que medida estes ti-

pos de saberes podem demandar e articular niacuteveis de reflexatildeo e abstraccedilatildeo

Se uma das questotildees que norteiam o debate sobre a relaccedilatildeo entre o saber taacutecito e a lin-

guagem eacute a possibilidade ou natildeo de este saber ser comunicado eacute portanto importante abor-

dar alguns aspectos das relaccedilotildees sociais em que o saber taacutecito se insere Muitos pensadores

apontam as relaccedilotildees sociais como um espaccedilo privilegiado na construccedilatildeo de saberes De acor-

do com Malglaive (1990) ldquoNuma imensa maioria de casos a actividade humana natildeo eacute solitaacute-

ria mas colectiva eacute uma lsquoco-acccedilatildeorsquo que implica parceiros e portanto uma organizaccedilatildeo uma

61

distribuiccedilatildeo das operaccedilotildees exercidas em comum para atingir o mesmo fimrdquo (p 76) Malglaive

(1990) faz a consideraccedilatildeo de que ldquoa teoria ignora certas caracteriacutesticas da accedilatildeordquo e por este

motivo ldquo() natildeo eacute possiacutevel conhecer um conceito sem conhecer o conjunto das relaccedilotildees nas

quais ele se insere e que por isso mesmo o definem ()rdquo (p 44) Neste sentido ao se consi-

derar as dimensotildees coletivas do processo de construccedilatildeo de saberes a linguagem aparece como

aspecto preponderante

Se por um lado ficou evidenciado na literatura abordada que satildeo muitas as tramas en-

gendradas pela relaccedilatildeo entre a linguagem e o saber taacutecito jaacute em nosso entendimento satildeo mui-

tos os argumentos que nos permitem tomar como importantes os caminhos apontados pelas

reflexotildees oriundas do campo de conhecimento que articula ldquotrabalho e linguagemrdquo (FAITA e

SOUZA-E-SILVA 2002 NOUROUDINE 2002)

Sobre a fecundidade da relaccedilatildeo entre linguagem e trabalho Faita e Souza-e-Silva

(2002) afirmam que ldquoDiversos fatores podem explicar a emergecircncia de tal interesse o mais

importante deles encontra-se no peso e na importacircncia que as atividades de simbolizaccedilatildeo pas-

saram a ter na realizaccedilatildeo do trabalhordquo (p 7) Ainda que o interesse dos linguumlistas pelo traba-

lho como objeto de estudo seja um fenocircmeno recente a literatura sobre essa temaacutetica jaacute acu-

mula importantes reflexotildees para apontar a diversidade de enfoques e de campos de interven-

ccedilatildeo caracteriacutesticos da aacuterea Dentre as vaacuterias possibilidades de contribuiccedilatildeo para esta pesquisa

uma foi acolhida com maior profundidade pois nos permitiu analisar a relaccedilatildeo entre o traba-

lho e a linguagem em uma perspectiva multifacetada Trata-se de uma abordagem defendida

por Nouroudine (2002)12 que apresenta uma triparticcedilatildeo da relaccedilatildeo trabalholinguagem cujos

eixos seriam dados pelas modalidades ldquolinguagem como trabalhordquo ldquolinguagem no trabalhordquo

e ldquolinguagem sobre o trabalhordquo

12 De acordo com esse autor essa reflexatildeo tem origem em LACOSTE M Paroles activiteacute situation In BOU-TET J Paroles ou travail Paris LrsquoHarmattan (1995)

62

Para Lacoste apud Nouroudine (2002) a elaboraccedilatildeo dessa triparticcedilatildeo ldquopermitiu reme-

diar confusotildees disseminadas separando como verbalizaccedilatildeo falas provocadas e exteriores agrave

situaccedilatildeo e como comunicaccedilatildeo falas que fazem parte da atividade de trabalhordquo (p 17) De

acordo com Nouroudine (2002 p 18) a distinccedilatildeo entre esses trecircs aspectos da linguagem a-

tende a uma opccedilatildeo metodoloacutegica que busca identificar os mecanismos de funcionamento da

relaccedilatildeo trabalholinguagem e ainda a um interesse epistemoloacutegico na medida em que pode-

ria evidenciar as ligaccedilotildees e as diferenccedilas desses mecanismos de funcionamento Neste senti-

do eacute importante salientar que de modo algum os diferentes aspectos da relaccedilatildeo traba-

lholinguagem satildeo estanques entre si e sim que existe uma estreita ligaccedilatildeo entre os trecircs as-

pectos da linguagem embora como afirma Nouroudine (2002) cada um deles possa aparen-

tar ainda problemas de ordem praacutetica e epistemoloacutegica bem distintos No que se refere agrave nos-

sa pesquisa a distinccedilatildeo entre as vaacuterias dimensotildees da relaccedilatildeo linguagem e trabalho pode lanccedilar

luzes sobre a explicitaccedilatildeo ou natildeo dos saberes taacutecitos pois nos facilita compreender as estra-

teacutegias que os trabalhadores mobilizam para viabilizar a comunicaccedilatildeo de saberes no trabalho

Essa triparticcedilatildeo considera que respectivamente haacute linguagens que fazem o trabalho que cir-

culam no trabalho e que interpretam o trabalho as quais seratildeo explicadas a seguir

A ldquolinguagem como trabalhordquo eacute dada a partir do momento em que a proacutepria linguagem

eacute mobilizada como uma atividade de trabalho (NOUROUDINE 2002) Nesta condiccedilatildeo de

acordo com esse autor a linguagem assume tambeacutem as complexas contradiccedilotildees que consti-

tuem o trabalho13 e uma das consequumlecircncias eacute a existecircncia de dois niacuteveis de linguagem ldquopor

um lado os gestos falas que o protagonista utiliza ao se dirigir a seus colegas envolvidos em

uma atividade executada coletivamente por outro lado as falas que o protagonista do traba-

13 De acordo NOUROUDINE (2002) parte das contradiccedilotildees do trabalho se devem ao seu caraacuteter multidimensio-nal composto de dimensatildeo econocircmica social cultural juriacutedica etc Para esse autor ldquoo caraacuteter multidimensional e total do trabalho eacute irredutiacutevel visto ser marca e o reflexo da natureza mesma do humano ao mesmo tempo sujeito social econocircmico juriacutedico etc Poreacutem o trabalho tambeacutem eacute complexo na medida em que integra propri-edades muacuteltiplas cada uma participando da formaccedilatildeo de uma significaccedilatildeo dinacircmica e variaacutevel nos campos social e histoacutericordquo (p 19)

63

lho dirige a si proacuteprio para acompanhar e orientar seus proacuteprios gestos no momento mesmo

em que trabalhardquo (NOUROUDINE 2002 p 20) Conforme esse pensador eacute ainda importan-

te apontar que a linguagem como trabalho natildeo eacute somente uma dimensatildeo dentre outras do

trabalho mas ela proacutepria se reveste de uma seacuterie de dimensotildees Neste sentido a ldquolinguagem

como trabalhordquo eacute econocircmica dado que a comunicaccedilatildeo em situaccedilatildeo de trabalho e durante a

atividade eacute utilizada como meio de gestatildeo do tempo de trabalho A linguagem eacute ainda dada

pela sua dimensatildeo social uma vez que a relaccedilatildeo entre o locutor e o interlocutor constitui-se

entre duas pessoas socialmente organizadas Dessa forma a interaccedilatildeo entre o locutor e o inter-

locutor torna a linguagem fundamentalmente social integrando ao mesmo tempo a coesatildeo e

o conflito Nas situaccedilotildees de trabalho em meio aos coletivos a linguagem permite em especi-

al travar e manter relaccedilotildees sociais entre parceiros E por fim a linguagem possui uma di-

mensatildeo eacutetica que eacute extensatildeo do seu caraacuteter social Eacute a partir desse viacutenculo com o mundo so-

cial que a linguagem como trabalho demanda uma eacutetica ldquoEacute enquanto dimensatildeo do trabalho

que se apresenta ela proacutepria sob a forma de uma seacuterie de dimensotildees que a linguagem eacute ativi-

dade atravessada pelos saberes pelos valores etcrdquo E por isso mesmo prossegue essa pensa-

dora ldquono exame das situaccedilotildees de trabalho natildeo se analisa a linguagem unicamente como dis-

curso preacute eou poacutes-experiecircncia mas sobretudo como parte da atividade em que constituintes

fisioloacutegicos cognitivos subjetivos e sociais se cruzam em um complexo que se torna ele proacute-

prio uma marca distintiva de uma experiecircncia especiacutefica em relaccedilatildeo a outrasrdquo (NOUROUDI-

NE 2002) Com efeito ao capturarmos a ldquolinguagem como trabalhordquo com afirma esse autor

natildeo como uma dimensatildeo a mais do trabalho mas ela proacutepria possuidora de outras dimensotildees

quais sejam econocircmica social e eacutetica eacute possiacutevel afirmar que a efetivaccedilatildeo de um saber na

praacutetica natildeo eacute dada apenas por questotildees teacutecnicas mas tambeacutem pelos aspectos econocircmicos

sociais subjetivos Daiacute que nos parece importante continuar explorando a ampliaccedilatildeo da rela-

64

ccedilatildeo entre trabalho e linguagem proposta pela tese da ldquotriparticcedilatildeordquo o que faremos a seguir com

a abordagem da ldquolinguagem no trabalhordquo

A ldquolinguagem no trabalhordquo eacute tomada a partir da consideraccedilatildeo de que existe ainda no

trabalho uma dimensatildeo da linguagem que mesmo posta como atividade natildeo participa dire-

tamente da atividade especiacutefica em que se concretiza uma intenccedilatildeo de trabalho Dessa forma

nem toda linguagem presente no trabalho pode ser considerada uma ldquolinguagem como traba-

lhordquo (NOUROUDINE 2002) Para esse autor o entendimento que permite distinguir a ldquolin-

guagem como trabalhordquo da ldquolinguagem no trabalhordquo daacute-se primeiramente pela distinccedilatildeo en-

tre a atividade de trabalho e a situaccedilatildeo de trabalho A primeira qual seja a atividade de traba-

lho eacute ldquoexpressa pelo autor eou coletivo dentro da atividade (de trabalho) em tempo e lugar

reaisrdquo Jaacute a segunda a situaccedilatildeo de trabalho ldquoseria antes uma das realidades constitutivas da

situaccedilatildeo de trabalho global na qual se desenrola a atividaderdquo (NOUROUDINE 2002)

Para Nouroudine (2002) ldquoos constituintes da situaccedilatildeo de trabalho podem ir do mais

proacuteximo ao mais distanciado da atividade nutrindo-se de dimensotildees social econocircmica juriacute-

dica artiacutestica etcrdquo No que se refere ao debate presente em nossa pesquisa a consideraccedilatildeo da

ldquosituaccedilatildeo de trabalhordquo sugere uma reflexatildeo mais ampla sobre a relaccedilatildeo trabalholinguagem e

natildeo um desprezo das possibilidades de entendimento que a apreensatildeo da atividade de trabalho

representa

Se eacute verdade que o ergonomista se interessa geralmente pelos determinantes proacute-ximos da atividade a fim de tentar compreender o trabalho e considerar os meios de sua transformaccedilatildeo outros determinantes mais distanciados histoacuterica social es-pacialmente tambeacutem satildeo componentes da situaccedilatildeo de trabalho (p 23)

A ldquoampliaccedilatildeordquo apresentada pela perspectiva da ldquosituaccedilatildeo de trabalhordquo desdobrou-se

em outras abordagens como por exemplo os trabalhos de Yves Schwartz e Alain Wisner

Para Nouroudine (2002) a antropotecnologia criada por Alain Wisner na esteira da ergono-

mia a fim de intervir nas questotildees de transferecircncia de tecnologias efetua um alongamento

65

ainda mais importante da situaccedilatildeo de trabalho Conforme afirma o proacuteprio Wisner apud Nou-

roudine (2002) ldquoEm antropotecnologia iremos mais longe na procura das origens das difi-

culdades encontradas e construiremos uma aacutervore das causas que natildeo se limitaraacute aos aspec-

tos teacutecnicos e organizacionais mais proacuteximos do posto de trabalhordquo (p 23) Uma outra pers-

pectiva a ergologia14 quando toma por objeto de pesquisa e de intervenccedilatildeo as atividades hu-

manas aborda por isso mesmo a situaccedilatildeo de trabalho dentro de uma dimensatildeo antropoloacutegica

em que determinantes mais proacuteximos da atividade se relacionam dialeticamente com os de-

terminantes mais distanciados (NOUROUDINE 2002) Em boa medida podemos afirmar

que a abordagem da ldquosituaccedilatildeo de trabalhordquo estaacute imbricada com uma certa subversatildeo epistemo-

loacutegica uma vez que este tipo de abordagem reconhece que a experiecircncia de trabalho eacute a en-

grenagem ldquomestrerdquo na produccedilatildeo de saberes taacutecitos15

A partir da trilha possibilitada pela ldquosituaccedilatildeo de trabalhordquo a linguagem no trabalho

pode ser entendida como uma linguagem que circula no trabalho podendo influenciar ou natildeo

a realizaccedilatildeo imediata de uma atividade Ao nosso olhar a possibilidade de distinguir uma

ldquolinguagem no trabalhordquo de uma ldquolinguagem como trabalhordquo traz como importante contribui-

ccedilatildeo uma leitura que busca conhecer e aproximar os protagonistas do trabalho em sua totalida-

de histoacuterica social e cultural Neste sentido a abordagem da linguagem no trabalho talvez

possa evitar ou diminuir a chance de que o saber taacutecito seja tido apenas no seu ato imediato

14 Neste sentido a ergologia nos fornece uma contribuiccedilatildeo com uma proposta de abordagem que agrave luz de um debate entre ciecircncia e cultura percebe que saberes formalizados pela ciecircncia e saberes oriundos da experiecircncia possuem cada qual seu niacutevel de cultura e incultura (SANTOS 2000 SCHWARTZ 2000 FAITA e SOUZA-E-SILVA 2002) 15 A possibilidade de ocorrer uma certa subversatildeo epistemoloacutegica ao nosso ver tem um deacutebito com as reflexotildees de SANTOS (2000) e SCHWARTZ (2000) Esses pensadores propotildeem que a experiecircncia de trabalho complexa que eacute seja tomada a partir de uma ldquosolidariedade entre uma ideacuteia forte de ciecircncia e uma ideacuteia forte de culturardquo (SANTOS 2000 p 121) SANTOS (2000) ao se referir a uma solidariedade entre uma ideacuteia forte de ciecircncia e uma ideacuteia forte de cultura fala de ldquocultura tomada em dois sentidos como eacuteter do pensamento elemento de formaccedilatildeo dos conceitos e das lsquohierarquias do saberrsquo e como lsquoaquilo que produz a humanidadersquo teria uma pro-pensatildeo agrave obstruir o elemento da experiecircncia Esta obstruccedilatildeo proveacutem de uma exigecircncia forte concernindo a cons-tituiccedilatildeo de um discurso cientiacuteficordquo (p 121)

66

como um truque ou um lance de uacuteltima hora16 pois ao recorrermos a ldquosituaccedilatildeo de trabalhordquo

criamos condiccedilotildees para que o saber taacutecito seja tomado como expressatildeo de um saber histoacuterico

e socialmente construiacutedo isto eacute ao longo da vida do seu protagonista contrapondo-se assim

ao que chamamos de olhar imediato sobre o trabalho A ldquolinguagem no trabalhordquo apresenta

ainda uma outra caracteriacutestica por ser uma linguagem que circula nas relaccedilotildees sociais do

coletivo de trabalho ela pode ser indiretamente fundamental para o desenvolvimento do pro-

cesso produtivo Nouroudine (2002) afirma que ldquofalar de futebol poderia revelar-se beneacutefico agrave

realizaccedilatildeo da atividade em curso com eficaacutecia e seguranccedilardquo (p 24)

A linguagem sobre o trabalho somada agraves jaacute apresentadas ldquolinguagem como trabalhordquo

e ldquolinguagem no trabalhordquo fecha a tese de ldquotriparticcedilatildeordquo da relaccedilatildeo trabalholinguagem A e-

xistecircncia de uma linguagem sobre o trabalho inscreve-se como uma modalidade de linguagem

que busca interpretar o trabalho Essa interpretaccedilatildeo satildeo falas sobre o trabalho que pode advir

tanto do interior quanto do exterior do coletivo de trabalho (NOUROUDINE 2002) Neste

sentido se foi dada relevacircncia agrave possibilidade de que a ldquolinguagem como trabalhordquo e a ldquolin-

guagem no trabalhordquo por expressarem uma historicidade possam reportar uma fala mais

ldquoproacuteximardquo do ponto de vista dos trabalhadores eacute igualmente importante considerar a possibi-

lidade de a ldquolinguagem sobre o trabalhordquo nos permitir ldquolocalizarrdquo o lugar de origem dessas

falas o que segundo Nouroudine (2002) daacute voz tanto aos que pesquisam o trabalho quanto

aos protagonistas do trabalho uma vez que

A linguagem sobre o trabalho natildeo seria portanto exclusividade do pesquisador visto que na atividade produtividade pode ser encontrada tambeacutem sem com isso ser confundida com as outras formas de linguagem Eacute sem duacutevida pertinente o questionamento acerca de ldquoquem falardquo ldquode onde eleela falardquo ldquoquando eleela falardquo para que se compreenda onde se situa o campo de validade e de pertinecircncia da ldquolinguagem sobre o trabalhordquo (p 25-26)

16 Ao nosso ver a ideacuteia de truque eacute um desdobramento do imbricamento entre a naturalizaccedilatildeo do saber taacutecito com um olhar excessivamente restrito sobre a accedilatildeo a atividade em que este saber taacutecito foi percebido uma vez que a experiecircncia ponto fundamental do saber taacutecito eacute tributaacuteria de vivecircncias Daiacute que buscar um rastro histoacuterico pode esclarecer melhor a questatildeo do saber taacutecito

67

O reconhecimento de que haacute uma linguagem que interpreta o trabalho uma linguagem

que faz o trabalho e outra que circula no trabalho mais do que ldquolocalizar as falasrdquo remete agrave

possibilidade de que os protagonistas do trabalho sejam tomados como capazes de interpretar

a sua proacutepria relaccedilatildeo com o trabalho Eacute nessa trilha qual seja uma abordagem que busca per-

ceber a histoacuteria dos protagonistas do trabalho e por isso mesmo a proacutepria pluralidade da rela-

ccedilatildeo trabalholinguagem que a tese da triparticcedilatildeo da relaccedilatildeo trabalholinguagem nos parece

mais fecunda especialmente no que concerne agrave legitimaccedilatildeo dos saberes taacutecitos dos protago-

nistas do trabalho pois ao trataacute-lo como um processo histoacuterico social e subjetivo acaba por

desnaturalizaacute-lo Todavia o simples reconhecimento de que possa haver entre os trabalhado-

res uma linguagem usada para interpretar o seu trabalho eacute insuficiente para representar um

equiliacutebrio no reconhecimento social poliacutetico econocircmico e epistemoloacutegico entre uma lingua-

gem de base cientiacutefica e outra oriunda da experiecircncia Para Nouroudine (2000) ldquo() os meacute-

todos usados pelas disciplinas que focalizam o trabalho como lsquoobjetorsquo de pesquisa e de inter-

venccedilatildeo para produzir uma lsquolinguagem sobre o trabalhorsquo natildeo satildeo desse ponto de vista neu-

trosrdquo (p 27) Outros pensadores como Sznelwar e Mascia (1997) ao discutirem a relaccedilatildeo

trabalholinguagem afirmam que existe um ldquodesequiliacutebrio comunicacional que joga em favor

da hierarquia em detrimento dos subordinados e do ponto de vista dos homens em detrimento

do das mulheresrdquo (p 224) Ainda sobre a possibilidade de a linguagem privilegiar um deter-

minado ponto de vista sobre o trabalho as reflexotildees de Schwartz (apud NOUROUDINE

2002) satildeo mais contundentes

Todo posicionamento de exteritorialiteacute17 (Y SCHWARTZ 1996) do pesquisador em relaccedilatildeo ao trabalho dos demais elimina de fato os protagonistas dos processos de produccedilatildeo de saber sobre suas atividades e ao mesmo tempo sua proacutepria ldquolin-guagem sobre o trabalhordquo acaba sendo desqualificada e neutralizada (p 27)

17 Exterritorialiteacute extraterritorialidade

68

A tese de triparticcedilatildeo da relaccedilatildeo trabalholinguagem ao buscar articular de forma am-

pliada as vaacuterias dimensotildees ldquolinguagem no trabalhordquo ldquolinguagem como trabalhordquo e a ldquolingua-

gem sobre o trabalhordquo nos permitiu elaborar algumas indagaccedilotildees sobre a explicitaccedilatildeo ou

natildeo do saber taacutecito e dentre as quais analisar um saber taacutecito exclusivamente na atividade

de trabalho natildeo seria um ldquoolharrdquo excessivamente imediato sobre o protagonista do trabalho E

neste caso um olhar imediato natildeo inviabilizaria o acesso do pesquisador agrave ldquolinguagem no

trabalhordquo dos seus protagonistas E ainda como o domiacutenio de uma linguagem no coletivo do

trabalho pode influenciar a produccedilatildeo a mobilizaccedilatildeo e a formalizaccedilatildeo de saberes taacutecitos por

parte dos trabalhadores

Se de uma maneira recorrente como demonstra a literatura analisada anteriormente

apresentamos como caracteriacutesticas centrais para se analisar o saber taacutecito aspectos como a

relaccedilatildeo entre a teoria e a praacutetica o uso instrumental ou natildeo deste saber e ainda a relaccedilatildeo

com a linguagem foi apontado tambeacutem que esses aspectos guardam uma complexa articula-

ccedilatildeo entre si (FRADE 2003 SCHON 2000 POLANY 1967 MALGLAIVE 1990 NOU-

ROUDINE 2002 SZNELWAR e MASCIA 1997) Em nosso entendimento essa articulaccedilatildeo

pode ser mais bem compreendida por meio da anaacutelise do uso do corpo pelo sujeito na produ-

ccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes

243 Corpo mente e o saber taacutecito

Eacute importante salientar que ao tomarmos a relaccedilatildeo entre o corpo e a mente como um

vieacutes de anaacutelise sobre o saber taacutecito natildeo buscamos de modo algum apontar a possibilidade de

que este saber seja determinado por atributos bioloacutegicas em detrimento dos aspectos sociais e

histoacutericos epistemoloacutegicos e subjetivos Neste sentido eacute importante salientar que comparti-

lhamos a posiccedilatildeo de Snelwar e Mascia (1997) quando esses apontam que o favorecimento dos

69

aspectos bioloacutegicos na discussatildeo do saber taacutecito poderia corroborar o engodo taylorista de que

eacute possiacutevel ldquoaleacutem da divisatildeo de tarefas na produccedilatildeo dividir uma pessoa em diferentes partes

fiacutesicafisioloacutegica mentalcognitiva e afetivapsiacutequica Cada uma destas partes poderia ser uti-

lizada em momentos determinados conforme necessidade de produccedilatildeordquo (p 210)18

Entretanto como jaacute foi dito anteriormente satildeo muitas as questotildees que tornam impor-

tante bem como necessaacuteria uma discussatildeo sobre o saber taacutecito pelo vieacutes da relaccedilatildeo entre o

corpo e a mente Como ponto de partida podemos considerar que o corpo eacute o meio baacutesico

sem o qual natildeo se realiza uma atividade fiacutesica ou mesmo mental De acordo com Polany

ldquotodas as nossas transaccedilotildees conscientes com o mundo envolvem o uso subsidiaacuterio do corpo E

o nosso corpo eacute o uacutenico agregado de coisas das quais noacutes estamos quase exclusivamente aten-

tos de tal maneira subsidiaacuterios19 Em favor da abordagem sobre os aspectos corporais haacute

ainda a possibilidade de que o corpo possa se estruturar como uma linguagem na medida em

que ele representa valores em um determinado coletivo20 A questatildeo do corpo pode ter mais

uma relevacircncia se considerarmos tambeacutem o termo incorporar como ldquodar uma forma corpoacute-

reardquo21 pois assim ao discutirmos os aspectos corporais poderiacuteamos como jaacute foi mencionado

cumprir um papel natildeo menos importante de dar um corpo com todos os seus significados

culturais histoacutericos e subjetivos aos trabalhadores sujeitos nesta pesquisa

18 Para esses pensadores ldquoEssa excrescecircncia conceitual sobre o que seria um ser humano pode ser considerada na medida em que se procurou implantaacute-la nas induacutestrias e mais recentemente no setor de serviccedilos como res-ponsaacutevel pelo sofrimento de uma enorme quantidade de pessoas no seu ambiente de trabalho Este sofrimento se expressa atraveacutes dos mais variados tipos de doenccedilas e tambeacutem na deterioraccedilatildeo das relaccedilotildees humanas no trabalho Esta deterioraccedilatildeo natildeo se limita ao trabalho atinge tambeacutem a vida social e familiarrdquo (SNELWAR e MASCIA 1997 p 210) 19 httpwwwmwsceduorgspolanymp-body-and-mindhtm 20 Embora natildeo seja um objeto de anaacutelise nesta pesquisa consideramos com base em nossa experiecircncia em chatildeo de faacutebrica que entre os trabalhadores circula uma linguagem expressa pelo corpo tais como cicatrizes muacutesculos Haacute que se dizer ainda conforme nos foi confidenciado por alguns trabalhadores sujeitos da nossa pesquisa que este aspecto nos auxiliou enquanto pesquisador uma vez que por sermos portadores de algumas dessas marcas fomos identificados como uma pessoa proacutexima aos trabalhadores 21 De acordo com o dicionaacuterio Ferreira (1986 p 934) [Do lat Incorporare] v t d 1 ndash Dar uma forma corpoacute-rea

70

Uma vez mais cabe ressaltar a contribuiccedilatildeo de Polany em nossa abordagem sobre o

saber taacutecito atraveacutes das suas reflexotildees sobre a relaccedilatildeo entre o corpo22 e a mente23 apresenta-

das nos textos ldquoCorpo e menterdquo24 e os ldquodois tipos de consciecircnciardquo25 Ainda sobre a possibi-

lidade de analisar o saber taacutecito levando em consideraccedilatildeo a questatildeo do corpo uma outra refe-

recircncia nos foi oferecida pelas reflexotildees de Damaacutesio (1994 2000) sobre as bases neurais do

conhecimento ou como ele proacuteprio diz ldquoneurobiologia da racionalidaderdquo26

Embora ao analisarmos alguns aspectos corporais recorramos agraves reflexotildees de Damaacutesio

(1994) eacute importante salientar que tomamos o corpo como uma noccedilatildeo para aleacutem dos aspectos

bioloacutegicos o que nos leva a contrapor uma outra ideacuteia agrave noccedilatildeo de corpo explicitada pelo au-

tor ldquoSempre que me refiro ao corpo tenho em mente o organismo menos o tecido nervoso (os

componentes central e perifeacuterico do sistema nervoso) embora num sentido convencional o

ceacuterebro tambeacutem faccedila parte do corpordquo (p 112) Parece-nos mais coerente tomar o corpo como

uma construccedilatildeo sociocultural portanto histoacuterica como propotildee Daolio (1995) De acordo com

esse autor ldquono corpo estatildeo inscritos todas as regras todas as normas e todos os valores de

uma sociedade especiacutefica por ser ele o meio de contato primaacuterio do indiviacuteduo com o ambien-

te que o cercardquo (p 39)

No que se refere aos aspectos corporais da mesma forma que o fez em The tacit di-

mension Polany discute tanto ao longo do texto ldquoCorpo e menterdquo quanto em ldquoOs dois tipos

de consciecircnciardquo a ideacuteia de ldquoconhecimento taacutecitordquo em sua dimensatildeo instrumental de realizar

tarefas bem como pelo niacutevel de compreensatildeo que uma pessoa possa ter sobre o processo que

construiu os saberes necessaacuterios para a realizaccedilatildeo de uma determinada atividade Ao avanccedilar

22 De acordo com Ferreira (1986 p 482) [Do lat Corpus Corporis] s m 1 ndash Parte central ou principal de um edifiacutecio 2 ndash Substacircncia fiacutesica ou estrutura de cada homem ou animal 23 De acordo com Ferreira (1986 p 1119) [Do lat Mente] s f 1 ndash Intelecto pensamento entendimento alma espiacuterito 2 ndash Concepccedilatildeo imaginaccedilatildeo a mente feacutertil do artista 3 ndash Intenccedilatildeo intuito desiacutegnio disposiccedilatildeo 24 httpwwwmwsceduorgspolanymp-body-and-mindhtm 25 httpwwwmwsceduorgspolanymp-STRUCTUREhtm 26 A discussatildeo que DAMAacuteSIO (1994 2000) faz sobre corpo ceacuterebro mente e a consciecircncia extrapola dados os objetivos deste trabalho as ideacuteias apresentadas neste texto Limitar-nos-emos a tomar a contribuiccedilatildeo desse autor no que se refere agrave apresentaccedilatildeo de elementos que nos ajudem a apreender a dimensatildeo do corpo dentro do debate sobre o saber em face da distinccedilatildeo entre mente e ceacuterebro

71

por essa trilha Polany aponta dois termos no saber taacutecito o conhecimento subsidiaacuterio aquele

que auxilia na realizaccedilatildeo de uma tarefa e o conhecimento apreendido aquele que se adquire

apoacutes o domiacutenio conceitual de todo o processo de realizaccedilatildeo de uma determinada tarefa Eacute com

essa perspectiva que Polany27 aborda a relaccedilatildeo entre o corpo e a mente no processo de cons-

truccedilatildeo do conhecimento taacutecito

Polany busca explicar a relaccedilatildeo entre o corpo e a mente na construccedilatildeo do conhecimen-

to taacutecito usando como exemplo a capacidade humana de selecionar ou reconhecer determina-

dos objetos a partir do uso da visatildeo Segundo esse pensador a observaccedilatildeo de uma determina-

da imagem objetivamente captada pelos olhos pode estar condicionada por um conjunto de

fenocircmenos pouco mensuraacuteveis tais como quantidade de luzes que entram pelos olhos e tem-

peratura ambiente que acabam se convertendo em variaacuteveis taacutecitas e marginais O domiacutenio

sobre o impacto que essas variaacuteveis taacutecitas podem ter sobre um determinado objeto eacute funda-

mental para possibilitar ao homem a captaccedilatildeo de imagem mais completa desse objeto Neste

sentido essas variaacuteveis funcionam como pistas que podem com menor ou maior intensidade

compor um conhecimento taacutecito De acordo com Polany28 na medida em que o domiacutenio des-

sas variaacuteveis forma o conhecimento taacutecito elas acabam se tornando uma extensatildeo do corpo

humano pois ampliam as possibilidades de uso da visatildeo Dessa forma por exemplo a tradu-

ccedilatildeo da imagem eacute feita por um certo saber mobilizar o uso do corpo ou saber que aciona um

processo mental que seleciona e articula os sentidos que passam pelo corpo no caso da visatildeo

em boa parte pelos olhos A dimensatildeo que um certo saber mobilizar o uso do corpo representa

nas accedilotildees humanas pode ser avaliada pela forma como esse autor percebe a interaccedilatildeo do ho-

mem com o seu meio Vejamos a reflexatildeo de Polany

Eu direi que noacutes observamos objetos externos sendo subsidiaacuterios atentos do im-pacto que eles fazem em nosso corpo e das respostas que nosso corpo oferece a ele

27 httpwwwmwsceduorgspolanymp-body-and-mindhtm 28 httpwwwmwsceduorgspolanymp-body-and-mindhtm

72

Todas as nossas accedilotildees conscientes com o mundo envolvem nosso uso subsidiaacuterio do nosso corpo Esse eacute o ponto pelo qual o nosso corpo eacute relacionado agrave nossa men-te29

Ao abordar a relaccedilatildeo entre o corpo e a mente as reflexotildees de Polany natildeo soacute nos permi-

tem o entendimento de que um determinado saber mobilizar o uso do corpo eacute parte fundamen-

tal do saber taacutecito bem como explicam nossa dificuldade de reconhecer uma atividade de uso

do corpo se eacute que existe alguma que natildeo dependa desse equipamento como sendo uma accedilatildeo

consciente Polany explica essa dificuldade em percebermos o uso do corpo como algo cons-

ciente a partir de uma argumentaccedilatildeo semelhante agrave que ele utilizou para tentar explicar o pro-

cesso de mudanccedilas de foco quando se busca compreender o uso instrumental de um determi-

nado saber taacutecito De acordo com esse autor ocorre o mesmo quando buscamos compreender

o uso do corpo ou seja se focalizarmos o uso do corpo perderemos de vista o objetivo pelo

qual ele foi mobilizado A perspectiva de Polany parece apontar para uma escolha ou se per-

cebe o que se faz por meio do corpo ou se compreende como o corpo o faz ldquoO fato que qual-

quer elemento subsidiaacuterio perde seu significado quando noacutes enfocamos nossa atenccedilatildeo nisto

explica o fato que quando examinando o corpo em accedilatildeo consciente noacutes natildeo conhecemos

nenhum rastro de consciecircncia em seu organismordquo30

Se de um lado eacute possiacutevel o entendimento de que o saber taacutecito se caracteriza tam-

beacutem por meio da relaccedilatildeo do corpo com a mente por outro lado em que medida esse certo

saber mobilizar o uso do corpo pode expressar um niacutevel de racionalidade E ainda eacute possiacutevel

compreender o processo de aquisiccedilatildeo de um saber mobilizar o uso do corpo

Por uma perspectiva inicial pode-se dizer que o domiacutenio sobre o corpo isto eacute sobre os

sentidos corporais natildeo ocorre com facilidade (POLANY 1967 FRADE 2003) No que se

refere ao saber taacutecito a necessidade de haver um esforccedilo de mobilizaccedilatildeo de saberes para do-

minar ou regular a relaccedilatildeo entre o corpo e a mente pode ser dada tanto para realizar uma ati- 29 httpwwwmwsceduorgspolanymp-STRUCTURE htm 30 httpwwwmwsceduorgspolanymp-STRUCTUREhtm

73

vidade quanto para a comunicaccedilatildeo de um saber taacutecito entre dois ou mais sujeitos Neste sen-

tido se um certo saber mobilizar o corpo viabiliza o uso de um saber taacutecito para realizaccedilatildeo de

uma determinada atividade bem como a comunicaccedilatildeo deste saber entre seus protagonistas

perguntamos em que medida um saber taacutecito eacute viabilizado por uma reflexatildeo sobre o uso do

corpo

Para alguns autores a construccedilatildeo do saber taacutecito ao depender de uma certa reflexatildeo

acaba por demandar um enorme esforccedilo de abstraccedilatildeo (POLANY 1967 SCHON 2000

MALGLAIVE 1999) Em Polany31 encontramos um termo que nos parece mais adequado

Trata-se de uma formulaccedilatildeo que esse autor apresenta como ldquoesforccedilo de imaginaccedilatildeordquo que se-

gundo ele estaacute presente em qualquer situaccedilatildeo de aprendizagem Segundo Polany quando es-

tamos ensinando alguma coisa a algueacutem noacutes confiamos no esforccedilo intelectual desse algueacutem

em reconhecer o que estamos ldquocarregandordquo como objeto de ensino como por exemplo a ten-

tativa de se ensinar a identificar qualidades sensoriais como a pulsaccedilatildeo sanguumliacutenea Ao avan-

ccedilar sobre essa discussatildeo no texto Corpo e Mente Polany tenta esclarecer o que ele chama de

esforccedilo de imaginaccedilatildeo da seguinte forma

Ainda haacute outra conexatildeo na qual noacutes temos que confiar no esforccedilo de imaginaccedilatildeo para ensinar e aprender Um exemplo eacute o estudo de anatomia topograacutefica vocecirc po-de ver vaacuterias fases da dissecaccedilatildeo de fotos ou quadros mas vocecirc tem que reconstru-ir pelo esforccedilo da imaginaccedilatildeo como o organismo com seus vaacuterios elementos fun-ciona (na decomposiccedilatildeo) de forma que vocecirc saiba como ocorre tudo ()32

De acordo com Frade (2003) ldquoem Polany qualquer ato de conhecer envolve um com-

prometimento pessoal uma contribuiccedilatildeo apaixonada do sujeito que eacute um componente vital do

conhecimento e natildeo meras imperfeiccedilotildees desse conhecimentordquo (p 10) Quando afirma que a

comunicaccedilatildeo do saber taacutecito exige das pessoas envolvidas o uso de seus saberes taacutecitos para

viabilizar a comunicaccedilatildeo segundo Frade (2003) eacute possiacutevel encontrar em Polany um apelo agrave

31 httpwwwmwsceduorgspolanymp-body-and-mindhtm 32 Ibidem

74

ideacuteia de esforccedilo ainda que essa autora natildeo fale em ldquoesforccedilo de imaginaccedilatildeordquo Para explicar

como Polany aborda a possibilidade de comunicaccedilatildeo do saber taacutecito Frade (2003) afirma que

esse pensador usa a seguinte metaacutefora quando a primeira pessoa precisa ocupar ou deixar-se

ocupar pela mente da segunda pessoa acompanhar os movimentos dessa mente para que pos-

sa descobrir seu conhecimento taacutecito ldquoconhecemos a mente de um jogador de xadrez ocupan-

do-nos dos estratagemas de seus jogos e conhecemos a dor de outra pessoa ocupando-nos de

sua face distorcida pelo sofrimentordquo (p 21)

O que Polany chama de esforccedilo de imaginaccedilatildeo apresenta-se em nosso entendimento

como uma trama essencial no processo de construccedilatildeo do saber taacutecito Neste sentido em que

medida o esforccedilo de imaginaccedilatildeo poderia manter interface com o saber usar o corpo E ainda

poderia o ldquoesforccedilo de imaginaccedilatildeordquo contribuir a superaccedilatildeo de uma suposta insuficiecircncia da

linguagem em explicitar o saber taacutecito A partir dessas indagaccedilotildees e das que foram desenvol-

vidas ao longo deste capiacutetulo entendemos ser necessaacuterio tentar percebecirc-las agrave luz de nossas

hipoacuteteses o que buscaremos fazer a seguir em nossos comentaacuterios

244 Comentaacuterios sobre as estrateacutegias taacutecitas

Se de um lado foi possiacutevel evidenciar que o saber taacutecito eacute marcado por uma validade

e pertinecircncia no que se refere agrave realizaccedilatildeo de uma determinada atividade por outro lado eacute

possiacutevel afirmar tambeacutem que o fato de este saber ser tido como taacutecito favorece em muito

para que haja duacutevidas em relaccedilatildeo a sua relevacircncia epistemoloacutegica Todavia entendemos ain-

da que os debates sobre o saber taacutecito natildeo evidenciaram todas as possibilidades de formaliza-

ccedilatildeo deste tipo de saber e tampouco desvelaram em que medida ele pode ser tido realmente

como taacutecito

Neste sentido elaboramos uma hipoacutetese na qual consideramos que o uso do saber taacute-

cito ocorra mediante o uso de estrateacutegias tambeacutem taacutecitas de produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e forma-

75

lizaccedilatildeo de saberes Consideramos ainda hipoteticamente que estas estrateacutegias taacutecitas poderi-

am se desenvolver em um esquema de retroalimentaccedilatildeo ciacuteclica isso quer dizer que o uso de

estrateacutegias taacutecitas para produzir saberes eacute dependente de estrateacutegias taacutecitas de mobilizaccedilatildeo de

saberes que por sua vez dependeriam do acionamento de estrateacutegias taacutecitas para formalizar

os saberes a serem mobilizados ou seja todas as estrateacutegias taacutecitas se realimentam constan-

temente Por esta trilha as estrateacutegias taacutecitas para produzir mobilizar e formalizar soacute encon-

tram um sentido uma perante a outra

Essas estrateacutegias taacutecitas aleacutem de garantir a validade e pertinecircncia do saber taacutecito so-

bretudo para quem as realizam uma vez que por meio delas entrariam em marcha os saberes

que monitoram a realizaccedilatildeo de uma determinada atividade poderiam tambeacutem funcionar co-

mo um mecanismo de ldquofiltragemrdquo que permitiria ao sujeito selecionar os saberes a serem mo-

bilizados para realizar uma tarefa Essa hipoacutetese encontra respaldo em Malglaive (1990) com

a expressatildeo ldquosaber em usordquo que designa um determinado conjunto de saberes que regem uma

accedilatildeo De acordo com esse autor

O conjunto destes saberes forma uma totalidade complexa e moacutevel operatoacuteria quer dizer ajustada agrave acccedilatildeo e agraves suas diferentes ocorrecircncias uma totalidade substi-tutiva no seio da qual os diversos tipos de saber se substituem uns aos outros agrave mercecirc das modalidades sucessivas da actividade uma totalidade que eventualmente se deforma sem todavia modificar a sua arquitetura mas alterando por vezes o modo e a qualidade dos seus constituinte (p 87)

Em que pese a possibilidade de um determinado grupo social criar e consagrar deter-

minadas estrateacutegias que mobilizam um tipo de regulagem entre o corpo e a mente a hipoacutetese

de haver um esquema de retroalimentaccedilatildeo entre as estrateacutegias ldquotaacutecitasrdquo por parte daqueles que

fazem uso de saberes taacutecitos nos remete ainda a uma uacuteltima pergunta o sujeito que faz uso

do saber taacutecito poderia criar e recriar uma regulagem na relaccedilatildeo entre o seu corpo e a sua

mente Se o saber possui uma dimensatildeo individual e subjetiva a singularidade do sujeito po-

deria estar na forma de como ele regula a relaccedilatildeo entre o seu corpo e a sua mente E ainda a

76

partir dessa regulagem o sujeito criaria formas natildeo soacute de produzir mobilizar e formalizar

saberes mas tambeacutem de expressaacute-los

A ideacuteia de que possa haver estrateacutegias de regulaccedilatildeo entre o corpo e a mente para a a-

preensatildeo da realidade eacute de certa forma sugerida por Damaacutesio (1994)

() A escolha de uma decisatildeo quanto a um problema pessoal tiacutepico colocado em ambiente social que eacute complexo e cujo resultado final eacute incerto requer tanto o am-plo conhecimento de generalidades como estrateacutegias de raciociacutenio que operem so-bre esse conhecimento () Mas como as decisotildees pessoais e sociais se encontram inextricavelmente ligadas agrave sobrevivecircncia esse conhecimento inclui tambeacutem fatos e mecanismos relacionados com a regulaccedilatildeo do organismo como um todo (p 109)

Todavia se foi importante apresentar a nossa hipoacutetese mais refinada qual seja a ideacuteia

de que o sujeito que faz uso do saber taacutecito o faccedila mediante o uso de estrateacutegias taacutecitas de

produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes eacute igualmente importante lembrar que a

construccedilatildeo dessa hipoacutetese tem deacutebito com situaccedilotildees concretas do chatildeo de faacutebrica que corrobo-

ram a possibilidade de que haja saberes produzidos mobilizados e formalizados a partir de

uma racionalidade distinta da formalidade cientiacutefica33

Neste sentido acreditamos que a atividade de trabalho se constitua como um excep-

cional campo para se analisar o saber taacutecito dado que as contradiccedilotildees presentes neste espaccedilo

satildeo marcadas por um apelo agrave inteligecircncia operaacuteria que de um lado eacute um alvo cada vez maior

dos interesses do capital e que por outro lado como afirma a literatura especializada os tra-

balhadores nunca ficaram sem produzir saberes e tampouco deixaram de imprimir o seu inte-

resse no trabalho (EVANGELISTA 2001 SANTOS 1997 ARANHA 1997)

33 Essa possibilidade eacute apresentada por diversos pesquisadores (SANTOS 1997 ARANHA 1997 e SALERNO 1994)

77

3 A FERRAMENTARIA E AS ATIVIDADES INDUSTRIAIS

O trabalho de ferramentaria se insere em diversas atividades industriais como por e-

xemplo a induacutestria alimentiacutecia farmacecircutica automobiliacutestica e eletro-eletrocircnica Nesta pes-

quisa seraacute abordada a ferramentaria de autopeccedilas portanto aquela que se vincula ao setor

automotivo No que se refere agrave inserccedilatildeo da ferramentaria no ramo autopeccedilas haacute que se dizer

que o crescimento nas vendas de automoacuteveis de passeio no seacuteculo XX eacute apontado como um

dos eventos responsaacuteveis pela expansatildeo desta atividade Ainda hoje ela responde por boa

parte dos componentes automotivos dado que dentre outras caracteriacutesticas o emprego deste

processo de fabricaccedilatildeo eacute apropriado para as grandes seacuteries de peccedilas ou seja a produccedilatildeo em

larga escala (NAVARRO 1954 SENAI 1998) No caso brasileiro podemos apontar que o

impulso da ferramentaria se vincula agrave induacutestria automotiva dada principalmente pela poliacutetica

de nacionalizaccedilatildeo das peccedilas a partir de meados da deacutecada de 1950 (GATTAacuteS 1981) Em Mi-

nas Gerais eacute tambeacutem a chegada de uma montadora que vai impulsionar a atividade de ferra-

mentaria como recordou um dos ferramenteiros com quem conversamos ldquono inicio da deacutecada

de 1970 tinha muito pouco serviccedilo de ferramentaria aqui em Minas depois veio a Fiat e a

Ferramentaria evolui aquirdquo Um outro ferramenteiro disse que ldquoQuando saiacute do Senai e fui

parar na Fiat eu era um ajustador mecacircnico laacute na Fiat eles perguntaram quem queria ir para a

ferramentaria No iniacutecio eu natildeo queria eu natildeo sabia o que era aquilo aiacute um cara laacute me falou

pode ir que esse negoacutecio eacute bom o ferramenteiro ganha mais do que qualquer peatildeordquo

78

31 A ESCOLHA DO SETOR AUTOMOTIVO E ESPECIFICAMENTE DO SETOR DE AUTOPECcedilAS

A importacircncia da induacutestria automotiva na sociedade contemporacircnea pode ser justifica-

da por uma seacuterie de fatores Eacute um setor onde prevalecem equipamentos de base microeletrocircni-

ca que tem adotado as mais modernas tecnologias de gestatildeo e representa um certo pioneiris-

mo comumente seguido por outros setores industriais Eacute o setor em que tecircm ocorrido os maio-

res esforccedilos em prol da modernizaccedilatildeo da produccedilatildeo (ARBIX e ZILBOVICIUS 1997 POS-

THUMA 1997 WOMACK 1992)

A escolha do setor automotiv4o como foco da nossa pesquisa reflete natildeo soacute a impor-

tacircncia de sua dimensatildeo produtiva mas tambeacutem a sua capacidade de definir comportamentos

Satildeo muitos os pensadores que destacam o papel que este seguimento representa na sociedade

contemporacircnea Segundo Womack (1992)

() a induacutestria automobiliacutestica continua sendo a maior atividade industrial () No entanto a induacutestria automobiliacutestica eacute ainda mais importante para noacutes do que pare-ce Duas vezes neste seacuteculo ela alterou nossas noccedilotildees mais fundamentais de como produzir bens E a maneira como os produzimos determina natildeo somente como tra-balhamos mas como pensamos o que compramos e como vivemos (p 1)

No que se refere ao caso brasileiro tambeacutem satildeo muitas as facetas quais sejam a eco-

nocircmica e poliacutetica que fazem a induacutestria automotiva figurar com acentuado destaque social

Arbix e Zilbovicius (1997) reforccedilam a importacircncia deste setor quando afirmam que o auto-

moacutevel jaacute foi tudo na Histoacuteria do Brasil

Nos anos 50 era o motor do progresso nacional E a sua produccedilatildeo em terras brasi-leiras uma espeacutecie de passaporte para a modernidade No poacutes-guerra poucas fo-ram as visotildees de desenvolvimento que prescindiram da induacutestria de autoveiacuteculos () Frequumlentou os sonhos de ricos e pobres de governantes e governados Foi si-nocircnimo de progresso Sua locomotiva E literalmente o carro-chefe da naccedilatildeo () O surpreendente eacute que quarenta anos depois apesar de todas as metamorfoses de economia brasileira e mundial neste final de seacuteculo a induacutestria de autoveiacuteculos continua destilando seus encantos (p 7-8)

79

Na realidade natildeo se pode falar em induacutestria mundial sem deixar legitimado o papel do

setor automotivo e isso eacute bem visiacutevel no Brasil Crescendo a taxas de 20 ao ano foi tambeacutem

o setor que conduziu o chamado ldquomilagre brasileirordquo que ocorreu de 1968 a 1973 (SHAPIRO

1997 p 65)

311 As autopeccedilas

Na trilha do setor automotivo a induacutestria de autopeccedilas inscreve-se como um ramo

com significativa influecircncia na economia brasileira e ainda como um poacutelo gerador de tecno-

logia e de uma forccedila de trabalho relativamente numerosa e extremamente qualificada De a-

cordo com o Sindipeccedilas (2003)1 este setor obteve um faturamento de 10920000 bilhotildees de

reais em 2002 o que corresponde aproximadamente a 24 do PIB nacional e empregando

diretamente cerca de 168000 trabalhadores

Eacute importante ressaltar o fato de as empresas de autopeccedilas estarem sempre acompa-

nhando os avanccedilos da induacutestria automobiliacutestica tendo com isso que fazer contiacutenuos investi-

mentos em atualizaccedilatildeo tecnologias e novos processos assim como em alguns casos fazer

alianccedilas com empresas estrangeiras Enfim precisam seguir e antecipar todos os esforccedilos das

montadoras O desenvolvimento da induacutestria de autopeccedilas no Brasil embora remonte ao iniacute-

cio do seacuteculo XX ganha impulso com a vinda e o posterior crescimento da induacutestria auto-

motiva a partir da deacutecada de 1950 Segundo boa parte dos pesquisadores o alavancamento da

induacutestria automotiva no Brasil em meados da deacutecada de 1950 contaraacute com o apoio de accedilotildees

do governo como a proposta de restringir as importaccedilotildees de veiacuteculos e componentes automo-

tivos e a de incentivar financeiramente a produccedilatildeo de veiacuteculos que contivessem de 90 a 95

de peccedilas produzidas no Brasil o que foi mais relevante apoacutes 1956 com a posse do presidente 1 Ver hiperlink hppwwwsindipeccedilasorgBr Sindicato das empresas de autopeccedilas

80

Juscelino Kubitschek e sua poliacutetica dos ldquocinquumlenta anos em cincordquo Surgem o CDI ndash Conselho

de Desenvolvimento Industrial e a Geia ndash Grupo Executivo para a Induacutestria Automotiva ndash que

propunham estimular os investimentos no paiacutes e tomar as decisotildees para o desenvolvimento do

setor criando uma sequumlecircncia desenvolvimentista que soacute veio conhecer crise no periacuteodo de

1963 a 1968 (POSTHUMA 1997 SHAPIRO 1997) O Geia chegou inclusive a estabelecer

um cronograma sobre a nacionalizaccedilatildeo da induacutestria automobiliacutestica conforme aponta Gattaacutes

(1981)

Tabela 1 Cronograma do Geia para nacionalizaccedilatildeo da induacutes-tria automobiliacutestica no Brasil

Prazos limites Caminhotildees Jipes Caminhotildees leves 31121956 35 50 40 01071957 40 60 50 01071958 65 75 65 01071959 75 85 75 01071960 90 95 90

Fonte GATTAacuteS (1981)

A partir da deacutecada de 1970 ainda que possa parecer paradoxal as empresas de auto-

peccedilas ao mesmo tempo em que se estruturaram para atender as determinaccedilotildees das montadoras

passaram tambeacutem a influenciar a gestatildeo do trabalho nas montadoras De acordo com Addis

(1997)

Ao contraacuterio das consideraccedilotildees predominantes sobre a induacutestria brasileira as em-presas de autopeccedilas foram na realidade a forccedila motriz para a consolidaccedilatildeo e o de-senvolvimento do setor automotivo () Na implantaccedilatildeo da induacutestria mas tambeacutem durante os anos 80 quando algumas empresas fornecedoras formaram carteacuteis as tendecircncias das induacutestrias foram em grande parte determinadas pelas firmas de au-topeccedilas Em outras palavras a produccedilatildeo de veiacuteculos no Brasil acabou gerando ca-deias de desenvolvimento e a sua natureza foi profundamente condicionada pelas empresas de autopeccedilas Por volta de 1951 algumas empresas de autopeccedilas perten-centes em sua maioria a imigrantes decidiram criar uma associaccedilatildeo industrial Um ano depois esta associaccedilatildeo transformar-se-ia no Sindicato Nacional da Induacutestria de peccedilas para Veiacuteculos Automotivos ndash Sindipeccedilas (p 134)

81

312 Relaccedilatildeo entre fornecedores de autopeccedilas e montadoras

A relaccedilatildeo entre as empresas de autopeccedilas e as montadoras tem apresentado uma gran-

de correspondecircncia com a transformaccedilatildeo na organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho Em outras pa-

lavras a produccedilatildeo de veiacuteculos no Brasil acabou gerando cadeias de desenvolvimento e a sua

natureza foi profundamente condicionada pelas empresas de autopeccedilas Neste sentido a capa-

cidade das autopeccedilas em absorver e assimilar as mudanccedilas na organizaccedilatildeo e gestatildeo do traba-

lho vem sendo fundamental para a adoccedilatildeo do padratildeo flexiacutevel e integrado conduzido pelas

montadoras notoriamente a partir da deacutecada de 1990

De acordo com Salerno num primeiro momento os fornecedores foram instados a fa-

zer entregas mais frequumlentes e em lotes menores numa tentativa de aproximaccedilatildeo de um just in

time Depois foram chamados a colaborar nos projetos de produto Daiacute foi um pulo passar ao

fornecimento de Subconjuntos ao inveacutes do fornecimento de uma seacuterie de peccedilas separadas que

seriam montadas pela montadora final Por um lado uma tentativa de reduccedilatildeo de custos da-

das as condiccedilotildees de trabalho e de salaacuterio em geral relativamente piores nas autopeccedilas por

outro lado uma tentativa de reduzir investimentos necessaacuterios das montadoras pois parte do

ferramental dispositivos equipamentos destinados agrave montagem satildeo agora de responsabilidade

do fornecedor ainda uma economia de espaccedilo fiacutesico e uma simplificaccedilatildeo da gestatildeo interna da

produccedilatildeo (SALERNO 1997 p 509)

Nos uacuteltimos anos outras mudanccedilas contribuiacuteram para o aumento da importacircncia do

setor de autopeccedilas dentro da produccedilatildeo industrial Posthuma (1997) afirma que

cada vez mais apenas os liacutederes mundiais de autopeccedilas tecircm os recursos tecnoloacutegi-cos e financeiros para atender as demandas para se tornarem fornecedores de pri-meira linha Essa tendecircncia favorece a consolidaccedilatildeo do setor de peccedilas que tradi-cionalmente sempre foi uma induacutestria pulverizada Nesse sentido a induacutestria de au-topeccedilas estaacute comeccedilando a assemelhar-se agrave induacutestria de montagem tornando-se uma induacutestria globalizada composta de grandes companhias transnacionais (p 400)

82

Em relaccedilatildeo agrave induacutestria brasileira o setor de autopeccedilas passou a viver uma situaccedilatildeo de

turbulecircncia que transformou a estrutura do setor A partir da liberaccedilatildeo comercial da vinda de

novas montadoras e de um novo surto de investimentos a induacutestria de autopeccedilas estaacute passan-

do por um processo de concentraccedilatildeo envolvendo a extinccedilatildeo de parcelas significativas de seus

integrantes E das suas cinzas estaacute surgindo hoje uma nova induacutestria de autopeccedilas compostas

basicamente por empresas de maior porte e capital estrangeiro (Posthuma 1997 p 390)

Essa autora afirma ainda que ao fornecer para os mercados de maior demanda tanto

no Brasil como no exterior estas empresas foram levadas a atualizar a qualidade e o design de

seus produtos e meacutetodos de produccedilatildeo procurando acompanhar os padrotildees internacionais

Dessa forma um grupo intermediaacuterio de firmas credenciou-se para as disputas em uma eco-

nomia aberta que estaacute sempre exigindo a melhoria dos meacutetodos de fabricaccedilatildeo de tecnologia e

de design (POSTHUMA 1997 p 392)

32 A FERRAMENTARIA

A escolha da aacuterea de ferramentaria como campo desta investigaccedilatildeo se justifica por as-

pectos que a colocam como um dos setores mais complexos da atividade industrial tanto pe-

las suas caracteriacutesticas teacutecnicas quanto pela sua dimensatildeo econocircmica e social Dentre as pe-

culiaridades da ferramentaria poderiacuteamos iniciar pela consideraccedilatildeo de que muito embora este

trabalho esteja vinculado ao campo da metalomecacircnica a ferramentaria subsidia tecnologica-

mente a concretizaccedilatildeo de projetos em quase todos os setores produtivos Eacute a partir das possi-

bilidades de construccedilatildeo da ferramentaria que satildeo definidos por exemplo o tamanho e a forma

geomeacutetrica de computadores oacuteculos remeacutedios lacircmpadas canetas talheres telefones carros

instrumentos ciruacutergicos componentes eletrocircnicos e uma seacuterie de outros produtos

83

A teacutecnica de ferramentaria permite a produccedilatildeo de peccedilas que possuem uma geometria

que combina vaacuterias formas Neste sentido uma questatildeo relevante em relaccedilatildeo agrave teacutecnica de fer-

ramentaria remete ao apelo comercial sobre a esteacutetica dos produtos No caso do automoacutevel

por exemplo eacute notoacuterio que um dos grandes chamativos das propagandas se dirige ao design

dos carros

Uma outra grande relevacircncia da aacuterea de ferramentaria para esta pesquisa se refere agrave

particularidade das relaccedilotildees de trabalho dentro deste setor e sobretudo a forma paradoxal de

como os saberes articulados agrave mecacircnica de precisatildeo2 portadores de tecnologia de ponta como

o CAD CAM e CNC3 parecem prescindir em muito de saberes produzidos mobilizados e

formalizados a partir de uma racionalidade natildeo-cientiacutefica caracterizada por intervenccedilotildees

ldquomanuaisrdquo dos ferramenteiros muitas vezes tidas como artesanais

A ferramentaria tradicionalmente figura como um setor diferenciado dentro da induacutes-

tria metaluacutergica cujo ldquonomerdquo exerce uma forte influecircncia no imaginaacuterio dos trabalhadores

metaluacutergicos4 bem como das proacuteprias chefias que fazem referecircncia agrave forte coesatildeo entre os

ferramenteiros e a grande auto-estima que eles demonstram por sua profissatildeo Talvez por isso

mesmo encontram-se aqui tambeacutem formas menos submissas de negociar situaccedilotildees cotidia-

nas com a gerecircncia Negro (1997) atribui aos ferramenteiros um papel especial no desenvol-

vimento do ldquonovo sindicalismordquo

() os ferramenteiros aparecem como empregados temperamentais dotados de um bolso hipersensiacutevel e cocircnscios da carecircncia que as empresas sentiam deles Enquan-to permaneceram apenas defensores de suas condiccedilotildees especiacuteficas bastante especi-ais diante da imensa maioria promoveram um tipo de sindicalismo baseado na de-fesa da dignidade do trabalho mas que ao mesmo tempo natildeo oferecia respostas para as demandas mais gerais existentes Um movimento onde natildeo cabiam todos Poreacutem foi esse um dos setores que manteve o sindicalismo vivo dentro das faacutebri-

2 De acordo com as normas ISO a mecacircnica de precisatildeo trabalha com ajustes abaixo de cinco centeacutesimos de miliacutemetro (NOVASKI 1994 p 3) 3 CAD ndash Computer Aided Design CAM ndash Computer Aided Manufacturing CNC ndash Controle Numeacuterico Compu-tadorizado (FARIA 1997 p 13) 4 Este proacuteprio pesquisador se recorda de que em certas situaccedilotildees de ldquoconflito no chatildeo de faacutebricardquo era comum surgirem falas como ldquoSe fosse laacute na ferramentaria eles ndash a chefia ndash natildeo fariam issordquo

84

cas nos seus anos iniciais e nos duros tempos de ditadura militar constituindo-se como estiacutemulo e escola por onde passaram ativistas de vaacuterios matizes (p 122)

Outros aspectos que reforccedilam o status do ferramenteiro dentro da faacutebrica satildeo a sua su-

perioridade salarial5 a reconhecida capacidade de trabalhar em mais de uma maacutequina opera-

triz e ainda a aproximaccedilatildeo do seu trabalho com a ideacuteia de arte6

321 Quem eacute e o que faz um ferramenteiro7

De uma forma simples poderiacuteamos definir como ferramentaria a teacutecnica de construir

ferramentas para obter peccedilas por meio de golpes de prensa que permitem cortar deformar ou

moldar um determinado material (ROSSI 1971 NAVARRO 1954)

O ferramenteiro eacute o profissional que constroacutei a ferramenta De acordo com a CBO ndash

Classificaccedilatildeo Brasileira de Ocupaccedilotildees a Onet ndash Ocuppation Information Network a Rome ndash

Reacutepertoire Opeacuterationnel des Meacutetiers et Emplois

Os trabalhadores da famiacutelia ocupacional dos ferramenteiros e afins estudam es-quemas e especificaccedilotildees para a construccedilatildeo de ferramentas e dispositivos conferin-do dimensotildees de montagem e planejando a sequumlecircncia de operaccedilotildees de construccedilatildeo Medem e marcam metais utilizando instrumentos de mediccedilatildeo tais como o microcirc-metro reloacutegio apalpador Operam maacutequinas ferramentas para usinar peccedilas Lixam e datildeo polimento em superfiacutecies e partes de ferramentas () Aplicam tratamento teacutermico em materiais e peccedilas Reparam ou modificam ferramentas e dispositivos utilizando ferramentas manuais ou maacutequinas ferramenta8

5 Segundo o hiperlink httpdnsenaibrrepertoacuterioferramenteiro e afinshtm a remuneraccedilatildeo meacutedia eacute de 106 salaacuterios miacutenimos De acordo com o Rais ndash Relatoacuterio Anual de Relaccedilotildees Sociais do Ministeacuterio do Trabalho e Emprego de 1999 cerca de 21 dos ferramenteiros ganham entre dez e quinze salaacuterios miacutenimos 18 ganham entre sete e dez salaacuterios miacutenimos 12 ganham entre quinze e vinte salaacuterios miacutenimos 75 ganham mais do que vinte salaacuterios miacutenimos e os demais ganham menos de sete salaacuterios miacutenimos 6 Essa ideacuteia possui uma certa dimensatildeo histoacuterica No dicionaacuterio FERREIRA (1986) dentre outras definiccedilotildees a arte eacute apresentada como ldquo[Do lat arte] sf Capacidade que tem o homem de pocircr em praacutetica uma ideacuteia valendo-se da faculdade de dominar a mateacuteria Jaacute a induacutestria pode ser entendida segundo Ferreira (1986 p 940) como ldquo[Do lat Industria atividade] sf 1 ndash Destreza ou arte na execuccedilatildeo de um trabalho manual aptidatildeo periacutecia () 3 ndash Fig Invenccedilatildeo astuacutecia engenho (p 176) 7 Neste trabalho nos limitaremos a uma breve apresentaccedilatildeo de uma parte da ferramentaria que trabalha com chapas metaacutelicas pois trata-se de um atividade muito ampla que trabalha com outros processos injeccedilatildeo de plaacutes-ticos fundiccedilatildeo e outros 8 Ver hiperlink httpdnsenaibrrepertoacuterioferramenteiro e afinshtm Onde aponta-se tambeacutem que de acordo com RAIS Registro Anual de Informaccedilotildees Sociais do Ministeacuterio do Trabalho e Emprego no ano de 2000 a

85

A apresentaccedilatildeo formal das qualificaccedilotildees prescritas do ferramenteiro embora demons-

tre a enorme gama de saberes desta atividade natildeo eacute suficiente para revelar a complexidade

desta profissatildeo Neste sentido eacute necessaacuterio esclarecer que o ferramenteiro natildeo faz uma peccedila

ele constroacutei uma ferramenta E o que eacute uma ferramenta Na verdade uma ferramenta eacute um

conjunto de peccedilas um mecanismo com vaacuterias partes moacuteveis e fixas que quando postas em

movimento produzem peccedilas que satildeo os produtos finais Para abstrairmos a composiccedilatildeo de

uma ferramenta apresentaremos um desenho de uma ferramenta bastante simples

Figura 1 Ferramenta vista em ldquo3Drdquo Nomenclatura 1 Espiga 2 Cabeccedilote 3 Placa de choque 4 Porta-punccedilatildeo 5 Punccedilatildeo 6 Colunas de guia 7 Buchas 8 Pinos de fixaccedilatildeo 9 Parafusos 10 Extrator 11 Guias da chapa 12 Matriz e 13 Base inferior

famiacutelia ocupacional dos ferramenteiros e afins tinha 239 com 10 anos ou mais de viacutenculo empregatiacutecio 175 entre 5 e 99 anos de viacutenculo e 129 entre 4 e 9 anos

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Figura 2 A mesma ferramenta da Figura 1 vista em plano bidimensional Nomenclatura 1 Espiga 2 Cabeccedilote 3 Placa de choque 4 Porta-punccedilatildeo 5 Punccedilatildeo 6 Colunas de guia 7 Buchas 8 Pinos de fixaccedilatildeo 9 Parafusos 10 Extrator 11 Guias da chapa 12 Matriz e 13 Base inferior

A qualidade de um determinado ldquoproduto finalrdquo depende em grande parte de um per-

feito ajuste em centeacutesimo de miliacutemetros entre as partes moacuteveis e as partes fixas Portanto natildeo

eacute um exagero afirmar que os ferramenteiros constroem maacutequinas complexas O fato de que a

maioria dos componentes de uma ferramenta possuem medidas tiacutepicas da ldquomecacircnica de preci-

satildeordquo e ainda que os materiais de uma ferramenta satildeo metais muito especiais com altiacutessima

dureza jaacute seria suficiente para alccedilar este trabalho a um alto niacutevel de dificuldade Todavia o

processo de trabalho na ferramentaria apresenta ainda outras questotildees que exigem do ferra-

menteiro saberes muito aleacutem daqueles necessaacuterios para fabricar uma peccedila com toleracircncia em

centeacutesimos de miliacutemetro Ou seja se de um lado o trabalho prescrito na ferramentaria por si

soacute jaacute faz um apelo a um grande nuacutemero de saberes por outro lado satildeo muitos os fatores do

87

trabalho real que solicitam do ferramenteiro saberes de outra ordem muitas das vezes vincu-

lados agrave sua experiecircncia os chamados saberes taacutecitos

322 A Excepcionalidade do ferramenteiro breve nota sobre um trabalho muito aleacutem

das prescriccedilotildees

Diferentemente das premissas tayloristas a organizaccedilatildeo do trabalho dentro de uma fer-

ramentaria quase sempre exigiu do ferramenteiro uma participaccedilatildeo em todas as fases do pro-

cesso de trabalho dado que uma ferramenta apresenta um grande nuacutemero de etapas para a sua

construccedilatildeo A obtenccedilatildeo de um bom produto final depende em boa medida do domiacutenio de

todas as fases da construccedilatildeo por parte dos ferramenteiros uma vez que essa ldquovisatildeo do todordquo eacute

fundamental para antever os possiacuteveis problemas em cada fase de construccedilatildeo da ferramenta

que natildeo foram apontados pelo trabalho prescrito neste caso o desenho da ferramenta Dessa

forma o apelo a um excepcional conjunto de saberes fez da ferramentaria um terreno sem

muita fecundidade para a fragmentaccedilatildeo do trabalho

Poderiacuteamos dizer que agrave distacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho real na ferra-

mentaria comeccedila na elaboraccedilatildeo do projeto de uma ferramenta dado que um mesmo produto

pode ser obtido por projetos de ferramentas totalmente diferentes Essa possibilidade que eacute

muito comum dentro da ferramentaria pode ocorrer de um lado por questotildees objetivas como

maacutequinas disponiacuteveis e recursos de informaacutetica e por outro lado por aspectos subjetivos

como experiecircncia dos projetistas9

Do ponto de vista da construccedilatildeo mecacircnica da ferramenta os ferramenteiros atraveacutes

dos seus saberes taacutecitos podem submeter o trabalho prescrito aos condicionantes do trabalho

real antes mesmo do iniacutecio da construccedilatildeo ldquofiacutesicardquo ou seja antes de construir ou montar as 9 Neste caso a experiecircncia natildeo eacute tida somente pelas situaccedilotildees vivenciadas pelo projetista mas por exemplo a origem da ferramentaria com a qual ele trabalhou pois franceses japoneses e espanhoacuteis apresentam estilos dife-rentes

88

peccedilas da ferramenta Tomemos por exemplo o caso da leitura e interpretaccedilatildeo que o ferra-

menteiro faz do desenho natildeo soacute por ser a primeira fase de construccedilatildeo da ferramenta mas

tambeacutem pelas possibilidades de antecipar falhas no produto final Trata-se em uma primeira

anaacutelise de um saber formal que pode ser aprendido na escola Entretanto a experiecircncia do

ferramenteiro pode potencializar a sua capacidade de ler e interpretar desenhos a ponto de lhe

permitir compreender e superar tecnicamente alguns equiacutevocos no projeto da ferramenta

Os saberes taacutecitos que os ferramenteiros usam na leitura de desenho satildeo de tal sorte

vinculados agrave sua experiecircncia que buscamos apresentaacute-los em trecircs exemplos Primeiro haacute que

se dizer que o desenho de uma ferramenta de grande porte pode apresentar quinhentas ou

mais peccedilas diferentes o que inviabiliza que haja uma folha de desenho por peccedila Dessa forma

a ferramenta eacute desenhada apresentando as peccedilas em conjuntos podendo ter aproximadamente

sessenta folhas Diante desta situaccedilatildeo o ferramenteiro ao ler o desenho deve interpretar as

medidas das peccedilas ldquoisoladamenterdquo de seu conjunto Natildeo eacute raro que nesta fase do processo de

trabalho ocorram descobertas de erros na prescriccedilatildeo como medidas que natildeo se encontram

furos fora de lugar Nesta fase da leitura do desenho a experiecircncia do ferramenteiro lhe per-

mite se localizar ldquodentro do projetordquo forma pela qual ele associa uma determinada peccedila com

o estaacutegio em que estaacute a construccedilatildeo da ferramenta ou seja nesse primeiro caso o ferramentei-

ro faz muito mais do que ldquoler um desenhordquo ele se depara com um conjunto de peccedilas e apre-

ende uma delas ldquopor vezrdquo com todas as suas implicaccedilotildees para a construccedilatildeo da ferramenta

Segundo trata-se de um saber importantiacutessimo para antecipar eventuais problemas Ao

ler o desenho o ferramenteiro busca ldquovisualizarrdquo mentalmente a montagem das peccedilas em uma

projeccedilatildeo tridimensional ou seja paradoxalmente ocorre um processo inverso ao primeiro

exemplo Neste segundo caso a experiecircncia do ferramenteiro pode lhe permitir ao ler um

desenho compreender ldquotodardquo a ferramenta por meio de uma articulaccedilatildeo entre as vaacuterias inter-

pretaccedilotildees das ldquopartesrdquo da ferramenta A dificuldade em se desenvolver este saber taacutecito se

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apresenta pelo fato de que o desenho eacute elaborado em uma forma planificada ou seja o ferra-

menteiro enxerga bidimensionalmente e tem que ldquovisualizarrdquo tridimensionalmente Uma das

contribuiccedilotildees desta capacidade eacute que neste momento o ferramenteiro comeccedila a associar a

ferramenta em construccedilatildeo com o produto final

Terceiro eacute um saber taacutecito que remete a uma complexa articulaccedilatildeo de saberes que o-

corre normalmente com ferramenteiros mais experientes que possuem uma refinadiacutessima

capacidade de ler um desenho por meio da qual conseguem ldquovisualizarrdquo a fabricaccedilatildeo de um

determinado produto atraveacutes de uma ldquosimulaccedilatildeo mental da movimentaccedilatildeordquo da ferramenta

que corresponde tambeacutem agrave movimentaccedilatildeo de uma seacuterie de componentes mecacircnicos Neste

caso a mobilizaccedilatildeo de saberes taacutecitos permite ao ferramenteiro levar um entendimento sobre

algo estaacutetico o desenho para uma situaccedilatildeo dinacircmica formalizada por meio de uma extraor-

dinaacuteria noccedilatildeo de ldquocinemaacuteticardquo10

Haacute ainda outros aspectos do processo que fazem emergir o saber taacutecito do ferramen-

teiro A espetacular capacidade cinemaacutetica dos ferramenteiros em ldquosimular mentalmente a

movimentaccedilatildeordquo da ferramenta pode ocorrer tambeacutem mediante a observaccedilatildeo da movimenta-

ccedilatildeo fiacutesica da ferramenta ou mesmo somente analisando-se o produto final ou seja sem o

desenho Nestas situaccedilotildees os saberes taacutecitos dos ferramenteiros lhe permitem interpretar al-

gumas variaacuteveis de difiacutecil mensuraccedilatildeo cientiacutefica como por exemplo ldquoo desgaste das prensas

ou a resistecircncia de materiaisrdquo11

Por fim um outro caso no qual o ferramenteiro se vale de seu saber taacutecito refere-se

aos limites teacutecnicos de maacutequinas avanccediladiacutessimas que agraves vezes natildeo conseguem por exemplo

alcanccedilar um determinado grau de acabamento ou mesmo medidas como as de raios pequenos

10 De acordo com FERREIRA (1986) Cinemaacutetica pode ser tomada como um campo da fiacutesica que se dedica ao estudo dos movimentos sem se preocupar com as forccedilas que o colocam em movimento (p 406) 11 Satildeo vaacuterios e frequumlentes os fenocircmenos que se relacionam ao comportamento dos accedilos e que escapam de uma padronizaccedilatildeo cientiacutefica Situaccedilotildees como o retorno de chapa tambeacutem chamado de springback soacute satildeo soluciona-das por ferramenteiros bem experientes uma vez que os caacutelculos apenas aproximam e mesmo o uso de avanccedila-dos softwares natildeo garante a prescriccedilatildeo das medidas e de geometria necessaacuterias para a obtenccedilatildeo de peccedilas confor-me o desejado

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combinados Nestas situaccedilotildees apela-se para a destreza do ferramenteiro que lanccedila matildeo de

habilidades corporais desenvolvidas ao longo de sua vida como o tato e a visatildeo como vere-

mos no capiacutetulo seguinte

33 O GRUPO B E A EMPRESA T

O grupo empresarial que abriga a Empresa T tambeacutem dirige outras trecircs empresas to-

das voltadas para o setor de autopeccedilas As atividades que deram origem a esse grupo tiveram

o seu ponto de partida com a criaccedilatildeo de uma serralheria em 1974 que sob a iniciativa do seu

presidente um italiano ldquocarpinteiro metaacutelicordquo12 se dedicava agrave produccedilatildeo de esquadrias metaacuteli-

cas

A partir de 1980 inicia-se uma grande virada nas atividades desse grupo quando a sua

inserccedilatildeo como fornecedora para a Fiat Automoacuteveis permitiu-lhe uma orientaccedilatildeo rumo ao setor

de autopeccedilas especialmente para o trabalho de ferramentaria Instalando-se no canteiro de

obras da Fiat produzem inicialmente o quebra-vento para o automoacutevel ldquoFiat 147rdquo Em 1986

a empresa opta por um projeto de crescimento na aacuterea de ferramentaria A empresa passou a

ter o seu proacuteprio galpatildeo na regiatildeo metropolitana de Belo Horizonte aleacutem de fazer um signifi-

cativo investimento em compras de maacutequinas-ferramentas Isto lhe possibilitou ampliar a sua

produccedilatildeo fornecendo para a Fiat Automoacuteveis outras peccedilas como defletores de calor traves-

sas e bagageiros A partir desse novo momento deu-se um grande impulso por parte da em-

presa para ampliar o seu know how em ferramentaria

Agrave medida que as atividades de ferramentaria dessa empresa foram ganhando espaccedilo no

setor de autopeccedilas iniciou-se um projeto de expansatildeo que viabilizasse a incorporaccedilatildeo de no-

vas demandas de serviccedilo do setor automotivo como a montagem de conjuntos soldados de- 12 Segundo alguns trabalhadores mais antigos na empresa eacute assim que este senhor se refere a si mesmo

91

senho e projetos e outras atividades Dessa forma foi organizado um grupo13 de serviccedilos au-

tomotivos subdivididos em empresas que trabalham com ferramenaria design e autopeccedilas

com filiais em Minas Gerais Paranaacute e escritoacuterios em Satildeo Paulo e na Itaacutelia

O desenvolvimento das empresas que formam o grupo B muito embora a maior parte

de suas peccedilas fossem dirigidas para a produccedilatildeo da Fiat Automoacuteveis comeccedila a se vincular

com as demandas de outras montadoras Neste sentido a produccedilatildeo das empresas do grupo B

ganha cada vez mais sofisticaccedilatildeo teacutecnica bem como ao aumentar o volume de sua produ-

ccedilatildeo passaram a ter tambeacutem um aumento significativo no seu quadro de funcionaacuterios14

Atualmente o grupo B fornece peccedilas para as seguintes montadoras GM Mercedes

Fiat Nissam e Peugeot Aleacutem do fornecimento de peccedilas de acordo com just in time as empre-

sas do grupo ldquoBrdquo desenvolvem pesquisa e projetos sobre o leiaute de produccedilatildeo linhas de

montagem e soldagem desenvolvem e constroem protoacutetipos De acordo com o balanccedilo anual

da Gazeta Mercantil (2003)15 o grupo ldquoBrdquo eacute o quarto maior entre as autopeccedilas brasileiras

Desde 1997 o grupo B exporta suas peccedilas referentes aos carros Paacutelio e Uno para unidades da

Fiat na Argentina Turquia e Polocircnia

331 As empresas do grupo B

1) Empresa 1 Localiza-se no Centro Industrial de Contagem na grande Belo Horizon-

te Trabalha com produccedilatildeo de defletores de calor e bagageiros Possui 364 funcionaacuterios

13 Noacutes abordaremos como o grupo ldquoBrdquo 14 De acordo com vaacuterias pesquisas podemos inferir que a expansatildeo do grupo ldquoBrdquo se deu de forma articulada ao processo de reestruturaccedilatildeo produtiva promovida pelas montadoras em geral especialmente a Fiat Automoacuteveis Segundo POSTHUMA (1997) ldquoAs montadoras estatildeo diminuindo o nuacutemero de fornecedores com os quais man-tecircm um contato direto orientando-se para uma relaccedilatildeo com um grupo seleto com base em contratos mais estaacute-veis e na cooperaccedilatildeo nas aacutereas de projeto e desenvolvimento de novos produtosrdquo (p 397) Ainda segundo essa pesquisadora ldquoEm alguns casos as montadoras desenvolveram programas para intervir e ajudar os fornecedores a melhorar a sua qualidade e a modernizar seus sistemas de manufaturardquo (p 400) 15 Balanccedilo Anual da Gazeta Mercantil Satildeo Paulo 2003

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2) Empresa 2 Localiza-se tambeacutem em Contagem Trabalha com a produccedilatildeo de es-

tampados e conjuntos soldados Possui 364 funcionaacuterios

3) Empresa 3 Situa-se em Betim na Grande Belo Horizonte Trabalha com a produ-

ccedilatildeo de suspensatildeo dianteira eixo traseiro e tanques de combustiacutevel Possui 488 funcionaacuterios

4) Empresa T Localiza-se em Belo Horizonte e Contagem Eacute a ferramentaria do gru-

po trabalha com projetos e construccedilatildeo de ferramentas dispositivos de controle e montagem

Possui 232 funcionaacuterios

332 A Empresa T

A Empresa T eacute a ferramentaria do grupo B Localiza-se em Belo Horizonte e em Con-

tagem Trabalha com projetos e com a construccedilatildeo de ferramentas de estampagem e dispositi-

vos de controle e montagem A unidade de Belo Horizonte vem se inscrevendo cada vez me-

nos no processo de construccedilatildeo direta da ferramenta e se dedicando agraves chamadas usinagem ldquo2

Drdquo16 ao desenvolvimento de protoacutetipos junto aos clientes para uma ldquofuturardquo construccedilatildeo de

ferramenta A faacutebrica de Contagem responde pela maior parte de construccedilatildeo da ferramenta

uma vez que nesta unidade encontram-se a chamada usinagem ldquo3 Drdquo17 a montagem os ajus-

te da ferramenta Deve ser considerado ainda o fato de que nesta mesma planta encontra-se

tambeacutem a linha de produccedilatildeo de peccedilas conformadas pela ferramenta o que facilita o acompa-

nhamento pelo pessoal da ferramentaria sobre o ajuste final das ferramentas conhecido como

try-out

16 Segundo FERRARESI (1977) usinagem eacute uma operaccedilatildeo que confere a peccedila formas dimensotildees e acabamento () Esses trecircs itens satildeo obtidos por meio da retirada de material Jaacute a usinagem ldquo2 Drdquo eacute o trabalho que do ponto de vista da linguagem usada dentro da Empresa T corresponde agrave parte da ferramenta que natildeo tem definiraacute as formas e as medidas do produto Uma parte desse trabalho eacute terceirizada 17 Jaacute a usinagem ldquo3 Drdquo eacute exatamente aquela que iraacute gerar o produto tal como ele deve ser Esse processo tam-beacutem eacute chamado de coacutepia

93

Ainda sobre a usinagem eacute importante salientar que a empresa T dispotildee de modernas

maacutequinas operatrizes com tecnologia de ldquoCNCrdquo comandadas a partir de um sofisticado siste-

ma de CADCAMD Um outro recurso tecnoloacutegico de ponta disponiacutevel para a engenharia da

Empresa T eacute um software que simula o trabalho da ferramenta ou seja trata-se de um pro-

grama que mediante as informaccedilotildees da prescriccedilatildeo apresenta as provaacuteveis ocorrecircncias no

trabalho da ferramenta De acordo com a gerecircncia dessa empresa a estrutura tecnoloacutegica da

Empresa T eacute de certa forma uma imposiccedilatildeo posta pelo tipo de trabalho que a empresa execu-

ta e ainda daqueles trabalhos que ela pretende passar a executar Neste sentido por exemplo

a gerecircncia e os trabalhadores do ldquochatildeo de faacutebricardquo por mais de uma vez nos falaram a respei-

to da construccedilatildeo de uma ferramenta para a lateral de um carro a primeira a ser feita no Brasil

