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A partilha da África No fim do século 19, países europeus repartiram o continente africano entre si e o exploraram durante quase 100 anos. Os invasores se foram, mas deixaram os efeitos nefastos de sua presença Isabelle Somma | 01/07/2006 00h00 Ao encerrar a Conferência de Berlim, em 26 de fevereiro de 1885, o chanceler alemão Otto von Bismarck inaugurou um novo e sangrento capítulo da história das relações entre europeus e africanos. Menos de três décadas após o encontro, ingleses, franceses, alemães, belgas, italianos, espanhóis e portugueses já haviam conquistado e repartido entre si 90% da África ou o correspondente a pouco mais de três vezes a área do Brasil. Essa apropriação provocou mudanças profundas não apenas no dia- a-dia, nos costumes, na língua e na religião dos vários grupos étnicos que viviam no continente. Também criou fronteiras que, ainda hoje, são responsáveis por tragédias militares e humanitárias. O papel da conferência, que contou com a participação de 14 países, era delinear as regras da ocupação. “A conferência não ‘dividiu’ a África em blocos coloniais, mas admitiu princípios básicos para administrar as atividades européias no continente, como o comércio livre nas bacias dos rios Congo e Níger, a luta contra a escravidão e o reconhecimento da soberania somente para quem ocupasse efetivamente o território reclamado”, afirma Guy Vanthemsche, professor de História da Universidade Livre de Bruxelas, na Bélgica, e do Centro de Estudos Africanos de Bruxelas. A rapidez com que a divisão se deu foi conseqüência direta da principal decisão do encontro, justamente o princípio da “efetividade”: para garantir a propriedade de qualquer território no continente, as potências européias tinham de ocupar de fato o quinhão almejado. Isso provocou uma corrida maluca em que cada um queria garantir um pedaço de bolo maior que o do outro. “Em pouco tempo, com exceção da Etiópia e da Libéria, todo o continente ficou sob o domínio europeu”, diz a historiadora Nwando Achebe, da Universidade Estadual do Michigan. A Libéria, formada por escravos libertos enviados de volta pelos Estados Unidos, havia se tornado independente em 1847. Na Etiópia, a independência foi garantida depois da Conferência de Berlim, com a vitória do exército do imperador Menelik II sobre tropas italianas na batalha de Adwa, em 1896. O interesse europeu pela África vinha de muito tempo antes da conferência. No século 15, os portugueses já haviam chegado aos arquipélagos de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, iniciando sua ocupação do continente (que depois se estendeu a Angola e Moçambique). Os britânicos ocuparam partes da atual África do Sul, do Egito, do Sudão e da Somália no século 19. No mesmo período, os franceses se apoderaram de parte do Senegal e da Tunísia, enquanto os italianos marcavam presença na Eritréia desde 1870. Em 1902, França e Inglaterra já detinham mais de metade do continente. Tiros e mentiras A ocupação não se deu somente com a força das armas de fogo, que eram novidade para muitos dos povos subjugados. A trapaça foi largamente usada para a conquista e manutenção dos territórios. O rei Lobengula, do povo Ndebele, é um exemplo: assinou um contrato em que acreditava ceder terras ao magnata britânico Cecil Rhodes em troca de “proteção”. O problema é que o contrato firmado pelo rei não incluía a segunda parte do trato. O monarca nem percebeu, pois era analfabeto e não falava inglês.

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  • A partilha da frica

    No fim do sculo 19, pases europeus repartiram o continente africano entre si e o exploraram durante

    quase 100 anos. Os invasores se foram, mas deixaram os efeitos nefastos de sua presena

    Isabelle Somma | 01/07/2006 00h00

    Ao encerrar a Conferncia de Berlim, em 26 de fevereiro de 1885, o chanceler alemo Otto von Bismarck

    inaugurou um novo e sangrento captulo da histria das relaes entre europeus e africanos. Menos

    de trs dcadas aps o encontro, ingleses, franceses, alemes, belgas, italianos, espanhis e

    portugueses j haviam conquistado e repartido entre si 90% da frica ou o correspondente a pouco

    mais de trs vezes a rea do Brasil. Essa apropriao provocou mudanas profundas no apenas no dia-

    a-dia, nos costumes, na lngua e na religio dos vrios grupos tnicos que viviam no continente. Tambm

    criou fronteiras que, ainda hoje, so responsveis por tragdias militares e humanitrias.

