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  • –PAULOFREIREESÉRGIOGUIMARÃES

    AÁFRICAENSINANDOAGENTEANGOLA,GUINÉ-BISSAU,SÃOTOMÉEPRÍNCIPE

    PAZETERRA

  • 11-08606

    Copyright©EditoraVilladasLetras/©SérgioGuimarães

    Direitos de edição da obra em língua portuguesa adquiridos pela EDITORA PAZ E TERRA. Todos osdireitosreservados.Nenhumapartedestaobrapodeserapropriadaeestocadaemsistemadebancodedadosouprocessosimilar,emqualquerformaoumeio,sejaeletrônico,defotocópia,gravaçãoetc.,semapermissãododetentordocopirraite.

    EDITORAPAZETERRALTDARuadoTriunfo,177—StaIfigênia—SãoPauloTel:(011)3337-8399—Fax:(011)3223-6290http://www.pazeterra.com.br

    TextorevistopelonovoAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesa.

    DadosInternacionaisdeCatalogaçãonaPublicação(CIP)(CâmaraBrasileiradoLivro,SP,Brasil)

    Freire,Paulo,1921-1997

    AÁfricaensinandoagente:Angola,Guiné-Bissau,SãoToméePríncipe/PauloFreire,SérgioGuimarães.—2.ed.-SãoPaulo:PazeTerra,2011.

    Formato:ePubRequisitosdosistema:AdobeDigitalEditionsMododeacesso:WorldWideWebIncluibibliografiaISBN978-85-7753-214-8(recursoeletrônico)

    1.ÁfricaPortuguesa-Civilização2.Educação-ÁfricaPortuguesa3.Educação-AspectospolíticosÁfricaPortuguesa4.Línguaportuguesa-Estudoensino-ÁfricaPortuguesaI.Guimarães,Sérgio.II.Título.

    CDD-371.0096

    Índicesparacatálogosistemático:1.ÁfricaPortuguesa:Alfabetização:Educação371.0096

    http://www.pazeterra.com.br

  • ATODASASMENINASEMULHERESQUEVÊMCARREGANDOAÁFRICANASCOSTAS,EATODOSOSTRABALHADORESQUE,DAGRÁFICAÀEDITORA,FIZERAMCONOSCOESTELIVRO.

  • Sumário

    SOBREOSAUTORESPauloFreire

    —Muitoprazer!SérgioGuimarães

    PREFÁCIO:AÁFRICAENSINANDOAGENTE:ANGOLA,GUINÉ-BISSAU,SÃOTOMÉEPRÍNCIPE

    INTRODUÇÃO:OPORQUÊDESTELIVRO,ENTREOSALÃOEAMANGA

    PRIMEIRAPARTE:UMDEBATEDESALÃO

    1“EstereaprendizadoqueaÁfricameoferece”

    1. Luta,línguaseAmílcar:“Queliberdadeéessa?”

    2. Aescolhadocriouloeoportuguês.Eumaexperiênciaquenãodeucerto

    3. Moçambique?“Nãofuiconvidado.”AméricaLatina?“Umserdomundo”

    4. OMobraleaconscientização:“Renuncioausaressapalavra”

    5. Alfabetizaçãofuncional:“Caráterpolítico?O.k.”6. Dabelezadalínguacrioulaà“excelência”docolonialismo

    7. Umaconsciênciapolíticaclara,“foradaqualnãohácaminho”

    8. Alínguadoscolonizados:um“dialetofeioepobre”

    9. Odesenvolvimentodocrioulo:“Easoutraslínguasnacionais?”

    10. Qualmétodo,paraumpaíscom62línguas?

    11. Opção:entreaalfabetizaçãonaEuropaeo“reaprendizadoqueaÁfricameoferece”

    12. Explicandomelhoroquesignifica“falhar”

  • SEGUNDAPARTE:SÃOTOMÉEPRÍNCIPE

    2“Praticarparaaprender”:caminhosdeSãoTomé

    1. Umlivrinhosimples,“masnãosimplista”

    2. AhistóriadePedroeAntônio:evidênciaemistériodaparábola

    3. Esselivro,outrolivro:“algumasbrasileiradas”

    4. Alinguagemdascartaseaculturadememóriaoral

    5. Atécnicaepistolar:“nadadereligioso”6. Umoutrocaderninho:nadandoseaprendeanadar

    7. Umatrasodecincominutosequinhentosanosderesistência

    8. Aimpressãodeumafrouxura:ocolonizador“muitopróximoainda”

    3Oprocesso?Extraordinário,mas“simplesmente,houveumaruptura”

    1. “Aspessoascomeçaramalibertar-sementalmente”

    2. Oensinoeaideologiadotempo:“Nósnãotínhamoshistória!”

    3. Naempresa:“Apartirdaí,aalfabetizaçãocomeçouacair”

    4. Ummosaicodeculturas.Erros?“Houvefaltadecontinuidade”

    5. Futuro?“NãoésóoEstadoquetemqueresolveroproblema”

    4São-tomenseleve-leve?“Amudançatemdesergeral!”

    1. PauloFreire?“Éumpedagogo,etal.”“Eleéqueveioorganizarascoisas”

    2. Águapelasbarbas,presidentedaRepública:“EuconcordocomocamaradaSinfrônio!”

    3. Empresas,empresinhas,padarias:“E,assim,alfabetizou-semuitagente!”

    4. Asemente,aplantaeofruto:“Sóque,depoisdaquelacrise,não

  • choveu!”

    5. Aalfabetizaçãocaiu:“Faltaconscientização”

    6. Umdefeitoeomedodefalar:“Asverdadesàsvezespicam”

    7. Ocriouloeoproblemadalíngua:“Nãoresponde,nãoresponde!”8. Ameninaatrasadaeoanimador:“Adulto?Nãopodeszangaradulto”

    9. Brasileiro,nãoserdaterra?“Aquestãoésaberser”

    10. Freire,Freinet,placasemulas:“Osbrasileirossãoformidáveis!”

    11. Futurodeficiente,exemplodascegonhas:“Osimparaafirmareonãoparanegar”

    12. Democraciadodemo,leve-leve?“Amudançanãoésópolítica”

    TERCEIRAPARTE:ANGOLA

    5“OIdealperdeu-se.Éumacatástrofe!”

    1. OsCentrosdeInstruçãoRevolucionáriaePauloFreire,“umaespéciedeguia”

    2. “UmdosmaioresdesgostosqueeutenhoéaeducaçãoemAngola,queéumdesastre!”

    3. Futuro?“Fazerrenasceraqueleespíritodeeducaçãoquehaviaháumbocado”

    4. AorigemdosCentrosdeInstrução,“lugaresdeencontrodejovensparaaluta”

    5. Experiênciadealuno,notempocolonial:“Haviadoisnegrosnomeucolégio.Dois!”

    6. Educação,“umproblemaqueogovernotemqueresolver.Senão,serácondenado”

    7. SonhodeumaAngolaparaamanhã?“Educação,prioridadedasprioridades”

    6Apostarnaeducação,“maiscedooumaistarde”

    1. Umacertafrustração:alunossemhábitosdeleitura,seminteresse

  • 2. Palmatória,puxarasorelhas.Negros?“Doisoutrês,nomeiodeduzentos!”

    3. “Nãoerasódaraulas,eueraguerrilheirotambém”

    4. Quatrocentosalunos,umabasedomato:“Estavamesmonalinhadefronteira”

    5. “Nofundo,nóstentamosacasalarométodoPauloFreirecomocubano”

    6. Daguerrilhaaogoverno,quadrosdaeducação:“Porissoéqueeuaparecicomovice-ministro”

    7. Revolução:“Aummomentodado,essesistemacomeçouaderrapar”

    8. Limpeza,reorientaçãoideológica:“Aícometeram-seerroscrassos”

    9. Futuro?“Muitomaisdifícil,maislento”:novareformulação,alguminvestimento

    10. Professor,escritor.Serministro?“Eunãoandodecavaloparaburro”

    7Angola?Umavisãopolíticacompletamentediferente

    1. Tempocolonial:“umapedagogiaultramarinaimplantadanaÁfrica”

    2. Escolatradicional,autoritária?“Nãotanto.”Exclusão?“Nãoeraumaquestãoderaça”

    3. Aeducaçãoapósaindependência:balançosdiferentes,saladapedagógica

    4. Investimentonaeducação?“Aindanãohásensibilidade”

    5. Mudança:“Aeducaçãonãopode,deformaalguma,serpolitizada”

    6. PauloFreire?“Serásempreumareferênciamuitopositiva”

    7. Osonho:“melhorarosetor”,umcopodeleiteeumpão

    QUARTAPARTE:GUINÉ-BISSAU—I

    8“Tivemosqueconstruirapartirdaprimeirapedra”

    1. Ahistóriadas“CartasàGuiné-Bissau”eoPAIGC:“vainosensinaro

  • português?!”

    2. “Falávamosmasnãoescrevíamos.”EadedicatóriaaAmílcarCabral

    3. “Ummomentoespecial.Foipenaquenãosetivessecontinuado”

    4. Aherançaeaescolacolonial:“Poucagentetinhaacesso”5. “Apancadaeraachaveparaabrirasconsciências”

    6. Alfabetizaçãoemlínguasnacionais?“Aítivemosdificuldadesdeescrever”

    7. Alfabetizaremseislínguas?Asminorias,osfilhosdosdirigenteseosfilhosdopovo

    8. “Porqueéqueosnossosfilhosvãoaprendernessalíngua?”

    9. “Porquenãofazerumpoemaemcassanga?”

    10. Passado?“Progressosassinaláveis.”Presente?“Qualquercoisadeerrado”

    11. “Umhomemqueouviamuitoequeobservavaaindamais”12. Mulheres:“umministérioprenhe”,adecisãodeCabrale“asuabela

    Elza”

    ANEXOI

    ANEXOII:ALFABETIZAÇÃOEMMASSANOBRASIL:UMAVISÃOCOMPARADADOMÉTODOMOBRALEDOMÉTODOPAULOFREIRE

    ANEXOIII:CAMARADAPROFESSOR!CARTASSOBREOENSINODALÍNGUAPORTUGUESAEMANGOLA:IºBLOCO—“DOSOUVIDOSÀBOCA:APRENDERAOUVIR,ENSINARAFALAR”

  • SOBREOSAUTORES

  • PAULOFREIREPAULOFREIRENASCEUNORECIFEem19desetembrode1921.Cresceudentrode um ambiente de fraternidade, solidariedade e retidão de princípiosensinadospelospais.Formou-secomogente,cidadãoeintelectualengajado,inicialmente,emsuacidadenatal,noColégioOsvaldoCruzenaFaculdadedeDireito.Comogolpemilitarde1964,noBrasil,tornou-secidadãodomundo,o “peregrino do óbvio”, como elemesmo se designou.Aprendeu e ensinounum processo dialético ininterrupto de sentir, observar, pensar, escrever epraticar, sem nunca ter perdido as suas origens nordestinas, tipicamenterecifenses,atéoúltimodiadesuavida.

    Escreveu algumas dezenas de trabalhos: livros, conferências, ensaios.Recebeureconhecimento,porsuateoriaesuapráxis,demovimentossociais,deuniversidades,deOrganizaçõesNãoGovernamentais(ONGS)edegovernosdequasetodoomundo.

    É Doutor Honoris Causa de 39 universidades do Brasil e do exterior.Recebeu também mais outros quatro títulos congêneres, acadêmicos ehonoríficos, de instituições educacionais do Brasil e dos Estados Unidos.RecebeuTítulodeCidadãodetrezecidadesedeumestadonoBrasil,alémdemaisduascidadesestrangeiras.Entreoutros importantesprêmiosrecebidos,destacam-se:o“RezaPahlevi”,daUnesco;o“ReiBalduíno”,dopróprioreidaBélgica; o “Educador para a Paz”, da Unesco; o “Andrés Bello”, daOrganizaçãodosEstadosAmericanos(OEA);eo“MoinhoSantista”,doBrasil.

    FoiumhomemqueeducouasvirtudesfazendodelemesmooaprendizdeummestrequepraticavaaPaideiacomosseusalunos,àmaneiradecomoosfilósofosgregosdaAntiguidade educavamos seusdiscípulos.Assim, faziamparteintrínsecadeseumododeser,depostar-sediantedooutro/aedavidasocial: o respeito, a generosidade, a coerência e uma capacidade ímpar deamar.

    Tornou-se,assim,porsuainteligênciapolíticaecompaixãoéticaparacomosoprimidos/as,o“educador/pedagogodaconsciênciaético-crítica”,comoonomeouofilósofodalibertaçãoEnriqueDussel.

  • Paulo faleceu na cidade de São Paulo, em 2 demaio de 1997, emplenaatividade político-educativa, surpreendido por um enfarte agudo domiocárdio.

    NitaAnaMariaAraújoFreire

  • —MUITOPRAZER!SÉRGIOGUIMARÃES

    —SOUCAIPIRADEMÃEANTONIAedepaiOswaldo,desde13demarçode1951.Naturalmente,commuitahonra,deSantoAnastácio,cidadezinhaescondidaentreosPresidentesPrudenteeVenceslau,nointeriorsorocabanodoestadode São Paulo. Irmãomais velho de Paulo Afonso e de João Bosco. Nome?AntonioSérgioArantesBragaGuimarães,paraserexato.