Todavia os trabalhadores quando se referiam a essa ferramenta natildeo faziam apologia agrave tecno-

logia das maacutequinas operatizes e agraves vezes pelo contraacuterio enfatizavam outros aspectos Um

ferramenteiro por exemplo fez o seguinte comentaacuterio ldquoAiacute oh Uma ferramenta difiacutecil igual

essa aqui o acabamento tem que ser dado na matildeo eacute na matildeo mesmo Eles falam que a maacutequi-

na vai substituir o homem eu natildeo acredito taacute vendo esse caso aqui a maacutequina eacute uma das me-

lhores e mesmo assim deixa certas marquinhasrdquo

Dos 232 funcionaacuterios da Empresa T cerca de 80 satildeo ferramenteiros classificados pro-

gressivamente como ferramenteiro aprendiz I II e III De acordo com o pessoal do RH a

contrataccedilatildeo de um ferramenteiro do niacutevel II e principalmente do niacutevel III eacute muito difiacutecil po-

dendo demorar meses Essa dificuldade pode ser percebida na fala dos ferramenteiros Veja-

mos o depoimento de um deles ldquoO ferramenteiro III vamos dizer assim eacute um ferramenteiro

que consegue pegar o projeto construir a ferramenta sem grandes problemas sem precisar de

toda hora ficar consultando o seu superior que seria o mestre Ele consegue sozinho tocar

uma ferramentardquo

94

333 A organizaccedilatildeo do trabalho na Empresa T

De uma forma geral como jaacute foi afirmado anteriormente o processo de trabalho de

uma ferramentaria apresenta caracteriacutesticas que favorecem pouco a divisatildeo do trabalho ou

pelo menos a divisatildeo extrema que foi preconizada pelo taylorismo A organizaccedilatildeo do trabalho

na Empresa T reflete essa caracteriacutestica de forma ambiacutegua pois ao mesmo tempo em que a

engenharia projeta uma prescriccedilatildeo do processo de trabalho que integre o ferramenteiro em boa

parte do processo de construccedilatildeo da ferramenta por outro lado ao recorrer agraves maacutequinas sofisti-

cadas essa ferramentaria tal como outras ferramentarias18 passou a retirar formalmente das

matildeos dos ferramenteiros uma parte preciosa da construccedilatildeo mecacircnica a usinagem das peccedilas

agora facilitadas pela introduccedilatildeo das maacutequinas de tipo CNC Essa ldquosaiacutedardquo do ferramenteiro de

parte da construccedilatildeo da ferramenta eacute assimilada com uma certa lamentaccedilatildeo por parte dos fer-

ramenteiros Em uma conversa durante o periacuteodo de observaccedilatildeo nessa empresa um dos fer-

ramenteiros nos disse que ldquoquando a gente trabalha em gatinho a gente se sente ferramenteiro

de verdade laacute a gente faz de tudo pega no torno na retiacutefica acaba que vocecirc usa a sua inteli-

gecircncia toda horardquo19 Um outro depoente faz o seguinte comentaacuterio

Um ferramenteiro completo eacute exatamente aquele que passa por todas as etapas de construccedilatildeo da ferramenta () Antigamente vou dar um exemplo para vocecirc um ferramenteiro fazia de tudo ele ia no torno na frezadora e usinava a peccedila dele ele fazia a montagem e ele ia para debaixo da prensa tirar o produto final Entatildeo esse sim eacute um ferramenteiro completo Hoje pelo volume de serviccedilo e pelo recurso que a gente tem um ferramenteiro natildeo passa por todas as etapas ele tinha que passar mas natildeo passa (Mestre de ferramentaria)

Do ponto de vista formal qual seja da organizaccedilatildeo do trabalho o trabalho prescrito

nessa ferramentaria natildeo eacute menos complexo do que as caracteriacutesticas dessa atividade Todavia

18 O perfil da empresas prestadoras de serviccedilos de ferramentaria In Maacutequinas e Metais ano XXXVII n 424 Aranda Editora maio 2001 19 O termo ldquogatinhardquo eacute um diminutivo do termo ldquogatardquo que na linguagem do peatildeo corresponde agrave empresa Por extensatildeo normalmente os trabalhadores de referem agraves pequenas oficinas como ldquogatinhardquo

95

antes de discutirmos a prescriccedilatildeo do trabalho nessa ferramentaria entendemos ser importante

apresentar o conjunto dessa prescriccedilatildeo por meio de uma breve perspectiva do processo de

construccedilatildeo de uma ferramenta

334 A ferramentaria como ela eacute o trabalho prescrito e o trabalho real na

ferramentaria

Ao elegermos a distacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho real como ponto de

partida para discutir os saberes taacutecitos dos ferramenteiros optamos tambeacutem por um recorte

sobre a noccedilatildeo de trabalho prescrito na empresa pesquisada pelo qual desconsideramos uma

fase desse processo onde o cliente aponta para o fabricante as suas exigecircncias e necessidades

em relaccedilatildeo agrave ferramenta encomendada o que poderia caracterizar uma prescriccedilatildeo das

montadoras para a Empresa T Dessa forma a noccedilatildeo de trabalho prescrito explorada nesta

pesquisa apareceraacute fortemente marcada pelas situaccedilotildees que remetem agrave construccedilatildeo material da

ferramenta propriamente dita

1) Usinagem ldquo2 Drdquo

A usinagem ldquo2 Drsquorsquo eacute a primeira grande etapa do processo de construccedilatildeo da ferramenta

na Empresa T cujo principal objetivo eacute retirar a parte bruta da ferramenta ateacute entatildeo apenas

um material fundido e dar-lhe uma medida de relativa precisatildeo que sirva de referecircncia para as

etapas seguintes do processo de construccedilatildeo da ferramenta Nesta fase a principal prescriccedilatildeo eacute

posta pelo desenho mecacircnico no dizer de alguns trabalhadores ou no projeto da ferramenta

como dizem outros Sobre este tipo de trabalho prescrito eacute importante esclarecer que dada a

organizaccedilatildeo do trabalho da Empresa T ela natildeo envolve muito os ferramenteiros pois as

medidas deixadas pela usinagem ldquo2 Drdquo seratildeo alteradas posteriormente Daiacute o principal

96

motivo de natildeo abordamos com profundidade as caracteriacutesticas desta parte do processo de

construccedilatildeo da ferramenta Entretanto na usinagem ldquo2Drdquo o saber taacutecito do trabalhador se faz

necessaacuterio tendo em vista as limitaccedilotildees do trabalho prescrito perante o trabalho real De uma

forma mais contundente e complexa estas limitaccedilotildees estaratildeo presentes nas outras fases de

construccedilatildeo da ferramenta o que gera a necessidade de os trabalhadores realizarem um grande

esforccedilo para compreender o trabalho prescrito adaptar essas prescriccedilotildees agraves condiccedilotildees do

trabalho real e quando for o caso identificar os erros da prescriccedilatildeo Trata-se de situaccedilotildees em

que os operadores das maacutequinas operatrizes frezadores e mandrilhadores buscam usar os seus

saberes taacutecitos para compreender mais rapidamente a prescriccedilatildeo isto eacute o desenho mecacircnico

Os saberes taacutecitos dos operadores de usnagem ldquo2 Drsquorsquo podem ser mobilizados ainda porque

que o trabalho prescrito natildeo considera aspectos como os desgastes das maacutequinas operatrizes e

ferramentas ou mesmo a temperatura ambiente que pode influenciar o comportamento fiacutesico

dos metais tais como a dilataccedilatildeo e o atrito20

2) Leiaute

Apoacutes o trabalho de usinagem ldquo2Drdquo daacute-se iniacutecio o chamado trabalho de leiaute que

basicamente eacute um trabalho de verificaccedilatildeo das medidas trabalhadas pela usinagem ldquo2Drdquo bem

como uma orientaccedilatildeo por meio de marcaccedilotildees21 para os proacuteximos passos de construccedilatildeo da

ferramenta O trabalho de leiaute tem tambeacutem como principal prescriccedilatildeo o desenho ou o

projeto da ferramenta e tal como na usinagem ldquo2 Drdquo solicita dos trabalhadores o uso de

saberes taacutecitos para interpretaacute-lo Neste sentido o trabalho real no leiaute se inscreve por

meio do saber taacutecito dos ferramenteiros dado que a prescriccedilatildeo ainda que correta eacute

dependente da experiecircncia dos ferramenteiros que identificam a localizaccedilatildeo de determinadas

20 A dilataccedilatildeo de um material pode por exemplo dificultar a mediccedilatildeo de uma peccedila principalmente se esta tiver medidas com precisatildeo em centeacutesimos de miliacutemetros Jaacute a relaccedilatildeo entre temperatura ambiente e o atrito pode exercer uma influecircncia no corte dos metais 21 Estas marcas satildeo escritas com pinceacuteis especiais delimitando por exemplo que um furo deve estar a 50 miliacute-metros da lateral direita e agrave 1000 mm do centro da ferramenta

97

medidas que agraves vezes natildeo satildeo indicadas facilmente no desenho Segundo o depoimento de um

ferramenteiro

Um projeto ruim eacute aquele projeto que igual eu te falei que tem duplicidade de coacutepias uma medida numa folha na outra folha tem outra medida projeto que natildeo apresenta muitos detalhes quando eu falo muitos detalhes vocecirc natildeo tem muitas vistas o projetista desenhou aquilo designou uma quantidade de vistas mas quanto mais ele colocar mais facilidade tem o ferramenteiro de enxergar

O projeto da ferramenta ateacute o momento em que os ferramenteiros fazem o leiaute eacute

uma prescriccedilatildeo natildeo mediada pouco interpretada ou quase ldquovirgemrdquo Neste sentido eacute possiacutevel

afirmar que a partir desta fase do processo de trabalho se evidencia mais ainda a importacircncia

do trabalho real e dos saberes taacutecitos na ferramentaria atraveacutes do leiaute feito pelos

ferramenteiros Embora o projeto da ferramenta continue sendo muito importante as medidas

indicadas pelo leiaute passam tambeacutem a orientar a construccedilatildeo da ferramenta Portanto a

partir do leiaute feito pelos ferramenteiros eacute gerada uma prescriccedilatildeo paralela e complementar

ao projeto da ferramenta especialmente para os trabalhos de preacute-montagem e de usinagem

ldquo3Drdquo

3) Preacute-montagem

O trabalho de preacute-montagem eacute a fase de construccedilatildeo da ferramenta onde de fato os

ferramenteiros usam os seus saberes taacutecitos tanto para interpretar a prescriccedilatildeo posta pelo

desenho da ferramenta ou pelo proacuteprio leiaute quanto para fazer materialmente o seu

trabalho ou seja trabalhar com as peccedilas e os equipamentos que constituiratildeo a ferramenta

Logo a partir do trabalho de preacute-montagem a distacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho

real torna-se mais complexa pois aleacutem das possibilidades de equiacutevocos nas interpretaccedilotildees do

que o desenho prescreve e o que de fato eacute feito nesta fase temos ainda um aumento dos

98

imprevistos de ordem material dado pelos meios fiacutesicos com os quais satildeo realizadas as

atividades de preacute-montagem

No caso da preacute-montagem os limites da prescriccedilatildeo perante o trabalho real satildeo postos

pelos meios fiacutesicos da seguinte forma as usinagens apesar do aparato tecnoloacutegico das

maacutequinas natildeo garantem uma precisatildeo do trabalho necessaacuterio em uma ferramenta Daiacute que

apesar do trabalho prescrito indicar atraveacutes do desenho as medidas das peccedilas ou mesmo

alguns instrumentos que podem controlar este trabalho a precisatildeo nos ajustes de centeacutesimos

de miliacutemetros soacute eacute obtida de forma manual pelos ferramenteiros Neste caso eles proacuteprios tecircm

que superar a prescriccedilatildeo do desenho da ferramenta no que se refere agrave natildeo precisatildeo das

maacutequinas e ainda agrave ausecircncia de uma prescriccedilatildeo sobre por exemplo qual pressatildeo exercer

com as matildeos sobre a peccedila que eacute objeto de trabalho ou como usar a visatildeo e o tato para

localizar a parte a ser mais trabalhada e ateacute mesmo como manipular o que foi disponibilizado

pela prescriccedilatildeo para controlar este trabalho como por exemplo as chamadas pastastintas de

estecagem22 Observamos que essa distacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho real na

empresa T aleacutem de ser conhecida pelos ferramenteiros eacute tambeacutem objeto de reflexatildeo sobre o

seu trabalho Um dos depoimentos explicita de forma exemplar essa possibilidade

Um vez aqui aconteceu o seguinte o pessoal laacute da programaccedilatildeo passou para o projeto que o tempo gasto na operaccedilatildeo de estecagem tinha de ser de mais ou menos uma hora Aiacute noacutes chamamos o nosso mestre que concordou com a gente que era pouco tempo e foi reclamar laacute na engenharia Eu soacute lembro que um rapaz laacute um teacutecnico falou que natildeo deveria ser um trabalho muito demorado porque era pouco material para ser retirado toda estecagem normalmente se retira alguns centeacutesimos ou no maacuteximo alguns deacutecimos de miliacutemetro Entatildeo um dos nossos chefes trouxe o rapaz para uma bancada e pediu para ele realizar o trabalho de ldquouma horardquo Esse cara ficou muitos dias e natildeo conseguiu estecar nem uma superfiacutecie Aiacute todos os ferramenteiros falaram o que noacutes demoramos trecircs ou quatro horas e fazemos bem feito natildeo foi feito em cinquumlenta horas (Ferramenteiro)

22 Em relaccedilatildeo a estecagem natildeo encontramos nenhuma definiccedilatildeo formalizada Entre os ferramenteiros a esteca-gem significa um trabalho de ajuste manual onde os ferramenteiros buscam deixar uma superfiacutecie plana com precisatildeo de centeacutesimos de miliacutemetro a qual natildeo eacute viabilizada por meio das maacutequinas mesmo as de CNC

99

4) Usinagem ldquo3 Drdquo

Apoacutes a preacute-montagem o processo de construccedilatildeo da ferramenta se concentra no

trabalho de usinagem de ldquo3drsquorsquo Nesta fase a ferramenta passa a ter as formas e as medidas

proacuteximas agravequelas que devem ter o produto final Embora por uma lado a usinagem dentro da

Empresa T seja de responsabilidade dos operadores das maacutequinas CNC por outro lado o tra-

balho prescrito por natildeo ser totalmente capaz de orientar essa atividade solicita uma parti-

cipaccedilatildeo do saber taacutecito dos ferramenteiros O proacuteprio leiaute realizado pelos ferramenteiros jaacute

citado anteriormente eacute uma referecircncia para a usinagem de ldquo3Drdquo uma vez que por meio do

leiaute estatildeo identificados algumas medidas de difiacutecil interpretaccedilatildeo dentro do desenho A

inserccedilatildeo de saberes taacutecitos dos ferramenteiros nesta fase menos do que sinalizar um natildeo saber

dos operadores CNC expressa a dimensatildeo do trabalho real na ferramentaria O ferramenteiro

por conhecer todo o processo de construccedilatildeo e funcionamento da ferramenta consegue abstrair

a prescriccedilatildeo neste caso o desenho com mais rapidez e ainda identificar a relaccedilatildeo da parte

usinada com o produto que seraacute produzido pela ferramenta

Dessa forma um dos limites da prescriccedilatildeo estaacute intriacutenseco agrave proacutepria formalizaccedilatildeo do

desenho pois se o trabalho de usinagem de ldquo3Drdquo desenvolve-se sobre uma ferramenta em seu

conjunto portanto portadora de vaacuterias peccedilas o desenho natildeo poderia apresentar uma ou outra

parte isolada de toda a ferramenta A usinagem ldquo3 Drdquo revela que os limites do trabalho

prescrito podem ser dados pela sua proacutepria forma qual seja um desenho sempre incompleto

onde se aponta como teoricamente deve ser construiacuteda a ferramenta Jaacute o ferramenteiro

conhecedor que eacute do trabalho real pode abstrair das partes para o todo ou do todo para as

partes do passado para o presente ou do presente para o futuro Enfim o ferramenteiro a

partir de sua experiecircncia consegue ver uma ferramenta aleacutem da que estaacute explicitada no

desenho

100

e) Acabamento

Apoacutes a usinagem ldquo3Drdquo a ferramenta retorna paras as bancadas da ferramentaria para

ser iniciado o trabalho de acabamento Nesta fase os ferramenteiros a partir do que natildeo foi

possiacutevel fazer na usinagem ldquo3 Drsquorsquo buscam definir as medidas as formas e o acabamento mais

proacuteximos do produto final Nesta parte do processo de trabalho o trabalho prescrito pode ser

tomado pelo desenho e ainda pela indicaccedilatildeo de quais pedras e lixas devem ser usadas para

obter o grau de acabamento desejado Todavia no trabalho real o acabamento solicita alguns

saberes que escapam agraves prescriccedilotildees da Empresa T Em nossa investigaccedilatildeo pudemos constatar

que a distacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho real na fase de acabamento guarda

inicialmente uma relaccedilatildeo com os limites teacutecnicos das maacutequinas CNC uma vez que apesar de

serem maacutequinas extremamente sofisticadas no trabalho de ferramentaria elas natildeo capazes de

produzir todas as medidas e os acabamentos prescritos pelo desenho Aleacutem do proacuteprio

desgaste que eacute caracteriacutestico em qualquer maquinaria as peccedilas que compotildeem uma

ferramenta normalmente possuem uma geometria complexa onde satildeo combinados por

exemplo vaacuterias curvaturas e inclinaccedilotildees Por outro lado a identificaccedilatildeo e o controle sobre do

acabamento dessas formas geomeacutetricas natildeo contam com o apoio do trabalho prescrito no

sentido de se indicar como usar o tato ou a visatildeo bem como natildeo haacute no trabalho prescrito uma

indicaccedilatildeo que relacione a pressatildeo manual exercida com a lixa ou com a pedra sobre uma

determinada peccedila e a quantidade de material que estaacute saindo e o grau de acabamento que estaacute

sendo obtido E ainda em funccedilatildeo da complexidade posta pelas formas geomeacutetricas um

gabarito usado em uma ferramenta nunca serve para se usar em outra porque uma ferramenta

nunca tem as mesmas medidas e formas daiacute que haacute pouca prescriccedilatildeo no que se refere ao uso

de gabaritos

101

f) Montagem do funcional da ferramenta

Apoacutes o trabalho de acabamento inicia-se a montagem do funcional da ferramenta

Nesta fase vaacuterias peccedilas ateacute entatildeo separadas passam a ganhar um aspecto de conjunto cujo

maior objetivo eacute colocar a ferramenta em condiccedilotildees de produzir Constatamos que a partir

desta fase do processo de trabalho os ferramenteiros passam a se preocupar mais com o

funcionamento por completo de toda a ferramenta De acordo com o depoimento de um deles

ldquoO ferramenteiro tem que enxergar tudo que compotildee a ferramenta porque vai facilitar neacute

facilita no tempo facilita numa montagem vocecirc jaacute tem o ferramental na mente vocecirc consegue

adiantar neacute antecipar muitas coisas no seu trabalhordquo

Em que pese o uso do desenho pelos ferramenteiros na montagem do funcional da

ferramenta o trabalho prescrito na empresa T por meio do proacuteprio desenho reconhece certas

imposiccedilotildees do trabalho real Dessa forma haacute no trabalho prescrito espaccedilo para os

trabalhadores agirem sobre vaacuterios pontos que satildeo enriquecidos pelo trabalho real Podemos

encontrar no projeto da ferramenta elementos como ldquodefinir furos na ferramentariardquo como

citam alguns desenhos Para alguns ferramenteiros essa ocorrecircncia indica que em um

determinado momento da construccedilatildeo da ferramenta a prescriccedilatildeo quase desaparece

Eacute eu te falo o seguinte vocecirc trabalha com o projeto ateacute um certo ponto na mon-tagem na primeira montagem ateacute ela ir para a coacutepia Depois que a ferramenta vol-ta da coacutepia o projeto jaacute nem conta tanto mais assim Tanto eacute que a linha de corte nunca eacute a primeira ela sempre tem modificaccedilatildeo ela sempre tem correccedilatildeo Por quecirc Porque a linha de corte eacute desenvolvida ela eacute uma matemaacutetica e ela natildeo bate por exemplo quando eacute feito as conferecircncias de uma aba Entatildeo aqui natildeo bate tem que fazer uma correccedilatildeo entatildeo por ele ser teoacuterico nunca bate geralmente eacute na praacutetica Na realidade o projeto numa hora dessa jaacute natildeo existe mais aiacute eacute soacute para como diz liberar o produto Entatildeo pode ser colocada uma solda naquele ponto que foi medido e detectado que a aba estaacute menor (Ferramenteiro)

O que se chama de funcional da ferramenta eacute na verdade um funcionamento improdu-

tivo isso porque a ferramenta se movimenta sem produzir peccedilas Isso porque o principal obje-

tivo desta fase de trabalho eacute garantir que os componentes da ferramenta possam ser movimen-

102

tados sem problema Neste sentido o trabalho prescrito se natildeo bastassem as possibilidades de

conter erros o trabalho prescrito tambeacutem natildeo aponta como considerar uma seacuterie de elemen-

tos presentes no trabalho real tais como o comportamento fiacutesico das chapas metaacutelicas no

momento em que seratildeo conformadas ou cortadas ou mesmo os desgastes dos componentes

mecacircnicos das prensas que podem influenciar na forccedila na pressatildeo ou no alinhamento deste

equipamento

g) Try-out

No trabalho de try-out a ferramenta que estaacute basicamente montada eacute instalada em

uma prensa e submetida a circunstacircncias proacuteximas do trabalho real qual seja da linha de pro-

duccedilatildeo Nesta fase o trabalho prescrito pela gerecircncia pode aparecer em indicaccedilotildees de laudos

obtidos a partir de sofisticadas maacutequinas que controlam as medidas das peccedilas prensadas En-

tretanto esse laudo natildeo garante ao trabalho prescrito um domiacutenio sobre o processo de trabalho

do try-out dado que esse processo proacuteximo que eacute do trabalho real guarda problemas que soacute

os saberes taacutecitos dos ferramenteiros podem solucionar Essa questatildeo incomoda tanto a gerecircn-

cia da Empresa T que eles fizeram um alto investimento na compra de um software que a par-

tir de dados do projeto da ferramenta simula o que ocorre no Try-out sem no entanto gerar

um projeto que prescinda dos saberes taacutecitos dos ferramenteiros

Segundo alguns depoimentos dos ferramenteiros eacute muito difiacutecil de se prescrever com

precisatildeo as situaccedilotildees que possam ocorrer no try-out uma vez que satildeo muitos os fenocircmenos

que envolvem o funcionamento real de ferramenta principalmente os casos ligados ao com-

portamento fiacutesico das chapas de accedilo tal como o retorno de chapa Foi possiacutevel observar pelas

frequumlentes citaccedilotildees dos ferramenteiros que esses fenocircmenos por serem de difiacutecil formaliza-

ccedilatildeo inclusive pelo conhecimento cientiacutefico fazem com que um know how adquirido na cons-

truccedilatildeo de uma ferramenta seja apenas relativo na construccedilatildeo de uma outra ferramenta O fe-

103

nocircmeno de retorno de chapa ou spring-back expressa bem essa possibilidade Trata-se de um

determinado comportamento fiacutesico da chapa onde ela deveria ter por exemplo de acordo

com a ferramenta um acircngulo de 90ordm e ao ser prensada ela pode ficar com 89ordm Em um dos

depoimentos que coletamos o retorno de chapa foi analisado da seguinte forma

O retorno de chapa eu acho que eacute o pior com certeza eacute um dos piores inimigos do ferramenteiro Natildeo tem caacutelculo um caacutelculo especificadamente para isso porque A chapa a estrutura de uma chapa hoje qualquer outro material ela tem porcenta-gem de carbono cromo ou niacutequel ela varia Nesta variaccedilatildeo nenhuma chapa vai ser exatamente igual a outra tanto eacute que noacutes temos uma ferramenta que estaacute laacute em produccedilatildeo haacute dois anos um fardo de chapa hoje exatamente especificado como se pede o cliente ela vai bater daqui a uma semana vem outro fardo e ela daacute uma rea-ccedilatildeo diferente o porque disso porque a composiccedilatildeo que a chapa tem varia o que eacute essa variaccedilatildeo Eacute a porcentagem de niacutequel cromo de ferro que a chapa tem e isso ocasiona muito o retorno de chapa O que eacute esse retorno de chapa eacute o que noacutes chamamos de sprig-back eacute exatamente a resistecircncia que a chapa tem em confor-mar a figura a figura que foi matematizada entatildeo ela resiste mais a esta situaccedilatildeo ela daacute o retorno ela volta e realmente soacute na praacutetica a gente consegue tirar isso fa-zendo exatamente o try-out (Ferramenteiro)

A dimensatildeo que o trabalho real assume na ferramentaria evidencia-se de tal forma a

partir do try-out que os ferramenteiros protagonistas deste processo prescrevem de forma

quase independente do projeto da ferramenta o que deve ser feito de significativo nas

proacuteximas fases do processo de construccedilatildeo da ferramenta quando ela retornar para as bancadas

da ferramentaria O try-out figura na ferramentaria como um laboratoacuterio por excelecircncia De

acordo com o depoimento de um ferramenteiro ldquoo try-out nada mais eacute do que o teste para

vocecirc tirar uma ferramenta uma chapa boa um produto que o cliente agrada dele entatildeo eacute soacute

mediante debaixo de prensa nada mais natildeo tem jeito e soacute assim para vocecirc ver a reaccedilatildeo da

chapardquo Um outro ferramenteiro ironizou o try-out da seguinte forma ldquoBom o try-out como

dizia um chefe que tinha aqui eacute a junccedilatildeo de vaacuterios erros ateacute chegar ao produto final quais satildeo

esses erros O projetista o ferramenteiro na construccedilatildeo o programador que natildeo soube abrir

os raios necessaacuteriosrdquo

104

h) Ajuste final da ferramenta

Apoacutes passar pelo try-out a ferramenta fica sob um trabalho de ajuste final cuja prin-

cipal prescriccedilatildeo eacute dada pelas indicaccedilotildees do try-out Nesta fase do processo de construccedilatildeo a

prescriccedilatildeo inicial soacute prevalece para se referir agrave cor que seraacute pintada a ferramenta Natildeo obstan-

te a finalizaccedilatildeo da construccedilatildeo de uma ferramenta que pode durar de cinco a oito meses gera

um acervo de documentos que se torna o chamado ldquohistoacuterico da ferramentardquo suficiente para

gerar um material de consulta o que pode ateacute subsidiar a construccedilatildeo de um know-how Entre-

tanto pelas observaccedilotildees feitas na empresa T uma simples mudanccedila do que se prescreve como

produto na ferramentaria gera novos fenocircmenos Assim por exemplo a produccedilatildeo da porta de

um automoacutevel por ter ou deixar de ter um friso muda o comportamento da chapa na hora da

prensagem o que torna o trabalho real neste setor da mecacircnica um espaccedilo de afirmaccedilatildeo de

saberes para os seus principais protagonistas os ferramenteiros

Neste capiacutetulo procuramos ao apresentar as fases de construccedilatildeo da ferramenta evi-

denciar as lacunas do trabalho prescrito perante as demandas do trabalho real na Empresa T Eacute

mister apresentar como os ferramenteiros da Empresa T buscam superar essa limitaccedilatildeo do

trabalho prescrito Eacute o que buscaremos fazer a partir do proacuteximo capiacutetulo onde analisaremos

os dados coletados em nossa pesquisa de campo

105

4 O TRABALHO REAL NA FERRAMENTARIA A HORA E A VEZ DOS

SABERES TAacuteCITOS DOS FERRAMENTEIROS

Marinheiro que natildeo sabe para onde vai tem medo do vento jaacute ouviu falar isso Pois eacute quem natildeo conhece como a ferramenta funciona soacute monta as peccedilas o ferra-menteiro natildeo ele monta mas ele usa a sua compreensatildeo se o projeto estiver ruim ele consegue fazer a ferramenta se a prensa estiver desgastada ele daacute um jeito eacute is-so aiacute

Neste capiacutetulo buscaremos fazer uma anaacutelise dos elementos coletados em nossa pes-

quisa de campo realccedilando as estrateacutegias que os ferramenteiros usam para produzir mobilizar

e formalizar os seus saberes taacutecitos

Como jaacute dissemos anteriormente os estudos oriundos do campo da ergonomia afir-

mam que o andamento de um determinado processo produtivo eacute caracterizado dentre outras

coisas por uma distacircncia entre o que eacute planejado e formalizado pela gerecircncia da empresa o

chamado trabalho prescrito e o que de fato ocorre no chatildeo de faacutebrica para que essa produccedilatildeo

seja realizada O que diz respeito ao andamento do processo produtivo e que natildeo pertence ao

domiacutenio da prescriccedilatildeo eacute chamado de trabalho real (LIMA 1998 DANIELLOU 1989) Dian-

te da insuficiecircncia do trabalho prescrito em dominar o trabalho real o andamento do processo

produtivo eacute garantido pela intervenccedilatildeo dos trabalhadores do chatildeo de faacutebrica principais prota-

gonistas do trabalho real que complementam ou superam as limitaccedilotildees do trabalho prescrito

(ARANHA 1997 SANTOS 1997)

Neste sentido para nos aproximarmos melhor dos elementos que tomamos como sen-

do os saberes taacutecitos presentes na ferramentaria entendemos que eacute necessaacuterio dividir em toacutepi-

cos as estrateacutegias que os ferramenteiros usam para produzir mobilizar e formalizar os seus

106

saberes taacutecitos Sendo assim cada uma delas seraacute discutida em toacutepicos diferentes Entretanto

eacute importante salientar que essa divisatildeo por toacutepicos natildeo significa que as estrateacutegias satildeo usadas

pelos ferramenteiros de forma independente umas das outras A nossa opccedilatildeo em estruturar a

anaacutelise dos dados dessa forma justifica-se pelo nosso interesse em tornar mais claros os ele-

mentos que encontramos em nosso campo de pesquisa sobretudo pela complexidade do traba-

lho de ferramentaria De certa forma essa opccedilatildeo de apresentar as estrateacutegias separadamente

tem um deacutebito com o cuidado que os ferramenteiros manifestaram conosco Em um dos pri-

meiros contatos que tivemos com os ferramenteiros um deles nos disse o seguinte ldquoVou te

explicar tim-tim por tim-tim mas se vocecirc natildeo souber por que eu faccedilo por que a gente tem que

improvisar vocecirc natildeo vai entender como eu faccedilordquo

Todavia tanto em nossas observaccedilotildees quanto nas entrevistas nos deparamos com si-

tuaccedilotildees em que as estrateacutegias criadas pelos ferramenteiros para produzir mobilizar e formali-

zar os seus saberes taacutecitos apareceram de forma integrada em que pese ter sido possiacutevel en-

contrar em uma mesma situaccedilatildeo de trabalho o uso destacado de uma dessas estrateacutegias Em

todo caso as estrateacutegias que os ferramenteiros criam para produzir os seus saberes taacutecitos nos

parecem antes de tudo influir e ser influenciadas pelas estrateacutegias que eles criam para mobi-

lizar e formalizar os seus saberes taacutecitos

41 AS ESTRATEacuteGIAS DOS FERRAMENTEIROS PARA PRODUZIR OS SEUS SABERES TAacuteCITOS

Conforme jaacute explicamos no primeiro capiacutetulo estamos considerando como estrateacutegias

de produccedilatildeo de saberes taacutecitos os caminhos natildeo previstos de trabalho que os ferramenteiros

desenvolvem para pocircr em uso saberes de natureza diversa em especial os saberes taacutecitos

Muito embora tiveacutessemos constatado que a Empresa T mobiliza vaacuterios recursos materiais e

humanos para o seu trabalho prescrito em nossa pesquisa de campo foi possiacutevel verificar que

107

os ferramenteiros descobrem e inventam formas de realizar o seu trabalho portanto produzem

saberes diferentes daqueles indicados pela prescriccedilatildeo Ademais os proacuteprios ferramenteiros

em seus depoimentos frequumlentemente nos disseram que o trabalho na ferramentaria sempre os

leva a ldquocriar uma forma especiacutefica de fazer as coisasrdquo como dizem uns ou a ldquobolar um certo

jeito de produzir saberesrdquo no dizer de outros Daiacute que tomamos esse ldquocerto jeito de fazer coi-

sas ou produzir saberesrdquo como estrateacutegias que os ferramenteiros criam para produzir os seus

saberes taacutecitos Identificamos as seguintes estrateacutegias de produccedilatildeo de saberes taacutecitos usadas

pelos ferramenteiros ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo ldquover o todordquo ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo e ldquome-

lhor jeito para trabalharrdquo

Se de um lado muitos autores afirmam que o trabalho eacute caracterizado por um princiacute-

pio educativo1 por outro podemos afirmar com base em nossas observaccedilotildees de campo que

as caracteriacutesticas da ferramentaria potencializam esse princiacutepio Um depoimento que obtive-

mos evidencia bem essa questatildeo

O que a gente aprende no curso de ferramentaria eacute apenas uma base para vocecirc fazer a sua inicializaccedilatildeo porque na verdade o ferramenteiro nunca se forma cada dia que se passa eacute uma escola cada dia que vocecirc vai trabalhando como ferramenteiro vai aprendendo coisas novas Uma ferramenta sempre eacute diferente vocecirc nunca que faz uma ferramenta igual agrave outra tambeacutem porque nunca se monta um carro igual ao outro Entatildeo sempre quando vocecirc lanccedila carros diferentes as ferramentas satildeo feitas diferentes vocecirc nunca repete a mesma coisa e eacute essa diversidade de ferra-mentas que faz com que seu aprendizado cada vez se diferencie mais se aprende a ter um maior jogo justamente pela diversidade do seu trabalho (Ferramenteiro)

Apresentaremos as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros para produzir os seus sabe-

res taacutecitos organizando a nossa discussatildeo respectivamente a partir dos seguintes toacutepicos

ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo ldquover o todordquo ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo e ldquomelhor jeito para traba-

lharrdquo

1 Haacute uma vasta literatura no conjunto de estudos sobre trabalho e educaccedilatildeo que se debruccedila sobre esta temaacutetica sobretudo a partir das contribuiccedilotildees de MARX e GRAMSCI

108

a) ldquoFiltragem de informaccedilotildeesrdquo

Se a literatura que discute a presenccedila de saberes no processo de trabalho a qual jaacute a-

presentamos aponta que o saber taacutecito se inscreve a partir de situaccedilotildees postas pelo trabalho

real o que de fato verificamos por outro lado em nossa pesquisa de campo foi que antes

mesmo de as demandas especiacuteficas do trabalho real se apresentarem para os ferramenteiros

eles buscam criar antecipadamente suas proacuteprias estrateacutegias para produzir saberes taacutecitos pa-

ra melhor compreender o trabalho prescrito essencialmente o desenho da ferramenta Todos

os ferramenteiros com1 que travamos contato natildeo hesitaram em dizer que o desenho de uma

ferramenta guarda um alto niacutevel de complexidade o que faz com que eles tenham que criar

saberes taacutecitos para interpretaacute-lo ainda que este desenho por se tratar de uma linguagem for-

malizada por meio de normas internacionais possa ser ensinado na escola formal Constata-

mos ainda em nossas observaccedilotildees que a interpretaccedilatildeo do desenho eacute mais tranquumlila para os

ferramenteiros mais experientes Alguns depoimentos explicitam de forma clara o ponto de

vista dos ferramenteiros sobre a necessidade de se usar os saberes taacutecitos na interpretaccedilatildeo do

desenho de uma ferramenta como forma de enfrentar a complexidade como jaacute foi dito deste

tipo de prescriccedilatildeo Vejamos

Bom na realidade esta questatildeo de projeto eacute meio complicada pelo seguinte quando a gente estuda no Senai vocecirc vecirc vocecirc lecirc desenhos e desenhos que agraves vezes eacute dese-nho de uma folha A4 no maacuteximo uma folha A3 Quando vocecirc chega na empresa do porte satildeo ferramentas grandes de ateacute 4 metros de comprimento e 20 toneladas Entatildeo vocecirc se depara agraves vezes vocecirc viu no Senai o desenho ficava numa folha A3 o desenho todo numa ferramentinha sua numa peccedila sua Quando vocecirc chega na empresa uma folha de desenho ela daacute 2 metros por um metro de altura entatildeo vocecirc natildeo consegue ver nada quando vocecirc sai do Senai vocecirc natildeo consegue ver pratica-mente nada do desenho Com o tempo vocecirc vai aprendendo a ler o desenho A ver-dade eacute o seguinte vocecirc aprende a ler desenho laacute dentro porque o Senai natildeo te daacute base nisso Pelo tipo de desenho que a gente trabalha (Ferramenteiro)

A possibilidade de que os ferramenteiros por meio de sua experiecircncia profissional

criem estrateacutegias para enfrentar a complexidade do desenho pode ser percebida em um outro

109

depoimento que demonstra inclusive uma compreensatildeo sobre o que torna difiacutecil a leitura

desse desenho

Um desenho de ferramenta ou de qualquer outra construccedilatildeo mecacircnica na matildeo de um profissional no Japatildeo na matildeo de um profissional no Brasil seraacute um desenho porque existe uma linguagem universal Entatildeo essa linguagem universal vocecirc a-prende no campo da teoria estudando o desenho mesmo dentro da escola Agora existe um viver praacutetico onde o lidar com determinadas peccedilas eacute muito importante a experiecircncia do dia-a-dia porque agraves vezes o projetista ele tem que ver muitas coisas e o nosso desenho tem um agravante muito grave que ele natildeo tem detalhes Todos os elementos da ferramentaria estatildeo desenhados num soacute desenho entatildeo a pessoa precisa enxergar todos os elementos naquele desenho de conjunto com muitas li-nhas Se vocecirc me perguntar sobre a experiecircncia eacute importante Eacute claro ueacute (Mestre de ferramentaria)

Eacute para superar a complexidade do desenho da ferramenta que os ferramenteiros aca-

bam por desenvolver estrateacutegias para produzir os saberes taacutecitos Um dos aspectos mais recor-

rentes nas falas dos nossos entrevistados daacute conta de que a dificuldade em interpretar dese-

nhos como os que satildeo usados na Empresa T refere-se ao grande nuacutemero de componentes e

por conseguinte tambeacutem agrave grande quantidade de linhas e medidas que constituem esse tipo de

prescriccedilatildeo ou como eles dizem ldquoEacute um desenho muito cheio de coisasrdquo Segundo um dos fer-

ramenteiros ldquoEacute impossiacutevel enxergar o desenho de uma vezada soacute o ferramenteiro mais espe-

cializado do mundo ele natildeo consegue enxergar de imediato tudo que o ferramental vai fazerrdquo

Em relaccedilatildeo a essa dificuldade em se compreender o trabalho prescrito sobressaem algumas

estrateacutegias desenvolvidas pelos ferramenteiros para produzir seus saberes taacutecitos como ex-

pressam alguns depoimentos

Primeiramente o ferramenteiro deve ter paciecircncia porque desenho vocecirc natildeo con-segue interpretar da primeira vez que vocecirc vecirc A cada vez que vocecirc olha vocecirc taacute identificando uma coisa nova entatildeo leva-se um tempo pra vocecirc falar assim eu tocirc sabendo tudo uma porcentagem bem grande deste desenho pra mim taacute comeccedilando a executar esse trabalho Isso pode levar uma hora duas dois dias ou ateacute mais de-pende da complexidade deste desenho e essa evoluccedilatildeo realmente vem vindo grada-tivo conhecendo pedaccedilos eacute pedaccedilos separados deste desenho Eu natildeo conseguia ver abrir o projeto e ver aquela imensidatildeo de componentes que se situam dentro deste projeto entatildeo eu fui comeccedilando por partes fui comeccedilando por legenda as coisas mais simples primeiro pra depois entrar realmente no interior da ferramen-ta realmente ver o que estaacute querendo expressar aquele monte de linha aquele de-senho pra mim (Ferramenteiro grifo nosso)

110

Outros ferramenteiros tambeacutem fizeram referecircncia agrave necessidade de se buscar uma es-

trateacutegia que lhes permitam como foi colocado pela fala anterior amenizar a confusatildeo propor-

cionada pelo grande nuacutemero de informaccedilotildees contidas no desenho Em alguns casos as falas

dos ferramenteiros notoriamente dos mais experientes apontam que a experiecircncia lhes permi-

te usar ldquomacetesrdquo para retirar do imenso repertoacuterio de informaccedilotildees posta pelo desenho aqueles

dados necessaacuterios para a realizaccedilatildeo do seu trabalho Vejamos como um dos ferramenteiros re-

latou a sua experiecircncia nessa situaccedilatildeo

Vocecirc nunca deve abrir o desenho todo A experiecircncia ajuda e muito Porque vamos assim analisar vocecirc inicia sua etapa entatildeo geralmente vocecirc jaacute sabe a linha que eacute da coluna Vocecirc consegue neacute cair direto em cima daqueles elementos que cecirc jaacute taacute traba-lhando no momento Entatildeo por exemplo vocecirc vai usar o alojamento tal vocecirc jaacute sabe bucha que taacute ali e desse jeito vocecirc consegue eliminar o que vocecirc natildeo precisa saber Entatildeo eacute mais faacutecil se vocecirc jaacute sabe vocecirc abre sua planta vocecirc observa e passa a ver o corte tal e aiacute cecirc jaacute vai direto em cima do corte C (Ferramenteiro)

Pudemos observar que as formas usadas pelos ferramenteiros para selecionar alguns

elementos fornecidos pelo desenho podem ser remetidas a uma tentativa por parte deles de

criar estrateacutegias de ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo Tomamos por ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo a

tentativa dos ferramenteiros de selecionar alguns dados de dentro do enorme repertoacuterio de in-

formaccedilotildees guardadas pela prescriccedilatildeo do desenho e pela proacutepria ferramenta Sobre essa possi-

bilidade de os ferramenteiros ldquofiltrarem informaccedilotildeesrdquo para facilitar a interpretaccedilatildeo do dese-

nho um dos nossos entrevistados nos disse que coloria com caneta hidrocor as linhas do de-

senho agrave medida que conseguia associar essas linhas com as peccedilas que compotildeem a ferramenta

Quando eu comecei a mexer com Autocad2 e quando se trabalha em Autocad se trabalha com vaacuterios leires os leires satildeo as cores das linhas cores de tamanho e es-pessura da linha Isso te ajuda a ver se aquela linha eacute uma linha de cota se aquela linha eacute uma linha do accedilo se aquela linha eacute uma linha invisiacutevel se aquela linha eacute uma linha de produto Entatildeo vocecirc vecirc isto em vaacuterios leires azul vermelho amarelo Soacute que quando vocecirc pega o desenho no papel todas as linhas satildeo pretas e por isso eacute difiacutecil distinguir as linhas Com base no Autocad eu passei a colorir os desenhos no papel e ficou mais faacutecil para interpretar as linhas (ferramenteiro)

2 Segundo FARIA (1992 p 13) CAD eacute Computer Aided Design ou desenho auxiliado por computador

111

Dessa forma tanto a complexidade de linguagem do trabalho prescrito essencialmente

o desenho quanto a sua distacircncia em relaccedilatildeo ao processo de trabalho real na empresa T levam

os ferramenteiros a construiacuterem estrateacutegias que chamamos de ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo pa-

ra produzir saberes taacutecitos Todavia se por um lado esses depoimentos demonstram que uma

atividade de trabalho complexa como a ferramentaria solicita dos ferramenteiros uma com-

preensatildeo do que eacute apontado pelo desenho portanto valorizando o trabalho prescrito por outro

lado essa busca dos ferramenteiros em compreender a prescriccedilatildeo talvez possa ser um indica-

tivo do cuidado que eles tecircm com o que de fato acontece no trabalho real

Aleacutem das estrateacutegias criadas antes mesmo de o trabalho prescrito se mostrar insufici-

ente para garantir o andamento do processo de trabalho na empresa T as nossas observaccedilotildees e

entrevistas nos permitiram identificar outras estrateacutegias que os ferramenteiros criam para pro-

duzir saberes taacutecitos como uma resposta ao trabalho prescrito que natildeo consegue dar conta de

situaccedilotildees marcadas pelo imprevisto ou por variaacuteveis ateacute previsiacuteveis mas de difiacutecil mensura-

ccedilatildeo como os desgastes das maacutequinas ou o comportamento fiacutesico das chapas de accedilo Ainda

que na empresa T como constatamos se usem sofisticadas tecnologias de CADCAMCNC3

ou de um simulador de estampagem4 o maacuteximo que se consegue eacute uma aproximaccedilatildeo com o

indicado pela prescriccedilatildeo Seguindo esta trilha pudemos observar que no trabalho real da fer-

ramentaria pesquisada a intervenccedilatildeo dos ferramenteiros eacute mediada por outras estrateacutegias de

produccedilatildeo de saberes taacutecitos

b) ldquoVer o todordquo

Se de um lado foi possiacutevel observar que em um primeiro momento do processo de

trabalho os ferramenteiros lanccedilam matildeo de estrateacutegias de ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo para os

auxiliarem na compreensatildeo do trabalho prescrito por outro lado no trabalho real de constru-

3 Este tipo de tecnologia eacute respectivamente Computer Aided Design ou Desenho Auxiliado por Computador Computer Aided Manufacturing ou Manufatura Auxiliada por Computador Controle Numeacuterico Computadoriza-do (FARIA 1992 p 13) 4 Embora natildeo tenhamos conhecido este software tomamos ciecircncia do seu uso pela engenharia Trata-se de um programa que busca apontar o possiacutevel comportamento da chapa de accedilo durante a sua transformaccedilatildeo em produto

112

ccedilatildeo da ferramenta as estrateacutegias criadas apontam para uma certa inversatildeo da estrateacutegia ante-

rior em vez de fazer uma filtragem busca-se uma associaccedilatildeo de informaccedilotildees Os ferramentei-

ros buscam criar estrateacutegias que lhes permitam integrar as partes da ferramenta em um ldquotodordquo

ou seja ir do domiacutenio das particularidades para o domiacutenio da ferramenta como um ldquotodordquo ateacute

porque como jaacute dissemos uma ferramenta eacute um conjunto de peccedilas Os ferramenteiros criam

estrateacutegias para ldquover o todordquo Chamamos de estrateacutegias de ldquover o todordquo o esforccedilo dos ferra-

menteiros para ultrapassar os limites impostos pela fragmentaccedilatildeo do conhecimento formaliza-

do no trabalho prescrito Em vaacuterios depoimentos eles indicam que uma compreensatildeo do ldquoto-

dordquo em relaccedilatildeo agrave ferramenta eacute importante para poder dar conta do trabalho real o que tem a-

inda a propriedade de fazer entender tambeacutem as particularidades da ferramenta Ao ser inda-

gado sobre a importacircncia de se ter uma visatildeo da ferramenta em seu conjunto um deles nos re-

latou o seguinte

Quando vocecirc comeccedila a montar a ferramenta sem ter essa noccedilatildeo neacute de enxergar a ferramenta trabalhando quando vocecirc comeccedila a montar a ferramenta vocecirc vai sim-plesmente montando evidenciando o que o projeto vai te mostrando vocecirc vai montando vai montando soacute que vocecirc vai montando peccedilas vai montando itens sem observar que este item que vocecirc taacute montando quando ele trabalhar quando ti-ver numa prensa trabalhando a ferramenta funcionando vocecirc pode estar simples-mente montando itens Vocecirc monta itens quando chega no final da ferramenta vo-cecirc tem todos os itens montados da ferramenta e aiacute sua ferramenta natildeo funciona (Ferramenteiro)

De uma forma geral quase todos os ferramenteiros na medida em que faziam suas

exposiccedilotildees sobre a importacircncia de se ldquover toda a ferramentardquo expressavam tambeacutem uma criacute-

tica ao trabalho prescrito que segundo eles eacute portador de visatildeo fragmentada da construccedilatildeo da

ferramenta No depoimento abaixo o ferramenteiro fala da fragmentaccedilatildeo no trabalho do pro-

jetista

Eacute noacutes temos caso neacute na nossa proacutepria empresa de que acontecem erros de deta-lhamento Quando a pessoa (o projetista) pega o desenho todo e retira soacute um item para desenhar aquele item entatildeo a pessoa tem essa dificuldade Porque a pessoa natildeo sabe a pessoa taacute vendo o desenho a pessoa vecirc o desenho em 3D agraves vezes mas a pessoa natildeo sabe como aquilo funciona ela natildeo tem vivecircncia ela natildeo vecirc como

113

aquela peccedila chega em bruto eacute montada eacute parafusada eacute copiada eacute temperada e chega na sua forma final para ser enviada Entatildeo a pessoa natildeo tem essa noccedilatildeo ela sabe que aquilo eacute um accedilo e desenha aquele accedilo Eacute o que ela sabe essa eacute a diferenccedila do desenhista (Ferramenteiro)

Em um outro depoimento um dos entrevistados ao fazer uma criacutetica ao trabalho pres-

crito apresenta elementos ainda mais contundente quanto agrave fragmentaccedilatildeo

O projetista enxerga o que estaacute fazendo dentro de uma tela de no maacuteximo 20 pole-gadas que eacute no Autocad e noacutes vemos no fiacutesico Entatildeo ele tem que imaginar um sem-fim de coisas mas ele natildeo apalpa nenhuma delas entatildeo eacute muito difiacutecil para um projetista acertar tudo A primeira coisa eacute essa Enquanto noacutes temos os outros sentidos que estatildeo a nosso favor que eacute a audiccedilatildeo o tato a visatildeo noacutes estamos vendo a peccedila noacutes estamos tateando as peccedilas e na hora que vamos manusear noacutes estamos ouvindo o barulho que a peccedila faz Ele natildeo tem nenhum desses amigos ao seu lado soacute tem soacute a visatildeo e a experiecircncia Entatildeo o que ocorre Dentre aquele sem-fim de linhas que ele taacute vendo dentro do CAD dentro da sua estaccedilatildeo de CAD por mais que ele vislumbre nunca traz a medida real eles projetam uma lateral de 5 metros dentro de uma tela de 20 polegadas (Ferramenteiro)

A partir das nossas observaccedilotildees bem como das entrevistas que realizamos eacute possiacutevel

considerar que a distacircncia de escala entre o desenho que eacute usado pelo ferramenteiro e o dese-

nho que eacute usado pelo projetista se constitua como um fator que explica por que as estrateacutegias

de produccedilatildeo de saberes taacutecitos satildeo necessaacuterias no trabalho real O que testemunha tambeacutem a

existecircncia de uma lacuna no trabalho prescrito A nosso ver essa possibilidade eacute corroborada

por algumas falas

Por mais que o projetista tente imaginar puxa vida a tela do computador eacute 40 ve-zes menor do que a ferramenta Entatildeo soacute se o cara tiver um diminutivo um proje-tor de perfil soacute que inverso na sua mente Segundo a grande maioria dos projetis-tas da atualidade natildeo foram ferramenteiros eles natildeo tiveram a base praacutetica eles ti-veram soacute a base teoacuterica entatildeo eles nunca entraram de baixo de uma prensa para ver a dificuldade que eacute estampar que eacute obter um produto Ele coloca tabelas de tole-racircncias5 mas ele na verdade nunca travou uma coluna para ver se realmente aque-la pressatildeo eacute o essencial Ele entatildeo comeccedila a trabalhar com normas que outras pes-soas fizeram mas que ele mesmo natildeo experimentou e durante o processo essa difi-culdade uma hora vai aparecer (Ferramenteiro)

5De acordo com NOVASKI (1994) toleracircncia eacute a variaccedilatildeo admissiacutevel da dimensatildeo da peccedila dada a diferenccedila entre as dimensotildees maacuteximas e miacutenimas (p 3)

114

c) ldquoVisualizaccedilatildeo em 3Drdquo

Uma outra estrateacutegia que os ferramenteiros criam para produzir os seus saberes e que

de certa forma lhes permite articular as estrateacutegias de ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo com as es-

trateacutegias para ldquover o todordquo remete ao esforccedilo que eles fazem para abstrair a ferramenta o que

eacute chamado por eles de ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo Chamaremos de estrateacutegias de ldquovisualizaccedilatildeo em

3Drdquo a projeccedilatildeo mental que os ferramenteiros fazem no sentido de imaginar a ferramenta pela

perspectiva tridimensional As vaacuterias possibilidades de ldquovisualizaccedilatildeo 3Drdquo podem correspon-

der a determinados niacuteveis de dificuldade Assim pode-se dizer que em situaccedilotildees mais sim-

ples os ferramenteiros buscam visualizar as peccedilas que compotildeem a ferramenta para localizaacute-

las espacialmente dentro do seu conjunto que eacute a proacutepria ferramenta6 De acordo com um

ferramenteiro a ldquovisualizaccedilao em 3D eacute quando vocecirc vecirc um desenho soacutelido vocecirc vecirc um cubo

vocecirc vecirc a ferramenta em soacutelido aiacute eacute muito mais faacutecil de vocecirc ter esta visualizaccedilatildeordquo Outro

ferramenteiro apresenta a sua a noccedilatildeo de ldquovisualizaccedilatildeo 3Drdquo relacionado-a com a sua experi-

ecircncia da seguinte forma

Com certeza isso acontece conosco todos os dias porque nem sempre vocecirc estaacute com o desenho em matildeos e vocecirc precisa visualizar Agraves vezes no iniacutecio do processo de construccedilatildeo vocecirc natildeo tem nem a peccedila na matildeo mas vocecirc jaacute tem o desenho Aiacute a gente jaacute comeccedila a modificar determinadas coisas soacute a partir da experiecircncia que vo-cecirc adquiriu Isso soacute eacute possiacutevel porque o ferramenteiro vecirc uma coisa bidimensional que eacute o desenho e pensa de forma tridimensional que eacute a ferramenta Pois eacute por causa disso a visualizaccedilatildeo faz do ferramenteiro mais do que um montador de peccedilas jaacute que ele vecirc ele tem ver tudo antes de funcionar

Entretanto observamos que embora a ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo seja citada por todos os

entrevistados soacute os ferramenteiros mais experientes satildeo tidos como capazes de realizaacute-la nos

niacuteveis mais complexos em que ela se apresenta Eacute o caso por exemplo do que eles chamam

de ldquosimulaccedilatildeo mental do movimento da ferramentardquo Trata-se de uma complexa estrateacutegia que

os ferramenteiros usam para aleacutem de localizar as peccedilas dentro do seu conjunto supor a sua

reaccedilatildeo em uma situaccedilatildeo de movimento ldquoEssa visatildeo de 3D noacutes temos a noccedilatildeo de funciona-

6 Mais uma vez cabe lembrar que uma ferramenta pode chegar a ter cerca de 800 componentes

115

mento da ferramenta antes mesmo dela taacute construiacuteda A gente taacute olhando o projeto e taacute conse-

guindo mentalizar a movimentaccedilatildeo de todos os componentes da ferramenta executando aque-

le trabalho que ela foi projetada para fazerrdquo E um outro depoimento completa

Eacute possiacutevel visualizar a peccedila antes dela estar terminada Tenho nove anos que eu trabalho com ferramentaria eu durante cerca de quatro anos eu via o desenho mas eu natildeo imaginava uma ferramenta em 3D Depois de uns 4 anos trabalhando em ferramentaria eu consigo analisar o projeto durante um dia dois dias analisar um projeto inteiro de 40 folhas eu consigo imaginar a ferramenta trabalhando e isso eu natildeo conseguia antes (Ferramenteiro)

Observamos que essa ldquosimulaccedilatildeo mental do movimento da ferramentardquo se manifesta

por meio da capacidade que eles possuem de ao imaginar uma ferramenta em movimento

projetar possiacuteveis defeitos no produto final

Bom quando o ferramenteiro consegue olhar o projeto e imaginar a situaccedilatildeo a fer-ramenta trabalhando ele consegue entender ele trabalha observando aquilo que taacute acontecendo ele antecipa este erro porque ele tem esse entendimento de olhar o projeto imaginar a ferramenta pronta imaginar que todos os itens da ferramenta estatildeo trabalhando Desta forma ele consegue vamos supor ele consegue entender a peccedila a ferramenta baixa a estampa aberta dessa forma natildeo aconteceu nenhum problema natildeo trombou nada a peccedila natildeo trombou nada a peccedila natildeo foi danificada a peccedila que eu falo eacute o produto (Ferramenteiro)

Em um outro exemplo

Vocecirc tem que imaginar o produto ali Ele eacute projetado em linhas que natildeo eacute em soacuteli-do soacute linha e imaginar o funcional daquilo Um bom ferramenteiro ele jaacute imagina a ferramenta produzindo O que eacute produzindo Ela estaacute debaixo da prensa e ele sa-be qual altura ela vai subir vai descer e fechar a ferramenta ele vecirc o acircngulo de saiacute-da dos retalhos ele jaacute imagina toda ela na mente O que acontece vai ter coisa que se o ferramenteiro faz exatamente igual ao projeto ele jaacute vecirc que natildeo vai funcionar (Ferramenteiro)

Ainda um outro depoimento confirma

Vocecirc natildeo tem nem a peccedila na matildeo mas vocecirc jaacute tem o desenho entatildeo a gente jaacute co-meccedila a modificar determinadas coisas soacute a partir da experiecircncia que vocecirc adquiriu Porque quando eu imagino uma peccedila eu natildeo imagino a peccedila que estaacute na minha frente imagino ela laacute na frente estampada Um painel de porta por exemplo para mim soacute vai mudar o design mas eu jaacute tenho aquela configuraccedilatildeo de que eacute uma por-ta ou uma lateral e quais satildeo os pontos que vatildeo dar mais problemas (Mestre de ferramentaria)

116

Figura 1 Desenho ldquobidimensionalrdquo de uma ferramenta

117

Apesar de que na Empresa T haacute um software que fornece um desenho em 3D os

ferramenteiros conseguem esse tipo de projeccedilatildeo por meio de uma abstraccedilatildeo ou como eles

dizem ldquovisualizando em 3Drdquo Para ilustrar a estrateacutegia de ldquovisualizar em 3Drdquo tomemos como

exemplo as Figuras 1 2 3 4 e 5 A Figura 1 corresponde ao desenho de uma ferramenta

posto em uma forma plana isto eacute bidimensional As Figuras 2 3 4 e 5 correspondem agrave Figura

1 em uma forma tridimensional Eacute importante comentar que o avanccedilo das figuras indica uma

visualizaccedilatildeo mais depurada da ferramenta ou seja para se chegar agrave visualizaccedilatildeo em 3D da

Figura 4 eacute necessaacuterio uma maior capacidade de abstraccedilatildeo do ferramenteiro

Figura 2 a 5 A mesma ferramenta vista em ldquo3Drdquo

d) ldquoMelhor jeito de trabalharrdquo

Se jaacute foi dito anteriormente que o processo de trabalho na Empresa T revela uma dis-

tacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho real foi possiacutevel observar tambeacutem que a com-

118

plexidade do trabalho real na ferramentaria ao mesmo tempo em que solicita dos ferramentei-

ros a criaccedilatildeo de estrateacutegias para produzir saberes taacutecitos acaba por lhes permitir imprimir as

suas ldquomarcasrdquo no trabalho Assim podemos afirmar que o trabalho real natildeo revela somente as

demandas teacutecnicas da produccedilatildeo mas tambeacutem alguns aspectos que estatildeo vinculados aos inte-

resses dos proacuteprios ferramenteiros Eles se manifestam por exemplo em suas preocupaccedilotildees

em fazer um trabalho mais bonito menos cansativo que os integre no coletivo de trabalho ou

mesmo que lhes permita ser menos presos agrave prescriccedilatildeo Chamamos essas estrateacutegias ldquomelhor

jeito para trabalharrdquo Ao ser indagado sobre a importacircncia da experiecircncia para o ferramentei-

ro a fala de um deles parece indicar que este tipo de recurso lhe permite ser menos ldquovigiadordquo

Acho que esse eacute o grande ponto de virada do ferramenteiro que hoje ele chama de ferramenteiro II ele sabe o jeito mais faacutecil de trabalhar O ferramenteiro III no ca-so da nossa escala da firma ele eacute um ferramenteiro que ele pode montar a ferra-menta sem o monitoramento de outra pessoa acima dele

Pudemos perceber que os ferramenteiros com certa frequumlecircncia se referem a ldquoum me-

lhor jeito de trabalharrdquo Ao indagarmos sobre o que seria esse ldquomelhor jeito de trabalharrdquo ob-

tivemos respostas de uma forma quase consensual nas quais os ferramenteiros ressaltavam

que cada profissional encontra o seu ldquomelhor jeito para trabalharrdquo Eis alguns depoimentos

Para mim o jeito mais faacutecil de trabalhar eacute quando vocecirc usa recursos para te ajudar quando vocecirc usa daquela ferramenta que estaacute ao seu redor pra taacute executando o tra-balho de uma maneira mais faacutecil eficaz Para mim eu evito fazer forccedila por isso que eu penso mais pra taacute executando esse trabalho Para mim eacute menos forccedila que esse modo me garante me garanta um niacutevel de acerto maior eacute o que eu costumo fazer (Ferramenteiro)

O uso do ldquomelhor jeito de trabalharrdquo reduz o sofrimento que estaacute presente no trabalho

do ferramenteiro

Eacute quando vocecirc trabalha muito vocecirc faz um esforccedilo fiacutesico muito grande porque vocecirc natildeo pensou antes de realizar tal tarefa natildeo pensou nos objetivos pegou o ser-viccedilo e tocou o serviccedilo soacute que na metade do caminho vocecirc vecirc que jaacute natildeo taacute compen-

119

sando mais ter tomado aquela atitude soacute que aiacute natildeo daacute mais para vocecirc voltar atraacutes vocecirc tem que continuar e terminar o serviccedilo isso eacute sofrer por causa do esforccedilo fiacute-sico que vocecirc faz (Ferramenteiro)

Esse ldquomelhor jeito de trabalharrdquo pode ser encontrado tambeacutem quando em alguns de-

poimentos os ferramenteiros mencionaram que as suas invenccedilotildees no processo de trabalho de-

vem-se a uma tentativa de realizar um trabalho com mais teacutecnica Muitas vezes essa noccedilatildeo de

um trabalho com mais teacutecnica se aproxima de uma noccedilatildeo de um trabalho mais bonito ou mais

limpo Constatamos essa possibilidade quando um ferramenteiro nos explicou a sua forma de

realizar um trabalho chamado por ele de localizaccedilatildeo de punccedilotildees Segundo ele a maioria dos

colegas fazia este trabalho usando uma massa plaacutestica Entretanto o seu ldquomelhor jeito de tra-

balharrdquo dispensava a massa plaacutestica o que fazia o trabalho ficar mais bonito e ainda natildeo o

incomodava tanto porque natildeo exalava cheiro Vejamos este depoimento

Para localizar um punccedilatildeo eu uso uma forma mais teacutecnica A outra que o pessoal usa eacute com massa plaacutestica soacute que desta forma eacute feio a massa plaacutestica eacute um produto quiacutemico e deixa marcas e aleacutem disso para vocecirc tirar o punccedilatildeo vocecirc tem que tirar a massa plaacutestica Eu natildeo gosto primeiro pelo fato do cheiro da massa plaacutestica natildeo gosto do cheiro da massa plaacutestica e segundo pelo fato do tempo que demora pra massa plaacutestica secar Por isso na minha concepccedilatildeo eacute melhor usar o reloacutegio apalpa-dor eacute mais limpo e mais bonito (Ferramenteiro)

Durante as nossas observaccedilotildees natildeo muito raro alguns ferramenteiros nos disseram

que o seu trabalho tem um lado que o aproxima do trabalho de um artesatildeo Ao falarmos sobre

isso com os ferramenteiros constatamos a busca do ldquomelhor jeito de trabalharrdquo aqui associado

a um trabalho mais bonito

O artesatildeo geralmente ele faz aquilo que estaacute na cabeccedila dele ele imagina sei laacute uma escultura um quadro sei laacute e a partir daiacute ele comeccedila a trabalhar O ferramenteiro tem que ter carinho com a peccedila ele natildeo pode chegar e jogar uma peccedila de qualquer jeito ele pode estragar uma peccedila ela fica com aspecto ruim Quatro meses de tra-balho vocecirc trabalha quatro meses para fazer uma ferramenta entatildeo de certa for-ma vocecirc jaacute estaacute habituado a todo dia chegar pro seu trabalho e vocecirc encontrar a-quelas ferramentas do seu setor Natildeo eacute que vocecirc pega amor por aquilo mas vocecirc sente prazer em fazer aquilo Um artesatildeo natildeo trabalha soacute porque tem que trabalhar ele gosta de fazer aquilo ele gosta de modelar aquilo o ferramenteiro eacute um mode-

120

lador A ferramenta em construccedilatildeo eacute a cara do ferramenteiro isso eacute dito na ferra-mentaria (grifo nosso)

Satildeo muitos os motivos que fazem do trabalho real por sua complexidade um campo

feacutertil para apresentar as estrateacutegias que os ferramenteiros criam para produzir os seus saberes

taacutecitos chamadas por noacutes de ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo ldquover o todordquo ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo

e ldquomelhor jeito de trabalharrdquo

Nossas observaccedilotildees nos permitem dizer que a complexidade do trabalho real faz com

que essas estrateacutegias de produccedilatildeo de saberes estejam intimamente articuladas com as estrateacute-

gias de mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes taacutecitos Ateacute o momento discutimos os dados

de nossa pesquisa indicando as estrateacutegias que os ferramenteiros usam para produzir os seus

saberes taacutecitos e as situaccedilotildees que convocam o uso deste tipo de saber Faz-se necessaacuterio de

agora em diante apresentar as estrateacutegias que os ferramenteiros criam para mobilizar diversos

tipos de saberes em especial os saberes taacutecitos

42 AS ESTRATEacuteGIAS DOS FERRAMENTEIROS PARA MOBILIZAR OS SEUS SABERES

Se ateacute entatildeo apresentamos as estrateacutegias para a produccedilatildeo do saber taacutecito sem nos re-

ferirmos ao conjunto de saberes que satildeo mobilizados por esse tipo de estrateacutegia eacute porque co-

mo jaacute foi dito nos preocupamos em explorar e evidenciar de maneira mais compreensiacutevel al-

gumas situaccedilotildees que convocam o saber taacutecito Todavia gostariacuteamos de chamar a atenccedilatildeo aqui

para as estrateacutegias que os ferramenteiros criam para mobilizar os seus saberes pois em nossa

pesquisa de campo deparamos com vaacuterias situaccedilotildees evidenciadas em algumas entrevistas em

que o uso de um determinado saber taacutecito demanda a mobilizaccedilatildeo de saberes de diversas or-

dens

121

Bom para mim o ferramenteiro precisa passar por todas as etapas que constituem uma ferramenta ele precisa de passar pela etapa ao contraacuterio O que eacute pelo contraacute-rio O contraacuterio eacute ele viver a faacutebrica viver o planejamento e viver a projeccedilatildeo da ferramenta entatildeo isso consiste o ferramenteiro O que eacute que ele vai ser para ele ser um bom ferramenteiro ele precisa ter estas trecircs etapas que geralmente eacute para cons-truir uma ferramenta projetar planejar a sua construccedilatildeo e saber executar esta cons-truccedilatildeo Tanto eacute que para interpretar muito bem o desenho o desenho eacute o iniacutecio de tudo se vocecirc tiver alguma duacutevida em relaccedilatildeo ao desenho vai ser complexo vocecirc in-terferir no final da ferramenta vocecirc desenvolver a ferramenta (Ferramenteiro)

Em Charlot (2000) a noccedilatildeo de mobilizaccedilatildeo relaciona-se agrave ideacuteia de movimento que de-

riva do interior das pessoas ldquomobilizar eacute pocircr recursos em movimento Mobilizar-se eacute reunir

suas forccedilas para fazer uso de si como recurso () mobilizar-se poreacutem eacute tambeacutem engajar-se

em uma atividade originada por moacutebilesrdquo (p 55) Tomamos de empreacutestimo a perspectiva de

Charlot sobre mobilizaccedilatildeo para evidenciar que os ferramenteiros trabalham recorrendo a es-

trateacutegias para mobilizar muacuteltiplos saberes Estes profissionais se mobilizam por inteiro para

construir uma ferramenta colocando em movimento estrateacutegias variadas dentre os quais pu-

demos identificar ldquorecorrer aos saberes do coletivo de trabalho lsquoesforccedilo de abstraccedilatildeorsquo lsquosaber

usar o proacuteprio corporsquo aleacutem de lsquorecorrer aos saberes cientiacuteficos e tecnoloacutegicosrsquordquo

Conforme apontamos anteriormente as nossas observaccedilotildees e entrevistas indicam que

o primeiro momento em que os saberes taacutecitos se apresentam daacute-se na tentativa por parte dos

ferramenteiros de interpretar o desenho da ferramenta Esse tipo de prescriccedilatildeo como vimos

caracteriza-se pela enorme quantidade de informaccedilotildees na forma de linhas e medidas Quase

todos os ferramenteiros disseram que aprenderam a ler um desenho mecacircnico no Senai o que

em tese demonstra que esse tipo de saber pode ser ensinado Entretanto todos eles afirmaram

que a experiecircncia com a construccedilatildeo de ferramenta eacute o elemento chave para que eles possam

aprender a interpretar o desenho que se usa na ferramentaria Segundo um dos ferramenteiros

ldquono Senai a gente aprende a matar largatixa aqui no dia-a-dia noacutes temos que aprender a ma-

tar jacareacuterdquo Em um outro depoimento mais contundente um ferramenteiro nos relatou o se-

guinte

122

O desenho sempre vai ter uma base que eacute o conhecimento teoacuterico Se vocecirc pegar um desenho em primeiro ou em terceiro diedro7 ele vai ser primeiro diedro e ter-ceiro diedro em qualquer parte do mundo A linguagem universal vocecirc aprende no campo da teoria estudando o desenho mesmo dentro da escola Agora existe um viver praacutetico eacute muito importante o lidar com determinadas peccedilas a experiecircncia do dia-a-dia porque o nosso desenho tem um agravante muito grave que ele natildeo tem detalhes Todos os elementos da ferramentaria estatildeo desenhados num soacute desenho entatildeo a pessoa precisa de enxergar todos os elementos naquele desenho de conjun-to (Ferramenteiro)

Para realizar o seu trabalho os ferramenteiros mobilizam saberes jaacute formalizados pela

ciecircncia e tecnologia bem como saberes taacutecitos que nascem na experiecircncia cotidiana indivi-

dual e coletivamente Entre os ferramenteiros que abordamos alguns natildeo tinham passado pelo

Senai ou seja natildeo tinham acessado atraveacutes da escola formal os saberes necessaacuterios agrave inter-

pretaccedilatildeo de desenho Ao longo de sua experiecircncia em chatildeo de faacutebrica eles aprenderam a mo-

bilizar saberes para interpretar o desenho e realizar o seu trabalho Apresentaremos a seguir

algumas situaccedilotildees que expressam as estrateacutegias que os ferramenteiros que passaram ou natildeo

pela escola formal criam para mobilizar os seus saberes variados

a) Recurso aos saberes do coletivo de trabalho

Pudemos observar que ao relativizarem a contribuiccedilatildeo da escola formal sempre ci-

tando o Senai e enfatizarem o papel da experiecircncia no chatildeo de faacutebrica no desenvolvimento de

um saber taacutecito que lhes permita interpretar o desenho da ferramenta os ferramenteiros se re-

feriram positivamente ao papel dos ldquosaberes do coletivo de trabalhordquo Um dos ferramenteiros

ao ser indagado sobre como conseguiu superar a sua dificuldade inicial com o desenho nos

relatou o seguinte

Houve momentos que pessoas me auxiliaram agraves vezes porque eu tive dificuldade de taacute entendendo aquelas linhas o que elas estavam querendo demonstrar para mim e agraves vezes pelo tempo por esse tempo para executar um determinado trabalho Pelo fato de eu natildeo ter aquele conhecimento ainda eu estava demorando para fazer neacute conseguir interpretar feito isso pessoas mais experientes chegam e te ajudam para

7 Segundo a explicaccedilatildeo dos ferramenteiros diedro eacute o rebatimento que se faz das vistas laterais da planta de qualquer desenho Dessa forma o chamado primeiro diedro a lateral da planta eacute projetada do lado direito jaacute no terceiro diedro a lateral da planta eacute projetada do lado esquerdo

123

que aquilo ali se consiga resolver aquela determinada tarefa (Ferramenteiro grifo nosso)

Em um outro depoimento novamente aparece uma referecircncia agrave possibilidade de os

ferramenteiros estarem aprendendo com um colega geralmente mais experiente

Na maioria das vezes quando vocecirc entra para trabalhar eles te apresentam o traba-lho vocecirc entra para trabalhar junto com alguma pessoa nunca vocecirc entra com o cargo de chefe da ferramenta Dificilmente vocecirc consegue aprender o projeto sozi-nho vocecirc comeccedila com o acompanhamento de uma pessoa que te auxilie te mostre alguns macetes para vocecirc comeccedilar a ver raacutepido uma determinada medida porque o nosso desenho eacute muito tracejado muita linha tracejada Entatildeo esse macete essa experiecircncia saber onde que taacute passando realmente a linha tracejada onde eacute que a linha eacute visiacutevel eacute que vocecirc sabe qual plano de altura que taacute a peccedila isso te confunde muito (Ferramenteiro)

Para aleacutem da interpretaccedilatildeo do desenho os ldquosaberes do coletivo de trabalhordquo satildeo tidos

pelos ferramenteiros como fundamentais para que eles se desenvolvam profissionalmente Na

empresa T de certa forma a interferecircncia dos ldquosaberes do coletivo no trabalhordquo de cada fer-

ramenteiro individualmente se vincula agrave organizaccedilatildeo do trabalho adotada pela empresa Os

ferramenteiros satildeo agrupados em ceacutelulas de forma que todos embora faccedilam diferentes traba-

lhos satildeo responsaacuteveis pela mesma ferramenta E ainda essa organizaccedilatildeo do trabalho preco-

niza uma hierarquia pela qual os ferramenteiros III coordenam e auxiliam o trabalho dos fer-

ramenteiros II sendo que estes coordenam e auxiliam o trabalho dos ferramenteiros I que

por sua vez satildeo auxiliados pelos aprendizes de ferramenteiro Foi possiacutevel constatar que essa

organizaccedilatildeo da ceacutelula natildeo impede que o mestre por exemplo faccedila interlocuccedilotildees com os a-

prendizes de ferramentaria Verificamos inclusive que uma das funccedilotildees dos mestres em fer-

ramentaria eacute acompanhar a formaccedilatildeo praacutetica dos aprendizes de ferramentaria e o do ferramen-

teiro I E ainda foi possiacutevel observar que os mestres veladamente dividem essa tarefa com

os ferramenteiros III

Apesar de a organizaccedilatildeo das ceacutelulas da ferramentaria na Empresa T obedecer a uma

oficialidade prescrita pela gerecircncia foi possiacutevel observar que entre os ferramenteiros circulam

124

normas e valores alheios ao que estaacute disponibilizado pelo trabalho prescrito que podem fun-

cionar como estrateacutegias para mobilizar saberes Segundo Daniellou Laville e Teiger (1989) a

socializaccedilatildeo de saberes entre os trabalhadores ocorre normalmente de maneira informal ou

seja natildeo-oficial Neste sentido encontramos diversas situaccedilotildees em que os ferramenteiros se

valem dos saberes do seu coletivo de trabalho para realizar uma determinada atividade cujo

conteuacutedo natildeo eacute totalmente conhecido pela gerecircncia Segundo a fala de um ferramenteiro

Tem coisa que eacute simples mas que vai te ajudar a resolver um problema complexo Muitas vezes pelo fato da sua duacutevida ser boba vocecirc fica sem jeito de perguntar o seu chefe o seu mestre vocecirc pergunta para um ferramenteiro que vocecirc confia tan-to porque ele sabe agraves vezes mais do que o mestre e porque ele natildeo vai te reprimir Inclusive jaacute aconteceu comigo um ferramenteiro experiente acaba te mostrando que a sua duacutevida natildeo era boba (Ferramenteiro)

Em um outro depoimento um ferramenteiro fez a seguinte reflexatildeo sobre os saberes

compartilhados pelos colegas de trabalho

Tem coisa que vocecirc aprende sozinho mas a ajuda dos colegas eacute importante demais Vocecirc sai igual aconteceu comigo do Senai e cai em uma ferramentaria de verdade eacute outro papo Se os ferramenteiros mais experientes natildeo te ajudarem vocecirc vai cus-tar a aprender Num eacute soacute nessa empresa natildeo eacute em qualquer outra Na ferramentaria tem coisa que parece ser mais natildeo eacute tem coisa que se vocecirc fizer igualzinho o de-senho natildeo vai funcionar Eacute por isso a ajuda dos colegas faz a diferenccedila O cara che-ga e te fala ldquoVocecirc tem fazer um aliacutevio aqui se natildeo acontece isso e issordquo Pois eacute igual eu te falei na ferramentaria por mais que vocecirc aprenda sozinho sem ajuda de um cara experiente fica complicado Eu tenho que agradecer porque sempre traba-lhei com ferramenteiro que gosta de ensinar (Ferramenteiro)

Observamos que a relaccedilatildeo dos ferramenteiros com os saberes do seu coletivo de traba-

lho natildeo eacute de simples transmissatildeo Neste sentido a constataccedilatildeo que fizemos de que os ferra-

menteiros mobilizam saberes reapropriados do seu coletivo de trabalho nos favoreceu a iden-

tificar ainda um outro tipo de mobilizaccedilatildeo de saber o ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo

b) ldquoEsforccedilo de abstraccedilatildeordquo

Ainda que possuam uma razoaacutevel compreensatildeo do trabalho prescrito os ferramentei-

ros concentram as suas estrateacutegias para mobilizar os seus saberes tambeacutem na construccedilatildeo da

125

ferramenta Em um grande nuacutemero de situaccedilotildees eles mobilizam os seus saberes taacutecitos para

ldquoajustar peccedilas para preacute-montar a ferramenta para dar acabamento e na montagem finalrdquo en-

fim para colocaacute-la em condiccedilatildeo de trabalho Os ferramenteiros elegem o ldquoesforccedilo de abstra-

ccedilatildeordquo dos movimentos da ferramenta como um recurso essencial para compreender o trabalho

prescrito Chamaremos de ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo o empenho que os ferramenteiros fazem pa-

ra associar a fala de um colega a um determinado componente ou mesmo para compreender

uma determinada situaccedilatildeo de funcionamento da ferramenta

Durante a construccedilatildeo da ferramenta o apelo a esse ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo coloca-se

tambeacutem como uma estrateacutegia de mobilizaccedilatildeo de saberes Mesmo com a ferramenta jaacute em

construccedilatildeo o recurso ao ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo eacute utilizado para que eles possam superar as

deficiecircncias do trabalho prescrito e ainda como uma forma de viabilizar a comunicaccedilatildeo entre

os colegas

Se o cara natildeo imaginar o que vocecirc estaacute falando ele natildeo enxerga ele natildeo aprende aliaacutes ele tem que enxergar para entender o que estaacute sendo falado Na ferramentaria vocecirc aprende todo dia mas o ferramenteiro experiente aprende mais Aprende mais por quecirc Porque ele enxerga mais coisas A mente do ferramenteiro tem que entrar dentro da ferramenta pelo menos comigo foi assim (Ferramenteiro)

O esforccedilo para abstrair a movimentaccedilatildeo da ferramenta pode colocar-se como um meio

de estabelecer uma complexa forma de ldquocomunicaccedilatildeo virtual com o trabalho prescritordquo Para

alguns ferramenteiros na medida em que se visualiza a ferramenta pode-se tambeacutem entender

melhor por que certas coisas satildeo exigidas na ferramenta Observamos que alguns ferramentei-

ros buscam simular um diaacutelogo com quem concebeu o trabalho prescrito qual seja o projetis-

ta da ferramenta

Quando vocecirc analisa bem o projeto vocecirc jaacute o tem em mente Sem conhecer o pro-jetista vocecirc sabe o que ele jaacute taacute pensando vocecirc jaacute sabe o que ele pensou quando projetou aquela ferramenta Por exemplo um ferramenteiro me chamou saacutebado porque ele natildeo estava conseguindo entender uma coisa Ele via aquilo no desenho mas natildeo conseguia imaginar aquilo funcionando entatildeo foi a partir desse ponto que eu peguei e noacutes sentamos juntos eu peguei e simulei eu fui desenhando e imagi-

126

nando Neste ponto eu vi o que ele tinha projetado Quando vocecirc projeta vocecirc pro-jeta as linhas e elas satildeo paradas entatildeo eu vi juntamente com ele observamos aque-la situaccedilatildeo Eu peguei e falei com ele olha o projetista ele pensou da seguinte forma ldquoessa cunha vai encostar no lado de caacute ela vai cortar do lado de caacuterdquo Natildeo necessariamente o desenho contou isso mas foi olhando o desenho e imaginando que soacute poderia considerar daquela forma ou entatildeo natildeo ia funcionar O projetista ti-nha pensado de alguma forma a gente ficou ali sentado uma meia hora mas aiacute eu consegui entender o que ele realmente pensava Ele pensava o funcionamento dessa forma e consultando outras pessoas depois para tirar as duacutevidas o pessoal da en-genharia a coisa eacute do jeito que a gente tinha imaginado (Ferramenteiro)

Ainda um outro depoimento confirma

Natildeo adianta muitas vezes vocecirc querer tomar uma decisatildeo precipitada Muitas ve-zes vocecirc tem que dar aquela paradinha para fazer uma reflexatildeo analisar direitinho muitas vezes vocecirc chega ali e opa Natildeo o que que taacute acontecendo aqui Vocecirc vai analisar se for possiacutevel vocecirc bate um papo com o outro colega ou chama o superi-or ou tal vai na engenharia Muita vezes a gente tem que procurar neacute esse povo porque vocecirc pode chegar aqui e taacute interpretando aquilo ali vocecirc taacute vendo uma for-ma mas talvez se vocecirc fala mas o que o cara estava querendo expressar o que que o cara quis determinar nisso aqui Vocecirc taacute lendo um desenho muitas vezes vocecirc precisa dessa ajuda ou vocecirc tem que saber o que o cara quis pensar o que o cara pensou (Ferramenteiro)

O ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo ao mesmo tempo em que lhes facilita compreender um de-

terminado raciociacutenio de um colega associando-o a uma situaccedilatildeo de trabalho acaba por lhes

permitir tambeacutem uma reapropriaccedilatildeo dos saberes do seu coletivo de trabalho o que lhes permi-

te uma construccedilatildeo pessoal do seu proacuteprio saber Verificamos que essa reapropriaccedilatildeo de sabe-

res manifestada pelos ferramenteiros indica tambeacutem que eles podem mobilizar saberes por

meio de uma estrateacutegia que chamamos de ldquosaber usar o corpordquo Eacute o que apresentaremos no

proacuteximo toacutepico

c) ldquoSaber usar o corpordquo

Ao tentar identificar as estrateacutegias utilizadas pelos ferramenteiros para mobilizar os

seus saberes verificamos uma frequumlente referecircncia a um certo ldquosaber usar o corpordquo no traba-

lho Conforme jaacute dissemos alguns pensadores (ARANHA 1997 SANTOS 1997) criticam as

concepccedilotildees que naturalizam os saberes taacutecitos Portanto ao abordar o saber taacutecito pelos atri-

127

butos corporais poderiacuteamos correr o risco de corroborar a loacutegica de naturalizaccedilatildeo deste tipo de

saber Natildeo obstante inuacutemeras vezes os ferramenteiros se referem ao ldquosaber usar o corpordquo co-

mo estrateacutegia fundamental para mobilizar os seus saberes taacutecitos Muitos apontam inclusive

que o uso do corpo eacute um dos aspectos que confere ao ferramenteiro uma vantagem sobre o

projetista

O projetista tem um grande problema hoje em dia Antes ele trabalhava com a prancheta agora ele trabalha no computador em uma tela de no maacuteximo 20 pole-gadas As nossas ferramentas aleacutem de ter vaacuterios componentes agraves vezes 700 ou 800 mede quase 3 ou 4 metros E tem mais no computador vocecirc natildeo pega com a matildeo natildeo ouve e natildeo vecirc direto as peccedilas Noacutes olhamos escutamos ateacute para usar a visatildeo tem macete que no computador deve ser mais difiacutecil neacute (Ferramenteiro)

