a palavra como alicerce da nação 21.02.12 - creative commons

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS ÁREA DE LITERATURAS, ARTES E CULTURAS A PALAVRA COMO ALICERCE DA NAÇÃO A afirmação e valorização da língua na construção discursiva da identidade eslovena Silvia Valencich Frota MESTRADO EM CULTURA E COMUNICAÇÃO 2012

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

ÁREA DE LITERATURAS, ARTES E CULTURAS

A PALAVRA COMO ALICERCE DA NAÇÃO

A afirmação e valorização da língua na

construção discursiva da identidade eslovena

Silvia Valencich Frota

MESTRADO EM CULTURA E COMUNICAÇÃO

2012

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

ÁREA DE LITERATURAS, ARTES E CULTURAS

A PALAVRA COMO ALICERCE DA NAÇÃO

A afirmação e valorização da língua na

construção discursiva da identidade eslovena

Silvia Valencich Frota

Tese orientada pelo Prof. Doutor Carlos A. M. Gouveia

MESTRADO EM CULTURA E COMUNICAÇÃO

2012

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A Palavra como Alicerce da Nação

A afirmação da língua na construção discursiva da identidade eslovena

© Silvia Valencich Frota, Faculdade de Letras de Lisboa, Universidade de Lisboa, 2012

A Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e a Universidade de Lisboa têm licença não

exclusiva para arquivar e tornar acessível, nomeadamente através do seu repositório

institucional, esta dissertação/tese, no todo ou em parte, em suporte digital, para acesso

mundial. A Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e a Universidade de Lisboa estão

autorizadas a arquivar e, sem alterar o conteúdo, converter a tese ou dissertação entregue, para

qualquer formato de ficheiro, meio ou suporte, nomeadamente através da sua digitalização,

para efeitos de preservação e acesso.

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A Jože, Josip, Giuseppe e José

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Acredito que uma tese de mestrado seja o primeiro passo para o ingresso em um novo

universo, repleto de oportunidades, mas também de indefinições. Nesse processo, o papel do

orientador é fundamental. Agradeço ao meu orientador por seu interesse e sua disponibilidade,

pelas leituras e revisões sucessivas e cuidadosas deste trabalho, pelo aprendizado. Admiro sua

habilidade em conciliar a tarefa da orientação com o estímulo intelectual e a liberdade

necessários à realização de um trabalho como este, respeitando sempre as diferenças de

percepção e as minhas capacidades e limitações.

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Resumo

Este trabalho propõe uma reflexão sobre o papel da língua e da literatura na construção

discursiva das identidades nacionais a partir do estudo de caso da Eslovênia. Com esse objetivo,

é analisado um texto da autoria de Mitja Čander e Aleš Šteger, que serve de introdução ao livro

Angels Beneath the Surface: a Selection of Contemporary Slovene Fiction, editado por Tom

Priestly. Trata-se de uma antologia de contos eslovenos, publicada em inglês, em 2008, que

reúne textos escritos entre 1990 e 2005.

O ponto de partida consiste numa breve discussão a respeito das novas perspectivas

adotadas pelas atuais teorias sobre os nacionalismos, especialmente a partir do final da segunda

metade do século XX. Adota-se a perspectiva da construção discursiva das identidades, entre

elas, a identidade nacional. A opção metodológica incide sobre as possibilidades e ferramentas

oferecidas pela análise do discurso, especialmente pela Linguística Sistêmico-Funcional.

O discurso identitário esloveno, que se depreende da análise do texto, caracateriza-se

por uma forte associação entre a criação e preservação de uma identidade nacional e a

afirmação e valorização da língua e da literatura eslovenas. Exemplo disso é a exaltação da

figura do poeta romântico France Prešeren (1800-1849), apontado como um dos grandes

artífices da língua e defensor da ideia nacional. O Dia da Cultura, também chamado de Dia de

Prešeren, é considerado feriado nacional e comemorado no aniversário da morte do poeta, no

dia 8 de fevereiro.

O recurso à língua comum como elemento fundante de uma pretensa identidade

nacional não é novo, nem exclusivo da Eslovênia. Ainda assim, ele assume novos significados

em face do cenário atual, em que a conquista de visibilidade internacional e a efetiva integração

da Eslovênia na União Européia ganham prioridade na agenda do país.

Palavras-Chave: Análise do Discurso, Eslovênia, Identidade Nacional, Língua,

Literatura

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Abstract

In this paper, we propose an analysis about the role of language and literature in the

discoursive construction of national identities based on Slovenia’s study case. To reach this

target, we analyse a text signed by Mitja Čander and Aleš Šteger introducing the book intitled

Angels Beneath the Surface: a Selection of Contemporary Slovene Fiction, edited by Tom

Priestly. It’s a collection of Slovene short prose, published in English, in 2008, gathering texts

written between 1990 and 2005.

We start with a brief discussion about the new perspectives presented by the nowadays

theories about nationalisms, especially those arisen in the second half of the 20th

century. Then

we clarify our affiliation to the discoursive constructions of identities perspective – among

them, the national ones – and adopt the discoursive analisys as the theory and methodology of

this study, especially the Systemic Functional Linguistics.

Based on the analysis of the text, Slovene indentity discourse is marked by a strong

association between national identity creation and preservation and the affirmation and

evaluation of language and literature. One example of that is the exaltation of France Prešeren

(1800-1849), the romantic poet considered the inventor of the national language and a great

defender or the national idea. Culture’s Day, also named Prešeren’s Day, is considered a

national Holliday and is cellebrated in the poet’s death anniversary.

The appeal to language as a founding element of an intended national identity is not

new or exclusive of Slovenia. Still, it gets new meanings face the actual scenario where the

needs of international visibility and efective integration in European Union seem to be a

demand for Slovenia.

