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  • –PAULOFREIREESÉRGIOGUIMARÃES

    DIALOGANDOCOMAPRÓPRIAHISTÓRIA

    PAZETERRA

  • 11-08604

    Copyright©EditoraVilladasLetras/©SérgioGuimarães

    DireitosdeediçãodaobraemlínguaportuguesanoBrasiladquiridospelaEditoraPazeTerra.Todososdireitosreservados.Nenhumapartedestaobrapodeserapropriadaeestocadaemsistemadebancodedadosouprocessosimilar,emqualquerformaoumeio,sejaeletrônico,defotocópia,gravaçãoetc.,semapermissãododetentordocopirraite.

    EDITORAPAZETERRALTDARuadoTriunfo,177—StaIfigênia—SãoPauloTel:(011)3337-8399—Fax:(011)3223-6290http://www.pazeterra.com.br

    TextorevistopelonovoAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesa.

    CIP-BRASIL.CATALOGAÇÃONAFONTESINDICATONACIONALDOSEDITORESDELIVROS,RJ

    Freire,Paulo,1921-1997.

    Dialogandocomaprópriahistória[recursoeletrônico]/PauloFreire,SérgioGuimarães.-1.ed.-RiodeJaneiro:PazeTerra,2013.recursodigital

    Formato:ePubRequisitosdosistema:AdobeDigitalEditionsMododeacesso:WorldWideWeb

    ISBN978-85-7753-218-6(recursoeletrônico)1.Educadores-Brasil.2.Educação–AméricaLatina.3.Educação-Finalidadeseobjetivos.4.Livroseletrônicos.I.Guimarães,Sérgio.II.Título.

    CDD370.981

    Índicesparacatálogosistemático:1.Brasil:Educadores:Entrevistas370.981

    http://www.pazeterra.com.br

  • ÀSMENINASEAOSMENINOSQUENÃOCONSEGUIRAMIRÀESCOLA,EATODOSOSTRABALHADORESQUE,DAGRÁFICAÀEDITORA,FIZERAMCONOSCOESTELIVRO.

  • SumárioApresentação

    CapítulozeroUmconviteaodiálogo,buscandonamemória

    1. Umaquestãodegostosura2. Nemmelhoresnempiores:diferentes3. Umbaitaerro:esquecerasubjetividade4. “Falacomoutros,paraquenãoenlouqueças!”5. UmaentrevistacomPiageteasarapucasda

    memória6. Odireitoàmemóriaeageraçãodacarapintada7. Autopia,osonhoeapedagogiadehoje8. Todoummovimento,atrásdascortinasdoslivros

    1AINDAOCHILE,OSESTADOSUNIDOSEOBRASIL

    1 Momentodecisivo:umareuniãodefamília2 “Issonãoexisteemlínguainglesa!”3 IraosEstadosUnidos?“Euquasedissenão!”4 Ofrioeabarba,otrabalhoeasaúde5 Numaépocadenoitemaisnegra

    2ENQUANTOISSO,NOBRASIL:HISTÓRIASDOINTERIOR

    1 Pequenascoisasdojornalismo:avisitadeumpaidesesperado

    2 Anotíciaatrásdorepórtere“umabombaparavocê!”

  • 3 Amortedomeninoeoinstintodeclasse4 “Briguemos,lutemos?”:acoragemdarebeldia

    3ESTADOSUNIDOS,PASSAGEMPERMANENTE

    1 Paraalémdasuniversidades,fimdesemanaemguetonegro

    2 Democracia:“asociedadeamericanatemmuitoqueandar,muitoquerefazer”

    3 LutherKing,MalcomXeaespiraldaviolência4 Àesquerdaouàdireita,“golpedeEstado,nunca!”5 IdaàEuropa:asportasdomundoeodireitodenão

    serburocrático6 Aciênciaeobem-estardafé:“serpadre,não,porque

    nãocasa”

    4EUROPA,AEROPORTOPARAOMUNDO

    1 Muriatãs,bem-te-vis,sabiás:umapaixãopelospassarinhos

    2 AssobiandoumasuítedeBach:“Professor,cuidadocomavoz!”

    3 Terceiromomento,dezanosnaEuropa:“Eununcatalveztenhasidotãolivre!”

    4 APedagogiadooprimidoeoanúnciodaquedadomuro

    5ESPANHA:AAGONIADOFRANQUISMO

  • 1 Dezenovelatino-americanosnoladobascoeumanarquistadefendendoaordem

    2 AOpusDei,DonMigueleaRevoluçãodosCravos3 Umpesoenormenabagagemdemão

    6FRANÇA:ABUSCADALIBERDADEEMSALADEAULA

    1 Leportugaiselebrésilien:umtrabalhodeanimaçãocultural

    2 Primeiro,umcursomagistral;depois,abuscadenovasformas

    3 Índio,Pelé,futebol:umacoleçãodecacos4 “Eunãoabriaaboca,ninguémabriaaboca”5 “Nãosoufacilitador.Eusouéprofessor!”6 Umsuicídio“lento,gradualeseguro”

    7ÁFRICA,OPRÓXIMOVOO

    1 Angola,Guiné,SãoTomé,“paísesdetintafresca”2 Pedrinhasdeaçúcar,caféeumcigarroatrásdooutro3 “Efuimorarnoutromundo.Nomundodosquenão

    fumam”

    NOTAFINAL:LIÇÃODECASA

    1 “Oresultadoaquiestá,definitivamenteinacabado”2 “Ficarcomoqueestávivo,estaéadecisão!”

  • APRESENTAÇÃOSE EXAMINARMOS A BIBLIOGRAFIA de Paulo Freire, constatamos que a voltadefinitivadeleparaoBrasil,em1980,inauguraumanovafase,comumnovomodo de trabalhar suas ideias político-educativas: os “livros falados”.Enfatizo, entretanto, que estes não significamnenhuma rupturanaunidadequecaracterizatodaasuaobra—apedagogiadooprimido.Estefoimaisqueumtemaquepermeiatodaasuaobra,foiarazãodeserdela.

    Coerentecomoquedeclarou,emocionadamente,em1979,ao tocarestaterra tão amada, após os quase dezesseis anos de exílio: “Volto para re-aprender o Brasil”, Paulo esteve algum tempo presenciando, auscultando eobservandoanossarealidade.Sobretudo,escutandoatodoseatodasquelhequisessem falar ou criticar. Exercitando a reflexão sobre os problemasmaisamplosapartirdocotidianoconcreto,comolheeracaracterístico,paraentãocriar o novo. Pouco escreveu, por isso mesmo, nesse tempo de re-aprendizagem. Preferiu, prudentemente, pensar com a nova realidade queencontrara em seu “contexto de origem”, pois tinha sido muito longo operíodonoqualviverasem“nuncavoltarparacasa”presoaoseu“contextodeempréstimo”,paraentãopronunciarasuanovapalavra.

    Por outro lado, Sérgio Guimarães, que o tinha lido ainda adolescentequando fazia o seu curso normal no interior de São Paulo, havia mantidoposteriormentecontatospessoaiscomPaulo.Comoprofessordecivilizaçãoeliteratura brasileira, em Lyon, Sérgio levava suas alunas e seus alunosuniversitáriosparadialogarcomPaulo,emGenebra.Emfevereirode1978foiavezdopróprioPaulo—queentãotrabalhavaparaoConselhoMundialdasIgrejas—visitar essesmesmos estudantesnaFrança. Sérgioouvia, discutia,anotava, gravava, enfim, registrava o ocorrido na França e na Suíça paradepoisanalisartudocomessesmesmosestudantes.

    Inspiradonessa suapráticapedagógica enos célebresdiálogosdePlatãocomovelhoSócrates,Sérgiofez,em1981,umapropostaousada:“Paulo,porque não passamos para o papel as nossas discussões?Ao invés de cada umescreversozinho,agentepodiapôremlivroanossapráticadediálogo.Alémde ser uma formamais dinâmica de comunicação, talvez seja demais fácilleitura, por ter base oral e portanto ser considerada pelos leitores que se

  • iniciamnocampopedagógicocomomenos‘pretensiosa’.”EstavainauguradaestanovaformadePauloescreverseupensamentoético-políticodeeducador.Assim, publicou-se no Brasil, em 1982, o primeiro “livro falado” de nossahistóriadapedagogia,Sobreeducação:diálogos.1

    Sei que Sérgio se orgulhadeduas coisas.Primeiro, de ter sido ele quemestimulouPauloaescrever“livrosfalados”—oqueresultounumasériequePaulofezcomelepróprio,Sérgio,edepoiscomoutrosprofessores.Segundo,por ter mantido com Paulo, ao escrever esses livros, uma relação desemelhançasediferenças,nuncadehierarquiasestabelecidaspelossaberes.

    Pauloentravacoma suacapacidadedepensarecoma sua sabedoriadeanálise adquirida na sua experiência de “peregrino do óbvio”. De suaandarilhagempelomundodeRecifeaGenebra,daTanzâniaaMontreal,deRomaaCaboVerde,deCambridge/BostonaBuenosAires,deLisboaaNovaYork, de Paris àNovaDelhi, deAngola a PapuaNova-Guiné, enfim, pelos“quatro cantos domundo” até chegar a São Paulo. Sérgio entrava com suainquietudedejovempensador,queseperguntavaequestionava,porexemplo,sobreosproblemasdaeducaçãoprimárianoBrasil,assuntosobreoqualtinhagrandeconhecimento,vivênciaecriticidade.

    AafirmativadeSérgio,genuínocomunicadorporvocaçãoeporintenção,dita a mim há poucos meses, com satisfação e segurança: “Não fui umdiscípulo do mestre Paulo Freire. Fomos interlocutores um do outro”demonstramaisumavezquePaulonuncaadmitiuahipótese,tantasvezesaeleproposta,de“criarumaescolafreireana”.Istoé,deorganizarcírculosdedebates nos quais ele ensinaria tudo e os aprendizes reproduziriamsimplesmente o seu saber. Paulo, na sua simplicidade e sabedoria, quis, aocontrário,tersemprejuntoasi,comele,oOutroeaOutra,parasabermais.Jamais quis transformar Esta e Aquele em “narcisos”, nos quais poderiabastar-se a sipróprioaomirá-los, vangloriando-se.Quis ad-miraromundocompessoasqueexercessemtambémasuaverdadeiraautonomia.Os“livrosfalados” nos ensinam, sobretudo, isto, mas não só: contribuíram paraconcretizaçãododesejoedanecessidadedePaulode“re-aprenderoBrasil”,alémde seremo testemunhovivodeque,paraverdadeiramente ad-miraromundo,osseusdesveladorestêmdesersujeitosdaleituraquefazemdele.

  • Por tudo isso é que hoje tenho uma enorme alegria de entregar com opróprioSérgio,àsleitoraseaosleitoresdeleedemeumarido,ovolumeIIdeAprendendo com a própria história.2 As histórias de vida dos dois autores,autenticamente narradas e analisadas, continuam a ser a linha mestra dostemas abordados.Mantém-se, também, tão vivo quanto no volume I destaobra,o“balédopensamento”dePaulo.Istoé,estápreservadooestilológicodele, usado tanto para aprofundar as suas próprias ideias, quanto parapropiciar o verdadeiro diálogo como seu parceiro Sérgio, omovimento deretomardizeresjáditosparaaprofundá-los.

    NitaAnaMariaAraújoFreire

    SãoPaulo,7demaiode2000,domingo

  • Notas1 Para as edições de 2011, optou-se por trabalhar cada “livro falado” de forma independente. Dessamaneira,Sobreeducação:diálogosItornou-sePartirdainfância:diálogossobreeducação.(N.E.)

    2 Para as edições de 2011, optou-se por trabalhar cada livro de forma independente.Dessamaneira,AprendendocomaprópriahistóriaI,manteveseutítulo,massemaindicaçãodevolume;eAprendendocomaprópriahistóriaIItornou-seDialogandocomaprópriahistória.(N.E.)

  • Capítulozero

    UMCONVITEAODIÁLOGO,BUSCANDONAMEMÓRIA

    1.UMAQUESTÃODEGOSTOSURASÉRGIO:Alguémpoderiadizer:“Maisumlivro!?Jáhátantagenteescrevendo,eaindaaparecemmaisdoisescrevendoumoutro!”Sóesperoqueestenãosejaapenasmaisum,masumnovolivro,queretomeoprimeiroensaiodediálogoquenósfizemos,jácomotítuloAprendendocomaprópriahistória.3

    Por razões que vêm também da nossa própria história pessoal —sobretudotalvezdaminha,poreutersaídodoBrasil—esselivroacabounãotendo a continuidade imediata que nós esperávamos. Ficamos no primeirotítulo,quesaiuem1987,equesóretomamosagora,seisanosdepois.