    O papel da conferncia, que contou com a participao de 14 pases, era delinear as regras da ocupao.

    A conferncia no dividiu a frica em blocos coloniais, mas admitiu princpios bsicos para administrar

    as atividades europias no continente, como o comrcio livre nas bacias dos rios Congo e Nger, a luta

    contra a escravido e o reconhecimento da soberania somente para quem ocupasse efetivamente o

    territrio reclamado, afirma Guy Vanthemsche, professor de Histria da Universidade Livre de Bruxelas,

    na Blgica, e do Centro de Estudos Africanos de Bruxelas.

    A rapidez com que a diviso se deu foi conseqncia direta da principal deciso do encontro, justamente

    o princpio da efetividade: para garantir a propriedade de qualquer territrio no continente, as potncias

    europias tinham de ocupar de fato o quinho almejado. Isso provocou uma corrida maluca em que cada

    um queria garantir um pedao de bolo maior que o do outro. Em pouco tempo, com exceo da Etipia e

    da Libria, todo o continente ficou sob o domnio europeu, diz a historiadora Nwando Achebe, da

    Universidade Estadual do Michigan. A Libria, formada por escravos libertos enviados de volta pelos

    Estados Unidos, havia se tornado independente em 1847. Na Etipia, a independncia foi garantida

    depois da Conferncia de Berlim, com a vitria do exrcito do imperador Menelik II sobre tropas italianas

    na batalha de Adwa, em 1896.

    O interesse europeu pela frica vinha de muito tempo antes da conferncia. No sculo 15, os

    portugueses j haviam chegado aos arquiplagos de Cabo Verde e So Tom e Prncipe, iniciando sua

    ocupao do continente (que depois se estendeu a Angola e Moambique). Os britnicos ocuparam

    partes da atual frica do Sul, do Egito, do Sudo e da Somlia no sculo 19. No mesmo perodo, os

    franceses se apoderaram de parte do Senegal e da Tunsia, enquanto os italianos marcavam presena na

    Eritria desde 1870. Em 1902, Frana e Inglaterra j detinham mais de metade do continente.

    Tiros e mentiras

    A ocupao no se deu somente com a fora das armas de fogo, que eram novidade para muitos dos

    povos subjugados. A trapaa foi largamente usada para a conquista e manuteno dos territrios. O rei

    Lobengula, do povo Ndebele, um exemplo: assinou um contrato em que acreditava ceder terras ao

    magnata britnico Cecil Rhodes em troca de proteo. O problema que o contrato firmado pelo rei no

    inclua a segunda parte do trato. O monarca nem percebeu, pois era analfabeto e no falava ingls.

  • Apesar dos protestos de Lobengula, que acreditava que a palavra valia alguma coisa entre os recm-

    chegados, o governo da Inglaterra se fez de desentendido. Apoiou a explorao do territrio Ndebele, no

    atual Zimbbue, de onde Rhodes tirou toneladas de ouro.

    O mais famoso entre os trapaceiros, no entanto, foi o rei Leopoldo II, que conseguiu passar a perna em

    africanos e europeus. Soberano de um pequeno pas, a Blgica, no tinha recursos nem homens para

    ocupar grandes territrios. Por isso, criou associaes que se apresentavam como cientficas e

    humanitrias, a fim de proteger territrios como a cobiada foz do rio Congo. Graas a hbeis

    manobras diplomticas, ele conseguiu obter o reconhecimento, por todas as potncias da poca, de um

    Estado Livre do Congo, do qual ele seria o governante absoluto, afirma o professor Vanthemsche.

    Leopoldo dominou com mo de ferro o Congo, usando mtodos violentos para conseguir extrair o mximo

    que pudesse para aumentar sua riqueza pessoal.