    Primeiros empregos, dos dezesseis aos vinte: office-boy e assistente dodepartamentodeartesdaTVPaulista,canal5;repórtercanhotodarevistaSãoPaulo na TV e da Folha de S. Paulo na capital, dos jornais O Imparcial eCorreio da Sorocabana e das rádios Difusora e Comercial em PresidentePrudente.

    AlunodaEscoladeComunicaçõeseArtesdaUniversidadedeSãoPaulo(1971-74)eprofessorprimáriodaredemunicipaldacapitalatéfinsde1975,numa escola que era o ponto final do ônibus Rio Pequeno. Preferência:primeirasériedoprimeirograu.

    Daí por diante, pé nomundo, de braço dado com a baianaMarinildes,Nega. Professor de Civilização Brasileira, Literatura Brasileira e LínguaPortuguesanauniversidadefrancesadeLyon(II)de1975-78,ondeaproveiteiparame “mestrar” em linguística e semiologia.Daí até fins de 1980, perito(não tive culpa, esse era o nome, e, em francês, ainda era pior: expert) emlinguística da Unesco noMinistério da Educação da República Popular deAngola,numprojetodeformaçãodeprofessoresparaoensinodebase.

    Nosprimeiroscincodosanos1980,Brasildenovo,jácomtrêspimpolhos(Gustavo, Hélder e Daniel): trabalho na saudosa Fundação Cenafor, doMinistério da Educação em São Paulo, na área da formação profissional,sobretudo com professores das Secretarias Estaduais de Educação deMatoGrosso,Pará,Pernambuco,RoraimaeSãoPaulo.

    AíéquecomeçamoslivrinhoscomPauloFreire:Sobreeducação:diálogosI(1982)eII(1984),Pedagogia:diálogoeconflito(comPauloeMoacirGadotti,1985),AprendendocomaprópriahistóriaI(1987)e,muitodepois,II(2000)*.

  • De 1985 em diante, de novo pé na estrada, já então com o Fundo dasNaçõesUnidasparaaInfância(Unicef),comooficialdecomunicaçãosocialna República Popular de Moçambique (1985-89), na República do Haiti(1989-94),noReinodoMarrocos(1994-96),ena járebatizadaRepúblicadeAngoladaípordiante,primeironaáreadacomunicaçãoe,apartirde1999,comooficialsêniordeprogramas.

    Emnovembrode2001,chegofinalmentedemalaecuianaRepúblicadaGuiné-Bissau,comorepresentantedoUnicef.E tãocedo,comodizooutro,daquinãosaio,daquininguémmetira.

    Na bagagem dos inéditos, inacabados: o segundo volume de A Áfricaensinando a gente; um último em parceria com o Paulo, Lições de casa,fechandoasérie;Apedagogiadochinelo,livrinhoruminadohámaisdevinteanos; dois sobre os nossos maiores da prosa (Graciliano) e do verso(Vinicius);umoutro tambémhámuito remastigado,Notícia deAngola;umautêntico assalto à poesia; e mais um pequenininho sobre psicodramapedagógico,comaprofessoraMarisaGreeb.Porenquantoésó.

    Bissau,9demarçode2003

  • Nota* Para as edições de 2011, optou-se por trabalhar cada livro de forma independente. Assim, Sobreeducação:diálogos I tornou-sePartir da infância: diálogos sobre educação; Sobre educação: diálogos IIficou com o título Educar com a mídia: novos diálogos sobre educação; Aprendendo com a pròpriahistóriaIsemanteve,massemaindicaçãodevolume;eAprendendocomaprópriahistóriaIItornou-seDialogandocomaprópriahistória.(N.E.)

  • Prefácio

    AÁFRICAENSINANDOAGENTE:ANGOLA,GUINÉ-BISSAU,SÃOTOMÉEPRÍNCIPEÉCOMUMAALEGRÍAENORMEquemaisumavez,comosucessoralegaldaobradePauloFreire, entrego comSérgioGuimarães, coautor, estenovo livrodemeumarido.

    O livro envolve uma parte da presença de Paulo na África, o seupensamento sobre ela, de 25 anos atrás, em diálogo com seu parceiro.Entretanto, como é comumnos escritos e falas de Paulo, este texto ainda éatual.Ede comoaÁfricahojepercebePaulo, atravésdosdiálogos travadospor Sérgio com diversos interlocutores africanos e africanas, tantos anosdepoisqueeleláatuoucomosnacionais.Exatamentenosprimeirosanosde1970,portanto,separadospelavidaepelasinjunçõespolítico-econômicasportrêsdécadas.

    AÁfricaéocontinentequefaziaPaulonutrirailusãodeque“voltavaparacasa” — quando, então, partia da fria e inodora Suíça para contribuir naconstituição, através da educação, das novas nações africanas — tal asemelhançaquesentiaentreaqueleterritórioeaquelagenteeo“seu”paíseasuagente.SentiasaudadeseesperançasdevoltarparaoBrasilemcadaumadasvisitasque faziapara lá.Emqualquerumdospedaçosde terra africanaque pisava, reconfortava-se do exílio forçado escutando as pessoas econversando. Ou até apenas chupando mangas, saboreando bananas oualmoçando peixe ao leite de coco ou cachupa. Sentia com prazer o olor daterra quente molhando-se com a água da chuva que produzia um cheirocaracterístico que gera vida e morte no ciclo que se consuma não só naexuberância do cheiro exalado pela natureza, mas na renovação da vida.Fenômenodanaturezaquesóoshomenstropicais,comoPaulo,conhecemecom ele se alegram e revivem saudades de sua terra natal. Mais ainda, osajudamaentenderassuasrelaçõescomomundodopoderedasproibições.

    Paulosentiatambémassemelhançasdenossaculturacomaafricana,nojeito de usar o corpo, no de andar e de movimentar-se, no de rir ou de

  • gargalhar, no de enfrentar as dificuldades com um poder de resistênciaextraordinário.Nessestraçosestãoembutidasasmanhasque,senãodeixamficar esquecidas as suas raízes, impedem o enfrentamento dos problemas eassimde as pessoas se tornarem sujeitos, donos de sua própria história.Deprosseguiremàprocurade sua verdadeira identidadehistórica e cultural naatualidadeplanetária.

    Paulonãocansavaderecordarqueospovosafricanosquesesubmeterampormaisdecincoséculosàcolonizaçãomalvadaeperversadoscolonizadoresportugueses—característica,aliás,intrínsecaaesteprocesso“civilizatório”—não perderam muitas das raízes culturais e linguísticas. Os nativosesconderam-se nas florestas e preservaram as suas histórias tribais, suascrenças e sua fé, mas contraditoriamente impossibilitaram-se de crescer nadinâmica necessária do aperfeiçoamento cultural. Quando as forças dametrópoleabandonaram“suascolônias”ressurgiramastradições,aspráticascotidianas religiosas com seus ritos e crenças, com suas músicas e danças.Comsuascentenasdelínguasdiferentes.Masospovosafricanos,comotodosospovossubmetidosàcolonização,nãopuderamperceberoquecabiaeoquenãocabiadeseuscostumesecrençasnomundopós-industrial.NãopuderamdistinguiroquepreservareoqueabandonarparaseinseriremnomundodoséculoXXnoqualviviam,comoseresparasi,diferentes,nãonecessariamenteinferiores,doseuropeus,dosamericanosoudosorientais.

    Essa capacidade de resistência nutrida na esperança de seu resgatehistóricoteve,portanto,asuacontrapartidanegativa.Entreoutras,aquestãodaslínguasnacionaisdecadaumadessasnaçõesquenascerampararealizarassuas autonomias políticas, econômicas e culturais. A língua foi e continuasendoumadasdificuldadesmaioresde integraçãodospovosnegrosmesmodentrodeumamesmanação,comopodemosconstatarnodecorrerdaleituradestelivro.

    Alínguaportuguesacomsuasregras,condutasenormasaseguirnãofoi,inicialmente,inteiramenteassimiladapelosoriginais.Eleseelas,emquasesuatotalidade,nãoafalavam.Contraditoriamente,foialínguaescolhidaporseusdirigentes diante de sua praticidade — é conhecida e falada em outroscontinentes—,poisoutrasdezenasdelasfaladasapoucosquilômetrosumasdasoutrasnãoeramentendidas entre si.A línguacrioulo, amaisdifundida

  • delas, não era hegemônica em nenhuma dessas nações nos anos 1970 etambémpornão ser uma língua que contasse com código gráfico, ofereceudificuldades para o trabalho consistente e eficaz de alfabetização que Pauloempreendeucomas elitesdirigentes emalgunsdospaíses recém-libertados.Nós somos, na verdade, corpos que falam.Nos integramos com irmãos nacomunicação,tantomaiorquantopermitequandoháoentendimentoatravésdeuma língua faladaeescritapelogrupo.Faltou,certamente,nessasnaçõesafricanas,essefatordeintegraçãoentreasdistintasetniaseentreosdiferentespovosdamesmaetnia.

    Da África se fala apenas da Sida/Aids generalizada, da extirpação doclitóris das mulheres ainda meninas, da fome endêmica, das guerras, dacorrupção, enfim, da “barbárie” dos povos negros. Entretanto, nunca serelacionaalgumasdessas“barbáries”comamalvadezdanaturezamesmadacolonização e das dificuldades que a invasão cultural provocoupormais decinco séculos, impedindo-os dos avanços necessários na educação e,consequentemente, para o desenvolvimento global das novas nações. Unspoucosdados falampor si sós: aGuiné-Bissau chegou à independência, em1975, com93,7%de analfabetos e analfabetas; e, em490 anos, de “1471 até1961,apenas se formaramcatorzeguineensescomcursosuperioreonzenoníveldoensinotécnico”.1Astradiçõeshojepoucoaceitasoutotalmentenãoaceitassãofrutosdisso.

    Podemos constatar, sem dificuldade durante a leitura deste livro quemuito nos convida às reflexões, através dos diálogos mantidos por SérgioGuimarães, que, no afã e na aflição de recuperarem o “tempo perdido”, osquinhentos anos de colonização, os/as dirigentes africanos/as, estãoqueimandoetapasdosprocessosendógenosdedesenvolvimentocomonaçõesparaentraremnomundoqueos/asexploraaindamais,odaglobalização.

    Assim, há que haver, urgentemente, a superação dentro de cada umadessas nações, com a ajuda não assistencialista de técnicos competentes eautenticamente políticos, tal como o foi Paulo e outros/as, à procura deresolver,solidariamentecomeleseelas,osseusproblemasinternos.Nãonosfazemos nós mesmos sem um alter ego. Alguns e algumas de fora,comprometidos,nãoestranhosaossentimentos,desejosenecessidadesdessespovospodemedevemajudá-losaencontraraspossibilidadesdaconcretude

  • dasaçõeseditandasdossonhospossíveisnacionaisparaqueeles,comopovos,se façam parceiros iguais pelas diferenças de todos os povos e nações domundo.

    Este livro, portanto, nos convence da urgência e da importância deprestarmosatençãoàÁfricacomoumcontinentequetemdeseinserircomo“sujeito diferente”, diante de suas enormes contradições e fragilidades, noprocesso de mundialização que o possa libertar como nações livres eindependentes. As nações africanas não podem continuar seguindo nocaminho já tão conhecido por elas do secular esvaziamento de suacriatividade,desuasinteligências,desuaimensacapacidadederesistência,desuasriquezasnaturais,comovêmfazendohoje,planetariamente,os“donos”daglobalizaçãodaeconomiaquesenutremnoneoliberalismo.Essecaminhoosvemimpedindo,maisdoqueanósdaAméricaLatina,assuasprópriaseverdadeiraslibertações.

    A África encarna, pois, as contradiçõesmais perversas domundo atualmarcadas pelas chagas e cicatrizes do colonialismo e pela malvadez pós-modernadaglobalização.Entretantodevemosnosperguntar:elaseelesdeládevemaceitarissocomoumdestinodivinooudodemônio?Écondiçãodadacontraaqualnãosepodelutaretransformar?NÃO!,tenhocertezaquediria,enfaticamenteomeumarido.

    Dedentrodasfragilidadesedascontradiçõeséquepodemsurgirasnovasrelaçõesquepossibilitamestabelecernovas condiçõesdevida,nascidasna edaradicalidadehumana:AESPERANÇA.Intrínsecaànossanaturezadeseressensíveisepensantes,construindo-nos,ininterruptamente,fizemo-nos,então,seres capazes de projetar o futuro histórico de nossas vidas e o das nossassociedades.AESPERANÇAé,enfim,acapacidadepossibilitadapelapereneeeterna incompletude dos homens e das mulheres, pois a cada conquistasurgem(edevemsurgir)novosdesejos,novossonhos,novarealidade.ElaéamaiorpossibilidadedoelovitalentreaÁfricaexploradaesofridaeaÁfricasonhadadapromissãoquetodosetodasdomundo—enãosóosafricanoseafricanas—queremos,solidariamente.