Ademais pudemos constatar que esse ldquosaber usar o corpordquo eacute parte de uma trama que

envolve outros diversos saberes os quais satildeo mediados por estrateacutegias que mobilizam o cole-

tivo no trabalho a reapropriaccedilatildeo de saberes formais a memoacuteria e aspectos subjetivos como a

esteacutetica Em muitas situaccedilotildees com que nos deparamos em nosso campo de pesquisa eviden-

ciou-se que o uso do corpo pelos ferramenteiros para realizar uma determinada atividade natildeo

prescinde de outros saberes

Existe uma outra coisa chamada habilidade A habilidade do ferramenteiro se faz com os anos Para vocecirc estabelecer fazer uma correccedilatildeo de uma superfiacutecie se eu te perguntasse vocecirc compraria um carro com amassamento Natildeo Entatildeo vocecirc compra um carro com ondulaccedilatildeo De jeito nenhum Agora tem homens inclusive eu que satildeo especialistas em passar pedra para criar superfiacutecies em condiccedilotildees para quando estampar a chapa Para isso a experiecircncia eacute fundamental porque vocecirc tem que sa-ber usar a matildeo o tato e a visatildeo mas vocecirc tem que saber por que um acabamento eacute assim e assado Quando vocecirc sabe por que que uma parte da ferramenta tem um ti-po de acabamento e uma outra parte tem outro tipo fica mais faacutecil vocecirc se sente mais seguro vocecirc sabe ateacute onde daacute para inventar (Mestre de ferramentaria)

Uma outra situaccedilatildeo em que verificamos o ldquosaber usar o corpordquo deu-se a partir da ob-

servaccedilatildeo que fizemos do trabalho de um ferramenteiro tido pelos colegas como excelente

profissional para dar acabamento Ao nos aproximarmos desse profissional observamos que

ele fitava a ferramenta abaixava e levantava a cabeccedila inclinando levemente o peito para fren-

128

te Este estranho movimento nos chamou muito a atenccedilatildeo Foi quando o abordamos e ele nos

convidou a localizar um problema no acabamento de uma ferramenta Jaacute sabiacuteamos que se tra-

tava de um trabalho de acabamento e ao perguntarmos o porquecirc daqueles movimentos com o

corpo esse ferramenteiro iniciou o seu relato

Esse trabalho depende muito da visatildeo depende muito da posiccedilatildeo que vocecirc olha Taacute vendo essa quina aqui taacute vendo ela tem um raio se isso ficar errado perde o servi-ccedilo todo Soacute para vocecirc ter uma ideacuteia esse tipo de ferramenta eacute a primeira vez que eacute feita no Brasil Esse trabalho aqui as maacutequinas natildeo conseguem fazer eacute com a matildeo de um ferramenteiro que ela eacute feita Eacute igual eu te falei vocecirc tem que procurar uma posiccedilatildeo para poder enxergar os buraquinhos8 eu ateacute torccedilo um pouco a cabeccedila vou para laacute e para caacute ateacute achar um ponto para ver melhor (Ferramenteiro)

Ao ser indagado por que o seu trabalho de acabamento eacute tido como diferente dos de-

mais colegas a resposta dada por este ferramenteiro nos revela que aleacutem do ldquosaber usar o

corpordquo eles mobilizam saberes formais reapropriados da ciecircncia e tecnologia

Para dar acabamento tem um monte de conhecimento Tem uns caras que usam umas pedra mais fina porque ela corta menos e natildeo precisa a pessoa pocircr forccedila Po-de ser pouquinha forccedila se vocecirc quiser que um trabalho rende entatildeo a pessoa tem que usar uma pedra mais grossa uma sessenta dependendo do material se for mui-to duro se for material duro tem que ser uma pedra sessenta entendeu Eu aprendi uma coisa laacute na Fiat Eu faccedilo o seguinte eu uso lixa grossa e uma pedra grossa e o acabamento fica bom Porque eu faccedilo igual as maacutequinas da usinagem Para dar a-cabamento elas (as maacutequinas) trabalham com alta rotaccedilatildeo entatildeo eu passo a lixa ou a pedra com rapidez Na ferramentaria a pessoa tem que ter entusiasmo tem que gostar tem gente que natildeo gosta eacute cego quem natildeo vecirc tem gente que natildeo gosta natildeo tem entusiasmo Eu natildeo toda vida eu tive entusiasmo por ferramentaria por meca-nizaccedilatildeo pneumaacutetica graccedilas a Deus Por isso eu tocirc aiacute ateacute hoje garrado (risos) por-que eu gosto eu gosto de fazer o meu trabalho (Ferramenteiro)

Um depoimento de outro ferramenteiro aleacutem de corroborar a possibilidade de um cer-

to ldquosaber usar o corpordquo ndash no caso a visatildeo e o tato ndash ser tomado como um saber taacutecito aponta

tambeacutem a contribuiccedilatildeo de outros saberes formais como as noccedilotildees de desenho mecacircnico e de

geometria

8 Embora esse ferramenteiro e outros tenham falado em buraquinhos eacute importante esclarecer que trata-se de alteraccedilotildees de relevo da ordem de centeacutesimo de miliacutemetros ou seja dificiacutelimos de serem vistos a olho nu

129

Geralmente vocecirc olha a peccedila num plano horizontal vocecirc consegue ver que a super-fiacutecie estaacute um pouco ondulada quando a superfiacutecie estaacute com o acabamento constan-te O outro ponto eacute o horizontal quando vocecirc enxerga a peccedila entre a curvatura e o plano vocecirc natildeo consegue ver isso na terra Quando vocecirc natildeo consegue ver vocecirc tem que sentir a peccedila vocecirc vai passando a matildeo na superfiacutecie da peccedila vocecirc sabe se ela estaacute ondulada se precisa de mais acabamento e um raio por exemplo a gente chama de raio quebrado eacute quando o raio tem quina essa quina na verdade nada mais eacute do que o encontro aonde termina e onde comeccedila o desenho do raio Esse ponto tem que ter concordacircncia exata no plano se ele natildeo tem concordacircncia no plano ele vai ter quina e essa quina vocecirc soacute observa no tato vocecirc passa a matildeo e sente opa esse raio aqui estaacute precisando ter um acabamento melhor (Ferramentei-ro)

Observamos que o trabalho prescrito na Empresa T natildeo soacute reconhece a validade deste

ldquosaber usar o sentido da visatildeordquo bem como vem procurando dotar uma estrutura fiacutesica para

que ele possa ocorrer com mais facilidade Ainda tendo como base as indicaccedilotildees do depoi-

mento anterior fomos ateacute a linha do try-out da Empresa T e verificamos que haacute uma espeacutecie

de cabana equipada com lacircmpadas fluorescentes Segundo os ferramenteiros a incidecircncia de

luzes ajuda na identificaccedilatildeo dos ldquoburaquinhosrdquo na chapa praacutetica bem conhecida nas ferra-

mentarias

Jaacute passei por esta experiecircncia dentro da Fiat Tinha uma peccedila laacute a tampa traseira do Palio a primeira peccedila tava boa quando noacutes entregamos a peccedila para o pessoal da qualidade da Fiat eles pegaram a peccedila levaram ela pra debaixo do jogo de luz de-veria ter umas vinte lacircmpadas fluorescentes pegaram o oacuteleo e passaram sobre ela e olham pela horizontal eles foram observando e o pessoal foi mostrando para a gen-te olha por este ponto por este ponto dava pra ver manchas na peccedila (Ferramentei-ro)

Ainda um outro depoimento

Vocecirc olha no plano horizontal soacute que existe diferenccedila de vocecirc olhar no plano hori-zontal ou no plano vertical quando vocecirc olha a peccedila de cima pra baixo vocecirc natildeo consegue ver estas manchas se vocecirc olhar as peccedilas de cima pra baixo vocecirc natildeo tem noccedilatildeo de profundidade quando vocecirc olha a peccedila no plano horizontal vocecirc tem noccedilatildeo de profundidade Essa que eacute a diferenccedila de vocecirc olhar a peccedila no plano hori-zontal Quando vocecirc olha a peccedila assim vista grossa sem observar os pontos quando vocecirc observa os pontos no plano horizontal com noccedilatildeo de profundidade entatildeo daacute pra vocecirc ver se a peccedila estaacute ondulada ou natildeo Quando vocecirc olha por cima vocecirc natildeo vecirc que estaacute peccedila taacute ondulada entatildeo este eacute o ponto que a pessoa precisa ser um bom observador (Ferramenteiro)

130

Ao perguntarmos ao ferramenteiro como interpretar a incidecircncia das luzes sobre as pe-

ccedilas nos foi relatado que haacute uma influecircncia de saberes que circulam na ldquoescola formalrdquo como

por exemplo uma certa noccedilatildeo de oacuteptica No entanto se evidenciou tambeacutem que esses sabe-

res natildeo foram formalizados ainda pelo trabalho prescrito

Quando vocecirc passa o oacuteleo e com a luz refletida sobre ele eacute ateacute um pouco de fiacutesica neacute que eacute a refraccedilatildeo da luz e quando a luz bate sobre o oacuteleo quando vocecirc tem o mesmo plano de superfiacutecie constante essa superfiacutecie ela eacute refletida igualmente a luz eacute refletida igualmente Se vocecirc tem planos diferentes o plano superior ele eacute mais refletido o plano inferior a luz eacute refletida menor entatildeo justamente sobre esta sombra que vocecirc vecirc que a superfiacutecie natildeo taacute igual tem alguma ondulaccedilatildeo eacute justa-mente aiacute (Ferramenteiro)

e) ldquoRecurso aos saberes cientiacuteficos e tecnoloacutegicosrdquo

Haacute ainda outros tipos de saberes pertencentes ao campo da ciecircncia e da tecnologia

que satildeo mobilizados pelos ferramenteiros Alguns destes saberes jaacute foram inclusive indica-

dos em depoimentos anteriores Trata-se especialmente de saberes ligados ldquoao desenho me-

cacircnico agrave geometria agrave trigonometria e agrave tecnologia mecacircnicardquo9

Se de um lado demonstramos ao longo deste capiacutetulo que os ferramenteiros usam os

seus saberes taacutecitos para facilitar a interpretaccedilatildeo do desenho da ferramenta por outro lado a

maioria dos ferramenteiros apontam tambeacutem que conhecer as ldquonormas do desenho mecacircni-

cordquo eacute importantiacutessimo para poder interpretaacute-lo Em um depoimento nos foi relatado o seguin-

te ldquoquem natildeo souber ler o desenho dificilmente faraacute a ferramenta Apesar de que a gente a-

prende mesmo eacute na praacutetica a teoria ajuda bastante Se vocecirc jaacute sabe o que significa tal linha o

que significa tal siacutembolo eacute muito mais faacutecil para um outro cara te explicar o desenhordquo A fala

de um outro ferramenteiro aleacutem de corroborar o depoimento anterior aponta outras vanta-

gens de ter como eles dizem ldquouma base de desenho mecacircnicordquo

Se vocecirc jaacute tem uma base uma noccedilatildeo de desenho mecacircnico jaacute facilita muito O de-senho da ferramentaria eacute um desenho muito cheio de linhas e medidas Se vocecirc tem

9 Dentre os diversos processos associados agrave tecnologia mecacircnica Aqui tomaremos apenas alguns exemplos vinculados agrave usinagem agrave metrologia e agrave resistecircncia de materiais e evidentemente agrave proacutepria ferramentaria

131

essa noccedilatildeo de desenho vocecirc pode falar bem ou mal do projetista Vocecirc vai ver se ele estaacute te oferecendo tudo que ele podia te oferecer de informaccedilotildees Outra coisa importante da teoria eacute o detalhamento do desenho Vocecirc natildeo precisa ficar procu-rando uma medida porque agraves vezes o detalhe do desenho vai te explicar Entatildeo eacute bom vocecirc saber o que eacute um detalhe eacute bom ter uma certa teoria (Ferramenteiro)

Durante as nossas observaccedilotildees e tambeacutem nas entrevistas que realizamos pudemos

observar que uma boa parte dos ferramenteiros fazem valer os seus ldquosaberes de geometria e

trigonometriardquo Estes saberes nos foram explicitados ainda que somados aos saberes oriundos

da praacutetica em diversas situaccedilotildees que exigiam dos ferramenteiros a localizaccedilatildeo de uma deter-

minada medida ou de uma determinada peccedila a qual natildeo havia sido indicada pelo desenho da

ferramenta (ver Fig 6)

Apesar de ser um trabalho que pede bastante praacutetica a ferramentaria tambeacutem exi-ge uma noccedilatildeo de teoria Ontem mesmo tinha umas medidas faltando no desenho e natildeo tinha jeito de saber qual que seria essa medida porque a peccedila que seria monta-da natildeo estava pronta Eu fui e chamei o mestre da nossa ceacutelula e para adiantar o serviccedilo noacutes fizemos o caacutelculo pela trigonometria Nessa hora aleacutem da praacutetica eu ti-ve que usar a matemaacutetica a trigonometria (Ferramenteiro)

Figura 6 Croqui feito a partir de uma superposiccedilatildeo de triacircngulo retacircngulo

Em alguns casos pudemos observar que a noccedilatildeo de ldquogeometriardquo dos ferramenteiros

era enriquecida pelos saberes relacionados agrave ldquotecnologia mecacircnicardquo Essa possibilidade foi

132

constatada quando observamos que os ferramenteiros para explicar um trabalho uns aos ou-

tros mobilizam seus saberes de ldquogeometriardquo associando-os ao trabalho executado pela ferra-

menta Em um desses casos verificamos que conceitos oriundos da geometria como por e-

xemplo esquadro paralelismo ou perpendicularidade satildeo discutidos a partir da construccedilatildeo e

do funcionamento da ferramenta Vejamos um depoimento

Na ferramenta tudo depende do esquadro Eacute a partir do esquadro que a gente traba-lha todas as medidas da ferramenta Por quecirc A ferramenta faz o movimento de su-bir e descer Entatildeo ela tem que ter perpendicularidade tem que ter esquadro O que eacute um esquadro Noacutes chamamos de esquadro o encontro de duas superfiacutecies for-mando um acircngulo de 90 (graus) Aiacute eacute que eu te falo a teoria tambeacutem eacute importan-te porque se o ferramenteiro jaacute tem uma noccedilatildeo do que que eacute um esquadro na hora que ele ver ou imaginar a ferramenta trabalhando ele vai pensar no esquadro da ferramenta ele vai ficar preocupado Aiacute com certeza quando ele estiver constru-indo ele vai usar essa noccedilatildeo para controlar o seu proacuteprio trabalho (Mestre de fer-ramentaria)

Foi possiacutevel constatar tambeacutem que os ferramenteiros mobilizam um outro saber vin-

culado agrave ldquotecnologia mecacircnicardquo mais precisamente a ldquometrologiardquo parte da ciecircncia que cuida

do sistema de medidas voltadas para a construccedilatildeo (NOVASKI 1994) A mobilizaccedilatildeo dos sa-

beres vinculados agrave ldquometrologiardquo nos foi explicitada pelos ferramenteiros ao longo de toda a

construccedilatildeo da ferramenta muitas vezes associada agrave mobilizaccedilatildeo de um determinado saber taacute-

cito Segundo um ferramenteiro

O ferramenteiro tem que saber o que eacute um ajuste de precisatildeo natildeo basta ele seguir o desenho Ele tem que saber que dois centeacutesimos (de miliacutemetro) de erro pode com-prometer o funcionamento da ferramenta Por quecirc Eacute muito pouca coisa ele pode achar que natildeo errou nada Se ele entender de metrologia ele vai saber a importacircn-cia do ajuste Ateacute mesmo para criticar o desenho vocecirc tem que saber a influecircncia das medidas Eu jaacute vi acontecer o ferramenteiro tentar encaixar uma peccedila e ela natildeo entra de jeito nenhum Se tiver um centeacutesimo a mais natildeo encaixa mesmo vai te forccedilar para encaixar Se o cara conhece de ajuste de medidas ele natildeo vai forccedilar a peccedila Ele vai ajustar a medida para depois montar a peccedila (Ferramenteiro)

Para realizar o trabalho de acabamento pudemos verificar que os ferramenteiros mobi-

lizam outros saberes aleacutem daqueles oriundos da ldquometrologiardquo Observamos que para realizar

133

o acabamento eles se valem da sua percepccedilatildeo de centeacutesimos de miliacutemetros e da tecnologia de

corte da ldquousinagemrdquo

Esse trabalho de acabamento a gente tem que trabalhar buscando fazer um X tem passar a pedra sempre de forma cruzada sempre fazendo um X Sabe por quecirc Porque vocecirc nunca retira material por igual na superfiacutecie sempre sai mais de um lado do que do outro Isso acontece na maacutequina tambeacutem aliaacutes a gente soacute faz o acabamento na matildeo porque natildeo tem maacutequina que garanta dois centeacutesimos de preci-satildeo em toda superfiacutecie Se vocecirc compreender como o corte de material eacute feito na maacutequina vocecirc passa a compreender melhor como usar a pedra Entatildeo se vocecirc pas-sa a pedra em forma de X diminui a possibilidade de vocecirc passar a pedra num lu-gar soacute (Ferramenteiro)

Podemos afirmar embora esta possibilidade seja tratada com mais profundidade no

proacuteximo toacutepico que foram muitos os elementos encontrados em nossa pesquisa de campo que

demonstram que os ferramenteiros quaisquer que sejam os saberes que eles mobilizam soacute o

fazem por terem como referecircncia saberes que de alguma forma foram registrados e que por

isso mesmo podem em uma determinada circunstacircncia serem consultados ou ainda porque

foram disponibilizados por um outro colega de trabalho Dessa forma gostariacuteamos de salien-

tar que alguns saberes taacutecitos que os ferramenteiros mobilizam seratildeo mais bem percebidos

quando apresentarmos as estrateacutegias que eles criam para formalizar esses saberes

43 As ESTRATEacuteGIAS DOS FERRAMENTEIROS PARA FORMALIZAR OS SEUS SABERES TAacuteCITOS

O que eacute conhecido sempre parece sistemaacutetico provado aplicaacutevel e evidente para aquele que conhece Da mesma forma todo sistema alheio de conhecimento sem-pre parece contraditoacuterio natildeo provado inaplicaacutevel irreal e miacutestico (FLECK apud BURKE 2003)

Durante o periacuteodo em que ficamos imersos no campo de pesquisa foram muitas as ve-

zes em que os ferramenteiros sinalizaram uma preocupaccedilatildeo com a eficiecircncia ou com a vali-

dade dos seus saberes taacutecitos Constatamos tambeacutem que os ferramenteiros se mobilizavam

para tornaacute-los um objeto passiacutevel de ser comunicado de ser consultado para realizar um de-

134

terminado trabalho isto eacute um tipo de paracircmetro que de alguma forma eles pudessem usar em

situaccedilotildees futuras ou entatildeo para comunicaacute-lo aos seus pares no trabalho Ao nosso olhar esse

esforccedilo dos ferramenteiros em criar mecanismos que permitam comunicar os seus saberes taacute-

citos ou consultaacute-los quando for necessaacuterio pode ser entendido como estrateacutegias que eles

mesmos criam para formalizaacute-los De acordo com o dicionaacuterio Ferreira (1986 p 800) for-

malizar eacute ldquo[De forma + izar] vtd 1 ndash Dar forma a formar 2 ndash Realizar segundo as formulas

ou formalidades 3 ndash Executar conforme regras ou claacuteusulasrdquo Chamamos de estrateacutegias de

formalizaccedilatildeo ldquoos diaacuterios de bordo os croquis e os gabaritosrdquo que os ferramenteiros usam co-

mo forma de registrarem ou comunicarem os seus saberes taacutecitos No entanto ousaremos a-

presentar ldquoa memoacuteria e a reflexatildeordquo como uma espeacutecie de estrateacutegias particulares de formalizar

os saberes taacutecitos por parte dos ferramenteiros Eacute o que buscaremos apresentar de agora em

diante

Para Santos (1997) a imprevisibilidade e variabilidade das situaccedilotildees de trabalho a in-

fidelidade dos materiais e as vicissitudes do trabalho humano satildeo alguns dos fatores do traba-

lho real que resistem agrave formalizaccedilatildeo no trabalho prescrito Nossas observaccedilotildees no campo de

pesquisa bem como as entrevistas realizadas nos mostraram que de fato satildeo muitos os sabe-

res taacutecitos que escapam agraves estrateacutegias dos ferramenteiros em formalizaacute-los De acordo com

Santos (1997) o saber taacutecito pode ser da ordem do informalizaacutevel por dois motivos baacutesicos

Primeiro porque podem faltar na atualidade recursos de linguagem ou epistemoloacutegicos para a

formalizaccedilatildeo desse tipo de saber tal como para alguns saberes da engenharia Essa autora a-

inda fala que uma outra dificuldade em formalizar o saber taacutecito pode estar vinculada agraves bar-

reiras sociais e psiacutequicas que os trabalhadores podem ter para verbalizar uma experiecircncia En-

tretanto a proacutepria autora afirma que se de um lado isto significa que nem tudo pode ser sim-

bolizado codificado ou formalizado ldquopor outro lado demonstra que a experiecircncia deste in-

formalizaacutevel pode ser expressa em linguagens diferentes das usuaisrdquo (SANTOS 1997 p 20)

135

Santos (1997) entende que primeiro haacute saberes que ainda natildeo foram formalizados

mas que podem secirc-lo Segundo que haacute saberes que natildeo satildeo formalizaacuteveis Isto se aplica tanto

agravequeles que se inscrevem no trabalho real quanto a outros que satildeo oriundos da engenharia

De acordo com essa autora ldquoevidentemente o fato de que um saber natildeo foi ainda formalizado

natildeo significa que ele natildeo possa secirc-lo um diardquo (p 23) Santos (1997) faz uma criacutetica agrave perspec-

tiva que contesta a possibilidade de formalizaccedilatildeo dos saberes oriundos do chatildeo de faacutebrica

pois considera que tal noccedilatildeo se funda exclusivamente em um certo modelo de linguagem

proacuteprio do saber dos engenheiros ou seja do trabalho prescrito A autora aponta que um sa-

ber ainda natildeo formalizado pode se exprimir com os recursos de linguagem disponiacuteveis ao tra-

balhador da faacutebrica ou seja por linguagens que escapam ao modelo de formalizaccedilatildeo do traba-

lho prescrito pela engenharia

Como jaacute afirmamos anteriormente as estrateacutegias que os ferramenteiros usam para

formalizar os seus saberes taacutecitos se inscrevem tanto como um meio de registro desses sabe-

res quanto como uma forma de tornaacute-los comunicaacuteveis para si proacuteprio ou mesmo para o seu

coletivo de trabalho no presente ou no futuro

Dentre os vaacuterios relatos que coletamos alguns corroboram essa perspectiva apontada

por Santos (1997) de que os trabalhadores podem com sua proacutepria linguagem formalizar os

seus saberes taacutecitos Quando perguntamos aos ferramenteiros em que medida os saberes cons-

truiacutedos a partir da sua experiecircncia eram confiaacuteveis ou mesmo necessaacuterios um depoimento

nos pareceu revelador pelo seu conteuacutedo Ele indica que uma visatildeo mais ampliada do proces-

so de trabalho pode estar associada agrave capacidade dos ferramenteiros em formalizar os seus sa-

beres taacutecitos

E aiacute professor outro dia vocecirc me perguntou o que um ferramenteiro precisa saber tem um exemplo que estaacute acontecendo agora Eles estatildeo precisando da gente laacute na Fiat tem uma ferramenta dando problema laacute a linha estaacute parada Nessa hora o fer-ramenteiro natildeo pode soacute saber que o galo canta a gente tem que saber aonde o galo canta Quando a gente chegar laacute natildeo adianta falar que o produto natildeo estaacute bom a gente tem que localizar e acabar com o problema Eacute por isso que eu te falei o fer-ramenteiro completo um ferramenteiro bom natildeo eacute soacute aquele que monta as peccedilas

136

direitinho ele tem que saber o que eacute o quecirc Por que uma peccedila movimenta Ele tem que ter uma capacidade de monitorar a ferramenta quem sabe por que construiu com certeza vai ter mais facilidade para resolver qualquer problema (Ferramentei-ro)

Observamos que o uso das estrateacutegias por parte dos ferramenteiros para viabilizar a

comunicaccedilatildeo dos saberes taacutecitos no coletivo de trabalho serve tambeacutem como uma forma so-

cial de certificar a validade desse tipo de saber De certa forma isso indica que os saberes taacute-

citos dos ferramenteiros podem se inscrever a partir de uma ldquoperspectiva coletivardquo De acordo

com Collins apud Lima (1998) ldquoo saber estaacute nas situaccedilotildees no contexto em que se desenrola

a accedilatildeo o seu lugar por excelecircncia eacute o grupo social e natildeo a cabeccedila de seus membrosrdquo (p 144)

Em um depoimento que coletamos a necessidade que os ferramenteiros tecircm de se a-

poiar no seu coletivo de trabalho ao mesmo tempo em que remete agrave preocupaccedilatildeo em validar

os seus saberes taacutecitos nos revela tambeacutem a possibilidade de dar-lhes uma forma para co-

municaacute-los

O ferramenteiro nunca trabalha sozinho O que estaacute do lado de fora tem uma visatildeo do trabalho e pode ajudar o ferramenteiro que estaacute ligado diretamente trabalho Talvez uma opiniatildeo de quem estaacute do lado de fora da equipe dele que natildeo estaacute vi-vendo exatamente o trabalho mas a equipe que eacute composta por uma ceacutelula pode algueacutem chegar e dar uma opiniatildeo ele natildeo vai mudar soacute porque o outro falou os dois vatildeo discutir vatildeo saber exatamente qual que eacute melhor e vai fazer o que ele a-cha melhor (Mestre de ferramentaria)

Em um outro depoimento

Primeiro eu vou fazer uma colocaccedilatildeo eacute o seguinte quando a gente toma uma me-todologia de trabalho quando a gente de certa forma inventa o processo de traba-lho a ser feito eu particularmente nunca faccedilo isso soacute Eu tenho a minha opiniatildeo proacutepria mas sempre eu busco conselho eu busco opiniotildees de outras pessoas pra poder ver se as pessoas concordam com o meu pensamento porque a gente pode ser que esteja vendo a coisa por um lado com a opiniatildeo de outra pessoa a pessoa me apoacuteia e a gente realiza aquilo que eu imaginei ou entatildeo a pessoa me alerta so-bre determinado tipo de problema que pode acontecer se eu realmente levar em frente o que eu estou pensando sempre no meu caso eu procuro buscar opiniatildeo de outras pessoas e de preferecircncia pessoas mais experientes (Ferramenteiro)

137

A possibilidade de que a formalizaccedilatildeo dos saberes taacutecitos dos ferramenteiros dentre

outros motivos se decirc articulada ao coletivo do trabalho natildeo soacute eacute de conhecimento da empresa

T mas eacute assumida pela loacutegica do capital no sentido de melhorar o processo de trabalho Ve-

jamos a fala de um dos coordenadores da Ferramentaria

Hoje a metodologia que a gente implantou aqui na empresa eacute total liberdade do fer-ramenteiro desde de que ele discuta se tiver alguma duacutevida discuta com a chefia imediata ou colega sempre criaccedilatildeo e inovaccedilatildeo seraacute bem-vinda Mesmo se todo mundo que discutiu o assunto teve consciecircncia de que aquilo ia dar certo no final deu errado natildeo tem problema nenhum isso quer dizer que noacutes demos espaccedilo para ele criar talvez o resultado natildeo seja tatildeo satisfatoacuterio quanto imaginamos mas para outros que trabalham com certeza seraacute mais eficaz (Coordenador da ferramentaria)

a) Reflexatildeo

Aleacutem da influecircncia do coletivo de trabalho na formalizaccedilatildeo dos saberes taacutecitos mobili-

zados pelos ferramenteiros observamos que eles quase sempre submetiam estes saberes a um

ldquomomento de reflexatildeordquo o que de certa forma indica uma possibilidade de formalizaccedilatildeo Fo-

ram muitas as vezes em que nos deparamos com alguns ferramenteiros aparentemente sem

trabalhar Constatamos em alguns diaacutelogos inclusive junto agrave gerecircncia que dentro da Empresa

T esse ldquotempo paradordquo eacute tido como necessaacuterio ldquopara o tipo de trabalho que se faz na ferra-

mentariardquo Observamos que esse tempo para reflexatildeo permitia ao ferramenteiro aleacutem de uma

melhor compreensatildeo sobre o trabalho prescrito monitorar a mobilizaccedilatildeo dos seus saberes taacute-

citos e dar uma organizaccedilatildeo agraves suas ideacuteias Neste sentido torna-se exequumliacutevel por parte dos fer-

ramenteiros mobilizar saberes taacutecitos e ter uma razoaacutevel compreensatildeo sobre este processo

Essa possibilidade eacute bem explicitada nas situaccedilotildees em que os ferramenteiros manifestaram

uma sofisticada capacidade de abstraccedilatildeo ilustrada pela capacidade de fazer um trabalho e ao

mesmo tempo pensar em outro

Fazer uma coisa e estar pensando em outra eacute uma constante para o ferramenteiro porque para vocecirc realizar um trabalho vocecirc precisa pensar em como realizar o tra-balho A partir do momento que vocecirc comeccedila a realizar aquele trabalho manual de ajuste de acabamento soacute que a sua mente de certa forma estaacute um pouco vazia

138

porque aquele trabalho que vocecirc estaacute fazendo ateacute entatildeo jaacute foi projetado de como vocecirc deveria fazer Vocecirc pode estar executando da forma que vocecirc natildeo tinha pen-sado em fazer Aiacute no proacuteximo trabalho que vocecirc tem que fazer vocecirc estaacute pensando nele ainda entatildeo vocecirc estaacute executando o trabalho como vocecirc jaacute pensou em como fazer e vocecirc jaacute estaacute pensando no trabalho a ser feito Isso eacute constante (Ferramentei-ro)

Vejamos um outro depoimento

Natildeo tenha duacutevida que o ser humano tem essa capacidade de estar trabalhando e au-tomaticamente vislumbrando algo agrave frente Mas eacute interessante ressaltar que durante o processo de trabalho sua mente e sua visatildeo o seu processo de trabalho tem que estar focado na sua atividade principal Eacute loacutegico o seu ceacuterebro tem uma capacidade de comando e de raciociacutenio que eacute incalculaacutevel quem sou eu para mensurar isso Mas a atividade primaacuteria eacute que te demanda maior concentraccedilatildeo e isso natildeo te impe-de de ver outras coisas ou imaginar outras coisas mas com certeza o foco principal vocecirc estaacute concentrado na operaccedilatildeo que vocecirc estaacute executando naquela hora (Ferra-menteiro)

Ainda sobre a possibilidade de a reflexatildeo expressar uma certa formalizaccedilatildeo de saberes

Por exemplo fazer uma alteraccedilatildeo e aiacute eu pensei em como vou fazer essa alteraccedilatildeo Eu vou prender a peccedila dessa forma eu vou colocar essa broca vou furar o preacute-furo vou fazer esse furo de 17mm e vou pegar uma broca de 18mm Comeccedila a realizar o trabalho Eacute aquilo que eu falei anteriormente eu natildeo posso estar executando uma tarefa atraacutes da outra tarefa sem pensar no todo sem pensar no funcionamento E eu tenho que pensar no funcionamento Aiacute eu consigo ter soluccedilotildees para problemas fu-turos Isso jaacute estaacute na minha cabeccedila memorizado desde a primeira vez que eu fiz o trabalho e esse trabalho ficou memorizado entatildeo eu jaacute tenho uma noccedilatildeo de como realizar (Ferramenteiro)

Mesmo quando a rotina parece recobrir a capacidade de reflexatildeo podemos pensar num

conjunto de saberes acumulados portanto num niacutevel qualquer de formalizaccedilatildeo

Aiacute que eu falo tem uns pulos do gato a gente daacute uma paradinha para monitorar o que estamos fazendo quando eu falo que a gente jaacute sabe e natildeo precisa pensar de-mais eacute jeito de falar eacute claro que dou umas paradinhas soacute que pela minha experiecircn-cia eu natildeo preciso ficar uma hora duas horas pensando (Ferramenteiro)

Um outro depoimento tambeacutem expressa a possibilidade de haver como diz Schon

(2000) uma ldquoreflexatildeo no meio da accedilatildeordquo

139

A gente parte do pressuposto que toda vez que vocecirc quer ajustar uma determinada peccedila eacute porque vocecirc visa que essa peccedila eacute fundamental que ela tem acoplamento com a outra peccedila Durante o processo vocecirc vai fazendo uma microgestatildeo deste a-juste vocecirc vai passando a pasta de ajuste e a pasta de ajuste vai revelando para vo-cecirc quanto que a superfiacutecie taacute tocando se ela taacute tocando 50 da peccedila se taacute tocando 60 da peccedila cada ajuste que vocecirc vai aumentando vai chegando ateacute o limite miacute-nimo qual vocecirc precisa (Ferramenteiro grifo nosso)

Em nosso entendimento o uso da expressatildeo ldquonatildeo pensarrdquo por parte dos ferramenteiros

pode ser tomado como gastar ldquomenos tempo pensando ou pensar sem prestar muita atenccedilatildeo

neste atordquo o que envolve finalmente um tipo de ldquoreflexatildeordquo

b) Memoacuteria

Observamos ainda um outro caso que se articula com a preocupaccedilatildeo dos ferramentei-

ros com registro e comunicaccedilatildeo dos seus saberes taacutecitos e que se relaciona com as suas estra-

teacutegias de formalizaccedilatildeo desses saberes Trata-se do ldquouso da memoacuteriardquo ou dos artifiacutecios utiliza-

dos para preservaacute-la De acordo com Wisner (1987)

As tomadas de decisatildeo estatildeo longe de ser os uacutenicos componentes da atividade cog-nitiva ou mesmo os principais Existe a questatildeo das dificuldades perceptivas e das de identificaccedilatildeo e de reconhecimento O elemento mais criacutetico eacute provavelmente a memoacuteria quer seja imediata ou de longo prazo (p 175)

No que se refere aos ferramenteiros que abordamos ao mesmo tempo em que a me-

moacuteria eacute indicada por eles como um fator fundamental eles tambeacutem reconhecem os limites

da memoacuteria ou como eles proacuteprios dizem ldquoeacute difiacutecil de se guardar tudo na cabeccedilardquo Na maio-

ria dos depoimentos o uso da memoacuteria foi relacionado com a grande quantidade de compo-

nentes e informaccedilotildees contidas no desenho da ferramenta

O ferramenteiro usa muito a sua memoacuteria entatildeo ele sabe que natildeo deu certo Eacute soacute mediante a situaccedilatildeo de trabalho que ele vai lembrar porque ele tem uma etapa to-da um ferramental tem 300 500 itens eacute muita coisa pra ele lembrar mediante a si-tuaccedilatildeo eacute automaacutetico ele vai lembrar ldquoeu fiz daquele jeito deu errado agora eu fiz melhorei meu modo de pensarrdquo melhorei desenvolvi um meacutetodo melhor exata-

140

mente para aplicar na hora aquele passado vai ser apagado vai deletando a experi-ecircncia que deu errado (Ferramenteiro)

O depoimento seguinte ilustra o uso da memoacuteria como registro

Na ferramentaria um dia nunca eacute igual ao outro hoje eu tocirc mexendo com determi-nado serviccedilo pode este mesmo serviccedilo ou outro parecido voltar daqui uns anos Entatildeo eu natildeo posso simplesmente estaacute deixando aquilo pra traacutes eu tenho que guar-dar aqui na minha cabeccedila para quando eu encontrar aquela primeira dificuldade que eu tive na primeira vez Eacute esse o sentido que a gente tem de estaacute analisando um de-terminado serviccedilo e quando vocecirc torna a analisar de novo aquilo jaacute estaacute predefini-do daacute esta impressatildeo que estaacute guardado numa parte do seu ceacuterebro soacute quando vocecirc necessita que vocecirc vai laacute e resgata natildeo eacute em todo momento que vai ficar vin-do na sua cabeccedila (Ferramenteiro grifo nosso)

Verificamos ainda que os ferramenteiros em tese os mais experientes associaram o

registro por meio da ldquomemoacuteriardquo com o uso da visatildeo Ao encontrarmos um ferramenteiro com

quem jaacute viacutenhamos conversando observamos um aparente nervosismo com um colega que ha-

via mudado a sua ferramenta de posiccedilatildeo Ao justificar o porquecirc de tal nevorsismo ele acabou

por nos dizer que um colega lhe ensinou um macete para ter uma memoacuteria ldquofotograacuteficardquo atra-

veacutes de um certo jeito de olhar a ferramenta pelo melhor acircngulo

Eu sempre gosto de trabalhar com a ferramenta sempre numa posiccedilatildeo com a parte da frente virada para mim porque depois que vocecirc jaacute tem um certo contato com a ferramenta basicamente vocecirc decorou a ferramenta vocecirc quase nem olha mais o projeto Entatildeo se eu tenho sempre uma posiccedilatildeo aquela posiccedilatildeo eu decoro entatildeo agraves vezes eu brinco com os caras falo assim se eu estou nessa posiccedilatildeo olhando todos os componentes eu jaacute decorei entatildeo se eu tenho algum problema que eu natildeo consi-go resolver ele aqui agraves vezes laacute em casa pensando entatildeo eu jaacute estou em frente agrave ferramenta entatildeo aqui acontece isso ali acontece assim e tal Soacute desse jeito eu soacute trabalho com a ferramenta de frente pra mim de frente para minha bancada eacute a po-siccedilatildeo que eu trabalho Porque eu condicionei minha mente tambeacutem nisso Se eu te-nho uma dificuldade eu penso isso aqui vai nessa posiccedilatildeo ateacute mesmo pelo desenho mais para frente Vocecirc jaacute olha assim rapidinho jaacute sabe onde estaacute tal coisa (Ferra-menteiro)

Pudemos constatar que a ldquomemoacuteriardquo natildeo eacute somente uma forma passiva de subtrair in-

formaccedilotildees de um repertoacuterio dado pela experiecircncia de os ferramenteiros O uso da memoacuteria

permite ao ferramenteiro resgatar os saberes necessaacuterios agrave construccedilatildeo de uma nova ferramen-

141

ta Por isso podemos considerar a memoacuteria como parte de uma trama fundamental na forma-

lizaccedilatildeo dos saberes taacutecitos dos ferramenteiros

Gostariacuteamos de apresentar a partir de agora situaccedilotildees concretas que ao nosso ver

expressam as possibilidades dos ferramenteiros lanccedilarem matildeo de estrateacutegias mais comumente

reconhecidas no campo da linguagem para formalizarem os seus saberes taacutecitos Para aleacutem

das perspectivas anteriores de uso da memoacuteria e da reflexatildeo foi possiacutevel observar que os fer-

ramenteiros buscam formalizar os seus saberes taacutecitos principalmente por meio de ldquogabari-

tos diaacuterios de bordo e croquisrdquo que eles proacuteprios fazem

c) Diaacuterio de bordo

Como jaacute afirmamos anteriormente um dos fatores que tornam complexo o trabalho

dos ferramenteiros eacute a grande quantidade de informaccedilotildees sejam as postas pelo trabalho pres-

crito ou mesmo aquelas que tecircm a sua origem no trabalho real Constatamos que diante da ne-

cessidade de se trabalhar com um vasto repertoacuterio de informaccedilotildees e tambeacutem como jaacute foi di-

to pelo proacuteprio limite da memoacuteria em arquivar todas essas informaccedilotildees os ferramenteiros

buscam criar suas formas de registrar as situaccedilotildees que eles vivenciam Uma dessas formas de

registro eacute o chamado diaacuterio de bordo Os diaacuterios de bordo satildeo organizados quase sempre na

forma de pequenos textos registrados em blocos cadernetas ou mesmo em alguns desenhos

Em um depoimento fica explicitado como as anotaccedilotildees escritas por um ferramenteiro podem

lhe servir de registro

Eu particularmente eu anoto eu tenho como se fosse um diaacuterio de bordo onde eu anoto todas as ocorrecircncias mais importantes do meu dia-a-dia loacutegico que natildeo daacute pra gente anotar tudo mas as coisas mais importantes as decisotildees mais importan-tes do meu dia-a-dia eu sempre anoto no meu caderno e quando eu estou fora eu jaacute tive na Honda tive na Ford jaacute tive na Fiat eu sempre faccedilo um rascunhozinho para mim transcrever por meu diaacuterio de bordo isso eacute minha base de dados eacute a par-tir disso aiacute que eu vou manter certo conhecimento do trabalho a ser feito porque de certa forma vocecirc natildeo pode confiar tanto na memoacuteria entatildeo detalhes mesmo vocecirc soacute consegue se vocecirc anotar se vocecirc arquivar isso que vocecirc tomou aquela de-cisatildeo no momento (Ferramenteiro)

142

Mais adiante

Eu tento usar a minha memoacuteria para poder tentar buscar a soluccedilatildeo de certos pro-blemas e tentar reativar certos procedimentos de trabalho recentes A partir do momento que eu comecei a anotar no imediato as provas as decisotildees importantes que eu tomei as coisas que aconteciam durante a construccedilatildeo da ferramenta eu pas-sei a natildeo sobrecarregar tanto a memoacuteria com estes pontos Eu sei onde estaacute escrita determinada experiecircncia eu sei aonde tem um documento referente a um problema acontecido uma coisa que aconteceu natildeo tem que usar tanto a memoacuteria porque se natildeo se eu fizer isso eu posso estar de certa forma confundindo com o aconteci-mento que jaacute aconteceu com alguma coisa bem parecida Eu tento usar sempre al-guma coisa que eu escrevi uma coisa que eu jaacute deixei escrito (Ferramenteiro)

Chama a atenccedilatildeo tambeacutem um outro tipo de registro que nos foi revelado por esse

mesmo ferramenteiro e que vamos incluir aqui como uma modalidade de diaacuterio de bordo Tra-

ta-se de uma espeacutecie de minidicionaacuterio do tipo PortuguecircsInglecircs constituiacutedo por termos usa-

dos na ferramentaria Segundo esse ferramenteiro o seu interesse em realizar o minidicionaacuterio

deu-se a partir das aulas de inglecircs realizadas dentro da Empresa T

Nos primeiros dias do curso de inglecircs o professor pedia muito para a gente falar palavras do dia-a-dia da gente Eu fiquei curioso e usei muitas palavras da ferra-mentaria e inclusive aqui na empresa jaacute que a gente faz ferramenta para um seacuterie de montadoras tem normas em outras liacutenguas francecircs inglecircs Eu peguei e reparei que algumas palavras giacuterias da ferramentaria satildeo idecircnticas no inglecircs Depois disso eu comecei a anotar uns termos e o professor ficou interessado Entatildeo eu e ele es-tamos montando esse minidicionaacuterio (Ferramenteiro)

Aleacutem das anotaccedilotildees na forma de pequenos textos explicitadas em depoimentos anteri-

ores verificamos que as muacuteltiplas anotaccedilotildees feitas pelos ferramenteiros datildeo-se por meio de

outras linguagens tais como a matemaacutetica mais especificamente a geometria e a trigonome-

tria e ainda como veremos no proacuteximo item o croqui uma linguagem proacutexima das normas

do desenho mecacircnico Observamos ainda que essas linguagens podem ser usadas uma inde-

pendente da outra ou agraves vezes de maneira entrelaccedilada

No que se refere agrave presenccedila da ldquolinguagem matemaacutetica nas anotaccedilotildees dos ferramentei-

rosrdquo pudemos observar dentre aquelas que nos foram apresentadas que a maior parte satildeo

projeccedilotildees de um triacircngulo retacircngulo normalmente usado para dimensionar o deslocamento

de uma determinada parte da ferramenta Em uma das situaccedilotildees que presenciamos dois fer-

ramenteiros debatiam sobre o deslocamento de um componente da ferramenta na hora em que

143

a mesma estiver sendo movimentada isto eacute em funcionamento Ao nos aproximarmos desses

ferramenteiros um deles nos apresentou o problema ldquoesse tipo de ferramenta eacute muito faacutecil de

ter trombamento10 e a gente tem que dar uma estudada Isso aqui eacute igual agrave gente sempre fala

o ferramenteiro tem que imaginar a ferramenta trabalhando antes mesmo dela estar construiacute-

dardquo Ao perguntarmos se os dois se entendiam soacute simulando mentalmente a ferramenta traba-

lhando um dos ferramenteiros fez uma seacuterie de traccedilados na forma de triacircngulos retacircngulos

(Fig 7) mostrando como funciona uma movimentaccedilatildeo por cunha

Nesse caso aqui taacute vendo A gente para entender melhor para explicar para o co-lega agraves vezes eacute necessaacuterio fazer um croqui fazer um tipo de desenho soacute para ver o tanto que a peccedila vai deslocar Usando o desenho do triacircngulo daacute para ver Na ver-dade a cunha eacute um triacircngulo Se vocecirc disser que para resolver esse problema eacute bom o cara conhecer trigonometria eacute claro que ajuda mas aqui noacutes resolvemos is-so soacute simulando a movimentaccedilatildeo pelo croqui Aleacutem de resolver o problema eacute mais faacutecil para explicar (Ferramenteiro)

Figura 7 Croqui elaborado a partir de uma projeccedilatildeo simulada do deslocamen-to de triacircngulo retacircngulo

10 Os ferramenteiros chamam de trombamento quando os componentes moacuteveis da ferramenta natildeo terminam sua trajetoacuteria por trombarem literalmente em um outro componente

144

Em uma conversa com um dos mestres em ferramentaria da Empresa T ele nos rela-

tou a capacidade dos ferramenteiros em trabalhar com relaccedilotildees trigonomeacutetricas sem terem um

domiacutenio preciso dos caacutelculos dessa aacuterea ou mesmo por uma questatildeo de opccedilatildeo de trabalho

Tem serviccedilo que ele vai te exigir um caacutelculo de trigonometria mas quando o fer-ramenteiro natildeo se lembra ou natildeo sabe a foacutermula ele pode simular Por exemplo vocecirc desenha o trabalho da ferramenta depois recorta com tesoura aiacute vocecirc desce por exemplo uns 40 mm e vocecirc mede o tanto que a outra parte avanccediloursquorsquo (Mestre de ferramentaria)

d) Croquis

Muito embora desde o iniacutecio do trabalho de campo os ferramenteiros nos revelassem

uma certa necessidade de anotar algumas informaccedilotildees foi a partir do interesse de alguns deles

em nos explicar o seu trabalho que percebemos a possibilidade de eles usarem as suas anota-

ccedilotildees como um tipo de formalizaccedilatildeo que viabilizasse a comunicaccedilatildeo com seus colegas de tra-

balho Durante os vaacuterios diaacutelogos que travamos com os ferramenteiros observamos que eles

de forma insistente a todo o momento para se fazerem compreender desenhavam ldquocroquisrdquo

em papeacuteis para facilitar as suas explicaccedilotildees A partir de um determinado momento observa-

mos que mais do que uma mania os ferramenteiros elaboravam ldquocroquisrdquo ou mesmo alguns

traccedilos geomeacutetricos para se orientarem na execuccedilatildeo da sua atividade ou para facilitar a interlo-

cuccedilatildeo com um colegaVejamos um depoimento

Esse eacute um dos lados bons da ferramentaria vocecirc aprende muitas formas de pensar de fazer um trabalho diferente Soacute para te dar um exemplo tem cara aqui que te en-sina soacute com um croqui isso eacute muito comum na ferramentaria Quando tem um de-senho complicado eu falo o desenho da ferramenta eacute comum um cara mais expe-riente pegar o papel fazer um croqui e te falar oh essa peccedila aqui vai fazer esse movimento e ao mesmo tempo essa outra vai fazer isso aqui Isso ajuda demais tem hora que um papinho com um colega um croqui te ajuda sair do sufoco (Fer-ramenteiro)

145

Quando comentamos com um mestre de ferramentaria sobre a dificuldade de comuni-

caccedilatildeo de saberes entre dois ferramenteiros ainda que experientes coletamos a seguinte anaacuteli-

se

Uma coisa eacute vocecirc ter domiacutenio e conhecimento de um determinado trabalho outra coisa eacute vocecirc conseguir transmitir isso em palavras ou ateacute mesmo em accedilotildees Porque agraves vezes vocecirc pode ser muito bom para fazer e natildeo tem essa faculdade de ensinar entatildeo aleacutem de saber fazer eacute bom que vocecirc aprenda pelo menos um miacutenimo de transmitir para o outro Como Atraveacutes da fala atraveacutes de um desenho atraveacutes de um croqui atraveacutes de um exemplo agraves vezes vocecirc fazendo ateacute mesmo a primeira peccedila para que a outra pessoa que tem menos experiecircncia possa aprender com vo-cecirc (Mestre de ferramentaria grifo nosso)

Encontramos uma outra situaccedilatildeo interessante onde tambeacutem nos pareceu possiacutevel que

os ferramenteiros usem o croqui como uma estrateacutegia de formalizaccedilatildeo dos seus saberes taacuteci-

tos Em uma de nossas estadias na faacutebrica um dos ferramenteiros nos disse que um outro co-

lega lhe ajuda muito a compreender ldquoos segredos da ferramenta e da vida tambeacutemrdquo Vejamos

o relato desse ferramenteiro

Tem uma cara aqui que me ajuda muito eacute o neguinho Quando o serviccedilo daacute uma caiacuteda aqui e sobra um tempinho a gente fica fazendo uns testes com o desenho da ferramenta a gente fica fazendo croqui treinando caacutelculo O neguinho sabe muita coisa Tudo dele eacute no croqui ele quer te ensinar um caacutelculo explicar um movimen-to da ferramenta eacute no croqui Tem coisa na ferramenta que eacute difiacutecil de enxergar Pois eacute jaacute aconteceu um monte de vez eu natildeo enxergo um negoacutecio faccedilo um croqui e fico pensando como a ferramenta funciona e aos poucos a gente vai enxergando (Ferramenteiro)

Identificamos uma outra forma de anotar ou registrar dos ferramenteiros que se articu-

la com a mobilizaccedilatildeo de diversos saberes taacutecitos e que foi inclusive incorporada pelo traba-

lho prescrito na organizaccedilatildeo do trabalho da Empresa T Trata-se de um trabalho que caracteri-

zamos no capiacutetulo anterior chamado por eles de leiaute Neste tipo de trabalho os ferramen-

teiros por meio de um pincel atocircmico ou um pincel do tipo ldquomarcatudordquo fazem as suas anota-

ccedilotildees na proacutepria ferramenta indicando medidas que natildeo estatildeo claras no desenho da ferramenta

Vejamos como um dos ferramenteiros argumenta sobre a importacircncia do leiaute

146

Sempre que eu pego independente do projeto se eacute um projeto que eu estou traba-lhando ou se eacute um projeto que eu vou mandar pra usinagem eu costumo pegar as coordenadas que o operador da maacutequina vai usar Se por exemplo ele vai ter que fazer quatro furos de coluna eu pego o projeto modifico as quatro coordenadas e marco com o marca texto Porque eu vou auxiliar ele tambeacutem o operador ele natildeo precisa ficar procurando onde eacute que estaacute as coordenadas e de certa forma o dese-nho ele tem muita coordenada entatildeo ele natildeo vai errar porque se eu marquei para ele a coordenada ele jaacute sabe opa a coordenada eacute essa aqui porque fui eu que marquei Agora se ele for olhar que tem duas coordenadas com diferenccedila de cinco miliacutemetros uma do lado da outra ele pega a de baixo ele pega e matou o furo (Ferramenteiro)

Ainda sobre a importacircncia do leiaute

O leiaute eacute muito importante pode ateacute parecer bobagem mas o cara que faz o lei-aute tem que ter muita responsabilidade Aquelas marcaccedilotildees que o ferramenteiro faz na ferramenta mostra um monte de coisa coisas que agraves vezes o desenho natildeo mostra ou mostra de forma muito confusa Agora para fazer o leiaute o ferramen-teiro tem que saber ler o desenho ele tem que ter uma manha (Ferramenteiro)

Neste sentido eacute importante reafirmar que o acesso agrave linguagem no trabalho (NOU-

ROUDINE 2002) ou seja agravequela que circula entre os ferramenteiros eacute fundamental para

formalizar os saberes taacutecitos Aleacutem da constataccedilatildeo de que os ferramenteiros se valem de suas

anotaccedilotildees em variadas formas para auxiliar na formalizaccedilatildeo dos seus saberes taacutecitos verifi-

camos tambeacutem que haacute situaccedilotildees que solicitam dos ferramenteiros estrateacutegias de formalizaccedilatildeo

de saberes taacutecitos alternativas agraves suas anotaccedilotildees

e) Gabaritos

Observamos que os saberes taacutecitos mobilizados pelos ferramenteiros aleacutem de apontar

uma lacuna do trabalho prescrito acabam por lhe favorecer comunicar esses saberes com o

seu coletivo de trabalho Isso ficou constatado nos ldquogabaritosrdquo que os ferramenteiros usam pa-

ra aferir um trabalho conhecido como ajuste da ldquolinha de corte da ferramentardquo11 Constata-

11 A linha de corte eacute responsaacutevel pelas medidas que indicam onde o produto se separa da chapa em bruto Assim por exemplo se um produto a ser estampado for um disco com 100 mm de diacircmetro a linha de corte seria toda a

147

mos dada a sua recorrecircncia que estes gabaritos satildeo de certa forma consagrados pelos ferra-

menteiros para formalizar os seus saberes taacutecitos Dentre os gabaritos mais usados para servir

de paracircmetro no ajuste da linha de corte observamos o uso da ldquofita crepe do papel do tipo lsquoo-

ficiorsquo e do papel alumiacuteniordquo Esses materiais satildeo colocados sobre a linha de corte da ferramen-

ta e depois de movimentaacute-la eles verificam a sua aparecircncia Por exemplo a ldquofita creperdquo ras-

gada indica o que deve ser feito em termos de ajuste ocorrendo o mesmo se ela estiver intacta

ou esticada Em uma determinada situaccedilatildeo um ferramenteiro se dispocircs a nos demonstrar co-

mo ele usava a ldquofita creperdquo para verificar o ajuste da linha de corte Apoacutes nos mostrar o estado

em que ficou a ldquofita creperdquo e fazer a sua anaacutelise ele nos disse o seguinte ldquoViu Ela quase natildeo

foi tocada agora vocecirc pode perguntar para a maioria dos ferramenteiros aqui dentro pelo me-

nos os mais experientes tenho certeza todo mundo vai dizer para natildeo ajustar maisrdquo Este fer-

ramenteiro fez um sinal com a matildeo para que um outro ferramenteiro se aproximasse de onde

estaacutevamos e neste iacutenterim nos sugeriu que perguntaacutessemos a este ferramenteiro mostrando-

lhe a ldquofita creperdquo em que ponto estava o trabalho de ajustagem da linha de corte Apoacutes fazer-

mos a pergunta ouvimos o seguinte comentaacuterio

Pela minha praacutetica posso te dizer que esse ajuste estaacute basicamente pronto agora eacute no leiaute Vocecirc pode usar outro tipo papel sabia Eacute bom fazer esses testes Soacute com a medida do desenho natildeo daacute para dizer se taacute bom Chega uma hora que esse trabalho tem que ser devagar mesmo ah Natildeo sei se vocecirc sabe mas o corte pode ser ajustado com tinta tambeacutem Natildeo vou falar que eacute um segredo porque muito fer-ramenteiro sabe mas isso eacute soacute na praacutetica mesmo (Ferramenteiro)

Observamos que os ferramenteiros elaboram outros ldquogabaritosrdquo a partir de uma rea-

propriaccedilatildeo de ldquogabaritosrdquo postos pelo trabalho prescrito A situaccedilatildeo que melhor expressa essa

possibilidade manifestou-se tambeacutem no ajuste da linha de corte da ferramenta Primeiramen-

te este trabalho como jaacute foi dito anteriormente eacute apontado no trabalho prescrito como a ser

definido pelo ferramenteiro Segundo que em relaccedilatildeo a este tipo de trabalho existe um saber

borda externa do disco Entretanto dados os fenocircmenos fiacutesicos no comportamento da chapa de accedilo a medida da linha de corte eacute sempre objeto de estudos anaacutelises da engenharia e dos ferramenteiros

148

tido como cientiacutefico formalizado pelo trabalho prescrito em forma de tabelas que apenas se

aproximam do real Todavia o trabalho prescrito indica ainda o uso de recurso material uma

ldquopasta coloridardquo para fazer o controle desse trabalho de ajustagem da linha de corte da ferra-

menta

Eacute importante salientar que o uso desses gabaritos pelos ferramenteiros muitas vezes eacute

acompanhado do uso dos sentidos corporais tais como ldquoa visatildeo o tato e a audiccedilatildeordquo Vejamos

um depoimento de um ferramenteiro sobre a sua forma de ajustar a linha de corte da ferra-

menta

O ajuste da linha de corte eacute o seguinte no projeto as medidas estatildeo todas maiores e aiacute eacute a gente que define Soacute que o seguinte de acordo com o projeto a peccedila macho deve descer 10 miliacutemetros eu soacute desccedilo 1 mm por que no iniacutecio o ajuste entre a peccedila macho e a peccedila fecircmea estaacute muito justo pode ateacute estragar a ferramenta Antes de descer a peccedila a gente passa uma pasta vermelha em uma das partes entatildeo depois que vocecirc separa as partes uma delas fica marcada de vermelho no lugar mostrando a parte que deve ser ajustada Ai eacute que tem outro pulo do gato vocecirc natildeo ir soacute pela marca vermelha porque tem diferenccedila tem um vermelho que eacute mais fraco outro mais escuro ou mais forte E daiacute Acontece que se o cara natildeo for maldoso natildeo for experiente ele natildeo repara direito que tem mais de um vermelho e tira co-mo base o vermelho fraco ele soacute vai ver esse erro na hora que a peccedila sair com rebarba Ele vai dizer que fez tudo certo e fez mesmo soacute que ele natildeo viu ou natildeo sabe que de acordo com a pressatildeo do ajuste a cor da pasta muda (Ferramenteiro)

Ao comentar o que o teria levado a desenvolver esse tipo de saber este ferramenteiro

nos relatou o seguinte

Eacute depois que eu matei algumas eu aprendi isso eu passei a deixar bem escuro porque eu sei que estaacute forccedilando agraves vezes ateacute range na entrada O que eacute ranger Eacute quando a peccedila entra raspando outra peccedila tocando a outra peccedila forccedilando mesmo Entatildeo vocecirc percebe que tem interferecircncia eacute uma peccedila empurrando a outra se natildeo range eacute o quecirc Estaacute uma passando bem proacutexima da outra mas sem tocar sem es-barrar Entatildeo aquele vermelho fica escuro porque uma peccedila toca a outra com muita forccedila (Ferramenteiro)

De um modo geral os ferramenteiros demonstraram que o uso de um determinado sa-

ber taacutecito eacute mediado por estrateacutegias de formalizaccedilatildeo dos seus saberes taacutecitos que dentre ou-

tros objetivos coloca-se como uma forma de os deixar mais seguros no uso destes saberes

Um dos nossos entrevistados ao tentar explicar o porquecirc da sua confianccedila na coloraccedilatildeo das

149

peccedilas acabou por nos indicar mais elementos que vinculam o uso de sentidos do corpo com

momentos de abstraccedilatildeo sobre o funcionamento da ferramenta

Isso eacute garantido mesmo natildeo falha natildeo Vocecirc pode usar a tinta vermelha ou a azul A tinta azul eacute bom para trabalhar agrave noite porque o azul quando ele passa uma parte para outra forccedilando mesmo para rangir ele fica branco entatildeo ele mostra a parte do accedilo que estaacute refilado O vermelho para o dia eacute melhor porque ele fica preto entatildeo eacute mais faacutecil identificar o preto do vermelho entatildeo vocecirc sabe que ali tem uma parte-zinha para sair Para um ferramenteiro experiente eacute bem faacutecil porque natildeo tem co-mo errar a diferenccedila de coloraccedilatildeo ela eacute bem notoacuteria entatildeo o ferramenteiro ele sabe distinguir o vermelho normal que foi a tinta que ele passou inicialmente e o ver-melho escuro que eacute onde estaacute refilando que eacute onde deveria ser tirado (Ferramen-teiro)

Por outro lado observamos ainda que os ferramenteiros mesmo se valendo dos ldquodiaacute-

rios de bordo dos croquisrdquo ou dos seus ldquogabaritosrdquo apresentam um certo desconforto diante

da complexidade do trabalho de ferramentaria

Esse eacute o sofrimento do ferramenteiro ele soacute vai ter certeza daquilo que ele fez mediante ao resultado Se ele estaacute em duacutevida todos noacutes temos duacutevidas mas vocecirc tem que executar pra saber se realmente aquilo vai ser um resultado satisfatoacuterio Existem situaccedilotildees que natildeo tem jeito de fazer um raio o modelo do carro que eles estatildeo querendo o ferramental natildeo consegue executar por isso que tem que ter todo um processo antes disto que eacute o processo de protoacutetipo para saber se realmente vai conseguir fazer (Ferramenteiro)

Se em alguns depoimentos os ferramenteiros lamentam que a certeza na ferramenta-

ria soacute eacute dada pelo produto final por outro lado percebemos tambeacutem que eles valorizam a

sua praacutetica no chatildeo de faacutebrica como um momento educativo ldquoO ferramenteiro aprende todo

diardquo Dessa forma o ldquover na praacuteticardquo menos do que um limite pode ser tomado como uma

etapa na elaboraccedilatildeo das suas estrateacutegias de produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes

taacutecitos Ateacute porque observamos que os ferramenteiros buscam fazer pequenos testes micro-

experiecircncias com provaacuteveis situaccedilotildees que envolvem a construccedilatildeo da ferramenta E ainda ve-

rificamos que muitos saberes taacutecitos para serem desenvolvidos demoraram anos de trabalho e

demandaram muitas observaccedilotildees Segundo a fala de um dos ferramenteiros ldquoTem um tempatildeo

que eu jaacute vinha observando esse negoacutecio do retorno de chapa entatildeo eu fui pegando a manha

150

de como a chapa se comportardquo Em um outro depoimento ldquoTem coisas que a gente desconfia

vocecirc observa um dia ali depois fala com colega aqui e fica com aquilo na cabeccedila Agraves vezes eacute

laacute no final que vocecirc compreende tudo eacute laacute no final que vocecirc vecirc que uma coisa que vocecirc jaacute

desconfiava tinha um certo sentido uma certa loacutegicardquo

Dessa forma fica constatado natildeo soacute que os saberes taacutecitos se inscrevem ao longo da

vida dos ferramenteiros bem como se verifica um princiacutepio racional que alimenta estes sabe-

res Observamos que estes saberes ainda que natildeo formalizados numa linguagem cientiacutefica ou

precariamente formalizados pelas estrateacutegias dos ferramenteiros natildeo satildeo na maioria dos ca-

sos soluccedilotildees produzidas em alguns minutos ou para ser mais contundente estes saberes natildeo

satildeo um lance de uacuteltima hora Daiacute decorrem as constantes referecircncias que ferramenteiros mes-

tres e gerecircncia fazem agrave experiecircncia desses profissionais na ferramentaria

Gostariacuteamos de relembrar que se ateacute entatildeo apresentamos em toacutepicos isolados as es-

trateacutegias dos ferramenteiros para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos eacute

porque como jaacute dissemos buscamos uma forma de tornar mais claras as situaccedilotildees deste com-

plexo campo de trabalho que eacute a ferramentaria Neste sentido eacute necessaacuterio salientar que nos-

sa pesquisa de campo aponta que as estrateacutegias de produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo se

articulam entre si Por fim a possibilidade de que ferramenteiros criem estrateacutegias tambeacutem

taacutecitas para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos indica natildeo soacute a distacircncia

entre o trabalho prescrito e o trabalho real bem como revela o seu caraacuteter histoacuterico social

cultural e subjetivo o que nos permite afirmar que o trabalho dos ferramenteiros se articula

como diz Santos (1997) ao movimento da vida Para finalizar um uacuteltimo depoimento de um

ferramenteiro sobre a insuficiecircncia do trabalho prescrito em determinar as medidas da linha de

corte da ferramenta

O certo seria pela folga que a tabela indica entendeu Soacute que nunca daacute aiacute se jaacute der rebarba natildeo tem como acertar isso mais natildeo Que dizer igual eu te falei para dar certo chega uma hora o projeto deixa de existir Essas coisas satildeo assim vocecirc erra ali faz um teste aqui quando vocecirc assusta vocecirc jaacute estaacute sabendo muita coisa (gri-fo nosso)

151

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ocultar o modo de presenccedila na Histoacuteria de certas classes ou camadas sociais eacute sem duacutevida um meio de lhes negar um papel Questatildeo poliacutetica sim mas que envolve uma outra epistemoloacutegica Se a cultura integra mal as transformaccedilotildees sociais e humanas que satildeo tecidas em niacutevel das forccedilas produtivas noacutes podemos falar de uma cultura empobrecida E se a ciecircncia eacute uma forma de cultura eacute provaacutevel que a uma cultura pobre corresponda uma ciecircncia empobrecida A articulaccedilatildeo entre estas duas dimensotildees eacute portanto necessaacuteria (Schwartz apud Santos 1997 p 123)

Acreditamos que nossa pesquisa atingiu em boa medida o objetivo de identificar as

estrateacutegias tambeacutem taacutecitas elaboradas pelos ferramenteiros da Empresa T para produzir

mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos Mesmo reconhecendo as limitaccedilotildees do nosso

trabalho entendemos que a anaacutelise dos dados obtidos na pesquisa pode contribuir para o

debate em diversos foacuteruns e segmentos sociais

Assim identificamos caminhos que chamamos de estrateacutegias criados pelos

trabalhadores ferramenteiros a partir da sua relaccedilatildeo com o cotidiano de trabalho para produzir

mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos aleacutem de apresentar situaccedilotildees nas quais os

trabalhadores reuacutenem condiccedilotildees de reapropriar saberes oriundos da ciecircncia e da tecnologia

Neste sentido ao nosso ver evidenciamos as vaacuterias possibilidades de o trabalho se constituir

como um espaccedilo educativo

Acreditamos que trouxemos elementos que podem ser aproveitados pelas poliacuteticas

puacuteblicas e privadas de educaccedilatildeo profissional tais como o uso dos sentidos como a visatildeo o

tato a audiccedilatildeo a influecircncia da dimensatildeo do coletivo de trabalho assim como o recurso a

formas racionais ainda que distintas da formalidade cientiacutefica quando se trata de produzir

mobilizar e formalizar saberes pelos trabalhadores no trabalho Consideramos tambeacutem que

152

essa pesquisa possa se somar agravequelas voltadas para a educaccedilatildeo de jovens e adultos agrave medida

que demonstra as possibilidades de formaccedilatildeo humana presentes no trabalho o que se traduz na

importacircncia de se considerar o trabalho como dimensatildeo fundamental nas experiecircncias de

educaccedilatildeo de jovens e adultos Por fim acreditamos que ao identificar o poder de produzir

mobilizar e formalizar saberes taacutecitos praacutetica que envolve atividade de criaccedilatildeo interpretaccedilatildeo

e reflexatildeo dos trabalhadores ferramenteiros chamamos a atenccedilatildeo para a necessidade de se

levar em consideraccedilatildeo os seus pontos de vista sobre o trabalho e sobre a educaccedilatildeo em

qualquer proposta de formaccedilatildeo de trabalhadores

Acreditamos ainda que nossa pesquisa traz elementos que auxiliam os trabalhadores

e as suas entidades representativas a refletir sobre a presenccedila e o valor de saberes taacutecitos no

processo produtivo contribuindo para a construccedilatildeo de estrateacutegias que possam como diz

Santos (1997) resgatar o valor epistemoloacutegico social econocircmico poliacutetico e cultural do saber

do trabalhador Neste sentido ressaltamos o caraacuteter histoacuterico social e subjetivo dos saberes

taacutecitos refutando a tendecircncia a considerar este tipo de saber de forma naturalizada Por fim

salientamos que os trabalhadores capazes que satildeo de dialogar com saberes de diversas

ordens se apresentam como interlocutores privilegiados na construccedilatildeo do projeto de

sociedade que queremos sobretudo no que se refere aos assuntos ligados ao trabalho

Haacute que se dizer que ao mesmo tempo em que a complexidade teacutecnica da

ferramentaria enriqueceu esta pesquisa ela tambeacutem nos exigiu um enorme esforccedilo para

interpretar os dados que coletamos bem como para tornar o nosso texto compreensiacutevel Como

acreditamos ter evidenciado satildeo poucas as atividades industriais que apresentam tatildeo intenso

apelo agrave sofisticaccedilatildeo tecnoloacutegica e ao mesmo tempo um consideraacutevel reconhecimento de

saberes oriundos da experiecircncia do ldquochatildeo de fabricardquo como eacute o caso da ferramentaria

Podemos afirmar que a nossa pesquisa corrobora as reflexotildees de Aranha 1997

Santos 1997 Daniellou Teiger e Laville 1989 Lima 1998 que apresentam a distacircncia entre

153

o trabalho prescrito e o trabalho real como um fator que solicita dos trabalhadores o uso de

saberes taacutecitos nas lacunas deixadas neste caso pela prescriccedilatildeo do desenho da ferramenta Os

limites do trabalho prescrito se evidenciaram ainda mais agrave medida que constatamos que a

proacutepria gerecircncia reserva um espaccedilo para que os ferramenteiros faccedilam eles proacuteprios uma

prescriccedilatildeo para o andamento da construccedilatildeo da ferramenta como por exemplo no try-out

Constatamos tambeacutem que a maioria dos ferramenteiros principalmente os mais experientes

satildeo cocircnscios dos limites do trabalho prescrito

Curioso observar que os ferramenteiros mobilizam uma parte dos seus saberes taacutecitos

antes mesmo de emergirem as demandas do trabalho real ao interpretarem o trabalho

prescrito notoriamente o desenho da ferramenta Podemos inferir que se eles usam os seus

saberes taacutecitos para interpretar o desenho da ferramenta antes que esse tipo de prescriccedilatildeo se

mostre distante do trabalho real isso significa que os seus saberes taacutecitos satildeo mobilizados

todo o tempo independentemente de constatarem as lacunas do trabalho prescrito Em nosso

entendimento ao inveacutes de demonstrar uma submissatildeo agrave prescriccedilatildeo confere-se aos saberes dos

ferramenteiros uma exigecircncia de reflexatildeo nem sempre percebida imediatamente

Em nossa pesquisa foi possiacutevel verificar que de fato os ferramenteiros tecircm uma

grande dificuldade de explicitar os saberes taacutecitos Diversas vezes observamos que falta a eles

e tambeacutem aos engenheiros termos para expressar uma determinada situaccedilatildeo Entretanto

verificamos que essa dificuldade em explicitar os saberes taacutecitos natildeo impede que os

ferramenteiros os mobilizem ou os comuniquem na relaccedilatildeo que manteacutem com o seu coletivo

de trabalho O uso dos termos ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo ldquomelhor jeito de

trabalharrdquo expressa que por meio de suas proacuteprias estrateacutegias eles podem com as linguagens

que lhes satildeo disponiacuteveis formalizar os seus saberes taacutecitos Daiacute podermos afirmar que o uso

dessas estrateacutegias representa natildeo soacute uma tentativa dos ferramenteiros de formalizar os seus

saberes mas indica tambeacutem que eles tecircm uma certa consciecircncia dos limites e possibilidades

154

dos diversos tipos de linguagem Em alguns casos a nossa experiecircncia de operaacuterio somada ao

tempo que ficamos imersos no campo de pesquisa foram fundamentais para acessarmos parte

das linguagens e dos coacutedigos usados pelos ferramenteiros da Empresa T

Se por um lado como jaacute dissemos nossa pesquisa foi enriquecida pela complexidade

teacutecnica da ferramentaria que exige que os ferramenteiros criem estrateacutegias para dar conta da

produccedilatildeo por outro lado essa mesma complexidade se transfere para a temaacutetica do saber

taacutecito o que nos colocou diante de desafios nem sempre facilmente equacionados

Confessamos que muitas vezes a riqueza dos dados coletados natildeo ganhou uma

correspondecircncia de riqueza da anaacutelise

Verificamos que algumas situaccedilotildees se mostraram mais intensas durante o trabalho de

campo do que pudemos explicitar na escrita da dissertaccedilatildeo como por exemplo a relaccedilatildeo do

uso do corpo com a criaccedilatildeo de estrateacutegias para produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de

saberes Alguns atributos fiacutesicos podem demandar o uso de um determinado tipo de saber

taacutecito ou mesmo explicar em parte as diferenccedilas entre as estrateacutegias usadas pelos

ferramenteiros Ao observamos que eles buscam uma melhor posiccedilatildeo para por exemplo

identificar uma falha na superfiacutecie de uma peccedila podemos inferir que a partir de uma mesma

distacircncia do alvo no caso a ferramenta alturas diferentes resultam em acircngulos diferentes

Eacute importante dizer que essa dissertaccedilatildeo apresenta alguns limites que podem vir a

constituir objetos para futuras pesquisas Nesse sentido por exemplo o nosso trabalho de

campo evidenciou a importacircncia do uso do corpo nas estrateacutegias que os ferramenteiros criam

para produzir mobilizar e formalizar os sus saberes taacutecitos No entanto tivemos imensa

dificuldade em encontrar na literatura especializada subsiacutedios que nos permitissem avanccedilar na

anaacutelise desse fenocircmeno

Ainda um outro limite da nossa pesquisa deu-se pela dificuldade posta pela anaacutelise das

estrateacutegias de formalizaccedilatildeo Uma parte dessa dificuldade pode ser tributada agrave dimensatildeo

155

imaterial de algumas estrateacutegias como por exemplo a ldquomemoacuteriardquo e a ldquoreflexatildeordquo Uma anaacutelise

mais aprofundada sobre os limites e as possibilidades dessas estrateacutegias e da contribuiccedilatildeo

delas para a formalizaccedilatildeo de saberes taacutecitos resta por fazer Por outro lado mesmo as

estrateacutegias revestidas de uma materialidade como os ldquodiaacuterios de bordordquo os ldquocroquisrdquo e os

ldquogabaritosrdquo apresentaram uma dificuldade para serem analisados uma vez que natildeo foi faacutecil

compreendermos totalmente como essas estrateacutegias se articulam entre um uso individual e um

compartilhamento coletivo no esforccedilo dos ferramenteiros para formalizarem os seus saberes

taacutecitos

Por fim uma outra dificuldade de analisar as estrateacutegias de formalizaccedilatildeo foi posta pela

linguagem muitas vezes extremamente teacutecnica nos depoimentos o que dificultou natildeo soacute a

exposiccedilatildeo desses depoimentos mas tambeacutem a anaacutelise dos dados e a da nossa redaccedilatildeo da

dissertaccedilatildeo E ainda em alguns casos as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros e que

poderiam ilustrar a nossa anaacutelise eram formalizadas em linguagens compreensiacuteveis apenas

para estes profissionais

Todavia mesmo diante das dificuldades encontradas ao longo dessa pesquisa

podemos afirmar que os ferramenteiros da empresa T criam estrateacutegias tambeacutem taacutecitas para

produzir mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos Ousamos afirmar tambeacutem que os

saberes produzidos mobilizados e formalizados pelos ferramenteiros diversas vezes

colocados agrave prova no processo de trabalho expressam uma racionalidade ainda que distinta

dos padrotildees formais da ciecircncia Verificamos ainda que uma parte dessas estrateacutegias eacute

parcialmente formalizada e transformada em um procedimento utilizado frequumlentemente pelos

ferramenteiros e que as suas estrateacutegias de produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes

taacutecitos lhes datildeo a confianccedila necessaacuteria para realizar o seu trabalho

156

Obs 1 Caro Eduardo favor incluir esse texto antecedendo a figura 1 2 3 4 e 5 Achei melhor que esse texto vaacute para depois de todas as citaccedilotildees na pg 117 antecedendo o toacutepico Melhor jeito de trabalhar Outra coisa a definiccedilatildeo das figuras em 3d ficaria melhor se elas fossem divididas duas por paacuteg Apesar de que na Empresa T haacute um software que fornece um desenho em 3D os ferramenteiros

conseguem esse tipo de projeccedilatildeo por meio de uma abstraccedilatildeo ou como eles dizem ldquovisualizando

em 3Drdquo Para ilustrar a estrateacutegia de ldquovisualizar em 3Drdquo tomemos como exemplo as Figuras 1

2 3 4 e 5 A Figura 1 corresponde ao desenho de uma ferramenta posto em uma forma plana

isto eacute bidimensional As Figuras 2 3 4 e 5 correspondem agrave Figura 1 em uma forma

tridimensional Eacute importante comentar que o avanccedilo das figuras indica uma visualizaccedilatildeo mais

depurada da ferramenta ou seja para se chegar agrave visualizaccedilatildeo em 3D da Figura 4 eacute necessaacuterio

uma maior capacidade de abstraccedilatildeo do ferramenteiro

Obs 2 Em relaccedilatildeo a pg 131 favor incluir fig 5 no iniacutecio da pg

() Estes saberes nos foram explicitados (fig 5) ainda que somados aos saberes

Obs 3 manter no texto do jeito que estaacute ou seja apenas fig 6

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158

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MANACORDA Maacuterio O princiacutepio educativo em Gramsci Porto Alegre Artes Meacutedicas1990

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159

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GAZETA MERCANTIL Balanccedilo anual Satildeo Paulo 2003

160

  • 1 parte corrigidodoc
    • Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Conhecimento e Inclusatildeo social
    • SUMAacuteRIO
      • Agradecimentosdoc
      • Cap 01doc
        • Eacute salutar que um trabalho de pesquisa para ser apreendido em sua totalidade seja abordado desde a sua concepccedilatildeo O objeto dessa pesquisa qual seja as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros de uma induacutestria metaluacutergica da regiatildeo metropolitana de Belo Horizonte para a produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e organizaccedilatildeo de seus saberes no trabalho surgiu de uma perspectiva aberta pelo encontro da nossa formaccedilatildeo escolar da vivecircncia como trabalhador de uma induacutestria metaluacutergica com o debate sobre o mundo do trabalho o que gerou um interesse em compreender os saberes produzidos no processo de trabalho Neste sentido entendemos que eacute importante fazer uma recuperaccedilatildeo de uma parte dessa experiecircncia no setor fabril da nossa inserccedilatildeo no universo teoacuterico sobre o mundo do trabalho e a dimensatildeo que esse encontro tomou na construccedilatildeo do objeto que norteia esta pesquisa
        • A nossa formaccedilatildeo iniciou-se no Senai aos 14 anos de idade por meio do curso de Torneiro Mecacircnico de um ano e meio e posteriormente no periacuteodo da noite mais um ano de Frezador Mecacircnico Logo depois iniciamos tambeacutem no turno da noite o Curso Teacutecnico em Mecacircnica no Cefet-MG A esta formaccedilatildeo somou-se a nossa entrada no trabalho ocorrida aos 15 anos de idade Nesse periacuteodo o nosso discernimento a respeito do trabalho comeccedilou a ganhar contornos mais elaborados influenciado pelo intercacircmbio que havia entre noacutes colegas de trabalho e de curso o que produzia uma troca de informaccedilotildees ricas e variadas
          • Se por um lado entendemos como necessaacuterio apresentar a nossa problematizaccedilatildeo sobre a hipoacutetese de que os ferramenteiros possam desenvolver estrateacutegias para produzir mobilizar e formalizar seus saberes por outro lado eacute importante salientar que ao definirmos as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros como produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes natildeo buscamos demarcar uma separaccedilatildeo hermeacutetica entre elas e sim analisar se as suas semelhanccedilas e diferenccedilas se articulam Por este motivo apresentaremos um breve debate sobre essas trecircs categorizaccedilotildees
          • 13 O referencial teoacuterico
          • 14 As estrateacutegias metodoloacutegicas
            • 142 Instrumentos de pesquisa
              • Cap 02doc
                • Eacute mesmo agrave praacutetica que por definiccedilatildeo se refere o saber fazer () Em numerosos casos o saber-fazer designa uma competecircncia global um ofiacutecio ou uma destreza num domiacutenio mais ou menos amplo da praacutetica humana () Os saberes-fazer satildeo portanto para noacutes actos humanos disponiacuteveis em virtude de terem sido apreendidos (seja de que maneira for) e experimentados (p 79)
                • Sobre a fecundidade da relaccedilatildeo entre linguagem e trabalho Faita e Souza-e-Silva (2002) afirmam que ldquoDiversos fatores podem explicar a emergecircncia de tal interesse o mais importante deles encontra-se no peso e na importacircncia que as atividades de simbolizaccedilatildeo passaram a ter na realizaccedilatildeo do trabalhordquo (p 7) Ainda que o interesse dos linguumlistas pelo trabalho como objeto de estudo seja um fenocircmeno recente a literatura sobre essa temaacutetica jaacute acumula importantes reflexotildees para apontar a diversidade de enfoques e de campos de intervenccedilatildeo caracteriacutesticos da aacuterea Dentre as vaacuterias possibilidades de contribuiccedilatildeo para esta pesquisa uma foi acolhida com maior profundidade pois nos permitiu analisar a relaccedilatildeo entre o trabalho e a linguagem em uma perspectiva multifacetada Trata-se de uma abordagem defendida por Nouroudine (2002) que apresenta uma triparticcedilatildeo da relaccedilatildeo trabalholinguagem cujos eixos seriam dados pelas modalidades ldquolinguagem como trabalhordquo ldquolinguagem no trabalhordquo e ldquolinguagem sobre o trabalhordquo
                • Para Lacoste apud Nouroudine (2002) a elaboraccedilatildeo dessa triparticcedilatildeo ldquopermitiu remediar confusotildees disseminadas separando como verbalizaccedilatildeo falas provocadas e exteriores agrave situaccedilatildeo e como comunicaccedilatildeo falas que fazem parte da atividade de trabalhordquo (p 17) De acordo com Nouroudine (2002 p 18) a distinccedilatildeo entre esses trecircs aspectos da linguagem atende a uma opccedilatildeo metodoloacutegica que busca identificar os mecanismos de funcionamento da relaccedilatildeo trabalholinguagem e ainda a um interesse epistemoloacutegico na medida em que poderia evidenciar as ligaccedilotildees e as diferenccedilas desses mecanismos de funcionamento Neste sentido eacute importante salientar que de modo algum os diferentes aspectos da relaccedilatildeo trabalholinguagem satildeo estanques entre si e sim que existe uma estreita ligaccedilatildeo entre os trecircs aspectos da linguagem embora como afirma Nouroudine (2002) cada um deles possa aparentar ainda problemas de ordem praacutetica e epistemoloacutegica bem distintos No que se refere agrave nossa pesquisa a distinccedilatildeo entre as vaacuterias dimensotildees da relaccedilatildeo linguagem e trabalho pode lanccedilar luzes sobre a explicitaccedilatildeo ou natildeo dos saberes taacutecitos pois nos facilita compreender as estrateacutegias que os trabalhadores mobilizam para viabilizar a comunicaccedilatildeo de saberes no trabalho Essa triparticcedilatildeo considera que respectivamente haacute linguagens que fazem o trabalho que circulam no trabalho e que interpretam o trabalho as quais seratildeo explicadas a seguir
                  • 244 Comentaacuterios sobre as estrateacutegias taacutecitas
                      • Cap 03doc
                        • 332 A Empresa T
                          • Cap 04doc
                          • Cap 05 Consideraccedilotildees finais definitivadoc
                          • Observaccedilotildeesdoc
                          • Referecircncias bibliograacuteficasdoc
                            • REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Page 5: A pedagogia da ferramenta: estratégias de produção, mobilização … · 2019. 11. 14. · entrevistas semi-estruturadas realizadas com os ferramenteiros e observações de campo