Keywords: Discourse Analysis, Language, Literature, National Identity, Slovenia

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Índice

1. Introdução 1

2. Os ‘novos’ nacionalismos do século XXI 7

3. A construção discursiva da identidade nacional 23

4. O texto em análise: aspectos de textualização 35

5. O texto em análise: aspectos de representação 49

6. Confluências: representação, discurso e identidade 71

7. Conclusão 83

8. Referências 89

9. Anexo1 93

10. Anexo 2 103

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Índice de Quadros

Quadro 1 – Incidências de slovene no texto 53

Quadro 2 – Incidências de slovene por categoria 53

Quadro 3 – Incidências de slovene na categoria Língua 54

Quadro 4 – Incidências de slovene nas categorias Estado e Sociedade 54

Quadro 5 – Incidências de termos que remetem à Eslovênia e/ou à ideia de nação 56

Quadro 6 – Incidências de literature no texto 57

Quadro 7 – Incidências de literature modificada por um adjetivo 57

Quadro 8 – Incidências de literary no texto 58

Quadro 9 – Incidências de literature e de literary no texto 58

Quadro 10 – Incidências de literary por categoria 59

Quadro 11 – Registros de Slovenia ou Literature no papel de atores sociais 61

Quadro 12 – Registros de escritores identificados e não identificados 62

Quadro 13 – Incidência dos processos relacionais no texto 65

Quadro 14 – Incidência dos processos relacionais identificativos e atributivos 67

Quadro 15 – Incidência dos processos relacionais identificativos no texto 67

Quadro 16 – Incidência dos processos relacionais atributivos no texto 68

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Introdução

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A relação entre língua e identidade há muito suscita o interesse de quem se proponha

observar a sociedade em que vivemos. Desde a antiguidade que a língua surge como recurso de

identificação ou diferença, afinal, de acordo com a versão bíblica, foi com a multiplicação das

línguas e a consequente incapacidade de comunicação entre os homens que Deus teria punido

os responsáveis pela construção da famosa torre de Babel.

Com o desenvolvimento dos meios e tecnologias de comunicação e o simultâneo

avanço do processo de globalização, o universo humano se ampliou e modificaram-se os

desafios inerentes à necessidade de troca e contato entre as pessoas. Nesse cenário, a mesma

língua que possibilita a comunicação entre um certo grupo de pessoas, constrange o espaço no

qual estas atuam. A mesma língua que separa é a que une, aproximando aqueles que se

entendem por meio dela e diferenciando-os dos demais.

Neste trabalho, interessa observar a relação entre língua e identidade nacional. Num

cenário global marcado pela multiplicação dos contatos e por disputas e conflitos ‘entre’ e

‘intra’ nações, o discurso de associação entre língua e identidade nacional é recorrente. É esse o

caso da Eslovênia, uma das ex-repúblicas iugoslavas, que conquistou sua independência em

1991.

O discurso de emancipação nacional da Eslovênia é fortemente embasado na afirmação

e valorização de uma língua e literatura nacionais. A língua eslovena, e a cultura a ela

associada, serve de prova e origem de uma identidade nacional. Com a adesão à União

Europeia, em 2004, a Eslovênia viu-se frente a um novo desafio, o da integração num universo

marcado por uma ainda maior pluralidade de línguas e nações.

O discurso esloveno de aparente vinculação entre língua e identidade não é novo, nem

exclusivo. Ainda no século XIX, as unificações alemã e italiana foram, em parte, devedoras

dele. Como entender, no entanto, a longevidade desse discurso face às teorias atuais sobre o

nacionalismo, que reiteradamente questionam essa relação? Mais do que isso, qual será o

significado desse discurso hoje, uma vez que o contexto no qual ele se insere é bastante distinto

daquele vivenciado por France Prešeren (1800-1849), poeta romântico apontado como um dos

principais idealizadores da nação eslovena, na primeira metade do século XIX?

Uma possível abordagem para essas questões é assumir como ponto de partida que o

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discurso carrega uma série de significados nem sempre evidentes, nem sempre intencionais.

Repetimos como nosso o discurso alheio muitas vezes sem nos darmos conta disso. Outro modo

de dizer o mesmo é recorrer à forte carga ideológica dos discursos, lembrando que um dos

mecanismos por meio do qual a ideologia opera é o da naturalização. Ao se naturalizar um

discurso, deixa-se de questioná-lo. Sem questionamento, há poucas oportunidades de mudança.

Claro que é possível abordar essas questões a partir de muitas outras perspectivas. A

questão da identidade no contexto da modernidade tardia suscita muitos questionamentos. Num

cenário marcado pelo acirramento da mobilidade, em sentido amplo, e pela velocidade das

transformações, seja no campo social, seja no campo tecnológico, e em que o paradigma da

descontrução parece vigorar, nada pode permanecer o mesmo. Perdem-se antigas referências e

é necessário substitui-las. Mas tais discussões, por mais interessantes que sejam, estão além

do âmbito deste trabalho.

Se não há nada de substancialmente novo no discurso que vincula certa língua a certa

identidade nacional, talvez a novidade resida na maneira como percebemos esse discurso hoje e

no modo como muitas vezes o encontrarmos impregnado em nossa própria fala. Nesse sentido,

a análise crítica do discurso tem muito a contribuir, à medida que revela esses conflitos no

interior dos discursos.

Com menos de 2 milhões de habitantes e ocupando um território de pouco mais de 20

mil Km2, a Eslovênia não se impõe pelo tamanho ou pela força. A língua, razão e símbolo de

sua identidade nacional, ao mesmo tempo em que promove a união entre as pessoas ‘da

fronteira para dentro’, separa a Eslovênia do contexto internacional em que ela precisa se

integrar. Nesse sentido, o recurso à afirmação e valorização da língua na construção discursiva

da identidade eslovena precisa ser reavaliado. Com esse objetivo e a título de exemplo e

hipótese de trabalho, será analisada a introdução a uma coletânea de contos de autores

eslovenos contemporâneos (Priestly, 2008), traduzida para a língua inglesa e publicada em

2008, nos Estados Unidos (vd. Anexo1).

O ponto de partida será uma breve reflexão sobre o desenvolvimento dos nacionalismos

na Europa para então se destacar as teorias da segunda metade do século XX, que provocaram

grande mudança na percepção sobre o tema, reconhecendo um caráter inventivo e/ou

imaginado à ideia de nação (vd. Anderson, 1983; Gellner, 1964; Hobsbawm, 1990). Esse é o

foco do primeiro capítulo, onde também é discutido o papel das línguas na construção da

identidade nacional em face das questões trazidas pela modernidade tardia, assim como o

discurso das novas nações, ou seja, aquelas surgidas a partir do final do século XX, como é o

caso da Eslovênia.