    NitaAnaMariaAraújoFreire

  • DoutoraemEducaçãopelaPUC/SPCidadedeSãoPaulo,25dejaneirode2003

  • Nota1 Conferirnapágina179,e,nanota11docapítulo1.

  • Introdução

    OPORQUÊDESTELIVRO,ENTREOSALÃOEAMANGAA MORTE DO PAULO ME PEGOU de calça curta. Já falei disso no final doAprendendocomaprópriahistóriaII,2masnãocustarepetir:

    Recebianotíciapoucodepoisdameia-noitede2demaiode1997,emLuanda,Angola,atravésdaRPT—RádioeTelevisãoPortuguesa.Choque?Sónão terásidocertamentemaiorqueobaquesentidoporaquelesqueamavamoVelhoeviviampertodele.

    O choque da separação: lembrei-me das inúmeras vezes que tive de lidar com essassituações,dentroeforadassalasdeaula.Quemnãoterásentidoaquelenónagarganta,aqueleapertonopeito,quandooanoseacabaeascriançassevão?Ouquandoaprofessoraqueridafoiterbebêedeixouumasubstitutachatanolugar?

    Contraamortenãohátruques.Ésentirafundoadorinevitávelaoperceberquealguémsevai,paraemseguida,maiscedooumaistarde,aprenderamanhadeseguiravida.NãofoiissoqueoVelhofez,apesardequasemortalmenteatingidoem1986,quandodonaElzapartiu?

    —Éummomentolentoedifícil.Eusósaiodissoseeusair.Eunãoposso“sersaído”,puxadoporalguém.Decidirqueeusaioéromper.Ficarcomomortoéatendência.Ficarcomoqueestávivo,estaéadecisão!3

    Àprimeiravista,penseiquea idadoVelho tivessederrubadoa ideiadonossopróximolivroemplenodecolar.Ideiaantiga,sempreadiada,tocadasóderaspãonoúltimocapítulodoDialogandocomaprópriahistória,“África,opróximovoo”:

    SÉRGIO: …Na próxima oportunidade que nós tivermos, apesar da distância, todas asexperiênciasdequeagentefaladevemdesaguar,digamosassim,nocontinenteafricano.

    PAULO:Exato.

    SÉRGIO: O fato é que, num determinado momento, na Universidade de Lyon, já tinhaavançadobastantecomaminhaexperiênciadocenteecomaminhaformaçãoacadêmica.[…]FoiquandorecebiumconvitedaUnesco,efiqueisabendoqueaUnescoestavainteressadaempessoasquetivessemumacertaexperiêncianoensinodalínguaportuguesa,quedominassembem o português, que estivessem trabalhando na área da educação e que estivesseminteressadas em trabalhar em projetos que se abriam nas colônias portuguesas, paísesindependentesaindade tinta fresca.Desde1975-76osprojetos tinhamcomeçadoaseabrir.DaíentãoesseinteresseemqueeutrabalhasseemAngola.E,em1978,vouparaLuanda,masmelembroque,nessaépoca,vocêjáestavametidohábastantetemponotrabalhonaGuiné,notrabalhodeSãoTomé…

    PAULO:Exato.

    SÉRGIO:MelembrodessaépocadosescritosdeSãoTomé,quevocêmepassou,aliás.Euachoquedapróximavezagentepodedesenvolverumpoucomaisisso.Sevocêmepermiteeu

  • ainda queria, para terminar, relembrar um pouco das visitas que eu fiz a você no CentroMundialdeIgrejas,emGenebra.Dasnossasconversas,dascoisasquenósgravamos.4

    Ouviuobarulho?PoisfoiexatamenteaíquemedeuoestalodeVieira.Asnossasdiscussõesinéditas,gravadasemcassetesdequalidadechinfrim,seriamopontodepartida.HaviaasmanhãsregistradasemGenebra.EaquelatardeinteirapassadaentrealunoseprofessoresdeLyon,emqueogravadorzinhofoi láchegandomeiocomatraso,masgravou.Issoparacomeçar.Depoisfoiatésimples:emcadaumdessespaíses,procuraralgumasdaspessoas-chavedaeducação e… conversar. Fazer o balanço crítico do que ficou: liçõesaprendidas,lanterninhanamãobuscandonamemória.Ebotaumpoucoaluztambémpara a frente, a ver se a gente enxerga algum futuro.Ou seja: ficarcomoqueestávivo.

    Emqueordem?Analfabética.Explico:resolviseguirospassosdasnossasconversas.Naépoca,oPauloestavaentusiasmadomesmoeracomSãoTomé,masse iluminavatodoao falardeAngola.TambémnãodisfarçavaemnadasuapaixãocríticapelaGuiné, jáentãodepapelpassado.5Ao fimeaocabo,como dizem os patrícios, a ordem — nesse caso, pelo menos — poucoimporta. Entra-se pelo salão acadêmico de Lyon, acompanham-se osprimeiros lances de um debate animado sobre o continente ali embaixo.Abandona-sedepoisaacademia,chega-seaSãoToméePríncipe,pequeninoquesóelemesmo.EAngolaélogoali,jánãoseatiratantocomoantes,ésóchegardevagarinho.

    QuantoàGuiné,bastaseguiracosta,rumoaonorte,sensoinversoaodocolono: chega-se ao golfo da Guiné, mas não se para. Passa a Costa doMarfim,passaaolargodaLibéria,SerraLeoanempensar.GuinéConacriéjávizinha, e bem-vindos à Guiné-Bissau! O que é que falta? Cabo Verde?Moçambique?Jálávamos,dizemeles,nãoperdemporesperar.

    Entreiporumaportaesaíporoutra,diriaopovo,quemquiserqueconteoutra.Diálogoaqui,conversaali, foi tudofeitonocapricho,minhasenhora,diz o garçom daminha terra. Prefere fruta? Então esperomesmo que estelivrinho lhe passe— a você que está de olho aqui— o gosto de uma boamanga. Daquelas que o crioulo da Guiné chama sabidamente demango dimodjabarba, equeoPaulo,quandoaquivinha,devorava feitomeninodosmocambosdoRecife.

  • Bom proveito. Ou, por outra: leiam criticamente e julguem. A Áfricaensinandoa gente?ComeçandopeloquediziaCabral, nãooPedroÁlvares,mas o Amílcar: “Aprendam da vida, do povo, dos livros, aprendam com aexperiênciadosoutros.Masnuncaparemdeaprender.”

    SérgioGuimarãesBissau,13demarçode2003

  • Notas2 PauloFreireeSérgioGuimarães,AprendendocomaprópriahistóriaII.SãoPaulo:PazeTerra,2000,p.148[3aedição,SãoPaulo:PazeTerra,2011].

    3 MereAbramovicz,“Amoreperdaemtemposdevida—emdoismomentosentrelaçados”,inPauloFreire:umabibliografia.SãoPaulo:Cortez,Unesco,InstitutoPauloFreire,1996.

    4 PauloFreireeSérgioGuimarães,Dialogandocomaprópriahistória,p.149-50.

    5 Data de 1977 a primeira doCartas à Guiné-Bissau: Registros de uma experiência em processo. SãoPaulo:PazeTerra[5aedição,SãoPaulo:PazeTerra,2011].

  • PRIMEIRAPARTEUMDEBATEDESALÃO

  • 1“ESTEREAPRENDIZADOQUEAÁFRICAMEOFERECE”ERAUMATARDEDEFEVEREIRO,SEIOANO—1978—masnãolembroodia.Asalaestavacheia.OsmeusalunosdeCivilizaçãoBrasileiravieramtodos,depoisdeespalharem a notícia pelo campus: já na véspera, boa parte dos alunos daUniversidadedeLyonIIsabiaquePauloFreireestariaporali.Conhecendoounão,muitagentecuriosaveiovê-lo.

    Surpreso com a enchente, preocupado por ter que conduzir o debate etraduzirsimultaneamenteasfalas,sómelembreideligarogravadorquandooPaulojáiasoltoalipeloseudécimoparágrafo,cigarronamão.Seamemórianãomefalhardenovo,elehaviacomeçadopeloquemaisoempapava—umdos verbos preferidos do Velho — naquele momento: a extraordináriaexperiênciadospovosqueselibertavamdoimpérioportuguêsnaÁfrica,eoseupróprioapoioaotrabalhodealfabetizaçãoqueacompanhavaesseprocesso:

    1.LUTA,LÍNGUASEAMÍLCAR:“QUELIBERDADEÉESSA?”PAULO:…Umpovoselaasualibertaçãonamedidaemqueelereconquistaasuapalavra.

    PRIMEIRO ESTUDANTE: Podemos fazer perguntas sobre o que se passa naÁfrica?Ouissoestáreservadoparaumoutrodia?

    SÉRGIO:Não,váemfrente.Ah,masháosr.YvesLeloup,que jáestavaàespera.

    LELOUP:ÉsobreAngola,simplesmente.Oqueéqueaconteceporlá?

    PAULO:AsituaçãodeAngolaeuachoprofundamentecomplexa.Maisqueasoutras,namedidamesmaemqueemAngolanãoseconstituiuumcrioulocomo línguaquepudesse sernacional,deunidadenacional. Isso colocaumproblemaà liderança,umproblemapolítico.Eusempredigo:nãoépossívelveroproblemalinguísticoemsimesmo,queseesgotenaanáliselinguística.E

  • o problema que se coloca em Angola é o de qual poderia ser, entre asdiferenteslínguasnacionais,aquelaquedevesseserescolhidaparaseralínguaveicular. Isso poderia criar um problema político enorme a mais aosproblemasquejáhá.

    Entãoalínguaportuguesaestáassumindoessepapel,queeupessoalmenteachoqueelanãopodecumprir.NoscentrosurbanosdeAngola,atéondeaminha experiência me permite, é possível falar português, mas nas áreasrurais,não.

    LELOUP:DentrodosgrandesmovimentospolíticosatualmenteemAngola,um dominante e dois mais ou menos estabelecidos no terreno, fala-se delínguasdiferentes,nasdiscussõesmilitantes.6

    PAULO: Eu tenho a impressão que dos três — evidentemente que euconsidero apenas um,7 — os militantes de qualquer desses movimentosusarão,nestaounaquelasituação,estaouaquelalínguanacional.Querdizer,falarãoumadaslínguasnacionais.Éumproblemadifícil.

    SEGUNDOESTUDANTE:Issoquerdizerautomaticamenteque,comodissestemesmo,“umpovoé livrenomomentoemqueadquireaconsciênciadasuapalavra”, essa desigualdade linguística que há emAngola— oumesmo emoutrospaíses,comoCaboVerde—dificultadecertaformaomovimentodeemancipação política. Não só dificulta, mas ao mesmo tempo criaambiguidadesculturaisterríveis,enarealidadenãosepodenemmesmodizerqueháumaindependência.Emtermosestritamentepolíticosaindaseadmite,masemtermosrealmentedeamplitude,deidentificação,deidentidadeéticaecultural, não. Nesse momento atual, não se pode mesmo dizer que hajadefinitivamenteumaliberdade.

    PAULO: Isso colocaria o problema de definir que liberdade é essa. Se aliberdadeaquetuterefereséumacategoriametafísicaouse,pelocontrário,éalgoqueseestácriandoerecriandohistoricamente.Seéasegunda,eucreioque, em primeiro lugar, nunca tu és totalmente livre,mas estás sempre emprocessodelibertação.Nessesentido,eunãotenhodúvidanenhumadequeessespovos estão exatamentenoprocessode sua libertação.Por exemplo, alutadareconstruçãonacionaléacontinuidadedalutainicialdelibertação,emquese incluioproblemada identidadecultural.Quesebuscaequenãocaipordecreto,nemdocéu,assim…Mastutensrazão,esteéumproblemasério,

  • realmente. Esta questão toda da identidade cultural foi sempre muito bemdiscutidaporAmílcarCabral, por exemplo.Não erapor acasoqueAmílcardizia:“alutadelibertaçãoéumfatoculturaleumfatordecultura”.8

    2.AESCOLHADOCRIOULOEOPORTUGUÊS.EUMAEXPERIÊNCIAQUENÃODEUCERTO

    TERCEIRO ESTUDANTE: O senhor disse que o crioulo guineense não podiatornar-se por enquanto língua oficial porque lhe faltava a escrita. Se eucompreendibem,éoqueosenhordisse.Seráqueénecessárioquehajaumaescrituraparaqueessalínguasetornelínguaoficial?Aindamaisqueexistem,por exemplo, na Eu ropa, países que escrevem amesma escritura,mas quetêmlínguasoficiais,línguasnacionaisdiferentes.QualéoinconvenientequehaveriaparaaGuiné-Bissaudeterumalínguanacionalescritanumaescrituraromana?

    PAULO:Emprimeirolugar,quandoeufizreferênciaàausênciadeescrita,respondendoaumaperguntaquefoi“oqueéquedeveestarobstaculizandoogoverno,nosentidodequecrioulosejajáhojeumalínguaoficial,querdizer,uma línguanão sónacional,masuma línguaquemediatize a formaçãodasgerações”,dissequepossivelmenteeraafaltadaescrita.