    Havíamos parado o último diálogo no momento em que Paulo Freireestava saindo do Chile com destino aos Estados Unidos. A proposta écompletaressecicloapartirdaíatéhoje,sepossível.Oquetalvezvalhaapenadeixar claro, já nesta introdução, é que, desde que nós começamos com oslivros—oprimeirodeles,oPartirdainfância:diálogossobreeducação4—,jáfoi na forma de livro dialógico. O que é que para você, Paulo, significou,dentrodatuaobra,inaugurarumasériedelivrosdialógicos?Quediferençasvocêveriaentreumlivroquesefazaduasvozes,comoeste,eumlivroque—comoaPedagogiadaesperança,5 que você terminouhápouco—é feitonasolidãodeumacabeçaapenas?Oqueéquesignificaparavocêretomaressasérie de livros dialógicos? Na esteira do primeiro, chegamos juntos a fazerquatro. Com outros parceiros você também fez vários. Com base nessasexperiências,comoéquevocêencaraessaquestãodolivrodialógico?

    PAULO:Antesde lheresponder,eaosfuturos leitoresdestesegundolivroqueagenteiniciaagora;antesdedarminhaposiçãoemfacedatuaperguntadoquepensosobreumlivrodialógico,euqueriafazerumbrevecomentárioquejátemumpoucoavercomapergunta.

  • Devezemquando,atéporcausade textosqueeuestouescrevendosemoutrocompanheirodialogandocomigo,euconsultoalgunsdosvolumesquenós fizemos juntos, alguns dos outros livros que eu fiz junto com alguémcomo,porexemplooPorumapedagogiadapergunta,6escritocomoFaundez;olivrocomoIraShor,queporsinaltemumarepercussãomuitograndenosEstados Unidos e muito boa no Brasil;7 o livro com o Donaldo Macedo,Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra;8 o livro com você e oMoacirGadotti,Pedagogia:diálogoeconflito,9queéumlivrorealmentebomtambém.

    Devezemquandoeuconsultoumououtrodesseslivros,eaexperiênciade consultá-los, nomomento emque estou escrevendo sozinho, para evitarqualquerrepetiçãodesnecessária,essabuscaquedevezemquandofaçonostextosdialógicosnossos,me fezassumirduas convicções.Aprimeira é adequeeuprecisorelê-losatodos.Eutenhogostadodetalmaneiradasincursõesaessespaposdeoito,noveanosatrás,ouaolongodessesanostodos,eutenhogostado de tal forma do que temos dito juntos, que me obriguei— e voucumprir essa tarefa — a reler todos esses livros, um por um, página porpágina…Atéagoraeudiria,semnenhumapreocupaçãodepensarseoleitorestámeachandodoido,estámeachandopedante,nãoimportaoqueoleitorpensenomomento,maseuvoufazeressareleituratambémporumaquestãodegostosura!(risos)

    Équeeuachoquetemosditoqualquercoisadeformaelegante,deformasimples,queamimmesatisfaz.Umasegundaconvicçãoqueeutenho,equetemumaspectofundamentalasersublinhado,éadequenenhumdenós—osquetemosconversado—somosgênios.Nenhumdenóspensoujamaisqueesseslivrosdialógicosfossemobrasgeniais.

    Mas de uma coisa eu estou convencido: são obras tão simples, sendodialógicas,quantooseriamsefossemescritassóporcadaumdenós.Issonãoretiradesses livrinhosumvalor específico, e cadaumcontinuaa apresentarcertascontribuições—dehomenssimplesquesomos—quemeconvencemdo desacerto de certas críticas, por exemplo, que dizem: “Paulo Freireescreveu ou falou livros apenas com companheiros, amigos, que não iampolemizar”,ou“PauloFreire,depoisqueescreveuaPedagogiadooprimido,10nuncamaisdissenadadeinteressante”.

  • Veja bem, eu quero deixar bem claro para o leitor que, quando eu digoisto,nãoestouaquidebeicinhovirado,triste,zangado,amofinado,pensandoemme suicidar. (ri)Omundo todopodedizerquedepoisdaPedagogia dooprimidoeunãoescrevinada,e,pior,podeatédizerquenemaPedagogia…disse nada; essa é outra questão. É apenas a minha certeza de que nesseconjunto de livros pequenos e leves que nós fizemos— e agora queromereferiraosnossos,aosteuseaosmeus—nósdissemosalgumacoisaquevaleapenaserlida.

    Era com issoque euqueria começar este capítulo zero: euqueriadeixarclaroaosleitoresqueaminhaposiçãonesse“maisumlivrodialógico”nãoéaposição de quem se burocratizou e não resiste mais a escrever livroconversando, e não é tampouco a posição de quem quer simplesmentecumprirumdevercomaeditora,porquetinhaprometidoquehaveriamaisdeumlivro.Não,euestoudenovoengajadocontigoagora,aproveitandoatuapassagemrápidaporSãoPaulo,emfériasdeteutrabalho—sobreoqualtuvaisfalar—paradizermaiscoisasemtornodoqueagentepretendeudizernocomeço,comaqueleprimeirotítulo.

    2.NEMMELHORESNEMPIORES:DIFERENTESPAULO:Feitaessaintrodução,euquasejárespondiàperguntacentralcomquetuiniciasteestelivro.Euachoqueumlivrofaladoadois,atrês…—maisdetrêsjácomeçaasercomício…(risos)oconversadoatrês,queéolivrodoqualGadottiparticipou, éum livromuitobom…—um livro assim, conversadocom companheiros de pensamento, com companheiros de ação, comcompanheirosde sonho,éum livroque se justifica.Euatédiria: éum livronecessário.

    Eporquê?Emprimeirolugar,porqueumlivrodialógicoexplicita,põeemprática,encarnaumadasnossascertezas,apesardanãocertezaabsolutanasnossas certezas, que nos caracteriza. Esse livro dialógico é a expressão empráticadeumdosnossossonhos,queéodelutarporumasociedadeemqueaintercomunicação sejamenos difícil. E damos o testemunho aos leitores dequeépossívelsentarnumatardeeconversarsobretemasimportantes,oupelomenosquenosparecemserimportantes.

  • Segundo:équeeusouumapessoa—souemetornei,oumetorneieporisso estou sendo — uma pessoa muito dialogal, a presença de outro meinstigando,meperguntando,discordandodemim,massemraivademim…OquemeinibenaspolêmicaséaraivaquenoBrasilapessoaquepolemizatemdooutro;éumacoisaquemeentristece…Ofatoéqueparamim,comoessehomemfoificandocadavezmaisdialógico—apesardaidadeeporcausadela —, falar um livro significa a possibilidade enorme de, recebendo ainstigaçãodooutro, engajando-secomopensamentodooutro,produzirdemodogeralmaisdoquequandoeu,sozinho,escrevo.

    Isso não significa que escrever sozinho ou escrever dialogando sejamexcludentes. Eu passei esses alguns anos sem trabalhar dialogicamente comnenhumcompanheiro.Escrevimuitotextopequenosozinho.Agoraacabodeescreverumlongotextosozinho,ehojeretomoessaconversacontigoparaacontinuidade deste livro, absolutamente disponível. De repente, bastou quevocêtomasseapalavraepusesseaperguntaemcimadamesa,paraqueeumesentissetodovida,todoestimuladoapensar.Eunãoquerodizeraoleitorqueestou pensando coisas bacanas, mas pelo menos eu estou pensando,estimuladoapensarvivamente,pensarrápido.

    Em conclusão, para fechar a tua pergunta: eu não diria que o livrodialógico é superior ao livro que um intelectual qualquer trabalha com aminúciadesuabusca,comorigordasuaaproximaçãoaseupróprioobjeto.Nemtampoucodiriaquesóassiméquesefazlivro.Oquenóstemosfeitosãoindiscutivelmentelivrosque,precisamenteporqueresultamdeumaconversaaberta,franca,fraterna,emquenãohámedonememmimnememvocê,sãolivros que têm uma certa especificidade que os outros não têm. Mas essaespecificidadenão faz os livros dialógicosmelhores nemos faz piores, nemtampoucoantagônicos,masdiferentes.

    SevocêpegasseoAprendendocomaprópriahistórianessemomentoquecomeçamosatrabalharonovolivro,éumlivroquevocêpoderiaterescrito,jáesse primeiro, sozinho, defendendo o que significa aprender com a própriahistória.Eu tambémpoderia ter escrito sozinho, falandode comoeuvenhoaprendendo…Eporquenãonosjuntarmososdoisefalarmososdoissobrecomoambosaprendemoscomaprópriahistória,oudecomodemodogeralseaprendecomaprópriahistória?

  • 3.UMBAITAERRO:ESQUECERASUBJETIVIDADESÉRGIO:Mas,Paulo,jáaínumcantodeesquinaaparecealguémquediz:“Queexercíciodeespelhoséesse?Seráquenãoestaríamosdiantedeumcasotípicode vaidade, em que dois indivíduos, em vez de se preocuparem com aHistória, com os processos sociais, começam a se voltar para a própriahistória?”Comoéquevocêpoderiarespondercriticamenteaumaobservaçãodesse tipo, apontando mais para uma forma de vaidade do que para umaformadeaçãopedagógica?

    PAULO:Aminhaprimeirarespostaaquemfizesse—euseiqueháquemfaça— essa crítica é a de reconhecer o direito dessa pessoa de pensar e dedizerisso.Asegundaposiçãoqueeuassumodiantedacríticaéade,apesarderespeitar o direito a ela, tentar desfazê-la. É a de refletir para mostrar oequívocoqueestánapergunta.

    Em primeiro lugar, tanto você quanto eu teríamos até formas menostrabalhosas de exercitar a nossa vaidade (risos), que em certo limite é umdireitoe,euatédiria,umdever.Ambosteríamosformasmenoscansativasdeexercitaravaidade,deinventarcaminhosparaquenósaparecêssemos,equefossemdiferentesemaislucrativosaté.Enãootemosfeito.

    Emsegundolugar,euachoquevocêeeunãotemostambémmuitacoisapelaqual ficar tão afoitamente vaidosos.Temos feito coisasnomundo enavidaquenosdãoodireitodegozaraalegriadisciplinadaebem-educadadavaidade,mas jamaisdapetulância, da arrogância, do cheio-de-nós-mesmos.Temosfeitocoisasválidasnomundoenempor issovivemostrombeteandoessascoisasquefizemos.

    Agora, em lugar de analisar isso como a expressão de uma vaidadelegítima ou ilegítima, eu acho que o que deveria ser criticado em nós é sepensássemosqueoque contamos em tornodoque aprendemosnahistóriafosseaprópriahistória!Querodizer:sevocêeeuestivéssemosquerendodaraimpressão ao leitor de que o que estamos falando é a história principal, darealidadebrasileiraedadeforatambém,daafricana,daeuropeiaetc.,issojánão era nem vaidade, isso era loucura! Não, pelo contrário, no que nósestamos fazendo, na tentativa que estamos continuando hoje com este

  • Dialogando com a própria história, o próprio título já nos põe no nível danecessáriahumildade.

    Emprimeiro lugar,nósestamosafirmandocomesse títuloqueninguémaprende fora da história. Segundo: deixamos muito claro que ninguémaprende individualmenteapenas.Querdizer,nóssomossócio-históricos,ousereshistóricosociaiseculturais,eque,porissomesmo,onossoaprendizadosedánapráticageraldaqualfazemosparte,napráticasocial.Sóquenós,vocêeeu, reconhecemosquenãoépossívelafogar, fazerdesapareceradimensãoindividual de cada sujeito histórico que se experimenta socialmente. SérgioGuimarães ePauloFreire temos algonanossa individualidadeque faz comque sejamos Sérgio e Paulo, e ninguémmais pode ser Sérgio Guimarães ePauloFreireanãosernósdois.Esqueceressasubjetividade,nãoreconheceropapeldelanoaprendizadodahistória—,emaisdoquenoaprendizado,nafeituradahistóriainclusive,éfazendoahistóriaqueagenteaprendeahistória—esquecerisso,esqueceropapel,nisso,daconsciência—comoeujásalientodesde a Pedagogia do oprimido e agora saliento de novo na Pedagogia daesperança—, esquecer isso é que é cometer, paramim, um baita erro, umimensoerro,quefoioerrodomecanicismomarxista.

    Quando eudigo “domecanicismomarxista”, embora reconhecendoqueMarx teve sua culpa nesse mecanicismo, penso que ele não era, porém, oresponsável absoluto pelo mecanicismo. Afinal de contas, eu acho que emMarx você descobre, sem nenhuma dificuldade, os dois Marx num Marx.Você descobre também o Marx crítico, o Marx não mecanicista, o Marxdialético,oMarxquenãoaceitaqueoamanhãéumtempoinexorável.HáumMarxquedizqueoamanhãnãoéinexorável,queagenteteméquefazeresseamanhã.Ora,portudoisso,Sérgio,euestouconvencidodeque,sehouverumdiaessacríticaaquevocêsereferiu,apesardeseraexpressãodeumdireitodeumleitoroudeumescritorquetambémlê,éumacríticaequivocada.

    4.“FALACOMOUTROS,PARAQUENÃOENLOUQUEÇAS!”SÉRGIO:Oque eu gostaria de acrescentar, antes que a gente terminasse essecapítulozero,éque…

    PAULO:Euestouachandoessecapítulozerotãogostosoqueeupensoqueagentenãodeve terminá-lo agora.Talvez agente tenhamais coisas adizer

  • nele…

    SÉRGIO: Está bem. Em vez de zero, podemos transformá-lo até em“capítulomeio”, não é?O objetivo nosso, ameu ver, ao fazermos um livrocomoeste,éodeprovocar,estimular,cutucaraleitora,oleitor,aquefaçamesse exercício, que examinem a própria história, que procurem rever aspróprias ações, as próprias reflexões, o seu próprio ser num espaço-tempodeterminado.