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Assumindo como pressuposto que as identidades se constroem pela via discursiva, será

analisado o discurso esloveno de construção da sua identidade nacional. Esse é o tema em

destaque no segundo capítulo, que se inicia com o desenvolvimento do paradigma da

identidade como construção para, a seguir, abordar alguns dos conceitos básicos que orientam a

análise crítica do discurso. Em linhas gerais, apresenta-se a metodologia de análise que será

adotada, destacando-se o arcabouço de ferramentas e possibilidades oferecido pela linguística

sistêmico-funcional.

No capítulo 3, inicia-se efetivamente a análise do texto. Os critérios definidos nessa

etapa circunscrevem-se ao âmbito da textualização. A introdução é tomada em seu conjunto e

as estratégias de apresentação do texto e de conquista do leitor são destacadas e analisadas, sem

se perder de vista a função que a introdução se propõe desempenhar, ou seja, a de apresentar

uma coletânea de textos de autores eslovenos contemporâneos a um público de língua inglesa.

O recurso a referências espaciais para apresentar a Eslovênia ao leitor, especialmente a partir da

utilização de coordenadas geográficas, também é avaliado. Por fim, o texto é apresentado e

discutido em função de sua divisão e organização em blocos, onde determinados episódios e

personagens da história da Eslovênia e do desenvolvimento de sua língua e literatura são ora

destacados, ora suprimidos.

No capítulo 4, prossegue-se à análise do texto, mas, dessa vez, são os aspectos de

representação que ganham destaque. O ponto de partida consiste na indentificação das palavras

mais utilizadas na introdução e na observação dos seus respectivos significados no interior dos

grupos nominais de que fazem parte. A seguir, são identificadas as passagens do texto em que

língua/literatura, por um lado, e Eslovênia/nação, por outro, desempenham o papel de atores

sociais, aplicando-se, com essa finalidade, uma análise de sua agenciação. Por fim, o foco da

análise se volta para a identificação dos processos relacionais e sua classificação em

identificativos ou atributivos, para melhor compreender as representações construídas ao longo

do texto.

Esta Tese se encerra com uma reflexão sobre os novos significados que o discurso

identitário esloveno parece assumir no contexto atual, marcado pela necessidade de integração

na União Europeia e de conquista de visibilidade no âmbito internacional. Os desafios

enfrentados pela Eslovênia, e por boa parte dos países que hoje fazem parte da União Europeia,

passam por evitar que a mesma língua que é considerada um dos fatores básicos de identidade

nacional se transforme em barreira nesse processo de internacionalização.

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Os novos nacionalismos do século XXI

(Capítulo 1)

Introdução

Nações e nacionalismos: uma perspectiva histórica

A invenção da nação: os discursos da modernidade

Nações tardias: novas nações, velhos nacionalismos

Síntese

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A Palavra como Alicerce da Nação

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Os novos nacionalismos do século XXI

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Introdução

Nos últimos 20 anos, o mapa do mundo foi redesenhado inúmeras vezes para dar vazão

ao surgimento de novas nações, muitas delas decorrentes da desintegração do conjunto de

países que formavam a antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) ou a

Iugoslávia não-alinhada ao comunismo de Moscou. Se, a princípio, tal fato não representa nada

de novo na história do século XX, especialmente em função das redefinições relacionadas ao

contexto das duas grandes guerras, como entender esse movimento hoje, à luz das questões

apresentadas pelo estudo dos nacionalismos, em que se apregoa o fim da era das nações

(Hobsbwawm, 1990) e em que a Europa se encontra em processo de união e de busca de

identidades transnacionais?

Se é verdade que nação, nacionalismo e identidade nacional são atualmente expressões

recorrentes, é preciso lembrar que nem sempre foi assim. A ideia de nação é relativamente

recente e firma-se apenas a partir do final do século XVIII, significativamente marcada pelos

movimentos sociais que culminaram na declaração de independência dos Estados Unidos da

América, em 1776, e na revolução francesa, em 1789 (Anderson, 1983: 192).

Para melhor compreender os contornos contemporâneos da expressão identidade

nacional e no pressuposto de sua redefinição em nossa modernidade tardia (Giddens, 1991),

neste capítulo, parte-se de uma breve reflexão sobre o desenvolvimento do conceito de nação

desde o século XIX e especialmente ao longo da segunda metade do século XX e início do XXI,

discutindo-se alguns dos conceitos de nacionalismo e identidade nacional relevantes para o

trabalho.

Os discursos da modernidade, em especial os decorrentes do processo de globalização e,

de certo modo em resposta a ele, o de afirmação e valorização de uma suposta cultura nacional,

servem de baliza para uma reflexão sobre a questão dos nacionalismos em que se explora a

relação entre identidade e um certo modo de vida único, homogêneo e exclusivo sintetizado

de modo abstrato no conceito de cultura nacional. Nesse processo, o papel dos sistemas de

ensino e de valorização de uma língua nacional ganha destaque, quer como ícone de uma dada

cultura quer como fator de viabilidade para o processo de comunicação.

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A Palavra como Alicerce da Nação

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Por fim, aborda-se a questão das nações tardias, destacando-se algumas das

características gerais que marcam os discursos desses novos países. Em geral, consistem em

uma reapropriação do passado e na afirmação de uma identidade nacional homogênea e

incontestável. Em comum, esses novos países se apresentam como velhas nações centenárias

caracterizadas, de modo geral, pela existência de uma língua e cultura próprias e originais ,

que agora conquistam o reconhecimento, embora tardio, do seu caráter nacional.

Nações e nacionalismos: uma perspectiva histórica

A ideia de nacionalismo, em seus contornos atuais, tem as suas raízes no século XVIII,

com Rousseau, Herder, Fichte e Korais, os quais, ao lado de Mazzini, são considerados os „pais

fundadores‟ de teorizações cujos conceitos centrais giram em torno de três valores: autonomia,

unidade e identidade (vd. Hutchinson & Smith, 1994: 11). Foi no século XIX, no entanto, que o

nacionalismo desempenhou papel fulcral. Daí autores como Bagehot, citado por Hobsbawm

(1990: 1), identificarem esse período como a era do apogeu dos nacionalismos.