AGRADECIMENTOS

A minha matildee Adelina que desde a minha infacircncia foi tambeacutem meu pai e me

ensinou a ver na feacute Cristatilde o valor da perseveranccedila do amor ao proacuteximo e da compreensatildeo Agrave

memoacuteria do meu pai Geraldo Alves que em nossa curta relaccedilatildeo deixou o legado da luta pela

vida A minha famiacutelia e ldquoamigos de casardquo Kaacutetia Clebinho Cidinha Roberto Ofeacutelia Caio

Paula Ciro Humberto Carlatildeo e ao pequeno Lucas

A Eloiacutesa Helena Santos a difiacutecil tarefa de agradecer Antes de tudo pelo seu passado

de respeito aos trabalhadores Os seus ensinamentos as suas orientaccedilotildees e as bibliografias

indicadas me permitiram um razoaacutevel avanccedilo acadecircmico Desde os primeiros encontros a sua

ajuda esteve aleacutem da orientaccedilatildeo do estilo da escrita agrave coragem do debate da paciecircncia agrave

amizade Serei sempre grato

A Antocircnia Vitoacuteria pela carinhosa acolhida agraves minhas inquietaccedilotildees pela

disponibilidade de sempre por ter me mostrado a importacircncia de voltar ao chatildeo de faacutebrica

Agradeccedilo por ter aceitado o convite para estar em nossa Banca

Ao professor Francisco de Paula Lima pela sua disponibilidade para o debate pelo

seu interesse em transformar o trabalho por ter aceitado participar da nossa Banca

Ao professor Antocircnio Juacutelio de Menezes por estar sempre aberto ao diaacutelogo pelo seu

interesse com as causas sociais por ter aceitado participar da nossa Banca

Aos professores e colegas do Nete que sempre nos acolheram e estiveram abertos ao

diaacutelogo Adriana Fernando Daisy Cunha Luciacutelia Dalila Justino Walter Ude Rosacircngela

Bebeto Mariana Veriacutessimo e Rogeacuterio Cunha

Aos funcionaacuterios da FAE em especial Rose Claacuteudio Elcio Claudia Adriana

Aos colegas de mestrado que estiveram conosco

Aos amigos do Uni-bh que desde a nossa graduaccedilatildeo satildeo solidaacuterios com a nossa

caminhada Em nome de todos esses eu dedico este trabalho ao professor e excepcional

amigo Wellington de Oliveira pelas inuacutemeras orientaccedilotildees por ter nos mostrado a

possibilidade de avanccedilar sobre o mundo do trabalho

Aos trabalhadores da Empresa T do chatildeo de faacutebrica ao escritoacuterio e Recursos

Humanos que ao seu modo sempre compartilharam os seus saberes conosco em especial aos

ferramenteiros que nos ensinaram um pouco do seu complexo ofiacutecio e nos encheram de

orgulho pela noccedilatildeo que tecircm dos seus saberes e da ideacuteia de coletivo Sabemos que

historicamente os trabalhadores tecircm motivos de sobra para escolher o que falar a hora de

falar e com quem falar Por isso achamos legiacutetima a posiccedilatildeo dos que falaram menos

v

O SER HOMEM SEGUNDO OS METALUacuteRGICOS

Haveria entre os metaluacutergicos um ponto de vista particular uma eacutetica ou uma forma

de se sentir homem Para aleacutem do risco de estar sendo machista o termo ser homem guarda

uma valorizaccedilatildeo para os que satildeo humanos com os colegas Daiacute que agradeccedilo aos inuacutemeros

colegas que me ensinaram a ser homem digo mais humano Desde o iniacutecio aos quinze anos

como torneiro mecacircnico pudemos aprender o que eacute ser e que natildeo eacute ser humano que a vida eacute

dentro e fora da faacutebrica Cleydson Fernando Vladimir Rocircmulo Minhoca Ater Ribeiro

Agradecemos aos que nos pagaram um pingado nas portarias das faacutebricas no

CincoContagem metaluacutergico que se preze jaacute procurou emprego no Cinco Aliaacutes quer

conhecer um metaluacutergico Vaacute a portaria de uma faacutebrica nos dias em que estatildeo ldquofichando

genterdquo Em uma dessas portarias eu ouvi pela primeira vez uma voz um carro de som e

algueacutem dizer ldquoCompanheirosrdquo Era a voz de Paulo Funghi e em seu nome eu dedico aos

outros tantos que satildeo exemplos da dignidade e da inteligecircncia operaacuteria Ao Marcelino

Edmundo Edgar e Faustatildeo em nome dos outros sindicalistas de Betim que debaixo do sol de

meio-dia ou sob o frio ou sob a chuva em vaacuterias madrugadas resistiram agraves provocaccedilotildees da

vigilacircncia e se posicionaram por melhores condiccedilotildees de trabalho Aos metaluacutergicos da Teksid

com os quais eu compartilhei muitas alegrias e anguacutestias dentro e fora da faacutebrica Zeacute Carlos

Jonas Vandeir Marcatildeo Chaveco Faacutebio Juacutelio Martinez Juacutelio (de Monlevade) Camilo Tiatildeo

Loctite Levi Adenor Joaquim Jaime Olimpio Chicos Elcio Paulo Couto Julinho do

Bolinha Baiano Buiuacute Nelson Pescador Liu Maacuterio Seacutergio

Um agradecimento especial ao Juracy Caratildeo e Orlando dois exemplos de honestidade

e solidariedade aos colegas dois homens que natildeo se importando com a truculecircncia natildeo se

deixaram intimidar e defenderam o direito a uma Cipa que funcione a sauacutede no trabalho dois

homens que devem ficar em nossa memoacuteria como exemplo de solidariedade Muito obrigado

por terem entendido que esta pesquisa eacute tambeacutem de vocecircs

Por fim retiraremos do anonimato um ferramenteiro da Teksid Era comum entre noacutes

fazermos uma lista de contribuiccedilotildees para ajudar um colega em situaccedilatildeo difiacutecil Em uma delas

ao levar a lista a este ferramenteiro ele me passou o dinheiro e no lugar onde deveria assinar

acabou fazendo um risco Ao dizer a ele para escrever o seu nome pois assim o nosso colega

poderia agradecer-lhe ele me respondeu mais ao menos assim ldquoNatildeo importa o nome importa

o exemplo que ele saiba que algueacutem o ajudou que ele jamais se esqueccedila dissordquo O nome

desse ferramenteiro eu natildeo lembro acho que nunca soube mas seu apelido era XUXA

ferramenteiro da manutenccedilatildeo do alumiacutenio Afinal natildeo importa o nome o importante eacute que o

vi

feito do homem permaneccedila em nossa memoacuteria como exemplo de humanismo O que eacute ser um

homem Eacute provaacutevel que a resposta esteja em construccedilatildeo mas natildeo me faltaram exemplos Daiacute

assumo daiacute confesso fui um metaluacutergico digo um peatildeo metaluacutergico

vii

RESUMO

Esta dissertaccedilatildeo tem como objeto de estudo as estrateacutegias que os ferramenteiros de uma induacutestria metaluacutergica da regiatildeo metropolitana de Belo Horizonte criam para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos Trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo que utilizou aleacutem da revisatildeo bibliograacutefica e documentos produzidos pelos trabalhadores entrevistas semi-estruturadas realizadas com os ferramenteiros e observaccedilotildees de campo O interesse pelo objeto dessa pesquisa surgiu das nossas reflexotildees como trabalhador metaluacutergico e da constataccedilatildeo de que a literatura que discute a presenccedila de saberes no processo de trabalho natildeo aborda as estrateacutegias criadas por um tipo de trabalhador o ferramenteiro Para desvelar o objeto dessa dissertaccedilatildeo utilizamos referenciais teoacutericos que discutem os modelos de organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho bem como os autores que seguindo a tradiccedilatildeo marxiana referendam o princiacutepio educativo do trabalho Contamos tambeacutem com os autores que a partir da noccedilatildeo oriunda da ergonomia de trabalho prescrito e trabalho real discutem a presenccedila do saber taacutecito no processo produtivo E ainda recorremos aos autores que analisam os saberes taacutecitos sob pontos de vistas variados

viii

REacuteSUMEacute

Cette recherche a comme objet drsquoeacutetude les strateacutegies creacuteeacutees par les outilleurs drsquoune industrie meacutetalurgique de la reacutegion de Belo Horizonte pour produire mobiliser et formaliser leurs savoirs tacites Il srsquoagit drsquoune recherche qualitative qui a utiliseacute au deacutelagrave de la reacutevision bibliografique lrsquoanalyse de documents produits par lrsquoenterprise et les travailleurs des entrevieus semi-structureacutees reacutealiseacutees avec les outilleurs et des observations Lrsquointeacuterecirct pour cet objet est neacute de nocirctres reflexions comme travailleur de la meacutetalurgie et de la constatation que la liteacuterature qui discute la preacutesence des savoirs dans le processus de travail ne prend pas les strateacutegies creacuteeacutees par un type de travailleur le outilleur Pour deacutevoiler lrsquoobject de recherche nous utilisons des reacutefeacuterences theacuteoriques qui discutent les modegraveles drsquoorganisation et de gestion du travaille aussi bien que les auteurs qui drsquoapregraves la tradition marxiste discutent le principie eacuteducatif du travail Nous avons pris aussi des auteurs qui font la distintion entre travail prescrit et travail reacuteel drsquoapregraves lrsquoergonomie pour signaler la preacutesence de savoirs tacites dans la production Nous avons pris encore des auteurs que analysent les savoirs tacites lons plusieurs angles

ix

BANCA EXAMINADORA

Professora Dra Eloiacutesa Helena Santos (Orientadora)- Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade

Federal de Minas GeraisUFMG

Professora Dra Antocircnia Vitoacuteria Soares Aranha - Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade Federal de Minas GeraisUFMG

Professor Dr Francisco de Paula Antunes Lima - Departamento de engenharia da produccedilatildeo da Universidade Federal de Minas GeraisUFMG

Professor Dr Antocircnio Juacutelio de Menezes Neto (suplente) - Faculdade de Educaccedilatildeo da

Universidade Federal de Minas GeraisUFMG

x

AGRADECIMENTOS

A minha matildee Adelina que desde a minha infacircncia foi tambeacutem meu pai e me

ensinou a ver na feacute Cristatilde o valor da perseveranccedila do amor ao proacuteximo e da compreensatildeo Agrave

memoacuteria do meu pai Geraldo Alves que em nossa curta relaccedilatildeo deixou o legado da luta pela

vida A minha famiacutelia e ldquoamigos de casardquo Kaacutetia Clebinho Cidinha Roberto Ofeacutelia Caio

Paula Ciro Humberto Carlatildeo e ao pequeno Lucas

A Eloiacutesa Helena Santos a difiacutecil tarefa de agradecer Antes de tudo pelo seu passado

de respeito aos trabalhadores Os seus ensinamentos as suas orientaccedilotildees e as bibliografias

indicadas me permitiram um razoaacutevel avanccedilo acadecircmico Desde os primeiros encontros a sua

ajuda esteve aleacutem da orientaccedilatildeo do estilo da escrita agrave coragem do debate da paciecircncia agrave

amizade Serei sempre grato

A Antocircnia Vitoacuteria pela carinhosa acolhida agraves minhas inquietaccedilotildees pela

disponibilidade de sempre por ter me mostrado a importacircncia de voltar ao chatildeo de faacutebrica

Agradeccedilo por ter aceitado o convite para estar em nossa Banca

Ao professor Francisco de Paula Lima pela sua disponibilidade para o debate pelo

seu interesse em transformar o trabalho por ter aceitado participar da nossa Banca

Ao professor Antocircnio Juacutelio de Menezes por estar sempre aberto ao diaacutelogo pelo seu

interesse com as causas sociais por ter aceitado participar da nossa Banca

Aos professores e colegas do NETE que sempre nos acolheram e estiveram abertos ao

diaacutelogo Adriana Fernando Daisy Cunha Luciacutelia Dalila Justino Walter Ude Rosacircngela

Bebeto Mariana Veriacutessimo e Rogeacuterio Cunha

Aos funcionaacuterios da FAE em especial Rose Claacuteudio Elcio Claudia Adriana

Aos colegas de mestrado que estiveram conosco

Aos amigos do Uni-bh que desde a nossa graduaccedilatildeo satildeo solidaacuterios com a nossa

caminhada Em nome de todos esses eu dedico este trabalho ao professor e excepcional

amigo Wellington de Oliveira pelas inuacutemeras orientaccedilotildees por ter nos mostrado a

possibilidade de avanccedilar sobre o mundo do trabalho

Aos trabalhadores da Empresa T do chatildeo de faacutebrica ao escritoacuterio e Recursos

Humanos que ao seu modo sempre compartilharam os seus saberes conosco em especial aos

ferramenteiros que nos ensinaram um pouco do seu complexo ofiacutecio e nos encheram de

orgulho pela noccedilatildeo que tecircm dos seus saberes e da ideacuteia de coletivo Sabemos que

historicamente os trabalhadores tecircm motivos de sobra para escolher o que falar a hora de

falar e com quem falar Por isso achamos legiacutetima a posiccedilatildeo dos que falaram menos

O SER HOMEM SEGUNDO OS METALUacuteRGICOS

Haveria entre os metaluacutergicos um ponto de vista particular uma eacutetica ou uma forma

de se sentir homem Para aleacutem do risco de estar sendo machista o termo ser homem guarda

uma valorizaccedilatildeo para os que satildeo humanos com os colegas Daiacute que agradeccedilo aos inuacutemeros

colegas que me ensinaram a ser homem digo mais humano Desde o iniacutecio aos quinze anos

como torneiro mecacircnico pudemos aprender o que eacute ser e que natildeo eacute ser humano que a vida eacute

dentro e fora da faacutebrica Cleydson Fernando Vladimir Rocircmulo Minhoca Ater Ribeiro

Agradecemos aos que nos pagaram um pingado nas portarias das faacutebricas no

CincoContagem metaluacutergico que se preze jaacute procurou emprego no Cinco Aliaacutes quer

conhecer um metaluacutergico Vaacute a portaria de uma faacutebrica nos dias em que estatildeo ldquofichando

genterdquo Em uma dessas portarias eu ouvi pela primeira vez uma voz um carro de som e

algueacutem dizer ldquoCompanheirosrdquo Era a voz de Paulo Funghi e em seu nome eu dedico aos

outros tantos que satildeo exemplos da dignidade e da inteligecircncia operaacuteria Ao Marcelino

Edmundo Edgar e Faustatildeo em nome dos outros sindicalistas de Betim que debaixo do sol de

meio-dia ou sob o frio ou sob a chuva em vaacuterias madrugadas resistiram agraves provocaccedilotildees da

vigilacircncia e se posicionaram por melhores condiccedilotildees de trabalho Aos metaluacutergicos da Teksid

com os quais eu compartilhei muitas alegrias e anguacutestias dentro e fora da faacutebrica Zeacute Carlos

Jonas Vandeir Marcatildeo Chaveco Faacutebio Juacutelio Martinez Juacutelio (de Monlevade) Camilo Tiatildeo

Loctite Levi Adenor Joaquim Jaime Olimpio Chicos Elcio Paulo Couto Julinho do

Bolinha Baiano Buiuacute Nelson Pescador Liu Maacuterio Seacutergio

Um agradecimento especial ao Juracy Caratildeo e Orlando dois exemplos de honestidade

e solidariedade aos colegas dois homens que natildeo se importando com a truculecircncia natildeo se

deixaram intimidar e defenderam o direito a uma Cipa que funcione a sauacutede no trabalho dois

homens que devem ficar em nossa memoacuteria como exemplo de solidariedade Muito obrigado

por terem entendido que esta pesquisa eacute tambeacutem de vocecircs

Por fim retiraremos do anonimato um ferramenteiro da Teksid Era comum entre noacutes

fazermos uma lista de contribuiccedilotildees para ajudar um colega em situaccedilatildeo difiacutecil Em uma delas

ao levar a lista a este ferramenteiro ele me passou o dinheiro e no lugar onde deveria assinar

acabou fazendo um risco Ao dizer a ele para escrever o seu nome pois assim o nosso colega

poderia agradecer-lhe ele me respondeu mais ao menos assim ldquoNatildeo importa o nome importa

o exemplo que ele saiba que algueacutem o ajudou que ele jamais se esqueccedila dissordquo O nome

desse ferramenteiro eu natildeo lembro acho que nunca soube mas seu apelido era XUXA

ferramenteiro da manutenccedilatildeo do alumiacutenio Afinal natildeo importa o nome o importante eacute que o

feito do homem permaneccedila em nossa memoacuteria como exemplo de humanismo O que eacute ser um

homem Eacute provaacutevel que a resposta esteja em construccedilatildeo mas natildeo me faltaram exemplos Daiacute

assumo daiacute confesso fui um metaluacutergico digo um peatildeo metaluacutergico

1 INTRODUCcedilAtildeO

Eacute salutar que um trabalho de pesquisa para ser apreendido em sua totalidade seja abor-

dado desde a sua concepccedilatildeo O objeto dessa pesquisa qual seja as estrateacutegias usadas pelos

ferramenteiros de uma induacutestria metaluacutergica da regiatildeo metropolitana de Belo Horizonte para a

produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e organizaccedilatildeo de seus saberes no trabalho surgiu de uma perspectiva

aberta pelo encontro da nossa formaccedilatildeo escolar da vivecircncia como trabalhador de uma induacutes-

tria metaluacutergica com o debate sobre o mundo do trabalho o que gerou um interesse em com-

preender os saberes produzidos no processo de trabalho Neste sentido entendemos que eacute

importante fazer uma recuperaccedilatildeo de uma parte dessa experiecircncia no setor fabril da nossa

inserccedilatildeo no universo teoacuterico sobre o mundo do trabalho e a dimensatildeo que esse encontro to-

mou na construccedilatildeo do objeto que norteia esta pesquisa

A nossa formaccedilatildeo iniciou-se no Senai aos 14 anos de idade por meio do curso de

Torneiro Mecacircnico de um ano e meio e posteriormente no periacuteodo da noite mais um ano de

Frezador Mecacircnico Logo depois iniciamos tambeacutem no turno da noite o Curso Teacutecnico em

Mecacircnica no Cefet-MG A esta formaccedilatildeo somou-se a nossa entrada no trabalho ocorrida aos

15 anos de idade Nesse periacuteodo o nosso discernimento a respeito do trabalho comeccedilou a ga-

nhar contornos mais elaborados influenciado pelo intercacircmbio que havia entre noacutes colegas

de trabalho e de curso o que produzia uma troca de informaccedilotildees ricas e variadas

Em que pese a contribuiccedilatildeo da formaccedilatildeo teacutecnica que tivemos foi no cotidiano do meu

trabalho e na realidade concreta da produccedilatildeo que surgiram as nossas inquietaccedilotildees mais impor-

1

tantes Estas foram encontrar guarida no nosso contato com os estudos da aacuterea de trabalho e

educaccedilatildeo em suas argumentaccedilotildees em defesa da centralidade da categoria trabalho e do princiacute-

pio educativo aiacute presente possibilitando a construccedilatildeo de uma problemaacutetica que gerou este

objeto de pesquisa

Logo em nosso iniacutecio como trabalhador metaluacutergico em 1986 o contato com a reali-

dade do trabalho nos colocou diante de novidades que contribuiacuteram para a construccedilatildeo da nos-

sa identidade de trabalhador e nos proporcionou uma aprendizagem que ultrapassou os limi-

tes da educaccedilatildeo formal Ainda movido pela disciplina dos tempos de Senai qualquer condiccedilatildeo

adversa era encarada como desafio a ser enfrentado por quem pretendia ser ldquobom de serviccedilordquo

o que implicava executar um trabalho muitas vezes sem o devido preparo ou o uso de equi-

pamentos de seguranccedila obsoletos Esta realidade nos fazia mobilizar saberes de toda ordem e

chamava a nossa atenccedilatildeo para os saberes dos meus colegas

Em 1992 iniciamos um estaacutegio de teacutecnico mecacircnico em uma empresa metaluacutergica do

setor de autopeccedilas pertencente ao grupo Fiat Apoacutes seis meses de estaacutegio fomos efetivado

como teacutecnico no setor de manutenccedilatildeo e implantaccedilatildeo de equipamentos Isso se deu exatamente

no momento em que a empresa iniciou um trabalho preparatoacuterio para sua certificaccedilatildeo de a-

cordo com as exigecircncias do mercado automobiliacutestico tal como a ISO 90001 Em seguida

veio a QS 9000 uma adaptaccedilatildeo da anterior feita pelas empresas automobiliacutesticas norte- ame-

ricanas Chrysler Ford e General Motors A adequaccedilatildeo agrave reestruturaccedilatildeo produtiva atraveacutes des-

tes sistemas de normas busca tornar o processo produtivo mais confiaacutevel tecnicamente e mais

controlaacutevel tambeacutem Ambos os sistemas determinam que sejam criados registros conhecidos

como procedimentos por meio dos quais descreve-se ldquotodordquo o processo de produccedilatildeo desde a

chegada da mateacuteria-prima agrave embalagem do produto

1 De acordo com CARVALHO (1996) A ISO (International Stander Organization) no paracircmetro 9000 especi-fica requisitos para um sistema de gestatildeo da qualidade que podem ser usados pelas organizaccedilotildees para uma apli-caccedilatildeo interna para certificaccedilotildees ou para fins contratuais

2

Chamou a nossa atenccedilatildeo o fato de que esta dinacircmica significava uma apropriaccedilatildeo do

saber dos operaacuterios uma vez que muitas das pequenas modificaccedilotildees por eles feitas para facili-

tar o seu trabalho eram obrigatoriamente documentadas tornando-se um know how da empre-

sa A partir desses registros era possiacutevel por exemplo mapear os passos dados para o sucesso

de determinadas atividades bem como identificar as possiacuteveis falhas da engenharia

Fazia parte desta dinacircmica uma gama de programas que incentivavam os trabalhadores

a se integrarem ao projeto de desenvolvimento de boas ideacuteias para a melhoria da produtivida-

de e qualidade da empresa Tambeacutem observaacutevamos quais eram as circunstacircncias que nos fa-

voreciam produzir saberes e como os usaacutevamos a influecircncia do ensino formal na produccedilatildeo de

saberes no processo de trabalho propriamente dito e sobretudo a cooperaccedilatildeo dos colegas

Esta experiecircncia enriquecida de outras da mesma natureza vividas por nossos colegas

trabalhadores nos levou a problematizar as situaccedilotildees que envolvem o saber no processo de

trabalho Sabiacuteamos possuir um modo proacuteprio de produzir saberes de mobilizaacute-los e organizaacute-

los inclusive com troca de informaccedilotildees longe das maacutequinas agraves vezes no horaacuterio de almoccedilo

na hora do banho ou no trajeto para a aula entre aqueles que frequumlentavam a mesma escola O

trabalho se apresentava como afirmaccedilatildeo da nossa inteligecircncia e do gosto pela profissatildeo

Foi neste mesmo espaccedilo que noacutes nos percebemos enquanto um trabalhador que aleacutem

de produzir um saber nem sempre imaginado pelo capital mas necessaacuterio para a produccedilatildeo

desenvolvia condiccedilotildees de viver o trabalho enquanto espaccedilo de afirmaccedilatildeo pessoal e identitaacuteria

com a nossa classe

O interesse em conhecer melhor o mundo do trabalho nos levou ao curso superior de

Histoacuteria Paralelamente o nosso trabalho na faacutebrica continuou a ser um objeto de observaccedilatildeo

cada vez mais instigante agrave medida que iacuteamos associando o nosso cotidiano no trabalho com as

disciplinas do curso e especialmente com o tema da reestruturaccedilatildeo capitalista tratada na sala

de aula Nesse processo tambeacutem dava primazia agrave questatildeo da presenccedila de saberes no trabalho

3

As nossas possibilidades de fazer uma leitura da dimensatildeo positiva do trabalho o que

segundo Charlot (2000 p 30) significa ldquoler de outra maneira o que eacute lido como falta pela

leitura negativardquo foram sendo ampliadas e refinadas a partir do ano de 2001 quando nos a-

proximamos das atividades do Nete ndash Nuacutecleo de Estudos sobre Trabalho e Educaccedilatildeo da FAE-

UFMG especialmente dos trabalhos das professoras Antocircnia Vitoacuteria Aranha (1997) e Eloiacutesa

Helena Santos (1997 2000) Estas pesquisadoras ao ldquodesnaturalizaremrdquo o saber taacutecito situ-

ando-o como um processo histoacuterico social e subjetivo acabaram nos permitindo definir o

saber taacutecito no processo de trabalho mais especificamente as estrateacutegias usadas pelos traba-

lhadores para produzir mobilizar e organizar o seu saber como objeto desta pesquisa Portan-

to o nosso objetivo nesta dissertaccedilatildeo eacute analisar as estrateacutegias que os ferramenteiros de uma

induacutestria metaluacutergica mineira usam para produzir mobilizar e organizar os seus saberes no

trabalho

11 ESTRUTURACcedilAtildeO DA PESQUISA

Esta dissertaccedilatildeo estaacute organizada do seguinte modo

No primeiro capiacutetulo buscaremos apresentar a presenccedila de saberes no processo de tra-

balho pela seguinte trilha

bull A partir do diaacutelogo com a literatura que aborda a presenccedila de saberes no processo

de trabalho e da nossa experiecircncia em chatildeo de faacutebrica apresentaremos a relevacircncia

acadecircmica e social desta pesquisa bem como os seus objetivos

bull Tambeacutem a partir do que encontramos nas pesquisas sobre esse tema e de alguns

casos que vivenciamos como metaluacutergico seraacute apresentada a nossa hipoacutetese qual

4

seja que os ferramenteiros para dar conta do trabalho real criam estrateacutegias de pro-

duccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo dos seus saberes taacutecitos

bull Apresentaccedilatildeo do nosso referencial teoacuterico e das estrateacutegias metodoloacutegicas que u-

samos na pesquisa para coletar os dados

bull e por fim a nossa imersatildeo no campo da pesquisa

No segundo capiacutetulo apresentaremos como a literatura trata o saber taacutecito Esta parte

estaacute organizada da seguinte forma

bull O saber do trabalhador nos modelos de organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho preconiza-

do pelo taylorismofordismo e pelo modelo japonecircs

bull A importacircncia que a literatura atribui agrave presenccedila de saberes no processo do trabalho

e sobretudo ao saber taacutecito do trabalhador

bull O saber taacutecito como objeto de discussatildeo segundo a literatura que aborda essa temaacute-

tica

No terceiro capiacutetulo iremos descrever o nosso campo de pesquisa caracterizando os

seguintes aspectos

bull O setor automotivo

bull O setor de autopeccedilas

bull A ferramentaria

bull Os ferramenteiros

bull O grupo da empresa pesquisada

bull A empresa pesquisada

No quarto capiacutetulo faremos a anaacutelise dos dados obtidos na pesquisa de campo

Por fim apresentaremos as nossas consideraccedilotildees finais pelas quais proporemos alguns

desdobramentos bem como consideraremos os resultados deste trabalho em relaccedilatildeo agraves aacutereas

que investigam a presenccedila de saberes no processo de trabalho

5

12 Por que investigar a presenccedila de saberes no processo de trabalho

A questatildeo dos saberes presentes no processo de trabalho vem se constituindo como um

dos temas mais discutidos na atualidade A complexidade e a importacircncia deste assunto torna-

ram-no um tema multidisciplinar abrangendo aacutereas da educaccedilatildeo sociologia psicologia ciecircn-

cias da informaccedilatildeo engenharia mobilizando vaacuterios pesquisadores (SANTOS 19852 ARA-

NHA 19973 LIMA 19984 ASSIS 20005) De acordo com Evangelista (2002) ldquoDesde a

deacutecada de 60 autores como Drucker e Galbrait jaacute indicavam que o conhecimento tenderia a

ser o principal fator de produccedilatildeordquo (p 13)

Na medida em que se concretiza a importacircncia do saber no atual mundo do trabalho

aumenta tambeacutem o interesse de pesquisadores por essa temaacutetica Trein (1996 p 32) por e-

xemplo avalia que o interesse do capital por esta questatildeo ocorre ldquodiante do imperativo da

flexibilizaccedilatildeo da economia mundializadardquo Evangelista (2002 p 15) aponta alguns aspectos

da atual fase do capitalismo que reforccedilam o interesse do capital pela presenccedila de saberes no

processo de trabalho ldquoSer diferente e criativo significa maior lucro no mercado competitivo e

para o capital esses elementos podem estar focados nas informaccedilotildees e conhecimentos que

circulam no acircmbito da produccedilatildeordquo

A importacircncia do saber para as empresas no atual momento se configura de forma tal

que os empresaacuterios se organizaram em torno de discussotildees sobre a educaccedilatildeo fazendo coro

2 Dissertaccedilatildeo SANTOS E H Trabalho e educaccedilatildeo o cotidiano do operaacuterio na faacutebrica Belo Horizonte FA-EUFMG 1985 SANTOS E H Le savoir en travail lrsquoexpeacuterience de deacuteveloppement technologique par les travailleurs drsquoune industrie breacutesilienne Paris Universiteacute de Paris VIII 1991 (Tese Doutorado Deacutepartament des Sciences drsquo Education) 3 ARANHA A V S O conhecimento taacutecito e qualificaccedilatildeo do trabalhador Trabalho e Educaccedilatildeo Belo Hori-zonte NeteFAEUFMG n 2 p 13-29 agodez 1997 4 LIMA F P A SILVA C A D A objetivaccedilatildeo do saber praacutetico na concepccedilatildeo de sistemas especialistas das regras formais agraves situaccedilotildees de accedilatildeo Belo Horizonte 1998 (Mimeo) 5 Dissertaccedilatildeo ASSIS R W Os impactos das novas tecnologias nas formas de sociabilidade e no savoir-faire dos operadores um estudo de caso do setor sideruacutergico Belo Horizonte Faculdade de Psicologia da UFMG 2000

6

por uma formaccedilatildeo baseada na noccedilatildeo de competecircncia6 Aleacutem disso os empresaacuterios atraveacutes de

organismos como Senai Fiemg Fiesp e outros constantemente promovem seminaacuterios em

torno do tema (CARVALHO 1999 HORTA et al 2000)

A problemaacutetica dos saberes no trabalho posta em diaacutelogo com os interesses dos traba-

lhadores vem encontrando guarida tambeacutem nas reflexotildees em vaacuterios nuacutecleos de estudos7e jaacute

haacute algum tempo mobiliza pesquisas e debates No que se refere ao campo de estudos sobre

trabalho e educaccedilatildeo dentre outros destacam-se as abordagens sobre a presenccedila de saberes do

trabalhador no processo de trabalho as novas tecnologias e a organizaccedilatildeo do processo produ-

tivo e as poliacuteticas puacuteblicas e privadas para a educaccedilatildeo profissional (TREIN 1996 p 32 FI-

DALGO amp MACHADO 2000 p 338)

Alguns elementos verificados pelas pesquisas realizadas nesse campo bem como a

nossa experiecircncia em chatildeo de faacutebrica assinalam que esse tema tambeacutem mobiliza os interes-

ses dos trabalhadores Entretanto entendemos que ainda faltam elementos que favoreccedilam uma

organizaccedilatildeo coletiva dos trabalhadores centrada na valorizaccedilatildeo e uso dos seus saberes sendo

que muito do que foi colocado como relevante para os interesses dos trabalhadores ainda natildeo

foi suficientemente esclarecido como por exemplo as possibilidades de formalizaccedilatildeo e legi-

timaccedilatildeo dos seus saberes (ARANHA 1997 SANTOS 1985 1997 2000)

As pesquisas que enveredaram pela investigaccedilatildeo da presenccedila de saberes no processo

de trabalho discutem o reconhecimento do proacuteprio capital sobre a importacircncia do saber do

trabalhador no processo produtivo No entanto questionam este reconhecimento pode ser

traduzido em ganhos para os trabalhadores Se haacute algum ganho quais satildeo eles Na tentativa

de responder a essas questotildees Aranha (1997) Santos (1985 1997 2000) Machado (1999)

6 A polecircmica sobre o uso da noccedilatildeo de competecircncia pode ser encontrada em FIDALGO amp MACHADO (2000 p 56 e120) SANTOS (2003) 7 Segundo FIDALGO amp OLIVEIRA (2001) NETEFAEUFMG Nuacutecleo de Estudo sobre Trabalho e Educaccedilatildeo da Faculdade de Educaccedilatildeo da UFMG NESTHFAFICHUFMG Nuacutecleo de Estudo sobre o Trabalho Humano NEDATEUFF Nuacutecleo de documentaccedilatildeo e dados sobre trabalho e educaccedilatildeo Grupo Trabalho - Educaccedilatildeo Carlos Chagas e da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo NTEUFC Nuacutecleo Trabalho e Educaccedilatildeo da Univer-sidade Federal do Cearaacute Conferir dossiecirc trabalho e educaccedilatildeo publicado em Educaccedilatildeo em Revista (2001)

7

defendem a necessidade de se investigar o saber no trabalho a partir da perspectiva que o tra-

balhador confere a este saber Nesse sentido eacute vaacutelido acrescentar uma observaccedilatildeo feita por

Santos (1997)

A capitalizaccedilatildeo dos benefiacutecios proporcionados pelo saber do trabalhador agrave produ-ccedilatildeo eacute uma estrateacutegia jaacute colocada em marcha pelos empresaacuterios Fica a tarefa de construir uma alternativa que deixando de ser resistecircncia passiva e natildeo caindo na co-gestatildeo do saber no trabalho resgate o valor epistemoloacutegico social poliacutetico e cultural do saber do trabalhador (p 26)

Apresentada a importacircncia do tema na perspectiva dos trabalhadores emerge uma

pergunta como as pesquisas sobre este tema poderiam favorecer a proposta de Santos A

nosso ver uma possibilidade de resposta pode ser construiacuteda a partir de uma investigaccedilatildeo que

considere a capacidade dos trabalhadores de chatildeo de faacutebrica de interpretar o mundo do traba-

lho

Esse tema tambeacutem se faz presente na literatura que discute a questatildeo das poliacuteticas

puacuteblicas em educaccedilatildeo mais precisamente aquelas voltadas para a formaccedilatildeo profissional No

atual momento como demonstraram Evangelista (2002) Machado (1999) Souza (2002) e

Kuenzer (1997) o processo de reestruturaccedilatildeo produtiva vem requisitando um trabalhador com

uma formaccedilatildeo baacutesica mais soacutelida e ampliada As pesquisas revelam que os capitalistas pres-

sionam por uma concepccedilatildeo de educaccedilatildeo pautada em um modelo de competecircncias que garanta

a formaccedilatildeo de um trabalhador que exerccedila com excelecircncia multitarefas (KUENZER 1997

CARVALHO 1999)

Dessa forma investigar a presenccedila de saberes no trabalho corresponde a uma demanda

extremamente atual seja qual for o foco privilegiado Todavia entendemos que para avanccedilar

em relaccedilatildeo ao que estaacute disponiacutevel na literatura apreciada eacute necessaacuterio conhecer mais sobre os

saberes produzidos pelos trabalhadores Nossa contribuiccedilatildeo se refere aos caminhos que os

trabalhadores percorrem para produzir seus saberes e ao fato de apresentar de que forma eles

8

satildeo mobilizados e formalizados Daiacute que elegemos investigar as estrateacutegias usadas pelos fer-

ramenteiros de uma induacutestria metaluacutergica para produzir mobilizar e formalizar os seus sabe-

res

Se de um lado as pesquisas demonstram que o saber taacutecito do trabalhador estaacute se

constituindo como um objeto que mobiliza diversos interesses por outro lado alguns pesqui-

sadores explicitaram a necessidade de se ampliarem as investigaccedilotildees De acordo com Aranha

(1997)

O conhecimento taacutecito embora decisivo natildeo tem merecido ainda o enfoque neces-saacuterio Primeiro por sua dificuldade em expressar-se de forma sistematizada ou pela ausecircncia de interesses reais de quem deteacutem o controle dos processos de trabalho e de formaccedilatildeo de alccedilaacute-lo no niacutevel de ldquoconhecimento cientiacuteficorsquorsquo Segundo porque muitas vezes eacute tido como ldquoalgordquo natural e natildeo fruto de um processo social de cons-truccedilatildeo (p 26)

Neste sentido esta investigaccedilatildeo se justifica tambeacutem pela possibilidade de trazer novos

elementos teoacutericos e praacuteticos que subsidiem os trabalhadores nos seus esforccedilos de formalizar

e legitimar os seus saberes

As investigaccedilotildees sobre o saber no trabalho podem contribuir com as poliacuteticas puacuteblicas

educacionais na medida em que permitem conhecer outras formas de apreensatildeo da realidade e

de construccedilatildeo de saberes bem como verificar a influecircncia da escola formal na produccedilatildeo des-

ses saberes Tem-se ainda a chance de validar os saberes dos trabalhadores ao se incorporar

essas novas formas no debate escolar reforccedilando a perspectiva de uma formaccedilatildeo pelo traba-

lho e natildeo exclusivamente para o trabalho Essa praacutetica jaacute eacute relativamente consagrada no setor

produtivo conforme esclarece Therrien (1996) ldquoO debate da lsquoqualidade totalrsquo nascido do

chatildeo das interaccedilotildees da faacutebrica evidenciou capacidades de elaboraccedilatildeo de soluccedilotildees de constru-

ccedilotildees de saberes que manifestam lsquoexistecircncia de racionalidadersquo que fogem aos padrotildees formais

da ciecircncia e da tecnologiardquo (p 67)

9

A investigaccedilatildeo sobre o saber taacutecito do trabalhador poderaacute contribuir tambeacutem com o

debate sobre o ldquoalavancamentordquo tecnoloacutegico do Brasil uma vez que as pesquisas apontam

que a tecnologia presente no processo de trabalho tem um deacutebito com o saber taacutecito do traba-

lhador Essa possibilidade se apresenta em uma reflexatildeo de Santos (2000)

O desenvolvimento tecnoloacutegico as inovaccedilotildees teacutecnicas se concretizam por uma so-ma de pequenas e grandes iniciativas de pequenas e grandes decisotildees de pequenas e grandes conquistas dos trabalhadores O domiacutenio dos processos teacutecnicos se expe-rimenta dia apoacutes dia

Em que pese a contribuiccedilatildeo das pesquisas sobre a questatildeo do saber no processo de tra-

balho persistem ainda algumas lacunas que ficam evidenciadas pelo aparente consenso de

que o saber taacutecito natildeo eacute formalizaacutevel Aranha afirma que segundo Machado ldquoAs qualifica-

ccedilotildees taacutecitas satildeo como um saber-fazer complementar e necessaacuterio ao sistema teacutecnico intuitivo

e natildeo codificaacutevelrdquo (ARANHA 1997 p 13)

Em nosso entendimento o debate dessa perspectiva aparentemente consensual eacute pos-

siacutevel e se constitui como um desafio a ser perseguido cuja expectativa eacute contribuir para a va-

lorizaccedilatildeo do saber do trabalhador como diz Santos (1997) em suas dimensotildees ldquo() epistecircmi-

ca econocircmica e culturalrdquo

Por fim mesmo reconhecendo o saber do trabalhador como um objeto complexo con-

sideramos que uma parte da lacuna sobre o saber taacutecito se deva ao fato de que a maioria das

pesquisas sobre esse tema tenha privilegiado uma abordagem que natildeo explora em profundida-

de o como estes saberes satildeo produzidos mobilizados e formalizados por um segmento impor-

tante da induacutestria mecacircnica os ferramenteiros Dessa forma a nossa pesquisa pretende conhe-

cer os caminhos percorridos pelos trabalhadores ferramenteiros para produzir mobilizar e

formalizar os seus saberes

Neste sentido acreditamos que esta pesquisa ao aceitar o desafio de apreender as es-

trateacutegias usadas pelos ferramenteiros para produzir mobilizar e formalizar seus saberes con-

10

tribuiraacute com elementos de ordem teoacuterica e praacutetica para a discussatildeo em torno da legitimidade

do saber taacutecito e cobriraacute uma lacuna no campo de trabalho e educaccedilatildeo com novas descobertas

acerca dos saberes presentes no processo de trabalho Auxiliaraacute tambeacutem as poliacuteticas puacuteblicas

voltadas para a formaccedilatildeo do trabalhador ao apresentar outras formas de produccedilatildeo de saberes e

de apreensatildeo da realidade Portanto os objetivos que nortearam esta pesquisa satildeo

bull Conhecer os caminhos que os ferramenteiros percorrem para produzir mobilizar e

formalizar os seus saberes taacutecitos

bull Verificar se esses caminhos se transformam ou natildeo em meacutetodos de trabalho dos fer-

ramenteiros

bull Verificar a legitimidade que os ferramenteiros atribuem agraves suas estrateacutegias de pro-

duccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes taacutecitos

Se por um lado entendemos como necessaacuterio apresentar a nossa problematizaccedilatildeo so-

bre a hipoacutetese de que os ferramenteiros possam desenvolver estrateacutegias para produzir mobili-

zar e formalizar seus saberes por outro lado eacute importante salientar que ao definirmos as es-

trateacutegias usadas pelos ferramenteiros como produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes

natildeo buscamos demarcar uma separaccedilatildeo hermeacutetica entre elas e sim analisar se as suas seme-

lhanccedilas e diferenccedilas se articulam Por este motivo apresentaremos um breve debate sobre

essas trecircs categorizaccedilotildees

121 A produccedilatildeo de saberes

As pesquisas que abordam a questatildeo da produccedilatildeo de saberes pelo trabalhador afirmam

que esses saberes se apresentam perante a necessidade do trabalhador superar determinadas

dificuldades no processo de trabalho dados os limites da engenharia em prescrever o que de-

ve ser feito para garantir a realizaccedilatildeo de uma atividade trabalho (MACHADO 1999 ASSIS

11

2000) A partir dessa perspectiva quando discutimos o saber taacutecito acabamos por aproximar

essa noccedilatildeo de uso do saber com a inventividade e a criatividade do trabalhador dentro do pro-

cesso de trabalho ou seja com as ldquosaiacutedasrdquo e as ldquogambiarrasrdquo criadas pelos trabalhadores para

realizarem um determinado trabalho

Um dos pressupostos que sustenta a possibilidade de que os trabalhadores possam

produzir saberes reside na tese de que o trabalho eacute marcado por um princiacutepio educativo San-

tos (2000) faz uma consideraccedilatildeo sobre essa possibilidade

() trabalhar eacute satisfazer uma exigecircncia - produzir - mas estreitamente ligada ao fa-to de criar de aprender de desenvolver de dominar de adquirir um saber Traba-lhar eacute procurar preencher certas lacunas do saber e desse modo as suas proacuteprias Quer dizer desenvolver se informar se formar Se transformar se experimentar e experimentar sua inteligecircncia (p 129)

A consideraccedilatildeo de que o trabalho eacute marcado por um princiacutepio educativo se potenciali-

za segundo as pesquisas mediante a incapacidade da engenharia enquanto um conjunto de

saberes formalizados em dar conta das demandas reais e que satildeo necessaacuterias para garantir o

andamento do processo produtivo (SANTOS 1997 SALERNO 1994) Essa incapacidade da

gerecircncia deixa um espaccedilo no processo de trabalho para as chamadas situaccedilotildees imprevistas Eacute

diante do inesperado que a criatividade do trabalhador em solucionar os problemas do traba-

lho faz a diferenccedila entre o que a engenharia prescreve e o que realmente ocorre no processo

de trabalho O capital usa esse expediente de forma que a gerecircncia convoca e pressiona por

soluccedilotildees do chatildeo de faacutebrica mesmo sabendo que a situaccedilatildeo se desenvolve dentro do inespe-

rado Evangelista (2002) fez a seguinte observaccedilatildeo a esse respeito ldquoSe as situaccedilotildees estatildeo fora

do previsto natildeo importa eacute preciso produzir garantindo o ecircxitordquo (p 131)

Ao usar a sua inteligecircncia para superar os entraves do ldquoinesperadordquo o trabalhador i-

nova produzindo saberes e tambeacutem aprende a aprender A possibilidade de que a relaccedilatildeo do

trabalhador com os imprevistos do processo produtivo se configure como um momento peda-

12

goacutegico foi apontada por Machado (1999) ldquoHaacute uma escolha a ser feita e que nas situaccedilotildees de

trabalho entra em uma perspectiva dialeacutetica entre as regras do saber estabelecido e o natildeo-

saber que o acaso impotildee promovendo um processo de construccedilatildeo de saber no trabalhordquo (p

151)

A inteligecircncia do trabalhador lhe permite ir aleacutem da superaccedilatildeo do inesperado Ao pocircr a

sua criatividade em marcha os trabalhadores buscam realizar o seu trabalho da forma mais

confortaacutevel mais bonita ou mais faacutecil8 Eacute nesse contexto que surgem os ldquoatalhosrdquo Santos

(1985) em uma pesquisa sobre o trabalho dos caldeireiros nos revela que esses profissionais

a partir da produccedilatildeo de ldquomacetesrdquo ou ldquogambiarrasrdquo criavam soluccedilotildees para facilitarem a reali-

zaccedilatildeo do seu trabalho Essa pesquisadora (1985 p 62) apresenta o depoimento de um traba-

lhador sobre essa questatildeo ldquoA gente costuma fazer ferramentas para facilitar o nosso trabalho

espaacutetula cachorro e gabarito () Vamos dizer que a gente vai fazer um cone que eacute a peccedila

mais difiacutecil de calandrar A gente sempre usa um macete qualquer e adianta maisrdquo

Se de um lado eacute o imprevisiacutevel e o natildeo-prescrito pela engenharia que convocam o sa-

ber taacutecito do trabalhador por outro lado a fecundidade dos macetes e das intervenccedilotildees do

trabalhador dialoga com os tipos de meio de produccedilatildeo especiacuteficos em cada processo de traba-

lho De acordo com Evangelista (2002) ldquoA tecnologia e o maquinaacuterio usado na produccedilatildeo

influem significativamente na possibilidade que os trabalhadores tecircm de construccedilatildeo e de

controle do conhecimento mobilizado no processo de trabalhordquo (p 134)

Essa consideraccedilatildeo aparece nas pesquisas principalmente nos processos automatizados

como um algo a mais na produccedilatildeo de saber no trabalho Assis (2000) ao investigar o monito-

ramento da produccedilatildeo em uma siderurgia feita pelos operadores atraveacutes dos paineacuteis de contro-

le observa que a obrigaccedilatildeo de anular os possiacuteveis danos causados pelos imprevistos leva-os a

produzir um novo saber

8 Em vaacuterias induacutestrias em que trabalhamos existia a expressatildeo ldquojogar faacutecilrdquo

13

Observamos tambeacutem que a ldquovigilacircnciardquo dos operadores no acompanhamento natildeo significa apenas uma qualidade visual ou sensorial mas faz emergir um saber mais abstrato sendo tudo isto necessaacuterio quando se reconhece a falibilidade dos meios teacutecnicos e a possibilidade de imprevistos (p 94)

Outro exemplo dessa natureza que consideramos importante eacute o caso da produccedilatildeo de

saberes em empresas que possuem maacutequinas com CNC9 Essas empresas frequumlentemente op-

tam por colocarem como operadores de CNC torneiros mecacircnicos com experiecircncia em maacute-

quina convencional Ao fazerem essa opccedilatildeo as empresas levam em consideraccedilatildeo a capacida-

de dos torneiros mecacircnicos de anteciparem os possiacuteveis problemas com o CNC Um desses

casos foi identificado por Vieira apud Evangelista (2002)

No caso do trabalhador possuir um conhecimento preacutevio adquirido no uso de tec-nologia convencional quando ele se depara com uma maacutequina do tipo CNC de tecnologia avanccedilada eacute possiacutevel unir teoria e praacutetica essa uacuteltima adquirida na maacute-quina convencional No entanto para aqueles que iniciaram a praacutetica diretamente nesta maacutequina CNC fica mais difiacutecil diagnosticar por exemplo a origem de deter-minado problema no processo (p 135)

No caso do CNC apresenta-se ainda uma produccedilatildeo de saber muito complexa Um

exemplo concreto de resoluccedilatildeo de um problema e antecipaccedilatildeo de outro cujo tipo de maacutequina

e tecnologia interfere na produccedilatildeo de saber eacute abordado por Salerno (1994) O saber adquirido

no trabalho em maacutequinas convencionais auxiliou os trabalhadores natildeo somente na detecccedilatildeo de

um problema no programa do CNC mas permitiu-lhes elaborar um programa melhor do que o

da engenharia

Numa faacutebrica que visitamos um programa consistia em fazer um pesado corte num bloco de alumiacutenio - uma operaccedilatildeo que gera calor consideraacutevel ndash e entatildeo fazer dois furos com distacircncia precisa entre eles Quando os passos do programa satildeo carrega-dos nessa ordem a distacircncia entre os furos diminui agrave medida em que o alumiacutenio es-fria O operaacuterio foi capaz de corrigir o problema alterando o programa para fazer primeiro a furaccedilatildeo (SHAIKEN apud SALERNO 1994 p 73)

9 De acordo com FARIA (1997) CNC ndash Comando Numeacuterico Computadorizado eacute um ldquocomando com capacida-de de receber informaccedilotildees memorizar executar caacutelculos e transmiti-los agrave maacutequina para execuccedilatildeo da peccedilardquo (p 39)

14

122 A mobilizaccedilatildeo de saberes

Se as pesquisas confirmam a chance de o trabalhador produzir saberes no trabalho em

nosso entendimento quando avanccedilamos sobre essa possibilidade nos remetemos a algumas

indagaccedilotildees dentre as quais quais elementos os trabalhadores mobilizam para produzir seus

saberes taacutecitos A literatura que aborda o tema aponta alguns elementos que poderiam favore-

cecirc-lo tais como a escolarizaccedilatildeo formal a experiecircncia no trabalho e as relaccedilotildees sociais dentro

e fora do ldquochatildeo de faacutebricardquo

No que se refere agraves influecircncias recebidas pelos trabalhadores da escola formal temos

um debate multifacetado De um lado as pesquisas revelam que no padratildeo flexiacutevel e integra-

do haacute uma exigecircncia por parte das empresas de uma maior escolarizaccedilatildeo dos trabalhadores

com base na suposiccedilatildeo de que em funccedilatildeo das multitarefas e da presenccedila da informaacutetica no

processo de trabalho as tarefas exigem uma maior cogniccedilatildeo do operaacuterio (KUENZER1996

EVANGELISTA 2002 ARAUacuteJO 2001 SOUZA 2002) Ainda nessa seara investigar as

estrateacutegias que os trabalhadores possuem para produzir mobilizar e formalizar seus saberes

poderaacute revelar de que forma os saberes aprendidos na escola formal influenciam ou natildeo as

soluccedilotildees criadas pelos operaacuterios nas situaccedilotildees de trabalho

Por outro lado alguns autores defendem que a convivecircncia com o processo de traba-

lho ou seja a experiecircncia profissional continua sendo um fator fundamental que subsidia a

elaboraccedilatildeo do saber do trabalhador e que a influecircncia da escolarizaccedilatildeo formal ocuparia um

plano secundaacuterio Vieira apud Evangelista (2002 p 124) apresenta por exemplo uma anaacuteli-

se que questiona a cobranccedila do ensino meacutedio por parte da Fiat em relaccedilatildeo agraves exigecircncias reais

do processo de trabalho ldquo() considerando o contexto da empresa conclui-se que o quadro

funcional do motor Fire com trabalhadores mais escolarizados decorre mais de uma questatildeo

de oferta (de trabalhadores formados) do que de demanda (da proacutepria produccedilatildeo)rdquo Carvalho

15

apud Evangelista (2002 p 133) aprofunda esse questionamento e afirma ldquo() os trabalhado-

res tecircm consciecircncia de que a formaccedilatildeo profissional natildeo abrange amplamente a praacutetica cotidia-

na de trabalho e que o valor formativo da experiecircncia tem que ser levado em contardquo

Outro exemplo que articula a construccedilatildeo do saber taacutecito com experiecircncia profissional

se remete agrave questatildeo do erro no processo do trabalho O capital tende a se posicionar distinta-

mente em relaccedilatildeo aos erros da concepccedilatildeo e da execuccedilatildeo Essa distinccedilatildeo eacute conhecida pelos

trabalhadores o que torna o erro um momento de aprendizagem para o trabalhador e parte

fundamental da construccedilatildeo do seu saber taacutecito

Um comentaacuterio acerca do erro foi feito por Vieira apud Evangelista (2002) quando

relata a fala de um trabalhador da Fiat ldquoSegundo o entrevistado os trabalhadores brasileiros

em comparaccedilatildeo aos italianos ofereciam uma vantagem importante nessa dinacircmica competiti-

va pois inovam bastante e natildeo tecircm medo de errar () a gente vai tentando fazendo diferente

uma hora daacute certordquo (p 132)

Alves Carvalho aponta a demanda de um outro saber-fazer em um contexto de incerte-

zas no mundo do trabalho Como cita Machado (1999) ldquoA gestatildeo da competecircncia requisita

habilidades cognitivas e comportamentais para lidar com o novo e com o incertordquo (p 186) O

que estas pesquisas natildeo problematizaram eacute como os trabalhadores se apropriam dos seus erros

e dos erros dos seus colegas e de como estes erros se transformam em saberes

Por fim alguns autores destacam a influecircncia do aspecto coletivo ou das relaccedilotildees soci-

ais na produccedilatildeo do saber Evangelista (2002) Assis (2000) Arauacutejo (2002) Souza (2002) e

Machado (1999) afirmam que o capital ao reconhecer a dimensatildeo coletiva do saber do traba-

lhador busca ao seu modo recriar espaccedilos de coletividade para facilitar a integraccedilatildeo do saber

do trabalhador no processo produtivo O capital trabalha ainda com a hipoacutetese de que saberes

diferenciados possam se complementar no processo produtivo Um desses casos pode ser ve-

rificado na pesquisa de Evangelista (2002 p 76) onde se destaca a introduccedilatildeo de uma outra

16

sociabilidade no processo produtivo feita pela Fiat na figura das UTEs (Unidades Tecnoloacutegi-

cas Elementares) ldquoTrata-se de uma estrateacutegia que visa reunir profissionais de vaacuterias aacutereas e

favorecer o trabalho em equiperdquo Vejamos uma reflexatildeo de Santos (1997) sobre essa questatildeo

ldquoO saber e as relaccedilotildees que os trabalhadores estabelecem entre si e com o saber deixam de ser

resultados fortuitos da vida e no trabalho e tornam-se fonte de toda produtividaderdquo (p 18)

Assis (2000) conferiu tanta importacircncia a essa questatildeo que acabou por tornaacute-la foco de

sua dissertaccedilatildeo Dentre outras coisas Assis verifica que a empresa ldquoexige que os trabalhado-

res coloquem constantemente em praacutetica o seu savoir-faire Este deve ser construiacutedo de forma

prioritariamente coletiva com constantes trocas de saberes e discussotildees sobre as representa-

ccedilotildees que cada trabalhador possui dos acontecimentosrdquo (p 16)

Em relaccedilatildeo aos interesses dos trabalhadores a dimensatildeo coletiva da produccedilatildeo do saber

eacute interpretada por muitos pesquisadores como uma vantagem dos trabalhadores que ateacute certo

ponto poderiam escolher com quem compartilhar o seu saber uma vez que ele estaacute inscrito

em uma ldquorederdquo com coacutedigos e interesses proacuteprios dos trabalhadores Aranha (1997) chega a

falar em ldquodomiacutenio coletivo do processo de trabalhordquo (p 20) Evangelista (2002) faz uma re-

flexatildeo sobre a inserccedilatildeo do saber nas relaccedilotildees sociais que recupera as possibilidades de resis-

tecircncia do trabalhador

Esse conhecimento praacutetico produzido tambeacutem para ser empregado no cotidiano fa-bril supotildee a comunicaccedilatildeo verbal ou natildeo de um conjunto de siacutembolos a se interpre-tar Exata interpretaccedilatildeo implica que emissores e receptores de informaccedilotildees estejam dispostos a ajustar continuamente suas accedilotildees em funccedilatildeo de expectativas e reaccedilotildees do outro (p 56)

Se de um lado o capital cria novas estrateacutegias para apropriar o saber do trabalhador

por outro lado os trabalhadores continuam criando novos saberes e reapropriando outros for-

malizados pela concepccedilatildeo (ASSIS 2000 SALERNO 1994) e inclusive alguns saberes jaacute

formalizados pela ciecircncia como por exemplo o tratamento teacutermico usado para melhorar as

17

caracteriacutesticas de resistecircncia do accedilo ou mesmo saberes escolares tais como geometria e tri-

gonometria

Estes satildeo alguns dos pontos cruciais que nossa investigaccedilatildeo pretende abordar quando

priorizamos a possibilidade de os trabalhadores produzirem mobilizarem e formalizarem es-

trateacutegias que lhe permitam produzir mobilizar e organizar os seus saberes

123 A formalizaccedilatildeo de saberes

As possibilidades de os trabalhadores formalizarem os seus saberes ao nosso olhar

implicam duas questotildees baacutesicas primeira uma necessidade de conferir ao seu saber um miacute-

nimo de confiabilidade para ser usado Segunda a capacidade dos trabalhadores em gerenciar

a sua atividade de trabalho Essas possibilidades dos trabalhadores bem como as do capital

aleacutem de encontrar guarida em algumas situaccedilotildees concretas correspondem a uma avaliaccedilatildeo

feita por Polany apud Frade (2003) ldquoO fato de um conhecimento taacutecito natildeo poder ser total-

mente declarado natildeo significa que ele natildeo possa ser comunicado ou compartilhadordquo

Na nossa proacutepria experiecircncia como metaluacutergico tomamos contato com alguns casos de

saberes formalizados tanto pelos trabalhadores quanto pelo capital Citaremos um caso que

ficamos conhecendo pelo contato com os colegas mais experientes durante a nossa vivecircncia

de trabalhador na induacutestria Os torneiros mecacircnicos modificavam a inclinaccedilatildeo do acircngulo de

suas ferramentas para obter um melhor corte no material a ser trabalhado Neste caso a inter-

venccedilatildeo exigia do torneiro experiecircncia na profissatildeo e noccedilotildees de geometria e estaacutetica Essa praacute-

tica possibilitou que a engenharia realizasse estudos com auxiacutelio dos saberes dos torneiros

mecacircnicos no sentido de estabelecer o acircngulo correto para cada situaccedilatildeo de trabalho Esse

caso permitiu a padronizaccedilatildeo de um grande nuacutemero de ferramentas e criaccedilatildeo de uma tecnolo-

18

gia conhecida como geometria de corte Tamanho efeito teve essa modificaccedilatildeo que ela gerou

um ramo paralelo as induacutestrias de pastilhas intercambiaacuteveis

A ideacuteia da natildeo-formalizaccedilatildeo absoluta do saber do trabalhador aleacutem de contrariar al-

guns casos concretos pode tambeacutem colaborar para a sua natildeo-legitimaccedilatildeo reforccedilando a con-

cepccedilatildeo que hierarquiza o trabalho manual e intelectual Essa possibilidade foi colocada por

Santos ldquoO que distingue o saber da concepccedilatildeo - da engenharia- e lhe daacute legitimidade eacute a sua

formalizaccedilatildeo sancionada por um conhecimento social e epistemologicamente reconhecidordquo

(SANTOS 1997 p 21)

A dificuldade de apreensatildeo do saber taacutecito natildeo pode ser traduzida e este risco existe

em uma inconsistecircncia do saber produzido pelo trabalhador Ateacute mesmo a engenharia possui

seus niacuteveis de saberes natildeo-formalizados e natildeo arca com o mesmo ocircnus que os trabalhadores

Santos (1997) propotildee uma distinccedilatildeo ldquoComo em qualquer campo do conhecimento haacute ao niacute-

vel da concepccedilatildeo na engenharia um saber que pode se apresentar como natildeo formalizado sim-

plesmente por natildeo ser ainda formalizaacutevelrdquo (p 23)

Ainda neste artigo Santos ao relatar o depoimento de um engenheiro demonstra que

essa ocorrecircncia eacute reconhecida pela proacutepria engenharia De acordo com essa autora este enge-

nheiro da Usimec responsaacutevel pelo desenvolvimento de projetos de turbinas eleacutetricas comen-

tou sobre a dificuldade de se prever o comportamento de um material fluiacutedo fundamental

para a tecnologia de turbina Segundo o engenheiro abordado por Santos (1997) ldquoMesmo

centros internacionais Franccedila Alemanha Estados Unidos possuem computadores capazes

apenas de definir um comportamento proacuteximo daquele fluiacutedo realrdquo (p 22)

Outro exemplo embora sutil que tivemos oportunidade de perceber em nossa experi-

ecircncia como metaluacutergico eacute que a proacutepria engenharia reconhece os limites de alguns de seus

saberes cuja expressatildeo aparece no uso sistematizado do fator de seguranccedila (fs) uma constan-

te matemaacutetica presente nos caacutelculos da engenharia onde o tabelamento varia para cada proje-

19

to incorporando uma margem de erro Como por exemplo se em um caacutelculo para dimensio-

nar um cabo de accedilo de uma caccedilamba o resultado for de 100mm de diacircmetro este valor eacute mul-

tiplicado por (fs) = 1210 resultando em uma medida de 120mm

Ao nosso ver a ideacuteia de que o saber taacutecito natildeo pode ser formalizado peca pelo seu o-

lhar excessivamente imediato sobre a situaccedilatildeo de trabalho o que tende a reduzir o saber do

trabalhador somente a uma accedilatildeo momentacircnea a uma habilidade manual de uacuteltima hora uma

naturalizaccedilatildeo enfim Essa interpretaccedilatildeo poderia reproduzir a imagem de um trabalhador que o

capital sempre desejou aquele que interveacutem cria colabora e natildeo sabe por quecirc

Essa perspectiva parece estar presente na proacutepria legislaccedilatildeo sobre a propriedade inte-

lectual Lei n 009279 de 1451999 que ao inveacutes de contribuir para a legitimaccedilatildeo do saber

taacutecito acaba por perceber a produccedilatildeo de saberes restringida ao espaccedilo e agraves condiccedilotildees de tra-

balho dentro das empresas conforme aponta em seus artigos 90 e 91

ldquoArt 90 Pertenceraacute exclusivamente ao empregado a invenccedilatildeo ou o modelo de uti-lidade por ele desenvolvido desde que desvinculado do contrato de trabalho e natildeo decorrente da utilizaccedilatildeo de recursos meios materiais instalaccedilotildees ou equipamen-tos do empregadorrdquo ldquoArt 91 A propriedade de invenccedilatildeo ou de modelo de utilidade seraacute comum em partes iguais quando resultar da contribuiccedilatildeo pessoal do empregado e de recursos dados meios materiais instalaccedilotildees ou equipamentos do empregador ressalvado expressa disposiccedilatildeo contratual em contraacuteriordquo

Embora a discussatildeo legal natildeo seja o foco de nossa pesquisa o fato eacute que a proacutepria lei

natildeo acolhe todas as condiccedilotildees de produccedilatildeo do saber no trabalho Essa lacuna pode ser produto

de uma abordagem reducionista do valor desse saber e de certa forma faz com que esta pes-

quisa ganhe mais uma relevacircncia

Nossa hipoacutetese comeccedila a ser construiacuteda a partir da consideraccedilatildeo de que quando o tra-

balhador passa a ter uma noccedilatildeo do valor do seu saber no processo de trabalho ele tende a au-

10 Valor aleatoacuterio para efeito de exemplo Em algumas induacutestrias em que trabalhamos o fator de Seguranccedila eacute ironicamente chamado de fator de ignoracircncia

20

mentar o zelo com a construccedilatildeo deste saber e que este zelo pode ser traduzido em um empe-

nho dos trabalhadores em formalizarem os seus saberes Fica ainda a seguinte questatildeo qual a

linguagem usada pelos trabalhadores para formalizar o seu saber

A nossa hipoacutetese eacute que a produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saber pelos traba-

lhadores no processo de trabalho se realizariam atraveacutes da produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formaliza-

ccedilatildeo de estrateacutegias taacutecitas Neste caso a questatildeo do saber natildeo se limita agrave aplicaccedilatildeo do savoir-

faire do trabalhador na produccedilatildeo mas tambeacutem agrave forma de como esse saber foi construiacutedo

mobilizado e formalizado pois a proacutepria estrateacutegia jaacute seria um sofisticado saber Talvez seja

esse saber o saber das estrateacutegias taacutecitas o elemento que decirc confianccedila ao trabalhador para

ldquofugirrdquo da prescriccedilatildeo da engenharia ou da concepccedilatildeo e que lhe permite ainda emancipar e

adaptar o seu saber ao princiacutepio dinacircmico presente em todos os processos de trabalho

Eacute mister salientar que optar por apreender estas estrateacutegias eacute priorizar uma aproxima-

ccedilatildeo com o trabalhador e com as condiccedilotildees que o favoreccedilam criaacute-las uma vez que o saber taacuteci-

to se apresenta como patrimocircnio coletivo de uma determinada eacutepoca Em nossa vivecircncia de

operaacuterio tivemos a oportunidade de observar e conhecer casos de intervenccedilatildeo do trabalhador

em que soluccedilotildees semelhantes foram elaboradas em situaccedilatildeo de trabalho nem sempre iguais

em espaccedilos distintos e por sujeitos que natildeo se conheceram Esse exemplo demonstra que a

questatildeo do saber taacutecito do trabalhador dialoga com a proacutepria histoacuteria do conhecimento Essa

possibilidade pode ser percebida em uma anaacutelise feita por Machado (1996)

Para compreender o sentido e o significado das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas eacute necessaacuterio situaacute-las no contexto social em que se desenvolvem pois elas expressam o movi-mento contraditoacuterio da ciecircncia e da teacutecnica (aspecto loacutegico) e a natureza soacutecio-poliacutetica do modo de produccedilatildeo (aspecto soacutecio-histoacuterico) (p 112)

Considerando a relevacircncia e a complexidade do saber taacutecito acreditamos ser possiacutevel

por meio desta pesquisa contribuir para o esclarecimento das estrateacutegias que os ferramentei-

ros usam para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes no trabalho

21

13 O REFERENCIAL TEOacuteRICO

Desde os primeiros momentos de desenvolvimento desta pesquisa buscamos apoio em

referenciais teoacutericos que nos permitissem tomar o nosso objeto de forma articulada com cate-

gorias como a centralidade do trabalho na constituiccedilatildeo da sociabilidade a presenccedila de saberes

no processo de trabalho o saber taacutecito do trabalhador e a relaccedilatildeo entre teoria e praacutetica na

construccedilatildeo deste tipo de saber Todavia o proacuteprio objeto desta pesquisa nos mobilizou no

sentido de buscar no referencial teoacuterico tambeacutem uma possibilidade de tomar a presenccedila de

saber no trabalho por um olhar mais proacuteximo aos protagonistas do chatildeo de faacutebrica no caso

especiacutefico desta pesquisa os ferramenteiros

Para dar conta do desafio de investigar as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros para

produzir organizar e mobilizar seus saberes nos apoiamos em autores que seguindo a tradi-

ccedilatildeo do materialismo histoacuterico referendam o trabalho como categoria central na formaccedilatildeo do

homem e por conseguinte na constituiccedilatildeo da sociabilidade (MARX 1985 GRAMSCI

1995) Contamos tambeacutem com os pensadores que a partir da ldquonoccedilatildeo ergonocircmicardquo de ldquotraba-

lho prescrito e trabalho realrdquo discutem o saber taacutecito do trabalhador no processo de trabalho

(ARANHA 1997 SANTOS 1991 1997 2000 SALERNO 1994 LIMA 1998) bem como

os pesquisadores que abordam os atuais impactos do processo de reestruturaccedilatildeo produtiva no

mundo do trabalho (ANTUNES 2001 CORIAT 1994 GOUNET 1999) E ainda buscamos

dialogar com pensadores que abordam a relaccedilatildeo entre a praacutetica e a teoria na construccedilatildeo do

saber taacutecito (NOUROUDINE 2002 MALGLAIVE 1990 POLANY 1967 SCHON 2000)

Em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo e ao conceito de trabalho11 eleito para este projeto compartilha-

mos com os autores que percebem o trabalho como a atividade constituidora da humanidade

11 Diante dos objetivos desta pesquisa nos limitaremos ao diaacutelogo com os autores que discutem o trabalho no modo de produccedilatildeo capitalista mais especificamente aqueles que abordam o processo de reestruturaccedilatildeo produti-va e suas principais referecircncias de organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho quais sejam o taylorismofordismo e toyo-tismo (ANTUNES 2001 CORIAT 1994 GOUNET 1999)

22

e portanto categoria central na formaccedilatildeo do homem (MARX 1985 GRAMSCI 1995 AN-

TUNES 2001) Essa perspectiva como jaacute foi mencionado anteriormente tem sua matriz nas

ideacuteias marxistas Vejamos uma citaccedilatildeo do proacuteprio Marx (1985)

Antes de tudo o trabalho eacute um processo entre o homem e a natureza () Ele potildee em movimento as forccedilas naturais pertencentes agrave sua corporalidade braccedilos e pernas cabeccedila e matildeo a fim de apropriar-se da mateacuteria natural numa forma uacutetil para a sua proacutepria vida Ao atuar por meio desse movimento sobre a natureza externa a ele e ao modificaacute-la ele modifica ao mesmo tempo sua proacutepria natureza (p 149)

Eacute por esta trilha que se ergue tambeacutem um dos aspectos educativos do trabalho pois

ao modificar a sua proacutepria natureza o trabalho permite ao homem dirigir-se a si mesmo Se-

gundo Macaacuterio (1999) ldquoO domiacutenio do homem sobre si mesmo eacute de fato um pressuposto

imprescindiacutevel para o sucesso do trabalhordquo (p 89)12

Ainda sobre a centralidade do trabalho Junior (2000 p335) afirma que para Marx tra-

ta-se de uma categoria central a partir da qual ldquopode-se pensar o indiviacuteduo a sociedade com

seus sistemas poliacuteticos juriacutedicos e ideoloacutegicos sua cultura etcrdquo

Outra possibilidade de o trabalho ser tido como determinante na constituiccedilatildeo da socia-

bilidade pode ser dada por ele ser tido por alguns pensadores como uma atividade exclusiva-

mente humana Conforme afirma Alves Carvalho apud Machado (2001) ldquoO trabalho natildeo

pode ser conhecido fora do humano pois ele eacute uma atividade especificadamente humana que

se desenvolve dentro da contradiccedilatildeo entre o singular e o coletivo sendo inseparaacutevel das rela-

ccedilotildees sociais que ele engendrardquo (p 46) Para Macaacuterio (1999) o desvelamento da categoria tra-

12 Este pensador sustenta essa posiccedilatildeo tomando como referecircncia as reflexotildees de LUCKAacuteCS sobre trabalho e o ldquopocircr teleoloacutegicordquo Segundo LUCKAacuteCS apud MACAacuteRIO (1999) ldquoO homem foi definido como o animal que constroacutei os seus proacuteprios utensiacutelios Eacute correto mas eacute preciso acrescentar que construir e usar instrumentos impli-ca necessariamente como pressuposto imprescindiacutevel para o sucesso do trabalho que o homem tenha domiacutenio sobre si mesmo Esse tambeacutem eacute um momento do salto a que nos referimos da saiacuteda do homem da existecircncia puramente animalescardquo (p 89)

23

balho ldquorevelaraacute a essecircncia humana isto eacute aquilo que ontologicamente faz do homem um ser

pertencente a uma esfera superior agraves naturaisrdquo (p 84)13

Se de um lado o referencial marxista aponta o trabalho como uma categoria central

protoforma da sociedade por outro lado encontramos tambeacutem em Marx uma criacutetica agrave forma

sob a qual o trabalho se constitui no capitalismo Neste sentido outras consideraccedilotildees sobre o

trabalho satildeo discutidas nesta pesquisa sobretudo aquelas que abordam como a importacircncia da

presenccedila de saberes vem se inscrevendo nos modelos de organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho

Dessa forma entendemos ser importante apresentar uma anaacutelise feita por Santos e Ferreira

(1996) sobre dois significados de trabalho historicamente construiacutedos

bull ldquotrabalho tomado como a ativa criaccedilatildeo de uma obra por um sujeito que implica uma ideacuteia de liberdade de transformaccedilatildeo de prazer

bull trabalho no sentido de labor onde ganham ecircnfase os conteuacutedos de esforccedilo rotineiro e repe-titivo sem liberdade de resultado consumiacutevel e incocircmodo inevitaacutevelrdquo (p 23)

Em relaccedilatildeo agraves contradiccedilotildees que o trabalho apresenta no modo de produccedilatildeo capitalista

buscamos estabelecer um diaacutelogo com pesquisadores que a partir das investigaccedilotildees sobre o

processo de reestruturaccedilatildeo produtiva abordam a presenccedila de saber no processo trabalho (AN-

TUNES 2001 CORIAT 1994 GOUNET 1999) e sobretudo as pesquisas que atraveacutes do

estudo de situaccedilotildees concretas remetem agrave temaacutetica do saber taacutecito dos trabalhadores (Santos

1985 1991 1997 2000 Aranha 1997 Lima 1998 Salerno 1994 Machado 2001 Assis

2000)

Para prosseguir o percurso de apreensatildeo do nosso objeto de pesquisa entendemos co-

mo necessaacuterio dialogar tambeacutem com os autores que ao discutirem o trabalho no capitalismo

13 Sobre a centralidade do trabalho acreditamos que esta pesquisa ao propor conhecer as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes corrobora a contestaccedilatildeo feita por ANTU-NES (2001) de que a ciecircncia seja a principal forccedila produtiva De acordo com ANTUNES (20001) a aparente autonomia da ciecircncia perante o trabalho natildeo elimina o trabalho como gerador de valor Na atual fase do capita-lismo o trabalho inscreve-se como sempre se fez em uma metamorfose e a ciecircncia permite a extraccedilatildeo do sobre-trabalho

24

fazem referecircncia agrave relaccedilatildeo entre o trabalho prescrito e o trabalho real14 De acordo com Santos

(2000) trabalho prescrito eacute ldquoA definiccedilatildeo preacutevia da maneira como o trabalhador deve executar

o trabalho o modo de usar os equipamentos e as ferramentas o tempo concedido para cada

operaccedilatildeo o como fazer e as regras que devem ser respeitadasrdquo O trabalho real se remete agraves

condiccedilotildees necessaacuterias em que se realiza uma parte do trabalho que sempre escapa agrave prescri-

ccedilatildeo Santos (2000) Para alguns pesquisadores a realizaccedilatildeo do trabalho real soacute se torna possiacute-

vel pela intervenccedilatildeo do saber taacutecito do trabalhador (SANTOS 1991 1997 ARANHA 1997

SALERNO 1994) Essa possibilidade eacute respaldada pelo entendimento de que o trabalho tem

um princiacutepio educativo (NOSELLA 1992) Essa perspectiva jaacute havia sido desenhada por

Gramsci conforme afirma Manacorda (2000) ldquoO trabalho para Gramsci eacute essencialmente

um elemento constitutivo de ensinordquo (p 135)

Optar por investigar os caminhos percorridos pelo trabalhador para a produccedilatildeo orga-

nizaccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo de seus saberes implica ao nosso olhar acreditar que eacute possiacutevel uma

aproximaccedilatildeo com o mundo do trabalho atraveacutes da lente do trabalhador A pesquisa biblio-

graacutefica que realizamos aliada agrave nossa experiecircncia como operaacuterio metaluacutergico nos permite

inferir sobre a possibilidade de o trabalhador se apropriar de saberes formalizados bem como

reapropriar seus saberes que foram incorporados ao saber da engenharia Neste sentido eacute im-

portante salientar que esta pesquisa se orientou tambeacutem pelas reflexotildees de pesquisadores que

defendem a possibilidade de o saber taacutecito do trabalhador favorecer uma leitura positiva do

trabalho (ARANHA 1997 SANTOS 1997 2000) Vejamos uma afirmaccedilatildeo de Santos

(2000) ldquoO trabalhador natildeo eacute um mero executante determinado pelo seu lugar nas relaccedilotildees

sociais e pelos dispositivos teacutecnicos mas tambeacutem um homem sujeito vivente com todo hori-

zonte de universalidade que isto implicardquo (p 123) Neste sentido seria possiacutevel que os traba-

lhadores se afirmassem como sujeitos de interesses proacuteprios pois mesmo que o capital busque 14 Essa perspectiva tem um deacutebito original com os trabalhos vinculados ao campo da ergonomia Neste sentido nos apoiamos especialmente em alguns pensadores desse campo (DANIELLOU 1989 SALERNO 1994 WIS-NER 1987 LIMA 1998)

25

controlar o seu saber ele natildeo lhe expropria a sua condiccedilatildeo de sujeito como nos afirma Char-

lot (2000) ldquoTodo indiviacuteduo eacute um sujeito por mais dominado que seja Um sujeito que inter-

preta o mundo resiste agrave dominaccedilatildeo afirma positivamente seus interesses procura transformar

a ordem do mundo em seu proacuteprio proveitordquo (p 31)

Ao considerar a capacidade transformadora do trabalho nossa pesquisa se referendou

em pesquisadores que recuperam a dimensatildeo concreta do trabalho Daiacute decorre a grande im-

portacircncia de Santos (1997 2000) para esta pesquisa Essa pesquisadora ao mesmo tempo em

que trata das contradiccedilotildees do trabalho no capitalismo e talvez por isso mesmo recupera tam-

beacutem as possibilidades de os trabalhadores atraveacutes de seus saberes se afirmarem como sujei-

tos de interesses proacuteprios Para isto se apoacuteia em Schwartz que ldquointerroga o trabalho como

experiecircncia individual e coletiva como ldquouso de sirdquo que pode ser feito por si e por outros

analisando a natureza epistemoloacutegica das interrogaccedilotildees que lhe concernemrdquo (SANTOS 2000

p 121) Para abordar a possibilidade de ldquouso de sirdquo por parte dos ferramenteiros nos remete-

remos tambeacutem agraves discussotildees propostas pela ergologia (SANTOS 1997 2000 SCHWARTZ

2000 2004)15

Essa perspectiva somada as nossas reflexotildees como operaacuterio nos permitiu ainda tra-

balhar com a ideacuteia de que o trabalhador ao buscar fazer melhor uso de seu saber desenvol-

vesse ele proacuteprio estrateacutegias que lhe garantissem um certo rigor na produccedilatildeo organizaccedilatildeo e

mobilizaccedilatildeo de seu saber

Ao elegermos como nosso objeto de pesquisa as estrateacutegias usadas pelos trabalhadores

para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes entendemos como necessaacuterio conhecer

tambeacutem as condiccedilotildees em que este saber foi produzido e como o trabalhador mobiliza e for-

15 Segundo SCHWARTZ a ergologia natildeo eacute uma nova disciplina Trata-se de uma proposta que congrega natildeo soacute muitas disciplinas que abordam o trabalho portanto multidisciplinar bem como interroga o ponto de vista dos protagonistas do trabalho e ainda o proacuteprio processo histoacuterico que fundamenta respectivamente o olhar cientiacute-fico das disciplinas e o olhar oriundo da experiecircncia no trabalho A ergologia ao tratar das ldquoatividades humanasrdquo inscreve o trabalho em sua dimensatildeo histoacuterica e social reconhecendo-o como uma experiecircncia individual e cole-tiva ldquono seu trabalho o trabalhador eacute sempre uma pessoa inteirardquo (SANTOS 2000 SCHWARTZ 2000 2004 FAITA e SOUZA-e-SILVA 2002)

26

maliza este saber Neste sentido fizemos uma investigaccedilatildeo sobre a literatura que aborda a

relaccedilatildeo entre teoria e praacutetica no que se refere ao saber taacutecito (FRADE 2003 SCHON 2000

POLANY 1967 MALGLAIVE 1990)16

14 AS ESTRATEacuteGIAS METODOLOacuteGICAS

A literatura sobre a pesquisa cientiacutefica faz duas proposiccedilotildees de abordagens metodoloacute-

gicas as pesquisas quantitativas e qualitativas que podem quando for o caso aparecer como

complementares O uso da pesquisa quantitativa eacute indicado quando se apresenta a possibilida-

de de quantificar e mensurar os resultados da investigaccedilatildeo A pesquisa qualitativa normal-

mente eacute marcada pela natildeo-quantificaccedilatildeo dos resultados A sua aplicaccedilatildeo privilegia as dimen-

sotildees subjetivas das relaccedilotildees entre pessoas e entre pessoas e instituiccedilotildees De acordo com Mi-

nayo (1993) a pesquisa qualitativa

() se preocupa com um niacutevel de realidade que natildeo pode ser quantificado Ou seja ela tra-balha com o universo de significados motivos aspiraccedilotildees crenccedilas valores e atitudes o que corresponde a um espaccedilo mais profundo das relaccedilotildees dos processos e dos fenocircmenos que natildeo podem ser reduzidos agrave operacionalizaccedilatildeo de variaacuteveis (p 15)

A opccedilatildeo pela abordagem qualitativa dialoga de certa forma com as caracteriacutesticas do

nosso objeto e com as pretensotildees desta investigaccedilatildeo Uma vez que esta pesquisa se insere no

campo das ciecircncias sociais o seu objeto eacute ldquoessencialmente qualitativordquo (MINAYO 1993 p

16 O uso do termo ldquosaber taacutecitordquo embora citado pelos autores natildeo eacute assumido igualmente por todos eles Con-forme veremos mais adiante seratildeo usados termos que buscam identificar um saber de ordem praacutetica Neste sen-tido aparecem os termos savoir-faire saber praacutetico talento artiacutestico e conhecimento taacutecito Eacute importante ressal-tar que ao orientarmos nossa pesquisa com o uso de ldquosaber taacutecitordquo em detrimento do termo ldquoconhecimento taacuteci-tordquo acatamos a distinccedilatildeo feita por alguns pesquisadores entre saber e conhecimento entendendo que conheci-mento estaacute proacuteximo da ordem do formalizado de acordo com COLLINS (1992) apud LIMA e SILVA (1998) Jaacute o termo ldquosaberrdquo pode responder a saberes natildeo-formalizados e tambeacutem se articular com a ideacuteia de ldquofazerrdquo SAN-TOS (2001) Essa escolha se daacute por ser a situaccedilatildeo mais proacutexima da delimitaccedilatildeo do objeto desta pesquisa bem como por permitir perceber a questatildeo do saber taacutecito na perspectiva empresarial acadecircmica e tambeacutem dos traba-lhadores As razotildees da opccedilatildeo pelo termo saber taacutecito ficaram a nosso ver justificadas no desenvolvimento desta dissertaccedilatildeo