    Mas o principal mtodo utilizado pelos europeus foi o bom e velho dividir para dominar. A idia era se

    aproveitar da rivalidade entre dois grupos tnicos locais (ou cri-la, se fosse inexistente) e tomar partido

    de um deles. Com o apoio do escolhido, a quem davam armas e meios para subjugar os rivais, os

    europeus controlavam a populao inteira. Pode-se dizer que todas as potncias conduziam a conquista

    da mesma forma: atravs da fora bruta, dividindo para dominar e usando soldados que eram

    principalmente africanos e no europeus, diz Paul Nugent, professor de Histria Africana Comparada e

    diretor do Centro de Estudos Africanos da Universidade de Edimburgo, na Esccia.

    O mtodo usado pelos colonizadores provocou tenses que at hoje perduram, pois transformou

    profundamente as estruturas sociais tradicionais da frica. Formaes de grupos flexveis e cambiantes

    foram mudadas para estruturas tnicas bastante rgidas, afirma Vanthemsche. O exemplo mais extremo

    dessa fronteira imaginria criada pelos europeus o de tutsis e hutus, de Ruanda. Os tutsis foram

    considerados de origem mais nobre pelos colonizadores (primeiro alemes, depois belgas), e os hutus

    foram colocados em posio de inferioridade. Os tutsis mantiveram o poder mesmo aps a sada dos

    belgas. Em 1994, 32 anos aps a independncia de Ruanda, cerca de 1 milho de pessoas morreram no

    conflito em que os detentores do poder foram perseguidos pelos at ento marginalizados hutus.

    As fronteiras territoriais tambm foram delineadas sem respeitar a disposio da populao local, com

    base nos interesses dos europeus. Eles recorriam a noes arbitrrias como latitude, longitude, linha de

    diviso das guas e curso presumvel de um rio que mal se conhecia, afirma o historiador Henri

    Brunschwig em A Partilha da frica Negra. E essas fronteiras ainda sobrevivem. Segundo o gegrafo

    francs Michel Foucher, cerca de 90% das atuais fronteiras na frica foram herdadas do perodo colonial.

    Apenas em 15% delas foram levadas em considerao questes tnicas. H ainda mais de uma dezena

    de fronteiras a serem definidas, segundo Foucher.

    O Saara Ocidental o nico caso de territrio africano que ainda no conseguiu a independncia. Em

    1975, depois de dcadas explorando o fosfato da regio, a Espanha o abandonou. No mesmo ano, o

    Marrocos invadiu o pas. Houve resistncia, e a guerra durou at 1991. Desde ento, a Organizao das

    Naes Unidas tenta organizar um referendo para que a populao decida se quer a independncia ou a

    anexao pelo Marrocos.

  • Para os pases africanos, ver-se livre dos europeus no significou uma melhoria de sua situao. Ao

    contrrio: em muitos lugares, a independncia provocou guerras ainda mais sangrentas, que contaram

    com a participao das antigas metrpoles coloniais. Um exemplo a Nigria. Seis anos aps a

    independncia do pas, em 1960, os ibos, que haviam adotado o cristianismo, declararam a secesso do

    territrio nigeriano de Biafra. Foram apoiados por franceses e portugueses, interessados nas ricas

    reservas de petrleo da regio. Os haus e fulanis, muulmanos que dominavam o cenrio poltico do

    pas, lutaram pela unidade apoiados pelos ingleses. O resultado foi uma guerra civil em que quase 1

    milho de nigerianos morreram, a grande maioria de fome at hoje o pas palco de embates religiosos

    e polticos.

    Na marra

    No se sabe exatamente quantos grupos tnicos havia na frica quando os colonizadores chegaram, mas

    acredita-se que fossem por volta de mil. O que sabemos sugere que as formaes polticas e grupais

    eram muito mais fluidas e a variao lingstica era muito maior do que na era colonial, diz o historiador

    Keith Shear, do Centro de Estudos Africanos Ocidentais da Universidade de Birmingham. Lnguas foram

    adotadas em detrimento de outras, o que provocou o nascimento de elites. A chegada de missionrios e

    a introduo de escolas formais fizeram com que dialetos especficos fossem selecionados para traduzir a

    Bblia. Estabeleceram-se ortografias oficiais, provocando homogeneidade lingstica, afirma Shear. Os

    que falavam a lngua do grupo majoritrio tiveram mais facilidades num governo centralizado e dominado

    por uma s etnia.