Na perspectiva europeia, as revoluções de 1848 a chamada “primavera dos povos”

com forte apelo nacionalista, ao lado da unificação italiana, em 1861, e alemã, em 1871, servem

de medida para a importância e valorização da ideia de nação e nacionalismo nesse momento,

independentemente dos seus significados.

É nesse período que Renan (1882: 17) profere sua célebre conferência sobre a nação, a

qual caracteriza como um princípio espiritual, ou seja, uma ideia abstrata, um valor: “a nation is

a soul, a spiritual principle”. A nação representaria um valor suficientemente forte para unir

pessoas e mobilizá-las ao sacrifício: “A nation is a grand solidarity constituted by the sentiment

of sacrifices which one has made and those that one is disposed to make again” (ibidem).

Partindo desse princípio, o autor considera que o único critério válido para definição de

uma nação seria o seu desejo de permanecer unida: “The desire of nations to be together is the

only real criterion that must always be taken into account” (Renan, 1882: 17). Trata-se,

portanto, de uma escolha livre e coletiva, sempre renovada, numa espécie de “plebiscito” diário

(ibidem).

A clara distinção entre Estado e nação, que transparece da definição de Renan, não

impede, no entanto, que tais conceitos sejam cada vez mais apresentados em conjunto. Com a

sobreposição das noções de Estado e nação, patriotismo e nacionalismo também se confundem.

O Estado garantidor da vida social e a ideia de nação que com ele se identifica formam um

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Os novos nacionalismos do século XXI

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amálgama. Defender o Estado-nação significa defender um status quo, uma realidade social,

um modo de vida e, em alguma medida, defender os nossos interesses contra os interesses de

outros.

É ainda no século XIX que o papel da língua no desenvolvimento dos nacionalismos

ganha relevância. Embora, de acordo com Anderson (1983: 196), até o final do século anterior

a existência de uma língua comum não fosse frequentemente associada ao sentimento de

pertença nacional, essa situação começa a se modificar a partir do século seguinte,

especialmente no que diz respeito às chamadas “línguas de imprensa” (print-languages).

Com o desenvolvimento da tipografia e de um mercado cada vez mais baseado na

produção em massa e no incentivo à circulação de mercadorias, as possibilidades de produção

em série e de comercialização de livros e jornais se multiplicam e ganham relevância como

atividade econômica. A escolha de uma entre as várias línguas disponíveis como sendo aquela

em que determinado material será produzido, ou seja, como uma língua de imprensa, representa

vantagens para os indivíduos que forem aptos a se expressar por via dela e desvantagens para os

demais. Além da língua ou dialeto locais, agora é preciso que o indivíduo seja capaz de se

comunicar nessa outra língua para fazer parte de um novo e importante mercado consumidor,

que, impulsionado pela lógica do capitalismo, cada vez mais se amplia. A promoção de uma

língua local à categoria de língua de imprensa implica, portanto, o alargamento do número de

falantes e do espaço geográfico em que é praticada.

As línguas de imprensa rapidamente passam a ser associadas ao processo de formação

de uma consciência nacional (Anderson, 1983: 44 et passim). Tais línguas permitem a

reprodução e disseminação de ideias por um território alargado, ao mesmo tempo em que

estabelecem espaços comuns de troca e comunicação numa língua distinta tanto do latim

quanto das línguas orais – “(…) they created unified fields of exchange and communication

below Latin and above the spoken vernaculars” – e conferem uma nova “fixidez” à língua,

promovendo, assim, novas línguas de poder, distintas das línguas de administração.

As línguas de imprensa, dessa forma, promovem uma nova solidariedade, agora

ampliada, pois não dependem mais do contato direto entre as pessoas, como no caso das línguas

orais, e podem ser disseminadas pela reprodução em massa e circulação física do material

impresso. O âmbito de circulação da língua de imprensa, ou seja, a definição dos contornos

desses “campos unificados de trocas e comunicação”, permite, mais uma vez, que se coloque

em funcionamento um mecanismo de identificação e diferença.

Por fim, a configuração das línguas de imprensa como línguas de poder distintas das

línguas de administração permite que se estabeleça um novo equilíbrio de forças, o qual, a

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A Palavra como Alicerce da Nação

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princípio, favorece as comunidades locais e suas respectivas elites que mantêm contato

permanente, em detrimento, muitas vezes, dos centros de poder localizados em territórios

distantes.

O desmantelamento dos impérios otomano e austro-húngaro, no início do século XX, e

a eclosão das duas grandes guerras que abalaram a conjuntura mundial compõem esse cenário

de confronto, ajustes, criação e redefinição de territórios nacionais ou de Estados-nação em que

o mapa da Europa é redesenhado. Nas décadas seguintes, fortalecem-se, em relação de

oposição, dois grandes blocos: o dos países de regime comunista e o dos países de regime

capitalista. É nesse período que o nacionalismo ganha outra roupagem, especialmente a partir

dos trabalhos de Gellner, Anderson e Hobsbawm. Em comum, esses autores partilham a ideia

de nação como uma espécie de ficção ou criação – uma comunidade inventada, para Gellner

(1964: 62), ou uma comunidade imaginada, para Anderson (1983: 6).

Mas a nação como comunidade imaginada só se torna possível a partir do

desenvolvimento de um sistema educativo ampliado (Hobsbawm, 1990), que permite a partilha

de um substrato comum valores, princípios, história, representações, interpretações por um

número alargado de pessoas. Permite, em alguma medida, a ampliação da comunidade que se

imagina como una e homogênea, projetando uma imagem coletiva, partilhada por todos. Nesse

processo, a língua mais uma vez desempenha papel essencial e indissociável do

desenvolvimento desse sistema ampliado de ensino, de bases nacionais. A existência de uma

língua comum, que permita a comunicação entre os indivíduos, é condição de viabilidade do

sistema ao mesmo tempo em que este se encarrega de difundir o ensino e utilização dessa

língua.