    A ideia é estimulá-los a examinar, a esmiuçar, adesocultar aspectosqueaindanãotinhamsidovistos,lembrados,equepoderiamnãoapenasexplicaraevoluçãodoqueaconteceudepoisdaprópriaação,mastambémfacilitaropróprioavanço,apartirdomomentoemqueaconsciência,areflexãosedá,equepodesetraduzirnumaoutraação.

    Aofazermosjuntosumareflexãosobrefatos,momenmau,situações-limiteda própria história, o objetivo é o de estarmos demonstrando, dando umexemplo— bom oumau,mas um exemplo— que poderá ser seguido poraqueles que nos lerem: professores, alunos, profissionais dos meios decomunicaçãooudequalqueroutrosetorsocial.Desdequeapessoapossaler,ela pode ir exercitando essa capacidade. Estou convencido de que isso sópoderáajudá-laamelhoraroseufazer,oseuagirdeformarefletida,dentrodahistóriada sua família,do seugrupo,doseupovo,da suaépoca.Dentrodahumanidade.

    Nessesentido,olivroéumconviteaumareflexão,aumdiálogo—ouaummonólogo,senãohouverninguémporperto,massehouveralguém,depreferênciaumdiálogo—queo leitoroua leitorapossa fazernodia adia,comsuamulherouseumarido,seusfilhos,seupai,suamãe,seupatrão,seuempregado, ou comoutras pessoas, para que se avance, aprendendo com aprópriahistória.

    PAULO:Exato.Euconcordointeiramentecomoquevocêdiz,eaté juntouma outra coisa sobre a qual você falou ontem, quando nós apenasconversávamos sobre comopoderíamos trabalharhoje, coisa que a gente seacostumouafazerdurantetodaessaexperiência.Éalgoquetemavercomaquestão da compreensão profunda da linguagem. Da linguagem comoinvençãodohomem,enãoindividual.

  • O fato é que nunca houve um homem ou uma mulher que tivesseinventadoalinguagemedepoistivessesaídofeitoumlouco,deterraemterra,ensinando aquela invenção.Não, os homens e asmulheres, ao longo dessanão pequena experiência histórica, na medida em que prolongaram o seucorpocom instrumentosque fabricaram,atuaram, intervieramnummundoqueelesnãotinhamfeito.Éessaexperiênciademudar,dealterarnomínimopormenor—umburacoquesefaz,paraseobterágua—éessaintervençãosobre a realidade, antes que homens e mulheres falassem, que eu costumosimbolicamentechamarde“escreveromundo”.Tomoissocomoumaformadeescritura.Nessesentido,aescrituraprecedealeitura,comoapalavraoralprecedea escrita.Mas,paradoxalmente, a transformaçãodomundo,que euchamodeescrita,precedetudo.

    SÉRGIO:Ouseja,umobjetodepedra,queohomemumdiasedácontadequepodecortarumpedaçodemadeira,viramachado.Ogestodecortarjáéumaformadeessehomemcomeçaraescreveromundo.

    PAULO:Exato.Eprecisamenteporquenosfizemoscapazes—nãoéramos,nostornamos—defazeressaescritadomundo,atravésdoprolongamentoouda extensão do corpo com omachado, por exemplo; porque nos tornamoscapazesdefazerissoe,portanto,naminhacompreensão,escreveromundo,équenostornamoscapazesdeleroqueescrevemos.

    A fala, afinal, emerge como a resposta necessária ao que homens emulheres começavam a fazer sobre o mundo. Foi primeiro fazendo ouescrevendo esse mundo que nos tornamos capazes de falar sobre o quefizemos…

    SÉRGIO: E esculpir depois, namedida em que a escrita aparece tambémcomoformadeescultura,embaixorelevo…

    PAULO:Éclaro!Antespossivelmenteatédefalar,nósescrevemostambématravés da pintura, que simbolizava os nossosmedos, as nossas frustrações.Falodaspinturasqueseencontramhojenascavernasantigas,porexemplo.Isso significaque,homensemulheres,nos tornamos seres indissociáveisdaoralidadesobreofazeredaescritaquefixaaoralidade.Então,escreverelersão absolutamente, necessariamente, interligados, conjugados. Segundo: aoralidade precede e é simultânea à escrita. Vale dizer que não é possívelescreversemorar,orarnãonosentidoreligioso.Nãoépossívelescreversem

  • falar;assimcomoaescritaéafalaquesefixa,aoralidadeéaescritaquenãosefez.

    Oescritornãopodeprescindirdaoralidade,comoocamponês.Oescritorépreponderantementegráfico,ocamponêsanalfabetoéexclusivamenteoral.

    Mas você dizia ontem, nesse papo informal, alguma coisa muitointeressante,muitoforte,sobreaquestãodamorte,porexemplo.Osilêncio,oenclausuramentodeumserdentrodelemesmo,aincomunicabilidadecomomorte,acomunicabilidadecomoumapossibilidadedeexpressãodevida,edeinvençãodavida,edecriaçãodavida.

    Pois bem, eu acho que esses nossos livros dialógicos são também umatentativade sugestão a estudantes, a professoras e professoresnossos, a nóstodos brasileiros, cuja experiência histórica tem-nos ensinadomuitomais osilênciodoqueavoz,tem-nosensinadomuitomaisobarulho,aalgazarra,doqueodiscursocoerente,doqueodiscursoconsistente,quemudaomundo,ouqueanuncia,queantecipaamudançadomundo.

    Acho que o testemunho que nós damos é um testemunho simples,humilde.Ninguémpensequeeupensoque issoéumacoisaextraordinária!Não,éumtestemunhoquetemseuslimites,suascarências,suasnecessidades;mas é como se ele dissesse, como livro, como totalidade: “Fala comoutros,paraquenãoenlouqueças!”

    5.UMAENTREVISTACOMPIAGETEASARAPUCASDAMEMÓRIASÉRGIO:Essabuscanamemória,essepasseiocurioso,disciplinado,prazeroso,é,comopassardotempo,umpasseioquenosmostradeterminadaserosões.Como a terra muda, a memória também sofre variações, erosões, lapsos,fissuras.Quantomaisotempopassa,àsvezes,maioresasfissuras.Já,àsvezes,por mais que o tempo passe, a nitidez das imagens e dos sons de certosmomentosdaprópriahistóriacontinuaintacta.

    Nesse exercício que a gente faz, nós estamos sujeitos a todas essasoscilações,erosõesdamemória:osesqueceres,osnãolembrares,os“jánãoseionome”,“jánãoseionde”.Tudoisso,deumlado,tiratalvezoencadeamento,acompreensãomaiordeumdeterminadoepisódio;mas,deoutro,porserumfenômeno histórico também a que nós estamos sujeitos— tanto quanto a

  • pausa faz parte damúsica, como a nota— faz parte desse rever a própriahistória.

    Nesseperíododavida,oqueéquevocêtemadizerarespeitodasfalhasdememória,dessasmaniasqueamemóriatem,dessasarmadilhasqueocérebrojá começa a nos colocar, nos fazendo trocar nomes, esquecer de lugares,confundirpessoas?

    PAULO:Euagorame lembrodequando,morandoemGenebranosanos1970, durante omeu exílio, eu assisti uma noite na televisão, creio que nocanalfrancês,aumaentrevistalindacomPiaget.Nãomelembromaisquemoentrevistava… já agora começam os “já não me lembro”… possivelmentealguém que não tinha a projeção sequer parecida com a de Piaget e queentrevistava um homem que era uma presença de tal maneira lúcida nomundoqueaminhatendênciaéfixarPiaget.

    Mas,naconversaentreosdois,emcertomomentoaquestãodamemóriaaparece, a memória enquanto essa memória de que nós falamos, e não dofenômenomemorizar. E ele falava— com um riso no canto do lábio, comaquela cara bonita que ele tinha, com seu cachimbo — e advertia osmemorialistasdastraiçõesdamemória,dasarmadilhasqueamemóriacria.Echegou a dar um exemplo com ele mesmo, em torno da memória de umdeterminadomomento da sua primeira infância, que ficoumarcado nele, equenãoeraverdadeiro.

    Euteriaduascoisasparafalar,respondendoàtuainquietação.Aprimeiraé esta, e eu te confesso, hoje eu dou graças aDeus de ter ouvido e visto oPiaget fazendo aqueles comentários. Toda vez que eu falo do que houvecomigo— sobretudo quando esse “do que houve” se afasta demasiado notempodaminhaexistência—eutenhoomáximocuidadodemecertificarseo que falo é uma invenção atual, é uma gostosura atual que eu tentoinconscientemente encarnar como algo que se deu. Por isso mesmo, e naadvertência de Piaget se encontrava isso, eu acho que quem faz memóriasdevetermuitocuidadoparanãoacreditar100%emquetudodeque falasedeu.Nofundo,algunsmomentosdasmemóriassãoficções.Massãoficçõesquepoderiamtersidorealidade.

    Segundo:agora,porexemplo,quandoeuescreviaPedagogiadaesperança,que é um livro profundamentememorialístico; em certomomento, ele é a

  • minha memória explicando a feitura da Pedagogia do oprimido, o que euchameide tramas.Tramasqueanunciavamalgumacoisa cujo título eunãotinhaainda,queeraaPedagogiadooprimido.Emoutromomento,oúltimodolivro,eufalodastramasdasquaisaPedagogiadooprimidopassouaserocentro.Agora,porseraPedagogiadooprimidoumlivroqueeuescrevie,pelaindependênciaqueaobrasempretomaemrelaçãoaocriador,eleéhojeumlivro e, portanto, uma vida em si. A Pedagogia do oprimido não me pedelicença para coisíssima nenhuma; é traduzida em várias línguas, e eu só seiporque às vezes os tradutores ou os editoresmepedem licença. Emoutras,não,nuncamepediramenuncamepagam.

    Mas ao mesmo tempo em que a Pedagogia do oprimido ganha a suaautonomia, eu dizia, como qualquer obra, ela, ao ser o sujeito ou a figuracentraldastramasqueeudescrevo,elamepõetambém,comoseuautor,nonível de sujeito também das próprias tramas. Então, a última parte daPedagogiadaesperançaéaquelaemqueeunãoapenasfalodasviagensqueaPedagogiadooprimido—comosefossemeuagente—propiciaqueeuváacentros como Nova Zelândia, como Fiji, no Pacífico Sul, como Bolívia,Argentina, não importa… Ela trama tudo isso, mas eu passo a ser, comopessoaviva,ointelectualcriadordolivro,eusoutambémsujeitodatrama.

    Oprocessodeescreversobreissofoiumprocessoderememorarenorme,intenso. Vocêmesmome ajudou, na última vez que passou por aqui, comrelaçãoaunstrês,quatronomesdegentequeerafundamental!Sevocênãome dissesse: fulano de tal, sicrano, beltrano, eu teria prejudicado… Nãoimportaqueos leitoresbrasileirosnãosaibamquemsãoaquelaspessoas;nomomento de escrever, deixar de nomeá-las era uma lástima da minhamemória.

    Mas quando eu fazia esse livro, o Pedagogia da esperança, ao qual meentreguei realmente com uma paixão enorme, com um amor enorme, commeu corpo inteiro, sentimentos, tristezas, mágoas, competência,incompetência,memória,esquecimento,razão,crítica…Quandoeutrabalheitodososmesesnesselivro,eumedefrontei(foinãofoi)comesseslapsos.Maseu estava de certamaneira preparado para eles, e isso não dava emmim…quando eu passava, por exemplo, quinze, vinte minutos à procura de umpormenor lúcido que explicassemelhor o fato que estava narrando eu não

  • ficavaamofinado,nemdizendoamimmesmo: “Seráque é a velhiceque seaproximademim?”Pelocontrário,eudiziasorrindo:“Émaisumaarapucadamemória!”,econtinuavabuscando.

    Então,esseestadodeespíritodeadvertênciadiantedapossibilidadedequeahistóriafuja,dequeofatoquesedeudesapareçadamemória,eeuponhaalgoquenãosedeuno lugardele,meajudouenormemente!Eeuchegueiaum momento da escrita do livro em que a experiência da rememoraçãofuncionoucomoapossibilidadedaproduçãodeumconhecimentonovo.Nãoapenas eu pegava o que ocorreu, mas, ao perceber agora, no esforço damemória, como aquilo ocorreu, eu fazia a percepção daquela percepçãoanterior.Eapercepçãonovacomqueeupercebiaoantigomeensinavacoisasqueeunãosabiaquandoprimeiropercebi.