27

15) Essa pesquisadora (1993 p 14-15) aponta quatro caracteriacutesticas importantes do objeto

das ciecircncias sociais

bull Eacute histoacuterico () cuja formaccedilatildeo social e configuraccedilatildeo satildeo especiacuteficas vivem o presente marcado pelo passado e projetado para o futuro () portanto a provisoriedade o dina-mismo e a especificidade satildeo caracteriacutesticas essenciais de qualquer questatildeo social

bull () natildeo eacute apenas o investigador que daacute sentido ao seu trabalho intelectual mas os seres humanos os grupos e a sociedade datildeo significado e intencionalidade a suas accedilotildees e a suas construccedilotildees na medida em que as estruturas sociais nada mais satildeo que accedilotildees objetivadas

bull () existe uma relaccedilatildeo entre sujeito e objeto () por serem da mesma natureza bull () o fato de que ela eacute intriacutenseca e extrinsecamente ideoloacutegica () Ela veicula interesses e

visotildees de mundo historicamente construiacutedas embora suas contribuiccedilotildees e seus efeitos teoacute-ricos e teacutecnicos ultrapassem as intenccedilotildees de seu desenvolvimento

A proposta de investigar os meacutetodos usados pelo trabalhador para a produccedilatildeo mobili-

zaccedilatildeo e a formalizaccedilatildeo dos seus saberes constitui-se para noacutes como um misto de aventura e

desafio Essas dimensotildees se devem pela possibilidade de poder articular as abordagens teoacuteri-

cas sobre o mundo do trabalho com a minha vivecircncia de operaacuterio ldquometaluacutergicordquo Ao se carac-

terizar tambeacutem pela relaccedilatildeo proacutexima entre sujeito e objeto a pesquisa qualitativa ganha mais

validade para esta pesquisa dada a nossa intimidade com o objeto Conforme elucida Minayo

(1993) ldquo() a pesquisa nessa aacuterea lida com seres humanos que por razotildees culturais de clas-

se de faixa etaacuteria ou por qualquer outro motivo tecircm um substrato comum de identidade com

o investigador tornando-os solidariamente imbricados e comprometidos rdquo (p 14) Essa pro-

ximidade no entanto nos alerta para a necessidade de estarmos atentos aos efeitos da subjeti-

vidade para alcanccedilarmos a objetividade na pesquisa (SANTOS 1991)

141 Revisatildeo bibliograacutefica

Esta pesquisa contou com um momento de vital importacircncia por meio do qual foi

possiacutevel nos aproximarmos do nosso objeto Neste sentido eacute importante salientar a nossa re-

28

visatildeo bibliograacutefica sobre o mundo trabalho sobretudo a presenccedila de saberes no processo de

trabalho

142 Instrumentos de pesquisa

Os instrumentos de pesquisa constituem-se de vital relevacircncia para as perspectivas

desta pesquisa dada a complexidade imposta pelo proacuteprio objeto As teacutecnicas de pesquisas

para a coleta de dados foram a pesquisa documental entrevistas semi-estruturadas e a obser-

vaccedilatildeo

1421 A pesquisa documental

Para esta pesquisa a coleta de dados documentais fez-se importante natildeo soacute por lanccedilar

luzes sobre a prescriccedilatildeo do trabalho feita pela empresa mas ainda pela possibilidade de ilus-

trar algumas formalizaccedilotildees de saberes feitas pelos sujeitos de nossa pesquisa Foram identifi-

cados e analisados materiais produzidos na empresa apostilas manuais de seguranccedila proce-

dimentos para o processo produtivo fichas de conclusatildeo de serviccedilo e tambeacutem materiais pro-

duzidos pelos trabalhadores como anotaccedilotildees tabelas e croquis17

1422 Entrevistas semi-estruturadas

O uso de entrevistas semi-estruturadas se constitui como uma das fases mais marcan-

tes desta pesquisa De um lado a proacutepria literatura sobre a metodologia cientiacutefica nas ciecircncias

sociais jaacute seria suficiente para justificar a relevacircncia desse instrumento de coleta de dados

Atraveacutes dessa modalidade de entrevista segundo Minayo (1993) ldquoO pesquisador busca obter

informes contidos na fala dos atores sociaisrdquo (p 57) O uso da entrevista semi-estruturada

facilita a participaccedilatildeo do entrevistado e auxilia na eventualidade de haver problemas de co- 17 Croquis satildeo desenhos feitos agrave matildeo podendo ser agraves vezes um rascunho de um desenho ou mesmo um desenho dentro de normas teacutecnicas

29

municaccedilatildeo pois de acordo com Mazzotti (1998) ldquoO entrevistador faz perguntas especiacuteficas

mas tambeacutem deixa que o entrevistado responda em seus proacuteprios termosrdquo Por outro lado natildeo

eacute menos farto o arsenal teoacuterico que aponta a dificuldade que uma pessoa possa ter para se ex-

pressar e especialmente no que se refere agrave questatildeo do saber taacutecito onde predomina um forte

debate sobre as possibilidade de explicitaccedilatildeo ou natildeo deste saber18 Diante desta questatildeo eacute

prudente que o pesquisador ldquodeixerdquo o entrevistado falar ou como afirma Thiollent (1980)

que o pesquisador se mantenha com uma ldquoatenccedilatildeo flutuanterdquo afim de ldquoestimular o entrevista-

do a explorar o seu universo cultural sem questionamento forccediladordquo Em relaccedilatildeo a essa pesqui-

sa haacute que se dizer em favor de Santos e Aranha que estas pesquisadoras sempre apontaram

que o respeito do pesquisador diante das ldquofalasrdquo do entrevistado remete tambeacutem a uma pos-

tura epistecircmica do pesquisador pela qual ele deve permitir que os protagonistas do trabalho

busquem seus proacuteprios meios para se fazerem entender19 Em relaccedilatildeo agraves entrevistas realiza-

das uma delas realizou-se dentro da proacutepria oficina20 Embora tenha ocorrido nos intervalos

do horaacuterio de almoccedilo tivemos que contar com barulhos e algumas interrupccedilotildees Diante desse

problema apresentado ao pessoal dos Recursos Humanos nos foi oferecida uma sala de trei-

namento para realizar a entrevista Observamos que nesta sala de treinamento as entrevistas

perderam um pouco da espontaneidade Passamos a buscar um espaccedilo para realizaacute-las que

fosse longe do barulho e das interrupccedilotildees mas que natildeo colocasse os ferramenteiros como

ldquoestrangeirosrdquo ao espaccedilo Neste momento optamos por usar uma sala onde no horaacuterio de

almoccedilo os trabalhadores jogavam cartas ou dominoacute Ainda que este espaccedilo se localizasse fora

do galpatildeo aproximadamente a uns 50 metros tratava-se de uma sala dentro da faacutebrica o que

18 Esta temaacutetica seraacute abordada mais adiante no capiacutetulo teoacuterico 19 Essa contribuiccedilatildeo deu-se em aulas durante a disciplina Sujeito trabalho e educaccedilatildeo oferecida por essas pes-quisadoras no curso de poacutes-graduaccedilatildeo da FAEUFMG em 2002 Outro momento tambeacutem muito importante foi uma experiecircncia de um grupo de trabalho com entrevistas ldquopilotordquo anterior agrave nossa entrada no campo de pesqui-sa onde foi possiacutevel debater sobre a relaccedilatildeo do pesquisador com as falas dos sujeitos de sua pesquisa Essa expe-riecircncia contou tambeacutem com a participaccedilatildeo da pesquisadora Rosacircngela Pereira 20 As entrevistas dentro da faacutebrica foram motivadas pela dificuldade de alguns dos entrevistados cujos depoi-mentos noacutes natildeo gostariacuteamos de ldquoperderrdquo em dispor de tempo fora do horaacuterio de trabalho Alguns desses estuda-vam uns tinham que ldquoolharrdquo os filhos para as esposas estudarem e outros moravam muito longe

30

nos deixou em sinal de alerta No entanto neste ldquonovordquo espaccedilo foi possiacutevel perceber um outro

posicionamento por parte dos entrevistados maior espontaneidade para com as questotildees a-

bordadas na entrevista e intimidade com este espaccedilo21

1423 Observaccedilatildeo de campo

Satildeo muitos os fatores que tornam a observaccedilatildeo in loco um instrumento valioso na co-

leta de dados para esta pesquisa De um lado o nosso objeto estaacute inexoravelmente articulado

com a situaccedilatildeo de trabalho Dessa forma a teacutecnica de observaccedilatildeo nos permitiu aproximar

dessas situaccedilotildees a fim de permitir jogar luzes no ldquotaacutecitordquo E ainda a observaccedilatildeo in loco nos

proporcionou uma aproximaccedilatildeo com os protagonistas dessas situaccedilotildees de trabalho o que nos

permitiu afirmar melhor nosso objeto bem como acrescentar novas possibilidades de abordaacute-

lo Segundo Minayo (1993) a observaccedilatildeo possibilita ldquo() captar uma seacuterie de situaccedilotildees ou

fenocircmenos que natildeo satildeo obtidos por meio de ndash perguntas uma vez que satildeo observados direta-

mente na realidade transmitem o que haacute de mais importante e evasivo na vida realrdquo (p 59)

143 Os sujeitos da pesquisa

Como sujeitos da nossa pesquisa foram escolhidos os ferramenteiros de uma induacutestria

metaluacutergica da regiatildeo metropolitana de Belo Horizonte Em uma pesquisa de cunho qualitati-

vo a delimitaccedilatildeo numeacuterica dos sujeitos a serem entrevistados natildeo eacute relevante (THIOLLENT

1980) Segundo Minayo (1993) ldquoA amostragem boa eacute aquela que possibilita abranger a tota-

lidade do problema investigado em suas muacuteltiplas dimensotildeesrdquo (p 43) Nesta pesquisa bus-

camos entrevistar aqueles protagonistas do trabalho cuja experiecircncia em ferramentaria fosse

reconhecida pelo seu coletivo de trabalho As escolhas natildeo geraram nenhum impedimento por

21 Nesta sala eles proacuteprios os ferramenteiros nos interrogavam se desejaacutevamos abrir mais a janela ir ao banhei-ro ou que ligar o ventilador

31

parte da empresa embora uma parte das entrevistas tenha ocorrido fora do espaccedilo fabril Esse

fato acabou por gerar um dividendo a mais para as nossas reflexotildees dado que foi possiacutevel

analisar a relaccedilatildeo espacial que os trabalhadores mantecircm com o seu trabalho Todavia a teacutecni-

ca da observaccedilatildeo nos permitiu ainda dialogar com outros trabalhadores gerando dados aleacutem

dos que foram coletados nas entrevistas22 Usamos como formas de registro

bull Diaacuterio de bordo com anotaccedilotildees na faacutebrica e fora dela

bull Entrevistas gravadas e transcritas

Foram entrevistados cinco Ferramenteiros sendo que um dos entrevistados tem entre

20 e 30 anos de idade dois dos entrevistados possuem pouco menos do que 40 anos de idade

e outros dois ferramenteiros possuem mais do que 40 anos de idade Dois dos ferramenteiros

tecircm 10 anos de experiecircncia em ferramentaria Jaacute outros trecircs ferramenteiros tecircm mais de 20

anos de experiecircncia Trecircs dos entrevistados fizeram o curso de ferramenteiro pelo Senai Os

outros dois fizeram o curso de ajustador mecacircnico pelo Senai e aprenderam o ofiacutecio de ferra-

menteiro na praacutetica dois Mestres em ferramentaria Um dos mestres possui 30 anos e quase

15 anos dentro da ferramentaria O outro mestre possui 35 anos e quase 20 anos de experiecircn-

cia em ferramentaria Ambos fizeram o curso de torneiro mecacircnico pelo Senai Um dos entre-

vistados fez tambeacutem pelo Senai o curso de ferramenteiro chegando inclusive a representar o

Brasil em uma ldquomaratonardquo internacional de ferramentaria na Holanda

144 O desenvolvimento da pesquisa o meu contato com a empresa pesquisada

De um lado a escolha da empresa deu-se por se tratar de uma grande ferramentaria

voltada para o setor automobiliacutestico Por outro lado estavam em curso tambeacutem contatos com

outras empresas A decisatildeo por pesquisar essa empresa foi sendo construiacuteda primeiramente

22 Todas as entrevistas foram gravadas totalizando nove horas de gravaccedilatildeo

32

pela boa recepccedilatildeo do pessoal do Recursos Humanos Em segundo lugar emergiu um motivo

que depois se tornou um dos grandes aspectos dessa ferramentaria enquanto campo para a

nossa pesquisa Trata-se de um projeto conduzido pela empresa que pretende colocaacute-la como

a maior ferramentaria da Ameacuterica Latina Ao se aprofundar as anaacutelises preliminares sobre a

Empresa T foi possiacutevel constatar que essa intenccedilatildeo estava proacutexima de se tornar real

Em algumas conversas informais com o pessoal do Recursos Humanos foi demons-

trado um grande interesse pela escolha da empresa como objeto de pesquisa Foi considerado

tambeacutem o fato de que outras empresas do grupo jaacute haviam sido abordadas por uma pesquisa-

dora da UFMG23 Apesar de nos ter sido feita somente uma solicitaccedilatildeo formal por parte da

universidade juntamente com a nossa proposta de pesquisa fomos tomados por um receio

pois tiacutenhamos plena consciecircncia de que o respeito e atenccedilatildeo por parte dos trabalhadores do

chatildeo de faacutebrica natildeo satildeo obtidos pelas apresentaccedilotildees formais e sim adquiridos pela convivecircn-

cia cotidiana natildeo haacute pior comeccedilo em uma faacutebrica do que parecer ser apadrinhado por um

chefe

145 No olho do furacatildeo entre homens e maacutequinas

Ao recebermos a liberaccedilatildeo definitiva por parte da empresa para iniciar a pesquisa den-

tro da faacutebrica acertamos um cronograma com o responsaacutevel pelo Recursos Humanos Em

nosso primeiro dia dentro da faacutebrica fomos acompanhados por um estagiaacuterio do Recursos

Humanos que nos apresentou aos gerentes da ferramentaria e tambeacutem ao coordenador dos

ferramenteiros Toda a chefia se mostrou interessada pela possibilidade de se levar a puacuteblico

algum esclarecimento sobre a ferramentaria24 Em seguida foi proposto pelo gerente geral

23 VERIacuteSSIMO (2000) tambeacutem orientanda da prof Eloisa SANTOS 24 Essa posiccedilatildeo foi frequumlente entre os ferramenteiros que tambeacutem lamentaram que ldquoningueacutem aiacute fora sabe dizer o que eacute uma ferramentariardquo As falas dos ferramenteiros agraves vezes pareciam quase como as fala de um artista que desejasse que sua arte fosse reconhecida ldquoSe o pessoal soubesse que para se ter uma colher qualquer em casa eacute

33

que o coordenador da ferramentaria nos apresentasse os processos de trabalho da mesma e aos

cinco mestres que chefiam as cinco ceacutelulas de ferramenteiros

Tatildeo logo comeccedilamos a conversar o coordenador da ferramentaria se declarou um a-

paixonado pelo seu trabalho e afirmou ter quase 50 anos de experiecircncia na ferramentaria dos

quais mais de 30 dentro da ferramentaria da Ford em Satildeo Bernardo do Campo Agrave medida que

esse senhor foi nos apresentando os setores dentro da ferramentaria pudemos conversar com

entusiasmo sobre as transformaccedilotildees sofridas no mundo do trabalho especialmente o setor

metaluacutergico Sem muita profundidade ele comentou sobre a dificuldade de se encontrar hoje

bons ferramenteiros e sobre os ldquobons temposrdquo do ferramenteiro em Satildeo Paulo quando ganha-

vam ldquomais do que a maioria dos meacutedicosrdquo Conversamos ainda sobre a reorganizaccedilatildeo sindi-

cal no ABC paulista na deacutecada de 1970

Ao ser apresentado aos mestres da ferramentaria acolhemos a sugestatildeo feita por um

deles de que ldquoseria interessante que junto com um dos mestres fizeacutessemos um mapa do pro-

cesso de construccedilatildeo de uma ferramenta e que a partir deste roteiro poderiacuteamos analisar todas

as fases do trabalho do ferramenteiro em cada uma das ceacutelulasrdquo25 Foi a partir do mapeamento

sobre o processo de construccedilatildeo da ferramenta que escolhemos a primeira ceacutelula de ferramen-

teiros para iniciarmos a nossa investigaccedilatildeo

Apoacutes os primeiros dias de observaccedilatildeo dentro dessa empresa nos demos conta ou

mesmo afirmamos a ideacuteia de que a faacutebrica marca profundamente os que nela trabalham bem

como estes tambeacutem imprimem de forma objetiva e subjetiva as suas marcas neste espaccedilo As

formas das cicatrizes a vermelhidatildeo dos olhos e o jeito de carregar uma ferramenta ou mes-

mo um cigarro denunciam se foi com a limalha do torno ou com o gaacutes da solda que o operaacute-

um negoacutecio difiacutecil e bonito eles dariam mais valor para o nosso trabalhordquo ldquoSempre que a gente vai agrave uma loja e eacute preciso fazer a ficha de crediaacuterio o pessoal vecirc o nosso salaacuterio eles se assustam e natildeo acreditam que nosso trabalho eacute difiacutecilrdquo 25 Essa sugestatildeo se justifica por que a construccedilatildeo de uma ferramenta pode durar de seis a oito meses Neste caso poderiam ser conhecidas todas as fases desde que fosse acompanhada mais de uma ferramenta o que foi possiacute-vel pois cada ceacutelula cuida no miacutenimo de uma ferramenta

34

rio esteve em trabalho Enfim foi boa a sensaccedilatildeo de estar de volta ao barulho inconfundiacutevel

das maacutequinas e agrave imagem viva de homens com seus gestos e as suas brincadeiras que por

mais estranhos que sejam acabam unindo pessoas Ateacute mesmo as ldquovelhas piadasrdquo estavam de

volta26

Ainda nos primeiros dias fomos tomados por um estranhamento em relaccedilatildeo ao espaccedilo

fiacutesico e quantidade de trabalhadores Tivemos a impressatildeo de que natildeo estaacutevamos em uma

faacutebrica claacutessica com pessoas tendo que ldquoficar espertasrdquo com a ponte rolante e as empilhadei-

ras Depois de algumas observaccedilotildees foi possiacutevel perceber algumas preacute-instalaccedilotildees para outras

maacutequinas o que mais tarde foi confirmado pelos trabalhadores a dimensatildeo do galpatildeo era a

projeccedilatildeo de uma futura expansatildeo para esta ferramentaria

Os primeiros momentos de observaccedilatildeo nos permitiram aproximar da realidade daquela

faacutebrica buscamos perceber o ritmo de trabalho dos ferramenteiros os riscos de acidentes e as

relaccedilotildees de poder inscritos naquele espaccedilo Outro aspecto possibilitado a partir desses primei-

ros momentos foi o ldquodeixarrdquo que os trabalhadores tambeacutem nos conhecessem elemento essen-

cial para a nossa pesquisa evidenciado pela proacutepria fala dos trabalhadores ldquono iniacutecio a turma

ficou ldquocismadardquo pensando que vocecirc poderia ser um espiatildeordquo27

Apoacutes aproximadamente a quarta semana de observaccedilatildeo iniciamos uma pequena sis-

tematizaccedilatildeo de nosso diaacuterio de bordo a fim de ldquoreorientarrdquo nosso roteiro de entrevistas Embo-

ra jaacute houvesse obtido a permissatildeo para realizar as entrevistas dentro da faacutebrica optamos em

fazer as duas primeiras delas em outro espaccedilo Foi um momento importante pois aleacutem dos 26 ldquoO peatildeo adora fazer alusatildeo ao parentesco entre os colegas lsquoVocecircs satildeo irmatildeosrsquo lsquoQuem era o mais choratildeo laacute na sua casarsquordquo 27 Foram muitas falas com essa conotaccedilatildeo Em algumas delas os ferramenteiros citaram certos comportamentos de nossa parte que favoreceram a nossa entrada no coletivo de trabalho Explicitaremos apenas uma delas pelo teor do seu conteuacutedo irocircnico mas revelador mdash ldquoVou te falar a verdade no iniacutecio a turma toda ficou falando ou ele eacute mais um chefe ou esse cara eacute um espi-atildeo Depois vocecirc foi se entrosando com a gente Soacute que eu vou te falar um negoacutecio vocecirc pode ateacute ser professor mas vocecirc deve ser filho de peatildeo vocecirc tem umas lsquomaniasrsquo de peatildeordquo Eu mdash Seraacute Uma hora dessas vou te contar a minha Histoacuteria se vocecirc estiver certo eu te pago uma cerveja se vocecirc estiver errado vocecirc me paga uma cerveja taacute combinado mdash Taacute vendo num tocirc te falando isso eacute coisa de peatildeo Esse mesmo estranhamento foi relatado por SANTOS (1985) ao entrar na faacutebrica em que realizou sua pesquisa de mestrado

35

ricos elementos coletados nos permitiu projetar um olhar mais refinado para as futuras obser-

vaccedilotildees e ainda para as outras entrevistas

36

2 O ldquoLUGARrdquo DO SABER NO MUNDO DO TRABALHO

A presenccedila de saberes no processo de trabalho tem despertado interesse em vaacuterios

segmentos da sociedade trabalhadores empresaacuterios poder puacuteblico e privado trabalho e esco-

la Apresentaremos a seguir parte da discussatildeo feita pelos autores que se interessam pelo

tema inicialmente localizando os modelos de organizaccedilatildeo de trabalho capitalista em seguida

a importacircncia atribuiacuteda ao tema do saber no processo de trabalho e os diversos acircngulos em

que ele eacute tratado

21 O SABER NOS MODELOS DE ORGANIZACcedilAtildeO E GESTAtildeO DO TRABALHO

Os modelos de organizaccedilatildeo do trabalho satildeo engendrados num determinado contexto

histoacuterico econocircmico e social e respondem agraves condiccedilotildees da base material da sociedade Muitos

autores como Gounet (1999) Coriat (1994) Salerno (1994) e Bravermam (1987) que discu-

tem a questatildeo do saber e os modelos de organizaccedilatildeo do trabalho destacam dois paradigmas

dessa organizaccedilatildeo o taylorismo e o toyotismo O primeiro marcou a organizaccedilatildeo dos proces-

sos de trabalho em todo o seacuteculo XX e sobrevive fortemente ateacute hoje o segundo surge no

Brasil a partir principalmente dos anos de 1970

O Taylorismo preconiza uma racionalizaccedilatildeo da organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho que

elimine as porosidades na linha produtiva Essa perspectiva aponta para uma aparente oposi-

37

ccedilatildeo entre o operaacuterio e a gerecircncia no que se refere ao niacutevel de autonomia sobre os saberes pre-

sentes no processo de trabalho1

Em relaccedilatildeo agraves suas principais caracteriacutesticas o taylorismo foi analisado da seguinte

forma por Aranha (1997)

O taylorismo caracteriza-se entre outras coisas por seu rigor em tentar submeter o trabalhador a um trabalho prescrito pela gerecircncia () A radical separaccedilatildeo entre e-xecuccedilatildeo e concepccedilatildeo e a otimizaccedilatildeo da produtividade do trabalho com a reduccedilatildeo de tempos mortos constituiacuteam algumas das suas principais metas (p 20)

Por discutirem com mais profundidade o taylorismo Bravermam (1987) Coriat

(1994) e Antunes (2001) afirmam que a proposta de Taylor estrutura-se sobre um trabalho

parcelar e fragmentado de tarefas que supostamente exige dos operaacuterios saberes e habilida-

des especiacuteficas agrave sua funccedilatildeo O taylorismo notabiliza-se ainda pela radical separaccedilatildeo entre a

execuccedilatildeo e a concepccedilatildeo onde a prescriccedilatildeo do trabalho caberia agrave gerecircncia que dentre outras

atribuiccedilotildees poderia e deveria conhecer organizar e controlar o saber dos trabalhadores ou

como afirma o proacuteprio Taylor (1980) ldquoA gerecircncia tem a funccedilatildeo de reunir os conhecimentos

tradicionais que no passado possuiacuteram os trabalhadores e entatildeo classificaacute-los tabulaacute-los e

reduzi-los em normas leis ou foacutermulas grandemente uacuteteis ao operaacuteriordquo (p 49)

O toyotismo2 eacute um modelo de organizaccedilatildeo do trabalho que surge a partir de fins dos

anos sessenta e chega ao Brasil uma deacutecada depois Este modelo introduz novidades em rela-

ccedilatildeo ao saber do operaacuterio quando passa a valorizaacute-lo no processo produtivo (CORIAT 1994

HARVEY 1993) Sob o vieacutes da gestatildeo participativa essa perspectiva procura encurtar a dis-

tacircncia entre a concepccedilatildeo e a execuccedilatildeo com a criaccedilatildeo de mecanismos que facilitam a integra-

1 Essa questatildeo jaacute eacute discutida em uma extensa bibliografia (BRAVERMAM 1987 CORIAT 1994 GOUNET 1999) 2 O aprofundamento desse modelo se encontra em uma extensa bibliografia (CORIAT 1994 ANTUNES 2001 GOUNET 1999)

38

ccedilatildeo do saber do trabalhador ao processo de trabalho e agraves poliacuteticas da empresa de melhoria da

produtividade e qualidade

Aleacutem de uma maior participaccedilatildeo do trabalhador no processo produtivo esse modelo

diferentemente da rigidez taylorista valoriza um trabalhador que possua saberes e habilidades

que lhe permitam aprender continuamente adaptar e alocar seus saberes em multitarefas O

toyotismo se caracteriza ainda por um forte apelo ao uso da microeletrocircnica o que combi-

nado com as caracteriacutesticas anteriores acaba requisitando um perfil de trabalhador que tenha

uma formaccedilatildeo baacutesica mais soacutelida e ampla (EVANGELISTA 2002 ANTUNES 2001) Entre-

tanto o toyotismo ao mesmo tempo em que demanda uma forccedila de trabalho mais qualificada

tambeacutem ldquopressupotildee um trabalho precaacuterio e excludenterdquo (KUENZER apud EVANGELISTA

2002 p 40)3

Eacute necessaacuterio ainda afirmar que vaacuterias pesquisas (ARANHA 1997 ANTUNES

2001) questionam ou ateacute mesmo negam a total superaccedilatildeo do taylorismo pelo toyotismo Con-

forme esclarece Aranha (1997) ldquoestudos empiacutericos mostram que processos de trabalho alta-

mente neotecnizados convivem com esquemas tayloristas e mesmo com outros esquemas de

gerenciar a produccedilatildeo ainda mais atrasadosrdquo (p 22) Esse hibridismo eacute percebido criticamente

por alguns pesquisadores Hirata (1994) por exemplo afirma que a qualificaccedilatildeo exigida pelo

padratildeo flexiacutevel e integrado ldquo() se aplica menos agraves trabalhadoras do sexo feminino e aos ope-

raacuterios de empreiteiras subcontratados pela empresardquo (p 130) De acordo com essa pesquisa-

dora esse modelo ao mesmo tempo em que favorece o surgimento de trabalhadores super-

qualificados proporciona tambeacutem o crescimento do nuacutemero de trabalhadores pouco qualifi-

cados (HIRATA 1994)

3 Em relaccedilatildeo a esta questatildeo haacute uma vasta bibliografia (HIRATA 1994 CARVALHO 1996 KUENZER 1994 ANTUNES 2001)

39

Dentre as accedilotildees colocadas em uso pelo capital na tentativa de gerenciar os saberes dos

trabalhadores algumas nos parecem bem sofisticadas Assis (2000) em sua dissertaccedilatildeo4 ob-

serva que a empresa na qual realizou a sua pesquisa se apoiava em um excepcional sistema de

comunicaccedilatildeo informatizado para tentar mobilizar e apropriar os saberes dos trabalhadores

Em outros estudos como os realizados por Souza (2002)5 e Machado (1999)6 aparecem ele-

mentos que revelam uma proposta de organizaccedilatildeo do trabalho que busca combinar as novas

tecnologias para mobilizar a ldquoautonomiardquo do operaacuterio no processo produtivo no que diz res-

peito aos saberes

Por outro lado Santos (1985 1997 2000) Aranha (1997) Machado (1999) e Lima

(1998) ampliam a importacircncia do tema na medida em que ao problematizaacute-lo apontam para

dimensotildees relativas aos interesses dos trabalhadores Evangelista (2002) mostra ainda que os

trabalhadores sempre estiveram interessados em interpretar a presenccedila dos seus saberes no

processo de trabalho

22 O SABER NO TRABALHO

Os vaacuterios segmentos sociais trabalhadores empresaacuterios e poder puacuteblico ao mesmo

tempo em que de diversas formas consagram a importacircncia do saber no processo de trabalho

reclamam tambeacutem por estudos que o esclareccedilam melhor

No sentido de avanccedilar na problematizaccedilatildeo do saber no trabalho torna-se necessaacuterio

conhecer como a literatura vem abordando a temaacutetica Seguindo por esta trilha o debate aber- 4 ASSIS RicardoWagner Os impactos das novas tecnologias nas formas de sociabilidade e no savoir-faire dos operadores um estudo de caso do setor sideruacutergico Belo Horizonte Dissertaccedilatildeo de mestrado apresentada agrave Faculdade de Psicologia da UFMG 2000 5 SOUZA P R Autonomia dos operadores e trabalho de convencimento na produccedilatildeo contiacutenua Belo Hori-zonte (Dissertaccedilatildeo de mestrado apresentada agrave Escola de Engenharia da UFMG) 2002 6 MACHADO M L M Sujeito e trabalho impasses e possibilidades frente as novas tecnologias de gestatildeo no trabalho ndash o caso Gessy Lever Belo Horizonte Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Faculdade de Filosofia Ciecircncias e LetrasUFMG como requisito parcial agrave obtenccedilatildeo do tiacutetulo de mestre em psicologia Belo Horizonte 1999

40

to sobre a presenccedila do saber no trabalho perpassa reflexotildees teoacutericas e investigaccedilotildees de casos

concretos que apontam o tratamento dado agrave concepccedilatildeo e agrave execuccedilatildeo no processo de trabalho

Em relaccedilatildeo ao atual debate sobre o saber no processo de trabalho destaca-se a gestatildeo

participativa capitaneada pelo modelo toyotista que aparentemente elimina a separaccedilatildeo entre

execuccedilatildeo e concepccedilatildeo no processo de trabalho Segundo Aranha (1997) ldquoAs chamadas lsquoges-

totildees participativasrsquo buscam a integraccedilatildeo do trabalhador no processo produtivo alargando a

margem de sua interferecircncia e concretamente colocando em suas matildeos um conjunto de deci-

sotildees antes apenas restrito agrave gerecircnciardquo (p 22) Entretanto essa autora faz uma advertecircncia

ldquoEssas alteraccedilotildees natildeo foram colocadas por qualquer atitude de benevolecircncia do empresariado

para com a forccedila de trabalhordquo Antunes (2000) tambeacutem aponta a participaccedilatildeo do operaacuterio em

algumas decisotildees na linha produtiva como uma das inovaccedilotildees do toyotismo ldquoOs ciacuterculos de

controle de qualidade (CCQs) construindo grupos de trabalhadores que satildeo instigados pelo

capital a discutir seu trabalho e desempenho com vistas a melhorar a produtividade das em-

presasrdquo (p 55)

Por outro lado Evangelista (2002) afirma que as pesquisas indicam a existecircncia de

uma separaccedilatildeo entre execuccedilatildeo e concepccedilatildeo em empresas que adotaram o padratildeo flexiacutevel e

integrado como por exemplo a Fiat Automoacuteveis

A partir mesmo das relaccedilotildees estabelecidas entre a unidade fabril de Betim e a faacute-brica da matriz vaacuterios dos projetos dos carros produzidos no Brasil satildeo importados da Itaacutelia mostrando que a autonomia local eacute apenas relativa Alguns desses proje-tos satildeo definidos no Brasil mas as diretrizes vecircm da empresa matildee (p 84)

Evangelista (2002) afirma ainda que ldquoEsse processo se reproduz na relaccedilatildeo que a uni-

dade de Betim estabelece com o coletivo dos trabalhadores locais proporcionando-lhes uma

certa autonomia mas natildeo sem abrir matildeo naturalmente da coordenaccedilatildeo e do controlerdquo (p 85)

Eacute necessaacuterio considerar que mesmo estando as grandes decisotildees sob as ordens do ca-

pital haacute uma forte evidecircncia de que a reconfiguraccedilatildeo do saber dentro do processo de trabalho

41

por parte dos trabalhadores esteja inscrita natildeo somente como importante mas como uma ne-

cessidade fundamental para o capital

Avanccedilando nessa discussatildeo Santos (1997) contesta o fim da prescriccedilatildeo anunciado pe-

los processos flexiacuteveis e integrados ao trabalhar com a ideacuteia de que a separaccedilatildeo entre execu-

ccedilatildeo e concepccedilatildeo nos processos integrados e flexiacuteveis possa estar inserida em uma outra pers-

pectiva de organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho onde a prescriccedilatildeo de objetivos toma o lugar da

prescriccedilatildeo das atividades de trabalho Segundo essa pesquisadora ldquoA prescriccedilatildeo passa desse

modo a se referir aos objetivos amplos do processo produtivo direcionados ao sistema como

um todo Haacute um deslocamento das exigecircncias em relaccedilatildeo agraves teacutecnicas operatoacuterias especializa-

das para uma regulaccedilatildeo tecnoloacutegica do conjuntordquo (p 18)

Essa reflexatildeo eacute corroborada por vaacuterias pesquisas que verificam que a integraccedilatildeo do

saber do trabalhador no processo de trabalho natildeo eliminou a existecircncia de uma gerecircncia que

centraliza e controla os objetivos da empresa Assis (2000) por exemplo verificou em sua

dissertaccedilatildeo que o trabalho dos operadores da aciaria em uma sideruacutergica mineira que optou

pelo padratildeo integrado e flexiacutevel eacute marcado por procedimentos prescritos pela gerecircncia A

chance de os operadores burlarem esses procedimentos eacute travada por um sistema de comuni-

caccedilatildeo informatizado que soacute admite o uso de alternativas quando se faz uma justificativa re-

gistrada junto agrave gerecircncia Esse processo eacute percebido pelos proacuteprios operadores como cita As-

sis (2000) ldquoSe vocecirc mudar alguma coisa tem que explicar na telardquo (p 46) Dessa forma o

trabalho da gerecircncia pode ficar facilitado com o acesso a um maior nuacutemero de informaccedilotildees

De acordo com Assis (2000)

() as gerecircncias tecircm hoje um volume de informaccedilotildees sobre o que ocorre muito maior que antes jaacute que no caso dos operadores suas intervenccedilotildees satildeo registradas eletronicamente ou seja grande parte do que afeta o processo eacute introduzido no sis-tema informatizado passando muito pouca coisa despercebida (p 46)

42

Uma outra observaccedilatildeo feita por Assis (2000) indica que ao mesmo tempo em que a

empresa aperfeiccediloa seus mecanismos de controle e de prescriccedilatildeo contraditoriamente ela con-

voca o saber dos trabalhadores e depende da integraccedilatildeo para que funcione o seu sistema de

controle e prescriccedilatildeo Nas palavras de Assis (2000)

O que pode parecer paradoxal eacute que quanto mais a organizaccedilatildeo exige um acompa-nhamento das prescriccedilotildees por parte dos operadores mais ela busca neles autonomia e flexibilidade para que possam dar soluccedilotildees criativas frente agraves mudanccedilas lidar com as variabilidades do processo superar a falta de confiabilidade de algumas in-formaccedilotildees e as falhas dos sistemas automatizados que natildeo param de se complexi-ficar e insistem em natildeo funcionar exatamente como desejam os manuais e os enge-nheiros (p 41)

Ainda sobre a possibilidade de existir dentro do padratildeo flexiacutevel e integrado uma pers-

pectiva de hierarquia que separa a execuccedilatildeo da concepccedilatildeo no processo de trabalho Evangelis-

ta (2002) afirma que

Os trabalhadores natildeo teriam qualquer possibilidade de decidir sobre os cursos a se-rem oferecidos pela empresa e consequumlentemente sobre os conteuacutedos que com-preendem esses cursos Estes tecircm sido definidos pelo Desenvolvimento Organiza-cional ndash DO ndash setor que junto com o de treinamento e outros determina as neces-sidades e os alvos das atividades de formaccedilatildeo (p 86)

Dentre os autores que discutem a implantaccedilatildeo do padratildeo flexiacutevel e integrado alguns

chegam a projetar uma certa vantagem deste modelo de organizaccedilatildeo do trabalho para os traba-

lhadores Coriat (1994) por exemplo vai vislumbrar a possibilidade de haver uma intelectua-

lizaccedilatildeo do trabalhador em funccedilatildeo de o padratildeo flexiacutevel valorizar um saber amplo e versaacutetil

Arauacutejo (2002) cuja dissertaccedilatildeo aborda a reestruturaccedilatildeo produtiva em duas induacutestrias sideruacuter-

gicas mineiras no contexto da privatizaccedilatildeo salienta que ldquoA privatizaccedilatildeo gerou uma transiccedilatildeo

do autoritarismo para um estilo gerencial menos autoritaacuteriordquo (p 113) A autora tambeacutem en-

tende que ldquoO novo perfil do trabalhador abrange uma aacuterea muito maior bem como o relacio-

43

namento interpessoal e a comunicaccedilatildeo aliados ao conhecimento e agrave habilidade teacutecnicardquo (p

114)

Embora o trabalho no padratildeo flexiacutevel e integrado possa conservar praacuteticas tayloristas

as pesquisas natildeo hesitam em indicar que de fato vem ocorrendo uma nova interaccedilatildeo do ho-

mem com o processo de trabalho e que a implantaccedilatildeo das novas tecnologias estimulou o de-

sencadeamento de novos saberes que Assis (2000) classificou como saberes complexos dada

a combinaccedilatildeo de domiacutenio do processo produtivo com o uso da linguagem informatizada

Se as pesquisas confirmam a importacircncia da presenccedila de saberes dos trabalhadores no

trabalho surgem tambeacutem algumas indagaccedilotildees a convocaccedilatildeo destes saberes por parte do ca-

pital seria suficiente para mobilizar os trabalhadores a produzi-los E neste caso como isto

se daria E ainda quais saberes dos trabalhadores interessam ao capital

23 O SABER TAacuteCITO DO TRABALHADOR

A expressatildeo saber taacutecito tem sido muito usada quando se discute a presenccedila do saber

do trabalhador no processo de trabalho De acordo com o dicionaacuterio Ferreira (1986) o saber

eacute ldquo[Do latim sapere ter gosto] Ter conhecimento ciecircncia informaccedilatildeo ou notiacutecia () ter

conhecimento teacutecnicos e especiais relativos a ou proacuteprios para () Estar convencido de ter a

certeza de () Ter capacidade () julgar considerar () experiecircncia praacuteticardquo (p 1530) Nes-

te mesmo dicionaacuterio () a definiccedilatildeo de taacutecito eacute ldquo[Do latim Tacitu] silencioso calado () Em

que natildeo haacute rumor () que natildeo se exprime por palavras subentendido impliacutecito () Oculto

secretordquo

No dicionaacuterio da educaccedilatildeo profissional (2000) saber eacute apresentado com as seguintes

definiccedilotildees ldquo1 ndash o ato de saber ou o processo atraveacutes do qual um sujeito aprende 2 ndash o fato

44

ou a situaccedilatildeo daquele que aprendeu algo 3 ndash o produto da aprendizagem do sujeito ou obje-

tos culturais institucionais sociaisrdquo (p 294) Ainda neste dicionaacuterio o saber taacutecito eacute apresen-

tado como sinocircnimo de conhecimento taacutecito (2000) e assim eacute definido ldquo() eacute o conhecimen-

to que a pessoa tem mas do qual natildeo estaacute ciente de modo consciente Eacute resultante da experi-

ecircncia da histoacuteria individual ou coletiva dos indiviacuteduosrdquo (p 298)

O saber taacutecito pode ainda aparecer com o nome de savoir-faire Essa expressatildeo eacute a-

presentada no dicionaacuterio de formaccedilatildeo profissional como ldquo() o produto de uma aprendiza-

gem do trabalhador e sua disposiccedilatildeo para mobilizar os seus saberes no trabalho sempre que

necessaacuterio Compreende os saberes praacuteticos empiacutericos as manhas do ofiacutecio o golpe de vis-

tardquo

Em relaccedilatildeo agrave presenccedila de saberes no processo produtivo Santos (1997) Aranha

(1997) e Antunes (2001) entendem que o saber do trabalhador sempre esteve presente no pro-

cesso de trabalho mesmo em um modelo de gestatildeo extremamente marcado pela divisatildeo teacutec-

nica do trabalho como foi o taylorismo Dentre eles o chamado saber taacutecito eacute o que veremos

a seguir Aranha (1997) afirma que ldquoEste conhecimento taacutecito muitas vezes reprimido pela

gerecircncia nunca deixou de ser continuamente produzido e demonstra que apesar de seus es-

forccedilos o capital ficou longe de conseguir separaccedilatildeo completa (ou mesmo parcial) entre matildeo e

ceacuterebrordquo (p 21)

Do ponto de vista teoacuterico essa questatildeo natildeo eacute nova O divoacutercio entre o trabalho intelec-

tual e o trabalho manual jaacute tinha sido contestado por Gramsci de acordo com Kuenzer (1985)

ldquoNatildeo podemos separar o homo faber do homo sapiensrdquo (p 185)

As pesquisas evidenciam a natildeo-separaccedilatildeo entre trabalho intelectual e trabalho manual

ao demonstrarem o avanccedilo do capital sobre o saber do trabalhador mesmo nos processos pro-

dutivos mais automatizados Essa situaccedilatildeo foi analisada da seguinte forma por Machado

(1999)

45

Portanto se todo o aparato estampado na automatizaccedilatildeo e informatizaccedilatildeo da planta de produccedilatildeo aludem agrave possibilidade de prescindir do sujeito-trabalhador as situa-ccedilotildees inesperadas convocam os sujeitos a se pronunciar a arbitrar sobre o imprevi-siacutevel Afinal de contas soacute o que eacute previsiacutevel eacute passiacutevel de ser automatizado e con-trolado pela rotina (p 138)

Um ponto de partida mais consistente sobre a inserccedilatildeo do saber taacutecito no processo de

trabalho encontra-se em um pressuposto oriundo da ergonomia cujo entendimento mostra que

o trabalho prescrito ou seja aquele que foi concebido planejado e calculado pela engenharia

natildeo corresponde a todas as necessidades reais do processo de produccedilatildeo demonstrando a fragi-

lidade da ideacuteia que sustenta a total separaccedilatildeo entre execuccedilatildeo e concepccedilatildeo Essa concepccedilatildeo do

processo de trabalho foi assimilada por pesquisadores de vaacuterias aacutereas do conhecimento San-

tos (1997) por exemplo discute a existecircncia de uma ldquodistacircncia entre o trabalho prescrito e o

trabalho realrdquo Como dissemos em nossa introduccedilatildeo de acordo com essa pesquisadora (2000)

trabalho prescrito ldquo() eacute a definiccedilatildeo preacutevia da maneira como o trabalhador deve executar o

trabalho o modo de usar os equipamentos e as ferramentas o tempo concedido para cada

operaccedilatildeo o como fazer e as regras que devem ser respeitadasrdquo (p 344) O trabalho real reme-

te agraves condiccedilotildees necessaacuterias em que se realiza um trabalho que sempre escapa agrave prescriccedilatildeo De

fato essa possibilidade foi verificada concretamente por algumas pesquisas Assis (2000) em

sua dissertaccedilatildeo afirma que ldquoNa nossa pesquisa pudemos perceber a niacutetida distacircncia entre o

trabalho prescrito e o trabalho real o que implica a presenccedila ativa do homem e do seu conhe-

cimento taacutecitordquo (p 42)

As abordagens sobre o saber taacutecito entram em um consenso sobre a sua definiccedilatildeo

quando afirmam que a produccedilatildeo deste saber remete a uma intimidade da vivecircncia do traba-

lhador com o processo de trabalho e que este saber apresenta uma enorme dificuldade em ser

sistematizado Crivellari e Melo apud Assis (2000) entendem e assim o definem

46

Saber taacutecito refere-se agrave capacidade que o trabalhador possui de apreensatildeo e identi-ficaccedilatildeo pela vivecircncia dos estados de normalidade ou anormalidade do processo A aquisiccedilatildeo desse saber se daacute no conviacutevio com a produccedilatildeo havendo uma concepccedilatildeo praacutetica e complexa para ser integralmente apreendida em formalizaccedilotildees (p 18)

Evangelista (2002) trabalha com uma definiccedilatildeo mais ampliada sobre o ldquoconhecimento

taacutecitordquo ao considerar outros espaccedilos aleacutem do trabalho

Esse conhecimento embora proveniente da vivecircncia de trabalho tambeacutem expressa as aquisiccedilotildees obtidas na formaccedilatildeo profissional na escolarizaccedilatildeo formal e na expe-riecircncia de vida do trabalhador Ele conteacutem elaboraccedilotildees individuais e coletivas que por sua vez estatildeo dentro de um quadro de relaccedilotildees e produccedilotildees sociais (p 94)

24 Do saber vinculado agrave praacutetica um ponto de vista sobre o saber taacutecito

() A pertinecircncia de um saber investido numa praacutetica diz ainda B Charlot natildeo es-taacute diretamente ligada ao seu estatuto cientiacutefico Em primeiro lugar um saber pode ser mais pertinente na sua forma ldquocomumrdquo que na sua forma cientiacutefica Assim para nos orientarmos eacute mais pertinente saber que o sol nasce a leste e se potildee a oeste do que saber se a Terra gira em torno do Sol Em segundo lugar natildeo basta que um sa-ber seja cientiacutefico para ser pertinente na praacutetica Eacute preciso ainda que ele se torne instrumento ao serviccedilo visado Natildeo basta conhecer as leis da eletricidade para mon-tar uma aparelhagem eleacutetrica (MALGLAIVE 1990 p 38)7

Se de um lado a literatura que aborda a presenccedila de saberes no processo produtivo

(ARANHA 1997 SANTOS 1997 2000 MACHADO 2000) indica que os trabalhadores

satildeo produtores de saberes por outro lado segundo essa mesma literatura existe um campo

aberto e necessaacuterio agraves pesquisas que possam contribuir para que o estatuto social poliacutetico e

espistemoloacutegico do saber taacutecito do trabalhador supere a sua ldquotimidezrdquo perante os saberes for-

malizados pela ciecircncia Posto ainda que o proacuteprio objeto desta pesquisa remete agrave possibili-

dade de que as atividades de trabalho sejam praacuteticas inteligentes entendemos que eacute importan-

te aprofundar a discussatildeo sobre a validade sobretudo epistemoloacutegica do saber taacutecito Diante

7 Esta obra eacute uma ediccedilatildeo portuguesa

47

dessa questatildeo que para noacutes eacute muito cara recorremos ao diaacutelogo com os pesquisadores que

refletem sobre a relaccedilatildeo entre a praacutetica e a construccedilatildeo de saberes taacutecitos

De um modo geral os pesquisadores (SCHON 2000 POLANY 1967 MALGLAI-

VE 1990) que discutem o saber taacutecito o tomam como um saber vinculado agrave praacutetica ou asso-

ciado a uma determinada experiecircncia em fazer algo Estes pesquisadores ao buscarem desve-

lar o saber taacutecito apontam como chave de seu entendimento a anaacutelise da relaccedilatildeo entre a praacuteti-

ca8 e a produccedilatildeo desse tipo de saber Pode-se dizer ainda que a perspectiva que confere im-

portacircncia ao estudo da relaccedilatildeo entre a praacutetica e a construccedilatildeo do saber taacutecito se apoacuteia no pres-

suposto de que sendo este saber vinculado agrave accedilatildeo humana o saber taacutecito eacute por excelecircncia

uma praacutetica potencialmente inteligente Essa perspectiva eacute apontada por Malglaive (1990) ldquoA

praacutetica eacute tudo o que diz respeito a acccedilatildeo humana isto eacute a transformaccedilatildeo intencional da reali-

dade pelos homens Implica portanto um desiacutegnio um fim o estado do real ao qual se aplica

a acccedilatildeordquo (p 40) Em Polany apud Frade (2003) a praacutetica pode ser percebida quando realiza-

mos alguma atividade ou ainda quando compreendemos algo podendo ser por meio de ldquoex-

periecircncias diretas ou sensoriais e com uso de conhecimentosrdquo (p 13)

Antes de avanccedilarmos na discussatildeo da relaccedilatildeo entre a praacutetica e o saber taacutecito vejamos

as diversas denominaccedilotildees sobre saberes vinculados agrave praacutetica e que ao nosso ver podem ser

tidos como da ordem do taacutecito Encontramos termos como ldquosaber-fazer ou savoir-fairerdquo ldquosa-

ber taacutecitordquo ldquoconhecimento taacutecitordquo ldquosaber do trabalhadorrdquo ou ldquotalento artiacutesticordquo (FRADE

2003 SCHON 2000 POLANY 1967 MALGLAIVE 1990) Todavia em que pesem algu-

mas especificidades que marcam o uso desses termos por esses pensadores satildeo muitos os

motivos que nos levam a tomar como importante as diferentes reflexotildees sobre o saber taacutecito

8 De acordo com o dicionaacuterio Ferreira (1986) a noccedilatildeo de praacutetica pode se referir as seguintes possibilidades ldquo1 ndash ato ou efeito de praticar 2 ndash uso experiecircncia exerciacutecio 3 ndash rotina 4 ndash saber provindo da experiecircncia teacutecnica 5 ndash aplicaccedilatildeo da teoria ()rdquo (p 1377) Jaacute a teoria eacute apresentada em Ferreira (1986) como ldquo[Do grego theoria] 1 ndash Conhecimento especulativo meramente racional 2 ndash Conjunto de princiacutepios fundamentais duma ciecircncia ou duma arte 4 ndash Opiniotildees sistematizadas () 6 ndash suposiccedilatildeo hipoacutetese ()rdquo (p 1644)

48

no sentido de compreendermos a sua relaccedilatildeo com a praacutetica Dessa forma mostraremos agora

como alguns autores usam a ideacuteia de praacutetica e que termos utilizam para designar o saber taacuteci-

to Malglaive (1990) apresenta como saber-fazer

Eacute mesmo agrave praacutetica que por definiccedilatildeo se refere o saber fazer () Em numerosos casos o saber-fazer designa uma competecircncia global um ofiacutecio ou uma destreza num domiacutenio mais ou menos amplo da praacutetica humana () Os saberes-fazer satildeo portanto para noacutes actos humanos disponiacuteveis em virtude de terem sido apreendidos (seja de que maneira for) e experimentados (p 79)

Outro autor Polany (1967) apresenta os saberes vinculados a uma ideacuteia de praacutetica pe-

lo termo de conhecimento taacutecito9 De acordo com Frade (2003) Polany declara natildeo ser possiacute-

vel tratar o conhecimento humano sem partir do princiacutepio de que sabemos mais do que pode-

mos dizer () Embora esse princiacutepio pareccedila oacutebvio ele espelha um dos principais pilares de

sua concepccedilatildeo de conhecimento o reconhecimento da existecircncia de um tipo de conhecimento

que natildeo pode ser completamente exposto e mais especificamente que natildeo pode ser descrito

em regras ou palavras o conhecimento taacutecito (p 11 grifo nosso) Segundo Polany (1967)

todo conhecimento humano eacute perpassado por uma dimensatildeo taacutecita10 Esta afirmaccedilatildeo eacute susten-

tada na ideacuteia de que todo conhecimento natildeo eacute totalmente explicitaacutevel ou seja todo conheci-

mento guarda uma face obscura portanto uma dimensatildeo taacutecita O debate sobre a explicitaccedilatildeo

ou natildeo de um determinado saber seraacute apresentado mais adiante neste capiacutetulo Uma outra

caracteriacutestica do conhecimento taacutecito em Polany segundo Frade (2003) pode ser dada ainda

pelo fato de se tratar de uma ldquohabilidade pessoal que natildeo pode ser disponibilizada a outros

pois natildeo sabemos explicar exatamente como a operamosrdquo (p 12) Dessa forma como jaacute a-

firmamos o ldquoconhecimento taacutecitordquo em Polany apresenta-se tambeacutem norteado pela ideacuteia de

praacutetica

9 Embora jaacute tenhamos explicado a nossa opccedilatildeo pelo termo saber em detrimento do termo conhecimento eacute mister explicar que em POLANY prevalece o uso do uacuteltimo termo Daiacute que nas diversas vezes em que nos reportamos a este autor aparece o termo conhecimento taacutecito 10 Eacute este inclusive o nome de um livro sobre o tema The tacit dimension (1967)

49

A aproximaccedilatildeo entre o ldquoconhecimento taacutecitordquo e a ideacuteia de praacutetica proposta por Polany

nos permite identificar de acordo com Frade (2003 p 13) um conhecimento praacutetico como

um conhecimento adquirido de experiecircncias diretas ou sensoriais Segundo essa autora ldquopo-

demos identificar um conhecimento praacutetico com um conhecimento taacutecito no sentido que natildeo eacute

faacutecil especificar como adquirimos conhecimento dessas experiecircncias e nem como usamos um

conhecimentordquo (grifo nosso) Ainda de acordo com essa pesquisadora em Polany foi possiacutevel

articular o conhecimento taacutecito com a ideacuteia de praacutetica agrave medida que

Analisando os diversos exemplos apresentados por POLANY (1962 1983 1975) para ilustrar o que consiste um conhecimento dessa natureza constata-se que o co-nhecimento taacutecito estaacute estritamente vinculado a uma praacutetica da seguinte maneira quando realizamos uma tarefa seja fiacutesica ou mental () acionamos um processo de funcionamento das nossas accedilotildees cujo propoacutesito eacute nos auxiliar na concretizaccedilatildeo des-sa tarefa Ao ser acionado tal processo mobiliza um conjunto especiacutefico de conhe-cimentos que possuiacutemos que funcionaram como instrumentos para realizarmos a tarefa bem como para monitorarmos sua realizaccedilatildeo (FRADE 2003 p 12 grifo nosso)

Em Schon (2000) tambeacutem encontramos uma reflexatildeo que aproxima a noccedilatildeo de saber

taacutecito agrave ideacuteia de praacutetica Para compreendermos melhor a aproximaccedilatildeo que esse autor faz entre

um tipo de saber e uma ideacuteia de praacutetica eacute necessaacuterio apresentarmos duas perspectivas o co-

nhecimento profissional e a competecircncia profissional A primeira perspectiva segundo Schon

(2000) normalmente eacute vinculada a saberes teoacutericos e teacutecnicas baseadas em pesquisas a qual

ele chama de ldquoracionalidade teacutecnicardquo e assim eacute definida

A racionalidade teacutecnica eacute uma epistemologia da praacutetica derivada da filosofia posi-tivista construiacuteda nas proacuteprias fundaccedilotildees da universidade moderna A racionalida-de teacutecnica diz que os profissionais satildeo aqueles que solucionam problemas instru-mentais selecionando os meios teacutecnicos mais apropriados para propoacutesitos especiacutefi-cos Profissionais rigorosos solucionam problemas instrumentais claros atraveacutes da aplicaccedilatildeo da teoria e da teacutecnica derivadas de conhecimento sistemaacutetico de prefe-recircncia cientiacutefico (p 15)

50

Entretanto na segunda perspectiva Schon (2000) aponta que sempre haacute uma zona de

incerteza a qual ldquoescapa da racionalidade teacutecnicardquo Eacute a partir das demandas de um espaccedilo

nutrido de incertezas que surge um apelo a um tipo de saber inerente a uma determinada praacute-

tica Tal saber foi nomeado por esse autor como ldquotalento artiacutestico profissionalrdquo Segundo as

palavras de Schon (2000) o termo ldquotalento artiacutestico profissionalrdquo se refere ldquoaos tipos de com-

petecircncia que os profissionais demonstram em certas situaccedilotildees da praacutetica que satildeo uacutenicas incer-

tas e conflituosasrdquo (p 29) Ainda sobre o ldquotalento artiacutestico profissionalrdquo de acordo com esse

autor ldquoO que chega a ser surpreendente sobre esses tipos de competecircncia eacute que eles natildeo de-

pendem de nossa capacidade de descrever o que sabemos fazer ou mesmo considerar consci-

entemente o que nossas accedilotildees revelamrdquo (p 29) Eacute nesta segunda perspectiva qual seja a que

interroga os saberes natildeo disponibilizados pela ldquoracionalidade teacutecnicardquo que encontramos em

Schon (2000) uma interlocuccedilatildeo com o saber taacutecito e a ideacuteia de praacutetica

A relevacircncia que Frade 2003 Schon 2000 Polany 1967 e Malglaive 1990 atribuem

ao imbricamento do saber taacutecito com a ideacuteia de praacutetica suscitou algumas indagaccedilotildees sobre

este tipo de saber quais as possibilidades de este saber ser comunicado E ainda o saber

taacutecito quando eacute acionado prescinde da mobilizaccedilatildeo de outros saberes Estas indagaccedilotildees antes

mesmo de serem respondidas acabam por nos fornecer algumas trilhas para que possamos

aprofundar a discussatildeo sobre a explicitaccedilatildeo ou natildeo deste tipo de saber bem como as suas

possibilidades de conter uma racionalidade ainda que natildeo cientiacutefica Eacute o que buscaremos fa-

zer no desenrolar desta parte em diante Neste sentido apresentamos uma discussatildeo sobre o

saber taacutecito dividida em trecircs perspectivas

Na primeira perspectiva procuramos analisar alguns aspectos da relaccedilatildeo do saber taacuteci-

to com a ideacuteia de praacutetica a partir de uma discussatildeo com alguns autores (FRADE 2003 S-

CHON 2000 POLANY 1967 MALGLAIVE 1990) na qual o saber taacutecito eacute caracterizado

por duas dimensotildees Em uma delas eacute apresentado um saber de uso instrumental ou seja um

51

saber que eacute disponibilizado para a realizaccedilatildeo de uma atividade orientando-se pelo seu resulta-

do final (FRADE 2003 POLANY 1967) Jaacute na outra o saber taacutecito se inscreve em um pro-

cesso de construccedilatildeo de saberes De acordo com Frade 2003 Schon 2000 Polany 1967

Malglaive 1990 este tipo de saber pode ainda ser acionado para monitorar e compreender a

realizaccedilatildeo de uma determinada atividade A partir da possibilidade de uso do saber taacutecito para

monitorar e compreender a realizaccedilatildeo de uma atividade debatemos ainda se esse tipo de sa-

ber possui algum niacutevel de formalizaccedilatildeo

Na segunda perspectiva discute-se a possibilidade de comunicaccedilatildeo do saber taacutecito a-

traveacutes da relaccedilatildeo entre este tipo de saber e uma linguagem que possa expressaacute-lo A partir

desta discussatildeo satildeo engendrados vaacuterios desdobramentos da explicitaccedilatildeo ou natildeo do saber taacuteci-

to Neste sentido satildeo analisadas as possibilidades de uma ou mais pessoas acessarem o saber

taacutecito de uma outra pessoa por meio da comunicaccedilatildeo as contradiccedilotildees entre uma linguagem

que busca expressar um saber taacutecito e uma outra linguagem que expressa um saber teoacuterico de

preferecircncia formalizado pelos padrotildees da ciecircncia Eacute abordada ainda a relaccedilatildeo do saber taacutecito

e uma linguagem que possa expressaacute-lo dentro de um recorte nas atividades e situaccedilotildees de

trabalho

Jaacute na terceira perspectiva a partir da anaacutelise da relaccedilatildeo entre o corpo e a mente satildeo

discutidas as possibilidades de produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo do saber taacutecito A abor-

dagem da relaccedilatildeo entre o corpo e a mente se apresenta com especial importacircncia por ser um

desdobramento das perspectivas apresentadas anteriormente na medida em que o corpo pode

ser considerado o meio pelo qual se realiza uma atividade fiacutesica ou mesmo mental Eacute analisa-

da tambeacutem a possibilidade de haver a mobilizaccedilatildeo de um ldquosaber usar o corpordquo A discussatildeo

sobre o corpo objetiva cumprir ainda um outro papel natildeo menos importante de buscar com-

preender os sujeitos de nossa pesquisa em sua complexidade ao incluir tambeacutem os aspectos

corporais na anaacutelise da produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes taacutecitos

52

Por fim a partir de uma anaacutelise dessas trecircs perspectivas articuladas com alguns ele-

mentos do mundo do trabalho buscaremos esclarecer uma hipoacutetese que norteia essa pesquisa

qual seja que os ferramenteiros produzem saberes taacutecitos e que para usarem os seus saberes

taacutecitos mobilizam mediante estrateacutegias tambeacutem taacutecitas saberes de vaacuterias ordens e ainda os

ferramenteiros criam estrateacutegias tambeacutem taacutecitas para formalizar os saberes taacutecitos que eles

produzem e mobilizam

241 Saber taacutecito entre um uso instrumental e a construccedilatildeo de saberes

Para alguns pesquisadores as reflexotildees sobre o saber taacutecito tecircm o seu ponto de partida

na tese de que este saber eacute caracterizado dentre outras coisas como um saber de uso instru-

mental (FRADE 2003 POLANY 1967) Segundo o dicionaacuterio Ferreira (1986) o termo ins-

trumental eacute uma derivaccedilatildeo da palavra instrumento cujo significado pode ser ldquo[Do Latim

Instrumentu] 1 ndash () 2 ndash Qualquer objeto considerado em sua funccedilatildeo ou utilidade 3 ndash Recur-

so empregado para alcanccedilar um objetivo conseguir um resultadordquo (p 1119) De acordo

com Santos (2003) a ldquofinalidade instrumental pode ser entendida como na seguinte proposi-

ccedilatildeo dado um fim ndash formaccedilatildeo de matildeo-de-obra para responder agraves necessidades do projeto de

desenvolvimento em curso ndash ponderam-se os meios de obtecirc-lo dado um conjunto de meios

ponderam-se os fins que podem ser alcanccediladosrdquo (p 37)11

De acordo com Frade (2003) o saber taacutecito em Polany tambeacutem caracteriza-se pelo

seu uso instrumental

De fato segundo Polany tais conhecimentos satildeo taacutecitos na medida em que satildeo u-sados de maneira instrumental e natildeo explicitamente como objetos Nesse sentido enquanto estatildeo sendo mobilizados eles natildeo satildeo percebidos em si mesmos mas sim em termos daquilo que eles contribuem para a realizaccedilatildeo da tarefa (p 12)

11 SANTOS (2003) associa a recente primazia dada a perspectiva instrumental do saber do trabalhador agrave emer-gecircncia do discurso da competecircncia em detrimento do tema do saber do trabalhador no trabalho (p 37)

53

Para Frade (2003) a faceta instrumental do saber taacutecito pode ser dada por uma forte

tendecircncia que noacutes temos em focalizar o saber taacutecito no resultado final de uma atividade ou na

conquista de uma determinada compreensatildeo logo estes objetivos iniciais satildeo o ldquoobjeto foco

de nossa atenccedilatildeordquo Dessa forma um conhecimento taacutecito natildeo eacute percebido em si mesmo na

medida em que noacutes o usamos apenas de maneira instrumental auxiliar ou seja noacutes mobili-

zamos o saber taacutecito prioritariamente para atingir uma determinada finalidade Portanto o

saber taacutecito que foi mobilizado natildeo eacute o foco principal de nossa atenccedilatildeo porque eacute usado como

um meio um instrumento de realizaccedilatildeo de uma finalidade que pretendemos atingir

Frade (2003) e Polany (1967) desdobram a tese de uso instrumental do saber taacutecito em

uma outra explicaccedilatildeo De acordo com esses pesquisadores a proacutepria estrutura do ato de co-

nhecer do saber taacutecito favorece para que este saber se caracterize por uma forma instrumental

Isso ocorre da seguinte maneira quando um saber taacutecito eacute mobilizado para que possamos rea-

lizar uma atividade significa que noacutes sabemos porque mobilizamos tal ou tais saberes Daiacute

que segundo Polany (1967) este saber eacute tido como um saber ldquoproacuteximo de noacutesrdquo pelo simples

fato de que sabemos da sua existecircncia ou porque ldquoconfiamos na ciecircncia que temos dele para

dirigirmos nossa atenccedilatildeo a uma determinada realizaccedilatildeordquo (p 10) ou ainda como afirma Frade

(2003) porque somos cientes da sua existecircncia (p 15) Por outro lado o saber taacutecito que eacute

mobilizado para conquistar uma compreensatildeo sobre a realizaccedilatildeo de uma determinada ativida-

de coloca-se ldquolonge de noacutesrdquo (POLANY 1967) pois nem sempre temos total consciecircncia so-

bre quais fatores compotildeem o saber taacutecito que usamos na realizaccedilatildeo de uma determinada ativi-

dade

A grande contradiccedilatildeo segundo esses pesquisadores eacute que o saber taacutecito que foi mobi-

lizado natildeo eacute percebido em si mesmo e noacutes soacute conseguiremos percebecirc-lo se o projetarmos no

resultado de uma determinada atividade ou na conquista de uma compreensatildeo Portanto os

54

significados deste saber taacutecito passam a se estabelecer ldquolonge de noacutesrdquo (POLANY apud FRA-

DE 2003) Dessa forma mesmo possuindo consciecircncia de um saber taacutecito para compreendecirc-

lo noacutes temos que projetaacute-lo sobre algo de que natildeo temos ainda uma total consciecircncia e que

por isso eacute algo ldquolonge de noacutesrdquo algo estranho agrave nossa consciecircncia A partir dessa trilha deixada

por Polany (1967) poderiacuteamos usar de forma hipoteacutetica a seguinte ilustraccedilatildeo para enxer-

garmos um desniacutevel em uma peccedila poderiacuteamos usar um saber taacutecito que consiste em molhar

esta peccedila com um determinado oacuteleo e por meio do reflexo da luz na peccedila com oacuteleo poderiacutea-

mos identificar as partes danificadas Se tomarmos como referecircncia as reflexotildees de Polany

(1967) a nossa total compreensatildeo do uso do oacuteleo demandaria tambeacutem uma compreensatildeo de

como se integram o oacuteleo a chapa de accedilo e a incidecircncia da luz e outros aspectos que poderiam

influenciar a nossa visatildeo daiacute que neste caso a nossa compreensatildeo depende de algo que estaacute

fora do nosso domiacutenio e por isso Polany (1967) os define como ldquolonge de noacutesrdquo Estabelece-

se assim uma contradiccedilatildeo na qual um determinado saber taacutecito que em tese estaria ldquoproacutexi-

mo de noacutesrdquo soacute eacute percebido se for projetado em um saber ldquolonge de noacutesrdquo

De acordo com Frade (2003) eacute possiacutevel que o saber taacutecito ainda que na sua forma ins-

trumental se constitua foco de nossa atenccedilatildeo tornando-se portanto um saber passiacutevel de ser

compreendido Entretanto essa autora afirma que se de um lado existe a possibilidade de

focar o saber taacutecito durante a realizaccedilatildeo de uma atividade por outro lado ao concentrar a ob-

servaccedilatildeo nas etapas de realizaccedilatildeo da atividade e natildeo no seu resultado final corre-se o risco de

perder a noccedilatildeo do objetivo de tal atividade Segundo Frade (2003) em uma situaccedilatildeo igual a

essa ldquonossa performance tende a ser paralisada de uma maneira ou de outra porque os ins-

trumentos natildeo satildeo reconhecidos por noacutes como instrumentosrdquo ou seja o objetivo pelo qual

haviacuteamos inicialmente mobilizado o nosso saber taacutecito ainda que em sua forma instrumen-

tal deixa de ser realizado ou o eacute precariamente Isso ocorre porque ao redirecionarmos nosso

55

foco em direccedilatildeo ao saber taacutecito ldquoinstrumentalrdquo acabamos por privilegiar a nossa atenccedilatildeo no

saber taacutecito em si em detrimento daquilo que eacute da atividade que queremos realizar

A anaacutelise sobre o uso instrumental do saber constitui-se nesta pesquisa em uma parte

essencial uma vez que por meio desse debate foi possiacutevel tomar o saber taacutecito como produto

bem como processo de produccedilatildeo de saber (FRADE 2003) Ao considerarmos a chance apon-

tada por Frade (2003) e Polany (1967) de que eacute possiacutevel mobilizar saberes para diminuir o

estranhamento da forma instrumental do saber taacutecito ainda que haja um prejuiacutezo em relaccedilatildeo agrave

realizaccedilatildeo do objetivo inicial acabamos por entender que uma coisa eacute debater o saber taacutecito

enquanto produto ou realizaccedilatildeo de uma atividade e outra coisa eacute abordar o processo que

construiu o saber necessaacuterio agrave realizaccedilatildeo dessa atividade Neste sentido se um saber taacutecito

ainda que instrumental pode requerer uma quantidade de reflexatildeo para ser acionado poderia

este saber ser um componente de um processo de construccedilatildeo de outros saberes taacutecitos

De acordo com Frade (2003) ao usar a palavra ldquoconhecimentordquo ldquoPolany se refere tan-

to ao produto ou realizaccedilatildeo de uma aprendizagem quanto ao processo dinacircmico de um ato de

conhecerrdquo Em Polany (1967) a possibilidade de o saber taacutecito se inscrever em um processo

de construccedilatildeo de saberes aparece associada agrave necessidade de que o uso de um determinado

saber taacutecito seja monitorado por outros saberes taacutecitos Para esse autor o uso de um saber

taacutecito para realizar uma atividade seja fiacutesica ou mental mobiliza um conjunto especiacutefico de

conhecimentos como instrumentos para realizarmos a tarefa ldquobem como para monitorarmos a

sua realizaccedilatildeordquo (FRADE 2003 p 12) Neste sentido podemos inferir que quanto maior for a

possibilidade de o saber taacutecito se inscrever em um processo de construccedilatildeo de saberes maiores

satildeo as chances de um saber taacutecito monitorar a realizaccedilatildeo de uma determinada atividade Daiacute

indagamos pode haver um saber taacutecito que monitore a realizaccedilatildeo de atividades Se o saber

taacutecito eacute resultado da mobilizaccedilatildeo de outros saberes quais seriam eles

56

Apesar de tanto Schon (2000) quanto Polany (1967) tomarem o saber taacutecito por um

olhar proacuteximo agrave perspectiva instrumental esses dois autores nos ajudam a pensar a possibili-

dade de que possa haver um saber taacutecito que monitore a realizaccedilatildeo de uma atividade De a-

cordo com Polany apud Frade (2003) mesmo de forma instrumental o uso do saber taacutecito

natildeo pode ser garantido pelo uso de accedilotildees repetidas De acordo com Frade (2003) ldquoPolany

observa que a passagem de uma experiecircncia para o plano operacional isto eacute para o uso de um

conhecimento enquanto instrumento natildeo se daacute por meio de meras repeticcedilotildeesrdquo (p 23 grifo

nosso) Esse entendimento nos sugere que o uso do saber de forma sucessiva demanda alguma

reflexatildeo Em Schon (2003) a possibilidade de o saber taacutecito se situar para aleacutem do uso ins-

trumental se apresenta agrave medida que este autor relativiza a tese de que temos uma tendecircncia

em focalizar o saber taacutecito no resultado final de uma atividade As reflexotildees deste autor apon-

tam que se toda atividade guarda sempre um lado imprevisiacutevel portanto natildeo eacute possiacutevel em

face dessa imprevisibilidade garantir que simplesmente repetindo um determinado saber taacuteci-

to possa se realizar com sucesso uma segunda ou terceira atividade De acordo com Schon

(2000)

Quando aprendemos a fazer algo estamos aptos a executar sequumlecircncias faacuteceis de a-tividade reconhecimento decisatildeo e ajuste sem ter como se diz que pensar a res-peito () No entanto nem sempre eacute bem assim Uma rotina comum produz um re-sultado inesperado um erro teima em resistir agrave correccedilatildeo () Todas essas experiecircn-cias agradaacuteveis e desagradaacuteveis conteacutem um elemento de surpresa (p 32)

Entretanto a abordagem de Schon (2000) ao associar o elemento da imprevisibilidade

agrave relevacircncia do ldquotalento artiacutesticordquo nos permitiu desdobrar o debate sobre o saber taacutecito Neste

sentido se o imprevisto eacute um problema real em qualquer atividade poderiacuteamos dizer que o

uso de um saber taacutecito para realizar uma atividade depende de uma constante reflexatildeo E nes-

te caso essa reflexatildeo pode ser associada ao saber taacutecito em um processo de construccedilatildeo de

saberes Essas indagaccedilotildees satildeo enriquecidas e em parte respondidas pela tese de ldquoreflexatildeo-

57

na-accedilatildeordquo desenvolvida por Schon (2000) Segundo esse pensador a reflexatildeo-na-accedilatildeo pode ser

apresentada ldquoem duas formasrdquo A primeira ldquopodemos refletir sobre a accedilatildeo pensando retros-

pectivamente sobre o que fizemos de modo a descobrir como nosso ato de conhecer-na-accedilatildeo

pode ter contribuiacutedo para um resultado inesperadordquo (p 32)

Em uma segunda alternativa Schon (2000) afirma que sem uma interrupccedilatildeo podemos

refletir no meio da accedilatildeo

Em um presente-da-accedilatildeo um periacuteodo de tempo variaacutevel com o contexto durante o qual ainda se pode interferir na situaccedilatildeo em desenvolvimento nosso pensar serve para dar nova forma ao que estamos fazendo enquanto ainda o fazemos Eu diria em casos como este que refletimos-na-accedilatildeo (p 32)

De acordo com Schon (2000) a reflexatildeo-na-accedilatildeo ldquoeacute uma parte fundamental do proces-

so que este autor chama de conhecer-na-accedilatildeordquo De acordo com Schon (2000) ldquoconhecer-na-

accedilatildeordquo refere-se aos

tipos de conhecimento que revelamos em nossas accedilotildees inteligentes performances fiacutesicas publicamente observaacuteveis como andar de bicicleta ou operaccedilotildees privadas como anaacutelise instantacircnea de uma folha de balanccedilo Nos dois casos o ato de conhe-cer estaacute na accedilatildeo Noacutes o revelamos pela nossa execuccedilatildeo capacitada e espontacircnea da performance e eacute uma caracteriacutestica nossa sermos incapazes de tornaacute-la verbalmen-te expliacutecita (p 31)

A reflexatildeo-na-accedilatildeo se diferencia dos outros tipos de reflexotildees pela sua ldquoimediata sig-

nificaccedilatildeo para a accedilatildeordquo o que nem sempre eacute claro e perceptiacutevel conforme afirma esse pensa-

dor ldquoAssim como o conhecer-na-accedilatildeo a reflexatildeo-na-accedilatildeo eacute um processo que podemos de-

senvolver sem que precisemos dizer o que estamos fazendordquo mesmo porque para Schon

(2000) o fato de ldquo() sermos capazes de refletir-na-accedilatildeo eacute diferente de sermos capazes de

refletir sobre nossa reflexatildeo-na-accedilatildeo de modo a produzir uma boa descriccedilatildeo verbal dela E eacute

ainda diferente de sermos capazes de refletir sobre a descriccedilatildeo resultanterdquo (p 35)

58

Se os elementos trabalhados ateacute o momento nos permitem associar a possibilidade de

haver um saber taacutecito que monitore a realizaccedilatildeo de uma atividade como um processo de cons-

truccedilatildeo de saberes por outro lado a possibilidade de haver um saber taacutecito inscrito num pro-

cesso de construccedilatildeo de saberes pode guardar ainda uma relaccedilatildeo com as exigecircncias de comu-

nicaccedilatildeo deste saber Segundo Frade (2003) ldquoa comunicaccedilatildeo de um saber taacutecito entre duas ou

mais pessoas exige que essas pessoas acionem os seus saberes taacutecitosrdquo Entretanto a comuni-

caccedilatildeo ou natildeo de um saber taacutecito eacute uma discussatildeo necessariamente mais extensa Neste senti-

do desenvolveremos a seguir a relaccedilatildeo entre o saber taacutecito e uma linguagem que possa ex-

pressaacute-lo

242 O saber taacutecito e a linguagem

No que se refere agrave comunicaccedilatildeo do saber taacutecito a literatura apresenta como debate

principal o problema em torno da relaccedilatildeo entre o saber taacutecito e uma linguagem que possa ex-

pressaacute-lo (FRADE 2003 SCHON 2000 POLANY 1967 MALGLAIVE 1990) De acordo

com Frade (2000 p 1) Polany valoriza a questatildeo da linguagem no debate sobre o saber taacutecito

a partir da ideacuteia de que ldquosabemos mais do que podemos dizerrdquo (Polany 1967) Outros pensa-

dores tambeacutem reafirmam a insuficiecircncia da linguagem na traduccedilatildeo de um determinado saber

Segundo Lima ldquosabemos mais do que podemos dizer sobre o que sabemos como sabemos e

o que sabemosrdquo (COLLINS apud LIMA 1998 p 144) O problema da insuficiecircncia da lin-

guagem potencializa-se de acordo com Polany (1967) porque todo conhecimento guarda

uma parte que natildeo pode ser totalmente exposta logo todo conhecimento eacute construiacutedo a partir

do taacutecito Daiacute que em Polany apud Frade (2003) o saber taacutecito pode ser aprendido mas natildeo

pode ser ensinado de uma forma simples uma vez que a relaccedilatildeo de aprendizagem exige co-

nhecimentos subsidiaacuterios que tambeacutem satildeo taacutecitos

59

Muito embora Schon (2000) corrobore a tese da insuficiecircncia da linguagem em expli-

citar um determinado saber taacutecito esse autor afirma que ldquoeacute possiacutevel agraves vezes atraveacutes da ob-

servaccedilatildeo e da reflexatildeo sobre nossas accedilotildees fazermos uma descriccedilatildeo do saber taacutecito que estaacute

impliacutecito nelasrdquo Dentre as vaacuterias abordagens sobre os limites da linguagem na explicitaccedilatildeo

do saber taacutecito (FRADE 2003 SCHON 2000 POLANY 1967 MALGLAIVE 1990) en-

contramos em Schon (2000) uma discussatildeo que nos parece ser interessante apresentar As

reflexotildees desse autor desenvolvem-se a partir da ideacuteia de que ldquoo pensar o que estou fazendo

natildeo implica ao mesmo tempo pensar o que fazer e fazecirc-lo Quando faccedilo algo de forma inteli-

gente () estou fazendo uma coisa e natildeo duasrdquo (RYLE apud SCHON 2000 p 29) Segundo

a perspectiva desse autor saberes do tipo do saber taacutecito estabelecem em seu proacuteprio processo

de conhecer uma dificuldade de explicitaccedilatildeo uma vez que esses tipos de saberes satildeo construiacute-

dos normalmente na praacutetica mediante um processo de ldquoconhecer-na-accedilatildeordquo De acordo com

esse pensador o processo de ldquoconhecer-na-accedilatildeordquo por ser da ordem da praacutetica eacute inexoravel-

mente ldquoum processo dinacircmicordquo o que poderia criar pelo menos uma distorccedilatildeo na explicita-

ccedilatildeo de um saber taacutecito jaacute que de acordo com Schon (2000) ldquoo processo de conhecer na accedilatildeo

eacute dinacircmico e os lsquofatosrsquo os lsquoprocedimentosrsquo e as lsquoteoriasrsquo satildeo estaacuteticosrdquo (p 31)

Sznelwar e Mascia (1997) tambeacutem levantam a possibilidade de haver uma relaccedilatildeo as-

siacutencrona entre uma linguagem que busca explicitar perspectivas teoacutericas e outra linguagem

que em tese explicitaria uma situaccedilatildeo praacutetica Essa distinccedilatildeo sobre a natureza da linguagem

engendraria uma incompatibilidade que eacute apontada por esses autores como um ldquodeacuteficit semi-

oacuteticordquo que eles esclarecem ao afirmar que

O leacutexico usado para descrever o trabalho estaacute fortemente dominado pelas produ-ccedilotildees linguumliacutesticas e conceituais formuladas por engenheiros peritos projetistas saacute-bios e pesquisadores O que eacute dito sobre o trabalho natildeo tem a ver com o vivenciado por quem trabalha Existe um deacuteficit semioacutetico para descrever a experiecircncia de tra-balho dos trabalhadores de base (p 224)

60

A possibilidade de haver um descompasso entre uma linguagem que busca explicitar

uma teoria e outra linguagem que busca explicitar uma situaccedilatildeo praacutetica talvez possa ser e-

xemplificada em algumas relaccedilotildees entre o homem e a informaacutetica

A informaacutetica tomou empreacutestimo de toda uma seacuterie de palavras que designam ati-vidades do homem como memoacuteria linguagem inteligecircncia para nomear ativida-des informatizadas Esta confusatildeo eacute particularmente perigosa porque quando re-tornam ao homem eles pensam que o homem tem o mesmo modo de funcionamen-to do computador nas atividades designadas por palavras que se referem ao ho-mem (LIMA 1998 p 124)

Seria possiacutevel inferir que parte da dificuldade de explicitar o saber taacutecito deve-se agrave in-

compatibilidade de sintonia entre uma linguagem que busca traduzir um processo vinculado agrave

praacutetica caracterizado como dinacircmico e uma outra linguagem que traduz conceitos e teorias

portanto de natureza essencialmente estaacutetica Por outro lado ao apontarmos um descompasso

entre uma linguagem vinculada agrave teoria e uma linguagem vinculada agrave praacutetica natildeo estariacuteamos

restringindo o saber teoacuterico agrave reflexatildeo e o saber taacutecito ao ldquopraacuteticofiacutesicordquo E neste caso esta-

riacuteamos reproduzindo a perspectiva que hierarquiza os saberes formalizados pelo estatuto cien-

tiacutefico em detrimento dos saberes formalizados pela experiecircncia Neste sentido ao ser coloca-

do como uma questatildeo complexa o debate sobre as possibilidades de explicitaccedilatildeo ou natildeo do

saber taacutecito mais do apontar as contradiccedilotildees entre uma linguagem que busca expressar um

saber taacutecito e uma linguagem teoacuterica nos permite tambeacutem abordar em que medida estes ti-

pos de saberes podem demandar e articular niacuteveis de reflexatildeo e abstraccedilatildeo

Se uma das questotildees que norteiam o debate sobre a relaccedilatildeo entre o saber taacutecito e a lin-

guagem eacute a possibilidade ou natildeo de este saber ser comunicado eacute portanto importante abor-

dar alguns aspectos das relaccedilotildees sociais em que o saber taacutecito se insere Muitos pensadores

apontam as relaccedilotildees sociais como um espaccedilo privilegiado na construccedilatildeo de saberes De acor-

do com Malglaive (1990) ldquoNuma imensa maioria de casos a actividade humana natildeo eacute solitaacute-

ria mas colectiva eacute uma lsquoco-acccedilatildeorsquo que implica parceiros e portanto uma organizaccedilatildeo uma