A relação entre língua, comunicação e identidade é analisada por Deutsch (1966: 27),

que explora o viés da comunicação, numa perspectiva funcionalista, associando o partilhar de

uma identidade nacional à capacidade de comunicação efetiva entre as pessoas pertencentes a

uma comunidade ampliada, em contrapartida às barreiras de comunicação que surgem no

contato com pessoas de comunidades distintas: “Membership in a people essentially consists in

wide complementary of social communication. It consists in the ability to communicate more

effectively, and over a wider range of subjects, with members of one large group than with

outsiders”.

O papel da língua, no entanto, não se esgota em seu potencial de comunicação. Mesmo

no interior dos sistemas de ensino, ela assume outras funções. Um sistema educativo

estruturado em torno de uma língua comum estimula a associação entre essa mesma língua e

um conjunto de crenças e valores, de modos de pensar e de viver, permitindo, assim, a

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Os novos nacionalismos do século XXI

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construção e disseminação de uma determinada identidade. Dizendo de outra forma, atua na

construção e difusão das diferentes línguas e discursos dos nacionalismos.

O desenvolvimento de um sistema educativo também está nas bases da ideia de

tradição, um dos recursos fundamentais à criação e perpetuação das identidades nacionais.

Parte-se do discurso da tradição, entendida como uma prática antiga que se perpetua pela

repetição numa dada comunidade, um costume continuado e carregado de sentido, que atesta a

existência de uma história comum e de uma memória partilhada e é, de certa forma, indicador

de uma mesma origem. A tradição, nesse sentido, carrega uma grande carga de concretude. Daí,

talvez, seu forte apelo como fator de comunhão e identidade.

O discurso da tradição é frequentemente entretecido com o discurso da identidade

nacional. Em alguma medida, a ideia de nação se fundamenta na partilha de tradições comuns.

Mas o que Hobsbawm (1983: 77) destaca em seu estudo sobre o nacionalismo é que as hoje

valorizadas tradições nacionais são criações. Para o autor, a invenção da tradição resultaria da

conjugação de três fatores preponderantes: o desenvolvimento de um sistema secular de

educação primária equiparável à igreja, a invenção de cerimônias públicas e a construção em

massa de monumentos públicos (Hobsbawm, 1983: 77-78). A formulação do autor explicita o

papel não só da educação, mas de um sistema educativo, no processo de invenção das tradições,

que, em alguma medida, alimentarão a imaginação de futuras nações.

O caráter inventivo da tradição também transparece da definição proposta por Giddens

(1994: 61), em que esta é apresentada como um “meio de organização da memória colectiva”.

Por trás da expressão “organização”, é possível encontrar o mesmo mecanismo de seleção e

descarte, já referido por Anderson em sua definição de nação como comunidade imaginada.

Talvez por esse motivo as tradições surjam no discurso da modernidade sempre com carga

positiva. As práticas negativas, que precisam ser extirpadas, esquecidas, apagadas, sublimadas,

em geral não ganham o rótulo de tradição.

Independentemente da amplitude do papel que se pretenda reconhecer para a existência

de uma língua nacional, para o desenvolvimento de um sistema nacional de educação ou para a

partilha de tradições comuns no processo de desenvolvimento das identidades nacionais, não se

pode negar a importância desses elementos para a compreensão das discussões atuais sobre os

nacionalismos.

Para Hobsbawm (1990: 169), o período que vai das grandes guerras até o final do século

XX marca uma mudança significativa no ideário do nacionalismo. Se ele surge como força

propulsora da história até a primeira metade do século passado, isso não acontece na atualidade,

o que não significa dizer que os nacionalismos não estejam presentes e se façam sentir nos dias

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A Palavra como Alicerce da Nação

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de hoje. Parece mais razoável interpretar a declaração acima como indicativa de uma mudança

no papel desempenhado pelos nacionalismos.

Independentemente do desenvolvimento dos conceitos de nação e nacionalismo, parece

haver, no entanto, um ponto de ruptura nessa cronologia. Hobsbawm (1990: 4) ilustra bem esse

movimento ao listar, na introdução do seu livro, algumas das obras que considera relevantes

para a compreensão do tema, estabelecendo, assim, um claro recorte na produção anterior –

“the number of works genuinely illuminating the question (…) is larger in the period 1968-88

than for any earlier period of twice that length” (itálicos acrescentados). Anderson (1983/2005)

demonstra a mesma preocupação ao registrar, no prefácio à segunda edição do seu livro, sua

própria seleção de trabalhos.

Sejam quais forem as referências citadas por Anderson e Hobsbawm, o que importa é

que estas parecem indicar não só uma ruptura no modo de pensar a questão dos nacionalismos

como também uma mudança do movimento em si, do papel dos nacionalismos após as duas

grandes guerras. Anderson (1983: xii), ao comentar a proliferação de obras sobre o tema nas

últimas décadas do século XX, dá razão à afirmação de Hobsbawm de que a era do

nacionalismo teria chegado ao fim: “Hobsbawm has had the courage to conclude from this

scholarly explosion that the age of nationalism is near its end: Minerva‟s owl flies at dusk”.

A invenção da nação: os discursos da modernidade

A rigor, afirmar que a era dos nacionalismos, nos moldes vivenciados entre os séculos

XIX e meados do XX, teria chegado ao fim, não significa decretar o fim dos nacionalismos

propriamente ditos. Pode-se dizer, no entanto, que os nacionalismos que experimentamos hoje

têm características próprias e, talvez, desempenhem funções distintas daquelas que marcaram o

período anterior. Parte dessas mudanças deve-se ao contexto atual, marcado pelo processo de

globalização e pela concorrência dos vários discursos de valorização da diversidade cultural.

A configuração de sistemas globais de diversas naturezas, em especial política e

econômica, delineia um cenário rico em interligações e interdependências. As empresas se

fundem em grandes grupos financeiros e econômicos que atuam em diversos segmentos de

mercado e áreas geográficas. Os Estados se associam, criando organizações em âmbito

internacional, estabelecendo vínculos entre eles, mais ou menos estreitos, mais ou menos

firmes, mais ou menos duradouros. As línguas se misturam e confundem, transportadas por um

sistema de comunicação em rede, ramificado, capaz de vencer distâncias em segundos.