    Fazermemóriaséumpoucorecriaroquefoifeito.Éprecisoapenasquequemfazessamemóriatracedeterminadoslimites,paraquenãosaiadeumamemóriaqueétambémumensaiodeinterpretação.Issoéoutracoisaqueeuexperimenteinolivro:eunãoapenastentavamelembrardacircunstânciaemque o fato se deu,mas eu tentava interpretar, tão rigorosamente quanto eupudesse,umfatoquesedeuquarentaanosatrás.Porexemplo,quandoeucitoaquela história linda do operário em Casa Amarela, num círculo de pais eprofessoresemqueeufalarasobrePiageteocódigomoraldacriança…11Eno fimde todoomeudiscurso lindo, ele fezumdiscursoexemplar,queeuguardo hoje ainda na minha memória. Um discurso totalmente ordenado,organizado,emqueelemedeuamaiorliçãoqueeu,comoeducador,recebiaté hoje. Foi a lição de um educador semianalfabeto, de um intelectualsemianalfabeto que, segundo eu digo no recente livro, morreu roído datuberculose.Poisbem:quandoeuconteiahistóriadodiscurso,eutentei,hoje,distante—ganhandoessadistânciaepistemológicadequeagenteprecisa—,eu tentei compreender a razão de ser científica do discurso dele e domeuespanto diante do discurso. Omeu espanto, no fundo, era um espanto declasse.Seaquelediscursotivessesidofeitoporumcolegameuuniversitário,eu teria discordado domeu colega, mas eu não teria me espantado com alucidezcomqueelemereeducou.

    Nãoseiserespondibemà tuapergunta,maseuachoqueesseéumdosméritosdessetrabalhonosso.

  • 6.ODIREITOÀMEMÓRIAEAGERAÇÃODACARAPINTADASÉRGIO: Respondeu,mas eu queria acrescentar a isso que você está dizendosobreamemória, apercepçãoqueeu tenho, sempremuitodesagradável,deestardiantedepessoasquecorremoriscodesersujeitossemmemória.Oquesignifica,comogravidade,comoalienaçãodoprópriosujeito,ecomoreduçãodosujeitoaumacondiçãodeimpossibilidadedereagir,ofatodenãopoderteracesso,denãoterdireitoàprópriamemória.

    Ora,oqueeuvejodopontodevistadeumindivíduomepareceacontecertambémàsvezesnamemóriadetodoumpovo,aqueménegado—porumasériederecursos,decensuras,deboicotes—odireitodeconhecer,desaberdoseupassado,desaberdeondeveioesseprocessotodo:eu,comopovo,deondevim,oqueéquemetrouxeaissoetc.Nãoseráumaaçãodeliberadadedeterminadas elites, a de cercear ao indivíduo, a um grupo, a um povo, oacessoàsfontesdamemória,paramelhorpodermanipulá-los?

    PAULO:Claro!Eunão tenhodúvidanenhumadisso.Nesseponto é bomfazer um parêntese e dizer uma coisa que eu acabo de escrever num outrolivro que estou fazendo. Eu acho que nem toda vez os representantes dasclasses dominantes se reúnem, por exemplo, num edifício aqui da avenidaPaulista, emSãoPaulo,paraprogramar certasocultaçõesdeverdadesque aclassepopularnãodevesaber,nosentidodemelhorserdominada,comotudizias.Quase semprenãohá isso.É claroqueos intelectuaisque trabalhampara as classes dominantes se encarregam muito de fazer preparos para aocultaçãodaverdade.(ri)Masoqueaconteceaínissodequetufalasteéqueatarefeiradessaocultaçãoéaideologia,propriamente.Opapelfundamentaldaideologia dominante é ocultar verdades que, desveladas, desnudas, criamdificuldades às classes dominantes. Na medida em que há uma eficácia naocultação,háumresultadoimediato,queéafaltadememória.Nofundo,nãoénemafaltadememória,éainexistênciadapossibilidadedesetermemória,comotudizias.

    Équandoamassapopularnãosabebemquemfoi,quemeramaspessoasresponsáveis por uma série de desmandos que houve, por exemplo —tomemosummomentomaisrecente—duranteaditaduramilitar.Éprecisoverqueé tambémummecanismodemedoquedificulta amemória.Como

  • uma tentativa de defesa, você se esquece, oumelhor, você deixa de quererconhecer.Eaí,então,vocêesqueceoqueaconteceuporquenemsequersabeoqueaconteceu.

    Umacoisaquemeencantanestepaíshojeévercomoageraçãojovem,atéainfantil,veioatéaspraçaspúblicasepintousuascarasechamouasimesmade“geraçãodacarapintada”.Ageraçãojovemquenãosabe,porexemplo,sevocê perguntar a uma grande parte, quem é Celso Furtado, quem foiSambaqui, quem foi Paulo de Tarso, oministro, quem foi Paulo Freire em1963. Possivelmente, muitos deles não sabem, porque viveram umaexperiência de escolarização em que isso tudo era proibido de sermemorizado,desersabido.

    Mas, de repente… e nisso você veja como o ser humano é um sermisterioso; apesar de toda a má educação, não no sentido comum disso,apesar da alienação e da ocultação da verdade que essa juventudeexperimentou,queosseuspaisexperimentaramduranteosanosdaditaduraeeles estão experimentando na continuidade de certos hábitosantidemocráticos; apesarde tudo isso,namedida emqueo climacultural ehistóricodoBrasilhojeéumclimaemqueogostodaliberdadefloresceforte,emrazãomesmodaausênciadessegosto,proibidoquefoinaditadura—vocêvêqueédialéticoisso!—essageração,semmestres,veioparaapraçapública,agora para o impeachment do presidente, sem estar liderada por partidonenhum.Pelocontrário,veiosempartido,veiosemumaliderançasistemáticaeautoritária,veiofelizecontente.Vivaafelicidade!—digoeuagora.Elaveiosemmedodeserfeliz.Pintouacara,cantouedisse…umadasmeninasqueatelevisão entrevistou na rua, uma adolescente de talvez— eu calculei, pelaimagemdela— treze, doze anos,nodiado impeachment, ela comosolhoscheiosd’água,enquantogritava,enquantocantava,disseumafrasequeeuvoutedizeragora,porqueeuamemorizeitotalmente.Sóessafraseéoespelhodeummomentohistórico felizdestepaís,quemeorgulha,que teorgulha,quenosorgulha.EuacabodecitaressafrasenaEuropa,nosEstadosUnidos,emsemináriosuniversitários,criticandoacríticaqueoPrimeiroMundonosfaz.Amenina,aadolescente,simplesmentedisseoseguinte:“Assimcomofomoscapazes de pôr um presidente para fora, seremos capazes de nunca maisdeixarquea vergonhadeixe estepaís!” Isso éuma frasedepeso! Isso éumpedaçodahistóriadestepaís!

  • 7.AUTOPIA,OSONHOEAPEDAGOGIADEHOJEPAULO:Agoravocêveja:outrodiaeuconversavacomNita,minhamulher,ecomparavaosprocessoshistóricos e asposiçõesnessesprocessoshistóricos.Em1964, por exemplo, asmoças, as jovensprogressistas, de esquerdadestepaís,comquemeu—nãomaiscomdezoitoanos,mascommaisdequarenta—convivia,emprimeirolugarsópodiamterumacalçajeans,porqueterduaseraaproximar-sedemasiadodaburguesia.Segundo,nãopodiampintaracaranempodiam ser felizes, porque papel de revolucionária era ser triste, feia echata.Vocêvejaqueissoeraumaconcepçãoautoritária,stalinista,deformada,quenãopodiacontinuar,queteriaquefindar.Efindou!

    Mas, o que não findou foi o sonho socialista, paramim. Esse está, pelomenos em mim, mais vivo do que antes, renegando o discurso neoliberal,pseudamentechamadodepós-modernoe,àsvezes,erradamentedemoderno.Essediscursoqueanunciaqueautopiaeosonhonãotêmsentido,equenãodá mais para continuar a falar na necessidade de distribuição da riqueza,porque a riqueza é produzida por uma dúzia de gente competente einteligente; que deixemos essa gente competente produzir a riqueza e que,quandochegarumdiaapossibilidadededistribuí-la,entãosedistribui;eque,secontinuarmosa falarnanecessidadeética,democrática,dedistribuir essariqueza—oqueéumadesgraça,dopontodevistaneoliberal!—,deamenizaradordosoutros,quesecontinuarmosafazeressediscurso,vamosatrapalharosprodutivos,ecomissovamosobstaculizaravida!

    Issotudoéumamentira,issotudoéaocultação,issotudoéummeiodequeselançamãoparaqueamemórianãoseconstitua.Euachoentãoqueumdosdeveresdeumapós-modernidadeprogressistaemeducaçãoéexatamentecontinuaraserutópicoeatersonhos;continuaragritar,abrigar,alutarpeladesocultação,pelodesvelamento.Apedagogiadehojedeve sermais crítica,maisfundamentadamentecríticadoqueaqueeupropusem1960.Nofundo,deveriaserumapedagogiaquepreencheriaosburacosemqueamemória,dosfatos,nãofoifixada.

    Euconcordocontigo,euachoqueumapedagogiaquelutepeloprocessodelibertação,quenãootema,éumapedagogiaquedariaênfaseàlinguagem,àcompreensãodofenômenolinguísticoe,emseguidaaele,àcompreensãodo

  • quesechama“línguanacional”,àcompreensãodadiferençadesintaxedentrode ummesmo sítio histórico, social e geográfico. Seria uma pedagogia quedariaforçaàcompreensãocríticadahistória,decomoahistóriasemoveenosmove, se fazenos faze refaz.Seriaumapedagogiaque,por issomesmo, sepreocuparia com a claridade histórica, não a desvincularia da geografia, docontexto geográfico. Seria uma pedagogia que discutiria a metodologiacientífica da aproximação aos fatos reais para melhor entendê-los, masnegaria sistematicamente o cientificismo, na busca da cientificidade. Seriauma pedagogia que enfatizaria a boniteza, o estético da vida e o ético,fundamentalmente. Uma pedagogia que não separaria o cognitivo doartístico…

    SÉRGIO:…doafetivo.

    PAULO: …do afetivo, do sentimental, do apaixonante, do desejo! Querdizer:umapedagogiaquenãodicotomizariaoserhumano,quepegariaoserhumano na sua totalidade e, portanto, memória, criação, participação decorpo e alma nas coisas, capacidade de amar, de ter raiva, de brigar e deapaziguar.Nofundo,umapedagogiaquepregasseanãocertezanascertezas.

    SÉRGIO:Masessapedagogiatoda,quevocêdeumacertaformacolocanocondicional,jáéumapedagogiapresente!Elapodenãoestarnasuaplenitude,masjáseanunciaporinúmerosíndices…

    PAULO:Concordo!

    SÉRGIO: …na medida em que milhares de pessoas, de professores, deprofissionais diversos já estão pondo em prática e refletindo sobre essaquestão.Nósnãosomososprimeirosenemseremososúltimosarefletireafalar sobre ela. Milhares, talvez milhões de pessoas pelo mundo afora, emformas e com intensidadesdiferentes, já estão adquirindoodomíniodessasnovasmaneiras de aprender, dessas formas outras de abordar omundo, deavançar,deconhecer,delutar.Inclusiveincorporandojáumaspecto,digamosmais lúdico, que a velha didática, a velha concepção de educação— ou dedeseducação—praticamenteaboliam;avelhaeducaçãosemprecondicionadaaosofrer,aopenar,aocastigo,àpunição.

    Hojevocêjápodedesmontar,numcertosentido,tudoissoedizer:“Masporqueéqueeupreciso sofrerdessamaneiraparaaprenderageografiado

  • mundo?Porqueeutenhoquesuarfriodiantedeumprofessorporqueeunãoseionomedascapitais?Não,eu tenhooutrasmaneiras!”Eaí, ameuver, anova tecnologia também ajudou muito, permitindo que os meios decomunicação—comorecursosalternativosdefilmar,defotografar,defazervideotexto,debotar emcomputador,por exemplo— facilitassemocontatoentreosindivíduoseamatériaaserconhecida.Etudoissotornandopossívelque,sofrendomenos,oindivíduoavancemais!

    Oqueháéquenósaindaestamosnummundoemtransição—esemprehaveráalguémquediráquenósestamoseternamente,desdequeohomeméhomem, em transição — entre um ou vários sistemas de dominação, demanipulaçãodaspessoasedascoisas,queresistemferozmenteàemergênciadeumoutromundocompessoasdiferentes,quevivamsempisarnosoutros,maisfraternas,maishumanas,maisalegresemaisfelizes!

    Eé justamentepor causadessa resistênciaqueeu sintoanecessidadedecontinuar essa luta, buscando na memória, como nós estamos fazendo, eagindo em consequência, na prática, demaneira que essas gerações já e aspróximasgeraçõesconheçam,aprendamafazerummundomelhor,paraelas,paraseusfilhoseparatodasaspessoas.Claroqueeuestousonhando!Seumcientistalaboratoristaviesseaquiedissesse:“Mascomoéqueosenhorprovaquetudoissoéverdade?”,eunãoteriaprovasmateriaisdealgoqueaindanãoaconteceu.Masquantomaisnãosejanosnossossonhos,quesetransformamemprojetoseemações,nóstemoscondiçõesdeavançar.

    Paraterminar,eusógostariaderessaltarqueestecapítulo,quecomeçoucomonúmerozero,acabousaindoumzeromeiogrande,não?