    Se por um lado alguns dialetos desapareceram, o mesmo no ocorreu com a diversidade tnica. Grupos

    tnicos no foram eliminados durante o domnio colonial, apesar de os alemes terem tentado realizar o

    primeiro genocdio na Nambia, diz Paul Nugent. Teria sido possvel, inclusive, o surgimento de outros

    povos. Muitos historiadores defendem a tese de que novos grupos foram criados durante o perodo

    colonial, pois as pessoas comearam a se autodefinir de novas formas. Por exemplo: os ibos da Nigria e

    os ewes de Gana e do Togo apenas passaram a se denominar desse modo durante o perodo entre as

    duas Grandes Guerras Mundiais, afirma Nugent.

    A colonizao comprometeu duramente o desenvolvimento da frica. Hoje o continente abriga boa parte

    dos pases mais pobres do planeta. No plano poltico, o legado do colonialismo inclui a tradio de

    administrao de cima para baixo, a persistncia de burocracias que fornecem poucos servios e um

    baixo senso de identidade e interesse nacional. Os Estados so geralmente fracos, ineficientes e brutais,

    diz Shear. Economicamente, o colonialismo produziu, em sua maior parte, economias dependentes,

    monoculturistas e no integradas, que atendem prioridades externas e no internas.

    A situao atual dos pases africanos pode ser atribuda pressa que os colonizadores tiveram em

    transformar a realidade local. Isso fez com que o continente pulasse etapas importantes. O maior

    problema que, em apenas algumas dcadas, as sociedades tradicionais africanas foram lanadas em

    uma situao totalmente desconhecida. Voc no pode criar um sistema capitalista e Estados

    democrticos de um dia para outro, em poucas geraes. As prprias sociedades tradicionais europias

    precisaram de sculos para chegar a esse resultado, diz Guy Vanthemsche. Essa chance nunca foi dada

    aos africanos.

  • Quase sem querer

    As aventuras dos exploradores ajudaram na conquista dos povos africanos

    Mesmo quando pretendiam apenas salvar algumas almas, os homens que desbravaram a frica

    acabaram colaborando com os governos europeus na conquista e ocupao do continente. Missionrios

    e exploradores tiveram influncias contraditrias. Trouxeram com eles importantes recursos, como armas

    de fogo e outros bens, mas eram incapazes de controlar e prever as conseqncias de suas

    intervenes, diz Keith Shear, da Universidade de Birmingham. Mesmo que involuntariamente, o

    explorador francs Pierre de Brazza estimulou a convocao da Conferncia de Berlim. Ele fez um acordo

    com Makoko, rei dos batekes, que viviam prximo ao rio Congo: ofereceu proteo em troca de

    exclusividade comercial. A Frana ento reivindicou soberania sobre a regio em 1882. Mas isso entrou

    em conflito com os interesses de pases como Portugal, Inglaterra e Blgica, diz o historiador Guy

    Vanthemsche, da Universidade Livre de Bruxelas. O impasse entre os colonizadores os levou

    Conferncia. Outro explorador, Henry Morton Stanley, trabalhou na mesma regio que Brazza. Ajudou o

    rei belga Leopoldo II a fundar o Estado Livre do Congo e a explorar os trabalhadores locais, mas foi

    acusado de torturar e matar africanos a mando do monarca. Antes disso, o gals Stanley, trabalhando

    como jornalista, fora enviado frica por um dirio americano para procurar o missionrio escocs

    desaparecido David Livingstone. Aps percorrer milhares de quilmetros, encontrou um homem branco e

    cunhou a clebre frase: Doutor Livingstone, eu presumo. Acertou. Sob o lema Cristianismo, Comrcio e

    Civilizao, Livingstone havia sido um dos primeiros europeus a cruzar a frica, tornando-se uma lenda

    viva. Ao converter os africanos ao catolicismo ou ao protestantismo, entretanto, missionrios como ele

    facilitavam a colonizao. O combate s crenas e rituais tradicionais contribuiu para que o poder dos

    lderes tribais africanos, muito baseado na religio, entrasse em declnio.

    Fonte: http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/partilha-africa-434731.shtml