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Os novos nacionalismos do século XXI

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Nesse cenário, a extensão e os limites dos territórios nacionais ganham novos

contornos. A mobilidade e circulação de bens, pessoas e serviços evidenciam a porosidade das

fronteiras e intensificam os contatos entre pessoas que falam línguas diferentes, adotam

costumes distintos, possuem uma escala de valores própria, podem ver o outro como estranho.

São pessoas nascidas em territórios diferentes, educadas em sistemas de ensino variados, com

crenças religiosas e morais específicas, história e memória coletiva próprias.

Nesse ambiente de contato, mistura e choque, é mais uma vez posto em ação um

mecanismo de identificação e diferença. Por um lado, a multiplicação de contatos parece acirrar

a percepção da diferença, por outro, e em sentido inverso, permite a criação de identidades

ampliadas, transnacionais, como as de gênero, profissão, religião entre outras. É nesse contexto

que se pretende inserir a questão da identidade nacional, como um dos recursos adotados nesse

jogo de contraposições.

Um dos significados imediatos da expressão identidade nacional talvez ainda seja a

referência a uma origem comum, quer em função da hereditariedade, quer em função da fixação

num dado território ao longo do tempo. O Estado-Nação expressão disseminada no século

XX ao qual o indivíduo está ligado pelo nascimento, por sua história, língua, cultura ou

mesmo pela via da auto-identificação seria o vértice dessa comunidade. Parte-se do pressuposto

de que a partilha desses elementos implicaria necessariamente uma identidade comum.

O nacionalismo, em suas várias facetas, invariavelmente estabelece um elo entre o

indivíduo e a nação com a qual se identifica. É a natureza dessa identificação que agora é posta

em causa. Se antes o pressuposto era de que a identidade nacional implicava necessariamente a

comunhão de valores, história, memória, modo de vida e cultura, em sentido amplo, agora essa

identificação inata, natural, autêntica e verdadeira é questionada.

Não é preciso ir muito longe nesse jogo de identificações e diferenças para constatar a

ausência da homogeneidade suposta. Num mesmo Estado nacional, os hábitos e costumes das

pessoas variam não só em função da geografia, como também dos credos, do status financeiro,

da classe social, da língua ou mesmo da história pessoal entre tantos outros fatores. Embora ter

a mesma nacionalidade de alguém não conduza a uma identidade necessária, seja em que

sentido for, a referência a um certo caráter nacional é recorrente. O apelo a essa identidade, ao

fator nacional, como sendo um vínculo que se estabelece entre aqueles que partilham uma certa

nacionalidade, é extremamente sedutor, quase irresistível.

A crença nessa identidade, que não precisa de prova ou confirmação e é dotada de forte

carga de espontaneidade, é uma das principais características da identidade nacional. Segundo

Anderson (1983: 4), o fator nacional e o nacionalismo seriam “artefactos culturais” especiais

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A Palavra como Alicerce da Nação

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que produziriam a nação, definida pelo autor como sendo uma “comunidade política

imaginada”, ao mesmo tempo “limitada e soberana” “it is an imagined political community –

and imagined as both inherently limited and sovereign” (ibidem: 6).

Respeitados os diferentes posicionamentos, o caráter imaginado da nação surge como

um substrato comum. O nacionalismo como produto da nação, como resultado da partilha de

valores comuns, histórias, memórias, territórios, laços sanguíneos e afetivos, é superado pela

ideia de criação e novidade. “Nationalism is not the awakening of nations to

self-consciousness: it invents nations where they do not exist (...)” (Gellner, 1964: 62). Para

Gellner (1983: 64), não são as nações que promovem o nacionalismo, mas sim o nacionalismo

que inventa as nações.

Não significa isto dizer que as nações sejam criações arbitrárias, resultantes da fantasia

de grupos determinados, produzidas artificialmente no processo de disputa por controle e poder

inerentes ao tecido social. O nacionalismo se vale de práticas existentes, mas, a partir de um

vasto território delas, ele seleciona e recorta. Escolhe as práticas que deseja lembrar e descarta

aquelas que deseja esquecer: “Admittedly, nationalism uses the pre-existing, historically

inherited proliferation of cultures or cultural wealth, though it uses them very selectively, and it

most often transforms them radically” (Gellner, 1983: 64).

Daí a crítica de Anderson (1983: 6) à definição, adotada por Gellner, de nação como

invenção. Esse termo reforçaria, na opinião de Anderson, a compreensão equivocada de que a

nação e o nacionalismo seriam construções arbitrárias, sem qualquer relação com o contexto em

que surgem. Por esse motivo, Anderson opta pelo termo “imaginada” para definir a nação.

Apesar disso, o produto final desse processo inventivo, seja qual for, resulta numa

espécie de ilusão coletiva. O verniz que o protege é o da homogeneidade, antiguidade,

predestinação. Como num truque de mágica em que o ilusionista faz desaparecer um

monumento público com centenas de metros de altura e dezenas de toneladas sob o testemunho

das câmeras de TV e uma audiência de milhares de telespectadores, a referência a uma

nacionalidade, isto é, a utilização do rótulo “nacional” faz desaparecer diferenças e cria

semelhanças. Ao contrário do primeiro truque, no entanto, esse é de ação continuada.

Respeitando-se as diferenças de posicionamento, pode-se dizer que as teorias sobre os

nacionalismos da segunda metade do século XX até hoje têm em comum a valorização dos

conceitos de identidade e de cultura. A identidade que se estabelece entre aqueles que

consideram pertencer a uma dada nacionalidade cria um „nós‟ ampliado, capaz de envolver

milhões de pessoas, sobrepondo-se a critérios usualmente utilizados como distintivos, seja

faixa etária, gênero, classe social, religião, profissão entre tantos outros.

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Os novos nacionalismos do século XXI

17

Embora a diferença se faça sentir na alteridade, no contato com o outro, importa lembrar

que o sujeito nacional também se constrói dentro do território do Estado-Nação. Esse sujeito

nacional é referido no discurso político, jurídico e social incessantemente. Esse „macro-sujeito‟

que não representa exatamente ninguém, não corresponde a um único indivíduo, é assumido

como representante de todos. Em sentido contrário, para ser reconhecido como nacional, ou

mesmo para se auto-reconhecer como nacional, é preciso fazer um esforço para corresponder

ou se identificar com esse modelo.