    8.TODOUMMOVIMENTO,ATRÁSDASCORTINASDOSLIVROSPAULO: É, mas eu concordo com tudo o que disseste, e acrescentaria oseguinte: este sonhopedagógico está já aí, realmente, comovocêdizia.E sealguém lhe dissesse, com cientificismo, não cientificidade: “Mostre algumascoisasconcretas”,vocêpoderiadizer:“Olha,paraserhumilde,eufalosóumpouquinho do Brasil. Os meninos nas ruas, de caras pintadas, fazendo oimpeachment do presidente da República!” Isso mostra uma qualidade dahistória já totalmente diferente, uma qualidade que foi acrescida à jáextraordináriahistóriadomovimentodas“Diretasjá!”.

  • Maseudiriatambémqueessacompreensãodapedagogiaedapolíticaestáaí em dois planos. De um lado, ela está sendo concretizada, vivida,experimentada,nãoemtodaasuaextensão,masvividaeexperimentadaemdimensõesfundamentais.Porexemplo,oquenósfizemosduranteogovernode Erundina foi isso. Na Secretaria Municipal da Educação de São Paulo,centralmente foi isso. Segundo: esse sonhopedagógico está sendodiscutido,vivido,debatido, criticado,posto empapel, emdiferentespartesdomundo,atravésdosescritosdescholars—nosEstadosUnidos,noCanadá,naEuropa,porexemplo—quedefendemessapedagogia.

    VejaoSnyders,porexemplo,umpedagogodeformaçãomarxistaquetementregadoavida inteiraaumapedagogiacríticageradorade riso!Nãoumapedagogiairresponsável,masumapedagogiacrítica,quepropõeporémumaexperiência de contentamento no processo de conhecer, de estudar e deensinar. Agorinha, enquanto trabalhávamos, eu recebi um pacote da Paz eTerra,comoúltimotextodeSnyders,traduzidoparaoportuguês,paraqueeuescrevaumprefácio.OSnydersmemandouessetextodeleemfrancês,eeuentãooencaminheiàPazeTerra,sugerindoquefossepublicado.Otítulodolivro éAlunos felizes: reflexões sobre a alegria na escola, a partir de textosliterários.12OSnyderséumcampeãodaalegria,enemporissoasuapropostapedagógicaéfrouxaeespontaneísta.

    Nos Estados Unidos, você tem toda uma corrente do que eles vêmchamando de pedagogia crítica — às vezes de pedagogia radical —, comscholars comoHenryGiroux, que é um dos expoentes, oMichael Apple, oDonaldoMacedo, o StanleyAronowitz, o PeterMcLaren…NoCanadá, naEuropa também, essa pedagogia de que tu falastes não está apenas emanúncio.

    SÉRGIO:O que eu queria salientar em relação a isso, Paulo, é que, se hátantos intelectuais, pensadores, homens do acabamento das ideias e da suapublicação; se esses homens estão trabalhando é porque há junto com eles,atrás das cortinas dos livros, todo um movimento, todo um conjunto depessoas, de professores, de alunos, de profissionais de diferentes áreasatuando,jámudandoaprópriamentalidade,emudandoomundo,nãoé?

    PAULO: Exato! A coisa no fundo é dialética. Em certos momentos, é ointelectual quedáoprimeiro chute, e é tido como louco, por exemplo.Éo

  • chamadoutópico,oprofeta!Mas,nomeuentender,nãoháutópico,nãoháprofetaquenãoestejaprofundamenteligadoaorealeaoconcreto.Oprofetasó é profeta, só fala do amanhã que a média da gente não percebe nemadivinha,porqueeleconheceouestáempapadodohoje.Nohoje,existemosmomentos do amanhã. Por outro lado, o amanhã, concretizando-se já,provoca um sem-número de intelectuais, de scholars que, em certo sentido,masmenosqueosprofetas,começamatocarnapossibilidadedesseamanhã.Maseuconcordocontigo:emqualquerdessashipótesesoqueeuquerodizeréqueháingredientesdoquepodeviraser,semosquaisnãoseriamfalados.

  • Notas3 PauloFreireeSérgioGuimarães,Aprendendocomaprópriahistória.SãoPaulo:PazeTerra,1987[4ªed.SãoPaulo:PazeTerra,2011].

    4 Paulo Freire e SérgioGuimarães, Sobre educação. São Paulo: Paz e Terra, 1988 [Partir da infância:diálogossobreeducação.5ºed.SãoPaulo:PazeTerra,2011].

    5 PauloFreire,Pedagogiadaesperança,4ªed.[17ªed.SãoPaulo:PazeTerra,2011].

    6 PauloFreireeAntonioFaundez,Porumapedagogiadapergunta,3ªed.[7ªed.SãoPaulo:PazeTerra,2011].

    7 PauloFreireeIraShor,Medoeousadia:ocotidianodoprofessor,5ªed.SãoPaulo:PazeTerra,1996[13ªed.SãoPaulo:PazeTerra,2011].

    8 PauloFreireeDonaldoMacedo,Alfabetização:leituradomundo,leituradapalavra.SãoPaulo:PazeTerra,1990[13aed.SãoPaulo:PazeTerra,2011].

    9 Paulo Freire, Moacir Gadotti e Sérgio Guimarães, Pedagogia: diálogo e conflito, 4ª ed. São Paulo:Cortez,1995.

    10PauloFreire,Pedagogiadooprimido,23ªed.SãoPaulo:PazeTerra,1996[50ªed.SãoPaulo:PazeTerra,2011].

    11 Cf.PauloFreire,Pedagogiadaesperança.SãoPaulo:PazeTerra,1992,pp.24-28[17ªed.SãoPaulo:PazeTerra,2011].

    12 GeorgesSnyders,Alunosfelizes:reflexõessobreaalegrianaescola,apartirdetextosliterários,2ªed.SãoPaulo:PazeTerra,1996.

  • 1

    AINDAOCHILE,OSESTADOSUNIDOSEOBRASIL

    1.MOMENTODECISIVO:UMAREUNIÃODEFAMÍLIASÉRGIO:Todoessecaminhoquenósacabamosdefazer,nascurvasdocapítulozero, afinal, foi-nos pondo no hoje. Eu gostaria de voltar umpouco para oontemedecomeçarotrajetodolivro,pelamemória,voltandoaoperíodoemquenósdeixamososleitoresemAprendendocomaprópriahistória:vocêcomsaudadesdoRecife,apassagempeloMéxico,encontroscomoIllichecomoFromm,massobretudoatuatransiçãodoChileparaosEstadosUnidos.

    Semcairnatentaçãofocalistadoreal,dovivido,eugostariadefocalizaraatençãoumpouconesseperíodo,nessasituação-limiteemquevocêpercebeque as tuas relações com o Chile já se anunciavam relações de saída, pelomenosfísica.Oqueéqueficounatuamemória,aoreveresseperíodoaí?

    PAULO:A revisão, dopontode vista dapresençanoChile e da saídadoChile, eu acho que posso dela prescindir, porque fui muito explícito naPedagogiadaesperança.MasoquenãoestánaPedagogiadaesperança, eeuachoquenemestátambémnolivroanterioraessetrabalhoquenósestamosconstruindo hoje, é, por exemplo, o que significou afetivamente, numprimeiromomento, dopontode vistadas expectativas, dos receios, quandoaceitei o convite da Universidade de Harvard, em 1969, emarchei para osEstadosUnidos.

    Nãosei,inclusive,sejáodisseemalgumlivro,edeixoàtuapesquisaeàtuamemória,parasabersedisse.Sedisse,aítuestásautorizadoasuprimir…

    SÉRGIO:…ouamanter…

    PAULO:…ouamanter,não?Nãoseise falei já,porexemplo,dequando,comosconvitesnasmãos,nocomeçode1969,noChile, jádiscutindocomElzaapossibilidadedesairdoChile—nãodeabandonaroChile,dopontodevista do meu querer bem, mas de sair do Chile —, eu tinha convites dos

  • Estados Unidos, tinha consultas do Canadá, e tinha consulta do ConselhoMundial das Igrejas, de Genebra, eme lembro de que discutia com Elza apossibilidadedeaceitarumadessashipóteses.

    Eéexatamenteummomentodessasconversasqueeugostariadecontaragora, submetendo-o à tua memória. É um momento da minha vida quecontinuahoje a ser aceitopormim,a ser assumidopormim, equeeu,porissomesmo,nãorenego,equepodeserconsideradoporalgumpaiealgumamãe — que eu consideraria tradicionalistas e autoritários — como umexemplodeirresponsabilidadepaternaematerna.(ri)

    Eahistóriaéaseguinte,queparamimrevelaaconfiançaquetínhamos,Elzaeeu,nasfilhas,aconfiançaquetínhamosElzaeeunoquepropúnhamoscomopedagogiaecomopolítica…

    SÉRGIO:Vocêfalounasfilhas.Eosfilhos?

    PAULO: Eu só não incluí os dois filhos porque, apesar de eles entraremnisso,apriorinósjásabíamosqualseriaarespostadeles.Eagoraeucontoofato.QuandodecidimosquesairíamosetrocamoscartascomHarvardecomo Conselho Mundial das Igrejas fazendo uma contraproposta, chegou omomentode consultar sobretudo as filhas.Mas incluímos os filhos, porqueseriaumerrodiscriminá-losenãopô-losnessareunião,aqualconsideroummomentodecisivonacoerênciadenossapropostapedagógica.

    AMadalena já havia casado e já estavamorandonoBrasil,mas as duasmeninasqueestavamlá,FátimaeCristina,eosdoismeninos,JoaquimeLut— os quatro hojemulheres e homens—, as duasmeninas tinham os seusnamorados chilenos. E nós sabíamos que noventa e tantos por cento depossibilidade seriamparaqueosnamorosacabassem.Mas,paraElzaeparamim, eram os namorados das filhas, eram os amores delas. Então,conversandocomElza,acertamosarealizaçãodeumareuniãodefamíliaparadiscutir quem queria ficar no Chile e quem queria nos acompanhar. Elzaachouumaideiamuitoboa,porqueassimnãoseriaumarbítriodenossapartedizeràsduasmeninas—umacomdezesseis,aoutracomdezessete,poraí,eupossoestarcometendoalgumerropequeno—…deimporaelas,emnomedopoder de nossa autoridade, que se consubstanciava sobretudo pela fraquezadelas do ponto de vista de não se poderem manter. A incompetênciaeconômica cortaria evidentemente o poder delas. E aí eu dizia para Elza:

  • “Nesse caso, nós temos que convidar os namorados, porque eles não sãonecessariamentenoivos,nãovãonecessariamentecasar,masnomomentoelessão os amores das nossas filhas.” Elza concordou inteiramente, e nósmarcamosareuniãoparaumaquarta-feiraànoite.

    Echegaramosdoisjovens.Estávamosemcasaosseis:Elzaeeu,JoaquimeLut,CristinaeFátima.Euabriasessão,coloqueioobjetivodareunião(risos),e disse que erauma reunião familiar paradecidir quemqueria vir conosco,quem não queria, e em que bases a decisão seria posta em prática. Eumelembrodequeadvertiosjovensdoseguinte:“Euqueriadizeravocêsdoisqueofatodechamá-losaquiparaumareuniãoséria—issonãoéumareuniãodebrincadeira — não significa, de longe sequer, que Elza e eu estejamospressionandovocêsparacasaremcomnossasfilhas.Nósnãofazemospressãonenhumaparanãocasarem,enenhumapressãoparacasarem.Aquise trataapenasdonossorespeitoàafetividadedenossasfilhas,aodireitoqueelastêmdeamar,eàliberdadequeelasdevemter—contidanoslimiteséticossemosquais a liberdade não se constitui — de amar. E como vocês são os doisamoresdelasduashoje,nósachamosquenãopoderíamostratarumtematãosérioetãoimportantequantoodanossasaídadopaíssemouvi-lostambém.Essaéaexplicação,masnãovãodizeremcasaquePauloFreireedonaElzaFreire estão querendo forçar a barra, porque nós não estamos querendo.Juramos que não queremos! Até que eu diria a vocês uma coisa meioantipática:eunemsequeracreditoqueissováparaafrente.”

    SÉRGIO:(ri)Equalfoiareaçãodeles?

    PAULO:Elesriram,ficaraminicialmentetímidos,masemseguidadisseramqueentendiamequenoselogiavamcomaqueleprocedimentoqueelesjamaisesperavam dentro de suas tradições. E aí então começou a reunião. Osprimeirosquefalaram,éinteressante,foramosmeninos.Eeraóbvioqueelesdissessem o que disseram. Disseram imediatamente que queriam nosacompanhar aos Estados Unidos. Evidentemente, um tinha nove e o outrotinhadez.Elesestavamentãoem idadedeumanecessidadeaindaprofundadoapoioedapresençapaternaematerna.Comopré-adolescentes—mesmosefossemrebeldes,quenãoeram—nãotinhamporquequererarupturadoseuambiente familiar.Poisbem:elesdescartaramqualquerpossibilidadede

  • permanecerememSantiago, oque,na verdade, teria sidomuitodifícil paranósseelestivessemtomadoadecisãodeficar.

    A segunda manifestação foi das filhas. Elas falaram quasesimultaneamente,edecidiramqueficariam.Umaestavaestudandoeaoutratinhacomeçadoa trabalhar, comotelefonista,numa firmadeengenharia.Oque é interessante, num parêntese: dias antes de a gente semudar para osEstadosUnidos,oengenheirochefedeFátimadescobriuquemeraopaidelaemeprocurou,mevisitou,paradizerdoseuespantodequeumafilhaminhapudessesertelefonista.Vocêveja,Sérgio,aquestãodaclassesocial!Eleestavacom vergonha, disse ele a mim, de que tivesse uma de suas funcionáriasmenosqualificadas—hojeumagrandeeducadora!— filhaminha,quenãoestavacertoisso.