    EMÍLIO GIUSTI:9 Mas o quê será preciso para formalizar essa língua?Dependedaortografia,masdependetambémdeumaopçãopolítica.Vaiserumaescolhaquepoderáaproximarculturas:culturasdocriouloportuguêsemdireçãoaoportuguêsouemdireçãoàslínguasafricanasatlânticas.Defato,ameuver,háumaintersecçãodosdois,porque,nocriouloportuguês,hátodosos fonemas da língua portuguesa, e, além do mais, as pré-nasais, fonemasdiferentesqueoportuguêsnãoconhece.

    PAULO:Vamosadmitir,porexemplo,queopartidoeogovernodissessemhoje: todas as disciplinas agora, da escola primária e secundária, serãoveiculadaspelocrioulo.Nodiaseguinte,nãohaveriaumtextosequerescritoemlínguacrioula!

    Tenho a impressão de que, às vezes, eu sou até uma espécie assim decampeão do anticolonialismo. Se eu fosse guineense e pudesse amanhã terrespostaatodosessesproblemas,paraqueascriançasdaGuinéeosjovensdaGuinéaprendessemgeografia,história,matemática,biologia,ciênciasnaturais

  • etc.,comseusnecessáriostextosemlínguacrioula,eufariaisso.Masaconteceque isso toma um pouco de tempo. Isso implica na formação de quadros,implica em ter dinheiro também para a impressão de todos os textos emlíngua crioula. E isso não se faz da noite para o dia. Agora, o que eu achoimportanteéadecisãopolíticadefazerissoomaisrapidamentepossível.

    SÉRGIO: Talvez você pudesse falar da experiência que se tentou dealfabetizaçãoemlínguaportuguesa,equenãodeucerto.

    PAULO:Essaexperiênciaeuachoquefoimuitoboa,namedidaemqueelaensinou o óbvio, quer dizer: que não era possível fazer o ensino da línguaportuguesanaszonas ruraisdopaís.Euestavadizendo,nahoradoalmoço,que eu assisti, em diferentes oportunidades, camponeses criando palavras apartirdapalavraportuguesa.Eeles,no fundo,estavamcriandopalavrasemsualínguanacional,comaortografiaportuguesa,oquedemonstrou,duranteumano todo,a impossibilidadedoaprendizadoem línguaportuguesa,umalínguaquenãofazpartedapráticasocialdopovo,umalínguaestrangeira.

    EMÍLIO:EucreioquedizerqueaGuiné-Bissauéumpaís lusófonoéummito:odalusofoniadaGuiné-Bissau.

    PAULO:Sim,eucreiotambém.

    EMÍLIO: Poderíamos dizer omesmo também em relação a outros países,comooSenegal,onde tambéma francofoniaémenosmíticaquenaGuiné-Bissau,masétambémmítica…

    QUARTOESTUDANTE:…comoemoutrospaísesfrancófonos…

    EMÍLIO:Aíestá.Eumconceitopolítico,evidentemente.

    PAULO:Exato,issoéumaquestãodeinteressepolítico,nãoé?

    3.MOÇAMBIQUE?“NÃOFUICONVIDADO.”AMÉRICALATINA?“UMSERDOMUNDO”SÉRGIO:É.Haviaalguémaíquequeriafalar.ÉvocêquequeriasairdaÁfrica?

    QUINTA ESTUDANTE: Gostaria de fazer três perguntas. A primeira, apropósito do que o senhor disse: eu observei que o senhor não falouabsolutamentenadasobreMoçambique.

  • PAULO:Ah,sim.

    QUINTAESTUDANTE:A segunda: paramim,o senhor estava começando afazer algode extraordinárionaAméricado Sul. Então eu gostariade saber:agora que o senhor não está mais lá, se isso continua, e com quem? Nasurdina?

    A terceira pergunta: o senhor está em Genebra, numa cidade onde hámuitos estrangeiros, imigrantes de muitos países. E então, o problema daalfabetizaçãosepõe,tantodalínguafaladaquantodalínguaescrita.Osenhorseinteressaporisso?

    PAULO:Sim,muitoboa!Comrelaçãoàprimeirapergunta,Moçambique.EumesintotãosolidárioporMoçambiquequantoporAngola,Guiné-Bissau,CaboVerdeeSãoTomé.AconteceapenasquenãofuiaMoçambique.EnãofuiaMoçambiqueporqueeuachoquenãodevotomarumavião,desceremMaputo,edizer:“Cheguei!”.Nãofuiconvidado.Agora,ofatodedizer“nãofuiconvidado”nãosignificaqueeumesintadiscriminadoporMoçambique,demaneiranenhuma.MascomoeunãopossoiraMoçambiquecomoturista—aminha chegada é umatopolítico—eunãodevo forçar a barra, comodiriaembrasileiro,emeintroduzir.

    ComrelaçãoàAméricaLatina,eutediriaqueumadascoisasqueoexíliome ensinou, enão só amim,mas amuitosbrasileiros, foi anecessidadedesuperarmos o nosso paroquialismo. Por isso, por exemplo, eu me sintoprofundamente latino-americano, mas, necessariamente, para ser latino-americano,tenhoprimeiroqueseralgumacoisadentrodocontextogeraldaAméricaLatina.Essa “qualquer coisa” é:brasileiro.Paraqueeupudessemesentir latino-americano; para que, em me sentindo latino-americano, eupudesse me sentir depois mundial, um ser do mundo, era preciso que eutivessesobretudo,emprimeirolugar,umlocal.EsselocaléoRecife,comcujamemóriaeuandopelomundo.Carregocomigoasmarcasdaminhacidade.Até, num parênteses, eu diria a vocês: se eu não cuidasse muito bem dasmarcasqueomeu localmedeu,aminhaandarilhagemhojeseriaumvagarsemdestino.

    EvidentementequeaminhapreocupaçãocomaAméricaLatinacontinua.Agora,acontecetambémque,deunstemposparacá,osespaçosdaAmérica

  • Latina seestreitaramdemasiadoparamim,atéparavisitar.Há trabalhosnaAméricaLatinanãonecessariamentebaseadosnoqueeufiz…

    SEXTAESTUDANTE:Osenhordeixouumaequipeporlá?

    PAULO:Váriasequipes.

    EMÍLIO:Essasequipestrabalhamaindacomomesmoobjetivo?

    PAULO:Sim,eucreio.Contudo,eutenhoimpressãodequeesseéumtemaquesobrepassaumsalãoacadêmico.

    4.OMOBRALEACONSCIENTIZAÇÃO:“RENUNCIOAUSARESSAPALAVRA”EMÍLIO: Desculpe-me, mas eu ouvi dizer que o seu método foi, digamos,recuperadopeloMobral.Issoquerdizerqueelesutilizaramoladoformaldoseumétodo,mascomumaoutraideologia.

    SÉRGIO: Uma nota do tradutor: o Emílio fala do Mobral, MovimentoBrasileirodeAlfabetização.Éummovimentodealfabetizaçãodemassasquefoiposto emmarchapelo governo—eque continua emação—noBrasil,depoisdogolpedeestadode1964.

    PAULO: Eununca li nenhumdocumento oficial doMobral dizendo isso.Mas até tediriaquenãoapenasoMobral,masmuitosoutrosmobrais,noschamados Primeiro e Terceiro Mundos, tentaram recuperar o método. Eudiriaalgomais:recuperarmaisqueométodo,emcujaexistênciaeunãocreiomuito(ri),masrecuperaraprópriavisãopolítico-pedagógica.Umatentativaderecuperaçãoqueultrapassaodomíniopurodométodo.

    EMÍLIO:Qualéafilosofiaquevocêpõenapalavra“política”aí,éissoqueeu queria saber. Se oMobral recuperou ométodo,mesmo se ele deu umaoutravisãopedagógicaoupolítica,oconteúdodessavisãoéquemeinteressa.Éamesmadeantesde1964?

    PAULO: Não, não, de maneira nenhuma. Mas voltando à tentativa deexplicaçãodessesesforçosrecuperadores:porexemplo,nocampodasrelaçõeseducador-educando, com relação ao conceito de diálogo. Qualquer dessesdoisaspectosnãopodeseranalisadoforadavisãopolíticacomaqualeuosencaro. Constantemente tenho visto ensaios críticos do chamado PrimeiroMundo—Europa,EstadosUnidos,Canadá—,tesesemqueeusouanalisado

  • comoumeducadorliberal,quedefendeasuperficialidadedodiálogo;emquesouvistocomoeducadorantiautoritárioapenas,masemqueseescondem,ousetentaesconder,certosaspectosfundamentaisdomeuapproach.Époressarazão,porexemplo,quehácincoouseisanos,nãouso,nemoralmentenemescrevendo, a palavra conscientização. Deixei de usar. Eu não renuncio aoprocessoaoqualapalavradánome,masrenuncioausaressapalavra,porquefoidetalmaneirarecuperadaqueeraprecisopararcomousodela.

    Mas,paraterminar,aimpressãoquetenhoédequedificilmentequalquerumdenóspodedeixardesofreraexperiênciadarecuperação,anãoserqueseja silencioso, que não fale, que não aja, que não diga nada, que não façanada.Eaíjáestárecuperado.Aquestãoquesecolocaésaberatéondeéquecadaumdenósestádespertoparaaforçadarecuperação,esepoderesistir,setemforçaderesistiraumoutroaspectodarecuperação,queéexatamenteodaacomodação.Quandoelasobretudoseexpressaatravésde tentaçõesparaumavidagostosa.(risos)

    5.ALFABETIZAÇÃOFUNCIONAL:“CARÁTERPOLÍTICO?O.K.”SÉTIMO ESTUDANTE: O senhor Paulo é conselheiro da Unesco. O senhorpartilhaamesmaconcepçãodaalfabetizaçãofuncional?

    PAULO:Emprimeiro lugar, esclareçomelhor: trabalheinoChile,durantemeses,comoconsultordaUnesco.Àperguntaquefazeudiriasimenão.Seachamadaalfabetização funcional,aoacrescentaràaprendizagemdaescritaedaleituraumacertacapacitaçãotécnicaligadaàprodução;mais:sesejuntaaessacapacitaçãoparaproduzireparalerumacompreensãocríticadopróprioprocesso produtivo; portanto, se se dá à alfabetização funcional um caráterpolíticodeclasse—enocasomeuaquiseriadaclassedominada,oudaclasselibertando-se —, o.k., je suis d’accord. Mas, se a funcionalidade opera nosentido de manter a desfuncionalidade de uma sociedade injusta, eu soucontra.

    SÉTIMO ESTUDANTE: Em função justamente dessa funcionalidade edesfuncionalidade, retornando portanto ao caso da África: a imposição deuma língua como valor veicular de toda orientação cultural, emdetrimentodasoutras línguasquealicerçamrealmenteasbasesdatradiçãoedaculturadas etnias que lá estão, não seria, de certa forma, uma imposição para a

  • desfuncionalidadede todaessaestrutura tradicional,quese identificacomaprópriaorigemlinguísticadecadaetnianaÁfrica?

    PAULO:Bem,anossaintençãoaotrabalharnaÁfricanãoeraadejáchegarlevandoconosco,emnossasvalisesdemão,onossodiagnósticodarealidade.Pelo contrário, o nosso papel era chegar lá e procurar compreender tantoquanto possível a realidade nova, com os nacionais, e com eles estudar aprogramaçãodotrabalho.Istoimplicavaemqueosnossosencontros,nessespaíses,nãopudessemcingir-seapenasàsequipesdoMinistériodaEducação,mas também encontros com os Ministérios de Saúde, de Planificação, deAgricultura,deCultura,quenosdessementãoumavisãoglobaldosprojetosdedesenvolvimentodopaís,paraquesepudesse,comosnacionais, tentarainserçãodoprogramadealfabetizaçãonareconstruçãonacional.

    Os problemas, ainda que sejam os mesmos, variam de um para outrodessespaíses.Umproblemafundamentaléexatamenteoproblemalinguísticodequefalamosagoranoalmoço,conversandocomoEmílio.

    Em países como, por exemplo, Angola, Guiné, nos quinhentos anos depresença colonial, colonialista, as grandes massas campesinas não foramtocadas sequer pela língua portuguesa! Isso necessariamente coloca a todosesses países a questão de uma política cultural, dentro da qual se situa apolítica linguística. Esse é umproblema que se coloca de ummodo geral àÁfricaecujasoluçãoimplicanumadecisãopolítica.

    Numa perspectiva, por exemplo, neocolonialista, a liderança nacionalnecessariamente se filia à língua do antigo colonizador, sem que asmassaspopulares sejam tocadasporessa língua.No fundo, se assiste aumadivisãosocialdasociedadeentredoisgrupos:umgrupominoritáriodeumapequenaburguesianacionalquecomandaalínguadocolonizador,easgrandesmassasquenãotêmacessoàlínguadocolonizadoreque,portanto,sãodiscriminadasnasuaprópria formaçãopedagógica.Estanãoé, foradedúvida,aopçãodaliderançadessespaísescomosquaiseutrabalho.Daíquehajanelestodos—emunsmais,emoutros,ainda,menos—umapreocupaçãocomumapolíticacultural,incluindoumapolíticalinguística.