Nações tardias: novas nações, velhos nacionalismos

Usando uma expressão que, em tempos, já foi utilizada em relação à unificação alemã e

italiana do final do século XIX, boa parte das atuais nações tardias, que surgiram entre o final

do século XX e o início do atual, têm em comum a exiguidade do território e um discurso

nacional fortemente embasado na afirmação e valorização de uma língua e cultura nacionais,

características já destacadas por Hobsbawm (1990) ao se referir aos nacionalismos da segunda

metade do século XX. No processo a favor do reconhecimento de suas respectivas identidades,

resgatam uma história milenar, um passado compartilhado de lutas, sofrimentos e sacrifícios

em prol do bem maior: a afirmação do seu caráter nacional.

Numa perspectiva histórica, a novidade do conceito de nação e nacionalismo é apagada

em favor de um passado justificador da demanda atual, como revela a seguinte afirmação de

Hobsbawm (1983: 76): “modern nations and all their impedimenta generally claim to be the

opposite of novel, namely rooted in the remotest antiquity, and the opposite of constructed,

namely human communities so „natural‟ as to require no definition other than self-assertion”.

A afirmação de uma língua comum implica solidariedade, que se prolonga não só no

espaço territorial da nação mas também no tempo, através de gerações, graças à fixidez e

estabilidade que se tornam possíveis com a conversão de uma certa língua em língua de

imprensa. Essa característica, como alerta Anderson (1983: 196), será bastante útil ao discurso

de afirmação nacional que procura atestar a sua antiguidade, pois encontra na longevidade das

línguas um forte argumento a seu favor: “once one starts thinking about nationality in terms of

continuity, few things seem as historically deep-rooted as languages, for which no dated origins

can ever be given”.

Ao contrário da Alemanha e da Itália dos finais do século XIX, no entanto, as atuais

nações tardias surgem num contexto diverso, caracterizado por uma nova organização da

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A Palavra como Alicerce da Nação

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sociedade, em rede, como propõe Castells (1997: xxix), cuja forma é resultante da “revolução

das tecnologias de informação” e da “reestruturação do capitalismo”. Esse novo modelo

acentua a interdependência entre os diferentes Estados, que não mais prescindem de fazer parte

de organismos internacionais. O próprio conceito de soberania é posto em causa, uma vez que a

independência político-econômica parece não ser mais possível no exíguo território nacional.

Billig (1995: 133) reproduz o discurso corrente, para criticá-lo logo a seguir, ao descrever o

jogo de forças opostas que pressionam as fronteiras do Estado-Nação de fora para dentro a

globalização e de dentro para fora a valorização das diferenças regionais e a ameaça de

fragmentação do território em novas unidades nacionais. “The result is that the sovereignty of

the nation-state is collapsing under pressure from global and local forces. Economic necessities

are compelling states to surrender parts of their sovereignty to supra-national organizations”

(ibidem: 133).

A virtualização do real, o esbatimento das fronteiras, o aumento da mobilidade, a

formação de grandes grupos internacionais políticos, econômicos, sociais que caracterizam

a atualidade, modificam a própria noção de fronteira. Agora não mais prejudicam ou bloqueiam

a passagem de bens e pessoas, mas regulam, definem critérios e selecionam, determinam o

nível de porosidade. Nesse contexto, a mediação e a negociação ganham preeminência sobre o

controle e a repressão.

O caso da Europa é bastante ilustrativo do cenário atual. Em algum momento das

últimas décadas, o próprio conceito de Europa perdeu parte do seu significado e tornou-se

problemático, impreciso. Mais do que a discussão sobre o que seria a identidade europeia, os

próprios limites da Europa se esvanecem confundidos entre a delimitação geográfica do

continente e as fronteiras estabelecidas pelo projeto que se intitula de União Europeia.

Tudo isso só encontra sentido nos tempos atuais, em que a chamada modernidade tardia

parece dissolver as estruturas sólidas que sustentavam a sociedade, imprimindo velocidade e

movimento e exigindo um novo senso de equilíbrio e alguma sensibilidade. A mobilidade

crescente e a multiplicação de contatos parecem acentuar a percepção da identidade e da

diferença; ao mesmo tempo, desafiam a definição e a perpetuação de uma identidade única, seja

ela qual for. Nesse panorama, a apropriação de uma dada linguagem e da cultura a ela associada

atua como uma espécie de bálsamo contra as angústias do mundo contemporâneo e suas

indefinições à medida que se reveste da ilusão da essência. Essa língua materna que nos é dada,

e não escolhida, promove o estabelecimento de uma identificação imediata e dificilmente

questionada, derivando dessas características a sua força e estabilidade, num mundo em

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Os novos nacionalismos do século XXI

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movimento contínuo e acentuado de mudança. A língua e sua cultura surgem como referências

seguras num mundo em estado perpétuo de transformação.

O discurso recorrente e repetitivo da identidade nacional parece ser, em alguma medida,

a tentativa de resgate de uma identificação segura em meio a incerteza que caracteriza a

sociedade contemporânea. O caminho trilhado com maior frequência é o do apego e da

identificação a uma cultura nacional conceito suficientemente amplo e abstrato para

acomodar as mais variadas práticas e, sobretudo, o discurso ilusionista da homogeneidade.

Numa sociedade em que o papel de consumidor muitas vezes se sobrepõe ao papel do

cidadão e que oferece uma gama enorme e variada de identidades que o indivíduo ou grupo

pode escolher e descartar, vestir e despir a todo momento uma espécie de mercado-livre de

identidades (Billig, 1995: 134) , a língua-cultura surge como contraponto a essas identidades

voláteis “the culture in which one has been taught to communicate becomes the core of one‟s

identity” (Gellner, 1983: 69).

O discurso atual, sob a bandeira da globalização, é o da fragmentação e fortalecimento

dos processos de internacionalização em quaisquer de suas naturezas - política, econômica,

social e, em alguma medida, cultural. É o que afirma Billig (1995: 132): “the processes of

globalization, which are diminishing differences and spaces between nations, are also

fragmenting the imagined unity within those nations”. As novas nações, mal alcançam a

independência, lançam-se numa nova batalha por um lugar ao sol na ordem global.