    Maso fato équeasduasdecidiram ficar, e apartirdaí sediscutiu: ficaronde?Eaposiçãodosdois jovens erabem interessante,porqueeradeumapreocupação ética machista muito forte. E aí eles falaram antes delas, edisseramqueaopiniãodeleséqueelasdeviamficaremumquartoalugado,nãonumapensão,masnumacasadefamíliaquefossereconhecidacomoumacasadegostosuraética,querdizer,umacasadebonscomportamentos!Elasconcordaram,nóstambém,eficouumpontomaisoumenospacífico.Caberiaanós,conjuntamente,procuraracasaeescolher.FicouacertadoqueElzaeeuconversaríamoscomadonadacasa,paraqueelasoubessequesetratavadeumafamíliaséria,direita(risos),equeasmeninasnãoiamdarproblemaparaela.

    Segundo se discutiu — o que era fundamental — a questão dasobrevivência, e ficou decidido que as coisas que nós tínhamos vendido—móveis,algumascoisasquerenderam…eutinharecém-compradoumasaladevisitas,estavanova—emaisalgumacoisaqueeudeixaria,constituiriamumfundo,aserdepositadonumbanco.Eudeixeitambémseismesespagosàdonadacasa,eessefundo,paraqueelaspudessemmanter-se,comer,passear,iraocinema,comprarumacoisaououtra,eraumbomdinheiro!Apartirdoesgotamentodofundo,elasmecomunicariamcomantecedência,eeuficariaremetendodinheirodosEstadosUnidos.

    Terceiro itemqueficoudecididoéqueelas telefonariam,apagar,nodiaemquequisessemiraosEstadosUnidos.AssimqueeuchegasseaosEstados

  • Unidoseumandariaonúmerodotelefoneetc.

    Partimos, Elza, eu e os meninos. Nós conversávamos, assim que tivetelefone.Cada semana elasdavamnotíciasdelas.Trêsmesesdepois elasmetelefonaram — falou primeiro uma, em seguida a outra — dizendo daimpossibilidade de continuar e da vontade de ir. Eme lembro de que umadelas—nãoseisefoiFátimaouCristina—disseamim:“Meupai,vocêachaqueagoraauniversidade”—queantesobviamentepagariatodasaspassagens—“pagaráasduaspassagensdagente?”Eudisse:“Não,minhafilha,nãovaipagarmais,agorapagoeu.”Eela:“Ah!,masquecoisa!”Eeu:“Agoraeuquerodizeravocêsduasoseguinte:seseupaiesuamãeagoradisséssemos‘Vocêsestão vendo a loucura dos adolescentes, a irresponsabilidade dos moços?!Vocês nos deram uma despesa de x dólares, que vai ser o custo das duaspassagens!’,seoseupaidissesseissoagora,poriaporterraareuniãoquefezcomvocêsháquatromesesatrás.Enãoteriasentidodejeitonenhumaobraqueseupairealizouatéagora,porqueseriaacontradiçãoabsoluta!”

    Continuando a conversa eu disse: “Não tem problema nenhum, eu vouremeteraspassagensparavocês,evocêstratemagoradeobterovisto.Depoisme comuniquemquando estão vindo.” Pois bem, eu acho que essa históriaquefezpartedadespedidadoChileedachegadaaosEstadosUnidos,deumafamília exilada e, portanto, de uma família que sofria o desenraizamento, ainsegurança do desenraizamento, é — me parece — um testemunhointeressantedecoerência.Querdizer:paranós,eramuitomaisimportanteàsfilhas e aos filhos testemunharem a coerência com que nós pensávamos aprática educativa em casa e no mundo; era muito mais importantedemonstrarqueaquiloquenósdizíamosnósfazíamos,doquedaràsfilhaseaos filhos o testemunho de que não levávamos a sério as coisas de quefalávamos.Issoficouprovadonessahistória.Eununcapergunteiaelas,masnão tenho dúvida nenhuma de que isso as marcou. E a prova é que, nomomentodareuniãonoChile,quandonósdissemos,Elzaeeu,queoobjetivodareuniãoerasaberquemqueriairequemqueriaficar,melembrodequeaCristinaperguntouseaposiçãodelas,depoisdeexplicitada, seria respeitadamesmoparavaler.Emoutraspalavras: sea reuniãoeraparavalerouseeraparaparecerqueera.Enósdissemos:“Não,areuniãoéparavaler!”

    2.“ISSONÃOEXISTEEMLÍNGUAINGLESA!”

  • SÉRGIO: Saindo da esfera familiar, onde essa história aconteceu, e nosprojetandojánoteutrabalhoprofissional,depoisdatuachegadaaosEstadosUnidos,oqueéquemaisteimpressionoulogonoinício?E,sóparaorientarumpoucomaisaquestão:comoéquefoioteubatismonalíngua?

    PAULO:Oquemaismeimpactou,aorecémchegaraosEstadosUnidos,foidescobrir,comcertoespantomeu,quetodooinglêsqueeupensavaquesabianãoexistia.Eu tinhaumaexperiência visualdo inglês, enãoauditiva; tinhauma possibilidade relativa de ler textos de filosofia, de pedagogia,mas nãoliteratura.Eunãoliaumjornal, tampouco.Enocampodaoralidadeeunãoentendiapraticamentenada!

    Entãoissomeangustiou,peloseguinte:nodiaposterioraoqueeucheguei,eucomeceiamesentirperdido,naprimeirareuniãoqueeutivenumcentro,nãoaindaemHarvard.Aovoltarparacasa,eudisseparaElza:“Elza,euachoque assumiumaposiçãodesonesta, desleal, porque eu aceitei um convite, enãofaloessa línguadaqui,enãopossodaraulaemportuguês!Nãodá,eeuacho que não vou aprender essa língua a ponto de ter uma desenvolturamínima!” Ela disse: “Olha, Paulo, eu estou gostando disso aqui.” Você aconheceu bem, a Elza tinha essas coisas fantásticas, e disse: “Eu estougostando disso aqui, não quero voltar, não tenho por que voltar, nem vocêtampouco. Pois que seja humilde e estude! Se você levar isso a sério, vocêfalará inglês como você fez outras coisas! Assuma hoje a responsabilidade!Claroqueeunãocreioquevocêtenhavindoparacáirresponsavelmente,dopontodevista subjetivo.Objetivamente, foiuma irresponsabilidade,porquena verdade você não está falandomesmo! (risos) Pois que trate de superarisso!”

    EvidentementequeaElzadiziaessascoisasnãocomoquemquermatarooutro.Elaeracortês,eracivilizada,masdiziaaverdade.Eeudisseaela:“Vocêtem razão, e eu vou levar isso a sério!” E então comecei a ler e a falar. Aprimeira coisa que eu fiz: Cambridge tem uma rede de livrarias que éextraordinária, e eu visitava todas essas livrarias diariamente. E comecei arecomprar livros que eu já tinha, mas que eu tinha ou em francês, ou emespanhol,ouemportuguês.Eucomeceiacomprar tudooqueeu já tinhaequeerafundamentalparamim,eminglês.EntãoeucompreiMarx,comprei

  • Hegel, comprei Sartre, Merleau-Ponty, em inglês, nas traduções norte-americanas.

    E comecei a lê-los, com um dicionário Webster junto de mim, e compacotesdefichasbranquinhas,queeuchamavade“fichasdeleitura”.Então,quando eu encontrava uma frase em que eu penetrava, em que eu meadentrava e percebia a significação profunda, eu aí tentava uma análise dasintaxequefundavaaquelafrase,ecomparavacomaminhasintaxe.Eviaquea coisa era muito diferente! Como eu tinha, e tenho, um domíniorelativamente bom da sintaxe da língua portuguesa— dos regimes verbais,dascolocações,dosmanejosdaspalavras,dos torneiosetc., começoua ficarfácilparamim.

    Eeumelembroqueumaintelectualnorte-americanaquehaviaestudadonaUniversidadedeSãoPauloantesdogolpeseprontificouameajudar.Elameouviahoje,porexemplo,duranteumahora,falandoinglês,eregistravaoserros que eu cometia. No dia seguinte, trabalhava comigo uma hora, duas,erroporerrocometidopormim.Ecomoelaconheciaasintaxedalínguadelaeasintaxenossa,eladizia:“Olha,Paulo,emportuguêstupodesdizerisso.Eminglês,nunca!”Umexemplodisso:eudiziaeminglês“Iwasbeingprohibitedoftobe.”Eraatraduçãoliteraldasintaxebrasileira“euestavasendoproibidodeser”.Nodiaseguinte,elachegoujuntodemimedisse:“Olha,Paulo, issonão existe em língua inglesa!O pessoal nem entende o que tu queres dizer(risos),porque,numcasocomoesse,vocêusaoverbotoprevent,emseguidaapreposição from, e em seguida o verbo principal no gerúndio. Aí tu devesdizer:Iwaspreventedoubeingpreventedfrombeing,oufrombecoming, fromgoing,fromdoing, fromspeaking, fromeating, fromteaching, from loving etc.Tunãopodes é dizer isso que tudisseste. (risos)Nuncamais eu repeti esseerro,nuncamais!

    Assim,dentrode talvezummês,dois, acrescidoda leitura edasminhasnotas—queeulamentavelmenteboteiforanaSuíça—eucomeceiaescrever.FoiotempoquechegouparaeuiniciaroseminárioemHarvard.Eucomeceia escrever com o auxílio de um aluno de Harvard que não sabia nada deportuguês,mastinhaodomíniodalínguadele,elemelhoravaomeuinglês.

    3.IRAOSESTADOSUNIDOS?“EUQUASEDISSENÃO!”

  • SÉRGIO:Oseminárioerasobreoquê?Qualeraamatéria?

    PAULO: A matéria era o meu pensamento. Eu tenho até que pedirdesculpas,porquepareceumcabotinismohorrível!Masamatériaera:comoeuentendiaaeducação,jánaépoca.

    SÉRGIO:ApedagogiadooprimidosegundoPauloFreire…

    PAULO: É, não estava ainda traduzida a Pedagogia do oprimido, estavasendotraduzida…

    SÉRGIO:…ou,aeducaçãopopulardeacordocomPauloFreire…

    PAULO:Não tinha título assim,mas no fundo era essa frase, talvezmeiopretensiosa.Nãoestavaescrito,maseraisso:comoéqueeupensoaeducação.Muitodialógico.Eufizamesmaexperiência,comroupadiferente,quevocêfez anos depois, e antes deme conhecer pessoalmente, naUniversidade deLyon.Obtiveresultadosparecidostambémcomosseus.

    Eulhedigo:aminhapassagemporHarvard,porpequenaquetenhasido,foi uma passagem gratificante, por várias razões. Primeiro, era a minhaexperiência com esse mundo altamente tecnológico, misterioso, que é asociedade americana. A minha experiência com a discriminação, que eununcatinhavistocomtantaintensidade!AdiscriminaçãonoBrasilexiste,nóssomosumasociedaderacista,machista,autoritária,mas,paramim,pelofatode que o capitalismo ainda não deu certo — e eu espero que não seja só“ainda”, mas que não dê certo nunca no Brasil— o que acontece é que aquantidadedenegrosbrasileirosqueestãofustigandoomedodosbrancosdaconcorrência em empregos é muito pequena ainda. E porque é muitopequena,entãoosbrancossãoracistasmelosos,enquantonosEstadosUnidosnãotemnadademeloso,énoporretelogo!

    Para mim, há indiscutivelmente uma relação entre racismo, classismo,capitalismo e democracia: os norte-americanos não podem dizer ainda quetêmumademocracia substantiva, nomeu entender. Eunão posso conciliarumademocracia—queeuchamodesubstantiva—comracismo,sexismoeautoritarismo, do jeito que a gente encontra na sociedade americana. Demaneiraqueessemeuencontrocomessesfenômenosmeensinoumuito!Foiláquedescobriessacoisamuitoóbvia,sobreaqualeuescrevi:aexistênciadeumterceiromundonoprimeiro,eaexistênciadoprimeironoterceiro.Quer

  • dizer, um conceito muito mais político, ideológico e econômico do quegeográfico,nadadegeográficoapenas.

    EuaprendimuitonosEstadosUnidos,enãomearrependojamaisdetervividoessesmeses,essequaseano,nosEstadosUnidos.Nãomearrependodeir ládesdeaquela época todosos anos, e voucontinuar a ir. Sódeixode ir,primeiro,seelesmeproibiremdeir;segundo,quandoeualcançarumaidadeemqueeu jánãopossa irnemaoRecife.Masfora isso,eu irei todavez.Eutenhomuitos amigos americanos, scholars muito sérios, muito leais, muitohumanistas,muitocompetentes.

    Essa questão de você condenar toda uma sociedade por causa dapreponderânciaoudacaracterísticadoseugovernoéumaingenuidade,umaingenuidadedequeeuparticipei.Eujádisseissoemoutrolivro:aoprimeiroconvitequeeurecebiparairaosEstadosUnidoseuquasedissenão,porqueaminhateseeraadequeeunãotinhanadaaaprendercomomeudominador!O que era cientificamente um absurdo, porque o dominador é o primeiropedagogododominado.Cientificamente,é.