    6.DABELEZADALÍNGUACRIOULAÀ“EXCELÊNCIA”DOCOLONIALISMO

  • PAULO:No caso daGuiné-Bissau, se constituiu através dos tempos a línguacrioula—queeuparticularmenteachomuitobonita—,quecortaopaístodoe que teve, na guerra de libertação, um fator extraordinário da sua difusão,como língua de comunicação entre os diversos grupos étnicos. Creio que aquestãoquesecolocanocasodaGuiné,nomomento,nãoétantomaisadepretender alfabetizar as grandesmassas populares em português, mas, pelocontrário,dedisciplinarescritamentea línguacrioula,aomesmotempoqueenfatizando, respeitando e desenvolvendo as demais línguas nacionais, paraque,numfuturopróximo,seponhaalínguaportuguesanoseudevidolugar,querdizer,possivelmente,comolínguaestrangeira,umalínguaqueocupeumbomlugar.

    Eugostaria,porém,de fazerumparênteses,paradizerque este éomeuponto de vista, mas que eu não tenho autoridade nenhuma para falar emnome do governo da Guiné-Bissau. Mas também poderia adiantar que oprocesso marcha nessa direção. Linguistas do Instituto de Linguística deDakar,emassociaçãocomestauniversidade,10comosenhorEmílioecomasuaequipe,queestãoemcontatocomoCentrodeLinguísticadeDakar,estãocomeçandoumtrabalhodeque—tudoindica—ogovernodaGuiné-Bissause servirá para o desenvolvimento da resposta a este problema cultural elinguístico.

    NocasodeSãoToméePríncipe,quemeparecequeémuitosemelhanteaocasodeCaboVerde—eunãosoulinguista,mastenhoaimpressãodequeposso dizer isso —, se constata um bilinguismo crioulo-português, o quefacilitaaaprendizagemdalínguaportuguesa.Oquenãosignifica,porém,nocaso de SãoTomé e deCaboVerde, que não se tenha que ter uma grandepreocupaçãocomaestruturasemântica—comodiziahojeoEmílio—,que,tendoquever,sobretudoporcausadobilinguismo,comoportuguês,temquevertambémconsigomesma,querdizer,comaprópriaestruturadocrioulo.

    EMÍLIO:Umaestruturasemânticaqueéeminentementeafricana.

    PAULO:Tenhoa impressãodequebastavamostraresteproblemapara jáchamaraatençãoemtornodasdificuldadesedaseriedadecomquesedeveenfrentarumaquestãocomoessa.Salientareiapenasumproblemaamais,nocaso,porquecreioquecomasperguntasagente enriquecemais.Umoutrograndeproblemaquesecolocaaessespaíses,equetemquevercomanossa

  • preocupaçãonocampodaalfabetização,éaquestãodasuperaçãodaherançacolonial,nosentidodacriaçãodeumnovosistemaeducacional.Essespaísessónãopartemdozero,emcertoscasos—ocasodaGuiné,porexemplo,ouocasodeSãoTomé—,porquepartemdesuastradiçõesculturaisehistóricas.Mas materialmente partem quase do zero. Basta que eu diga a vocês, porexemplo, que, no ano de 1976, oMinistério da Educação daGuiné-Bissau,com um esforço tremendo, capacitou trinta professores de ensino básico,primário,eaofazer istosuperouoscolonizadoresemquinhentosanos.Essedado,porsimesmo,faladaexcelênciadocolonialismo!

    EMÍLIO:Parece-meque,emquinhentosanosdecolonialismo,houveonzequadrosformadosnaGuiné-Bissau.11

    7.UMACONSCIÊNCIAPOLÍTICACLARA,“FORADAQUALNÃOHÁCAMINHO”PAULO: Quer dizer: a transformação de um sistema educacional elitista,reacionário, verbalista, paraum tipode educação emque a produção estejacasadacomaeducação,emquesebusquepoucoapoucosuperaradicotomiatrabalhomanual/trabalhointelectual,éumacoisaqueagentepodeimaginarquãodifícilé!

    Quanto mais eu me meto no esforço de reconstrução nacional dessespaíses, quantomais eumemolhonas águasda reconstrução, tantomais eudescubrooóbvio:quãodifícilé realmente reconstruiruma sociedade!Criarumasociedadenova,quevaigerarumhomemnovoeumamulhernova!Eaía gente percebe, na verdade, como isso não tem nada que ver commecanicismos, que não tem nada que ver com espontaneísmos, nemtampouco com voluntarismo. Mas, pelo contrário, isso demanda umaconsciênciapolíticaclara,quesevaiclarificandomaisnapráxispolítica,foradaqualnãohácaminho,eucreio,nãohásolução.

    Quer dizer: como desenvolver um sistema educacional que estimule acriatividade,ainventividade,apercepçãocríticadomomentomesmoemquesevive,o sentidodaparticipação,a superaçãodos interesses individuais emfunçãodosinteressescoletivos?Comodesenvolvertodaumanovapedagogiase as próprias estruturas da sociedade não foram total e radicalmentetransformadasainda?

  • Masexatamenteporqueissonãoémecânico,massimdialético,emcertoscasosaeducaçãoanunciaomundoatransformar-se,maséprecisoqueessemundose transformerealmenteparaqueoanúncioqueaeducaçãofaznãocaia no vazio. Isso tudo exige rigor de estudo, capacitação de quadros, odesenvolvimentoeconômicoesocialdopaís,tudoaumsótempo!Nãoéfácil.

    Eutenhoimpressãodequeagora,depoisdessa introdução,queéapenasparacomeçarumaconversa…eurepito,nãovimaquifazerumaconferênciasobre a experiência de que participo, mas conversar… Eu acho que agorabasta,eépossívelquehajaalgumacuriosidadeemtornodealgumaspectodequenão falei edequeposso falar, respondendo.Eque adiscussãonão sejaentreelesemim,masentrenós.

    8.ALÍNGUADOSCOLONIZADOS:UM“DIALETOFEIOEPOBRE”OITAVOESTUDANTE: Eu gostaria de perguntar ao sr. Freire o que é que freiaatualmente o governo da Guiné-Bissau em adotar a língua crioula comolínguanacional.

    SÉRGIO:Comolínguaoficial,vocêquerdizer.

    OITAVOESTUDANTE:Éamesmacoisa,não?

    SÉRGIO:Nãoé,não,porqueocrioulojáéumalínguanacional.

    OITAVOESTUDANTE:Estábem,então:línguaoficial.

    PAULO:NaGuiné-Bissau,seconsideraocrioulocomolínguanacional—oquenãosignificaqueasoutras tambémnãoosejam—eoportuguêscomolínguaoficial.Evidentementequeissocriaumgrandeproblematambém.Nahora do almoço, eu comentava com Emílio, com Sérgio e com a moçahistoriadora este fato, por exemplo. É que a línguaportuguesa, consideradalínguaoficial,tem,porém,umpapelqueédelínguanacional.Éexatamenteopapel que está tendo ainda, e que vai ter ainda a língua portuguesa, demediadoradaformaçãogeraldainfânciaedajuventude.Namedidaemquenão só se aprende oportuguês,mas pormeiodele a geografia, a história, apolítica,abiologiaetc.,etc.,alínguaportuguesapassouaassumiraíentão,defato,opapeldeumalínguanacional.

    SÉRGIO:Chegaassim,finalmente,comolíngua,apenetrarnopaís.

  • PAULO:Eunãodirianopaís,masnumcertoescalãosocialdopaís.Eaíéque euachoque émaisperigoso.A solução sedaránomomento emquealínguacrioulaescritapasseanãoapenas sera línguanacional,masa línguaquevaiseroficialtambém,aomediaraformaçãoglobal,culturaldopovo.

    A pergunta era: o que é que impede o governo e o partido a não estarfazendo isso? Eu tenho a impressão de que possivelmente o fundamentalimpedimentoéainexistênciadalínguaescrita.Evidentementequeessatarefanão foi desenvolvida pelo colonizador. Durante a época colonial, linguistasporsimesmosestudaramalgodaestruturadocrioulo.Dopontodevistadocolonizador,éóbvio,oscolonizadosnãotinhamhistóriaantesdesuachegadaàterradoscolonizados.Nessesentido,oscolonizadosdeveriamagradeceraoscolonizadoresofatodeelesterempostooscolonizadosnahistória.Damesmaforma, os colonizados não tinham cultura, antes da chegada doscolonizadores. A língua dos colonizados sempre foi chamada de dialeto, edialeto feio e pobre. Só a língua do colonizador é uma língua que tempossibilidades históricas, que tem flexibilidade para expressar a ciência, atécnica e as artes. A arte do colonizado é folclore, a arte do colonizador écultura.(risos)Temqueserassim.Issoéideologia,enãociência.

    Então,umdosesforçosdessesgovernos,hoje, é superaressepassado,deque eles participam também.Há uma certa ambiguidade. É por isso que opresidenteAristidesPereira,deCaboVerde,namesmalinhadepensamentode Amílcar Cabral, insiste tanto no que ele chama “a descolonização dasmentes”.

    9.ODESENVOLVIMENTODOCRIOULO:“EASOUTRASLÍNGUASNACIONAIS?”MME SIMONE SAILLARD:12 Eu gostaria de fazer uma pergunta que é quasesimétrica,ouseja,naGuiné-Bissau,particularmente,arelaçãoentreocriouloportuguês e os dezoito dialetos. Nós compreendemos muito bem que acolonização implicou um imperialismo linguístico, que é o do português.Minhapergunta é totalmente ingênua e ignorante.O senhor acabadedizerque o conhecimento do crioulo português chegou àsmassas pela guerra delibertaçãonacional.Consequentemente,apartirdaí,euimaginoqueaescolhapolíticadequeosenhorfalavaéumaescolhapolíticaqueimplicaumaescolha

  • de independência cultural,mental etc., e que isso implica a escolhade umalínguaquepossaserveicular.Nofundo,esseéoproblema.

    Então, parece — de acordo com o que o senhor diz, e eu acreditoplenamente,aindamaisqueeudesconheço totalmentea situação linguísticada Guiné-Bissau— que o crioulo português é efetivamente uma língua aomesmo tempo suficientemente independente, talvez com uma certamestiçagem, que corresponderia à ambiguidade da situação mental,intelectual, cultural do país, e que, ao mesmo tempo, seja uma língualegitimada,quesejalegitimável,pelofatodeelaterenvolvidoumaproporçãosuficientedapopulação.

    Aminha pergunta é totalmente ingênua (risos), e eu digo isso porque éevidenteque,paramimtambém,émuitomaissimpáticoqueoimperialismolinguístico seja um imperialismo de recuperação nacional,mas, bem, não équeissosejaevidenteparatodos!Querodizer:seráqueissonãoimplicaumdesaparecimento das outras línguas nacionais também? O senhor disse hápouco:“desenvolvimentodocrioulonorespeitodasoutraslínguasnacionais”.Issoimplicaoquê?

    PAULO:EuvouresponderaumaparteapenasepediraoprofessorEmílio,queconhecemuitomelhordoqueeu,querespondaàoutra.Euapenasdiriaoseguinte:atéondeeupercebocomosevemdesenvolvendoapolíticaculturaldo país, há uma forte preocupação… quando digo “no respeito às demaislínguas nacionais”, estou querendo dizer “no estímulo ao desenvolvimentodas demais línguas nacionais”, apresentando-se, porém, o crioulo como alínguaveicular.

    EMÍLIO: Há dezoito línguas, para além do crioulo, que não secompreendem entre elas; o crioulo faz a ligação entre as diferentes etniasexistentesnaGuiné-Bissau.Vejamentãooproblemalinguísticocolocadoporessas dezoito línguas: seria preciso escolher uma entre as dezoito, mas aquestãonãosepõenessestermos,porquejáháumalínguanacionalpraticadaportodasasetnias,queéocrioulo,quealiáséumaformaafricana,estrutural,semanticamente africana, com um léxico galego-português, e não somenteportuguês.Éporissoquehámuitoslinguistasquefalamdecertasinfluênciasdoespanhol.Nãosetratadeespanhol,masdogalego.Portanto,oproblema

  • do desenvolvimento do crioulo como língua nacional e oficial não excluiodesenvolvimentoemesmoadescriçãodasoutraslínguasautóctones.

    LELOUP:EmAngola,nãoháapenasdezoitodialetos,dezoitolínguas…

    EMÍLIO:Éprecisofalardelínguas,porquenãosãodialetos.Lá,trata-sedeumaquestãopolítica.

    10.QUALMÉTODO,PARAUMPAÍSCOM62LÍNGUAS?LELOUP: Quero falar sobre a questão do método a empregar num país doTerceiro Mundo que tenha 62 dialetos. Por que eu digo isso? Porque eusempredesejeiquehouvesseumalínguanacional.Sabendoqueosr.Freireéumespecialistanessamatériae tendo lidováriosdosseus livros,eugostariaqueeledissessequalmétodoelepreconizaparaumpaíscom62dialetos,digo,línguas?

    PAULO: Lamentavelmente eu não tenho resposta a essa pergunta, nemcreioqueninguématenhahoje,nestasala.