61

distribuiccedilatildeo das operaccedilotildees exercidas em comum para atingir o mesmo fimrdquo (p 76) Malglaive

(1990) faz a consideraccedilatildeo de que ldquoa teoria ignora certas caracteriacutesticas da accedilatildeordquo e por este

motivo ldquo() natildeo eacute possiacutevel conhecer um conceito sem conhecer o conjunto das relaccedilotildees nas

quais ele se insere e que por isso mesmo o definem ()rdquo (p 44) Neste sentido ao se consi-

derar as dimensotildees coletivas do processo de construccedilatildeo de saberes a linguagem aparece como

aspecto preponderante

Se por um lado ficou evidenciado na literatura abordada que satildeo muitas as tramas en-

gendradas pela relaccedilatildeo entre a linguagem e o saber taacutecito jaacute em nosso entendimento satildeo mui-

tos os argumentos que nos permitem tomar como importantes os caminhos apontados pelas

reflexotildees oriundas do campo de conhecimento que articula ldquotrabalho e linguagemrdquo (FAITA e

SOUZA-E-SILVA 2002 NOUROUDINE 2002)

Sobre a fecundidade da relaccedilatildeo entre linguagem e trabalho Faita e Souza-e-Silva

(2002) afirmam que ldquoDiversos fatores podem explicar a emergecircncia de tal interesse o mais

importante deles encontra-se no peso e na importacircncia que as atividades de simbolizaccedilatildeo pas-

saram a ter na realizaccedilatildeo do trabalhordquo (p 7) Ainda que o interesse dos linguumlistas pelo traba-

lho como objeto de estudo seja um fenocircmeno recente a literatura sobre essa temaacutetica jaacute acu-

mula importantes reflexotildees para apontar a diversidade de enfoques e de campos de interven-

ccedilatildeo caracteriacutesticos da aacuterea Dentre as vaacuterias possibilidades de contribuiccedilatildeo para esta pesquisa

uma foi acolhida com maior profundidade pois nos permitiu analisar a relaccedilatildeo entre o traba-

lho e a linguagem em uma perspectiva multifacetada Trata-se de uma abordagem defendida

por Nouroudine (2002)12 que apresenta uma triparticcedilatildeo da relaccedilatildeo trabalholinguagem cujos

eixos seriam dados pelas modalidades ldquolinguagem como trabalhordquo ldquolinguagem no trabalhordquo

e ldquolinguagem sobre o trabalhordquo

12 De acordo com esse autor essa reflexatildeo tem origem em LACOSTE M Paroles activiteacute situation In BOU-TET J Paroles ou travail Paris LrsquoHarmattan (1995)

62

Para Lacoste apud Nouroudine (2002) a elaboraccedilatildeo dessa triparticcedilatildeo ldquopermitiu reme-

diar confusotildees disseminadas separando como verbalizaccedilatildeo falas provocadas e exteriores agrave

situaccedilatildeo e como comunicaccedilatildeo falas que fazem parte da atividade de trabalhordquo (p 17) De

acordo com Nouroudine (2002 p 18) a distinccedilatildeo entre esses trecircs aspectos da linguagem a-

tende a uma opccedilatildeo metodoloacutegica que busca identificar os mecanismos de funcionamento da

relaccedilatildeo trabalholinguagem e ainda a um interesse epistemoloacutegico na medida em que pode-

ria evidenciar as ligaccedilotildees e as diferenccedilas desses mecanismos de funcionamento Neste senti-

do eacute importante salientar que de modo algum os diferentes aspectos da relaccedilatildeo traba-

lholinguagem satildeo estanques entre si e sim que existe uma estreita ligaccedilatildeo entre os trecircs as-

pectos da linguagem embora como afirma Nouroudine (2002) cada um deles possa aparen-

tar ainda problemas de ordem praacutetica e epistemoloacutegica bem distintos No que se refere agrave nos-

sa pesquisa a distinccedilatildeo entre as vaacuterias dimensotildees da relaccedilatildeo linguagem e trabalho pode lanccedilar

luzes sobre a explicitaccedilatildeo ou natildeo dos saberes taacutecitos pois nos facilita compreender as estra-

teacutegias que os trabalhadores mobilizam para viabilizar a comunicaccedilatildeo de saberes no trabalho

Essa triparticcedilatildeo considera que respectivamente haacute linguagens que fazem o trabalho que cir-

culam no trabalho e que interpretam o trabalho as quais seratildeo explicadas a seguir

A ldquolinguagem como trabalhordquo eacute dada a partir do momento em que a proacutepria linguagem

eacute mobilizada como uma atividade de trabalho (NOUROUDINE 2002) Nesta condiccedilatildeo de

acordo com esse autor a linguagem assume tambeacutem as complexas contradiccedilotildees que consti-

tuem o trabalho13 e uma das consequumlecircncias eacute a existecircncia de dois niacuteveis de linguagem ldquopor

um lado os gestos falas que o protagonista utiliza ao se dirigir a seus colegas envolvidos em

uma atividade executada coletivamente por outro lado as falas que o protagonista do traba-

13 De acordo NOUROUDINE (2002) parte das contradiccedilotildees do trabalho se devem ao seu caraacuteter multidimensio-nal composto de dimensatildeo econocircmica social cultural juriacutedica etc Para esse autor ldquoo caraacuteter multidimensional e total do trabalho eacute irredutiacutevel visto ser marca e o reflexo da natureza mesma do humano ao mesmo tempo sujeito social econocircmico juriacutedico etc Poreacutem o trabalho tambeacutem eacute complexo na medida em que integra propri-edades muacuteltiplas cada uma participando da formaccedilatildeo de uma significaccedilatildeo dinacircmica e variaacutevel nos campos social e histoacutericordquo (p 19)

63

lho dirige a si proacuteprio para acompanhar e orientar seus proacuteprios gestos no momento mesmo

em que trabalhardquo (NOUROUDINE 2002 p 20) Conforme esse pensador eacute ainda importan-

te apontar que a linguagem como trabalho natildeo eacute somente uma dimensatildeo dentre outras do

trabalho mas ela proacutepria se reveste de uma seacuterie de dimensotildees Neste sentido a ldquolinguagem

como trabalhordquo eacute econocircmica dado que a comunicaccedilatildeo em situaccedilatildeo de trabalho e durante a

atividade eacute utilizada como meio de gestatildeo do tempo de trabalho A linguagem eacute ainda dada

pela sua dimensatildeo social uma vez que a relaccedilatildeo entre o locutor e o interlocutor constitui-se

entre duas pessoas socialmente organizadas Dessa forma a interaccedilatildeo entre o locutor e o inter-

locutor torna a linguagem fundamentalmente social integrando ao mesmo tempo a coesatildeo e

o conflito Nas situaccedilotildees de trabalho em meio aos coletivos a linguagem permite em especi-

al travar e manter relaccedilotildees sociais entre parceiros E por fim a linguagem possui uma di-

mensatildeo eacutetica que eacute extensatildeo do seu caraacuteter social Eacute a partir desse viacutenculo com o mundo so-

cial que a linguagem como trabalho demanda uma eacutetica ldquoEacute enquanto dimensatildeo do trabalho

que se apresenta ela proacutepria sob a forma de uma seacuterie de dimensotildees que a linguagem eacute ativi-

dade atravessada pelos saberes pelos valores etcrdquo E por isso mesmo prossegue essa pensa-

dora ldquono exame das situaccedilotildees de trabalho natildeo se analisa a linguagem unicamente como dis-

curso preacute eou poacutes-experiecircncia mas sobretudo como parte da atividade em que constituintes

fisioloacutegicos cognitivos subjetivos e sociais se cruzam em um complexo que se torna ele proacute-

prio uma marca distintiva de uma experiecircncia especiacutefica em relaccedilatildeo a outrasrdquo (NOUROUDI-

NE 2002) Com efeito ao capturarmos a ldquolinguagem como trabalhordquo com afirma esse autor

natildeo como uma dimensatildeo a mais do trabalho mas ela proacutepria possuidora de outras dimensotildees

quais sejam econocircmica social e eacutetica eacute possiacutevel afirmar que a efetivaccedilatildeo de um saber na

praacutetica natildeo eacute dada apenas por questotildees teacutecnicas mas tambeacutem pelos aspectos econocircmicos

sociais subjetivos Daiacute que nos parece importante continuar explorando a ampliaccedilatildeo da rela-

64

ccedilatildeo entre trabalho e linguagem proposta pela tese da ldquotriparticcedilatildeordquo o que faremos a seguir com

a abordagem da ldquolinguagem no trabalhordquo

A ldquolinguagem no trabalhordquo eacute tomada a partir da consideraccedilatildeo de que existe ainda no

trabalho uma dimensatildeo da linguagem que mesmo posta como atividade natildeo participa dire-

tamente da atividade especiacutefica em que se concretiza uma intenccedilatildeo de trabalho Dessa forma

nem toda linguagem presente no trabalho pode ser considerada uma ldquolinguagem como traba-

lhordquo (NOUROUDINE 2002) Para esse autor o entendimento que permite distinguir a ldquolin-

guagem como trabalhordquo da ldquolinguagem no trabalhordquo daacute-se primeiramente pela distinccedilatildeo en-

tre a atividade de trabalho e a situaccedilatildeo de trabalho A primeira qual seja a atividade de traba-

lho eacute ldquoexpressa pelo autor eou coletivo dentro da atividade (de trabalho) em tempo e lugar

reaisrdquo Jaacute a segunda a situaccedilatildeo de trabalho ldquoseria antes uma das realidades constitutivas da

situaccedilatildeo de trabalho global na qual se desenrola a atividaderdquo (NOUROUDINE 2002)

Para Nouroudine (2002) ldquoos constituintes da situaccedilatildeo de trabalho podem ir do mais

proacuteximo ao mais distanciado da atividade nutrindo-se de dimensotildees social econocircmica juriacute-

dica artiacutestica etcrdquo No que se refere ao debate presente em nossa pesquisa a consideraccedilatildeo da

ldquosituaccedilatildeo de trabalhordquo sugere uma reflexatildeo mais ampla sobre a relaccedilatildeo trabalholinguagem e

natildeo um desprezo das possibilidades de entendimento que a apreensatildeo da atividade de trabalho

representa

Se eacute verdade que o ergonomista se interessa geralmente pelos determinantes proacute-ximos da atividade a fim de tentar compreender o trabalho e considerar os meios de sua transformaccedilatildeo outros determinantes mais distanciados histoacuterica social es-pacialmente tambeacutem satildeo componentes da situaccedilatildeo de trabalho (p 23)

A ldquoampliaccedilatildeordquo apresentada pela perspectiva da ldquosituaccedilatildeo de trabalhordquo desdobrou-se

em outras abordagens como por exemplo os trabalhos de Yves Schwartz e Alain Wisner

Para Nouroudine (2002) a antropotecnologia criada por Alain Wisner na esteira da ergono-

mia a fim de intervir nas questotildees de transferecircncia de tecnologias efetua um alongamento

65

ainda mais importante da situaccedilatildeo de trabalho Conforme afirma o proacuteprio Wisner apud Nou-

roudine (2002) ldquoEm antropotecnologia iremos mais longe na procura das origens das difi-

culdades encontradas e construiremos uma aacutervore das causas que natildeo se limitaraacute aos aspec-

tos teacutecnicos e organizacionais mais proacuteximos do posto de trabalhordquo (p 23) Uma outra pers-

pectiva a ergologia14 quando toma por objeto de pesquisa e de intervenccedilatildeo as atividades hu-

manas aborda por isso mesmo a situaccedilatildeo de trabalho dentro de uma dimensatildeo antropoloacutegica

em que determinantes mais proacuteximos da atividade se relacionam dialeticamente com os de-

terminantes mais distanciados (NOUROUDINE 2002) Em boa medida podemos afirmar

que a abordagem da ldquosituaccedilatildeo de trabalhordquo estaacute imbricada com uma certa subversatildeo epistemo-

loacutegica uma vez que este tipo de abordagem reconhece que a experiecircncia de trabalho eacute a en-

grenagem ldquomestrerdquo na produccedilatildeo de saberes taacutecitos15

A partir da trilha possibilitada pela ldquosituaccedilatildeo de trabalhordquo a linguagem no trabalho

pode ser entendida como uma linguagem que circula no trabalho podendo influenciar ou natildeo

a realizaccedilatildeo imediata de uma atividade Ao nosso olhar a possibilidade de distinguir uma

ldquolinguagem no trabalhordquo de uma ldquolinguagem como trabalhordquo traz como importante contribui-

ccedilatildeo uma leitura que busca conhecer e aproximar os protagonistas do trabalho em sua totalida-

de histoacuterica social e cultural Neste sentido a abordagem da linguagem no trabalho talvez

possa evitar ou diminuir a chance de que o saber taacutecito seja tido apenas no seu ato imediato

14 Neste sentido a ergologia nos fornece uma contribuiccedilatildeo com uma proposta de abordagem que agrave luz de um debate entre ciecircncia e cultura percebe que saberes formalizados pela ciecircncia e saberes oriundos da experiecircncia possuem cada qual seu niacutevel de cultura e incultura (SANTOS 2000 SCHWARTZ 2000 FAITA e SOUZA-E-SILVA 2002) 15 A possibilidade de ocorrer uma certa subversatildeo epistemoloacutegica ao nosso ver tem um deacutebito com as reflexotildees de SANTOS (2000) e SCHWARTZ (2000) Esses pensadores propotildeem que a experiecircncia de trabalho complexa que eacute seja tomada a partir de uma ldquosolidariedade entre uma ideacuteia forte de ciecircncia e uma ideacuteia forte de culturardquo (SANTOS 2000 p 121) SANTOS (2000) ao se referir a uma solidariedade entre uma ideacuteia forte de ciecircncia e uma ideacuteia forte de cultura fala de ldquocultura tomada em dois sentidos como eacuteter do pensamento elemento de formaccedilatildeo dos conceitos e das lsquohierarquias do saberrsquo e como lsquoaquilo que produz a humanidadersquo teria uma pro-pensatildeo agrave obstruir o elemento da experiecircncia Esta obstruccedilatildeo proveacutem de uma exigecircncia forte concernindo a cons-tituiccedilatildeo de um discurso cientiacuteficordquo (p 121)

66

como um truque ou um lance de uacuteltima hora16 pois ao recorrermos a ldquosituaccedilatildeo de trabalhordquo

criamos condiccedilotildees para que o saber taacutecito seja tomado como expressatildeo de um saber histoacuterico

e socialmente construiacutedo isto eacute ao longo da vida do seu protagonista contrapondo-se assim

ao que chamamos de olhar imediato sobre o trabalho A ldquolinguagem no trabalhordquo apresenta

ainda uma outra caracteriacutestica por ser uma linguagem que circula nas relaccedilotildees sociais do

coletivo de trabalho ela pode ser indiretamente fundamental para o desenvolvimento do pro-

cesso produtivo Nouroudine (2002) afirma que ldquofalar de futebol poderia revelar-se beneacutefico agrave

realizaccedilatildeo da atividade em curso com eficaacutecia e seguranccedilardquo (p 24)

A linguagem sobre o trabalho somada agraves jaacute apresentadas ldquolinguagem como trabalhordquo

e ldquolinguagem no trabalhordquo fecha a tese de ldquotriparticcedilatildeordquo da relaccedilatildeo trabalholinguagem A e-

xistecircncia de uma linguagem sobre o trabalho inscreve-se como uma modalidade de linguagem

que busca interpretar o trabalho Essa interpretaccedilatildeo satildeo falas sobre o trabalho que pode advir

tanto do interior quanto do exterior do coletivo de trabalho (NOUROUDINE 2002) Neste

sentido se foi dada relevacircncia agrave possibilidade de que a ldquolinguagem como trabalhordquo e a ldquolin-

guagem no trabalhordquo por expressarem uma historicidade possam reportar uma fala mais

ldquoproacuteximardquo do ponto de vista dos trabalhadores eacute igualmente importante considerar a possibi-

lidade de a ldquolinguagem sobre o trabalhordquo nos permitir ldquolocalizarrdquo o lugar de origem dessas

falas o que segundo Nouroudine (2002) daacute voz tanto aos que pesquisam o trabalho quanto

aos protagonistas do trabalho uma vez que

A linguagem sobre o trabalho natildeo seria portanto exclusividade do pesquisador visto que na atividade produtividade pode ser encontrada tambeacutem sem com isso ser confundida com as outras formas de linguagem Eacute sem duacutevida pertinente o questionamento acerca de ldquoquem falardquo ldquode onde eleela falardquo ldquoquando eleela falardquo para que se compreenda onde se situa o campo de validade e de pertinecircncia da ldquolinguagem sobre o trabalhordquo (p 25-26)

16 Ao nosso ver a ideacuteia de truque eacute um desdobramento do imbricamento entre a naturalizaccedilatildeo do saber taacutecito com um olhar excessivamente restrito sobre a accedilatildeo a atividade em que este saber taacutecito foi percebido uma vez que a experiecircncia ponto fundamental do saber taacutecito eacute tributaacuteria de vivecircncias Daiacute que buscar um rastro histoacuterico pode esclarecer melhor a questatildeo do saber taacutecito

67

O reconhecimento de que haacute uma linguagem que interpreta o trabalho uma linguagem

que faz o trabalho e outra que circula no trabalho mais do que ldquolocalizar as falasrdquo remete agrave

possibilidade de que os protagonistas do trabalho sejam tomados como capazes de interpretar

a sua proacutepria relaccedilatildeo com o trabalho Eacute nessa trilha qual seja uma abordagem que busca per-

ceber a histoacuteria dos protagonistas do trabalho e por isso mesmo a proacutepria pluralidade da rela-

ccedilatildeo trabalholinguagem que a tese da triparticcedilatildeo da relaccedilatildeo trabalholinguagem nos parece

mais fecunda especialmente no que concerne agrave legitimaccedilatildeo dos saberes taacutecitos dos protago-

nistas do trabalho pois ao trataacute-lo como um processo histoacuterico social e subjetivo acaba por

desnaturalizaacute-lo Todavia o simples reconhecimento de que possa haver entre os trabalhado-

res uma linguagem usada para interpretar o seu trabalho eacute insuficiente para representar um

equiliacutebrio no reconhecimento social poliacutetico econocircmico e epistemoloacutegico entre uma lingua-

gem de base cientiacutefica e outra oriunda da experiecircncia Para Nouroudine (2000) ldquo() os meacute-

todos usados pelas disciplinas que focalizam o trabalho como lsquoobjetorsquo de pesquisa e de inter-

venccedilatildeo para produzir uma lsquolinguagem sobre o trabalhorsquo natildeo satildeo desse ponto de vista neu-

trosrdquo (p 27) Outros pensadores como Sznelwar e Mascia (1997) ao discutirem a relaccedilatildeo

trabalholinguagem afirmam que existe um ldquodesequiliacutebrio comunicacional que joga em favor

da hierarquia em detrimento dos subordinados e do ponto de vista dos homens em detrimento

do das mulheresrdquo (p 224) Ainda sobre a possibilidade de a linguagem privilegiar um deter-

minado ponto de vista sobre o trabalho as reflexotildees de Schwartz (apud NOUROUDINE

2002) satildeo mais contundentes

Todo posicionamento de exteritorialiteacute17 (Y SCHWARTZ 1996) do pesquisador em relaccedilatildeo ao trabalho dos demais elimina de fato os protagonistas dos processos de produccedilatildeo de saber sobre suas atividades e ao mesmo tempo sua proacutepria ldquolin-guagem sobre o trabalhordquo acaba sendo desqualificada e neutralizada (p 27)

17 Exterritorialiteacute extraterritorialidade

68

A tese de triparticcedilatildeo da relaccedilatildeo trabalholinguagem ao buscar articular de forma am-

pliada as vaacuterias dimensotildees ldquolinguagem no trabalhordquo ldquolinguagem como trabalhordquo e a ldquolingua-

gem sobre o trabalhordquo nos permitiu elaborar algumas indagaccedilotildees sobre a explicitaccedilatildeo ou

natildeo do saber taacutecito e dentre as quais analisar um saber taacutecito exclusivamente na atividade

de trabalho natildeo seria um ldquoolharrdquo excessivamente imediato sobre o protagonista do trabalho E

neste caso um olhar imediato natildeo inviabilizaria o acesso do pesquisador agrave ldquolinguagem no

trabalhordquo dos seus protagonistas E ainda como o domiacutenio de uma linguagem no coletivo do

trabalho pode influenciar a produccedilatildeo a mobilizaccedilatildeo e a formalizaccedilatildeo de saberes taacutecitos por

parte dos trabalhadores

Se de uma maneira recorrente como demonstra a literatura analisada anteriormente

apresentamos como caracteriacutesticas centrais para se analisar o saber taacutecito aspectos como a

relaccedilatildeo entre a teoria e a praacutetica o uso instrumental ou natildeo deste saber e ainda a relaccedilatildeo

com a linguagem foi apontado tambeacutem que esses aspectos guardam uma complexa articula-

ccedilatildeo entre si (FRADE 2003 SCHON 2000 POLANY 1967 MALGLAIVE 1990 NOU-

ROUDINE 2002 SZNELWAR e MASCIA 1997) Em nosso entendimento essa articulaccedilatildeo

pode ser mais bem compreendida por meio da anaacutelise do uso do corpo pelo sujeito na produ-

ccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes

243 Corpo mente e o saber taacutecito

Eacute importante salientar que ao tomarmos a relaccedilatildeo entre o corpo e a mente como um

vieacutes de anaacutelise sobre o saber taacutecito natildeo buscamos de modo algum apontar a possibilidade de

que este saber seja determinado por atributos bioloacutegicas em detrimento dos aspectos sociais e

histoacutericos epistemoloacutegicos e subjetivos Neste sentido eacute importante salientar que comparti-

lhamos a posiccedilatildeo de Snelwar e Mascia (1997) quando esses apontam que o favorecimento dos

69

aspectos bioloacutegicos na discussatildeo do saber taacutecito poderia corroborar o engodo taylorista de que

eacute possiacutevel ldquoaleacutem da divisatildeo de tarefas na produccedilatildeo dividir uma pessoa em diferentes partes

fiacutesicafisioloacutegica mentalcognitiva e afetivapsiacutequica Cada uma destas partes poderia ser uti-

lizada em momentos determinados conforme necessidade de produccedilatildeordquo (p 210)18

Entretanto como jaacute foi dito anteriormente satildeo muitas as questotildees que tornam impor-

tante bem como necessaacuteria uma discussatildeo sobre o saber taacutecito pelo vieacutes da relaccedilatildeo entre o

corpo e a mente Como ponto de partida podemos considerar que o corpo eacute o meio baacutesico

sem o qual natildeo se realiza uma atividade fiacutesica ou mesmo mental De acordo com Polany

ldquotodas as nossas transaccedilotildees conscientes com o mundo envolvem o uso subsidiaacuterio do corpo E

o nosso corpo eacute o uacutenico agregado de coisas das quais noacutes estamos quase exclusivamente aten-

tos de tal maneira subsidiaacuterios19 Em favor da abordagem sobre os aspectos corporais haacute

ainda a possibilidade de que o corpo possa se estruturar como uma linguagem na medida em

que ele representa valores em um determinado coletivo20 A questatildeo do corpo pode ter mais

uma relevacircncia se considerarmos tambeacutem o termo incorporar como ldquodar uma forma corpoacute-

reardquo21 pois assim ao discutirmos os aspectos corporais poderiacuteamos como jaacute foi mencionado

cumprir um papel natildeo menos importante de dar um corpo com todos os seus significados

culturais histoacutericos e subjetivos aos trabalhadores sujeitos nesta pesquisa

18 Para esses pensadores ldquoEssa excrescecircncia conceitual sobre o que seria um ser humano pode ser considerada na medida em que se procurou implantaacute-la nas induacutestrias e mais recentemente no setor de serviccedilos como res-ponsaacutevel pelo sofrimento de uma enorme quantidade de pessoas no seu ambiente de trabalho Este sofrimento se expressa atraveacutes dos mais variados tipos de doenccedilas e tambeacutem na deterioraccedilatildeo das relaccedilotildees humanas no trabalho Esta deterioraccedilatildeo natildeo se limita ao trabalho atinge tambeacutem a vida social e familiarrdquo (SNELWAR e MASCIA 1997 p 210) 19 httpwwwmwsceduorgspolanymp-body-and-mindhtm 20 Embora natildeo seja um objeto de anaacutelise nesta pesquisa consideramos com base em nossa experiecircncia em chatildeo de faacutebrica que entre os trabalhadores circula uma linguagem expressa pelo corpo tais como cicatrizes muacutesculos Haacute que se dizer ainda conforme nos foi confidenciado por alguns trabalhadores sujeitos da nossa pesquisa que este aspecto nos auxiliou enquanto pesquisador uma vez que por sermos portadores de algumas dessas marcas fomos identificados como uma pessoa proacutexima aos trabalhadores 21 De acordo com o dicionaacuterio Ferreira (1986 p 934) [Do lat Incorporare] v t d 1 ndash Dar uma forma corpoacute-rea

70

Uma vez mais cabe ressaltar a contribuiccedilatildeo de Polany em nossa abordagem sobre o

saber taacutecito atraveacutes das suas reflexotildees sobre a relaccedilatildeo entre o corpo22 e a mente23 apresenta-

das nos textos ldquoCorpo e menterdquo24 e os ldquodois tipos de consciecircnciardquo25 Ainda sobre a possibi-

lidade de analisar o saber taacutecito levando em consideraccedilatildeo a questatildeo do corpo uma outra refe-

recircncia nos foi oferecida pelas reflexotildees de Damaacutesio (1994 2000) sobre as bases neurais do

conhecimento ou como ele proacuteprio diz ldquoneurobiologia da racionalidaderdquo26

Embora ao analisarmos alguns aspectos corporais recorramos agraves reflexotildees de Damaacutesio

(1994) eacute importante salientar que tomamos o corpo como uma noccedilatildeo para aleacutem dos aspectos

bioloacutegicos o que nos leva a contrapor uma outra ideacuteia agrave noccedilatildeo de corpo explicitada pelo au-

tor ldquoSempre que me refiro ao corpo tenho em mente o organismo menos o tecido nervoso (os

componentes central e perifeacuterico do sistema nervoso) embora num sentido convencional o

ceacuterebro tambeacutem faccedila parte do corpordquo (p 112) Parece-nos mais coerente tomar o corpo como

uma construccedilatildeo sociocultural portanto histoacuterica como propotildee Daolio (1995) De acordo com

esse autor ldquono corpo estatildeo inscritos todas as regras todas as normas e todos os valores de

uma sociedade especiacutefica por ser ele o meio de contato primaacuterio do indiviacuteduo com o ambien-

te que o cercardquo (p 39)

No que se refere aos aspectos corporais da mesma forma que o fez em The tacit di-

mension Polany discute tanto ao longo do texto ldquoCorpo e menterdquo quanto em ldquoOs dois tipos

de consciecircnciardquo a ideacuteia de ldquoconhecimento taacutecitordquo em sua dimensatildeo instrumental de realizar

tarefas bem como pelo niacutevel de compreensatildeo que uma pessoa possa ter sobre o processo que

construiu os saberes necessaacuterios para a realizaccedilatildeo de uma determinada atividade Ao avanccedilar

22 De acordo com Ferreira (1986 p 482) [Do lat Corpus Corporis] s m 1 ndash Parte central ou principal de um edifiacutecio 2 ndash Substacircncia fiacutesica ou estrutura de cada homem ou animal 23 De acordo com Ferreira (1986 p 1119) [Do lat Mente] s f 1 ndash Intelecto pensamento entendimento alma espiacuterito 2 ndash Concepccedilatildeo imaginaccedilatildeo a mente feacutertil do artista 3 ndash Intenccedilatildeo intuito desiacutegnio disposiccedilatildeo 24 httpwwwmwsceduorgspolanymp-body-and-mindhtm 25 httpwwwmwsceduorgspolanymp-STRUCTUREhtm 26 A discussatildeo que DAMAacuteSIO (1994 2000) faz sobre corpo ceacuterebro mente e a consciecircncia extrapola dados os objetivos deste trabalho as ideacuteias apresentadas neste texto Limitar-nos-emos a tomar a contribuiccedilatildeo desse autor no que se refere agrave apresentaccedilatildeo de elementos que nos ajudem a apreender a dimensatildeo do corpo dentro do debate sobre o saber em face da distinccedilatildeo entre mente e ceacuterebro

71

por essa trilha Polany aponta dois termos no saber taacutecito o conhecimento subsidiaacuterio aquele

que auxilia na realizaccedilatildeo de uma tarefa e o conhecimento apreendido aquele que se adquire

apoacutes o domiacutenio conceitual de todo o processo de realizaccedilatildeo de uma determinada tarefa Eacute com

essa perspectiva que Polany27 aborda a relaccedilatildeo entre o corpo e a mente no processo de cons-

truccedilatildeo do conhecimento taacutecito

Polany busca explicar a relaccedilatildeo entre o corpo e a mente na construccedilatildeo do conhecimen-

to taacutecito usando como exemplo a capacidade humana de selecionar ou reconhecer determina-

dos objetos a partir do uso da visatildeo Segundo esse pensador a observaccedilatildeo de uma determina-

da imagem objetivamente captada pelos olhos pode estar condicionada por um conjunto de

fenocircmenos pouco mensuraacuteveis tais como quantidade de luzes que entram pelos olhos e tem-

peratura ambiente que acabam se convertendo em variaacuteveis taacutecitas e marginais O domiacutenio

sobre o impacto que essas variaacuteveis taacutecitas podem ter sobre um determinado objeto eacute funda-

mental para possibilitar ao homem a captaccedilatildeo de imagem mais completa desse objeto Neste

sentido essas variaacuteveis funcionam como pistas que podem com menor ou maior intensidade

compor um conhecimento taacutecito De acordo com Polany28 na medida em que o domiacutenio des-

sas variaacuteveis forma o conhecimento taacutecito elas acabam se tornando uma extensatildeo do corpo

humano pois ampliam as possibilidades de uso da visatildeo Dessa forma por exemplo a tradu-

ccedilatildeo da imagem eacute feita por um certo saber mobilizar o uso do corpo ou saber que aciona um

processo mental que seleciona e articula os sentidos que passam pelo corpo no caso da visatildeo

em boa parte pelos olhos A dimensatildeo que um certo saber mobilizar o uso do corpo representa

nas accedilotildees humanas pode ser avaliada pela forma como esse autor percebe a interaccedilatildeo do ho-

mem com o seu meio Vejamos a reflexatildeo de Polany

Eu direi que noacutes observamos objetos externos sendo subsidiaacuterios atentos do im-pacto que eles fazem em nosso corpo e das respostas que nosso corpo oferece a ele

27 httpwwwmwsceduorgspolanymp-body-and-mindhtm 28 httpwwwmwsceduorgspolanymp-body-and-mindhtm

72

Todas as nossas accedilotildees conscientes com o mundo envolvem nosso uso subsidiaacuterio do nosso corpo Esse eacute o ponto pelo qual o nosso corpo eacute relacionado agrave nossa men-te29

Ao abordar a relaccedilatildeo entre o corpo e a mente as reflexotildees de Polany natildeo soacute nos permi-

tem o entendimento de que um determinado saber mobilizar o uso do corpo eacute parte fundamen-

tal do saber taacutecito bem como explicam nossa dificuldade de reconhecer uma atividade de uso

do corpo se eacute que existe alguma que natildeo dependa desse equipamento como sendo uma accedilatildeo

consciente Polany explica essa dificuldade em percebermos o uso do corpo como algo cons-

ciente a partir de uma argumentaccedilatildeo semelhante agrave que ele utilizou para tentar explicar o pro-

cesso de mudanccedilas de foco quando se busca compreender o uso instrumental de um determi-

nado saber taacutecito De acordo com esse autor ocorre o mesmo quando buscamos compreender

o uso do corpo ou seja se focalizarmos o uso do corpo perderemos de vista o objetivo pelo

qual ele foi mobilizado A perspectiva de Polany parece apontar para uma escolha ou se per-

cebe o que se faz por meio do corpo ou se compreende como o corpo o faz ldquoO fato que qual-

quer elemento subsidiaacuterio perde seu significado quando noacutes enfocamos nossa atenccedilatildeo nisto

explica o fato que quando examinando o corpo em accedilatildeo consciente noacutes natildeo conhecemos

nenhum rastro de consciecircncia em seu organismordquo30

Se de um lado eacute possiacutevel o entendimento de que o saber taacutecito se caracteriza tam-

beacutem por meio da relaccedilatildeo do corpo com a mente por outro lado em que medida esse certo

saber mobilizar o uso do corpo pode expressar um niacutevel de racionalidade E ainda eacute possiacutevel

compreender o processo de aquisiccedilatildeo de um saber mobilizar o uso do corpo

Por uma perspectiva inicial pode-se dizer que o domiacutenio sobre o corpo isto eacute sobre os

sentidos corporais natildeo ocorre com facilidade (POLANY 1967 FRADE 2003) No que se

refere ao saber taacutecito a necessidade de haver um esforccedilo de mobilizaccedilatildeo de saberes para do-

minar ou regular a relaccedilatildeo entre o corpo e a mente pode ser dada tanto para realizar uma ati- 29 httpwwwmwsceduorgspolanymp-STRUCTURE htm 30 httpwwwmwsceduorgspolanymp-STRUCTUREhtm

73

vidade quanto para a comunicaccedilatildeo de um saber taacutecito entre dois ou mais sujeitos Neste sen-

tido se um certo saber mobilizar o corpo viabiliza o uso de um saber taacutecito para realizaccedilatildeo de

uma determinada atividade bem como a comunicaccedilatildeo deste saber entre seus protagonistas

perguntamos em que medida um saber taacutecito eacute viabilizado por uma reflexatildeo sobre o uso do

corpo

Para alguns autores a construccedilatildeo do saber taacutecito ao depender de uma certa reflexatildeo

acaba por demandar um enorme esforccedilo de abstraccedilatildeo (POLANY 1967 SCHON 2000

MALGLAIVE 1999) Em Polany31 encontramos um termo que nos parece mais adequado

Trata-se de uma formulaccedilatildeo que esse autor apresenta como ldquoesforccedilo de imaginaccedilatildeordquo que se-

gundo ele estaacute presente em qualquer situaccedilatildeo de aprendizagem Segundo Polany quando es-

tamos ensinando alguma coisa a algueacutem noacutes confiamos no esforccedilo intelectual desse algueacutem

em reconhecer o que estamos ldquocarregandordquo como objeto de ensino como por exemplo a ten-

tativa de se ensinar a identificar qualidades sensoriais como a pulsaccedilatildeo sanguumliacutenea Ao avan-

ccedilar sobre essa discussatildeo no texto Corpo e Mente Polany tenta esclarecer o que ele chama de

esforccedilo de imaginaccedilatildeo da seguinte forma

Ainda haacute outra conexatildeo na qual noacutes temos que confiar no esforccedilo de imaginaccedilatildeo para ensinar e aprender Um exemplo eacute o estudo de anatomia topograacutefica vocecirc po-de ver vaacuterias fases da dissecaccedilatildeo de fotos ou quadros mas vocecirc tem que reconstru-ir pelo esforccedilo da imaginaccedilatildeo como o organismo com seus vaacuterios elementos fun-ciona (na decomposiccedilatildeo) de forma que vocecirc saiba como ocorre tudo ()32

De acordo com Frade (2003) ldquoem Polany qualquer ato de conhecer envolve um com-

prometimento pessoal uma contribuiccedilatildeo apaixonada do sujeito que eacute um componente vital do

conhecimento e natildeo meras imperfeiccedilotildees desse conhecimentordquo (p 10) Quando afirma que a

comunicaccedilatildeo do saber taacutecito exige das pessoas envolvidas o uso de seus saberes taacutecitos para

viabilizar a comunicaccedilatildeo segundo Frade (2003) eacute possiacutevel encontrar em Polany um apelo agrave

31 httpwwwmwsceduorgspolanymp-body-and-mindhtm 32 Ibidem

74

ideacuteia de esforccedilo ainda que essa autora natildeo fale em ldquoesforccedilo de imaginaccedilatildeordquo Para explicar

como Polany aborda a possibilidade de comunicaccedilatildeo do saber taacutecito Frade (2003) afirma que

esse pensador usa a seguinte metaacutefora quando a primeira pessoa precisa ocupar ou deixar-se

ocupar pela mente da segunda pessoa acompanhar os movimentos dessa mente para que pos-

sa descobrir seu conhecimento taacutecito ldquoconhecemos a mente de um jogador de xadrez ocupan-

do-nos dos estratagemas de seus jogos e conhecemos a dor de outra pessoa ocupando-nos de

sua face distorcida pelo sofrimentordquo (p 21)

O que Polany chama de esforccedilo de imaginaccedilatildeo apresenta-se em nosso entendimento

como uma trama essencial no processo de construccedilatildeo do saber taacutecito Neste sentido em que

medida o esforccedilo de imaginaccedilatildeo poderia manter interface com o saber usar o corpo E ainda

poderia o ldquoesforccedilo de imaginaccedilatildeordquo contribuir a superaccedilatildeo de uma suposta insuficiecircncia da

linguagem em explicitar o saber taacutecito A partir dessas indagaccedilotildees e das que foram desenvol-

vidas ao longo deste capiacutetulo entendemos ser necessaacuterio tentar percebecirc-las agrave luz de nossas

hipoacuteteses o que buscaremos fazer a seguir em nossos comentaacuterios

244 Comentaacuterios sobre as estrateacutegias taacutecitas

Se de um lado foi possiacutevel evidenciar que o saber taacutecito eacute marcado por uma validade

e pertinecircncia no que se refere agrave realizaccedilatildeo de uma determinada atividade por outro lado eacute

possiacutevel afirmar tambeacutem que o fato de este saber ser tido como taacutecito favorece em muito

para que haja duacutevidas em relaccedilatildeo a sua relevacircncia epistemoloacutegica Todavia entendemos ain-

da que os debates sobre o saber taacutecito natildeo evidenciaram todas as possibilidades de formaliza-

ccedilatildeo deste tipo de saber e tampouco desvelaram em que medida ele pode ser tido realmente

como taacutecito

Neste sentido elaboramos uma hipoacutetese na qual consideramos que o uso do saber taacute-

cito ocorra mediante o uso de estrateacutegias tambeacutem taacutecitas de produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e forma-

75

lizaccedilatildeo de saberes Consideramos ainda hipoteticamente que estas estrateacutegias taacutecitas poderi-

am se desenvolver em um esquema de retroalimentaccedilatildeo ciacuteclica isso quer dizer que o uso de

estrateacutegias taacutecitas para produzir saberes eacute dependente de estrateacutegias taacutecitas de mobilizaccedilatildeo de

saberes que por sua vez dependeriam do acionamento de estrateacutegias taacutecitas para formalizar

os saberes a serem mobilizados ou seja todas as estrateacutegias taacutecitas se realimentam constan-

temente Por esta trilha as estrateacutegias taacutecitas para produzir mobilizar e formalizar soacute encon-

tram um sentido uma perante a outra

Essas estrateacutegias taacutecitas aleacutem de garantir a validade e pertinecircncia do saber taacutecito so-

bretudo para quem as realizam uma vez que por meio delas entrariam em marcha os saberes

que monitoram a realizaccedilatildeo de uma determinada atividade poderiam tambeacutem funcionar co-

mo um mecanismo de ldquofiltragemrdquo que permitiria ao sujeito selecionar os saberes a serem mo-

bilizados para realizar uma tarefa Essa hipoacutetese encontra respaldo em Malglaive (1990) com

a expressatildeo ldquosaber em usordquo que designa um determinado conjunto de saberes que regem uma

accedilatildeo De acordo com esse autor

O conjunto destes saberes forma uma totalidade complexa e moacutevel operatoacuteria quer dizer ajustada agrave acccedilatildeo e agraves suas diferentes ocorrecircncias uma totalidade substi-tutiva no seio da qual os diversos tipos de saber se substituem uns aos outros agrave mercecirc das modalidades sucessivas da actividade uma totalidade que eventualmente se deforma sem todavia modificar a sua arquitetura mas alterando por vezes o modo e a qualidade dos seus constituinte (p 87)

Em que pese a possibilidade de um determinado grupo social criar e consagrar deter-

minadas estrateacutegias que mobilizam um tipo de regulagem entre o corpo e a mente a hipoacutetese

de haver um esquema de retroalimentaccedilatildeo entre as estrateacutegias ldquotaacutecitasrdquo por parte daqueles que

fazem uso de saberes taacutecitos nos remete ainda a uma uacuteltima pergunta o sujeito que faz uso

do saber taacutecito poderia criar e recriar uma regulagem na relaccedilatildeo entre o seu corpo e a sua

mente Se o saber possui uma dimensatildeo individual e subjetiva a singularidade do sujeito po-

deria estar na forma de como ele regula a relaccedilatildeo entre o seu corpo e a sua mente E ainda a

76

partir dessa regulagem o sujeito criaria formas natildeo soacute de produzir mobilizar e formalizar

saberes mas tambeacutem de expressaacute-los

A ideacuteia de que possa haver estrateacutegias de regulaccedilatildeo entre o corpo e a mente para a a-

preensatildeo da realidade eacute de certa forma sugerida por Damaacutesio (1994)

() A escolha de uma decisatildeo quanto a um problema pessoal tiacutepico colocado em ambiente social que eacute complexo e cujo resultado final eacute incerto requer tanto o am-plo conhecimento de generalidades como estrateacutegias de raciociacutenio que operem so-bre esse conhecimento () Mas como as decisotildees pessoais e sociais se encontram inextricavelmente ligadas agrave sobrevivecircncia esse conhecimento inclui tambeacutem fatos e mecanismos relacionados com a regulaccedilatildeo do organismo como um todo (p 109)

Todavia se foi importante apresentar a nossa hipoacutetese mais refinada qual seja a ideacuteia

de que o sujeito que faz uso do saber taacutecito o faccedila mediante o uso de estrateacutegias taacutecitas de

produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes eacute igualmente importante lembrar que a

construccedilatildeo dessa hipoacutetese tem deacutebito com situaccedilotildees concretas do chatildeo de faacutebrica que corrobo-

ram a possibilidade de que haja saberes produzidos mobilizados e formalizados a partir de

uma racionalidade distinta da formalidade cientiacutefica33

Neste sentido acreditamos que a atividade de trabalho se constitua como um excep-

cional campo para se analisar o saber taacutecito dado que as contradiccedilotildees presentes neste espaccedilo

satildeo marcadas por um apelo agrave inteligecircncia operaacuteria que de um lado eacute um alvo cada vez maior

dos interesses do capital e que por outro lado como afirma a literatura especializada os tra-

balhadores nunca ficaram sem produzir saberes e tampouco deixaram de imprimir o seu inte-

resse no trabalho (EVANGELISTA 2001 SANTOS 1997 ARANHA 1997)

33 Essa possibilidade eacute apresentada por diversos pesquisadores (SANTOS 1997 ARANHA 1997 e SALERNO 1994)

77

3 A FERRAMENTARIA E AS ATIVIDADES INDUSTRIAIS

O trabalho de ferramentaria se insere em diversas atividades industriais como por e-

xemplo a induacutestria alimentiacutecia farmacecircutica automobiliacutestica e eletro-eletrocircnica Nesta pes-

quisa seraacute abordada a ferramentaria de autopeccedilas portanto aquela que se vincula ao setor

automotivo No que se refere agrave inserccedilatildeo da ferramentaria no ramo autopeccedilas haacute que se dizer

que o crescimento nas vendas de automoacuteveis de passeio no seacuteculo XX eacute apontado como um

dos eventos responsaacuteveis pela expansatildeo desta atividade Ainda hoje ela responde por boa

parte dos componentes automotivos dado que dentre outras caracteriacutesticas o emprego deste

processo de fabricaccedilatildeo eacute apropriado para as grandes seacuteries de peccedilas ou seja a produccedilatildeo em

larga escala (NAVARRO 1954 SENAI 1998) No caso brasileiro podemos apontar que o

impulso da ferramentaria se vincula agrave induacutestria automotiva dada principalmente pela poliacutetica

de nacionalizaccedilatildeo das peccedilas a partir de meados da deacutecada de 1950 (GATTAacuteS 1981) Em Mi-

nas Gerais eacute tambeacutem a chegada de uma montadora que vai impulsionar a atividade de ferra-

mentaria como recordou um dos ferramenteiros com quem conversamos ldquono inicio da deacutecada

de 1970 tinha muito pouco serviccedilo de ferramentaria aqui em Minas depois veio a Fiat e a

Ferramentaria evolui aquirdquo Um outro ferramenteiro disse que ldquoQuando saiacute do Senai e fui

parar na Fiat eu era um ajustador mecacircnico laacute na Fiat eles perguntaram quem queria ir para a

ferramentaria No iniacutecio eu natildeo queria eu natildeo sabia o que era aquilo aiacute um cara laacute me falou

pode ir que esse negoacutecio eacute bom o ferramenteiro ganha mais do que qualquer peatildeordquo

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31 A ESCOLHA DO SETOR AUTOMOTIVO E ESPECIFICAMENTE DO SETOR DE AUTOPECcedilAS

A importacircncia da induacutestria automotiva na sociedade contemporacircnea pode ser justifica-

da por uma seacuterie de fatores Eacute um setor onde prevalecem equipamentos de base microeletrocircni-

ca que tem adotado as mais modernas tecnologias de gestatildeo e representa um certo pioneiris-

mo comumente seguido por outros setores industriais Eacute o setor em que tecircm ocorrido os maio-

res esforccedilos em prol da modernizaccedilatildeo da produccedilatildeo (ARBIX e ZILBOVICIUS 1997 POS-

THUMA 1997 WOMACK 1992)

A escolha do setor automotiv4o como foco da nossa pesquisa reflete natildeo soacute a impor-

tacircncia de sua dimensatildeo produtiva mas tambeacutem a sua capacidade de definir comportamentos

Satildeo muitos os pensadores que destacam o papel que este seguimento representa na sociedade

contemporacircnea Segundo Womack (1992)

() a induacutestria automobiliacutestica continua sendo a maior atividade industrial () No entanto a induacutestria automobiliacutestica eacute ainda mais importante para noacutes do que pare-ce Duas vezes neste seacuteculo ela alterou nossas noccedilotildees mais fundamentais de como produzir bens E a maneira como os produzimos determina natildeo somente como tra-balhamos mas como pensamos o que compramos e como vivemos (p 1)

No que se refere ao caso brasileiro tambeacutem satildeo muitas as facetas quais sejam a eco-

nocircmica e poliacutetica que fazem a induacutestria automotiva figurar com acentuado destaque social

Arbix e Zilbovicius (1997) reforccedilam a importacircncia deste setor quando afirmam que o auto-

moacutevel jaacute foi tudo na Histoacuteria do Brasil

Nos anos 50 era o motor do progresso nacional E a sua produccedilatildeo em terras brasi-leiras uma espeacutecie de passaporte para a modernidade No poacutes-guerra poucas fo-ram as visotildees de desenvolvimento que prescindiram da induacutestria de autoveiacuteculos () Frequumlentou os sonhos de ricos e pobres de governantes e governados Foi si-nocircnimo de progresso Sua locomotiva E literalmente o carro-chefe da naccedilatildeo () O surpreendente eacute que quarenta anos depois apesar de todas as metamorfoses de economia brasileira e mundial neste final de seacuteculo a induacutestria de autoveiacuteculos continua destilando seus encantos (p 7-8)

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Na realidade natildeo se pode falar em induacutestria mundial sem deixar legitimado o papel do

setor automotivo e isso eacute bem visiacutevel no Brasil Crescendo a taxas de 20 ao ano foi tambeacutem

o setor que conduziu o chamado ldquomilagre brasileirordquo que ocorreu de 1968 a 1973 (SHAPIRO

1997 p 65)

311 As autopeccedilas

Na trilha do setor automotivo a induacutestria de autopeccedilas inscreve-se como um ramo

com significativa influecircncia na economia brasileira e ainda como um poacutelo gerador de tecno-

logia e de uma forccedila de trabalho relativamente numerosa e extremamente qualificada De a-

cordo com o Sindipeccedilas (2003)1 este setor obteve um faturamento de 10920000 bilhotildees de

reais em 2002 o que corresponde aproximadamente a 24 do PIB nacional e empregando

diretamente cerca de 168000 trabalhadores

Eacute importante ressaltar o fato de as empresas de autopeccedilas estarem sempre acompa-

nhando os avanccedilos da induacutestria automobiliacutestica tendo com isso que fazer contiacutenuos investi-

mentos em atualizaccedilatildeo tecnologias e novos processos assim como em alguns casos fazer

alianccedilas com empresas estrangeiras Enfim precisam seguir e antecipar todos os esforccedilos das

montadoras O desenvolvimento da induacutestria de autopeccedilas no Brasil embora remonte ao iniacute-

cio do seacuteculo XX ganha impulso com a vinda e o posterior crescimento da induacutestria auto-

motiva a partir da deacutecada de 1950 Segundo boa parte dos pesquisadores o alavancamento da

induacutestria automotiva no Brasil em meados da deacutecada de 1950 contaraacute com o apoio de accedilotildees

do governo como a proposta de restringir as importaccedilotildees de veiacuteculos e componentes automo-

tivos e a de incentivar financeiramente a produccedilatildeo de veiacuteculos que contivessem de 90 a 95

de peccedilas produzidas no Brasil o que foi mais relevante apoacutes 1956 com a posse do presidente 1 Ver hiperlink hppwwwsindipeccedilasorgBr Sindicato das empresas de autopeccedilas

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Juscelino Kubitschek e sua poliacutetica dos ldquocinquumlenta anos em cincordquo Surgem o CDI ndash Conselho

de Desenvolvimento Industrial e a Geia ndash Grupo Executivo para a Induacutestria Automotiva ndash que

propunham estimular os investimentos no paiacutes e tomar as decisotildees para o desenvolvimento do

setor criando uma sequumlecircncia desenvolvimentista que soacute veio conhecer crise no periacuteodo de

1963 a 1968 (POSTHUMA 1997 SHAPIRO 1997) O Geia chegou inclusive a estabelecer

um cronograma sobre a nacionalizaccedilatildeo da induacutestria automobiliacutestica conforme aponta Gattaacutes

(1981)

Tabela 1 Cronograma do Geia para nacionalizaccedilatildeo da induacutes-tria automobiliacutestica no Brasil

Prazos limites Caminhotildees Jipes Caminhotildees leves 31121956 35 50 40 01071957 40 60 50 01071958 65 75 65 01071959 75 85 75 01071960 90 95 90

Fonte GATTAacuteS (1981)

A partir da deacutecada de 1970 ainda que possa parecer paradoxal as empresas de auto-

peccedilas ao mesmo tempo em que se estruturaram para atender as determinaccedilotildees das montadoras

passaram tambeacutem a influenciar a gestatildeo do trabalho nas montadoras De acordo com Addis

(1997)

Ao contraacuterio das consideraccedilotildees predominantes sobre a induacutestria brasileira as em-presas de autopeccedilas foram na realidade a forccedila motriz para a consolidaccedilatildeo e o de-senvolvimento do setor automotivo () Na implantaccedilatildeo da induacutestria mas tambeacutem durante os anos 80 quando algumas empresas fornecedoras formaram carteacuteis as tendecircncias das induacutestrias foram em grande parte determinadas pelas firmas de au-topeccedilas Em outras palavras a produccedilatildeo de veiacuteculos no Brasil acabou gerando ca-deias de desenvolvimento e a sua natureza foi profundamente condicionada pelas empresas de autopeccedilas Por volta de 1951 algumas empresas de autopeccedilas perten-centes em sua maioria a imigrantes decidiram criar uma associaccedilatildeo industrial Um ano depois esta associaccedilatildeo transformar-se-ia no Sindicato Nacional da Induacutestria de peccedilas para Veiacuteculos Automotivos ndash Sindipeccedilas (p 134)

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312 Relaccedilatildeo entre fornecedores de autopeccedilas e montadoras

A relaccedilatildeo entre as empresas de autopeccedilas e as montadoras tem apresentado uma gran-

de correspondecircncia com a transformaccedilatildeo na organizaccedilatildeo e gestatildeo do trabalho Em outras pa-

lavras a produccedilatildeo de veiacuteculos no Brasil acabou gerando cadeias de desenvolvimento e a sua

natureza foi profundamente condicionada pelas empresas de autopeccedilas Neste sentido a capa-

cidade das autopeccedilas em absorver e assimilar as mudanccedilas na organizaccedilatildeo e gestatildeo do traba-

lho vem sendo fundamental para a adoccedilatildeo do padratildeo flexiacutevel e integrado conduzido pelas

montadoras notoriamente a partir da deacutecada de 1990

De acordo com Salerno num primeiro momento os fornecedores foram instados a fa-

zer entregas mais frequumlentes e em lotes menores numa tentativa de aproximaccedilatildeo de um just in

time Depois foram chamados a colaborar nos projetos de produto Daiacute foi um pulo passar ao

fornecimento de Subconjuntos ao inveacutes do fornecimento de uma seacuterie de peccedilas separadas que

seriam montadas pela montadora final Por um lado uma tentativa de reduccedilatildeo de custos da-

das as condiccedilotildees de trabalho e de salaacuterio em geral relativamente piores nas autopeccedilas por

outro lado uma tentativa de reduzir investimentos necessaacuterios das montadoras pois parte do

ferramental dispositivos equipamentos destinados agrave montagem satildeo agora de responsabilidade

do fornecedor ainda uma economia de espaccedilo fiacutesico e uma simplificaccedilatildeo da gestatildeo interna da

produccedilatildeo (SALERNO 1997 p 509)

Nos uacuteltimos anos outras mudanccedilas contribuiacuteram para o aumento da importacircncia do

setor de autopeccedilas dentro da produccedilatildeo industrial Posthuma (1997) afirma que

cada vez mais apenas os liacutederes mundiais de autopeccedilas tecircm os recursos tecnoloacutegi-cos e financeiros para atender as demandas para se tornarem fornecedores de pri-meira linha Essa tendecircncia favorece a consolidaccedilatildeo do setor de peccedilas que tradi-cionalmente sempre foi uma induacutestria pulverizada Nesse sentido a induacutestria de au-topeccedilas estaacute comeccedilando a assemelhar-se agrave induacutestria de montagem tornando-se uma induacutestria globalizada composta de grandes companhias transnacionais (p 400)

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Em relaccedilatildeo agrave induacutestria brasileira o setor de autopeccedilas passou a viver uma situaccedilatildeo de

turbulecircncia que transformou a estrutura do setor A partir da liberaccedilatildeo comercial da vinda de

novas montadoras e de um novo surto de investimentos a induacutestria de autopeccedilas estaacute passan-

do por um processo de concentraccedilatildeo envolvendo a extinccedilatildeo de parcelas significativas de seus

integrantes E das suas cinzas estaacute surgindo hoje uma nova induacutestria de autopeccedilas compostas

basicamente por empresas de maior porte e capital estrangeiro (Posthuma 1997 p 390)

Essa autora afirma ainda que ao fornecer para os mercados de maior demanda tanto

no Brasil como no exterior estas empresas foram levadas a atualizar a qualidade e o design de

seus produtos e meacutetodos de produccedilatildeo procurando acompanhar os padrotildees internacionais

Dessa forma um grupo intermediaacuterio de firmas credenciou-se para as disputas em uma eco-

nomia aberta que estaacute sempre exigindo a melhoria dos meacutetodos de fabricaccedilatildeo de tecnologia e

de design (POSTHUMA 1997 p 392)

32 A FERRAMENTARIA

A escolha da aacuterea de ferramentaria como campo desta investigaccedilatildeo se justifica por as-

pectos que a colocam como um dos setores mais complexos da atividade industrial tanto pe-

las suas caracteriacutesticas teacutecnicas quanto pela sua dimensatildeo econocircmica e social Dentre as pe-

culiaridades da ferramentaria poderiacuteamos iniciar pela consideraccedilatildeo de que muito embora este

trabalho esteja vinculado ao campo da metalomecacircnica a ferramentaria subsidia tecnologica-

mente a concretizaccedilatildeo de projetos em quase todos os setores produtivos Eacute a partir das possi-

bilidades de construccedilatildeo da ferramentaria que satildeo definidos por exemplo o tamanho e a forma

geomeacutetrica de computadores oacuteculos remeacutedios lacircmpadas canetas talheres telefones carros

instrumentos ciruacutergicos componentes eletrocircnicos e uma seacuterie de outros produtos

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A teacutecnica de ferramentaria permite a produccedilatildeo de peccedilas que possuem uma geometria

que combina vaacuterias formas Neste sentido uma questatildeo relevante em relaccedilatildeo agrave teacutecnica de fer-

ramentaria remete ao apelo comercial sobre a esteacutetica dos produtos No caso do automoacutevel

por exemplo eacute notoacuterio que um dos grandes chamativos das propagandas se dirige ao design

dos carros

Uma outra grande relevacircncia da aacuterea de ferramentaria para esta pesquisa se refere agrave

particularidade das relaccedilotildees de trabalho dentro deste setor e sobretudo a forma paradoxal de

como os saberes articulados agrave mecacircnica de precisatildeo2 portadores de tecnologia de ponta como

o CAD CAM e CNC3 parecem prescindir em muito de saberes produzidos mobilizados e

formalizados a partir de uma racionalidade natildeo-cientiacutefica caracterizada por intervenccedilotildees

ldquomanuaisrdquo dos ferramenteiros muitas vezes tidas como artesanais

A ferramentaria tradicionalmente figura como um setor diferenciado dentro da induacutes-

tria metaluacutergica cujo ldquonomerdquo exerce uma forte influecircncia no imaginaacuterio dos trabalhadores

metaluacutergicos4 bem como das proacuteprias chefias que fazem referecircncia agrave forte coesatildeo entre os

ferramenteiros e a grande auto-estima que eles demonstram por sua profissatildeo Talvez por isso

mesmo encontram-se aqui tambeacutem formas menos submissas de negociar situaccedilotildees cotidia-

nas com a gerecircncia Negro (1997) atribui aos ferramenteiros um papel especial no desenvol-

vimento do ldquonovo sindicalismordquo

() os ferramenteiros aparecem como empregados temperamentais dotados de um bolso hipersensiacutevel e cocircnscios da carecircncia que as empresas sentiam deles Enquan-to permaneceram apenas defensores de suas condiccedilotildees especiacuteficas bastante especi-ais diante da imensa maioria promoveram um tipo de sindicalismo baseado na de-fesa da dignidade do trabalho mas que ao mesmo tempo natildeo oferecia respostas para as demandas mais gerais existentes Um movimento onde natildeo cabiam todos Poreacutem foi esse um dos setores que manteve o sindicalismo vivo dentro das faacutebri-

2 De acordo com as normas ISO a mecacircnica de precisatildeo trabalha com ajustes abaixo de cinco centeacutesimos de miliacutemetro (NOVASKI 1994 p 3) 3 CAD ndash Computer Aided Design CAM ndash Computer Aided Manufacturing CNC ndash Controle Numeacuterico Compu-tadorizado (FARIA 1997 p 13) 4 Este proacuteprio pesquisador se recorda de que em certas situaccedilotildees de ldquoconflito no chatildeo de faacutebricardquo era comum surgirem falas como ldquoSe fosse laacute na ferramentaria eles ndash a chefia ndash natildeo fariam issordquo

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cas nos seus anos iniciais e nos duros tempos de ditadura militar constituindo-se como estiacutemulo e escola por onde passaram ativistas de vaacuterios matizes (p 122)

Outros aspectos que reforccedilam o status do ferramenteiro dentro da faacutebrica satildeo a sua su-

perioridade salarial5 a reconhecida capacidade de trabalhar em mais de uma maacutequina opera-

triz e ainda a aproximaccedilatildeo do seu trabalho com a ideacuteia de arte6

321 Quem eacute e o que faz um ferramenteiro7

De uma forma simples poderiacuteamos definir como ferramentaria a teacutecnica de construir

ferramentas para obter peccedilas por meio de golpes de prensa que permitem cortar deformar ou

moldar um determinado material (ROSSI 1971 NAVARRO 1954)

O ferramenteiro eacute o profissional que constroacutei a ferramenta De acordo com a CBO ndash

Classificaccedilatildeo Brasileira de Ocupaccedilotildees a Onet ndash Ocuppation Information Network a Rome ndash

Reacutepertoire Opeacuterationnel des Meacutetiers et Emplois

Os trabalhadores da famiacutelia ocupacional dos ferramenteiros e afins estudam es-quemas e especificaccedilotildees para a construccedilatildeo de ferramentas e dispositivos conferin-do dimensotildees de montagem e planejando a sequumlecircncia de operaccedilotildees de construccedilatildeo Medem e marcam metais utilizando instrumentos de mediccedilatildeo tais como o microcirc-metro reloacutegio apalpador Operam maacutequinas ferramentas para usinar peccedilas Lixam e datildeo polimento em superfiacutecies e partes de ferramentas () Aplicam tratamento teacutermico em materiais e peccedilas Reparam ou modificam ferramentas e dispositivos utilizando ferramentas manuais ou maacutequinas ferramenta8

5 Segundo o hiperlink httpdnsenaibrrepertoacuterioferramenteiro e afinshtm a remuneraccedilatildeo meacutedia eacute de 106 salaacuterios miacutenimos De acordo com o Rais ndash Relatoacuterio Anual de Relaccedilotildees Sociais do Ministeacuterio do Trabalho e Emprego de 1999 cerca de 21 dos ferramenteiros ganham entre dez e quinze salaacuterios miacutenimos 18 ganham entre sete e dez salaacuterios miacutenimos 12 ganham entre quinze e vinte salaacuterios miacutenimos 75 ganham mais do que vinte salaacuterios miacutenimos e os demais ganham menos de sete salaacuterios miacutenimos 6 Essa ideacuteia possui uma certa dimensatildeo histoacuterica No dicionaacuterio FERREIRA (1986) dentre outras definiccedilotildees a arte eacute apresentada como ldquo[Do lat arte] sf Capacidade que tem o homem de pocircr em praacutetica uma ideacuteia valendo-se da faculdade de dominar a mateacuteria Jaacute a induacutestria pode ser entendida segundo Ferreira (1986 p 940) como ldquo[Do lat Industria atividade] sf 1 ndash Destreza ou arte na execuccedilatildeo de um trabalho manual aptidatildeo periacutecia () 3 ndash Fig Invenccedilatildeo astuacutecia engenho (p 176) 7 Neste trabalho nos limitaremos a uma breve apresentaccedilatildeo de uma parte da ferramentaria que trabalha com chapas metaacutelicas pois trata-se de um atividade muito ampla que trabalha com outros processos injeccedilatildeo de plaacutes-ticos fundiccedilatildeo e outros 8 Ver hiperlink httpdnsenaibrrepertoacuterioferramenteiro e afinshtm Onde aponta-se tambeacutem que de acordo com RAIS Registro Anual de Informaccedilotildees Sociais do Ministeacuterio do Trabalho e Emprego no ano de 2000 a

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A apresentaccedilatildeo formal das qualificaccedilotildees prescritas do ferramenteiro embora demons-

tre a enorme gama de saberes desta atividade natildeo eacute suficiente para revelar a complexidade

desta profissatildeo Neste sentido eacute necessaacuterio esclarecer que o ferramenteiro natildeo faz uma peccedila

ele constroacutei uma ferramenta E o que eacute uma ferramenta Na verdade uma ferramenta eacute um

conjunto de peccedilas um mecanismo com vaacuterias partes moacuteveis e fixas que quando postas em

movimento produzem peccedilas que satildeo os produtos finais Para abstrairmos a composiccedilatildeo de

uma ferramenta apresentaremos um desenho de uma ferramenta bastante simples

Figura 1 Ferramenta vista em ldquo3Drdquo Nomenclatura 1 Espiga 2 Cabeccedilote 3 Placa de choque 4 Porta-punccedilatildeo 5 Punccedilatildeo 6 Colunas de guia 7 Buchas 8 Pinos de fixaccedilatildeo 9 Parafusos 10 Extrator 11 Guias da chapa 12 Matriz e 13 Base inferior

famiacutelia ocupacional dos ferramenteiros e afins tinha 239 com 10 anos ou mais de viacutenculo empregatiacutecio 175 entre 5 e 99 anos de viacutenculo e 129 entre 4 e 9 anos

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Figura 2 A mesma ferramenta da Figura 1 vista em plano bidimensional Nomenclatura 1 Espiga 2 Cabeccedilote 3 Placa de choque 4 Porta-punccedilatildeo 5 Punccedilatildeo 6 Colunas de guia 7 Buchas 8 Pinos de fixaccedilatildeo 9 Parafusos 10 Extrator 11 Guias da chapa 12 Matriz e 13 Base inferior

A qualidade de um determinado ldquoproduto finalrdquo depende em grande parte de um per-

feito ajuste em centeacutesimo de miliacutemetros entre as partes moacuteveis e as partes fixas Portanto natildeo

eacute um exagero afirmar que os ferramenteiros constroem maacutequinas complexas O fato de que a

maioria dos componentes de uma ferramenta possuem medidas tiacutepicas da ldquomecacircnica de preci-

satildeordquo e ainda que os materiais de uma ferramenta satildeo metais muito especiais com altiacutessima

dureza jaacute seria suficiente para alccedilar este trabalho a um alto niacutevel de dificuldade Todavia o

processo de trabalho na ferramentaria apresenta ainda outras questotildees que exigem do ferra-

menteiro saberes muito aleacutem daqueles necessaacuterios para fabricar uma peccedila com toleracircncia em

centeacutesimos de miliacutemetro Ou seja se de um lado o trabalho prescrito na ferramentaria por si

soacute jaacute faz um apelo a um grande nuacutemero de saberes por outro lado satildeo muitos os fatores do

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trabalho real que solicitam do ferramenteiro saberes de outra ordem muitas das vezes vincu-

lados agrave sua experiecircncia os chamados saberes taacutecitos

322 A Excepcionalidade do ferramenteiro breve nota sobre um trabalho muito aleacutem

das prescriccedilotildees

Diferentemente das premissas tayloristas a organizaccedilatildeo do trabalho dentro de uma fer-

ramentaria quase sempre exigiu do ferramenteiro uma participaccedilatildeo em todas as fases do pro-

cesso de trabalho dado que uma ferramenta apresenta um grande nuacutemero de etapas para a sua

construccedilatildeo A obtenccedilatildeo de um bom produto final depende em boa medida do domiacutenio de

todas as fases da construccedilatildeo por parte dos ferramenteiros uma vez que essa ldquovisatildeo do todordquo eacute

fundamental para antever os possiacuteveis problemas em cada fase de construccedilatildeo da ferramenta

que natildeo foram apontados pelo trabalho prescrito neste caso o desenho da ferramenta Dessa

forma o apelo a um excepcional conjunto de saberes fez da ferramentaria um terreno sem

muita fecundidade para a fragmentaccedilatildeo do trabalho

Poderiacuteamos dizer que agrave distacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho real na ferra-

mentaria comeccedila na elaboraccedilatildeo do projeto de uma ferramenta dado que um mesmo produto

pode ser obtido por projetos de ferramentas totalmente diferentes Essa possibilidade que eacute

muito comum dentro da ferramentaria pode ocorrer de um lado por questotildees objetivas como

maacutequinas disponiacuteveis e recursos de informaacutetica e por outro lado por aspectos subjetivos

como experiecircncia dos projetistas9

Do ponto de vista da construccedilatildeo mecacircnica da ferramenta os ferramenteiros atraveacutes

dos seus saberes taacutecitos podem submeter o trabalho prescrito aos condicionantes do trabalho

real antes mesmo do iniacutecio da construccedilatildeo ldquofiacutesicardquo ou seja antes de construir ou montar as 9 Neste caso a experiecircncia natildeo eacute tida somente pelas situaccedilotildees vivenciadas pelo projetista mas por exemplo a origem da ferramentaria com a qual ele trabalhou pois franceses japoneses e espanhoacuteis apresentam estilos dife-rentes

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peccedilas da ferramenta Tomemos por exemplo o caso da leitura e interpretaccedilatildeo que o ferra-

menteiro faz do desenho natildeo soacute por ser a primeira fase de construccedilatildeo da ferramenta mas

tambeacutem pelas possibilidades de antecipar falhas no produto final Trata-se em uma primeira

anaacutelise de um saber formal que pode ser aprendido na escola Entretanto a experiecircncia do

ferramenteiro pode potencializar a sua capacidade de ler e interpretar desenhos a ponto de lhe

permitir compreender e superar tecnicamente alguns equiacutevocos no projeto da ferramenta

Os saberes taacutecitos que os ferramenteiros usam na leitura de desenho satildeo de tal sorte

vinculados agrave sua experiecircncia que buscamos apresentaacute-los em trecircs exemplos Primeiro haacute que

se dizer que o desenho de uma ferramenta de grande porte pode apresentar quinhentas ou

mais peccedilas diferentes o que inviabiliza que haja uma folha de desenho por peccedila Dessa forma

a ferramenta eacute desenhada apresentando as peccedilas em conjuntos podendo ter aproximadamente

sessenta folhas Diante desta situaccedilatildeo o ferramenteiro ao ler o desenho deve interpretar as

medidas das peccedilas ldquoisoladamenterdquo de seu conjunto Natildeo eacute raro que nesta fase do processo de

trabalho ocorram descobertas de erros na prescriccedilatildeo como medidas que natildeo se encontram

furos fora de lugar Nesta fase da leitura do desenho a experiecircncia do ferramenteiro lhe per-

mite se localizar ldquodentro do projetordquo forma pela qual ele associa uma determinada peccedila com

o estaacutegio em que estaacute a construccedilatildeo da ferramenta ou seja nesse primeiro caso o ferramentei-

ro faz muito mais do que ldquoler um desenhordquo ele se depara com um conjunto de peccedilas e apre-

ende uma delas ldquopor vezrdquo com todas as suas implicaccedilotildees para a construccedilatildeo da ferramenta

Segundo trata-se de um saber importantiacutessimo para antecipar eventuais problemas Ao

ler o desenho o ferramenteiro busca ldquovisualizarrdquo mentalmente a montagem das peccedilas em uma

projeccedilatildeo tridimensional ou seja paradoxalmente ocorre um processo inverso ao primeiro

exemplo Neste segundo caso a experiecircncia do ferramenteiro pode lhe permitir ao ler um

desenho compreender ldquotodardquo a ferramenta por meio de uma articulaccedilatildeo entre as vaacuterias inter-

pretaccedilotildees das ldquopartesrdquo da ferramenta A dificuldade em se desenvolver este saber taacutecito se

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apresenta pelo fato de que o desenho eacute elaborado em uma forma planificada ou seja o ferra-

menteiro enxerga bidimensionalmente e tem que ldquovisualizarrdquo tridimensionalmente Uma das

contribuiccedilotildees desta capacidade eacute que neste momento o ferramenteiro comeccedila a associar a

ferramenta em construccedilatildeo com o produto final

Terceiro eacute um saber taacutecito que remete a uma complexa articulaccedilatildeo de saberes que o-

corre normalmente com ferramenteiros mais experientes que possuem uma refinadiacutessima

capacidade de ler um desenho por meio da qual conseguem ldquovisualizarrdquo a fabricaccedilatildeo de um

determinado produto atraveacutes de uma ldquosimulaccedilatildeo mental da movimentaccedilatildeordquo da ferramenta

que corresponde tambeacutem agrave movimentaccedilatildeo de uma seacuterie de componentes mecacircnicos Neste

caso a mobilizaccedilatildeo de saberes taacutecitos permite ao ferramenteiro levar um entendimento sobre

algo estaacutetico o desenho para uma situaccedilatildeo dinacircmica formalizada por meio de uma extraor-

dinaacuteria noccedilatildeo de ldquocinemaacuteticardquo10

Haacute ainda outros aspectos do processo que fazem emergir o saber taacutecito do ferramen-

teiro A espetacular capacidade cinemaacutetica dos ferramenteiros em ldquosimular mentalmente a

movimentaccedilatildeordquo da ferramenta pode ocorrer tambeacutem mediante a observaccedilatildeo da movimenta-

ccedilatildeo fiacutesica da ferramenta ou mesmo somente analisando-se o produto final ou seja sem o

desenho Nestas situaccedilotildees os saberes taacutecitos dos ferramenteiros lhe permitem interpretar al-

gumas variaacuteveis de difiacutecil mensuraccedilatildeo cientiacutefica como por exemplo ldquoo desgaste das prensas

ou a resistecircncia de materiaisrdquo11

Por fim um outro caso no qual o ferramenteiro se vale de seu saber taacutecito refere-se

aos limites teacutecnicos de maacutequinas avanccediladiacutessimas que agraves vezes natildeo conseguem por exemplo

alcanccedilar um determinado grau de acabamento ou mesmo medidas como as de raios pequenos

10 De acordo com FERREIRA (1986) Cinemaacutetica pode ser tomada como um campo da fiacutesica que se dedica ao estudo dos movimentos sem se preocupar com as forccedilas que o colocam em movimento (p 406) 11 Satildeo vaacuterios e frequumlentes os fenocircmenos que se relacionam ao comportamento dos accedilos e que escapam de uma padronizaccedilatildeo cientiacutefica Situaccedilotildees como o retorno de chapa tambeacutem chamado de springback soacute satildeo soluciona-das por ferramenteiros bem experientes uma vez que os caacutelculos apenas aproximam e mesmo o uso de avanccedila-dos softwares natildeo garante a prescriccedilatildeo das medidas e de geometria necessaacuterias para a obtenccedilatildeo de peccedilas confor-me o desejado

90

combinados Nestas situaccedilotildees apela-se para a destreza do ferramenteiro que lanccedila matildeo de

habilidades corporais desenvolvidas ao longo de sua vida como o tato e a visatildeo como vere-

mos no capiacutetulo seguinte

33 O GRUPO B E A EMPRESA T

O grupo empresarial que abriga a Empresa T tambeacutem dirige outras trecircs empresas to-

das voltadas para o setor de autopeccedilas As atividades que deram origem a esse grupo tiveram

o seu ponto de partida com a criaccedilatildeo de uma serralheria em 1974 que sob a iniciativa do seu

presidente um italiano ldquocarpinteiro metaacutelicordquo12 se dedicava agrave produccedilatildeo de esquadrias metaacuteli-

cas

A partir de 1980 inicia-se uma grande virada nas atividades desse grupo quando a sua

inserccedilatildeo como fornecedora para a Fiat Automoacuteveis permitiu-lhe uma orientaccedilatildeo rumo ao setor

de autopeccedilas especialmente para o trabalho de ferramentaria Instalando-se no canteiro de

obras da Fiat produzem inicialmente o quebra-vento para o automoacutevel ldquoFiat 147rdquo Em 1986

a empresa opta por um projeto de crescimento na aacuterea de ferramentaria A empresa passou a

ter o seu proacuteprio galpatildeo na regiatildeo metropolitana de Belo Horizonte aleacutem de fazer um signifi-

cativo investimento em compras de maacutequinas-ferramentas Isto lhe possibilitou ampliar a sua

produccedilatildeo fornecendo para a Fiat Automoacuteveis outras peccedilas como defletores de calor traves-

sas e bagageiros A partir desse novo momento deu-se um grande impulso por parte da em-

presa para ampliar o seu know how em ferramentaria

Agrave medida que as atividades de ferramentaria dessa empresa foram ganhando espaccedilo no

setor de autopeccedilas iniciou-se um projeto de expansatildeo que viabilizasse a incorporaccedilatildeo de no-

vas demandas de serviccedilo do setor automotivo como a montagem de conjuntos soldados de- 12 Segundo alguns trabalhadores mais antigos na empresa eacute assim que este senhor se refere a si mesmo

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senho e projetos e outras atividades Dessa forma foi organizado um grupo13 de serviccedilos au-

tomotivos subdivididos em empresas que trabalham com ferramenaria design e autopeccedilas

com filiais em Minas Gerais Paranaacute e escritoacuterios em Satildeo Paulo e na Itaacutelia

O desenvolvimento das empresas que formam o grupo B muito embora a maior parte

de suas peccedilas fossem dirigidas para a produccedilatildeo da Fiat Automoacuteveis comeccedila a se vincular

com as demandas de outras montadoras Neste sentido a produccedilatildeo das empresas do grupo B

ganha cada vez mais sofisticaccedilatildeo teacutecnica bem como ao aumentar o volume de sua produ-

ccedilatildeo passaram a ter tambeacutem um aumento significativo no seu quadro de funcionaacuterios14

Atualmente o grupo B fornece peccedilas para as seguintes montadoras GM Mercedes

Fiat Nissam e Peugeot Aleacutem do fornecimento de peccedilas de acordo com just in time as empre-

sas do grupo ldquoBrdquo desenvolvem pesquisa e projetos sobre o leiaute de produccedilatildeo linhas de

montagem e soldagem desenvolvem e constroem protoacutetipos De acordo com o balanccedilo anual

da Gazeta Mercantil (2003)15 o grupo ldquoBrdquo eacute o quarto maior entre as autopeccedilas brasileiras

Desde 1997 o grupo B exporta suas peccedilas referentes aos carros Paacutelio e Uno para unidades da

Fiat na Argentina Turquia e Polocircnia

331 As empresas do grupo B

1) Empresa 1 Localiza-se no Centro Industrial de Contagem na grande Belo Horizon-

te Trabalha com produccedilatildeo de defletores de calor e bagageiros Possui 364 funcionaacuterios

13 Noacutes abordaremos como o grupo ldquoBrdquo 14 De acordo com vaacuterias pesquisas podemos inferir que a expansatildeo do grupo ldquoBrdquo se deu de forma articulada ao processo de reestruturaccedilatildeo produtiva promovida pelas montadoras em geral especialmente a Fiat Automoacuteveis Segundo POSTHUMA (1997) ldquoAs montadoras estatildeo diminuindo o nuacutemero de fornecedores com os quais man-tecircm um contato direto orientando-se para uma relaccedilatildeo com um grupo seleto com base em contratos mais estaacute-veis e na cooperaccedilatildeo nas aacutereas de projeto e desenvolvimento de novos produtosrdquo (p 397) Ainda segundo essa pesquisadora ldquoEm alguns casos as montadoras desenvolveram programas para intervir e ajudar os fornecedores a melhorar a sua qualidade e a modernizar seus sistemas de manufaturardquo (p 400) 15 Balanccedilo Anual da Gazeta Mercantil Satildeo Paulo 2003

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2) Empresa 2 Localiza-se tambeacutem em Contagem Trabalha com a produccedilatildeo de es-

tampados e conjuntos soldados Possui 364 funcionaacuterios

3) Empresa 3 Situa-se em Betim na Grande Belo Horizonte Trabalha com a produ-

ccedilatildeo de suspensatildeo dianteira eixo traseiro e tanques de combustiacutevel Possui 488 funcionaacuterios

4) Empresa T Localiza-se em Belo Horizonte e Contagem Eacute a ferramentaria do gru-

po trabalha com projetos e construccedilatildeo de ferramentas dispositivos de controle e montagem

Possui 232 funcionaacuterios

332 A Empresa T

A Empresa T eacute a ferramentaria do grupo B Localiza-se em Belo Horizonte e em Con-

tagem Trabalha com projetos e com a construccedilatildeo de ferramentas de estampagem e dispositi-

vos de controle e montagem A unidade de Belo Horizonte vem se inscrevendo cada vez me-

nos no processo de construccedilatildeo direta da ferramenta e se dedicando agraves chamadas usinagem ldquo2

Drdquo16 ao desenvolvimento de protoacutetipos junto aos clientes para uma ldquofuturardquo construccedilatildeo de

ferramenta A faacutebrica de Contagem responde pela maior parte de construccedilatildeo da ferramenta

uma vez que nesta unidade encontram-se a chamada usinagem ldquo3 Drdquo17 a montagem os ajus-

te da ferramenta Deve ser considerado ainda o fato de que nesta mesma planta encontra-se

tambeacutem a linha de produccedilatildeo de peccedilas conformadas pela ferramenta o que facilita o acompa-

nhamento pelo pessoal da ferramentaria sobre o ajuste final das ferramentas conhecido como

try-out

16 Segundo FERRARESI (1977) usinagem eacute uma operaccedilatildeo que confere a peccedila formas dimensotildees e acabamento () Esses trecircs itens satildeo obtidos por meio da retirada de material Jaacute a usinagem ldquo2 Drdquo eacute o trabalho que do ponto de vista da linguagem usada dentro da Empresa T corresponde agrave parte da ferramenta que natildeo tem definiraacute as formas e as medidas do produto Uma parte desse trabalho eacute terceirizada 17 Jaacute a usinagem ldquo3 Drdquo eacute exatamente aquela que iraacute gerar o produto tal como ele deve ser Esse processo tam-beacutem eacute chamado de coacutepia

93

Ainda sobre a usinagem eacute importante salientar que a empresa T dispotildee de modernas

maacutequinas operatrizes com tecnologia de ldquoCNCrdquo comandadas a partir de um sofisticado siste-

ma de CADCAMD Um outro recurso tecnoloacutegico de ponta disponiacutevel para a engenharia da

Empresa T eacute um software que simula o trabalho da ferramenta ou seja trata-se de um pro-

grama que mediante as informaccedilotildees da prescriccedilatildeo apresenta as provaacuteveis ocorrecircncias no

trabalho da ferramenta De acordo com a gerecircncia dessa empresa a estrutura tecnoloacutegica da

Empresa T eacute de certa forma uma imposiccedilatildeo posta pelo tipo de trabalho que a empresa execu-

ta e ainda daqueles trabalhos que ela pretende passar a executar Neste sentido por exemplo

a gerecircncia e os trabalhadores do ldquochatildeo de faacutebricardquo por mais de uma vez nos falaram a respei-

to da construccedilatildeo de uma ferramenta para a lateral de um carro a primeira a ser feita no Brasil

Todavia os trabalhadores quando se referiam a essa ferramenta natildeo faziam apologia agrave tecno-

logia das maacutequinas operatizes e agraves vezes pelo contraacuterio enfatizavam outros aspectos Um

ferramenteiro por exemplo fez o seguinte comentaacuterio ldquoAiacute oh Uma ferramenta difiacutecil igual

essa aqui o acabamento tem que ser dado na matildeo eacute na matildeo mesmo Eles falam que a maacutequi-

na vai substituir o homem eu natildeo acredito taacute vendo esse caso aqui a maacutequina eacute uma das me-

lhores e mesmo assim deixa certas marquinhasrdquo

Dos 232 funcionaacuterios da Empresa T cerca de 80 satildeo ferramenteiros classificados pro-

gressivamente como ferramenteiro aprendiz I II e III De acordo com o pessoal do RH a

contrataccedilatildeo de um ferramenteiro do niacutevel II e principalmente do niacutevel III eacute muito difiacutecil po-

dendo demorar meses Essa dificuldade pode ser percebida na fala dos ferramenteiros Veja-

mos o depoimento de um deles ldquoO ferramenteiro III vamos dizer assim eacute um ferramenteiro

que consegue pegar o projeto construir a ferramenta sem grandes problemas sem precisar de

toda hora ficar consultando o seu superior que seria o mestre Ele consegue sozinho tocar

uma ferramentardquo

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333 A organizaccedilatildeo do trabalho na Empresa T