    SÉRGIO:Sim.Elepodeseréummaupedagogo,masé.

    PAULO:Do ponto de vista dele, ele é excelente,mas, sendo excelente dopontodevistadele,odominadoterminaporaprendermanhascomasquaissedefendedopoderdodominador.

    SÉRGIO:Manhas que ele aprendeu do próprio dominador: “é a volta docipódearueiranolombodequemmandoudar”,diriaGeraldoVandré.

    4.OFRIOEABARBA,OTRABALHOEASAÚDESÉRGIO: Mas já que está chovendo em São Paulo, uma pergunta ligada aoconcreto-concretodamemória:nosEstadosUnidosteatrapalhavaachuva?

    PAULO:Não,não.NosEstadosUnidos,dopontodevistadosfenômenosnaturais,duascoisasquemeatrapalharamforamoexcessivocalordeBoston,emCambridge,noverão,eaintensidadepesadadogeloedanevenoinverno.Efoiexatamentecoma tentativa, talvezmágica,masmuitoconcreta,demedefenderdofrio,muitíssimomaisfortedoqueodeSantiago,queeucomeceiausarbarba, em1969.E,depoisde ter começado ausarbarba, chegouummomentoemque tirá-laeramedescaracterizar.Entãoeuaté talvezpudesse

  • dizerhojedeformamuitosimples:eusoutambémaminhabarba(risos),demaneira que se eu tirar a minha barba hoje, grande parte do mundo medesconhece.MaseucomeceiausarbarbaparadefenderumpoucoacaradarigidezdofriodeBostonedeucerto.

    SÉRGIO:Eoprimeirofiodecabelobranco?

    PAULO:Achoque foinoChile,apóschegaraoexílio,eeu tinha43anos.Masessacoisadevetersidotão insignificanteparamimquenãomedeixoumarcanamemória.Nãomeafetounemmefezfazernenhumtipodereflexãoemtornodavelhice.

    É uma coisa interessante, comigo: às vezes eu descubro, um poucosurpreso,quetenho71anos,porquemeuhábitocomigomesmo,namedidaemquepenso,emquereflito,emquetrabalho…eutenhoumacapacidadedetrabalho que assustaNita emeus filhos também, que obviamente diminuiuumpouconessesúltimosdezanos.Porexemplo,houveváriasvezesemqueeusaídaquinumaquinta-feiradenoite,desciemNovaYorkdemadrugada,tomeiumahoradepoisumaviãoparaPortoRico,chegueilánasextaàhoradoalmoço,tomeiumlanche,dormiatécincodatardedeláeàsseisdatardeabri uma conferência.Nodia seguinte, sábado, fiz um seminário de oito àsdez, outro de dez ao meio-dia, almocei, tive um pequeno encontro comprofessores, trouxeram-meparaoaeroporto, tomeiumaviãoemPortoRicoaindanosábadodetardinha,chegueiaoBrasilnodomingo;ehouvediasemqueeuchegavaaoaeroportoeiacomElzadiretoparaapraia.NasegundaeuestavadandoaulanaPUC,enãoimaginavamosalunosque,dequintaparasegunda, eu tinha estado dando seminários em Porto Rico. E eu fazia issocomoseeutivesseidoaSantos!

    Hojenãomais,issodaíeunãoaguento.Éporissoqueeucomeceiaexigiragorapassagemdeprimeiraclasse,poisdescobriqueelaobviamentedefendeoteucorpomuitomaisdoqueapassagemdeclasseturística.Eentão,quandoauniversidadenãopodepagar,eudigo“ok,não temproblemanenhum,eunão vou”. Quer dizer: eu só viajo de primeira classe e faço às vezes umaconcessãoeviajodeclasseintermediária.Asuniversidadesquemeconvidamestão reconhecendo todas que assim é que está certo. E pagam também apassagemdeNita, porque eudigo: “eunão viajo só, não gostode viajar só,minhamulherpodeviajarcomigo.”Seelanãopuder,eunãopeço,masseela

  • puder,eudigoqueécondiçãosinequanon.Eelesatendemtodavez:pagampassagemparamimeNitadeprimeiraclasse,hoteletudo.

    Mas quanto à capacidade de trabalhar, por exemplo, aqui em casa euescrevodesetehorasdamanhãatédenoite.

    SÉRGIO: Se você tivesse que considerar a vida como um período de 24horas,dessas24horasvocêpassouquantotempotrabalhando?Doze?

    PAULO:Ah,seriammaisoumenosdoze.

    SÉRGIO:Eissoconsiderandocomonãotrabalhotodaaatividadedeaçãoereflexãodocotidianoquenãoestariadiretamenteligadaàprofissão…

    PAULO: Exato. Por exemplo, durante o almoço, uma conversa maisrigorosa comNita, uma conversamais séria. Às vezes, no almoço, a gentetroca ideias sobre a tese que ela está escrevendo, o livro que eu estouescrevendo.Écomoseagentecontinuasseatrabalhar.

    Eutenho,naverdade,umaenormeresistência,umacoisafantástica;tenhoumasaúdeexemplar!Nãoqueeunãováaomédicosempre.Euvouatépordisciplina,paraqueelemereveja.Eeleémuitoexigente,gostamuitodesaberdas coisas e está certo. Desconfia de uma coisa qualquer e pede exame A,exameB.Elenãoéumtecnologista,oErnandi,émaisumhumanistadoladoda ciência, que ele executa comomédico. Por isso mesmo, ele não nega atecnologiaeanecessidadedatecnologia.Àsvezessezangacomigo,porqueeunãocumpromuitobemas coisas.Masnocampoespecíficodo seu cuidadocomigoeunãopifonunca: tomoomeuremédiodepressãoarterial,queéaúnica coisa desmantelada que tenho. É uma hipertensão que se expressouquando voltei do exílio. De jeito nenhum tenho autoridade científica paradizer que a hipertensão apareceu aqui porque eu voltei para o Brasil; nãotenhoessapretensão,masfoiaquiqueelaapareceu.Eleéquepercebeuisso;medáumamedicação,euatomodiariamentee,todavezqueeuvouláeelemeexamina,estoucom14por8,queéumapressãoparameuneto.

    Querdizer: a saúde éótimamesmo!Andei sofrendomuitodegota,quemeirritavademais,memaltratava,eeueradesleixado,desobediente,porquesócomiaoquefaziamalàgota.Mas,dedoisanosparacá,resolvilevarissoprofundamenteasérioepasseientãoamudarminhadieta.Efoimudandoaminhadieta,comaajudadeumoutrograndemédicoqueelemeindicou,que

  • eu consegui passar dois anos agora, em cujo período eu tive apenas umasemana,hádezdias,sabendoquetinhajoelho.Elapegouumpouconojoelho,masjápassoueestouemplenaforma.

    5.NUMAÉPOCADENOITEMAISNEGRASÉRGIO:Voltandoumpoucoatrás,a1969.Enquantovocêdeixavaasuabarbacrescer,eufaziaocursoNormal.Queriameformarprofessorprimário,estavano Brasil, estado de São Paulo, numa cidade de porte médio chamadaPresidente Prudente, estudando à noite, já no segundo ano do curso deformaçãoparaomagistério.

    Paralelamente,duranteodia, eu trabalhava.Haviacomeçadoa trabalharaos dezesseis, em São Paulo, na antiga TV Paulista, canal 5, que depois foiincorporada à RedeGlobo, na rua das Palmeiras. Comecei em 1967, comooffice-boy.Asminhas ligações comosmeiosde comunicação vinhamdesdeessa época, em que comecei entregando cartas, sobretudo. Pouco tempodepois passei para o departamento de artes daTVPaulista.Naquela época,nãohavia toda essa sofisticaçãoque se vêhoje, por exemplo,na introduçãodosprogramasdeTV, essahistória deusar computadores para os letreiros.Eratudofeitoàmão,eeutrabalheiaíumtempo“fazendoarte”,ajudandoafazerletreiros,desenhosemeocupandodosarquivos.

    Mas como eu queria continuar a estudar, e era mais tranquilo fazer oNormalnointerior,láfuieuparaacasadosmeusprimos,fazerostrêsanosdocurso.Aomesmo tempo, jápicadopela curiosidadedo jornalismoedosmeiosdecomunicação,eucomeceiafazeralgunstrabalhosnumadasrádioslocaisenumjornaldiáriodenomepoucomodesto,OImparcial.

    Aliás, eu já tinha feito referência a esse período no livro Educar com amídia: novos diálogos sobre educação.13 O queme faz voltar a esse períodoagoranãoétantoessapassagempelojornalismo,masmaisopróprioensino,dentrodocursoNormal.

    Foi ali que eu ouvi pela primeira vez, de forma clandestina, sussurrada,completamenteforadasaulas,umareferênciaaotrabalhodealfabetizaçãodoprofessor Paulo Freire. Em nenhuma das aulas de Filosofia da Educação,Psicologia Educacional, Prática deEnsino,Didática da LínguaPortuguesa e

  • tantas outrasmatérias, qualquer alusão era feita aosmovimentosde culturapopular, ao trabalho de alfabetização de adultos que você já tinhadesenvolvidohátempos.Nósestávamosevidentementenumaépocadenoitemaisnegradaditaduraeisso,portanto,hoje,nãomeespantanada.

    OfatoéqueeuacabeiouvindofalardasexperiênciasdePauloFreirepormeiodeamigosmeusquenãoestavamfazendoocursoNormal,masquejáestavamnafaculdadeequetinhamparticipadoemSãoPaulodereuniõesemque se fazia alusão a essesmovimentos, aos chamados “círculos de culturapopular”.

    Paravocêterumaideia:oprimeirolivroteuquelinãofoiEducaçãocomopráticadaliberdade14emportuguês.FoiaPedagogiadooprimido,senãomeengano, numa edição uruguaia que tinha, em preto e branco, uma velhasenhora na capa. Essa foi a primeira imagemqueme veio daPedagogia dooprimido. Foi uma primeira leitura difícil. Primeiro porque o meuconhecimentodoespanhol,naépoca,delongemepermitianavegarnaságuasde sua leitura com a mesma facilidade com que se navega em línguaportuguesa. Segundo porquePedagogia do oprimido, paramim, é um livroquecontémumdiscursodecaráterbastante filosófico,muito teórico,muitodiferentedoqueosnossos livrosdepois trazem:essesmomentosnarrativos,essas referências dehistória que teriamatraídomais o jovemnormalista daépoca. O fato é que a percepção primeira que eu tive da Pedagogia dooprimidonãofoiadeumlivrodeacessofácil.

    TiveumavisãomuitomaissatisfatóriaquandolioEducaçãocomopráticada liberdade. O prefácio doWeff ort, por exemplo, me ajudou a entendermuitomais,porque trazia referênciasdocontextohistórico.Poisbem,essasleiturasvieramnummomento-chave,emquecomeçavaaminhaexperiênciacomo professor primário em sala de aula. As tuas ideias me atraíram nosentidododesafioconcretodabusca,commeusalunos,deumclimademaiorliberdade.Aúnicacoisaqueeulamentavanaépocaeraqueaindaseassociavamuito Paulo Freire a ummétodo de alfabetização, como se o Paulo Freireservisseapenasquandosetratassedeaulasdealfabetização!

    Enfim,euachoque,comocapítulo,faltariaapenasquevocêacrescentasseo sair dos EstadosUnidos.Ou talvez a gente possa acrescentar esse sair nopróximocapítulo.Comoéquevocêprefere?

  • PAULO:Nãoseinomomento.EuachoqueteriaqualquercoisaparadizeramaisduranteaminhaestadanosEstadosUnidos,vamosver.

  • Notas13 Para as edições de 2011, optou-se por trabalhar cada livro de forma independente. Dessa forma,SobreeducaçãoII,tornou-seEducarcomamídia:novosdiálogossobreeducação.(N.E.)

    14 PauloFreire,Educaçãocomopráticadaliberdade.SãoPaulo:PazeTerra,1996[14ªed.SãoPaulo:PazeTerra,2011].

  • 2

    ENQUANTOISSO,NOBRASIL:HISTÓRIASDOINTERIOR

    1.PEQUENASCOISASDOJORNALISMO:AVISITADEUMPAIDESESPERADOSÉRGIO:(Dois dias depois.)Dia lindode sol emSãoPaulo.Hoje eu tenho aimpressão de que não vai chover, depois daquele pé-d’água que deu. É aépoca,Paulo,tudodependedaépoca.Vamoscontinuaranossaconversa?NósestávamosfalandosobreaqueleperíodoemquevocêdeixouoChileefoiparaos Estados Unidos. E eu havia já aproveitado para fazer um flashback daminha situação no interior do Brasil, no estado de São Paulo — maisespecificamentenacidadedePresidentePrudente,regiãodaAltaSorocabana—,dandoosmeuspassosdeeducandonaformaçãodeprofessorprimário,naEscolaNormal.