    EMÍLIO:Essasituaçãonosultrapassa,porqueadivisãopolíticadasterrasfoifeitacontraadivisãonatural,queeraumadivisãodeetnias.Cadaetniatinhaasualíngua.Éesseoproblemaqueoslinguistasnãopoderãoresolver.

    NONOESTUDANTE:Tendoemvistaofatodequeháumatendênciadeseirpara a frente, e de se ter consciência dos problemas que temos, será que ésempreútilseguirsempreocolonizador?

    PAULO: A escolha de uma certa língua como língua veicular, que nãorespeitasse as demais outras línguas que fazem parte de certos universosculturaise,portanto,decertasidentidadesculturais,seriaumaimposição,deque resultaria um arrebentar com a própria unidade nacional. Aí estariaexatamenteoopostodapolíticaquesedesenhanocasodaGuiné-Bissau,porexemplo.Ocrioulonãoéassimumacategoriaabstrata,nouniversoculturalda Guiné-Bissau. O Emílio dizia antes, por exemplo, que o crioulo, naverdade,corta,passaportodososgruposétnicosefuncionacomoumalínguaveicular.Porissomesmoéqueéassumidoporcadaumdessesgruposétnicoscomolínguatambém.

  • EMÍLIO: É geralmente a primeira língua. As pessoas primeiro falam ocrioulo,paradepois falar a línguada etnia àqual elaspertencem.Namaiorpartedoscasoséassim.Noscasosrestantes,elastêmumaprimeiralínguaqueé a língua da etnia delas e, como segunda língua, o crioulo português. É aconstataçãoquefizpormeiodepesquisa.

    DÉCIMO ESTUDANTE: Eu sei, mas como a tradição cultural é transmitidaoralmente,nomomentoemqueumaetniatemoseuprópriopadrãodeviver,creioquea línguadaetniaéaprimeiraa ser colocadaparaogrupo,paraaeducação,mesmooral.

    EMÍLIO:Éprecisocompreenderqueocrioulotemumaestruturaafricana.Portantoavisãodomundo—ontológica—éafricana.Emtodasessasetnias,mesmosetêmlínguasdiferentes,avisãoculturalémaisoumenosamesma.Elaspoderiamfuncionarcomoas línguasneolatinas,ondesetemumavisãoglobalcomumehomogêneadamaiorpartedosfenômenosquenoscercam,aquinaEuropa,deacordo?

    Namaiorpartedasetnias,atualmente,naGuiné-Bissau,desdeainfância,ocrioulocomeçaatornar-sealínguamaterna.Digobem:começaatornar-se.Eu poderia citar três ou quatro etnias que têm já o crioulo como línguamaterna. Eles falam a sua língua de origem em situações mais ou menosmarcadas, durante as cerimônias etc. Mas depende também da situaçãogeográfica. No caso das línguas que estão muito mais ao norte da Guiné-Bissau,aprimeiralínguaéaindaadaetnia.Masnocasodaslínguasqueestãomaisaosul,aprimeiralínguajáéocriouloportuguês.

    11.OPÇÃO:ENTREAALFABETIZAÇÃONAEUROPAEO“REAPRENDIZADOQUEAÁFRICAMEOFERECE”SÉRGIO:Antesdepormosmaislenhanafogueira:háumaperguntaaquevocênãorespondeu,Paulo.ÉaquestãosobreofatodevocêestaremGenebraeoproblemadaalfabetizaçãodosestrangeiros.

    PAULO:Eunãotediriaquetenhotrabalhadosistematicamentenisso.Mas,nessesanosdevidaemGenebra,tenhotidocontatos,oraemGenebra,oraemParis, ora em certas cidades alemãs, com grupos que trabalham comtrabalhadoresimigrantesemalfabetização.Massemnenhumainserçãomaior.

  • Éque,no fundo, sobretudoquando a gente chega à idade emque eu estouhoje,aquestãodasopções,aquestãodeumaentregamaiorsecoloca.

    Nomomento,porexemplo,meéabsolutamenteimportante,fundamental,este reaprendizado que a Áfricame oferece. Eu não tenhomuito tempo, omeu limite existencial lamentavelmente começa a dizer: “Olha, Paulo,cuidado!” Então, entre ficar tocando uma coisinha aqui, tocando umacoisinha lá, e passar a me dedicar mais rigorosamente a um certo tipo deestudo,eutenhoqueoptarpelacoisamaisimportante.

    Porexemplo,aminhavindaaquihojetevequesermuitomedidaepesada,jáhámuito tempo,quandooSérgiome fazia asprimeiras tentações.Não éporqueprimeiroeuassumisseumaatitudeaprioridedesinteresseporvocês,não.Masépeloseguinte:aoviraqui,significaquesaídecasa, fuiàestação,comprei apassagem, tomeium tremàsnovehoras, cheguei aqui àsonze, evouvoltardenoite.É importante, isso.Mas aconteceque, se eu fizesse issoconstantemente, se eu começasse a aceitar convites de outros gruposuniversitáriosnaEuropaparafazerissoumavezporsemana,oqueseriadomeu trabalho, então, na África, do que estou estudando e preparando, emfunçãodotrabalhodelá?

    Esevocêdepoismedeomínimoquepodeficardeumencontrocomoestecom ummáximo que pode resultar de um trabalho sistematizado, de umaexperiênciaacompanhada,nãohádúvidanenhumadequerestamaislá.

    Claro, aqui também, na Universidade de Lyon, havia um ponto. Emprimeiro lugar,me interessoumuitíssimo o tipo de trabalho que Sérgio fazaqui.Quando fui informado do que ele faz,me interessou, e achei que eraruimeunãovir.Emsegundolugar,pormeiodeleeudescobrioEmílio,queéumhomemqueestáfazendoumtipodeestudoqueinteressaimensamenteàÁfrica.Eutenhoquevoltaratéaquioutrasvezesparaconversarcomele.

    Por isso, gostaria de explicar a vocês, o meu problema não é o dodesinteresse porumgrupo.Eunão souumhomem show.Épor essa razãotambém,por exemplo, quedeixei aUniversidadedeGenebra, por causadaÁfrica. Por causa da África eu rejeitei até hoje uma série de convites querecebi, e que continuo recebendo, de universidades não europeias —europeias,umasduas somente—,masnorte-americanas e canadenses,paraficarlácomeles,empaz.EuprefiroficarnaminhalutapelaÁfrica.

  • 12.EXPLICANDOMELHOROQUESIGNIFICA“FALHAR”DÉCIMO PRIMEIRO ESTUDANTE: O senhor disse há pouco que realizou umaexperiência de alfabetização no meio rural na Guiné-Bissau, e que essaexperiência fracassou. Então eu queria saber, nesse contexto, o que é que osenhorprevêparaocasodeAngola,ecertamenteparaoutrospaísesafricanos,ondesepõemaisoumenosomesmoproblema.

    E, em seguida, uma segunda pergunta: o senhor disse também que ogovernodaGuiné-Bissauatribuiumagrande importânciaàpreservaçãodaslínguas étnicas. Qual é então a importância que há — perante essa línguanacionalnascente,que éo crioulo—de conservar essas línguas,namedidaemque,paraamaiorpartedosdirigentesafricanos,háumprincípiomaior,queélevadoemconsideração:aunidadenacional.Ora,essaunidadenacionalpassa,emprincípio,porcertasconsideraçõescomo,porexemplo,umalínguanacional.Eucreiomesmoque,quandoumpaíschegaàsuaindependência,naÁfrica, se fosse possível, se dependesse do poder dos dirigentes africanos, aprimeira coisa que eles fariam, com uma varinha mágica, seria criar umalínguanacional.

    Eume pergunto, portanto, se aGuiné-Bissau— que tem a sorte de teruma línguanacional, uma língua que se forma e que certamente se tornaráuma língua oficial — se preocupa em conservar línguas étnicas, qual é ointeresse que haverá nisso, enquanto em Angola se põe efetivamente oproblemapelofatodeosdirigentesnãopoderemfalaratodasaspopulaçõesdo país numa língua nacional, o que é uma desvantagem maior no planoeconômico,políticoemesmosocial.

    PAULO:Bem,quantoàprimeirapergunta:tenhoimpressãodequeserianecessárioexplicarumpoucomelhoroquesignifica“falhar”.Asexperiênciasfeitasnasáreasruraiscomalínguaportuguesademonstraramainviabilidadedoensinodalínguaportuguesa,oqueeucreioqueestejaacelerandoatomadadedecisãopolíticacomrelaçãoàlíngua.

    Segundo: as experiências revelaram também que nem sempre ofundamental,numtrabalhodeeducaçãopopular,éensinaralereaescreverpalavras, mas o fundamental é “ler”, “reler” e “reescrever”, com aspas, arealidade. Isto é, desenvolver uma compreensão crítica do próprio processo

  • histórico, político, cultural, econômico e social em que as massas estãoinseridas.

    Eu diria então que, em qualquer hipótese em que haja um processo dealfabetização,aleituradarealidadeseimpõe,seaopçãopolíticaéliberadora.Emcertoscasos,aleituradarealidadeseimpõe,eépossível,masnãoaleituradapalavra.Pelomenosemumperíodo,não?Euachoqueessaconstatação,quepoderia tersidoafirmadaantesemnível teórico,nocasodaGuinéedeoutrasáreasafricanas,pode-seafirmarhojeapartirdaprópriaprática.

    Masagorapeçomilperdõesavocês: sãoquinzeparaascinco,começoacansaracabeça,eamesentirincapazatédeformular,depensar.Então,peçodesculpa por propor a vocês que paremos aqui e lhes mando um grandeabraçodeagradecimentopelapaciência.

    Muitoobrigado.(aplausos)

  • Notas6 OprofessorLelouprefere-secertamenteaoMPLA(MovimentoPopularparaaLibertaçãodeAngola),àUnita (UniãoNacional para a Independência Total deAngola) e à FNLA (FrenteNacional para aLibertaçãodeAngola).

    7 OMPLA,semdúvidaalguma.

    8 AmílcarCabral discute essa questão empelomenos um texto, escrito para uma reunião sobre “Asnoções de raça, de identidade e de dignidade”, promovida pelaUnesco emParis, em julho de 1972.Nesseartigode47parágrafos,intitulado“Opapeldaculturanalutapelaindependência”,eleafirmaque“adinâmicadalutaexigeapráticadademocracia,dacríticaedaautocrítica,acrescenteparticipaçãodaspopulaçõesna gestãode suaprópria vida, a alfabetização, a criaçãode escolas e serviços sanitários, aformação de ‘quadros’ extraídos dos meios camponeses e operários, e outras tantas realizações queimplicamemgrandeaceleraçãodoprocessoculturaldasociedade.Tudoissotornaclaroquealutapelalibertaçãonãoéapenasumfatoculturalmastambémumfatordecultura”.InAmílcarCabral,Guiné-Bissau:Naçãoafricanaforjadanaluta.Lisboa:PublicaçõesNovaAurora,1974,p.136-7

    9 Linguistabrasileiro,professorepesquisadornaUnidadedePesquisaeEnsinodeLetraseCivilizaçõesdoMundoMediterrâneodaUniversidadedeLyonII.

    10 PauloserefereàUniversidadedeLyonII.

    11 LuizaTeotônioPereiraeLuísMottaapresentamdadosprecisosarespeito:“[…]OPAIGC,tendoemcontaasexigênciasdareconstruçãonacionalenãoobstanteascondiçõesdelutaarmadaqueobrigavaadedicarmuitos jovensàpreparaçãomilitar,cuidouparticularmenteda formaçãodequadrosemnívelmédioesuperior.Paraissocontoucomoapoiodepaísesamigos,detalmaneiraque,duranteosanosdeluta, um número muito maior de guineenses atingiu os cursos superiores, em comparação com operíodo da ocupação portuguesa. […] Em dez anos, de 1963 a 1973, foram formados os seguintesquadrosdoPAIGC:36comcursosuperior,46comcursotécnicomédio,241comcursosprofissionaisedeespecialização,e174quadrospolíticosesindicais.Emcontrapartida,desde1471até1961,apenasseformaram14guineensescomcursosuperiore11aoníveldoensinotécnico.”InGuiné-Bissau:Trêsanosdeindependência.Lisboa:EdiçãoCIDA-C,coleção“ÁfricaemLuta”,1976,p.106-7.Vertambém,maisadiante,nocapítulo8(p.179),“Aherançaeaescolacolonial:‘Poucagentetinhaacesso”’

    12 Professora de várias disciplinas ligadas à língua espanhola e então diretora do Departamento deLínguas e Civilizações do Mundo Mediterrâneo, da Universidade de Lyon II. Nesse departamentotrabalhávamostantoEmílioGiustiquantoeupróprio.

  • SEGUNDAPARTESÃOTOMÉEPRÌNCIPE

  • 2“PRATICARPARAAPRENDER”:CAMINHOSDESÃOTOMÉ

    1.UMLIVRINHOSIMPLES,“MASNÃOSIMPLISTA”SÉRGIO:ATUALMENTEVOCÊestátrabalhandonoquê?

    PAULO: Vou abrir um pouquinho esta janela para a gente diminuir afumaça(estávamos os dois fumandona sala dePaulo, noConselhoMundialdas Igrejas, em Genebra, inverno de 1978). Atualmente, como tu sabes, euestou muito engajado com essa atividade na África, atividade na qual meencontro mesmo quando não estou lá, quando não viajo para um dessespaíses.Aí,eucontinuotrabalhandoaquisobreasatividadeslá.