De uma forma geral como jaacute foi afirmado anteriormente o processo de trabalho de

uma ferramentaria apresenta caracteriacutesticas que favorecem pouco a divisatildeo do trabalho ou

pelo menos a divisatildeo extrema que foi preconizada pelo taylorismo A organizaccedilatildeo do trabalho

na Empresa T reflete essa caracteriacutestica de forma ambiacutegua pois ao mesmo tempo em que a

engenharia projeta uma prescriccedilatildeo do processo de trabalho que integre o ferramenteiro em boa

parte do processo de construccedilatildeo da ferramenta por outro lado ao recorrer agraves maacutequinas sofisti-

cadas essa ferramentaria tal como outras ferramentarias18 passou a retirar formalmente das

matildeos dos ferramenteiros uma parte preciosa da construccedilatildeo mecacircnica a usinagem das peccedilas

agora facilitadas pela introduccedilatildeo das maacutequinas de tipo CNC Essa ldquosaiacutedardquo do ferramenteiro de

parte da construccedilatildeo da ferramenta eacute assimilada com uma certa lamentaccedilatildeo por parte dos fer-

ramenteiros Em uma conversa durante o periacuteodo de observaccedilatildeo nessa empresa um dos fer-

ramenteiros nos disse que ldquoquando a gente trabalha em gatinho a gente se sente ferramenteiro

de verdade laacute a gente faz de tudo pega no torno na retiacutefica acaba que vocecirc usa a sua inteli-

gecircncia toda horardquo19 Um outro depoente faz o seguinte comentaacuterio

Um ferramenteiro completo eacute exatamente aquele que passa por todas as etapas de construccedilatildeo da ferramenta () Antigamente vou dar um exemplo para vocecirc um ferramenteiro fazia de tudo ele ia no torno na frezadora e usinava a peccedila dele ele fazia a montagem e ele ia para debaixo da prensa tirar o produto final Entatildeo esse sim eacute um ferramenteiro completo Hoje pelo volume de serviccedilo e pelo recurso que a gente tem um ferramenteiro natildeo passa por todas as etapas ele tinha que passar mas natildeo passa (Mestre de ferramentaria)

Do ponto de vista formal qual seja da organizaccedilatildeo do trabalho o trabalho prescrito

nessa ferramentaria natildeo eacute menos complexo do que as caracteriacutesticas dessa atividade Todavia

18 O perfil da empresas prestadoras de serviccedilos de ferramentaria In Maacutequinas e Metais ano XXXVII n 424 Aranda Editora maio 2001 19 O termo ldquogatinhardquo eacute um diminutivo do termo ldquogatardquo que na linguagem do peatildeo corresponde agrave empresa Por extensatildeo normalmente os trabalhadores de referem agraves pequenas oficinas como ldquogatinhardquo

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antes de discutirmos a prescriccedilatildeo do trabalho nessa ferramentaria entendemos ser importante

apresentar o conjunto dessa prescriccedilatildeo por meio de uma breve perspectiva do processo de

construccedilatildeo de uma ferramenta

334 A ferramentaria como ela eacute o trabalho prescrito e o trabalho real na

ferramentaria

Ao elegermos a distacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho real como ponto de

partida para discutir os saberes taacutecitos dos ferramenteiros optamos tambeacutem por um recorte

sobre a noccedilatildeo de trabalho prescrito na empresa pesquisada pelo qual desconsideramos uma

fase desse processo onde o cliente aponta para o fabricante as suas exigecircncias e necessidades

em relaccedilatildeo agrave ferramenta encomendada o que poderia caracterizar uma prescriccedilatildeo das

montadoras para a Empresa T Dessa forma a noccedilatildeo de trabalho prescrito explorada nesta

pesquisa apareceraacute fortemente marcada pelas situaccedilotildees que remetem agrave construccedilatildeo material da

ferramenta propriamente dita

1) Usinagem ldquo2 Drdquo

A usinagem ldquo2 Drsquorsquo eacute a primeira grande etapa do processo de construccedilatildeo da ferramenta

na Empresa T cujo principal objetivo eacute retirar a parte bruta da ferramenta ateacute entatildeo apenas

um material fundido e dar-lhe uma medida de relativa precisatildeo que sirva de referecircncia para as

etapas seguintes do processo de construccedilatildeo da ferramenta Nesta fase a principal prescriccedilatildeo eacute

posta pelo desenho mecacircnico no dizer de alguns trabalhadores ou no projeto da ferramenta

como dizem outros Sobre este tipo de trabalho prescrito eacute importante esclarecer que dada a

organizaccedilatildeo do trabalho da Empresa T ela natildeo envolve muito os ferramenteiros pois as

medidas deixadas pela usinagem ldquo2 Drdquo seratildeo alteradas posteriormente Daiacute o principal

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motivo de natildeo abordamos com profundidade as caracteriacutesticas desta parte do processo de

construccedilatildeo da ferramenta Entretanto na usinagem ldquo2Drdquo o saber taacutecito do trabalhador se faz

necessaacuterio tendo em vista as limitaccedilotildees do trabalho prescrito perante o trabalho real De uma

forma mais contundente e complexa estas limitaccedilotildees estaratildeo presentes nas outras fases de

construccedilatildeo da ferramenta o que gera a necessidade de os trabalhadores realizarem um grande

esforccedilo para compreender o trabalho prescrito adaptar essas prescriccedilotildees agraves condiccedilotildees do

trabalho real e quando for o caso identificar os erros da prescriccedilatildeo Trata-se de situaccedilotildees em

que os operadores das maacutequinas operatrizes frezadores e mandrilhadores buscam usar os seus

saberes taacutecitos para compreender mais rapidamente a prescriccedilatildeo isto eacute o desenho mecacircnico

Os saberes taacutecitos dos operadores de usnagem ldquo2 Drsquorsquo podem ser mobilizados ainda porque

que o trabalho prescrito natildeo considera aspectos como os desgastes das maacutequinas operatrizes e

ferramentas ou mesmo a temperatura ambiente que pode influenciar o comportamento fiacutesico

dos metais tais como a dilataccedilatildeo e o atrito20

2) Leiaute

Apoacutes o trabalho de usinagem ldquo2Drdquo daacute-se iniacutecio o chamado trabalho de leiaute que

basicamente eacute um trabalho de verificaccedilatildeo das medidas trabalhadas pela usinagem ldquo2Drdquo bem

como uma orientaccedilatildeo por meio de marcaccedilotildees21 para os proacuteximos passos de construccedilatildeo da

ferramenta O trabalho de leiaute tem tambeacutem como principal prescriccedilatildeo o desenho ou o

projeto da ferramenta e tal como na usinagem ldquo2 Drdquo solicita dos trabalhadores o uso de

saberes taacutecitos para interpretaacute-lo Neste sentido o trabalho real no leiaute se inscreve por

meio do saber taacutecito dos ferramenteiros dado que a prescriccedilatildeo ainda que correta eacute

dependente da experiecircncia dos ferramenteiros que identificam a localizaccedilatildeo de determinadas

20 A dilataccedilatildeo de um material pode por exemplo dificultar a mediccedilatildeo de uma peccedila principalmente se esta tiver medidas com precisatildeo em centeacutesimos de miliacutemetros Jaacute a relaccedilatildeo entre temperatura ambiente e o atrito pode exercer uma influecircncia no corte dos metais 21 Estas marcas satildeo escritas com pinceacuteis especiais delimitando por exemplo que um furo deve estar a 50 miliacute-metros da lateral direita e agrave 1000 mm do centro da ferramenta

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medidas que agraves vezes natildeo satildeo indicadas facilmente no desenho Segundo o depoimento de um

ferramenteiro

Um projeto ruim eacute aquele projeto que igual eu te falei que tem duplicidade de coacutepias uma medida numa folha na outra folha tem outra medida projeto que natildeo apresenta muitos detalhes quando eu falo muitos detalhes vocecirc natildeo tem muitas vistas o projetista desenhou aquilo designou uma quantidade de vistas mas quanto mais ele colocar mais facilidade tem o ferramenteiro de enxergar

O projeto da ferramenta ateacute o momento em que os ferramenteiros fazem o leiaute eacute

uma prescriccedilatildeo natildeo mediada pouco interpretada ou quase ldquovirgemrdquo Neste sentido eacute possiacutevel

afirmar que a partir desta fase do processo de trabalho se evidencia mais ainda a importacircncia

do trabalho real e dos saberes taacutecitos na ferramentaria atraveacutes do leiaute feito pelos

ferramenteiros Embora o projeto da ferramenta continue sendo muito importante as medidas

indicadas pelo leiaute passam tambeacutem a orientar a construccedilatildeo da ferramenta Portanto a

partir do leiaute feito pelos ferramenteiros eacute gerada uma prescriccedilatildeo paralela e complementar

ao projeto da ferramenta especialmente para os trabalhos de preacute-montagem e de usinagem

ldquo3Drdquo

3) Preacute-montagem

O trabalho de preacute-montagem eacute a fase de construccedilatildeo da ferramenta onde de fato os

ferramenteiros usam os seus saberes taacutecitos tanto para interpretar a prescriccedilatildeo posta pelo

desenho da ferramenta ou pelo proacuteprio leiaute quanto para fazer materialmente o seu

trabalho ou seja trabalhar com as peccedilas e os equipamentos que constituiratildeo a ferramenta

Logo a partir do trabalho de preacute-montagem a distacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho

real torna-se mais complexa pois aleacutem das possibilidades de equiacutevocos nas interpretaccedilotildees do

que o desenho prescreve e o que de fato eacute feito nesta fase temos ainda um aumento dos

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imprevistos de ordem material dado pelos meios fiacutesicos com os quais satildeo realizadas as

atividades de preacute-montagem

No caso da preacute-montagem os limites da prescriccedilatildeo perante o trabalho real satildeo postos

pelos meios fiacutesicos da seguinte forma as usinagens apesar do aparato tecnoloacutegico das

maacutequinas natildeo garantem uma precisatildeo do trabalho necessaacuterio em uma ferramenta Daiacute que

apesar do trabalho prescrito indicar atraveacutes do desenho as medidas das peccedilas ou mesmo

alguns instrumentos que podem controlar este trabalho a precisatildeo nos ajustes de centeacutesimos

de miliacutemetros soacute eacute obtida de forma manual pelos ferramenteiros Neste caso eles proacuteprios tecircm

que superar a prescriccedilatildeo do desenho da ferramenta no que se refere agrave natildeo precisatildeo das

maacutequinas e ainda agrave ausecircncia de uma prescriccedilatildeo sobre por exemplo qual pressatildeo exercer

com as matildeos sobre a peccedila que eacute objeto de trabalho ou como usar a visatildeo e o tato para

localizar a parte a ser mais trabalhada e ateacute mesmo como manipular o que foi disponibilizado

pela prescriccedilatildeo para controlar este trabalho como por exemplo as chamadas pastastintas de

estecagem22 Observamos que essa distacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho real na

empresa T aleacutem de ser conhecida pelos ferramenteiros eacute tambeacutem objeto de reflexatildeo sobre o

seu trabalho Um dos depoimentos explicita de forma exemplar essa possibilidade

Um vez aqui aconteceu o seguinte o pessoal laacute da programaccedilatildeo passou para o projeto que o tempo gasto na operaccedilatildeo de estecagem tinha de ser de mais ou menos uma hora Aiacute noacutes chamamos o nosso mestre que concordou com a gente que era pouco tempo e foi reclamar laacute na engenharia Eu soacute lembro que um rapaz laacute um teacutecnico falou que natildeo deveria ser um trabalho muito demorado porque era pouco material para ser retirado toda estecagem normalmente se retira alguns centeacutesimos ou no maacuteximo alguns deacutecimos de miliacutemetro Entatildeo um dos nossos chefes trouxe o rapaz para uma bancada e pediu para ele realizar o trabalho de ldquouma horardquo Esse cara ficou muitos dias e natildeo conseguiu estecar nem uma superfiacutecie Aiacute todos os ferramenteiros falaram o que noacutes demoramos trecircs ou quatro horas e fazemos bem feito natildeo foi feito em cinquumlenta horas (Ferramenteiro)

22 Em relaccedilatildeo a estecagem natildeo encontramos nenhuma definiccedilatildeo formalizada Entre os ferramenteiros a esteca-gem significa um trabalho de ajuste manual onde os ferramenteiros buscam deixar uma superfiacutecie plana com precisatildeo de centeacutesimos de miliacutemetro a qual natildeo eacute viabilizada por meio das maacutequinas mesmo as de CNC

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4) Usinagem ldquo3 Drdquo

Apoacutes a preacute-montagem o processo de construccedilatildeo da ferramenta se concentra no

trabalho de usinagem de ldquo3drsquorsquo Nesta fase a ferramenta passa a ter as formas e as medidas

proacuteximas agravequelas que devem ter o produto final Embora por uma lado a usinagem dentro da

Empresa T seja de responsabilidade dos operadores das maacutequinas CNC por outro lado o tra-

balho prescrito por natildeo ser totalmente capaz de orientar essa atividade solicita uma parti-

cipaccedilatildeo do saber taacutecito dos ferramenteiros O proacuteprio leiaute realizado pelos ferramenteiros jaacute

citado anteriormente eacute uma referecircncia para a usinagem de ldquo3Drdquo uma vez que por meio do

leiaute estatildeo identificados algumas medidas de difiacutecil interpretaccedilatildeo dentro do desenho A

inserccedilatildeo de saberes taacutecitos dos ferramenteiros nesta fase menos do que sinalizar um natildeo saber

dos operadores CNC expressa a dimensatildeo do trabalho real na ferramentaria O ferramenteiro

por conhecer todo o processo de construccedilatildeo e funcionamento da ferramenta consegue abstrair

a prescriccedilatildeo neste caso o desenho com mais rapidez e ainda identificar a relaccedilatildeo da parte

usinada com o produto que seraacute produzido pela ferramenta

Dessa forma um dos limites da prescriccedilatildeo estaacute intriacutenseco agrave proacutepria formalizaccedilatildeo do

desenho pois se o trabalho de usinagem de ldquo3Drdquo desenvolve-se sobre uma ferramenta em seu

conjunto portanto portadora de vaacuterias peccedilas o desenho natildeo poderia apresentar uma ou outra

parte isolada de toda a ferramenta A usinagem ldquo3 Drdquo revela que os limites do trabalho

prescrito podem ser dados pela sua proacutepria forma qual seja um desenho sempre incompleto

onde se aponta como teoricamente deve ser construiacuteda a ferramenta Jaacute o ferramenteiro

conhecedor que eacute do trabalho real pode abstrair das partes para o todo ou do todo para as

partes do passado para o presente ou do presente para o futuro Enfim o ferramenteiro a

partir de sua experiecircncia consegue ver uma ferramenta aleacutem da que estaacute explicitada no

desenho

100

e) Acabamento

Apoacutes a usinagem ldquo3Drdquo a ferramenta retorna paras as bancadas da ferramentaria para

ser iniciado o trabalho de acabamento Nesta fase os ferramenteiros a partir do que natildeo foi

possiacutevel fazer na usinagem ldquo3 Drsquorsquo buscam definir as medidas as formas e o acabamento mais

proacuteximos do produto final Nesta parte do processo de trabalho o trabalho prescrito pode ser

tomado pelo desenho e ainda pela indicaccedilatildeo de quais pedras e lixas devem ser usadas para

obter o grau de acabamento desejado Todavia no trabalho real o acabamento solicita alguns

saberes que escapam agraves prescriccedilotildees da Empresa T Em nossa investigaccedilatildeo pudemos constatar

que a distacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho real na fase de acabamento guarda

inicialmente uma relaccedilatildeo com os limites teacutecnicos das maacutequinas CNC uma vez que apesar de

serem maacutequinas extremamente sofisticadas no trabalho de ferramentaria elas natildeo capazes de

produzir todas as medidas e os acabamentos prescritos pelo desenho Aleacutem do proacuteprio

desgaste que eacute caracteriacutestico em qualquer maquinaria as peccedilas que compotildeem uma

ferramenta normalmente possuem uma geometria complexa onde satildeo combinados por

exemplo vaacuterias curvaturas e inclinaccedilotildees Por outro lado a identificaccedilatildeo e o controle sobre do

acabamento dessas formas geomeacutetricas natildeo contam com o apoio do trabalho prescrito no

sentido de se indicar como usar o tato ou a visatildeo bem como natildeo haacute no trabalho prescrito uma

indicaccedilatildeo que relacione a pressatildeo manual exercida com a lixa ou com a pedra sobre uma

determinada peccedila e a quantidade de material que estaacute saindo e o grau de acabamento que estaacute

sendo obtido E ainda em funccedilatildeo da complexidade posta pelas formas geomeacutetricas um

gabarito usado em uma ferramenta nunca serve para se usar em outra porque uma ferramenta

nunca tem as mesmas medidas e formas daiacute que haacute pouca prescriccedilatildeo no que se refere ao uso

de gabaritos

101

f) Montagem do funcional da ferramenta

Apoacutes o trabalho de acabamento inicia-se a montagem do funcional da ferramenta

Nesta fase vaacuterias peccedilas ateacute entatildeo separadas passam a ganhar um aspecto de conjunto cujo

maior objetivo eacute colocar a ferramenta em condiccedilotildees de produzir Constatamos que a partir

desta fase do processo de trabalho os ferramenteiros passam a se preocupar mais com o

funcionamento por completo de toda a ferramenta De acordo com o depoimento de um deles

ldquoO ferramenteiro tem que enxergar tudo que compotildee a ferramenta porque vai facilitar neacute

facilita no tempo facilita numa montagem vocecirc jaacute tem o ferramental na mente vocecirc consegue

adiantar neacute antecipar muitas coisas no seu trabalhordquo

Em que pese o uso do desenho pelos ferramenteiros na montagem do funcional da

ferramenta o trabalho prescrito na empresa T por meio do proacuteprio desenho reconhece certas

imposiccedilotildees do trabalho real Dessa forma haacute no trabalho prescrito espaccedilo para os

trabalhadores agirem sobre vaacuterios pontos que satildeo enriquecidos pelo trabalho real Podemos

encontrar no projeto da ferramenta elementos como ldquodefinir furos na ferramentariardquo como

citam alguns desenhos Para alguns ferramenteiros essa ocorrecircncia indica que em um

determinado momento da construccedilatildeo da ferramenta a prescriccedilatildeo quase desaparece

Eacute eu te falo o seguinte vocecirc trabalha com o projeto ateacute um certo ponto na mon-tagem na primeira montagem ateacute ela ir para a coacutepia Depois que a ferramenta vol-ta da coacutepia o projeto jaacute nem conta tanto mais assim Tanto eacute que a linha de corte nunca eacute a primeira ela sempre tem modificaccedilatildeo ela sempre tem correccedilatildeo Por quecirc Porque a linha de corte eacute desenvolvida ela eacute uma matemaacutetica e ela natildeo bate por exemplo quando eacute feito as conferecircncias de uma aba Entatildeo aqui natildeo bate tem que fazer uma correccedilatildeo entatildeo por ele ser teoacuterico nunca bate geralmente eacute na praacutetica Na realidade o projeto numa hora dessa jaacute natildeo existe mais aiacute eacute soacute para como diz liberar o produto Entatildeo pode ser colocada uma solda naquele ponto que foi medido e detectado que a aba estaacute menor (Ferramenteiro)

O que se chama de funcional da ferramenta eacute na verdade um funcionamento improdu-

tivo isso porque a ferramenta se movimenta sem produzir peccedilas Isso porque o principal obje-

tivo desta fase de trabalho eacute garantir que os componentes da ferramenta possam ser movimen-

102

tados sem problema Neste sentido o trabalho prescrito se natildeo bastassem as possibilidades de

conter erros o trabalho prescrito tambeacutem natildeo aponta como considerar uma seacuterie de elemen-

tos presentes no trabalho real tais como o comportamento fiacutesico das chapas metaacutelicas no

momento em que seratildeo conformadas ou cortadas ou mesmo os desgastes dos componentes

mecacircnicos das prensas que podem influenciar na forccedila na pressatildeo ou no alinhamento deste

equipamento

g) Try-out

No trabalho de try-out a ferramenta que estaacute basicamente montada eacute instalada em

uma prensa e submetida a circunstacircncias proacuteximas do trabalho real qual seja da linha de pro-

duccedilatildeo Nesta fase o trabalho prescrito pela gerecircncia pode aparecer em indicaccedilotildees de laudos

obtidos a partir de sofisticadas maacutequinas que controlam as medidas das peccedilas prensadas En-

tretanto esse laudo natildeo garante ao trabalho prescrito um domiacutenio sobre o processo de trabalho

do try-out dado que esse processo proacuteximo que eacute do trabalho real guarda problemas que soacute

os saberes taacutecitos dos ferramenteiros podem solucionar Essa questatildeo incomoda tanto a gerecircn-

cia da Empresa T que eles fizeram um alto investimento na compra de um software que a par-

tir de dados do projeto da ferramenta simula o que ocorre no Try-out sem no entanto gerar

um projeto que prescinda dos saberes taacutecitos dos ferramenteiros

Segundo alguns depoimentos dos ferramenteiros eacute muito difiacutecil de se prescrever com

precisatildeo as situaccedilotildees que possam ocorrer no try-out uma vez que satildeo muitos os fenocircmenos

que envolvem o funcionamento real de ferramenta principalmente os casos ligados ao com-

portamento fiacutesico das chapas de accedilo tal como o retorno de chapa Foi possiacutevel observar pelas

frequumlentes citaccedilotildees dos ferramenteiros que esses fenocircmenos por serem de difiacutecil formaliza-

ccedilatildeo inclusive pelo conhecimento cientiacutefico fazem com que um know how adquirido na cons-

truccedilatildeo de uma ferramenta seja apenas relativo na construccedilatildeo de uma outra ferramenta O fe-

103

nocircmeno de retorno de chapa ou spring-back expressa bem essa possibilidade Trata-se de um

determinado comportamento fiacutesico da chapa onde ela deveria ter por exemplo de acordo

com a ferramenta um acircngulo de 90ordm e ao ser prensada ela pode ficar com 89ordm Em um dos

depoimentos que coletamos o retorno de chapa foi analisado da seguinte forma

O retorno de chapa eu acho que eacute o pior com certeza eacute um dos piores inimigos do ferramenteiro Natildeo tem caacutelculo um caacutelculo especificadamente para isso porque A chapa a estrutura de uma chapa hoje qualquer outro material ela tem porcenta-gem de carbono cromo ou niacutequel ela varia Nesta variaccedilatildeo nenhuma chapa vai ser exatamente igual a outra tanto eacute que noacutes temos uma ferramenta que estaacute laacute em produccedilatildeo haacute dois anos um fardo de chapa hoje exatamente especificado como se pede o cliente ela vai bater daqui a uma semana vem outro fardo e ela daacute uma rea-ccedilatildeo diferente o porque disso porque a composiccedilatildeo que a chapa tem varia o que eacute essa variaccedilatildeo Eacute a porcentagem de niacutequel cromo de ferro que a chapa tem e isso ocasiona muito o retorno de chapa O que eacute esse retorno de chapa eacute o que noacutes chamamos de sprig-back eacute exatamente a resistecircncia que a chapa tem em confor-mar a figura a figura que foi matematizada entatildeo ela resiste mais a esta situaccedilatildeo ela daacute o retorno ela volta e realmente soacute na praacutetica a gente consegue tirar isso fa-zendo exatamente o try-out (Ferramenteiro)

A dimensatildeo que o trabalho real assume na ferramentaria evidencia-se de tal forma a

partir do try-out que os ferramenteiros protagonistas deste processo prescrevem de forma

quase independente do projeto da ferramenta o que deve ser feito de significativo nas

proacuteximas fases do processo de construccedilatildeo da ferramenta quando ela retornar para as bancadas

da ferramentaria O try-out figura na ferramentaria como um laboratoacuterio por excelecircncia De

acordo com o depoimento de um ferramenteiro ldquoo try-out nada mais eacute do que o teste para

vocecirc tirar uma ferramenta uma chapa boa um produto que o cliente agrada dele entatildeo eacute soacute

mediante debaixo de prensa nada mais natildeo tem jeito e soacute assim para vocecirc ver a reaccedilatildeo da

chapardquo Um outro ferramenteiro ironizou o try-out da seguinte forma ldquoBom o try-out como

dizia um chefe que tinha aqui eacute a junccedilatildeo de vaacuterios erros ateacute chegar ao produto final quais satildeo

esses erros O projetista o ferramenteiro na construccedilatildeo o programador que natildeo soube abrir

os raios necessaacuteriosrdquo

104

h) Ajuste final da ferramenta

Apoacutes passar pelo try-out a ferramenta fica sob um trabalho de ajuste final cuja prin-

cipal prescriccedilatildeo eacute dada pelas indicaccedilotildees do try-out Nesta fase do processo de construccedilatildeo a

prescriccedilatildeo inicial soacute prevalece para se referir agrave cor que seraacute pintada a ferramenta Natildeo obstan-

te a finalizaccedilatildeo da construccedilatildeo de uma ferramenta que pode durar de cinco a oito meses gera

um acervo de documentos que se torna o chamado ldquohistoacuterico da ferramentardquo suficiente para

gerar um material de consulta o que pode ateacute subsidiar a construccedilatildeo de um know-how Entre-

tanto pelas observaccedilotildees feitas na empresa T uma simples mudanccedila do que se prescreve como

produto na ferramentaria gera novos fenocircmenos Assim por exemplo a produccedilatildeo da porta de

um automoacutevel por ter ou deixar de ter um friso muda o comportamento da chapa na hora da

prensagem o que torna o trabalho real neste setor da mecacircnica um espaccedilo de afirmaccedilatildeo de

saberes para os seus principais protagonistas os ferramenteiros

Neste capiacutetulo procuramos ao apresentar as fases de construccedilatildeo da ferramenta evi-

denciar as lacunas do trabalho prescrito perante as demandas do trabalho real na Empresa T Eacute

mister apresentar como os ferramenteiros da Empresa T buscam superar essa limitaccedilatildeo do

trabalho prescrito Eacute o que buscaremos fazer a partir do proacuteximo capiacutetulo onde analisaremos

os dados coletados em nossa pesquisa de campo

105

4 O TRABALHO REAL NA FERRAMENTARIA A HORA E A VEZ DOS

SABERES TAacuteCITOS DOS FERRAMENTEIROS

Marinheiro que natildeo sabe para onde vai tem medo do vento jaacute ouviu falar isso Pois eacute quem natildeo conhece como a ferramenta funciona soacute monta as peccedilas o ferra-menteiro natildeo ele monta mas ele usa a sua compreensatildeo se o projeto estiver ruim ele consegue fazer a ferramenta se a prensa estiver desgastada ele daacute um jeito eacute is-so aiacute

Neste capiacutetulo buscaremos fazer uma anaacutelise dos elementos coletados em nossa pes-

quisa de campo realccedilando as estrateacutegias que os ferramenteiros usam para produzir mobilizar

e formalizar os seus saberes taacutecitos

Como jaacute dissemos anteriormente os estudos oriundos do campo da ergonomia afir-

mam que o andamento de um determinado processo produtivo eacute caracterizado dentre outras

coisas por uma distacircncia entre o que eacute planejado e formalizado pela gerecircncia da empresa o

chamado trabalho prescrito e o que de fato ocorre no chatildeo de faacutebrica para que essa produccedilatildeo

seja realizada O que diz respeito ao andamento do processo produtivo e que natildeo pertence ao

domiacutenio da prescriccedilatildeo eacute chamado de trabalho real (LIMA 1998 DANIELLOU 1989) Dian-

te da insuficiecircncia do trabalho prescrito em dominar o trabalho real o andamento do processo

produtivo eacute garantido pela intervenccedilatildeo dos trabalhadores do chatildeo de faacutebrica principais prota-

gonistas do trabalho real que complementam ou superam as limitaccedilotildees do trabalho prescrito

(ARANHA 1997 SANTOS 1997)

Neste sentido para nos aproximarmos melhor dos elementos que tomamos como sen-

do os saberes taacutecitos presentes na ferramentaria entendemos que eacute necessaacuterio dividir em toacutepi-

cos as estrateacutegias que os ferramenteiros usam para produzir mobilizar e formalizar os seus

106

saberes taacutecitos Sendo assim cada uma delas seraacute discutida em toacutepicos diferentes Entretanto

eacute importante salientar que essa divisatildeo por toacutepicos natildeo significa que as estrateacutegias satildeo usadas

pelos ferramenteiros de forma independente umas das outras A nossa opccedilatildeo em estruturar a

anaacutelise dos dados dessa forma justifica-se pelo nosso interesse em tornar mais claros os ele-

mentos que encontramos em nosso campo de pesquisa sobretudo pela complexidade do traba-

lho de ferramentaria De certa forma essa opccedilatildeo de apresentar as estrateacutegias separadamente

tem um deacutebito com o cuidado que os ferramenteiros manifestaram conosco Em um dos pri-

meiros contatos que tivemos com os ferramenteiros um deles nos disse o seguinte ldquoVou te

explicar tim-tim por tim-tim mas se vocecirc natildeo souber por que eu faccedilo por que a gente tem que

improvisar vocecirc natildeo vai entender como eu faccedilordquo

Todavia tanto em nossas observaccedilotildees quanto nas entrevistas nos deparamos com si-

tuaccedilotildees em que as estrateacutegias criadas pelos ferramenteiros para produzir mobilizar e formali-

zar os seus saberes taacutecitos apareceram de forma integrada em que pese ter sido possiacutevel en-

contrar em uma mesma situaccedilatildeo de trabalho o uso destacado de uma dessas estrateacutegias Em

todo caso as estrateacutegias que os ferramenteiros criam para produzir os seus saberes taacutecitos nos

parecem antes de tudo influir e ser influenciadas pelas estrateacutegias que eles criam para mobi-

lizar e formalizar os seus saberes taacutecitos

41 AS ESTRATEacuteGIAS DOS FERRAMENTEIROS PARA PRODUZIR OS SEUS SABERES TAacuteCITOS

Conforme jaacute explicamos no primeiro capiacutetulo estamos considerando como estrateacutegias

de produccedilatildeo de saberes taacutecitos os caminhos natildeo previstos de trabalho que os ferramenteiros

desenvolvem para pocircr em uso saberes de natureza diversa em especial os saberes taacutecitos

Muito embora tiveacutessemos constatado que a Empresa T mobiliza vaacuterios recursos materiais e

humanos para o seu trabalho prescrito em nossa pesquisa de campo foi possiacutevel verificar que

107

os ferramenteiros descobrem e inventam formas de realizar o seu trabalho portanto produzem

saberes diferentes daqueles indicados pela prescriccedilatildeo Ademais os proacuteprios ferramenteiros

em seus depoimentos frequumlentemente nos disseram que o trabalho na ferramentaria sempre os

leva a ldquocriar uma forma especiacutefica de fazer as coisasrdquo como dizem uns ou a ldquobolar um certo

jeito de produzir saberesrdquo no dizer de outros Daiacute que tomamos esse ldquocerto jeito de fazer coi-

sas ou produzir saberesrdquo como estrateacutegias que os ferramenteiros criam para produzir os seus

saberes taacutecitos Identificamos as seguintes estrateacutegias de produccedilatildeo de saberes taacutecitos usadas

pelos ferramenteiros ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo ldquover o todordquo ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo e ldquome-

lhor jeito para trabalharrdquo

Se de um lado muitos autores afirmam que o trabalho eacute caracterizado por um princiacute-

pio educativo1 por outro podemos afirmar com base em nossas observaccedilotildees de campo que

as caracteriacutesticas da ferramentaria potencializam esse princiacutepio Um depoimento que obtive-

mos evidencia bem essa questatildeo

O que a gente aprende no curso de ferramentaria eacute apenas uma base para vocecirc fazer a sua inicializaccedilatildeo porque na verdade o ferramenteiro nunca se forma cada dia que se passa eacute uma escola cada dia que vocecirc vai trabalhando como ferramenteiro vai aprendendo coisas novas Uma ferramenta sempre eacute diferente vocecirc nunca que faz uma ferramenta igual agrave outra tambeacutem porque nunca se monta um carro igual ao outro Entatildeo sempre quando vocecirc lanccedila carros diferentes as ferramentas satildeo feitas diferentes vocecirc nunca repete a mesma coisa e eacute essa diversidade de ferra-mentas que faz com que seu aprendizado cada vez se diferencie mais se aprende a ter um maior jogo justamente pela diversidade do seu trabalho (Ferramenteiro)

Apresentaremos as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros para produzir os seus sabe-

res taacutecitos organizando a nossa discussatildeo respectivamente a partir dos seguintes toacutepicos

ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo ldquover o todordquo ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo e ldquomelhor jeito para traba-

lharrdquo

1 Haacute uma vasta literatura no conjunto de estudos sobre trabalho e educaccedilatildeo que se debruccedila sobre esta temaacutetica sobretudo a partir das contribuiccedilotildees de MARX e GRAMSCI

108

a) ldquoFiltragem de informaccedilotildeesrdquo

Se a literatura que discute a presenccedila de saberes no processo de trabalho a qual jaacute a-

presentamos aponta que o saber taacutecito se inscreve a partir de situaccedilotildees postas pelo trabalho

real o que de fato verificamos por outro lado em nossa pesquisa de campo foi que antes

mesmo de as demandas especiacuteficas do trabalho real se apresentarem para os ferramenteiros

eles buscam criar antecipadamente suas proacuteprias estrateacutegias para produzir saberes taacutecitos pa-

ra melhor compreender o trabalho prescrito essencialmente o desenho da ferramenta Todos

os ferramenteiros com1 que travamos contato natildeo hesitaram em dizer que o desenho de uma

ferramenta guarda um alto niacutevel de complexidade o que faz com que eles tenham que criar

saberes taacutecitos para interpretaacute-lo ainda que este desenho por se tratar de uma linguagem for-

malizada por meio de normas internacionais possa ser ensinado na escola formal Constata-

mos ainda em nossas observaccedilotildees que a interpretaccedilatildeo do desenho eacute mais tranquumlila para os

ferramenteiros mais experientes Alguns depoimentos explicitam de forma clara o ponto de

vista dos ferramenteiros sobre a necessidade de se usar os saberes taacutecitos na interpretaccedilatildeo do

desenho de uma ferramenta como forma de enfrentar a complexidade como jaacute foi dito deste

tipo de prescriccedilatildeo Vejamos

Bom na realidade esta questatildeo de projeto eacute meio complicada pelo seguinte quando a gente estuda no Senai vocecirc vecirc vocecirc lecirc desenhos e desenhos que agraves vezes eacute dese-nho de uma folha A4 no maacuteximo uma folha A3 Quando vocecirc chega na empresa do porte satildeo ferramentas grandes de ateacute 4 metros de comprimento e 20 toneladas Entatildeo vocecirc se depara agraves vezes vocecirc viu no Senai o desenho ficava numa folha A3 o desenho todo numa ferramentinha sua numa peccedila sua Quando vocecirc chega na empresa uma folha de desenho ela daacute 2 metros por um metro de altura entatildeo vocecirc natildeo consegue ver nada quando vocecirc sai do Senai vocecirc natildeo consegue ver pratica-mente nada do desenho Com o tempo vocecirc vai aprendendo a ler o desenho A ver-dade eacute o seguinte vocecirc aprende a ler desenho laacute dentro porque o Senai natildeo te daacute base nisso Pelo tipo de desenho que a gente trabalha (Ferramenteiro)

A possibilidade de que os ferramenteiros por meio de sua experiecircncia profissional

criem estrateacutegias para enfrentar a complexidade do desenho pode ser percebida em um outro

109

depoimento que demonstra inclusive uma compreensatildeo sobre o que torna difiacutecil a leitura

desse desenho

Um desenho de ferramenta ou de qualquer outra construccedilatildeo mecacircnica na matildeo de um profissional no Japatildeo na matildeo de um profissional no Brasil seraacute um desenho porque existe uma linguagem universal Entatildeo essa linguagem universal vocecirc a-prende no campo da teoria estudando o desenho mesmo dentro da escola Agora existe um viver praacutetico onde o lidar com determinadas peccedilas eacute muito importante a experiecircncia do dia-a-dia porque agraves vezes o projetista ele tem que ver muitas coisas e o nosso desenho tem um agravante muito grave que ele natildeo tem detalhes Todos os elementos da ferramentaria estatildeo desenhados num soacute desenho entatildeo a pessoa precisa enxergar todos os elementos naquele desenho de conjunto com muitas li-nhas Se vocecirc me perguntar sobre a experiecircncia eacute importante Eacute claro ueacute (Mestre de ferramentaria)

Eacute para superar a complexidade do desenho da ferramenta que os ferramenteiros aca-

bam por desenvolver estrateacutegias para produzir os saberes taacutecitos Um dos aspectos mais recor-

rentes nas falas dos nossos entrevistados daacute conta de que a dificuldade em interpretar dese-

nhos como os que satildeo usados na Empresa T refere-se ao grande nuacutemero de componentes e

por conseguinte tambeacutem agrave grande quantidade de linhas e medidas que constituem esse tipo de

prescriccedilatildeo ou como eles dizem ldquoEacute um desenho muito cheio de coisasrdquo Segundo um dos fer-

ramenteiros ldquoEacute impossiacutevel enxergar o desenho de uma vezada soacute o ferramenteiro mais espe-

cializado do mundo ele natildeo consegue enxergar de imediato tudo que o ferramental vai fazerrdquo

Em relaccedilatildeo a essa dificuldade em se compreender o trabalho prescrito sobressaem algumas

estrateacutegias desenvolvidas pelos ferramenteiros para produzir seus saberes taacutecitos como ex-

pressam alguns depoimentos

Primeiramente o ferramenteiro deve ter paciecircncia porque desenho vocecirc natildeo con-segue interpretar da primeira vez que vocecirc vecirc A cada vez que vocecirc olha vocecirc taacute identificando uma coisa nova entatildeo leva-se um tempo pra vocecirc falar assim eu tocirc sabendo tudo uma porcentagem bem grande deste desenho pra mim taacute comeccedilando a executar esse trabalho Isso pode levar uma hora duas dois dias ou ateacute mais de-pende da complexidade deste desenho e essa evoluccedilatildeo realmente vem vindo grada-tivo conhecendo pedaccedilos eacute pedaccedilos separados deste desenho Eu natildeo conseguia ver abrir o projeto e ver aquela imensidatildeo de componentes que se situam dentro deste projeto entatildeo eu fui comeccedilando por partes fui comeccedilando por legenda as coisas mais simples primeiro pra depois entrar realmente no interior da ferramen-ta realmente ver o que estaacute querendo expressar aquele monte de linha aquele de-senho pra mim (Ferramenteiro grifo nosso)

110

Outros ferramenteiros tambeacutem fizeram referecircncia agrave necessidade de se buscar uma es-

trateacutegia que lhes permitam como foi colocado pela fala anterior amenizar a confusatildeo propor-

cionada pelo grande nuacutemero de informaccedilotildees contidas no desenho Em alguns casos as falas

dos ferramenteiros notoriamente dos mais experientes apontam que a experiecircncia lhes permi-

te usar ldquomacetesrdquo para retirar do imenso repertoacuterio de informaccedilotildees posta pelo desenho aqueles

dados necessaacuterios para a realizaccedilatildeo do seu trabalho Vejamos como um dos ferramenteiros re-

latou a sua experiecircncia nessa situaccedilatildeo

Vocecirc nunca deve abrir o desenho todo A experiecircncia ajuda e muito Porque vamos assim analisar vocecirc inicia sua etapa entatildeo geralmente vocecirc jaacute sabe a linha que eacute da coluna Vocecirc consegue neacute cair direto em cima daqueles elementos que cecirc jaacute taacute traba-lhando no momento Entatildeo por exemplo vocecirc vai usar o alojamento tal vocecirc jaacute sabe bucha que taacute ali e desse jeito vocecirc consegue eliminar o que vocecirc natildeo precisa saber Entatildeo eacute mais faacutecil se vocecirc jaacute sabe vocecirc abre sua planta vocecirc observa e passa a ver o corte tal e aiacute cecirc jaacute vai direto em cima do corte C (Ferramenteiro)

Pudemos observar que as formas usadas pelos ferramenteiros para selecionar alguns

elementos fornecidos pelo desenho podem ser remetidas a uma tentativa por parte deles de

criar estrateacutegias de ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo Tomamos por ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo a

tentativa dos ferramenteiros de selecionar alguns dados de dentro do enorme repertoacuterio de in-

formaccedilotildees guardadas pela prescriccedilatildeo do desenho e pela proacutepria ferramenta Sobre essa possi-

bilidade de os ferramenteiros ldquofiltrarem informaccedilotildeesrdquo para facilitar a interpretaccedilatildeo do dese-

nho um dos nossos entrevistados nos disse que coloria com caneta hidrocor as linhas do de-

senho agrave medida que conseguia associar essas linhas com as peccedilas que compotildeem a ferramenta

Quando eu comecei a mexer com Autocad2 e quando se trabalha em Autocad se trabalha com vaacuterios leires os leires satildeo as cores das linhas cores de tamanho e es-pessura da linha Isso te ajuda a ver se aquela linha eacute uma linha de cota se aquela linha eacute uma linha do accedilo se aquela linha eacute uma linha invisiacutevel se aquela linha eacute uma linha de produto Entatildeo vocecirc vecirc isto em vaacuterios leires azul vermelho amarelo Soacute que quando vocecirc pega o desenho no papel todas as linhas satildeo pretas e por isso eacute difiacutecil distinguir as linhas Com base no Autocad eu passei a colorir os desenhos no papel e ficou mais faacutecil para interpretar as linhas (ferramenteiro)

2 Segundo FARIA (1992 p 13) CAD eacute Computer Aided Design ou desenho auxiliado por computador

111

Dessa forma tanto a complexidade de linguagem do trabalho prescrito essencialmente

o desenho quanto a sua distacircncia em relaccedilatildeo ao processo de trabalho real na empresa T levam

os ferramenteiros a construiacuterem estrateacutegias que chamamos de ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo pa-

ra produzir saberes taacutecitos Todavia se por um lado esses depoimentos demonstram que uma

atividade de trabalho complexa como a ferramentaria solicita dos ferramenteiros uma com-

preensatildeo do que eacute apontado pelo desenho portanto valorizando o trabalho prescrito por outro

lado essa busca dos ferramenteiros em compreender a prescriccedilatildeo talvez possa ser um indica-

tivo do cuidado que eles tecircm com o que de fato acontece no trabalho real

Aleacutem das estrateacutegias criadas antes mesmo de o trabalho prescrito se mostrar insufici-

ente para garantir o andamento do processo de trabalho na empresa T as nossas observaccedilotildees e

entrevistas nos permitiram identificar outras estrateacutegias que os ferramenteiros criam para pro-

duzir saberes taacutecitos como uma resposta ao trabalho prescrito que natildeo consegue dar conta de

situaccedilotildees marcadas pelo imprevisto ou por variaacuteveis ateacute previsiacuteveis mas de difiacutecil mensura-

ccedilatildeo como os desgastes das maacutequinas ou o comportamento fiacutesico das chapas de accedilo Ainda

que na empresa T como constatamos se usem sofisticadas tecnologias de CADCAMCNC3

ou de um simulador de estampagem4 o maacuteximo que se consegue eacute uma aproximaccedilatildeo com o

indicado pela prescriccedilatildeo Seguindo esta trilha pudemos observar que no trabalho real da fer-

ramentaria pesquisada a intervenccedilatildeo dos ferramenteiros eacute mediada por outras estrateacutegias de

produccedilatildeo de saberes taacutecitos

b) ldquoVer o todordquo

Se de um lado foi possiacutevel observar que em um primeiro momento do processo de

trabalho os ferramenteiros lanccedilam matildeo de estrateacutegias de ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo para os

auxiliarem na compreensatildeo do trabalho prescrito por outro lado no trabalho real de constru-

3 Este tipo de tecnologia eacute respectivamente Computer Aided Design ou Desenho Auxiliado por Computador Computer Aided Manufacturing ou Manufatura Auxiliada por Computador Controle Numeacuterico Computadoriza-do (FARIA 1992 p 13) 4 Embora natildeo tenhamos conhecido este software tomamos ciecircncia do seu uso pela engenharia Trata-se de um programa que busca apontar o possiacutevel comportamento da chapa de accedilo durante a sua transformaccedilatildeo em produto

112

ccedilatildeo da ferramenta as estrateacutegias criadas apontam para uma certa inversatildeo da estrateacutegia ante-

rior em vez de fazer uma filtragem busca-se uma associaccedilatildeo de informaccedilotildees Os ferramentei-

ros buscam criar estrateacutegias que lhes permitam integrar as partes da ferramenta em um ldquotodordquo

ou seja ir do domiacutenio das particularidades para o domiacutenio da ferramenta como um ldquotodordquo ateacute

porque como jaacute dissemos uma ferramenta eacute um conjunto de peccedilas Os ferramenteiros criam

estrateacutegias para ldquover o todordquo Chamamos de estrateacutegias de ldquover o todordquo o esforccedilo dos ferra-

menteiros para ultrapassar os limites impostos pela fragmentaccedilatildeo do conhecimento formaliza-

do no trabalho prescrito Em vaacuterios depoimentos eles indicam que uma compreensatildeo do ldquoto-

dordquo em relaccedilatildeo agrave ferramenta eacute importante para poder dar conta do trabalho real o que tem a-

inda a propriedade de fazer entender tambeacutem as particularidades da ferramenta Ao ser inda-

gado sobre a importacircncia de se ter uma visatildeo da ferramenta em seu conjunto um deles nos re-

latou o seguinte

Quando vocecirc comeccedila a montar a ferramenta sem ter essa noccedilatildeo neacute de enxergar a ferramenta trabalhando quando vocecirc comeccedila a montar a ferramenta vocecirc vai sim-plesmente montando evidenciando o que o projeto vai te mostrando vocecirc vai montando vai montando soacute que vocecirc vai montando peccedilas vai montando itens sem observar que este item que vocecirc taacute montando quando ele trabalhar quando ti-ver numa prensa trabalhando a ferramenta funcionando vocecirc pode estar simples-mente montando itens Vocecirc monta itens quando chega no final da ferramenta vo-cecirc tem todos os itens montados da ferramenta e aiacute sua ferramenta natildeo funciona (Ferramenteiro)

De uma forma geral quase todos os ferramenteiros na medida em que faziam suas

exposiccedilotildees sobre a importacircncia de se ldquover toda a ferramentardquo expressavam tambeacutem uma criacute-

tica ao trabalho prescrito que segundo eles eacute portador de visatildeo fragmentada da construccedilatildeo da

ferramenta No depoimento abaixo o ferramenteiro fala da fragmentaccedilatildeo no trabalho do pro-

jetista

Eacute noacutes temos caso neacute na nossa proacutepria empresa de que acontecem erros de deta-lhamento Quando a pessoa (o projetista) pega o desenho todo e retira soacute um item para desenhar aquele item entatildeo a pessoa tem essa dificuldade Porque a pessoa natildeo sabe a pessoa taacute vendo o desenho a pessoa vecirc o desenho em 3D agraves vezes mas a pessoa natildeo sabe como aquilo funciona ela natildeo tem vivecircncia ela natildeo vecirc como

113

aquela peccedila chega em bruto eacute montada eacute parafusada eacute copiada eacute temperada e chega na sua forma final para ser enviada Entatildeo a pessoa natildeo tem essa noccedilatildeo ela sabe que aquilo eacute um accedilo e desenha aquele accedilo Eacute o que ela sabe essa eacute a diferenccedila do desenhista (Ferramenteiro)

Em um outro depoimento um dos entrevistados ao fazer uma criacutetica ao trabalho pres-

crito apresenta elementos ainda mais contundente quanto agrave fragmentaccedilatildeo

O projetista enxerga o que estaacute fazendo dentro de uma tela de no maacuteximo 20 pole-gadas que eacute no Autocad e noacutes vemos no fiacutesico Entatildeo ele tem que imaginar um sem-fim de coisas mas ele natildeo apalpa nenhuma delas entatildeo eacute muito difiacutecil para um projetista acertar tudo A primeira coisa eacute essa Enquanto noacutes temos os outros sentidos que estatildeo a nosso favor que eacute a audiccedilatildeo o tato a visatildeo noacutes estamos vendo a peccedila noacutes estamos tateando as peccedilas e na hora que vamos manusear noacutes estamos ouvindo o barulho que a peccedila faz Ele natildeo tem nenhum desses amigos ao seu lado soacute tem soacute a visatildeo e a experiecircncia Entatildeo o que ocorre Dentre aquele sem-fim de linhas que ele taacute vendo dentro do CAD dentro da sua estaccedilatildeo de CAD por mais que ele vislumbre nunca traz a medida real eles projetam uma lateral de 5 metros dentro de uma tela de 20 polegadas (Ferramenteiro)

A partir das nossas observaccedilotildees bem como das entrevistas que realizamos eacute possiacutevel

considerar que a distacircncia de escala entre o desenho que eacute usado pelo ferramenteiro e o dese-

nho que eacute usado pelo projetista se constitua como um fator que explica por que as estrateacutegias

de produccedilatildeo de saberes taacutecitos satildeo necessaacuterias no trabalho real O que testemunha tambeacutem a

existecircncia de uma lacuna no trabalho prescrito A nosso ver essa possibilidade eacute corroborada

por algumas falas

Por mais que o projetista tente imaginar puxa vida a tela do computador eacute 40 ve-zes menor do que a ferramenta Entatildeo soacute se o cara tiver um diminutivo um proje-tor de perfil soacute que inverso na sua mente Segundo a grande maioria dos projetis-tas da atualidade natildeo foram ferramenteiros eles natildeo tiveram a base praacutetica eles ti-veram soacute a base teoacuterica entatildeo eles nunca entraram de baixo de uma prensa para ver a dificuldade que eacute estampar que eacute obter um produto Ele coloca tabelas de tole-racircncias5 mas ele na verdade nunca travou uma coluna para ver se realmente aque-la pressatildeo eacute o essencial Ele entatildeo comeccedila a trabalhar com normas que outras pes-soas fizeram mas que ele mesmo natildeo experimentou e durante o processo essa difi-culdade uma hora vai aparecer (Ferramenteiro)

5De acordo com NOVASKI (1994) toleracircncia eacute a variaccedilatildeo admissiacutevel da dimensatildeo da peccedila dada a diferenccedila entre as dimensotildees maacuteximas e miacutenimas (p 3)

114

c) ldquoVisualizaccedilatildeo em 3Drdquo

Uma outra estrateacutegia que os ferramenteiros criam para produzir os seus saberes e que

de certa forma lhes permite articular as estrateacutegias de ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo com as es-

trateacutegias para ldquover o todordquo remete ao esforccedilo que eles fazem para abstrair a ferramenta o que

eacute chamado por eles de ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo Chamaremos de estrateacutegias de ldquovisualizaccedilatildeo em

3Drdquo a projeccedilatildeo mental que os ferramenteiros fazem no sentido de imaginar a ferramenta pela

perspectiva tridimensional As vaacuterias possibilidades de ldquovisualizaccedilatildeo 3Drdquo podem correspon-

der a determinados niacuteveis de dificuldade Assim pode-se dizer que em situaccedilotildees mais sim-

ples os ferramenteiros buscam visualizar as peccedilas que compotildeem a ferramenta para localizaacute-

las espacialmente dentro do seu conjunto que eacute a proacutepria ferramenta6 De acordo com um

ferramenteiro a ldquovisualizaccedilao em 3D eacute quando vocecirc vecirc um desenho soacutelido vocecirc vecirc um cubo

vocecirc vecirc a ferramenta em soacutelido aiacute eacute muito mais faacutecil de vocecirc ter esta visualizaccedilatildeordquo Outro

ferramenteiro apresenta a sua a noccedilatildeo de ldquovisualizaccedilatildeo 3Drdquo relacionado-a com a sua experi-

ecircncia da seguinte forma

Com certeza isso acontece conosco todos os dias porque nem sempre vocecirc estaacute com o desenho em matildeos e vocecirc precisa visualizar Agraves vezes no iniacutecio do processo de construccedilatildeo vocecirc natildeo tem nem a peccedila na matildeo mas vocecirc jaacute tem o desenho Aiacute a gente jaacute comeccedila a modificar determinadas coisas soacute a partir da experiecircncia que vo-cecirc adquiriu Isso soacute eacute possiacutevel porque o ferramenteiro vecirc uma coisa bidimensional que eacute o desenho e pensa de forma tridimensional que eacute a ferramenta Pois eacute por causa disso a visualizaccedilatildeo faz do ferramenteiro mais do que um montador de peccedilas jaacute que ele vecirc ele tem ver tudo antes de funcionar

Entretanto observamos que embora a ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo seja citada por todos os

entrevistados soacute os ferramenteiros mais experientes satildeo tidos como capazes de realizaacute-la nos

niacuteveis mais complexos em que ela se apresenta Eacute o caso por exemplo do que eles chamam

de ldquosimulaccedilatildeo mental do movimento da ferramentardquo Trata-se de uma complexa estrateacutegia que

os ferramenteiros usam para aleacutem de localizar as peccedilas dentro do seu conjunto supor a sua

reaccedilatildeo em uma situaccedilatildeo de movimento ldquoEssa visatildeo de 3D noacutes temos a noccedilatildeo de funciona-

6 Mais uma vez cabe lembrar que uma ferramenta pode chegar a ter cerca de 800 componentes

115

mento da ferramenta antes mesmo dela taacute construiacuteda A gente taacute olhando o projeto e taacute conse-

guindo mentalizar a movimentaccedilatildeo de todos os componentes da ferramenta executando aque-

le trabalho que ela foi projetada para fazerrdquo E um outro depoimento completa

Eacute possiacutevel visualizar a peccedila antes dela estar terminada Tenho nove anos que eu trabalho com ferramentaria eu durante cerca de quatro anos eu via o desenho mas eu natildeo imaginava uma ferramenta em 3D Depois de uns 4 anos trabalhando em ferramentaria eu consigo analisar o projeto durante um dia dois dias analisar um projeto inteiro de 40 folhas eu consigo imaginar a ferramenta trabalhando e isso eu natildeo conseguia antes (Ferramenteiro)

Observamos que essa ldquosimulaccedilatildeo mental do movimento da ferramentardquo se manifesta

por meio da capacidade que eles possuem de ao imaginar uma ferramenta em movimento

projetar possiacuteveis defeitos no produto final

Bom quando o ferramenteiro consegue olhar o projeto e imaginar a situaccedilatildeo a fer-ramenta trabalhando ele consegue entender ele trabalha observando aquilo que taacute acontecendo ele antecipa este erro porque ele tem esse entendimento de olhar o projeto imaginar a ferramenta pronta imaginar que todos os itens da ferramenta estatildeo trabalhando Desta forma ele consegue vamos supor ele consegue entender a peccedila a ferramenta baixa a estampa aberta dessa forma natildeo aconteceu nenhum problema natildeo trombou nada a peccedila natildeo trombou nada a peccedila natildeo foi danificada a peccedila que eu falo eacute o produto (Ferramenteiro)

Em um outro exemplo

Vocecirc tem que imaginar o produto ali Ele eacute projetado em linhas que natildeo eacute em soacuteli-do soacute linha e imaginar o funcional daquilo Um bom ferramenteiro ele jaacute imagina a ferramenta produzindo O que eacute produzindo Ela estaacute debaixo da prensa e ele sa-be qual altura ela vai subir vai descer e fechar a ferramenta ele vecirc o acircngulo de saiacute-da dos retalhos ele jaacute imagina toda ela na mente O que acontece vai ter coisa que se o ferramenteiro faz exatamente igual ao projeto ele jaacute vecirc que natildeo vai funcionar (Ferramenteiro)

Ainda um outro depoimento confirma

Vocecirc natildeo tem nem a peccedila na matildeo mas vocecirc jaacute tem o desenho entatildeo a gente jaacute co-meccedila a modificar determinadas coisas soacute a partir da experiecircncia que vocecirc adquiriu Porque quando eu imagino uma peccedila eu natildeo imagino a peccedila que estaacute na minha frente imagino ela laacute na frente estampada Um painel de porta por exemplo para mim soacute vai mudar o design mas eu jaacute tenho aquela configuraccedilatildeo de que eacute uma por-ta ou uma lateral e quais satildeo os pontos que vatildeo dar mais problemas (Mestre de ferramentaria)

116

Figura 1 Desenho ldquobidimensionalrdquo de uma ferramenta

117

Apesar de que na Empresa T haacute um software que fornece um desenho em 3D os

ferramenteiros conseguem esse tipo de projeccedilatildeo por meio de uma abstraccedilatildeo ou como eles

dizem ldquovisualizando em 3Drdquo Para ilustrar a estrateacutegia de ldquovisualizar em 3Drdquo tomemos como

exemplo as Figuras 1 2 3 4 e 5 A Figura 1 corresponde ao desenho de uma ferramenta

posto em uma forma plana isto eacute bidimensional As Figuras 2 3 4 e 5 correspondem agrave Figura

1 em uma forma tridimensional Eacute importante comentar que o avanccedilo das figuras indica uma

visualizaccedilatildeo mais depurada da ferramenta ou seja para se chegar agrave visualizaccedilatildeo em 3D da

Figura 4 eacute necessaacuterio uma maior capacidade de abstraccedilatildeo do ferramenteiro

Figura 2 a 5 A mesma ferramenta vista em ldquo3Drdquo

d) ldquoMelhor jeito de trabalharrdquo

Se jaacute foi dito anteriormente que o processo de trabalho na Empresa T revela uma dis-

tacircncia entre o trabalho prescrito e o trabalho real foi possiacutevel observar tambeacutem que a com-

118

plexidade do trabalho real na ferramentaria ao mesmo tempo em que solicita dos ferramentei-

ros a criaccedilatildeo de estrateacutegias para produzir saberes taacutecitos acaba por lhes permitir imprimir as

suas ldquomarcasrdquo no trabalho Assim podemos afirmar que o trabalho real natildeo revela somente as

demandas teacutecnicas da produccedilatildeo mas tambeacutem alguns aspectos que estatildeo vinculados aos inte-

resses dos proacuteprios ferramenteiros Eles se manifestam por exemplo em suas preocupaccedilotildees

em fazer um trabalho mais bonito menos cansativo que os integre no coletivo de trabalho ou

mesmo que lhes permita ser menos presos agrave prescriccedilatildeo Chamamos essas estrateacutegias ldquomelhor

jeito para trabalharrdquo Ao ser indagado sobre a importacircncia da experiecircncia para o ferramentei-

ro a fala de um deles parece indicar que este tipo de recurso lhe permite ser menos ldquovigiadordquo

Acho que esse eacute o grande ponto de virada do ferramenteiro que hoje ele chama de ferramenteiro II ele sabe o jeito mais faacutecil de trabalhar O ferramenteiro III no ca-so da nossa escala da firma ele eacute um ferramenteiro que ele pode montar a ferra-menta sem o monitoramento de outra pessoa acima dele

Pudemos perceber que os ferramenteiros com certa frequumlecircncia se referem a ldquoum me-

lhor jeito de trabalharrdquo Ao indagarmos sobre o que seria esse ldquomelhor jeito de trabalharrdquo ob-

tivemos respostas de uma forma quase consensual nas quais os ferramenteiros ressaltavam

que cada profissional encontra o seu ldquomelhor jeito para trabalharrdquo Eis alguns depoimentos

Para mim o jeito mais faacutecil de trabalhar eacute quando vocecirc usa recursos para te ajudar quando vocecirc usa daquela ferramenta que estaacute ao seu redor pra taacute executando o tra-balho de uma maneira mais faacutecil eficaz Para mim eu evito fazer forccedila por isso que eu penso mais pra taacute executando esse trabalho Para mim eacute menos forccedila que esse modo me garante me garanta um niacutevel de acerto maior eacute o que eu costumo fazer (Ferramenteiro)

O uso do ldquomelhor jeito de trabalharrdquo reduz o sofrimento que estaacute presente no trabalho

do ferramenteiro

Eacute quando vocecirc trabalha muito vocecirc faz um esforccedilo fiacutesico muito grande porque vocecirc natildeo pensou antes de realizar tal tarefa natildeo pensou nos objetivos pegou o ser-viccedilo e tocou o serviccedilo soacute que na metade do caminho vocecirc vecirc que jaacute natildeo taacute compen-

119

sando mais ter tomado aquela atitude soacute que aiacute natildeo daacute mais para vocecirc voltar atraacutes vocecirc tem que continuar e terminar o serviccedilo isso eacute sofrer por causa do esforccedilo fiacute-sico que vocecirc faz (Ferramenteiro)

Esse ldquomelhor jeito de trabalharrdquo pode ser encontrado tambeacutem quando em alguns de-

poimentos os ferramenteiros mencionaram que as suas invenccedilotildees no processo de trabalho de-

vem-se a uma tentativa de realizar um trabalho com mais teacutecnica Muitas vezes essa noccedilatildeo de

um trabalho com mais teacutecnica se aproxima de uma noccedilatildeo de um trabalho mais bonito ou mais

limpo Constatamos essa possibilidade quando um ferramenteiro nos explicou a sua forma de

realizar um trabalho chamado por ele de localizaccedilatildeo de punccedilotildees Segundo ele a maioria dos

colegas fazia este trabalho usando uma massa plaacutestica Entretanto o seu ldquomelhor jeito de tra-

balharrdquo dispensava a massa plaacutestica o que fazia o trabalho ficar mais bonito e ainda natildeo o

incomodava tanto porque natildeo exalava cheiro Vejamos este depoimento

Para localizar um punccedilatildeo eu uso uma forma mais teacutecnica A outra que o pessoal usa eacute com massa plaacutestica soacute que desta forma eacute feio a massa plaacutestica eacute um produto quiacutemico e deixa marcas e aleacutem disso para vocecirc tirar o punccedilatildeo vocecirc tem que tirar a massa plaacutestica Eu natildeo gosto primeiro pelo fato do cheiro da massa plaacutestica natildeo gosto do cheiro da massa plaacutestica e segundo pelo fato do tempo que demora pra massa plaacutestica secar Por isso na minha concepccedilatildeo eacute melhor usar o reloacutegio apalpa-dor eacute mais limpo e mais bonito (Ferramenteiro)

Durante as nossas observaccedilotildees natildeo muito raro alguns ferramenteiros nos disseram

que o seu trabalho tem um lado que o aproxima do trabalho de um artesatildeo Ao falarmos sobre

isso com os ferramenteiros constatamos a busca do ldquomelhor jeito de trabalharrdquo aqui associado

a um trabalho mais bonito

O artesatildeo geralmente ele faz aquilo que estaacute na cabeccedila dele ele imagina sei laacute uma escultura um quadro sei laacute e a partir daiacute ele comeccedila a trabalhar O ferramenteiro tem que ter carinho com a peccedila ele natildeo pode chegar e jogar uma peccedila de qualquer jeito ele pode estragar uma peccedila ela fica com aspecto ruim Quatro meses de tra-balho vocecirc trabalha quatro meses para fazer uma ferramenta entatildeo de certa for-ma vocecirc jaacute estaacute habituado a todo dia chegar pro seu trabalho e vocecirc encontrar a-quelas ferramentas do seu setor Natildeo eacute que vocecirc pega amor por aquilo mas vocecirc sente prazer em fazer aquilo Um artesatildeo natildeo trabalha soacute porque tem que trabalhar ele gosta de fazer aquilo ele gosta de modelar aquilo o ferramenteiro eacute um mode-

120

lador A ferramenta em construccedilatildeo eacute a cara do ferramenteiro isso eacute dito na ferra-mentaria (grifo nosso)

Satildeo muitos os motivos que fazem do trabalho real por sua complexidade um campo

feacutertil para apresentar as estrateacutegias que os ferramenteiros criam para produzir os seus saberes

taacutecitos chamadas por noacutes de ldquofiltragem de informaccedilotildeesrdquo ldquover o todordquo ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo

e ldquomelhor jeito de trabalharrdquo

Nossas observaccedilotildees nos permitem dizer que a complexidade do trabalho real faz com

que essas estrateacutegias de produccedilatildeo de saberes estejam intimamente articuladas com as estrateacute-

gias de mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes taacutecitos Ateacute o momento discutimos os dados

de nossa pesquisa indicando as estrateacutegias que os ferramenteiros usam para produzir os seus

saberes taacutecitos e as situaccedilotildees que convocam o uso deste tipo de saber Faz-se necessaacuterio de

agora em diante apresentar as estrateacutegias que os ferramenteiros criam para mobilizar diversos

tipos de saberes em especial os saberes taacutecitos

42 AS ESTRATEacuteGIAS DOS FERRAMENTEIROS PARA MOBILIZAR OS SEUS SABERES

Se ateacute entatildeo apresentamos as estrateacutegias para a produccedilatildeo do saber taacutecito sem nos re-

ferirmos ao conjunto de saberes que satildeo mobilizados por esse tipo de estrateacutegia eacute porque co-

mo jaacute foi dito nos preocupamos em explorar e evidenciar de maneira mais compreensiacutevel al-

gumas situaccedilotildees que convocam o saber taacutecito Todavia gostariacuteamos de chamar a atenccedilatildeo aqui

para as estrateacutegias que os ferramenteiros criam para mobilizar os seus saberes pois em nossa

pesquisa de campo deparamos com vaacuterias situaccedilotildees evidenciadas em algumas entrevistas em

que o uso de um determinado saber taacutecito demanda a mobilizaccedilatildeo de saberes de diversas or-

dens

121

Bom para mim o ferramenteiro precisa passar por todas as etapas que constituem uma ferramenta ele precisa de passar pela etapa ao contraacuterio O que eacute pelo contraacute-rio O contraacuterio eacute ele viver a faacutebrica viver o planejamento e viver a projeccedilatildeo da ferramenta entatildeo isso consiste o ferramenteiro O que eacute que ele vai ser para ele ser um bom ferramenteiro ele precisa ter estas trecircs etapas que geralmente eacute para cons-truir uma ferramenta projetar planejar a sua construccedilatildeo e saber executar esta cons-truccedilatildeo Tanto eacute que para interpretar muito bem o desenho o desenho eacute o iniacutecio de tudo se vocecirc tiver alguma duacutevida em relaccedilatildeo ao desenho vai ser complexo vocecirc in-terferir no final da ferramenta vocecirc desenvolver a ferramenta (Ferramenteiro)

Em Charlot (2000) a noccedilatildeo de mobilizaccedilatildeo relaciona-se agrave ideacuteia de movimento que de-

riva do interior das pessoas ldquomobilizar eacute pocircr recursos em movimento Mobilizar-se eacute reunir

suas forccedilas para fazer uso de si como recurso () mobilizar-se poreacutem eacute tambeacutem engajar-se

em uma atividade originada por moacutebilesrdquo (p 55) Tomamos de empreacutestimo a perspectiva de

Charlot sobre mobilizaccedilatildeo para evidenciar que os ferramenteiros trabalham recorrendo a es-

trateacutegias para mobilizar muacuteltiplos saberes Estes profissionais se mobilizam por inteiro para

construir uma ferramenta colocando em movimento estrateacutegias variadas dentre os quais pu-

demos identificar ldquorecorrer aos saberes do coletivo de trabalho lsquoesforccedilo de abstraccedilatildeorsquo lsquosaber

usar o proacuteprio corporsquo aleacutem de lsquorecorrer aos saberes cientiacuteficos e tecnoloacutegicosrsquordquo

Conforme apontamos anteriormente as nossas observaccedilotildees e entrevistas indicam que

o primeiro momento em que os saberes taacutecitos se apresentam daacute-se na tentativa por parte dos

ferramenteiros de interpretar o desenho da ferramenta Esse tipo de prescriccedilatildeo como vimos

caracteriza-se pela enorme quantidade de informaccedilotildees na forma de linhas e medidas Quase

todos os ferramenteiros disseram que aprenderam a ler um desenho mecacircnico no Senai o que

em tese demonstra que esse tipo de saber pode ser ensinado Entretanto todos eles afirmaram

que a experiecircncia com a construccedilatildeo de ferramenta eacute o elemento chave para que eles possam

aprender a interpretar o desenho que se usa na ferramentaria Segundo um dos ferramenteiros

ldquono Senai a gente aprende a matar largatixa aqui no dia-a-dia noacutes temos que aprender a ma-

tar jacareacuterdquo Em um outro depoimento mais contundente um ferramenteiro nos relatou o se-

guinte

122

O desenho sempre vai ter uma base que eacute o conhecimento teoacuterico Se vocecirc pegar um desenho em primeiro ou em terceiro diedro7 ele vai ser primeiro diedro e ter-ceiro diedro em qualquer parte do mundo A linguagem universal vocecirc aprende no campo da teoria estudando o desenho mesmo dentro da escola Agora existe um viver praacutetico eacute muito importante o lidar com determinadas peccedilas a experiecircncia do dia-a-dia porque o nosso desenho tem um agravante muito grave que ele natildeo tem detalhes Todos os elementos da ferramentaria estatildeo desenhados num soacute desenho entatildeo a pessoa precisa de enxergar todos os elementos naquele desenho de conjun-to (Ferramenteiro)

Para realizar o seu trabalho os ferramenteiros mobilizam saberes jaacute formalizados pela

ciecircncia e tecnologia bem como saberes taacutecitos que nascem na experiecircncia cotidiana indivi-

dual e coletivamente Entre os ferramenteiros que abordamos alguns natildeo tinham passado pelo

Senai ou seja natildeo tinham acessado atraveacutes da escola formal os saberes necessaacuterios agrave inter-

pretaccedilatildeo de desenho Ao longo de sua experiecircncia em chatildeo de faacutebrica eles aprenderam a mo-

bilizar saberes para interpretar o desenho e realizar o seu trabalho Apresentaremos a seguir

algumas situaccedilotildees que expressam as estrateacutegias que os ferramenteiros que passaram ou natildeo

pela escola formal criam para mobilizar os seus saberes variados

a) Recurso aos saberes do coletivo de trabalho

Pudemos observar que ao relativizarem a contribuiccedilatildeo da escola formal sempre ci-

tando o Senai e enfatizarem o papel da experiecircncia no chatildeo de faacutebrica no desenvolvimento de

um saber taacutecito que lhes permita interpretar o desenho da ferramenta os ferramenteiros se re-

feriram positivamente ao papel dos ldquosaberes do coletivo de trabalhordquo Um dos ferramenteiros

ao ser indagado sobre como conseguiu superar a sua dificuldade inicial com o desenho nos

relatou o seguinte

Houve momentos que pessoas me auxiliaram agraves vezes porque eu tive dificuldade de taacute entendendo aquelas linhas o que elas estavam querendo demonstrar para mim e agraves vezes pelo tempo por esse tempo para executar um determinado trabalho Pelo fato de eu natildeo ter aquele conhecimento ainda eu estava demorando para fazer neacute conseguir interpretar feito isso pessoas mais experientes chegam e te ajudam para

7 Segundo a explicaccedilatildeo dos ferramenteiros diedro eacute o rebatimento que se faz das vistas laterais da planta de qualquer desenho Dessa forma o chamado primeiro diedro a lateral da planta eacute projetada do lado direito jaacute no terceiro diedro a lateral da planta eacute projetada do lado esquerdo

123

que aquilo ali se consiga resolver aquela determinada tarefa (Ferramenteiro grifo nosso)

Em um outro depoimento novamente aparece uma referecircncia agrave possibilidade de os

ferramenteiros estarem aprendendo com um colega geralmente mais experiente

Na maioria das vezes quando vocecirc entra para trabalhar eles te apresentam o traba-lho vocecirc entra para trabalhar junto com alguma pessoa nunca vocecirc entra com o cargo de chefe da ferramenta Dificilmente vocecirc consegue aprender o projeto sozi-nho vocecirc comeccedila com o acompanhamento de uma pessoa que te auxilie te mostre alguns macetes para vocecirc comeccedilar a ver raacutepido uma determinada medida porque o nosso desenho eacute muito tracejado muita linha tracejada Entatildeo esse macete essa experiecircncia saber onde que taacute passando realmente a linha tracejada onde eacute que a linha eacute visiacutevel eacute que vocecirc sabe qual plano de altura que taacute a peccedila isso te confunde muito (Ferramenteiro)

Para aleacutem da interpretaccedilatildeo do desenho os ldquosaberes do coletivo de trabalhordquo satildeo tidos

pelos ferramenteiros como fundamentais para que eles se desenvolvam profissionalmente Na

empresa T de certa forma a interferecircncia dos ldquosaberes do coletivo no trabalhordquo de cada fer-

ramenteiro individualmente se vincula agrave organizaccedilatildeo do trabalho adotada pela empresa Os

ferramenteiros satildeo agrupados em ceacutelulas de forma que todos embora faccedilam diferentes traba-

lhos satildeo responsaacuteveis pela mesma ferramenta E ainda essa organizaccedilatildeo do trabalho preco-

niza uma hierarquia pela qual os ferramenteiros III coordenam e auxiliam o trabalho dos fer-

ramenteiros II sendo que estes coordenam e auxiliam o trabalho dos ferramenteiros I que

por sua vez satildeo auxiliados pelos aprendizes de ferramenteiro Foi possiacutevel constatar que essa

organizaccedilatildeo da ceacutelula natildeo impede que o mestre por exemplo faccedila interlocuccedilotildees com os a-

prendizes de ferramentaria Verificamos inclusive que uma das funccedilotildees dos mestres em fer-

ramentaria eacute acompanhar a formaccedilatildeo praacutetica dos aprendizes de ferramentaria e o do ferramen-

teiro I E ainda foi possiacutevel observar que os mestres veladamente dividem essa tarefa com

os ferramenteiros III

Apesar de a organizaccedilatildeo das ceacutelulas da ferramentaria na Empresa T obedecer a uma

oficialidade prescrita pela gerecircncia foi possiacutevel observar que entre os ferramenteiros circulam

124

normas e valores alheios ao que estaacute disponibilizado pelo trabalho prescrito que podem fun-

cionar como estrateacutegias para mobilizar saberes Segundo Daniellou Laville e Teiger (1989) a

socializaccedilatildeo de saberes entre os trabalhadores ocorre normalmente de maneira informal ou

seja natildeo-oficial Neste sentido encontramos diversas situaccedilotildees em que os ferramenteiros se

valem dos saberes do seu coletivo de trabalho para realizar uma determinada atividade cujo

conteuacutedo natildeo eacute totalmente conhecido pela gerecircncia Segundo a fala de um ferramenteiro

Tem coisa que eacute simples mas que vai te ajudar a resolver um problema complexo Muitas vezes pelo fato da sua duacutevida ser boba vocecirc fica sem jeito de perguntar o seu chefe o seu mestre vocecirc pergunta para um ferramenteiro que vocecirc confia tan-to porque ele sabe agraves vezes mais do que o mestre e porque ele natildeo vai te reprimir Inclusive jaacute aconteceu comigo um ferramenteiro experiente acaba te mostrando que a sua duacutevida natildeo era boba (Ferramenteiro)

Em um outro depoimento um ferramenteiro fez a seguinte reflexatildeo sobre os saberes

compartilhados pelos colegas de trabalho

Tem coisa que vocecirc aprende sozinho mas a ajuda dos colegas eacute importante demais Vocecirc sai igual aconteceu comigo do Senai e cai em uma ferramentaria de verdade eacute outro papo Se os ferramenteiros mais experientes natildeo te ajudarem vocecirc vai cus-tar a aprender Num eacute soacute nessa empresa natildeo eacute em qualquer outra Na ferramentaria tem coisa que parece ser mais natildeo eacute tem coisa que se vocecirc fizer igualzinho o de-senho natildeo vai funcionar Eacute por isso a ajuda dos colegas faz a diferenccedila O cara che-ga e te fala ldquoVocecirc tem fazer um aliacutevio aqui se natildeo acontece isso e issordquo Pois eacute igual eu te falei na ferramentaria por mais que vocecirc aprenda sozinho sem ajuda de um cara experiente fica complicado Eu tenho que agradecer porque sempre traba-lhei com ferramenteiro que gosta de ensinar (Ferramenteiro)

Observamos que a relaccedilatildeo dos ferramenteiros com os saberes do seu coletivo de traba-

lho natildeo eacute de simples transmissatildeo Neste sentido a constataccedilatildeo que fizemos de que os ferra-

menteiros mobilizam saberes reapropriados do seu coletivo de trabalho nos favoreceu a iden-

tificar ainda um outro tipo de mobilizaccedilatildeo de saber o ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo

b) ldquoEsforccedilo de abstraccedilatildeordquo

Ainda que possuam uma razoaacutevel compreensatildeo do trabalho prescrito os ferramentei-

ros concentram as suas estrateacutegias para mobilizar os seus saberes tambeacutem na construccedilatildeo da

125

ferramenta Em um grande nuacutemero de situaccedilotildees eles mobilizam os seus saberes taacutecitos para

ldquoajustar peccedilas para preacute-montar a ferramenta para dar acabamento e na montagem finalrdquo en-

fim para colocaacute-la em condiccedilatildeo de trabalho Os ferramenteiros elegem o ldquoesforccedilo de abstra-

ccedilatildeordquo dos movimentos da ferramenta como um recurso essencial para compreender o trabalho

prescrito Chamaremos de ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo o empenho que os ferramenteiros fazem pa-

ra associar a fala de um colega a um determinado componente ou mesmo para compreender

uma determinada situaccedilatildeo de funcionamento da ferramenta

Durante a construccedilatildeo da ferramenta o apelo a esse ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo coloca-se

tambeacutem como uma estrateacutegia de mobilizaccedilatildeo de saberes Mesmo com a ferramenta jaacute em

construccedilatildeo o recurso ao ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo eacute utilizado para que eles possam superar as

deficiecircncias do trabalho prescrito e ainda como uma forma de viabilizar a comunicaccedilatildeo entre

os colegas

Se o cara natildeo imaginar o que vocecirc estaacute falando ele natildeo enxerga ele natildeo aprende aliaacutes ele tem que enxergar para entender o que estaacute sendo falado Na ferramentaria vocecirc aprende todo dia mas o ferramenteiro experiente aprende mais Aprende mais por quecirc Porque ele enxerga mais coisas A mente do ferramenteiro tem que entrar dentro da ferramenta pelo menos comigo foi assim (Ferramenteiro)

O esforccedilo para abstrair a movimentaccedilatildeo da ferramenta pode colocar-se como um meio

de estabelecer uma complexa forma de ldquocomunicaccedilatildeo virtual com o trabalho prescritordquo Para

alguns ferramenteiros na medida em que se visualiza a ferramenta pode-se tambeacutem entender

melhor por que certas coisas satildeo exigidas na ferramenta Observamos que alguns ferramentei-

ros buscam simular um diaacutelogo com quem concebeu o trabalho prescrito qual seja o projetis-

ta da ferramenta

Quando vocecirc analisa bem o projeto vocecirc jaacute o tem em mente Sem conhecer o pro-jetista vocecirc sabe o que ele jaacute taacute pensando vocecirc jaacute sabe o que ele pensou quando projetou aquela ferramenta Por exemplo um ferramenteiro me chamou saacutebado porque ele natildeo estava conseguindo entender uma coisa Ele via aquilo no desenho mas natildeo conseguia imaginar aquilo funcionando entatildeo foi a partir desse ponto que eu peguei e noacutes sentamos juntos eu peguei e simulei eu fui desenhando e imagi-

126

nando Neste ponto eu vi o que ele tinha projetado Quando vocecirc projeta vocecirc pro-jeta as linhas e elas satildeo paradas entatildeo eu vi juntamente com ele observamos aque-la situaccedilatildeo Eu peguei e falei com ele olha o projetista ele pensou da seguinte forma ldquoessa cunha vai encostar no lado de caacute ela vai cortar do lado de caacuterdquo Natildeo necessariamente o desenho contou isso mas foi olhando o desenho e imaginando que soacute poderia considerar daquela forma ou entatildeo natildeo ia funcionar O projetista ti-nha pensado de alguma forma a gente ficou ali sentado uma meia hora mas aiacute eu consegui entender o que ele realmente pensava Ele pensava o funcionamento dessa forma e consultando outras pessoas depois para tirar as duacutevidas o pessoal da en-genharia a coisa eacute do jeito que a gente tinha imaginado (Ferramenteiro)

Ainda um outro depoimento confirma

Natildeo adianta muitas vezes vocecirc querer tomar uma decisatildeo precipitada Muitas ve-zes vocecirc tem que dar aquela paradinha para fazer uma reflexatildeo analisar direitinho muitas vezes vocecirc chega ali e opa Natildeo o que que taacute acontecendo aqui Vocecirc vai analisar se for possiacutevel vocecirc bate um papo com o outro colega ou chama o superi-or ou tal vai na engenharia Muita vezes a gente tem que procurar neacute esse povo porque vocecirc pode chegar aqui e taacute interpretando aquilo ali vocecirc taacute vendo uma for-ma mas talvez se vocecirc fala mas o que o cara estava querendo expressar o que que o cara quis determinar nisso aqui Vocecirc taacute lendo um desenho muitas vezes vocecirc precisa dessa ajuda ou vocecirc tem que saber o que o cara quis pensar o que o cara pensou (Ferramenteiro)

O ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo ao mesmo tempo em que lhes facilita compreender um de-

terminado raciociacutenio de um colega associando-o a uma situaccedilatildeo de trabalho acaba por lhes

permitir tambeacutem uma reapropriaccedilatildeo dos saberes do seu coletivo de trabalho o que lhes permi-

te uma construccedilatildeo pessoal do seu proacuteprio saber Verificamos que essa reapropriaccedilatildeo de sabe-

res manifestada pelos ferramenteiros indica tambeacutem que eles podem mobilizar saberes por

meio de uma estrateacutegia que chamamos de ldquosaber usar o corpordquo Eacute o que apresentaremos no

proacuteximo toacutepico

c) ldquoSaber usar o corpordquo

Ao tentar identificar as estrateacutegias utilizadas pelos ferramenteiros para mobilizar os

seus saberes verificamos uma frequumlente referecircncia a um certo ldquosaber usar o corpordquo no traba-

lho Conforme jaacute dissemos alguns pensadores (ARANHA 1997 SANTOS 1997) criticam as

concepccedilotildees que naturalizam os saberes taacutecitos Portanto ao abordar o saber taacutecito pelos atri-

127

butos corporais poderiacuteamos correr o risco de corroborar a loacutegica de naturalizaccedilatildeo deste tipo de

saber Natildeo obstante inuacutemeras vezes os ferramenteiros se referem ao ldquosaber usar o corpordquo co-

mo estrateacutegia fundamental para mobilizar os seus saberes taacutecitos Muitos apontam inclusive

que o uso do corpo eacute um dos aspectos que confere ao ferramenteiro uma vantagem sobre o

projetista

O projetista tem um grande problema hoje em dia Antes ele trabalhava com a prancheta agora ele trabalha no computador em uma tela de no maacuteximo 20 pole-gadas As nossas ferramentas aleacutem de ter vaacuterios componentes agraves vezes 700 ou 800 mede quase 3 ou 4 metros E tem mais no computador vocecirc natildeo pega com a matildeo natildeo ouve e natildeo vecirc direto as peccedilas Noacutes olhamos escutamos ateacute para usar a visatildeo tem macete que no computador deve ser mais difiacutecil neacute (Ferramenteiro)