    Comoeuhaviadito,paralelamenteàformaçãodenormalista,eujáestavatambém experimentando um pouco o gosto do jornalismo. Depois de tercomeçadona cidadede SãoPaulo comooffice-boy naTVPaulista, euhaviatambém feito, durante algunsmeses, uma série dematérias— ainda comojornalistamirim—paraumarevistinhaquejánãoexistemais,especializadaem rádio, televisão e fofocas, chamada São Paulo na TV. Comecei fazendotextos de um palmo, que davam uma pequena página, com três ou quatroilustraçõesdeumartistaemquestão,oqualeu iaentrevistaremcompanhiado fotógrafo da revista. Coisas ainda muito infanto-juvenis dentro dojornalismo.

    Só para te dar um poucomais do fio dameada: antes ainda de ir paraPresidentePrudente, euhavia tambémtrabalhadocomo foca,15duranteunspoucosmeses,naFolhadeS.Paulo.Naépoca,erachefederedaçãoograndejornalistaCláudioAbramo, infelizmente falecido. Lembro-mebemdo chefedereportagemmemandandoir,porexemplo,àbaixadeSãoPaulo,fazerumamatéria sobre a venda de castanhas e produtos de Natal, que não estavamsendobemvendidos…Pequenascoisasdojornalismo,nasquaisjáexercitavaumpoucoopotencialdebusca,depesquisa,dedesvelamentodeinformações

  • paraconhecimentopúblico.Lembro-metambémdodiaemquedescobriramnaFolhaqueeunãoeramaiordeidade.Chegouumdia,depoisdealgumassemanasdetrabalhoinformalcomofoca,queoCláudioAbramomechamou,medizendoque talvezhouvesseumapossibilidadedeme aproveitarparaoquadro de jornalistas deles, e que eu começasse a preparar os documentos,queeuapresentasseacarteiradeidentidade,otítulodeeleitoretc.Eeu:“Maseunãotenhodezesseteanosainda.”Aíelemedisse:“Olha,rapazinho,entãovocêvaicrescerprimeiro,edepoisvocêaparece.”

    E assim terminouminha curta experiência como foca naFolha, porquenão era possível a um rapazinho de dezesseis, dezessete anos elaborar umareportagem, nem assinar, nem ser evidentemente uma fonte fiável deinformação dentro do jornalismo. E como em São Paulo eu não estavaconseguindoestudar, jáqueestavacomproblemasparaencontrarvagasnasescolas,eoqueeuqueriafazermesmoeraocursoNormal,acabeiindoparaPresidentePrudente.Foiaí,comolhedizia,quemeengajeinoImparcial,umjornal cujo título era, ele próprio, todo um desafio, uma utopia, umacontradiçãoconstante.Aliás,umjornalquecresceumuitoecontinuaatéhojecom o mesmo título. Nele, comecei a fazer reportagens de rua, matériaspoliciais,políticas,umpoucodetudo.Aúnicacoisaquenãochegueiafazerrealmente foi coluna social, porque esse trabalho já estava sendo feito porcolegasmeus.

    Vivi então simultaneamente as funçõesdenormalista em formação ederepórter, trabalhando tambémem rádio.ARádioComercial ficava logo emfrenteaojornal,erasóatravessararua.Ali,alémdeescreverparaonoticiário,eu participava também do jornal falado do meio-dia, com uma espécie derubrica chamada “Sinal de Alerta”, que também aparecia como coluna nojornalOImparcial.Alieufazia,durantequatro,cincominutos,adenúncia,oanúnciodeumfatodacomunidade,dacidade,daregião,quemepareciavalerapenadestacar.Normalmenteeramassuntosquesuscitavamcertapolêmica.Voltaemeiaeumexiaemvespeiros.

    Paratedarumaideiadotipodevespeiroemqueeumexia,bastalhedizer,porexemplo,queumdiaeurecebonojornalavisitadeumpaidesesperado,cujofilho,deficientemental,acabavademorrer.Opaimalconseguiaarticularpalavra com palavra, muito revoltado, chorando, num momento limite

  • mesmo de revolta e de dor, à procura de alguém com quem desabafar. Euatendi,pergunteioqueera,edepoisdeumlongotempo,atéqueohomemseacalmasse um pouco e conseguisse se expressar, acabei percebendo que setratavadocasodesuacriançaqueacaboumorrendopornãotersidoatendidaprontamentenaSantaCasadeMisericórdia,ouseja,nohospital,peloINPS.

    Procurei investigar: conversei bem com o homem, fui até a casa dele;infelizmente a criança já havia falecido, mas o homem insistia em tornarpúblicooseugritodedor,deprotesto,derevolta,pelofatodeseufilhonãoter sobrevivido. O problema é que havia na época um certo número deconsultas,apartirdasquaisomédiconãoatendiamais.Ooperáriofoilácomseufilhomas,comoerapeloINPSeelenãotinhadinheiroparapagarmédicoparticular,acaboutendodeficarmesmonafiladoINPS.Comonaquelediajápassavadosvintepacientes,nãoconseguiuseratendidoetevedevoltarparacasacomacriança,queacaboumorrendo.

    Eufizlogoumacolunaqueojornalpublicounodiaseguinteequedeuomaiorpipoco, com representantedo INPS vindo ao jornal, confusão comaSociedadedosMédicos,comadireçãodaSantaCasadeMisericórdiaetc.Issoapenas para te dar um exemplo dos tipos de problemas que a genteenfrentava.

    2.ANOTÍCIAATRÁSDOREPÓRTERE“UMABOMBAPARAVOCÊ!”SÉRGIO:Apesardetudo,issopermitiatambém,aflorandoessesproblemasdacomunidade, fazer coisas que até hojeme dãomuito praze r de rever. Porexemplo, uma série de reportagens que comecei a fazer, num segundocaderno que então se lançouno Imparcial, aos domingos. Foi uma série dematériascomtrabalhadoresdacidade.Aprimeirafoicomoscharreteiros,queainda havia. Fui conversar primeiro com eles; depois aprofundei com umcharreteiro,pesquisandoumpoucomaissobreavidadele,comfotosetudo.Eentão,aosdomingos,sempreapareciaumapáginanosegundocaderno,oracom um charreteiro, ora com um ferreiro, sapateiro, lixeiro, apresentandosempreaspectosdasuavida,perfishumanosdentrodotrabalhoetc.

    PAULO:Nofundo,vocêprovocavaaimparcialidadedoImparcial.(ri)

  • SÉRGIO: Bem, euprocurava fazer uma coisa diferente do que se fazia atéentão,porqueumdosproblemasquehavianaépocanointerior,Paulo—esedizia até comum certo humor—, era que a notícia é que tinha que correratrás do repórter, e não o repórter atrás danotícia.O fato é que sempre secriticoumuitoaacomodaçãodosórgãosdecomunicaçãointerioranos,coisaquefelizmentemudou.Hojevocêjávêumaimprensanointeriormuitomaisdinâmica,viva,atilada,quevaiatrás.Masnaépocaeraosujeito,anotíciaquetinham de ir ao jornal. Num certo sentido, hoje ainda se vê muita notíciacorrendoatrásderepórter,masjámudoubastante.

    Parapôrà tonaumdoscasosquemaismemarcaram—euainda tinhadezesseteanosnaépoca—,lembro-medeumdosvereadoresdaoposiçãoaoprefeitonaCâmaraMunicipal,meuconhecido,umafiguramuitopopularnaregião: Joaquim Zeferino Nascimento, — Jaca —, muito aguerrido, muitolutador,comumagarraeumalínguaqueofaziamsertemidopelaturmadopoder.

    Um dia, chega o Jaca ao Imparcial, que ficava assim numa espécie desubsolo. Havia que descer umas escadas, a gente trabalhava assim, fazendonotícianascatacumbas,numcertosentido.Elechegouaosubsoloe foi logodizendo:

    —Sérgio,eutenhoumabombaparavocê!

    —Oqueé?

    —Na próxima reunião daCâmara nós vamos pedir o impeachment doprefeito.

    —OimpedimentodoprefeitoSandoval?

    —Sim,jábasta!Nósnãopodemosaguentarmais!Eeugostariaquevocêtivesseemprimeiramãoestanotícia.

    —Estábem.Possopublicar?

    —Pode.

    Era ali por volta de umas dez emeia damanhã e eu ia entrar no ar nojornal da rádio a partir domeio-dia.Aproveitei e fiz logo ali uma pesquisasobrecomoseriaoprocessodeimpeachmentdoprefeito.Lembro-meatéquejá havia na época uma legislação, se nãome engano do presidente Castelo

  • Branco, que regulava os casos de impedimento. Procurei invocar os artigospertinentes,mostrandoaosouvinteseleitorescomoéqueoprocessosedaria,explicando como seria a tramitação, quantos dias para isso, quantos paraaquilo.

    Termino amatéria um pouco antes domeio-dia, atravesso a rua, subo,começa o jornal e eu entro no ar com a notícia de que o prefeitoAntonioSandovalNeto iria sofrerumpedidode impeachmentnapróxima sessãodaCâmara. Quando eu termino o jornal e abro a porta do estúdio, encontrodiante de mim dois senhores com ar circunspecto, que não me eramdesconhecidos.Olheiedisseamimmesmo:“ÉoDOPS,éapolícia.”Apolíciadeinteligênciadaterra,nãoé?Efoi:

    —Osenhoréqueacabadefalarnarádio?

    —Sim,soueu.

    —Osenhorentãodevenosacompanhar.

    —Aonde?

    —Àdelegacia.

    —Masporquê?

    —Peloqueosenhoracabadefalar.

    —Masseéporissoeutenhoaquiopapelqueescrevi.

    —Entãoosenhornosdêopapel.

    —Essepapeleunãolhespossodar,queooriginalédoautor.

    —Masentão,comoéquenósfazemos?

    — Eu fiz uma cópia. — Naquela época a gente fazia cópia com papelcarbono,nãohaviatantafacilidadedesefazerfotocópia.—Tenhoumacópiaacarbononojornal.

    Descemos, fomos ao Imparcial. Era hora do almoço, redação vazia. Euentregoacópiaparaumdospoliciaisàpaisana,eelediz:

    —Agoraosenhorentãonosacompanheatéadelegacia.

    —Àdelegacia?Porquê?

  • —Osenhorvaiterquenosacompanhar.

    —Maseunãovou.

    —Ah,osenhorvaiterqueir,sim!

    —Não,nãovou.Eusoumenor.

    —Quandoeudissequeeramenor,ohomemencalacrou.Eeu:

    —Alémdisso,euestousempreaquinojornal.Maistardeagentepodevercomodiretor,oucomochefederedação,oqueéquesevaifazer.

    Quandosoube,maistarde,odiretordojornalficoutodopreocupado:

    —Asoluçãoéirfalarcomocuradordemenores,paraeleteacompanhar.

    Eláfomosnós.Definiramquemseriaocuradordemenoresdaterraqueteriadeircomigoàdelegaciae,apartirdaí,Paulo,atéeucompletardezoitoanos,eracomelequeeutinhadeirprestardeclarações.Nodiaemqueeufizdezoito finalmente pude ir sozinho à delegacia para terminar de responder.Felizmente,tudonãopassoudeinterrogatórios.Umadasperguntasquemaismechamaramaatenção,numadasvezes,foi:

    —OquevocêachadogovernoCostaeSilva?—Eeu:

    —Masoqueéqueissotemavercomoimpeachmentdoprefeito?

    Paraterminarestaparte,eulhediriaaindaque,porincrívelquepareça,nofinal,aCâmaradeVereadoresnãoapreciounenhumpedidodeimpeachmentdo prefeito. Esse vereador da oposição, aparentemente muito conceituado,acabounão cumprindo aprópriapalavra.Elenãonegouquemehaviaditomas,afinal,acabounãoapresentandopedidonenhum,eeuqueacrediteinafonte é que fiquei no fogo. Isso apenas para ilustrar uma parte da minhahistóriadessaépocaeasliçõesqueagenteacabatirando.Euqueriaquevocêreagisseumpoucoaisso.

    3.AMORTEDOMENINOEOINSTINTODECLASSEPAULO:Vocêfoisalvopelogongodamenoridade!(risos)Masnessashistóriasque contas de Presidente Prudente, há dois momentos que me interessamcomentar.Oprimeirofoiamortedomenino,filhodooperário,queenvolvearaiva legítima e o desespero não menos legítimo de um pai que, não com

  • dificuldade,descobre,percebequeamortedeseufilhotinhaalgoavercomaposiçãodeclassedele.Eunãotenhodúvidanenhumadeque,sevocêtivesseperguntadoàquelepaiemdesesperocomoéqueeleliaodiscursodohospital,eletefariaumaexplicaçãorigorosa,umaanálisedeclasse,queosneoliberaisde hoje dizem que não existe mais. Existia naquele momento da mortedaquelemenino,comocontinuaexistindohoje.Possivelmenteelenãofizesseassimumaanálisecrítica,maselerevelou,quandoteprocurou,oqueagentepodechamardeinstintodeclasse.Nãoeratalvezaconsciênciadeclasse,maseraoinstintodeclasse.

    Alémdisso, eu acho que seria interessante tambémobservar o seguinte:obviamentequequandoocorpomédicoestabeleceumnúmeroxdeconsultasdiárias,ocorpomédicotemrazãoparaestabelecerisso.Arazãotemaverdeumladocomo