    Nomomento,porexemplo,oquemepreocupaenormemente,juntocomas equipes nacionais de São Tomé e Príncipe, é a criação de materiais, detextos,depequenoslivros,comosquaissepossadarsuporteaoprocessodealfabetização e de pós-alfabetização no país. Então estoumuito dedicado àcriação desses materiais, ora com eles lá — onde vou quando eu faço asminhasvisitas—,oraaqui.Masevidentementeque,quandoeupreparoumtextoqualqueraquiaserusadolá,eureproduzo,façováriascópiasemandodesde ao presidente da República até à comissão que trabalha comigo. E opresidenteéumsujeitoformidável.Alémdeumhomemmuitoculto,nobomsentidodessapalavra,eleéumsujeitomuitosério,muitotrabalhador.Entãoele lêmesmoo textoque eumando, paradar o seuparecer, comopolítico,como presidente da República, porque eu não poderia imprimir nem umapáginaaquisemosimdogoverno.

    Recentemente,nofimdoanopassado—quandoestiveemLyon,euatétefaleinisso—,escreviumlivrinhoqueseráoprimeirolivrodetextosparaosque dominaram a parte primeira da alfabetização, a primeira fase. Esse é oprimeirolivrodetexto,quesechamaSegundocadernodeculturapopular—textos para ler e discutir como introdução à gramática, em que estudo ascategoriasgramaticais,apenas,começandopeloverbo.

  • Os textos cobrem assim uma temática bem ampla, escritos numalinguagem tanto quanto pensomuito acessível. Simples,mas não simplista.Uma das preocupações ao escrever esse livrinho foi não fazer concessõessimplificadorasdalinguagemenalinguagem,porqueeuestouconvencidodequediscutiruma temática comamassapopular em termos simplistas éumsinaldoelitismodequemfazisso.

    Paramim,namedidaemquedigo:“Não,temquesersimplificado,aomecomunicar com as massas populares, porque não acredito que elas sejamcapazes de me entender, que elas sejam capazes de compreender um temacomplexo,seriamente.Eseelasnãosão,éporqueeusoucapaz.Eeusoucapazpor quê? Porque eu tenho um curso superior, universitário, chamadosuperior!Então,no fundo, eu souumelitista,umpaternalistaquepretendepossuirumaverdadeedenoitedistribuir,numgestodecondescendência,aessasmassas,masemlinguagemsimplista.”.

    Eunãofaçoisso.Entãoescreviostextostodosdolivro—repito,deformasimples, mas não simplista. Os textos exigem do leitor uma disciplina detrabalho.Enãoéporcoincidência,porexemplo,queoprimeirotextodesselivro seja sobre o ato de estudar.13 Eu começo com isso. Eu usei sempre aproposiçãodetemas—ouquasesempre—contandohistória.

    2.AHISTÓRIADEPEDROEANTÔNIO:EVIDÊNCIAEMISTÉRIODAPARÁBOLAPAULO:EntãocontoumapequenahistóriadePedroeAntônio,queestavamnuma caminhonete, transportando cápsulas de cacau, que tinham sido jáquebradas,paraosecadordocacau,paraaáreaondeelesvãosecarocacau.Foi o que vi lá em São Tomé. E digo que havia chovido muito na noiteanterior e que o terreno estava enlameado,muita poça de lama. E que, emcerta altura, Pedro e Antônio se defrontaram com um lamaçal de uns doismetros de extensão. Então eles pararam a caminhonete, desceram, olharamsilenciosamenteolamaçaledepoisosdoisatravessaramolamaçal,protegidoscomas suasbotasde cano alto—que euvi também lá—,para se terumaideia da espessura da lama. Depois voltaram, discutiram um pouco eresolveram apanhar pedras e galhos secos de árvore, com os quais elesforraram o leito do lamaçal, dando ao lamaçal uma certa consistência,suficienteparaqueasrodaspassassemporcima.Eatravessaram.Entãoconto

  • essahistória edigo:Pedro eAntônio estudaram.Não se estuda somentenaescola.

    SÉRGIO:Issolembramuitoatécnicadaparábola.

    PAULO:Exato!

    SÉRGIO:Emquevocêachaqueessaatitudetuaseparececomumaatitudeevangélica, num sentido extremamente pedagógico, desvinculado de umadoutrinaçãoproselitista?Emquemedidavocêfazessaassociação?

    PAULO:Exato!Eutecolocariaagoraoproblemaaorevés,aocontrário,etediria que, no uso das parábolas, tomemos assim, o velho Cristo expressounele, para mim, uma profunda intuição do sentido, da força cultural epedagógica das parábolas. Quer dizer: a partir de uma parábola, queexpressavaumadeterminadaatmosferacultural,quetocavaapráticasocialdopovo, era possível ir mais além. Nesse sentido, as parábolas sãoeminentemente problematizantes e criticizadoras. Vai depender aí de comovocê aproveita, de um lado, a evidência da parábola e, de outro, omistériodela.

    Se você fica apenas aonível da evidência, vocêpodedomesticar.Mas sevocê fazadialéticaentrea evidência,oóbviodaparábolaeomistériodela,vocêdáosalto.Eufizpropositadamente:olivroestácheiodisso.Masinsisto,no fim de cada texto, na responsabilidade de assumir o texto como umdesafio.

    Nessesentido,Sérgio,talvezperdendoumpoucoahumildadenecessária,enãofabricada,eutediriaquetalvezsejaesseumdosmelhoreslivrosmeus,eque,porcoincidência,vaiserpublicadonãocomomeunome,massimcomonomedoMinistériodaEducaçãodelá,comosefosseumnacionalquetivesseescrito.Euacheimuitomelhoressecaminhodoqueexigiromeunomenessenegócio.Paraafirmaroquê?Oquemeinteressaédarumacontribuiçãoaumpovoqueestálutandoparaser,enãopôrnasrelaçõesbibliográficasmaisumlivro.

    3.ESSELIVRO,OUTROLIVRO:“ALGUMASBRASILEIRADAS”PAULO: Uma coisa que me agradou enormemente aqui — isso eu te digotambém sem vaidade, mas com alegria — a carta que o presidente me

  • escreveuéumabeleza!Falandoemnomedele,dogovernoedopartido,elemediz que leu o livro todo comum crescente entusiasmo.E, terminada aleitura,eletinhaquemedizerquenãohaviaumarestriçãoafazer,dopontode vista do conteúdo político do livro, do ponto de vista da análise darealidadenacional;quefizdeGenebra,masqueeueraumnacionaltambém,equeoúnicopontoquehavia—edequeeuseriainformadopeloministro14da Informação e Cultura — era o de algumas sugestões que eles iam memandarparasubstituiralgumasbrasileiradas.Oqueénatural,não?Euescrevicomo brasileiro, procurando uma linguagem bem do povo, mas do nossopovo.Lamentavelmente,eunãorecebiainda…Recebiumacartadaministra,elogiandotambémolivroedizendoquememandava,porcorreio,separado,ooriginalqueeutinhamandadoparaela,comasretificações.Fazummêsenãochegou.Eujáescreviparaeladizendoquenãorecebi,porque,enquantonãovier,nãopossoimprimir.

    Esselivroeuachodelicioso.Voutedardepoisumafotocópiadele.Agora,nomomento—depoisdesseencontroemBissau,dequetefaleipelamanhã15—oministrodaEducaçãodeSãoTomémeperguntouseeunãogostariadeescrever um outro livro, como este, e pelo qual ele também estavaentusiasmadíssimo,sobreatemáticaquesediscutiunoencontro.Oquevaledizer:queeuescrevesseumasériedetextos.Nãoseriaumlivropropriamenteparadescreveroquefoioencontro.Essevaipoderteromeunome.Umlivroem que eu desenvolva a mesma temática que foi discutida, nãonecessariamente nosmesmos termos e nomesmo approach em que algunsdos seus temas foramanalisados.Mas, aomesmo tempo,na introdução, eudariaumanotíciadoquefoioencontro.

    Aintençãodoministroaomepedirissoéadelevarestatemáticaàsbasespopulares no país dele também. Porque, por exemplo, com relação a essesegundo caderninho de que te falei agora— que oministrome disse que,depois que eles leram, vários ministros e o presidente, eles chegaram àconclusão de usar o tal livrinho em três níveis distintos para testar. Desseprimeiro,nósvamosfazerumaediçãoprimeiro,paraprovarolivro,porqueolivropodesermodificado.Entãonãoadiantavocêpegaragoraefazerseismilcópias,paradepoisverqueapráticatedemonstraquetaiscoisasnãodeviamestarnolivro,oupelomenoscomoestão.

  • Comoeu tedigo,escrevio livroparaapós-alfabetização,masa ideiadoministro me pareceu excelente, quer dizer, é do governo: era testar esselivrinhocomunstrezentosjovensdoúltimoanodaescolaprimária,comunstrezentos jovens do primeiro da secundária, e com uns quinhentos adultosqueestãoentrandonapós-alfabetização.E,comaslimitaçõesqueelestêm—equenós temos—, acompanhar os resultados: como a criançadade escolaprimáriareagiuaessestextinhoseàgramática;comoosmeninosdeprimeiroano de ginásio reagem, e como os adultos também vão reagir. Então oministrodisse:“Bem,Paulo,depoisdeanalisar issoentãoagentevêoqueéqueagentetemquemudarnofim,considerandoessestrêsníveis.Edaíemdiante a gente faz uma edição grande e passa a usá-lo preponderantementenesseounaqueledessestrêsníveisemqueagentevaitestar.”Euacheiaideiaexcelente.

    4.ALINGUAGEMDASCARTASEACULTURADEMEMÓRIAORALPAULO:Háumaoutracoisaqueeutambémvoudaratidepois,queeununcatedei,equesãoumascartas.Emlugardeescreverguiasparaoseducadoresdebase,escrevocartasaoanimadorcultural,emnomedacomissãotambém.Evidentementequeessascartasestãosendoescritasnuma linguagemmenossimplesdoquea linguagemqueuseino livro.A idei aque eu tenhoé adediminuiradistânciaqueháentrealinguagemdessascartaseacapacidadedosanimadores, nasminhas idas a São Tomé, fazendo seminários de avaliaçãocomeles,nosquaiseudedicoumoudoisdiasparaumaleituracoletivadascartas,emqueeuvouoralmenteinterpretandocomelesoqueeuquisdizernesteounaqueleperíodoetc.Porissoéquenãomepreocupomuitoemfazerascartasaonívelmaissimples.Eutediriaqueelassãomuitomaissimplesdoquequalquer livromeu,masnão têm a simplicidade que o livro que eu fiztem.

    Estou no momento terminando a terceira carta, que trata da pós-alfabetizaçãoedecomousarolivrodequetefalei,decomotrabalharcomele.No momento já estou na metade da terceira carta, exatamente tomando aintroduçãodocadernocomoumprimeiro exemplode como trabalhar comisso,eestoudiscutindonacartaopapeldaleiturasilenciosa.

  • Mas aí é uma coisa engraçada, Sérgio. Como a África vai ensinando agente! Como a realidade vai ensinando! Por exemplo, se eu estivesseescrevendo para o Brasil, sobretudo para educadores que estivessemtrabalhandocommassaspopularesemcentrosurbanos,comoSãoPaulo,euteriasugeridoque,aoabrirolivro,naintrodução,oanimadorpropusesseaosparticipantesdocírculoquefizessemumaleiturasilenciosadotextoeque,emseguida, cada um iria fazer a leitura em voz alta. Mas para a África, não.Inclusiveaminhaprimeiratentaçãofoiessa.Imediatamenteolápisparounocaminhoerefizatrajetória.

    NaÁfrica,meuqueridoSérgio,agenteestáenfrentandoumaculturacujamemória—pornrazõesquenãointeressaaquiagoraconversar—éauditiva,é oral, e não escrita. Então, antes da leitura silenciosa, numa cultura dememória oral, tem que fazer a leitura em voz alta, e a tarefa deve ser a doeducador!Oeducadoréque,nasuapreparação,enquantoafricano,devefazerpara ele a leitura emvoz alta e, em seguida, tambéma leitura silenciosa dotexto,nasuapreparação,antesdeirparaocírculo.Mas,chegandoaocírculo,eledeveleremvozalta,paratodos, lentamente,enquantooseducandosvãoacompanhando, vão olhando o texto. Ele vai lendo em voz alta,pausadamente.Depoiséqueelepodesugeriraleiturasilenciosadecadaum,mas,emprimeirolugar,eletemqueprovocarumacertaconvivênciaentreoseducandos e o texto, pela oralidade, e não da escrita do texto. É o som dapalavraqueocaradeveouvir,simultaneamentecomavisãodapalavra.Masnãoavisãodapalavraeumsomqueestáinterno,queéaleiturasilenciosa.Eunãoseisevocêvêsentidonessaminhaobservação.

    SÉRGIO:Hum,hum!