Ademais pudemos constatar que esse ldquosaber usar o corpordquo eacute parte de uma trama que

envolve outros diversos saberes os quais satildeo mediados por estrateacutegias que mobilizam o cole-

tivo no trabalho a reapropriaccedilatildeo de saberes formais a memoacuteria e aspectos subjetivos como a

esteacutetica Em muitas situaccedilotildees com que nos deparamos em nosso campo de pesquisa eviden-

ciou-se que o uso do corpo pelos ferramenteiros para realizar uma determinada atividade natildeo

prescinde de outros saberes

Existe uma outra coisa chamada habilidade A habilidade do ferramenteiro se faz com os anos Para vocecirc estabelecer fazer uma correccedilatildeo de uma superfiacutecie se eu te perguntasse vocecirc compraria um carro com amassamento Natildeo Entatildeo vocecirc compra um carro com ondulaccedilatildeo De jeito nenhum Agora tem homens inclusive eu que satildeo especialistas em passar pedra para criar superfiacutecies em condiccedilotildees para quando estampar a chapa Para isso a experiecircncia eacute fundamental porque vocecirc tem que sa-ber usar a matildeo o tato e a visatildeo mas vocecirc tem que saber por que um acabamento eacute assim e assado Quando vocecirc sabe por que que uma parte da ferramenta tem um ti-po de acabamento e uma outra parte tem outro tipo fica mais faacutecil vocecirc se sente mais seguro vocecirc sabe ateacute onde daacute para inventar (Mestre de ferramentaria)

Uma outra situaccedilatildeo em que verificamos o ldquosaber usar o corpordquo deu-se a partir da ob-

servaccedilatildeo que fizemos do trabalho de um ferramenteiro tido pelos colegas como excelente

profissional para dar acabamento Ao nos aproximarmos desse profissional observamos que

ele fitava a ferramenta abaixava e levantava a cabeccedila inclinando levemente o peito para fren-

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te Este estranho movimento nos chamou muito a atenccedilatildeo Foi quando o abordamos e ele nos

convidou a localizar um problema no acabamento de uma ferramenta Jaacute sabiacuteamos que se tra-

tava de um trabalho de acabamento e ao perguntarmos o porquecirc daqueles movimentos com o

corpo esse ferramenteiro iniciou o seu relato

Esse trabalho depende muito da visatildeo depende muito da posiccedilatildeo que vocecirc olha Taacute vendo essa quina aqui taacute vendo ela tem um raio se isso ficar errado perde o servi-ccedilo todo Soacute para vocecirc ter uma ideacuteia esse tipo de ferramenta eacute a primeira vez que eacute feita no Brasil Esse trabalho aqui as maacutequinas natildeo conseguem fazer eacute com a matildeo de um ferramenteiro que ela eacute feita Eacute igual eu te falei vocecirc tem que procurar uma posiccedilatildeo para poder enxergar os buraquinhos8 eu ateacute torccedilo um pouco a cabeccedila vou para laacute e para caacute ateacute achar um ponto para ver melhor (Ferramenteiro)

Ao ser indagado por que o seu trabalho de acabamento eacute tido como diferente dos de-

mais colegas a resposta dada por este ferramenteiro nos revela que aleacutem do ldquosaber usar o

corpordquo eles mobilizam saberes formais reapropriados da ciecircncia e tecnologia

Para dar acabamento tem um monte de conhecimento Tem uns caras que usam umas pedra mais fina porque ela corta menos e natildeo precisa a pessoa pocircr forccedila Po-de ser pouquinha forccedila se vocecirc quiser que um trabalho rende entatildeo a pessoa tem que usar uma pedra mais grossa uma sessenta dependendo do material se for mui-to duro se for material duro tem que ser uma pedra sessenta entendeu Eu aprendi uma coisa laacute na Fiat Eu faccedilo o seguinte eu uso lixa grossa e uma pedra grossa e o acabamento fica bom Porque eu faccedilo igual as maacutequinas da usinagem Para dar a-cabamento elas (as maacutequinas) trabalham com alta rotaccedilatildeo entatildeo eu passo a lixa ou a pedra com rapidez Na ferramentaria a pessoa tem que ter entusiasmo tem que gostar tem gente que natildeo gosta eacute cego quem natildeo vecirc tem gente que natildeo gosta natildeo tem entusiasmo Eu natildeo toda vida eu tive entusiasmo por ferramentaria por meca-nizaccedilatildeo pneumaacutetica graccedilas a Deus Por isso eu tocirc aiacute ateacute hoje garrado (risos) por-que eu gosto eu gosto de fazer o meu trabalho (Ferramenteiro)

Um depoimento de outro ferramenteiro aleacutem de corroborar a possibilidade de um cer-

to ldquosaber usar o corpordquo ndash no caso a visatildeo e o tato ndash ser tomado como um saber taacutecito aponta

tambeacutem a contribuiccedilatildeo de outros saberes formais como as noccedilotildees de desenho mecacircnico e de

geometria

8 Embora esse ferramenteiro e outros tenham falado em buraquinhos eacute importante esclarecer que trata-se de alteraccedilotildees de relevo da ordem de centeacutesimo de miliacutemetros ou seja dificiacutelimos de serem vistos a olho nu

129

Geralmente vocecirc olha a peccedila num plano horizontal vocecirc consegue ver que a super-fiacutecie estaacute um pouco ondulada quando a superfiacutecie estaacute com o acabamento constan-te O outro ponto eacute o horizontal quando vocecirc enxerga a peccedila entre a curvatura e o plano vocecirc natildeo consegue ver isso na terra Quando vocecirc natildeo consegue ver vocecirc tem que sentir a peccedila vocecirc vai passando a matildeo na superfiacutecie da peccedila vocecirc sabe se ela estaacute ondulada se precisa de mais acabamento e um raio por exemplo a gente chama de raio quebrado eacute quando o raio tem quina essa quina na verdade nada mais eacute do que o encontro aonde termina e onde comeccedila o desenho do raio Esse ponto tem que ter concordacircncia exata no plano se ele natildeo tem concordacircncia no plano ele vai ter quina e essa quina vocecirc soacute observa no tato vocecirc passa a matildeo e sente opa esse raio aqui estaacute precisando ter um acabamento melhor (Ferramentei-ro)

Observamos que o trabalho prescrito na Empresa T natildeo soacute reconhece a validade deste

ldquosaber usar o sentido da visatildeordquo bem como vem procurando dotar uma estrutura fiacutesica para

que ele possa ocorrer com mais facilidade Ainda tendo como base as indicaccedilotildees do depoi-

mento anterior fomos ateacute a linha do try-out da Empresa T e verificamos que haacute uma espeacutecie

de cabana equipada com lacircmpadas fluorescentes Segundo os ferramenteiros a incidecircncia de

luzes ajuda na identificaccedilatildeo dos ldquoburaquinhosrdquo na chapa praacutetica bem conhecida nas ferra-

mentarias

Jaacute passei por esta experiecircncia dentro da Fiat Tinha uma peccedila laacute a tampa traseira do Palio a primeira peccedila tava boa quando noacutes entregamos a peccedila para o pessoal da qualidade da Fiat eles pegaram a peccedila levaram ela pra debaixo do jogo de luz de-veria ter umas vinte lacircmpadas fluorescentes pegaram o oacuteleo e passaram sobre ela e olham pela horizontal eles foram observando e o pessoal foi mostrando para a gen-te olha por este ponto por este ponto dava pra ver manchas na peccedila (Ferramentei-ro)

Ainda um outro depoimento

Vocecirc olha no plano horizontal soacute que existe diferenccedila de vocecirc olhar no plano hori-zontal ou no plano vertical quando vocecirc olha a peccedila de cima pra baixo vocecirc natildeo consegue ver estas manchas se vocecirc olhar as peccedilas de cima pra baixo vocecirc natildeo tem noccedilatildeo de profundidade quando vocecirc olha a peccedila no plano horizontal vocecirc tem noccedilatildeo de profundidade Essa que eacute a diferenccedila de vocecirc olhar a peccedila no plano hori-zontal Quando vocecirc olha a peccedila assim vista grossa sem observar os pontos quando vocecirc observa os pontos no plano horizontal com noccedilatildeo de profundidade entatildeo daacute pra vocecirc ver se a peccedila estaacute ondulada ou natildeo Quando vocecirc olha por cima vocecirc natildeo vecirc que estaacute peccedila taacute ondulada entatildeo este eacute o ponto que a pessoa precisa ser um bom observador (Ferramenteiro)

130

Ao perguntarmos ao ferramenteiro como interpretar a incidecircncia das luzes sobre as pe-

ccedilas nos foi relatado que haacute uma influecircncia de saberes que circulam na ldquoescola formalrdquo como

por exemplo uma certa noccedilatildeo de oacuteptica No entanto se evidenciou tambeacutem que esses sabe-

res natildeo foram formalizados ainda pelo trabalho prescrito

Quando vocecirc passa o oacuteleo e com a luz refletida sobre ele eacute ateacute um pouco de fiacutesica neacute que eacute a refraccedilatildeo da luz e quando a luz bate sobre o oacuteleo quando vocecirc tem o mesmo plano de superfiacutecie constante essa superfiacutecie ela eacute refletida igualmente a luz eacute refletida igualmente Se vocecirc tem planos diferentes o plano superior ele eacute mais refletido o plano inferior a luz eacute refletida menor entatildeo justamente sobre esta sombra que vocecirc vecirc que a superfiacutecie natildeo taacute igual tem alguma ondulaccedilatildeo eacute justa-mente aiacute (Ferramenteiro)

e) ldquoRecurso aos saberes cientiacuteficos e tecnoloacutegicosrdquo

Haacute ainda outros tipos de saberes pertencentes ao campo da ciecircncia e da tecnologia

que satildeo mobilizados pelos ferramenteiros Alguns destes saberes jaacute foram inclusive indica-

dos em depoimentos anteriores Trata-se especialmente de saberes ligados ldquoao desenho me-

cacircnico agrave geometria agrave trigonometria e agrave tecnologia mecacircnicardquo9

Se de um lado demonstramos ao longo deste capiacutetulo que os ferramenteiros usam os

seus saberes taacutecitos para facilitar a interpretaccedilatildeo do desenho da ferramenta por outro lado a

maioria dos ferramenteiros apontam tambeacutem que conhecer as ldquonormas do desenho mecacircni-

cordquo eacute importantiacutessimo para poder interpretaacute-lo Em um depoimento nos foi relatado o seguin-

te ldquoquem natildeo souber ler o desenho dificilmente faraacute a ferramenta Apesar de que a gente a-

prende mesmo eacute na praacutetica a teoria ajuda bastante Se vocecirc jaacute sabe o que significa tal linha o

que significa tal siacutembolo eacute muito mais faacutecil para um outro cara te explicar o desenhordquo A fala

de um outro ferramenteiro aleacutem de corroborar o depoimento anterior aponta outras vanta-

gens de ter como eles dizem ldquouma base de desenho mecacircnicordquo

Se vocecirc jaacute tem uma base uma noccedilatildeo de desenho mecacircnico jaacute facilita muito O de-senho da ferramentaria eacute um desenho muito cheio de linhas e medidas Se vocecirc tem

9 Dentre os diversos processos associados agrave tecnologia mecacircnica Aqui tomaremos apenas alguns exemplos vinculados agrave usinagem agrave metrologia e agrave resistecircncia de materiais e evidentemente agrave proacutepria ferramentaria

131

essa noccedilatildeo de desenho vocecirc pode falar bem ou mal do projetista Vocecirc vai ver se ele estaacute te oferecendo tudo que ele podia te oferecer de informaccedilotildees Outra coisa importante da teoria eacute o detalhamento do desenho Vocecirc natildeo precisa ficar procu-rando uma medida porque agraves vezes o detalhe do desenho vai te explicar Entatildeo eacute bom vocecirc saber o que eacute um detalhe eacute bom ter uma certa teoria (Ferramenteiro)

Durante as nossas observaccedilotildees e tambeacutem nas entrevistas que realizamos pudemos

observar que uma boa parte dos ferramenteiros fazem valer os seus ldquosaberes de geometria e

trigonometriardquo Estes saberes nos foram explicitados ainda que somados aos saberes oriundos

da praacutetica em diversas situaccedilotildees que exigiam dos ferramenteiros a localizaccedilatildeo de uma deter-

minada medida ou de uma determinada peccedila a qual natildeo havia sido indicada pelo desenho da

ferramenta (ver Fig 6)

Apesar de ser um trabalho que pede bastante praacutetica a ferramentaria tambeacutem exi-ge uma noccedilatildeo de teoria Ontem mesmo tinha umas medidas faltando no desenho e natildeo tinha jeito de saber qual que seria essa medida porque a peccedila que seria monta-da natildeo estava pronta Eu fui e chamei o mestre da nossa ceacutelula e para adiantar o serviccedilo noacutes fizemos o caacutelculo pela trigonometria Nessa hora aleacutem da praacutetica eu ti-ve que usar a matemaacutetica a trigonometria (Ferramenteiro)

Figura 6 Croqui feito a partir de uma superposiccedilatildeo de triacircngulo retacircngulo

Em alguns casos pudemos observar que a noccedilatildeo de ldquogeometriardquo dos ferramenteiros

era enriquecida pelos saberes relacionados agrave ldquotecnologia mecacircnicardquo Essa possibilidade foi

132

constatada quando observamos que os ferramenteiros para explicar um trabalho uns aos ou-

tros mobilizam seus saberes de ldquogeometriardquo associando-os ao trabalho executado pela ferra-

menta Em um desses casos verificamos que conceitos oriundos da geometria como por e-

xemplo esquadro paralelismo ou perpendicularidade satildeo discutidos a partir da construccedilatildeo e

do funcionamento da ferramenta Vejamos um depoimento

Na ferramenta tudo depende do esquadro Eacute a partir do esquadro que a gente traba-lha todas as medidas da ferramenta Por quecirc A ferramenta faz o movimento de su-bir e descer Entatildeo ela tem que ter perpendicularidade tem que ter esquadro O que eacute um esquadro Noacutes chamamos de esquadro o encontro de duas superfiacutecies for-mando um acircngulo de 90 (graus) Aiacute eacute que eu te falo a teoria tambeacutem eacute importan-te porque se o ferramenteiro jaacute tem uma noccedilatildeo do que que eacute um esquadro na hora que ele ver ou imaginar a ferramenta trabalhando ele vai pensar no esquadro da ferramenta ele vai ficar preocupado Aiacute com certeza quando ele estiver constru-indo ele vai usar essa noccedilatildeo para controlar o seu proacuteprio trabalho (Mestre de fer-ramentaria)

Foi possiacutevel constatar tambeacutem que os ferramenteiros mobilizam um outro saber vin-

culado agrave ldquotecnologia mecacircnicardquo mais precisamente a ldquometrologiardquo parte da ciecircncia que cuida

do sistema de medidas voltadas para a construccedilatildeo (NOVASKI 1994) A mobilizaccedilatildeo dos sa-

beres vinculados agrave ldquometrologiardquo nos foi explicitada pelos ferramenteiros ao longo de toda a

construccedilatildeo da ferramenta muitas vezes associada agrave mobilizaccedilatildeo de um determinado saber taacute-

cito Segundo um ferramenteiro

O ferramenteiro tem que saber o que eacute um ajuste de precisatildeo natildeo basta ele seguir o desenho Ele tem que saber que dois centeacutesimos (de miliacutemetro) de erro pode com-prometer o funcionamento da ferramenta Por quecirc Eacute muito pouca coisa ele pode achar que natildeo errou nada Se ele entender de metrologia ele vai saber a importacircn-cia do ajuste Ateacute mesmo para criticar o desenho vocecirc tem que saber a influecircncia das medidas Eu jaacute vi acontecer o ferramenteiro tentar encaixar uma peccedila e ela natildeo entra de jeito nenhum Se tiver um centeacutesimo a mais natildeo encaixa mesmo vai te forccedilar para encaixar Se o cara conhece de ajuste de medidas ele natildeo vai forccedilar a peccedila Ele vai ajustar a medida para depois montar a peccedila (Ferramenteiro)

Para realizar o trabalho de acabamento pudemos verificar que os ferramenteiros mobi-

lizam outros saberes aleacutem daqueles oriundos da ldquometrologiardquo Observamos que para realizar

133

o acabamento eles se valem da sua percepccedilatildeo de centeacutesimos de miliacutemetros e da tecnologia de

corte da ldquousinagemrdquo

Esse trabalho de acabamento a gente tem que trabalhar buscando fazer um X tem passar a pedra sempre de forma cruzada sempre fazendo um X Sabe por quecirc Porque vocecirc nunca retira material por igual na superfiacutecie sempre sai mais de um lado do que do outro Isso acontece na maacutequina tambeacutem aliaacutes a gente soacute faz o acabamento na matildeo porque natildeo tem maacutequina que garanta dois centeacutesimos de preci-satildeo em toda superfiacutecie Se vocecirc compreender como o corte de material eacute feito na maacutequina vocecirc passa a compreender melhor como usar a pedra Entatildeo se vocecirc pas-sa a pedra em forma de X diminui a possibilidade de vocecirc passar a pedra num lu-gar soacute (Ferramenteiro)

Podemos afirmar embora esta possibilidade seja tratada com mais profundidade no

proacuteximo toacutepico que foram muitos os elementos encontrados em nossa pesquisa de campo que

demonstram que os ferramenteiros quaisquer que sejam os saberes que eles mobilizam soacute o

fazem por terem como referecircncia saberes que de alguma forma foram registrados e que por

isso mesmo podem em uma determinada circunstacircncia serem consultados ou ainda porque

foram disponibilizados por um outro colega de trabalho Dessa forma gostariacuteamos de salien-

tar que alguns saberes taacutecitos que os ferramenteiros mobilizam seratildeo mais bem percebidos

quando apresentarmos as estrateacutegias que eles criam para formalizar esses saberes

43 As ESTRATEacuteGIAS DOS FERRAMENTEIROS PARA FORMALIZAR OS SEUS SABERES TAacuteCITOS

O que eacute conhecido sempre parece sistemaacutetico provado aplicaacutevel e evidente para aquele que conhece Da mesma forma todo sistema alheio de conhecimento sem-pre parece contraditoacuterio natildeo provado inaplicaacutevel irreal e miacutestico (FLECK apud BURKE 2003)

Durante o periacuteodo em que ficamos imersos no campo de pesquisa foram muitas as ve-

zes em que os ferramenteiros sinalizaram uma preocupaccedilatildeo com a eficiecircncia ou com a vali-

dade dos seus saberes taacutecitos Constatamos tambeacutem que os ferramenteiros se mobilizavam

para tornaacute-los um objeto passiacutevel de ser comunicado de ser consultado para realizar um de-

134

terminado trabalho isto eacute um tipo de paracircmetro que de alguma forma eles pudessem usar em

situaccedilotildees futuras ou entatildeo para comunicaacute-lo aos seus pares no trabalho Ao nosso olhar esse

esforccedilo dos ferramenteiros em criar mecanismos que permitam comunicar os seus saberes taacute-

citos ou consultaacute-los quando for necessaacuterio pode ser entendido como estrateacutegias que eles

mesmos criam para formalizaacute-los De acordo com o dicionaacuterio Ferreira (1986 p 800) for-

malizar eacute ldquo[De forma + izar] vtd 1 ndash Dar forma a formar 2 ndash Realizar segundo as formulas

ou formalidades 3 ndash Executar conforme regras ou claacuteusulasrdquo Chamamos de estrateacutegias de

formalizaccedilatildeo ldquoos diaacuterios de bordo os croquis e os gabaritosrdquo que os ferramenteiros usam co-

mo forma de registrarem ou comunicarem os seus saberes taacutecitos No entanto ousaremos a-

presentar ldquoa memoacuteria e a reflexatildeordquo como uma espeacutecie de estrateacutegias particulares de formalizar

os saberes taacutecitos por parte dos ferramenteiros Eacute o que buscaremos apresentar de agora em

diante

Para Santos (1997) a imprevisibilidade e variabilidade das situaccedilotildees de trabalho a in-

fidelidade dos materiais e as vicissitudes do trabalho humano satildeo alguns dos fatores do traba-

lho real que resistem agrave formalizaccedilatildeo no trabalho prescrito Nossas observaccedilotildees no campo de

pesquisa bem como as entrevistas realizadas nos mostraram que de fato satildeo muitos os sabe-

res taacutecitos que escapam agraves estrateacutegias dos ferramenteiros em formalizaacute-los De acordo com

Santos (1997) o saber taacutecito pode ser da ordem do informalizaacutevel por dois motivos baacutesicos

Primeiro porque podem faltar na atualidade recursos de linguagem ou epistemoloacutegicos para a

formalizaccedilatildeo desse tipo de saber tal como para alguns saberes da engenharia Essa autora a-

inda fala que uma outra dificuldade em formalizar o saber taacutecito pode estar vinculada agraves bar-

reiras sociais e psiacutequicas que os trabalhadores podem ter para verbalizar uma experiecircncia En-

tretanto a proacutepria autora afirma que se de um lado isto significa que nem tudo pode ser sim-

bolizado codificado ou formalizado ldquopor outro lado demonstra que a experiecircncia deste in-

formalizaacutevel pode ser expressa em linguagens diferentes das usuaisrdquo (SANTOS 1997 p 20)

135

Santos (1997) entende que primeiro haacute saberes que ainda natildeo foram formalizados

mas que podem secirc-lo Segundo que haacute saberes que natildeo satildeo formalizaacuteveis Isto se aplica tanto

agravequeles que se inscrevem no trabalho real quanto a outros que satildeo oriundos da engenharia

De acordo com essa autora ldquoevidentemente o fato de que um saber natildeo foi ainda formalizado

natildeo significa que ele natildeo possa secirc-lo um diardquo (p 23) Santos (1997) faz uma criacutetica agrave perspec-

tiva que contesta a possibilidade de formalizaccedilatildeo dos saberes oriundos do chatildeo de faacutebrica

pois considera que tal noccedilatildeo se funda exclusivamente em um certo modelo de linguagem

proacuteprio do saber dos engenheiros ou seja do trabalho prescrito A autora aponta que um sa-

ber ainda natildeo formalizado pode se exprimir com os recursos de linguagem disponiacuteveis ao tra-

balhador da faacutebrica ou seja por linguagens que escapam ao modelo de formalizaccedilatildeo do traba-

lho prescrito pela engenharia

Como jaacute afirmamos anteriormente as estrateacutegias que os ferramenteiros usam para

formalizar os seus saberes taacutecitos se inscrevem tanto como um meio de registro desses sabe-

res quanto como uma forma de tornaacute-los comunicaacuteveis para si proacuteprio ou mesmo para o seu

coletivo de trabalho no presente ou no futuro

Dentre os vaacuterios relatos que coletamos alguns corroboram essa perspectiva apontada

por Santos (1997) de que os trabalhadores podem com sua proacutepria linguagem formalizar os

seus saberes taacutecitos Quando perguntamos aos ferramenteiros em que medida os saberes cons-

truiacutedos a partir da sua experiecircncia eram confiaacuteveis ou mesmo necessaacuterios um depoimento

nos pareceu revelador pelo seu conteuacutedo Ele indica que uma visatildeo mais ampliada do proces-

so de trabalho pode estar associada agrave capacidade dos ferramenteiros em formalizar os seus sa-

beres taacutecitos

E aiacute professor outro dia vocecirc me perguntou o que um ferramenteiro precisa saber tem um exemplo que estaacute acontecendo agora Eles estatildeo precisando da gente laacute na Fiat tem uma ferramenta dando problema laacute a linha estaacute parada Nessa hora o fer-ramenteiro natildeo pode soacute saber que o galo canta a gente tem que saber aonde o galo canta Quando a gente chegar laacute natildeo adianta falar que o produto natildeo estaacute bom a gente tem que localizar e acabar com o problema Eacute por isso que eu te falei o fer-ramenteiro completo um ferramenteiro bom natildeo eacute soacute aquele que monta as peccedilas

136

direitinho ele tem que saber o que eacute o quecirc Por que uma peccedila movimenta Ele tem que ter uma capacidade de monitorar a ferramenta quem sabe por que construiu com certeza vai ter mais facilidade para resolver qualquer problema (Ferramentei-ro)

Observamos que o uso das estrateacutegias por parte dos ferramenteiros para viabilizar a

comunicaccedilatildeo dos saberes taacutecitos no coletivo de trabalho serve tambeacutem como uma forma so-

cial de certificar a validade desse tipo de saber De certa forma isso indica que os saberes taacute-

citos dos ferramenteiros podem se inscrever a partir de uma ldquoperspectiva coletivardquo De acordo

com Collins apud Lima (1998) ldquoo saber estaacute nas situaccedilotildees no contexto em que se desenrola

a accedilatildeo o seu lugar por excelecircncia eacute o grupo social e natildeo a cabeccedila de seus membrosrdquo (p 144)

Em um depoimento que coletamos a necessidade que os ferramenteiros tecircm de se a-

poiar no seu coletivo de trabalho ao mesmo tempo em que remete agrave preocupaccedilatildeo em validar

os seus saberes taacutecitos nos revela tambeacutem a possibilidade de dar-lhes uma forma para co-

municaacute-los

O ferramenteiro nunca trabalha sozinho O que estaacute do lado de fora tem uma visatildeo do trabalho e pode ajudar o ferramenteiro que estaacute ligado diretamente trabalho Talvez uma opiniatildeo de quem estaacute do lado de fora da equipe dele que natildeo estaacute vi-vendo exatamente o trabalho mas a equipe que eacute composta por uma ceacutelula pode algueacutem chegar e dar uma opiniatildeo ele natildeo vai mudar soacute porque o outro falou os dois vatildeo discutir vatildeo saber exatamente qual que eacute melhor e vai fazer o que ele a-cha melhor (Mestre de ferramentaria)

Em um outro depoimento

Primeiro eu vou fazer uma colocaccedilatildeo eacute o seguinte quando a gente toma uma me-todologia de trabalho quando a gente de certa forma inventa o processo de traba-lho a ser feito eu particularmente nunca faccedilo isso soacute Eu tenho a minha opiniatildeo proacutepria mas sempre eu busco conselho eu busco opiniotildees de outras pessoas pra poder ver se as pessoas concordam com o meu pensamento porque a gente pode ser que esteja vendo a coisa por um lado com a opiniatildeo de outra pessoa a pessoa me apoacuteia e a gente realiza aquilo que eu imaginei ou entatildeo a pessoa me alerta so-bre determinado tipo de problema que pode acontecer se eu realmente levar em frente o que eu estou pensando sempre no meu caso eu procuro buscar opiniatildeo de outras pessoas e de preferecircncia pessoas mais experientes (Ferramenteiro)

137

A possibilidade de que a formalizaccedilatildeo dos saberes taacutecitos dos ferramenteiros dentre

outros motivos se decirc articulada ao coletivo do trabalho natildeo soacute eacute de conhecimento da empresa

T mas eacute assumida pela loacutegica do capital no sentido de melhorar o processo de trabalho Ve-

jamos a fala de um dos coordenadores da Ferramentaria

Hoje a metodologia que a gente implantou aqui na empresa eacute total liberdade do fer-ramenteiro desde de que ele discuta se tiver alguma duacutevida discuta com a chefia imediata ou colega sempre criaccedilatildeo e inovaccedilatildeo seraacute bem-vinda Mesmo se todo mundo que discutiu o assunto teve consciecircncia de que aquilo ia dar certo no final deu errado natildeo tem problema nenhum isso quer dizer que noacutes demos espaccedilo para ele criar talvez o resultado natildeo seja tatildeo satisfatoacuterio quanto imaginamos mas para outros que trabalham com certeza seraacute mais eficaz (Coordenador da ferramentaria)

a) Reflexatildeo

Aleacutem da influecircncia do coletivo de trabalho na formalizaccedilatildeo dos saberes taacutecitos mobili-

zados pelos ferramenteiros observamos que eles quase sempre submetiam estes saberes a um

ldquomomento de reflexatildeordquo o que de certa forma indica uma possibilidade de formalizaccedilatildeo Fo-

ram muitas as vezes em que nos deparamos com alguns ferramenteiros aparentemente sem

trabalhar Constatamos em alguns diaacutelogos inclusive junto agrave gerecircncia que dentro da Empresa

T esse ldquotempo paradordquo eacute tido como necessaacuterio ldquopara o tipo de trabalho que se faz na ferra-

mentariardquo Observamos que esse tempo para reflexatildeo permitia ao ferramenteiro aleacutem de uma

melhor compreensatildeo sobre o trabalho prescrito monitorar a mobilizaccedilatildeo dos seus saberes taacute-

citos e dar uma organizaccedilatildeo agraves suas ideacuteias Neste sentido torna-se exequumliacutevel por parte dos fer-

ramenteiros mobilizar saberes taacutecitos e ter uma razoaacutevel compreensatildeo sobre este processo

Essa possibilidade eacute bem explicitada nas situaccedilotildees em que os ferramenteiros manifestaram

uma sofisticada capacidade de abstraccedilatildeo ilustrada pela capacidade de fazer um trabalho e ao

mesmo tempo pensar em outro

Fazer uma coisa e estar pensando em outra eacute uma constante para o ferramenteiro porque para vocecirc realizar um trabalho vocecirc precisa pensar em como realizar o tra-balho A partir do momento que vocecirc comeccedila a realizar aquele trabalho manual de ajuste de acabamento soacute que a sua mente de certa forma estaacute um pouco vazia

138

porque aquele trabalho que vocecirc estaacute fazendo ateacute entatildeo jaacute foi projetado de como vocecirc deveria fazer Vocecirc pode estar executando da forma que vocecirc natildeo tinha pen-sado em fazer Aiacute no proacuteximo trabalho que vocecirc tem que fazer vocecirc estaacute pensando nele ainda entatildeo vocecirc estaacute executando o trabalho como vocecirc jaacute pensou em como fazer e vocecirc jaacute estaacute pensando no trabalho a ser feito Isso eacute constante (Ferramentei-ro)

Vejamos um outro depoimento

Natildeo tenha duacutevida que o ser humano tem essa capacidade de estar trabalhando e au-tomaticamente vislumbrando algo agrave frente Mas eacute interessante ressaltar que durante o processo de trabalho sua mente e sua visatildeo o seu processo de trabalho tem que estar focado na sua atividade principal Eacute loacutegico o seu ceacuterebro tem uma capacidade de comando e de raciociacutenio que eacute incalculaacutevel quem sou eu para mensurar isso Mas a atividade primaacuteria eacute que te demanda maior concentraccedilatildeo e isso natildeo te impe-de de ver outras coisas ou imaginar outras coisas mas com certeza o foco principal vocecirc estaacute concentrado na operaccedilatildeo que vocecirc estaacute executando naquela hora (Ferra-menteiro)

Ainda sobre a possibilidade de a reflexatildeo expressar uma certa formalizaccedilatildeo de saberes

Por exemplo fazer uma alteraccedilatildeo e aiacute eu pensei em como vou fazer essa alteraccedilatildeo Eu vou prender a peccedila dessa forma eu vou colocar essa broca vou furar o preacute-furo vou fazer esse furo de 17mm e vou pegar uma broca de 18mm Comeccedila a realizar o trabalho Eacute aquilo que eu falei anteriormente eu natildeo posso estar executando uma tarefa atraacutes da outra tarefa sem pensar no todo sem pensar no funcionamento E eu tenho que pensar no funcionamento Aiacute eu consigo ter soluccedilotildees para problemas fu-turos Isso jaacute estaacute na minha cabeccedila memorizado desde a primeira vez que eu fiz o trabalho e esse trabalho ficou memorizado entatildeo eu jaacute tenho uma noccedilatildeo de como realizar (Ferramenteiro)

Mesmo quando a rotina parece recobrir a capacidade de reflexatildeo podemos pensar num

conjunto de saberes acumulados portanto num niacutevel qualquer de formalizaccedilatildeo

Aiacute que eu falo tem uns pulos do gato a gente daacute uma paradinha para monitorar o que estamos fazendo quando eu falo que a gente jaacute sabe e natildeo precisa pensar de-mais eacute jeito de falar eacute claro que dou umas paradinhas soacute que pela minha experiecircn-cia eu natildeo preciso ficar uma hora duas horas pensando (Ferramenteiro)

Um outro depoimento tambeacutem expressa a possibilidade de haver como diz Schon

(2000) uma ldquoreflexatildeo no meio da accedilatildeordquo

139

A gente parte do pressuposto que toda vez que vocecirc quer ajustar uma determinada peccedila eacute porque vocecirc visa que essa peccedila eacute fundamental que ela tem acoplamento com a outra peccedila Durante o processo vocecirc vai fazendo uma microgestatildeo deste a-juste vocecirc vai passando a pasta de ajuste e a pasta de ajuste vai revelando para vo-cecirc quanto que a superfiacutecie taacute tocando se ela taacute tocando 50 da peccedila se taacute tocando 60 da peccedila cada ajuste que vocecirc vai aumentando vai chegando ateacute o limite miacute-nimo qual vocecirc precisa (Ferramenteiro grifo nosso)

Em nosso entendimento o uso da expressatildeo ldquonatildeo pensarrdquo por parte dos ferramenteiros

pode ser tomado como gastar ldquomenos tempo pensando ou pensar sem prestar muita atenccedilatildeo

neste atordquo o que envolve finalmente um tipo de ldquoreflexatildeordquo

b) Memoacuteria

Observamos ainda um outro caso que se articula com a preocupaccedilatildeo dos ferramentei-

ros com registro e comunicaccedilatildeo dos seus saberes taacutecitos e que se relaciona com as suas estra-

teacutegias de formalizaccedilatildeo desses saberes Trata-se do ldquouso da memoacuteriardquo ou dos artifiacutecios utiliza-

dos para preservaacute-la De acordo com Wisner (1987)

As tomadas de decisatildeo estatildeo longe de ser os uacutenicos componentes da atividade cog-nitiva ou mesmo os principais Existe a questatildeo das dificuldades perceptivas e das de identificaccedilatildeo e de reconhecimento O elemento mais criacutetico eacute provavelmente a memoacuteria quer seja imediata ou de longo prazo (p 175)

No que se refere aos ferramenteiros que abordamos ao mesmo tempo em que a me-

moacuteria eacute indicada por eles como um fator fundamental eles tambeacutem reconhecem os limites

da memoacuteria ou como eles proacuteprios dizem ldquoeacute difiacutecil de se guardar tudo na cabeccedilardquo Na maio-

ria dos depoimentos o uso da memoacuteria foi relacionado com a grande quantidade de compo-

nentes e informaccedilotildees contidas no desenho da ferramenta

O ferramenteiro usa muito a sua memoacuteria entatildeo ele sabe que natildeo deu certo Eacute soacute mediante a situaccedilatildeo de trabalho que ele vai lembrar porque ele tem uma etapa to-da um ferramental tem 300 500 itens eacute muita coisa pra ele lembrar mediante a si-tuaccedilatildeo eacute automaacutetico ele vai lembrar ldquoeu fiz daquele jeito deu errado agora eu fiz melhorei meu modo de pensarrdquo melhorei desenvolvi um meacutetodo melhor exata-

140

mente para aplicar na hora aquele passado vai ser apagado vai deletando a experi-ecircncia que deu errado (Ferramenteiro)

O depoimento seguinte ilustra o uso da memoacuteria como registro

Na ferramentaria um dia nunca eacute igual ao outro hoje eu tocirc mexendo com determi-nado serviccedilo pode este mesmo serviccedilo ou outro parecido voltar daqui uns anos Entatildeo eu natildeo posso simplesmente estaacute deixando aquilo pra traacutes eu tenho que guar-dar aqui na minha cabeccedila para quando eu encontrar aquela primeira dificuldade que eu tive na primeira vez Eacute esse o sentido que a gente tem de estaacute analisando um de-terminado serviccedilo e quando vocecirc torna a analisar de novo aquilo jaacute estaacute predefini-do daacute esta impressatildeo que estaacute guardado numa parte do seu ceacuterebro soacute quando vocecirc necessita que vocecirc vai laacute e resgata natildeo eacute em todo momento que vai ficar vin-do na sua cabeccedila (Ferramenteiro grifo nosso)

Verificamos ainda que os ferramenteiros em tese os mais experientes associaram o

registro por meio da ldquomemoacuteriardquo com o uso da visatildeo Ao encontrarmos um ferramenteiro com

quem jaacute viacutenhamos conversando observamos um aparente nervosismo com um colega que ha-

via mudado a sua ferramenta de posiccedilatildeo Ao justificar o porquecirc de tal nevorsismo ele acabou

por nos dizer que um colega lhe ensinou um macete para ter uma memoacuteria ldquofotograacuteficardquo atra-

veacutes de um certo jeito de olhar a ferramenta pelo melhor acircngulo

Eu sempre gosto de trabalhar com a ferramenta sempre numa posiccedilatildeo com a parte da frente virada para mim porque depois que vocecirc jaacute tem um certo contato com a ferramenta basicamente vocecirc decorou a ferramenta vocecirc quase nem olha mais o projeto Entatildeo se eu tenho sempre uma posiccedilatildeo aquela posiccedilatildeo eu decoro entatildeo agraves vezes eu brinco com os caras falo assim se eu estou nessa posiccedilatildeo olhando todos os componentes eu jaacute decorei entatildeo se eu tenho algum problema que eu natildeo consi-go resolver ele aqui agraves vezes laacute em casa pensando entatildeo eu jaacute estou em frente agrave ferramenta entatildeo aqui acontece isso ali acontece assim e tal Soacute desse jeito eu soacute trabalho com a ferramenta de frente pra mim de frente para minha bancada eacute a po-siccedilatildeo que eu trabalho Porque eu condicionei minha mente tambeacutem nisso Se eu te-nho uma dificuldade eu penso isso aqui vai nessa posiccedilatildeo ateacute mesmo pelo desenho mais para frente Vocecirc jaacute olha assim rapidinho jaacute sabe onde estaacute tal coisa (Ferra-menteiro)

Pudemos constatar que a ldquomemoacuteriardquo natildeo eacute somente uma forma passiva de subtrair in-

formaccedilotildees de um repertoacuterio dado pela experiecircncia de os ferramenteiros O uso da memoacuteria

permite ao ferramenteiro resgatar os saberes necessaacuterios agrave construccedilatildeo de uma nova ferramen-

141

ta Por isso podemos considerar a memoacuteria como parte de uma trama fundamental na forma-

lizaccedilatildeo dos saberes taacutecitos dos ferramenteiros

Gostariacuteamos de apresentar a partir de agora situaccedilotildees concretas que ao nosso ver

expressam as possibilidades dos ferramenteiros lanccedilarem matildeo de estrateacutegias mais comumente

reconhecidas no campo da linguagem para formalizarem os seus saberes taacutecitos Para aleacutem

das perspectivas anteriores de uso da memoacuteria e da reflexatildeo foi possiacutevel observar que os fer-

ramenteiros buscam formalizar os seus saberes taacutecitos principalmente por meio de ldquogabari-

tos diaacuterios de bordo e croquisrdquo que eles proacuteprios fazem

c) Diaacuterio de bordo

Como jaacute afirmamos anteriormente um dos fatores que tornam complexo o trabalho

dos ferramenteiros eacute a grande quantidade de informaccedilotildees sejam as postas pelo trabalho pres-

crito ou mesmo aquelas que tecircm a sua origem no trabalho real Constatamos que diante da ne-

cessidade de se trabalhar com um vasto repertoacuterio de informaccedilotildees e tambeacutem como jaacute foi di-

to pelo proacuteprio limite da memoacuteria em arquivar todas essas informaccedilotildees os ferramenteiros

buscam criar suas formas de registrar as situaccedilotildees que eles vivenciam Uma dessas formas de

registro eacute o chamado diaacuterio de bordo Os diaacuterios de bordo satildeo organizados quase sempre na

forma de pequenos textos registrados em blocos cadernetas ou mesmo em alguns desenhos

Em um depoimento fica explicitado como as anotaccedilotildees escritas por um ferramenteiro podem

lhe servir de registro

Eu particularmente eu anoto eu tenho como se fosse um diaacuterio de bordo onde eu anoto todas as ocorrecircncias mais importantes do meu dia-a-dia loacutegico que natildeo daacute pra gente anotar tudo mas as coisas mais importantes as decisotildees mais importan-tes do meu dia-a-dia eu sempre anoto no meu caderno e quando eu estou fora eu jaacute tive na Honda tive na Ford jaacute tive na Fiat eu sempre faccedilo um rascunhozinho para mim transcrever por meu diaacuterio de bordo isso eacute minha base de dados eacute a par-tir disso aiacute que eu vou manter certo conhecimento do trabalho a ser feito porque de certa forma vocecirc natildeo pode confiar tanto na memoacuteria entatildeo detalhes mesmo vocecirc soacute consegue se vocecirc anotar se vocecirc arquivar isso que vocecirc tomou aquela de-cisatildeo no momento (Ferramenteiro)

142

Mais adiante

Eu tento usar a minha memoacuteria para poder tentar buscar a soluccedilatildeo de certos pro-blemas e tentar reativar certos procedimentos de trabalho recentes A partir do momento que eu comecei a anotar no imediato as provas as decisotildees importantes que eu tomei as coisas que aconteciam durante a construccedilatildeo da ferramenta eu pas-sei a natildeo sobrecarregar tanto a memoacuteria com estes pontos Eu sei onde estaacute escrita determinada experiecircncia eu sei aonde tem um documento referente a um problema acontecido uma coisa que aconteceu natildeo tem que usar tanto a memoacuteria porque se natildeo se eu fizer isso eu posso estar de certa forma confundindo com o aconteci-mento que jaacute aconteceu com alguma coisa bem parecida Eu tento usar sempre al-guma coisa que eu escrevi uma coisa que eu jaacute deixei escrito (Ferramenteiro)

Chama a atenccedilatildeo tambeacutem um outro tipo de registro que nos foi revelado por esse

mesmo ferramenteiro e que vamos incluir aqui como uma modalidade de diaacuterio de bordo Tra-

ta-se de uma espeacutecie de minidicionaacuterio do tipo PortuguecircsInglecircs constituiacutedo por termos usa-

dos na ferramentaria Segundo esse ferramenteiro o seu interesse em realizar o minidicionaacuterio

deu-se a partir das aulas de inglecircs realizadas dentro da Empresa T

Nos primeiros dias do curso de inglecircs o professor pedia muito para a gente falar palavras do dia-a-dia da gente Eu fiquei curioso e usei muitas palavras da ferra-mentaria e inclusive aqui na empresa jaacute que a gente faz ferramenta para um seacuterie de montadoras tem normas em outras liacutenguas francecircs inglecircs Eu peguei e reparei que algumas palavras giacuterias da ferramentaria satildeo idecircnticas no inglecircs Depois disso eu comecei a anotar uns termos e o professor ficou interessado Entatildeo eu e ele es-tamos montando esse minidicionaacuterio (Ferramenteiro)

Aleacutem das anotaccedilotildees na forma de pequenos textos explicitadas em depoimentos anteri-

ores verificamos que as muacuteltiplas anotaccedilotildees feitas pelos ferramenteiros datildeo-se por meio de

outras linguagens tais como a matemaacutetica mais especificamente a geometria e a trigonome-

tria e ainda como veremos no proacuteximo item o croqui uma linguagem proacutexima das normas

do desenho mecacircnico Observamos ainda que essas linguagens podem ser usadas uma inde-

pendente da outra ou agraves vezes de maneira entrelaccedilada

No que se refere agrave presenccedila da ldquolinguagem matemaacutetica nas anotaccedilotildees dos ferramentei-

rosrdquo pudemos observar dentre aquelas que nos foram apresentadas que a maior parte satildeo

projeccedilotildees de um triacircngulo retacircngulo normalmente usado para dimensionar o deslocamento

de uma determinada parte da ferramenta Em uma das situaccedilotildees que presenciamos dois fer-

ramenteiros debatiam sobre o deslocamento de um componente da ferramenta na hora em que

143

a mesma estiver sendo movimentada isto eacute em funcionamento Ao nos aproximarmos desses

ferramenteiros um deles nos apresentou o problema ldquoesse tipo de ferramenta eacute muito faacutecil de

ter trombamento10 e a gente tem que dar uma estudada Isso aqui eacute igual agrave gente sempre fala

o ferramenteiro tem que imaginar a ferramenta trabalhando antes mesmo dela estar construiacute-

dardquo Ao perguntarmos se os dois se entendiam soacute simulando mentalmente a ferramenta traba-

lhando um dos ferramenteiros fez uma seacuterie de traccedilados na forma de triacircngulos retacircngulos

(Fig 7) mostrando como funciona uma movimentaccedilatildeo por cunha

Nesse caso aqui taacute vendo A gente para entender melhor para explicar para o co-lega agraves vezes eacute necessaacuterio fazer um croqui fazer um tipo de desenho soacute para ver o tanto que a peccedila vai deslocar Usando o desenho do triacircngulo daacute para ver Na ver-dade a cunha eacute um triacircngulo Se vocecirc disser que para resolver esse problema eacute bom o cara conhecer trigonometria eacute claro que ajuda mas aqui noacutes resolvemos is-so soacute simulando a movimentaccedilatildeo pelo croqui Aleacutem de resolver o problema eacute mais faacutecil para explicar (Ferramenteiro)

Figura 7 Croqui elaborado a partir de uma projeccedilatildeo simulada do deslocamen-to de triacircngulo retacircngulo

10 Os ferramenteiros chamam de trombamento quando os componentes moacuteveis da ferramenta natildeo terminam sua trajetoacuteria por trombarem literalmente em um outro componente

144

Em uma conversa com um dos mestres em ferramentaria da Empresa T ele nos rela-

tou a capacidade dos ferramenteiros em trabalhar com relaccedilotildees trigonomeacutetricas sem terem um

domiacutenio preciso dos caacutelculos dessa aacuterea ou mesmo por uma questatildeo de opccedilatildeo de trabalho

Tem serviccedilo que ele vai te exigir um caacutelculo de trigonometria mas quando o fer-ramenteiro natildeo se lembra ou natildeo sabe a foacutermula ele pode simular Por exemplo vocecirc desenha o trabalho da ferramenta depois recorta com tesoura aiacute vocecirc desce por exemplo uns 40 mm e vocecirc mede o tanto que a outra parte avanccediloursquorsquo (Mestre de ferramentaria)

d) Croquis

Muito embora desde o iniacutecio do trabalho de campo os ferramenteiros nos revelassem

uma certa necessidade de anotar algumas informaccedilotildees foi a partir do interesse de alguns deles

em nos explicar o seu trabalho que percebemos a possibilidade de eles usarem as suas anota-

ccedilotildees como um tipo de formalizaccedilatildeo que viabilizasse a comunicaccedilatildeo com seus colegas de tra-

balho Durante os vaacuterios diaacutelogos que travamos com os ferramenteiros observamos que eles

de forma insistente a todo o momento para se fazerem compreender desenhavam ldquocroquisrdquo

em papeacuteis para facilitar as suas explicaccedilotildees A partir de um determinado momento observa-

mos que mais do que uma mania os ferramenteiros elaboravam ldquocroquisrdquo ou mesmo alguns

traccedilos geomeacutetricos para se orientarem na execuccedilatildeo da sua atividade ou para facilitar a interlo-

cuccedilatildeo com um colegaVejamos um depoimento

Esse eacute um dos lados bons da ferramentaria vocecirc aprende muitas formas de pensar de fazer um trabalho diferente Soacute para te dar um exemplo tem cara aqui que te en-sina soacute com um croqui isso eacute muito comum na ferramentaria Quando tem um de-senho complicado eu falo o desenho da ferramenta eacute comum um cara mais expe-riente pegar o papel fazer um croqui e te falar oh essa peccedila aqui vai fazer esse movimento e ao mesmo tempo essa outra vai fazer isso aqui Isso ajuda demais tem hora que um papinho com um colega um croqui te ajuda sair do sufoco (Fer-ramenteiro)

145

Quando comentamos com um mestre de ferramentaria sobre a dificuldade de comuni-

caccedilatildeo de saberes entre dois ferramenteiros ainda que experientes coletamos a seguinte anaacuteli-

se

Uma coisa eacute vocecirc ter domiacutenio e conhecimento de um determinado trabalho outra coisa eacute vocecirc conseguir transmitir isso em palavras ou ateacute mesmo em accedilotildees Porque agraves vezes vocecirc pode ser muito bom para fazer e natildeo tem essa faculdade de ensinar entatildeo aleacutem de saber fazer eacute bom que vocecirc aprenda pelo menos um miacutenimo de transmitir para o outro Como Atraveacutes da fala atraveacutes de um desenho atraveacutes de um croqui atraveacutes de um exemplo agraves vezes vocecirc fazendo ateacute mesmo a primeira peccedila para que a outra pessoa que tem menos experiecircncia possa aprender com vo-cecirc (Mestre de ferramentaria grifo nosso)

Encontramos uma outra situaccedilatildeo interessante onde tambeacutem nos pareceu possiacutevel que

os ferramenteiros usem o croqui como uma estrateacutegia de formalizaccedilatildeo dos seus saberes taacuteci-

tos Em uma de nossas estadias na faacutebrica um dos ferramenteiros nos disse que um outro co-

lega lhe ajuda muito a compreender ldquoos segredos da ferramenta e da vida tambeacutemrdquo Vejamos

o relato desse ferramenteiro

Tem uma cara aqui que me ajuda muito eacute o neguinho Quando o serviccedilo daacute uma caiacuteda aqui e sobra um tempinho a gente fica fazendo uns testes com o desenho da ferramenta a gente fica fazendo croqui treinando caacutelculo O neguinho sabe muita coisa Tudo dele eacute no croqui ele quer te ensinar um caacutelculo explicar um movimen-to da ferramenta eacute no croqui Tem coisa na ferramenta que eacute difiacutecil de enxergar Pois eacute jaacute aconteceu um monte de vez eu natildeo enxergo um negoacutecio faccedilo um croqui e fico pensando como a ferramenta funciona e aos poucos a gente vai enxergando (Ferramenteiro)

Identificamos uma outra forma de anotar ou registrar dos ferramenteiros que se articu-

la com a mobilizaccedilatildeo de diversos saberes taacutecitos e que foi inclusive incorporada pelo traba-

lho prescrito na organizaccedilatildeo do trabalho da Empresa T Trata-se de um trabalho que caracteri-

zamos no capiacutetulo anterior chamado por eles de leiaute Neste tipo de trabalho os ferramen-

teiros por meio de um pincel atocircmico ou um pincel do tipo ldquomarcatudordquo fazem as suas anota-

ccedilotildees na proacutepria ferramenta indicando medidas que natildeo estatildeo claras no desenho da ferramenta

Vejamos como um dos ferramenteiros argumenta sobre a importacircncia do leiaute

146

Sempre que eu pego independente do projeto se eacute um projeto que eu estou traba-lhando ou se eacute um projeto que eu vou mandar pra usinagem eu costumo pegar as coordenadas que o operador da maacutequina vai usar Se por exemplo ele vai ter que fazer quatro furos de coluna eu pego o projeto modifico as quatro coordenadas e marco com o marca texto Porque eu vou auxiliar ele tambeacutem o operador ele natildeo precisa ficar procurando onde eacute que estaacute as coordenadas e de certa forma o dese-nho ele tem muita coordenada entatildeo ele natildeo vai errar porque se eu marquei para ele a coordenada ele jaacute sabe opa a coordenada eacute essa aqui porque fui eu que marquei Agora se ele for olhar que tem duas coordenadas com diferenccedila de cinco miliacutemetros uma do lado da outra ele pega a de baixo ele pega e matou o furo (Ferramenteiro)

Ainda sobre a importacircncia do leiaute

O leiaute eacute muito importante pode ateacute parecer bobagem mas o cara que faz o lei-aute tem que ter muita responsabilidade Aquelas marcaccedilotildees que o ferramenteiro faz na ferramenta mostra um monte de coisa coisas que agraves vezes o desenho natildeo mostra ou mostra de forma muito confusa Agora para fazer o leiaute o ferramen-teiro tem que saber ler o desenho ele tem que ter uma manha (Ferramenteiro)

Neste sentido eacute importante reafirmar que o acesso agrave linguagem no trabalho (NOU-

ROUDINE 2002) ou seja agravequela que circula entre os ferramenteiros eacute fundamental para

formalizar os saberes taacutecitos Aleacutem da constataccedilatildeo de que os ferramenteiros se valem de suas

anotaccedilotildees em variadas formas para auxiliar na formalizaccedilatildeo dos seus saberes taacutecitos verifi-

camos tambeacutem que haacute situaccedilotildees que solicitam dos ferramenteiros estrateacutegias de formalizaccedilatildeo

de saberes taacutecitos alternativas agraves suas anotaccedilotildees

e) Gabaritos

Observamos que os saberes taacutecitos mobilizados pelos ferramenteiros aleacutem de apontar

uma lacuna do trabalho prescrito acabam por lhe favorecer comunicar esses saberes com o

seu coletivo de trabalho Isso ficou constatado nos ldquogabaritosrdquo que os ferramenteiros usam pa-

ra aferir um trabalho conhecido como ajuste da ldquolinha de corte da ferramentardquo11 Constata-

11 A linha de corte eacute responsaacutevel pelas medidas que indicam onde o produto se separa da chapa em bruto Assim por exemplo se um produto a ser estampado for um disco com 100 mm de diacircmetro a linha de corte seria toda a

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mos dada a sua recorrecircncia que estes gabaritos satildeo de certa forma consagrados pelos ferra-

menteiros para formalizar os seus saberes taacutecitos Dentre os gabaritos mais usados para servir

de paracircmetro no ajuste da linha de corte observamos o uso da ldquofita crepe do papel do tipo lsquoo-

ficiorsquo e do papel alumiacuteniordquo Esses materiais satildeo colocados sobre a linha de corte da ferramen-

ta e depois de movimentaacute-la eles verificam a sua aparecircncia Por exemplo a ldquofita creperdquo ras-

gada indica o que deve ser feito em termos de ajuste ocorrendo o mesmo se ela estiver intacta

ou esticada Em uma determinada situaccedilatildeo um ferramenteiro se dispocircs a nos demonstrar co-

mo ele usava a ldquofita creperdquo para verificar o ajuste da linha de corte Apoacutes nos mostrar o estado

em que ficou a ldquofita creperdquo e fazer a sua anaacutelise ele nos disse o seguinte ldquoViu Ela quase natildeo

foi tocada agora vocecirc pode perguntar para a maioria dos ferramenteiros aqui dentro pelo me-

nos os mais experientes tenho certeza todo mundo vai dizer para natildeo ajustar maisrdquo Este fer-

ramenteiro fez um sinal com a matildeo para que um outro ferramenteiro se aproximasse de onde

estaacutevamos e neste iacutenterim nos sugeriu que perguntaacutessemos a este ferramenteiro mostrando-

lhe a ldquofita creperdquo em que ponto estava o trabalho de ajustagem da linha de corte Apoacutes fazer-

mos a pergunta ouvimos o seguinte comentaacuterio

Pela minha praacutetica posso te dizer que esse ajuste estaacute basicamente pronto agora eacute no leiaute Vocecirc pode usar outro tipo papel sabia Eacute bom fazer esses testes Soacute com a medida do desenho natildeo daacute para dizer se taacute bom Chega uma hora que esse trabalho tem que ser devagar mesmo ah Natildeo sei se vocecirc sabe mas o corte pode ser ajustado com tinta tambeacutem Natildeo vou falar que eacute um segredo porque muito fer-ramenteiro sabe mas isso eacute soacute na praacutetica mesmo (Ferramenteiro)

Observamos que os ferramenteiros elaboram outros ldquogabaritosrdquo a partir de uma rea-

propriaccedilatildeo de ldquogabaritosrdquo postos pelo trabalho prescrito A situaccedilatildeo que melhor expressa essa

possibilidade manifestou-se tambeacutem no ajuste da linha de corte da ferramenta Primeiramen-

te este trabalho como jaacute foi dito anteriormente eacute apontado no trabalho prescrito como a ser

definido pelo ferramenteiro Segundo que em relaccedilatildeo a este tipo de trabalho existe um saber

borda externa do disco Entretanto dados os fenocircmenos fiacutesicos no comportamento da chapa de accedilo a medida da linha de corte eacute sempre objeto de estudos anaacutelises da engenharia e dos ferramenteiros

148

tido como cientiacutefico formalizado pelo trabalho prescrito em forma de tabelas que apenas se

aproximam do real Todavia o trabalho prescrito indica ainda o uso de recurso material uma

ldquopasta coloridardquo para fazer o controle desse trabalho de ajustagem da linha de corte da ferra-

menta

Eacute importante salientar que o uso desses gabaritos pelos ferramenteiros muitas vezes eacute

acompanhado do uso dos sentidos corporais tais como ldquoa visatildeo o tato e a audiccedilatildeordquo Vejamos

um depoimento de um ferramenteiro sobre a sua forma de ajustar a linha de corte da ferra-

menta

O ajuste da linha de corte eacute o seguinte no projeto as medidas estatildeo todas maiores e aiacute eacute a gente que define Soacute que o seguinte de acordo com o projeto a peccedila macho deve descer 10 miliacutemetros eu soacute desccedilo 1 mm por que no iniacutecio o ajuste entre a peccedila macho e a peccedila fecircmea estaacute muito justo pode ateacute estragar a ferramenta Antes de descer a peccedila a gente passa uma pasta vermelha em uma das partes entatildeo depois que vocecirc separa as partes uma delas fica marcada de vermelho no lugar mostrando a parte que deve ser ajustada Ai eacute que tem outro pulo do gato vocecirc natildeo ir soacute pela marca vermelha porque tem diferenccedila tem um vermelho que eacute mais fraco outro mais escuro ou mais forte E daiacute Acontece que se o cara natildeo for maldoso natildeo for experiente ele natildeo repara direito que tem mais de um vermelho e tira co-mo base o vermelho fraco ele soacute vai ver esse erro na hora que a peccedila sair com rebarba Ele vai dizer que fez tudo certo e fez mesmo soacute que ele natildeo viu ou natildeo sabe que de acordo com a pressatildeo do ajuste a cor da pasta muda (Ferramenteiro)

Ao comentar o que o teria levado a desenvolver esse tipo de saber este ferramenteiro

nos relatou o seguinte

Eacute depois que eu matei algumas eu aprendi isso eu passei a deixar bem escuro porque eu sei que estaacute forccedilando agraves vezes ateacute range na entrada O que eacute ranger Eacute quando a peccedila entra raspando outra peccedila tocando a outra peccedila forccedilando mesmo Entatildeo vocecirc percebe que tem interferecircncia eacute uma peccedila empurrando a outra se natildeo range eacute o quecirc Estaacute uma passando bem proacutexima da outra mas sem tocar sem es-barrar Entatildeo aquele vermelho fica escuro porque uma peccedila toca a outra com muita forccedila (Ferramenteiro)

De um modo geral os ferramenteiros demonstraram que o uso de um determinado sa-

ber taacutecito eacute mediado por estrateacutegias de formalizaccedilatildeo dos seus saberes taacutecitos que dentre ou-

tros objetivos coloca-se como uma forma de os deixar mais seguros no uso destes saberes

Um dos nossos entrevistados ao tentar explicar o porquecirc da sua confianccedila na coloraccedilatildeo das

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peccedilas acabou por nos indicar mais elementos que vinculam o uso de sentidos do corpo com

momentos de abstraccedilatildeo sobre o funcionamento da ferramenta

Isso eacute garantido mesmo natildeo falha natildeo Vocecirc pode usar a tinta vermelha ou a azul A tinta azul eacute bom para trabalhar agrave noite porque o azul quando ele passa uma parte para outra forccedilando mesmo para rangir ele fica branco entatildeo ele mostra a parte do accedilo que estaacute refilado O vermelho para o dia eacute melhor porque ele fica preto entatildeo eacute mais faacutecil identificar o preto do vermelho entatildeo vocecirc sabe que ali tem uma parte-zinha para sair Para um ferramenteiro experiente eacute bem faacutecil porque natildeo tem co-mo errar a diferenccedila de coloraccedilatildeo ela eacute bem notoacuteria entatildeo o ferramenteiro ele sabe distinguir o vermelho normal que foi a tinta que ele passou inicialmente e o ver-melho escuro que eacute onde estaacute refilando que eacute onde deveria ser tirado (Ferramen-teiro)

Por outro lado observamos ainda que os ferramenteiros mesmo se valendo dos ldquodiaacute-

rios de bordo dos croquisrdquo ou dos seus ldquogabaritosrdquo apresentam um certo desconforto diante

da complexidade do trabalho de ferramentaria

Esse eacute o sofrimento do ferramenteiro ele soacute vai ter certeza daquilo que ele fez mediante ao resultado Se ele estaacute em duacutevida todos noacutes temos duacutevidas mas vocecirc tem que executar pra saber se realmente aquilo vai ser um resultado satisfatoacuterio Existem situaccedilotildees que natildeo tem jeito de fazer um raio o modelo do carro que eles estatildeo querendo o ferramental natildeo consegue executar por isso que tem que ter todo um processo antes disto que eacute o processo de protoacutetipo para saber se realmente vai conseguir fazer (Ferramenteiro)

Se em alguns depoimentos os ferramenteiros lamentam que a certeza na ferramenta-

ria soacute eacute dada pelo produto final por outro lado percebemos tambeacutem que eles valorizam a

sua praacutetica no chatildeo de faacutebrica como um momento educativo ldquoO ferramenteiro aprende todo

diardquo Dessa forma o ldquover na praacuteticardquo menos do que um limite pode ser tomado como uma

etapa na elaboraccedilatildeo das suas estrateacutegias de produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes

taacutecitos Ateacute porque observamos que os ferramenteiros buscam fazer pequenos testes micro-

experiecircncias com provaacuteveis situaccedilotildees que envolvem a construccedilatildeo da ferramenta E ainda ve-

rificamos que muitos saberes taacutecitos para serem desenvolvidos demoraram anos de trabalho e

demandaram muitas observaccedilotildees Segundo a fala de um dos ferramenteiros ldquoTem um tempatildeo

que eu jaacute vinha observando esse negoacutecio do retorno de chapa entatildeo eu fui pegando a manha

150

de como a chapa se comportardquo Em um outro depoimento ldquoTem coisas que a gente desconfia

vocecirc observa um dia ali depois fala com colega aqui e fica com aquilo na cabeccedila Agraves vezes eacute

laacute no final que vocecirc compreende tudo eacute laacute no final que vocecirc vecirc que uma coisa que vocecirc jaacute

desconfiava tinha um certo sentido uma certa loacutegicardquo

Dessa forma fica constatado natildeo soacute que os saberes taacutecitos se inscrevem ao longo da

vida dos ferramenteiros bem como se verifica um princiacutepio racional que alimenta estes sabe-

res Observamos que estes saberes ainda que natildeo formalizados numa linguagem cientiacutefica ou

precariamente formalizados pelas estrateacutegias dos ferramenteiros natildeo satildeo na maioria dos ca-

sos soluccedilotildees produzidas em alguns minutos ou para ser mais contundente estes saberes natildeo

satildeo um lance de uacuteltima hora Daiacute decorrem as constantes referecircncias que ferramenteiros mes-

tres e gerecircncia fazem agrave experiecircncia desses profissionais na ferramentaria

Gostariacuteamos de relembrar que se ateacute entatildeo apresentamos em toacutepicos isolados as es-

trateacutegias dos ferramenteiros para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos eacute

porque como jaacute dissemos buscamos uma forma de tornar mais claras as situaccedilotildees deste com-

plexo campo de trabalho que eacute a ferramentaria Neste sentido eacute necessaacuterio salientar que nos-

sa pesquisa de campo aponta que as estrateacutegias de produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo se

articulam entre si Por fim a possibilidade de que ferramenteiros criem estrateacutegias tambeacutem

taacutecitas para produzir mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos indica natildeo soacute a distacircncia

entre o trabalho prescrito e o trabalho real bem como revela o seu caraacuteter histoacuterico social

cultural e subjetivo o que nos permite afirmar que o trabalho dos ferramenteiros se articula

como diz Santos (1997) ao movimento da vida Para finalizar um uacuteltimo depoimento de um

ferramenteiro sobre a insuficiecircncia do trabalho prescrito em determinar as medidas da linha de

corte da ferramenta

O certo seria pela folga que a tabela indica entendeu Soacute que nunca daacute aiacute se jaacute der rebarba natildeo tem como acertar isso mais natildeo Que dizer igual eu te falei para dar certo chega uma hora o projeto deixa de existir Essas coisas satildeo assim vocecirc erra ali faz um teste aqui quando vocecirc assusta vocecirc jaacute estaacute sabendo muita coisa (gri-fo nosso)

151

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ocultar o modo de presenccedila na Histoacuteria de certas classes ou camadas sociais eacute sem duacutevida um meio de lhes negar um papel Questatildeo poliacutetica sim mas que envolve uma outra epistemoloacutegica Se a cultura integra mal as transformaccedilotildees sociais e humanas que satildeo tecidas em niacutevel das forccedilas produtivas noacutes podemos falar de uma cultura empobrecida E se a ciecircncia eacute uma forma de cultura eacute provaacutevel que a uma cultura pobre corresponda uma ciecircncia empobrecida A articulaccedilatildeo entre estas duas dimensotildees eacute portanto necessaacuteria (Schwartz apud Santos 1997 p 123)

Acreditamos que nossa pesquisa atingiu em boa medida o objetivo de identificar as

estrateacutegias tambeacutem taacutecitas elaboradas pelos ferramenteiros da Empresa T para produzir

mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos Mesmo reconhecendo as limitaccedilotildees do nosso

trabalho entendemos que a anaacutelise dos dados obtidos na pesquisa pode contribuir para o

debate em diversos foacuteruns e segmentos sociais

Assim identificamos caminhos que chamamos de estrateacutegias criados pelos

trabalhadores ferramenteiros a partir da sua relaccedilatildeo com o cotidiano de trabalho para produzir

mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos aleacutem de apresentar situaccedilotildees nas quais os

trabalhadores reuacutenem condiccedilotildees de reapropriar saberes oriundos da ciecircncia e da tecnologia

Neste sentido ao nosso ver evidenciamos as vaacuterias possibilidades de o trabalho se constituir

como um espaccedilo educativo

Acreditamos que trouxemos elementos que podem ser aproveitados pelas poliacuteticas

puacuteblicas e privadas de educaccedilatildeo profissional tais como o uso dos sentidos como a visatildeo o

tato a audiccedilatildeo a influecircncia da dimensatildeo do coletivo de trabalho assim como o recurso a

formas racionais ainda que distintas da formalidade cientiacutefica quando se trata de produzir

mobilizar e formalizar saberes pelos trabalhadores no trabalho Consideramos tambeacutem que

152

essa pesquisa possa se somar agravequelas voltadas para a educaccedilatildeo de jovens e adultos agrave medida

que demonstra as possibilidades de formaccedilatildeo humana presentes no trabalho o que se traduz na

importacircncia de se considerar o trabalho como dimensatildeo fundamental nas experiecircncias de

educaccedilatildeo de jovens e adultos Por fim acreditamos que ao identificar o poder de produzir

mobilizar e formalizar saberes taacutecitos praacutetica que envolve atividade de criaccedilatildeo interpretaccedilatildeo

e reflexatildeo dos trabalhadores ferramenteiros chamamos a atenccedilatildeo para a necessidade de se

levar em consideraccedilatildeo os seus pontos de vista sobre o trabalho e sobre a educaccedilatildeo em

qualquer proposta de formaccedilatildeo de trabalhadores

Acreditamos ainda que nossa pesquisa traz elementos que auxiliam os trabalhadores

e as suas entidades representativas a refletir sobre a presenccedila e o valor de saberes taacutecitos no

processo produtivo contribuindo para a construccedilatildeo de estrateacutegias que possam como diz

Santos (1997) resgatar o valor epistemoloacutegico social econocircmico poliacutetico e cultural do saber

do trabalhador Neste sentido ressaltamos o caraacuteter histoacuterico social e subjetivo dos saberes

taacutecitos refutando a tendecircncia a considerar este tipo de saber de forma naturalizada Por fim

salientamos que os trabalhadores capazes que satildeo de dialogar com saberes de diversas

ordens se apresentam como interlocutores privilegiados na construccedilatildeo do projeto de

sociedade que queremos sobretudo no que se refere aos assuntos ligados ao trabalho

Haacute que se dizer que ao mesmo tempo em que a complexidade teacutecnica da

ferramentaria enriqueceu esta pesquisa ela tambeacutem nos exigiu um enorme esforccedilo para

interpretar os dados que coletamos bem como para tornar o nosso texto compreensiacutevel Como

acreditamos ter evidenciado satildeo poucas as atividades industriais que apresentam tatildeo intenso

apelo agrave sofisticaccedilatildeo tecnoloacutegica e ao mesmo tempo um consideraacutevel reconhecimento de

saberes oriundos da experiecircncia do ldquochatildeo de fabricardquo como eacute o caso da ferramentaria

Podemos afirmar que a nossa pesquisa corrobora as reflexotildees de Aranha 1997

Santos 1997 Daniellou Teiger e Laville 1989 Lima 1998 que apresentam a distacircncia entre

153

o trabalho prescrito e o trabalho real como um fator que solicita dos trabalhadores o uso de

saberes taacutecitos nas lacunas deixadas neste caso pela prescriccedilatildeo do desenho da ferramenta Os

limites do trabalho prescrito se evidenciaram ainda mais agrave medida que constatamos que a

proacutepria gerecircncia reserva um espaccedilo para que os ferramenteiros faccedilam eles proacuteprios uma

prescriccedilatildeo para o andamento da construccedilatildeo da ferramenta como por exemplo no try-out

Constatamos tambeacutem que a maioria dos ferramenteiros principalmente os mais experientes

satildeo cocircnscios dos limites do trabalho prescrito

Curioso observar que os ferramenteiros mobilizam uma parte dos seus saberes taacutecitos

antes mesmo de emergirem as demandas do trabalho real ao interpretarem o trabalho

prescrito notoriamente o desenho da ferramenta Podemos inferir que se eles usam os seus

saberes taacutecitos para interpretar o desenho da ferramenta antes que esse tipo de prescriccedilatildeo se

mostre distante do trabalho real isso significa que os seus saberes taacutecitos satildeo mobilizados

todo o tempo independentemente de constatarem as lacunas do trabalho prescrito Em nosso

entendimento ao inveacutes de demonstrar uma submissatildeo agrave prescriccedilatildeo confere-se aos saberes dos

ferramenteiros uma exigecircncia de reflexatildeo nem sempre percebida imediatamente

Em nossa pesquisa foi possiacutevel verificar que de fato os ferramenteiros tecircm uma

grande dificuldade de explicitar os saberes taacutecitos Diversas vezes observamos que falta a eles

e tambeacutem aos engenheiros termos para expressar uma determinada situaccedilatildeo Entretanto

verificamos que essa dificuldade em explicitar os saberes taacutecitos natildeo impede que os

ferramenteiros os mobilizem ou os comuniquem na relaccedilatildeo que manteacutem com o seu coletivo

de trabalho O uso dos termos ldquoesforccedilo de abstraccedilatildeordquo ldquovisualizaccedilatildeo em 3Drdquo ldquomelhor jeito de

trabalharrdquo expressa que por meio de suas proacuteprias estrateacutegias eles podem com as linguagens

que lhes satildeo disponiacuteveis formalizar os seus saberes taacutecitos Daiacute podermos afirmar que o uso

dessas estrateacutegias representa natildeo soacute uma tentativa dos ferramenteiros de formalizar os seus

saberes mas indica tambeacutem que eles tecircm uma certa consciecircncia dos limites e possibilidades

154

dos diversos tipos de linguagem Em alguns casos a nossa experiecircncia de operaacuterio somada ao

tempo que ficamos imersos no campo de pesquisa foram fundamentais para acessarmos parte

das linguagens e dos coacutedigos usados pelos ferramenteiros da Empresa T

Se por um lado como jaacute dissemos nossa pesquisa foi enriquecida pela complexidade

teacutecnica da ferramentaria que exige que os ferramenteiros criem estrateacutegias para dar conta da

produccedilatildeo por outro lado essa mesma complexidade se transfere para a temaacutetica do saber

taacutecito o que nos colocou diante de desafios nem sempre facilmente equacionados

Confessamos que muitas vezes a riqueza dos dados coletados natildeo ganhou uma

correspondecircncia de riqueza da anaacutelise

Verificamos que algumas situaccedilotildees se mostraram mais intensas durante o trabalho de

campo do que pudemos explicitar na escrita da dissertaccedilatildeo como por exemplo a relaccedilatildeo do

uso do corpo com a criaccedilatildeo de estrateacutegias para produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de

saberes Alguns atributos fiacutesicos podem demandar o uso de um determinado tipo de saber

taacutecito ou mesmo explicar em parte as diferenccedilas entre as estrateacutegias usadas pelos

ferramenteiros Ao observamos que eles buscam uma melhor posiccedilatildeo para por exemplo

identificar uma falha na superfiacutecie de uma peccedila podemos inferir que a partir de uma mesma

distacircncia do alvo no caso a ferramenta alturas diferentes resultam em acircngulos diferentes

Eacute importante dizer que essa dissertaccedilatildeo apresenta alguns limites que podem vir a

constituir objetos para futuras pesquisas Nesse sentido por exemplo o nosso trabalho de

campo evidenciou a importacircncia do uso do corpo nas estrateacutegias que os ferramenteiros criam

para produzir mobilizar e formalizar os sus saberes taacutecitos No entanto tivemos imensa

dificuldade em encontrar na literatura especializada subsiacutedios que nos permitissem avanccedilar na

anaacutelise desse fenocircmeno

Ainda um outro limite da nossa pesquisa deu-se pela dificuldade posta pela anaacutelise das

estrateacutegias de formalizaccedilatildeo Uma parte dessa dificuldade pode ser tributada agrave dimensatildeo

155

imaterial de algumas estrateacutegias como por exemplo a ldquomemoacuteriardquo e a ldquoreflexatildeordquo Uma anaacutelise

mais aprofundada sobre os limites e as possibilidades dessas estrateacutegias e da contribuiccedilatildeo

delas para a formalizaccedilatildeo de saberes taacutecitos resta por fazer Por outro lado mesmo as

estrateacutegias revestidas de uma materialidade como os ldquodiaacuterios de bordordquo os ldquocroquisrdquo e os

ldquogabaritosrdquo apresentaram uma dificuldade para serem analisados uma vez que natildeo foi faacutecil

compreendermos totalmente como essas estrateacutegias se articulam entre um uso individual e um

compartilhamento coletivo no esforccedilo dos ferramenteiros para formalizarem os seus saberes

taacutecitos

Por fim uma outra dificuldade de analisar as estrateacutegias de formalizaccedilatildeo foi posta pela

linguagem muitas vezes extremamente teacutecnica nos depoimentos o que dificultou natildeo soacute a

exposiccedilatildeo desses depoimentos mas tambeacutem a anaacutelise dos dados e a da nossa redaccedilatildeo da

dissertaccedilatildeo E ainda em alguns casos as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros e que

poderiam ilustrar a nossa anaacutelise eram formalizadas em linguagens compreensiacuteveis apenas

para estes profissionais

Todavia mesmo diante das dificuldades encontradas ao longo dessa pesquisa

podemos afirmar que os ferramenteiros da empresa T criam estrateacutegias tambeacutem taacutecitas para

produzir mobilizar e formalizar os seus saberes taacutecitos Ousamos afirmar tambeacutem que os

saberes produzidos mobilizados e formalizados pelos ferramenteiros diversas vezes

colocados agrave prova no processo de trabalho expressam uma racionalidade ainda que distinta

dos padrotildees formais da ciecircncia Verificamos ainda que uma parte dessas estrateacutegias eacute

parcialmente formalizada e transformada em um procedimento utilizado frequumlentemente pelos

ferramenteiros e que as suas estrateacutegias de produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes

taacutecitos lhes datildeo a confianccedila necessaacuteria para realizar o seu trabalho

156

Obs 1 Caro Eduardo favor incluir esse texto antecedendo a figura 1 2 3 4 e 5 Achei melhor que esse texto vaacute para depois de todas as citaccedilotildees na pg 117 antecedendo o toacutepico Melhor jeito de trabalhar Outra coisa a definiccedilatildeo das figuras em 3d ficaria melhor se elas fossem divididas duas por paacuteg Apesar de que na Empresa T haacute um software que fornece um desenho em 3D os ferramenteiros

conseguem esse tipo de projeccedilatildeo por meio de uma abstraccedilatildeo ou como eles dizem ldquovisualizando

em 3Drdquo Para ilustrar a estrateacutegia de ldquovisualizar em 3Drdquo tomemos como exemplo as Figuras 1

2 3 4 e 5 A Figura 1 corresponde ao desenho de uma ferramenta posto em uma forma plana

isto eacute bidimensional As Figuras 2 3 4 e 5 correspondem agrave Figura 1 em uma forma

tridimensional Eacute importante comentar que o avanccedilo das figuras indica uma visualizaccedilatildeo mais

depurada da ferramenta ou seja para se chegar agrave visualizaccedilatildeo em 3D da Figura 4 eacute necessaacuterio

uma maior capacidade de abstraccedilatildeo do ferramenteiro

Obs 2 Em relaccedilatildeo a pg 131 favor incluir fig 5 no iniacutecio da pg

() Estes saberes nos foram explicitados (fig 5) ainda que somados aos saberes

Obs 3 manter no texto do jeito que estaacute ou seja apenas fig 6

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160

  • 1 parte corrigidodoc
    • Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Conhecimento e Inclusatildeo social
    • SUMAacuteRIO
      • Agradecimentosdoc
      • Cap 01doc
        • Eacute salutar que um trabalho de pesquisa para ser apreendido em sua totalidade seja abordado desde a sua concepccedilatildeo O objeto dessa pesquisa qual seja as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros de uma induacutestria metaluacutergica da regiatildeo metropolitana de Belo Horizonte para a produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e organizaccedilatildeo de seus saberes no trabalho surgiu de uma perspectiva aberta pelo encontro da nossa formaccedilatildeo escolar da vivecircncia como trabalhador de uma induacutestria metaluacutergica com o debate sobre o mundo do trabalho o que gerou um interesse em compreender os saberes produzidos no processo de trabalho Neste sentido entendemos que eacute importante fazer uma recuperaccedilatildeo de uma parte dessa experiecircncia no setor fabril da nossa inserccedilatildeo no universo teoacuterico sobre o mundo do trabalho e a dimensatildeo que esse encontro tomou na construccedilatildeo do objeto que norteia esta pesquisa
        • A nossa formaccedilatildeo iniciou-se no Senai aos 14 anos de idade por meio do curso de Torneiro Mecacircnico de um ano e meio e posteriormente no periacuteodo da noite mais um ano de Frezador Mecacircnico Logo depois iniciamos tambeacutem no turno da noite o Curso Teacutecnico em Mecacircnica no Cefet-MG A esta formaccedilatildeo somou-se a nossa entrada no trabalho ocorrida aos 15 anos de idade Nesse periacuteodo o nosso discernimento a respeito do trabalho comeccedilou a ganhar contornos mais elaborados influenciado pelo intercacircmbio que havia entre noacutes colegas de trabalho e de curso o que produzia uma troca de informaccedilotildees ricas e variadas
          • Se por um lado entendemos como necessaacuterio apresentar a nossa problematizaccedilatildeo sobre a hipoacutetese de que os ferramenteiros possam desenvolver estrateacutegias para produzir mobilizar e formalizar seus saberes por outro lado eacute importante salientar que ao definirmos as estrateacutegias usadas pelos ferramenteiros como produccedilatildeo mobilizaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo de saberes natildeo buscamos demarcar uma separaccedilatildeo hermeacutetica entre elas e sim analisar se as suas semelhanccedilas e diferenccedilas se articulam Por este motivo apresentaremos um breve debate sobre essas trecircs categorizaccedilotildees
          • 13 O referencial teoacuterico
          • 14 As estrateacutegias metodoloacutegicas
            • 142 Instrumentos de pesquisa
              • Cap 02doc
                • Eacute mesmo agrave praacutetica que por definiccedilatildeo se refere o saber fazer () Em numerosos casos o saber-fazer designa uma competecircncia global um ofiacutecio ou uma destreza num domiacutenio mais ou menos amplo da praacutetica humana () Os saberes-fazer satildeo portanto para noacutes actos humanos disponiacuteveis em virtude de terem sido apreendidos (seja de que maneira for) e experimentados (p 79)
                • Sobre a fecundidade da relaccedilatildeo entre linguagem e trabalho Faita e Souza-e-Silva (2002) afirmam que ldquoDiversos fatores podem explicar a emergecircncia de tal interesse o mais importante deles encontra-se no peso e na importacircncia que as atividades de simbolizaccedilatildeo passaram a ter na realizaccedilatildeo do trabalhordquo (p 7) Ainda que o interesse dos linguumlistas pelo trabalho como objeto de estudo seja um fenocircmeno recente a literatura sobre essa temaacutetica jaacute acumula importantes reflexotildees para apontar a diversidade de enfoques e de campos de intervenccedilatildeo caracteriacutesticos da aacuterea Dentre as vaacuterias possibilidades de contribuiccedilatildeo para esta pesquisa uma foi acolhida com maior profundidade pois nos permitiu analisar a relaccedilatildeo entre o trabalho e a linguagem em uma perspectiva multifacetada Trata-se de uma abordagem defendida por Nouroudine (2002) que apresenta uma triparticcedilatildeo da relaccedilatildeo trabalholinguagem cujos eixos seriam dados pelas modalidades ldquolinguagem como trabalhordquo ldquolinguagem no trabalhordquo e ldquolinguagem sobre o trabalhordquo
                • Para Lacoste apud Nouroudine (2002) a elaboraccedilatildeo dessa triparticcedilatildeo ldquopermitiu remediar confusotildees disseminadas separando como verbalizaccedilatildeo falas provocadas e exteriores agrave situaccedilatildeo e como comunicaccedilatildeo falas que fazem parte da atividade de trabalhordquo (p 17) De acordo com Nouroudine (2002 p 18) a distinccedilatildeo entre esses trecircs aspectos da linguagem atende a uma opccedilatildeo metodoloacutegica que busca identificar os mecanismos de funcionamento da relaccedilatildeo trabalholinguagem e ainda a um interesse epistemoloacutegico na medida em que poderia evidenciar as ligaccedilotildees e as diferenccedilas desses mecanismos de funcionamento Neste sentido eacute importante salientar que de modo algum os diferentes aspectos da relaccedilatildeo trabalholinguagem satildeo estanques entre si e sim que existe uma estreita ligaccedilatildeo entre os trecircs aspectos da linguagem embora como afirma Nouroudine (2002) cada um deles possa aparentar ainda problemas de ordem praacutetica e epistemoloacutegica bem distintos No que se refere agrave nossa pesquisa a distinccedilatildeo entre as vaacuterias dimensotildees da relaccedilatildeo linguagem e trabalho pode lanccedilar luzes sobre a explicitaccedilatildeo ou natildeo dos saberes taacutecitos pois nos facilita compreender as estrateacutegias que os trabalhadores mobilizam para viabilizar a comunicaccedilatildeo de saberes no trabalho Essa triparticcedilatildeo considera que respectivamente haacute linguagens que fazem o trabalho que circulam no trabalho e que interpretam o trabalho as quais seratildeo explicadas a seguir
                  • 244 Comentaacuterios sobre as estrateacutegias taacutecitas
                      • Cap 03doc
                        • 332 A Empresa T
                          • Cap 04doc
                          • Cap 05 Consideraccedilotildees finais definitivadoc
                          • Observaccedilotildeesdoc
                          • Referecircncias bibliograacuteficasdoc
                            • REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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