    PAULO:Sãocoisasassimqueestouescrevendoparaeles.Agora,puxa,masjáestão longasascartas!(Sérgiori)Porqueaprimeira,por exemplo,que euachomuito boa, necessariamente teria que apanhar toda uma visão teóricatambémdoqueéaalfabetização.Entãoeumostro,nessaprimeiracarta,quenem sempre você parte da leitura da palavra, mas, numa opção políticarevolucionária, você tem que juntar sempre a leitura da realidade com aleituradapalavra.Masnemsemprealeituradarealidadeésimultâneacomaleituradapalavra.Elapodepreceder.Entãoesclareço tudo isso, e essa carta

  • tem22páginas!Asegundaépequena, temumasseis.Eessa terceiravai terumas25.Jáéumensainho!

    5.ATÉCNICAEPISTOLAR:“NADADERELIGIOSO”SÉRGIO: Paulo, você não acha que o fato de você estar escrevendo cartassignifica,deumacertamaneira,quevocêestáalgodistantedealguém,deumacertarealidade?Porqueescrevercartas?

    PAULO: Eu te respondo com facilidade. Veja bem: essas cartas são feitasnãoassinadaspormim,masassinadaspelacomissão lá.Portanto,seadmiteobjetivamentequeessascartasestãopartindodeSãoTomé,deumacomissãolá,paraosseuscamaradasemSãoTomé.

    Elassechamamcartasporqueeusugeri.Eudiscuticomacomissãoqueeuachavamuitomelhorqueelasedirigisseemtermosdecartasdoquedeguias.Em lugardevocêescreveroquenormalmente todomundo tem—pode-sechamar“GuiadoCoordenador”,“GuiadoAnimador”,comovocêquiser—,escreveum textoqueéo suporteparaoeducador trabalhar comomaterialbásico.

    Eusugeriquefossemcartasparadeixaroanimador,desdeocomeço,maisou menos convencido de que as cartas não são prescrições, mas são anteselementosdesafiadorestambémdeles.

    SÉRGIO:Vocêestáme fazendo fazerumapergunta.Primeironós falamosdasparábolas:vocêestavacontandoo livroea técnicadasparábolas.Agoravocê fala das cartas: a técnica epistolar. Isso me lembra muito ainda oprocedimentodoNovoTestamento.Eéaíqueeuqueriaperguntarparavocêumacoisa:oque,noteutrabalho,existedereligioso?

    PAULO:Eudiriaquenãoexistenadadereligioso,sesetomaareligiosidadecomo uma certa expressão mágica, dentro de um certo quadro cultural.Evidentementequeeunãopoderiajamaisnegar,emtodoomeutrabalho,asmarcas…—digamosagora,usemosagoraapalavra“religiosa”—asmarcasda minha formação — eu preferia dizer até cristã do que propriamentereligiosa.Marcas de que ora eu tenho consciência total, de que ora eu nãotenho.

  • Vocêinclusiveestásendoaprimeirapessoaquemechamaaatençãoparaatécnicadasparábolaseoestiloepistolar.Eunãotinhatomadoconsciênciadisso. É possível que, em nível mais profundo, isso me devolva a minhainfância.

    Mas é possível— e aí é que eu acho que é o fundamental— que esseretornoaumtempotãolongínquo,nosentidodebuscararaizdisso,meleveexatamenteàprofundainfluênciaqueCristoexerceusobremim,enquanto,sobretudo,desafiador.Eas cartas, as chamadascartas também,aspresençasvivas!Épossívelquehajaisso.

    Mas se tu me perguntas: através disso, há um conteúdo de carátertranscendental,nosentidoagorareligioso,nessetrabalho?Não,nãohá.Nãoporqueeuonegueamim,masporqueoquemeinteressanesseesforçoéficarnahistória,sempretenderchamaraatençãosobreameta-história.Oquevemdepois é umproblema que outros terão lá que ver com elesmesmos.Querdizer: estoudiscutindooque sedádentrodahistória atualdeSãoTomé,oquefazer diário. E, sobretudo, preocupado com o desenvolvimento dotrabalhonaleituradarealidadecomonaleituradotexto.

    6.UMOUTROCADERNINHO:NADANDOSEAPRENDEANADARPAULO: Eu estou convencido de que, se se deixa o país em paz, é possíveldesenvolver um trabalho lentamente, não também por decreto, mas umtrabalhonocampodaeducaçãodeadultos,quetemquevercomaeducaçãogeral, emque sevão terminarporoferecer—desdequevocênão façaumaeducação abstrata, que você ligue isso tudo à problemáticadaprodução, dasaúde, da política—, oferecer, nãodoar, instrumentos que constituemumaformacríticadepensar,depensaraprática.

    Por isso é que todos os trabalhinhos, os textinhos que a gente estáorganizando para São Tomé, insistem tanto nisso. Por exemplo, há doiscadernos básicos para a etapa da alfabetização. O primeiro deles se chama“Primeirocadernodeculturapopular”,quetemaspalavrasgeradoras,masdaprimeiraatéànonanãohánenhumtextofeitopornós.Háapenasaspalavrasgeradoras, as codificações, as palavras decompostas, e o espaço para o caracriar as suaspalavras. Sóentre anonae adécimaapareceoprimeiro texto,compalavrasquepoderiamsercriadascomasnoveanteriores.

  • Há,então,umesforçoenormededesafiaracriatividadedopovo.Masnósdescobrimos que esse caderno só não bastava, por causa do tal negócio daculturadememóriaoral.Eraprecisoestimularmaisainda.Então,fizemosumoutro caderninho, de que eu vou te dar uma cópia também, cujo título é“Praticar para aprender”. Você vê, o nome do caderno já é também umdesafio. E esse caderninho — que deve ser usado quando o alfabetizandoalcança a décima quarta palavra do primeiro caderno — desafia, desde ocomeçoatéofim,acriatividadedoalfabetizando.Eéeminentementepolíticotambém.Nãoháumaafirmaçãoquenão sejapolítica.Nãoháumapalavra,um textinho que não tenha conteúdo político.Mas não “sloganizante”. Porexemplo, há duas codificações nesse segundo caderninho, duas fotografiasmuito boas. Uma é a de um grupo de meninos tentando nadar, nadandonumaenseada.Eaoutraédeumgrupodehomenstrabalhandocomenxadasetc. Então, ao lado da primeira fotografia está escrito “É nadando que seaprendeanadar.”Aoladodasegundafotografiaestáescrito:“Étrabalhandoqueseaprendeatrabalhar.”Enorodapédapáginaestáescrito:“Praticandoaprendemosapraticarmelhor.”Naoutrapágina,então,vem:“Seépraticandoque se aprende a nadar, se é praticando que se aprende a trabalhar, épraticandotambémqueseaprendealereaescrever.Vamospraticar.Vamosler”,eaívemumasériedepalavras.

    E aí o caderninho vai crescendo em dificuldades, até que chega ummomento emque a gente sugere que o alfabetizando comece a escrever eletambém estórias, suas estórias: “Mas antes de escrever um texto, penseprimeironasuaprática,penseprimeironoseutrabalho,penseprimeironosinstrumentosquevocêusanoseutrabalho,comosseuscamaradas.Sevocêépescador,penseentãonashorasquevocêlevanaságuaslonge,naságuasdenavegar, longedasterrasdecultivar.Pensenashistóriasdospescadores,nashistórias que você ouviu contar do tempo de nossos avós. Depois entãoescrevaasuaprimeirahistória.Épraticandoqueseaprende.”

    Querdizer,todososmateriaisqueagenteestápreparandoparaSãoToméinsistemnapráticacomofontedeconhecimento.No“Segundocaderno”,porexemplo,háumtextosobreapráticacomofontedoconhecimento.Hátextossobre, por exemplo, planificação da prática. Há textos sobre avaliação deprática. Há três textos sobre o processo produtivo: o que é o processoprodutivo?Há textos sobre a reconstruçãonacional: oque é a reconstrução

  • nacional?Há textos sobre a nova sociedade: o que é a nova sociedade?Hátexto sobre o trabalho como transformador do mundo, e a cultura comoresultado do trabalho, como a criação realmente do ser humano, mas atransformaçãodomundosignificando,então,atransformaçãodoserhumanotambém.

    Tudo está se organizando no sentido não de doar, mas de chamar oeducandoauma formacríticadepensar.Porexemplo,háumtextosobreoque significa pensar certo.Oque é pensar certo?Há também,no fimdessesegundocaderno,umaespéciedevocabulário,emqueeuesclareçoosentidodealgumaspalavrasedeconjuntosdepalavras.Masna introduçãozinhadovocabulárioeudigoqueovocabulárionãotrabalhaporelesó,queéprecisofazer força também para compreender o próprio vocabulário. O própriovocabulário não explica tudo. É preciso que eu entenda também, que meesforcetambémparacompreenderovocabulário.

    7.UMATRASODECINCOMINUTOSEQUINHENTOSANOSDERESISTÊNCIAPAULO:Háumproblema,Sérgio.Éarealdiferençaentreoqueestápostonostextos,entreosobjetivosquevocêbuscaalcançarcomostextoseacapacidadeatual de os educadores realizarem,marcharem no sentido dos objetivos. Agente reconhece esse hiato, em termos realistas. Eu seria inclusive ummentirososetedissesse:“Olha,estátudomaravilhosolá!Vocêchegalá,vocêjá encontra a nova pedagogia! Os animadores culturais apanham essesmateriais todos e fazem um trabalho excelente!” Não, não. Eu te diria,contudo,que fazemum trabalho excelente,namedida emque fazemoquepodem fazer. Esse “o que podem fazer” é que precisa ir dilatando-se, namedidaemqueasuapráticacrescer.

    Então,sevocêfuncionaemtermosrealistas,nosentidodecompreender,inclusive, por que os animadores culturais, os educadores populares, fazemcoisas que te poderiam parecer erradas, dentro do teu contexto políticoideológico,natuaopção,masquelánãosão.Euvoudarumexemploagoraconcreto, que analisei inclusive numa carta que fiz à Guiné-Bissau, porquesempreponhoa equipedaGuiné-Bissauaparde tudooque se faz emSãoToméevice-versa.

  • Umdia,porexemplo,fizumrelatóriooralde1h20paraaGuiné-Bissau,emandeiocassete, sobrea situaçãoemSãoTomé.E,àsvezes,euescrevo: fizumacartadequinzepáginas,no fimdoanopassado, sobreoqueeuestavavendoemSãoTomé.Entãodizianacarta, eume lembro,quandodescreviaumadassessõesdeumcírculodecultura,queseeutivesserecém-chegadolá,saindodoaeroportoparaassistiràquela sessão,eque tivessemdito: “Venhacá, venha ver uma experiência com uma aplicação do que se chama o seumétodo”, eu dizia na carta que teria ficado completamente espantado,surpreso,diantedoquemepareceriaseroautoritarismodoeducador.

    Na verdade, porém, não havia autoritarismo nenhum. Havia, pelocontrário,umanecessidadeindiscutível,postapeloprocessohistóricodopaís,para aquele comportamento que vi.O comportamento era o seguinte: umamenina chegou atrasada, uma mocinha, cinco minutos, à reunião. Oanimador parou os debates, houve um silêncio, ele olhou para ela e disse:“Camarada, cinco minutos! A camarada possivelmente estava conversandosobre maluqueiras, maluquices, no portão aí do prédio, quando nós aquicomeçávamosjáatrabalhar.Camarada,vocêprecisasaberqueareconstruçãonacionalnãopodeserfeitasemdisciplina,trabalhoeunidade.Euesperoqueacamaradatomeconsciênciadasuafaltaderesponsabilidadeenãorepitaoqueacabadefazer”.Amenina,depé,pediudesculpaesentou-se,muda.Eunãodisse coisa nenhuma! Não podia dizer, nem devia, a não ser pensar. Umsujeitoexcelenteoanimador,masduro,muitoduro,comumaautoridadequeele,euquasediria,impunha.Masnãoeraummestre-escola.Eraumpolítico.Éinteressanteessanuança,sabe!Eraumpolíticoquefalava.Nosdebates,elenão perdia uma chance para falar da responsabilidade do povo nareconstrução do país, dando uns exemplos bem populares, bem concretos,comrelaçãoàsituaçãopolíticadomomento,lá.

    Na saída,umdosmembrosdaComissãoNacionalmedisse: “CamaradaPauloFreire, euachoqueéprecisochamaraatençãodesseanimador.Eleémuitocompetente,muitobom,muitoesforçado,e faz isso tudosemganharumtostão.Eledáoexemplomesmo,eletrabalhatodanoite,nãoganhanada,oMinistérionãotemdinheiroparapagaraele.Masnósprecisamoschamaraatenção dele, porque ele está muito duro.” O outro, nacional também,possivelmente dizendo isso muito mais para diminuir em mim o que elepareciaqueestavavendo,umadecepção.Eudisse:

  • —Amanhãeuqueriaconversarcomvocêsdacomissão.Agentetemumareuniãoàsnovehoras,entãovamoscomeçarporissoqueeuvihoje.

    Depois vi outros círculos, fui para o hotel e comecei a pensar. No diaseguintemereunicomelesedisse:

    —Olha,estoutotalmentedeacordocomoanimador.—Oscarasolhara