Como resultado desse movimento, surgem novas identidades e uma pluralidade de

narrativas (Billig, 1995: 133), que, muitas vezes, competem entre si. Nesse cenário, a

identidade nacional se afirma como uma dessas narrativas ou, na acepção de Bhabha (1990:

300), a nação se apresenta como uma estratégia narrativa sempre em processo de construção:

“Counter-narratives of the nation that continually evoke and erase its totalizing boundaries

both actual and conceptual disturb those ideological manoeuvres through which „imagined

communities‟ are given essentialist identities”.

O espaço criado pela multiplicidade de narrativas e sua inconclusão permite que a ideia

de nação se revista de diferentes identidades simultaneamente, acomodando assim não só as

semelhanças – estratégia em que se baseia a abordagem essencialista da ideia de nação – mas

também as diferenças. A identidade nacional se liberta das suas amarras e permite margem de

manobra para evitar conflitos e acolher a diferença.

Mais do que desvendar um programa político responsável pelo planejamento e

desenvolvimento de uma dada identidade, interessa observar como ela se constrói e se modifica

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A Palavra como Alicerce da Nação

20

incessantemente no tecido social, num processo colaborativo – ora consciente ora não – no qual

tomam parte governo, academia, religião, sociedade e tantos outros agentes.

Abandonada a visão essencialista da nação, dos nacionalismos e da identidade nacional,

é preciso refletir sobre os processos que viabilizam essa identidade: “Culture is not a matter of

race. It is learned, not carried in our genes” (Kuper, 1999: 227). Embora o fim da era dos

nacionalismos já tenha sido declarado, o espraiamento do discurso nacional e sua capacidade de

mobilização atestam a relevância da ideia de nação e de identidade nacional na sociedade

contemporânea. A forte presença dos símbolos nacionais no mundo moderno, incorporados ao

cotidiano de forma quase imperceptível, constitui apenas um dos exemplos da força dessa

identidade ainda hoje.

Síntese

Uma breve retrospectiva histórica das reflexões sobre os nacionalismos a partir do

século XIX até a atualidade é suficiente para ressaltar a pluralidade de abordagens adotadas e

destacar alguns dos elementos intrinsecamente relacionados ao tema. O impacto provocado

pelo capitalismo, associado ao desenvolvimento das línguas de imprensa e à criação de línguas

nacionais, o desenvolvimento de um sistema ampliado de educação e o recurso a um conjunto

de práticas aqui representadas pelo conceito de tradição para justificar uma espécie de caráter

nacional são alguns dos elementos considerados relevantes para este trabalho.

O cenário atual, caracterizado pelo processo de globalização e pela crescente

mobilidade de pessoas, intensifica o contato com o outro e coloca em relevo um mecanismo de

identificação e diferença essencial para a construção e percepção identitárias. A identidade

nacional, assim como a identificação de e com uma cultura nacional, surgem como discursos

recorrentes, muitas vezes explícitos, outras, naturalizados pelas diferentes estratégias

narrativas. O papel da língua, quer como ícone de uma dada cultura, quer como meio

catalisador do processo de comunicação, desponta como elemento essencial a esse processo.

O preconizado fim da era dos nacionalismos traduz-se em uma nova percepção da

questão na sociedade atual, onde estes parecem se revestir de novas características e

desempenhar funções sociais diferentes daquelas realizadas pelos nacionalismos do século

XIX. Corrobora essa afirmação a assiduidade dos discursos de afirmação, valorização e

discriminação nacional que se repetem no dia-a-dia em todos os âmbitos da vida social.

Conflitos armados, disputas econômicas, competições esportivas, campanhas de marketing que

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Os novos nacionalismos do século XXI

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transformam a nação em marca, tensões provocadas pelos movimentos migratórios, cenários de

exclusão e inclusão, preconceitos e discriminação são apenas alguns dos exemplos.

No contexto atual, onde o caráter imaginado da nação é destacado e explicitado como

construção, a criação das nações tardias, que se tornaram independentes entre o final do século

XX e os dias de hoje, serve de ponto de partida para uma reflexão sobre as novas roupagens que

os nacionalismos adotam em face da contemporaneidade. Esse processo de construção

discursiva das identidades nacionais será discutido a seguir, assumindo como ponto de partida

as perspectivas adotadas pela análise crítica do discurso.

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A construção discursiva das identidades nacionais

(Capítulo 2)

Introdução

A construção discursiva das identidades nacionais

O discurso de afirmação nacional da Eslovênia

A análise crítica do discurso

Síntese

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A Palavra como Alicerce da Nação

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A construção discursiva das identidades nacionais

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Introdução

No domínio dos processos de construção identitária, a partir do momento em que se

entende a identidade nacional como uma entre as múltiplas narrativas identitárias possíveis e se

reconhece seu caráter imaginado, o indivíduo ganha certa autonomia. Em vez de objeto de uma

dada identidade, assume-se como sujeito, pois cabe a ele, em alguma medida, a definição dessa

história.

Neste capítulo, será explicitada a adoção de uma perspectiva construtivista, baseada no

discurso, para se pensar os processos por meio dos quais essas identidades podem ser

construídas e transformadas. Daí que neste trabalho se analise o discurso como forma de

mediação entre o indivíduo e a sociedade ou como modo de representação ou construção de

cenários e situações que se pretendem reais.

A construção discursiva das identidades nacionais será o tema principal das reflexões

realizadas, que partirão da análise de três paradigmas: o da identidade nacional como herança, o

da identidade nacional como aprendizado e o da identidade nacional como construção. Este

último modelo será o adotado ao longo deste trabalho.

Nesse contexto, o processo de construção identitária das nações tardias será analisado,

em especial no que se refere aos discursos que relacionam a afirmação e valorização de uma

língua e cultura nacionais com a existência incontestável de uma dada identidade. O caso da

Eslovênia, uma das repúblicas que formavam a ex-Iugoslávia, será destacado. A Eslovênia

declarou-se independente em 1991; conta, portanto, com pouco mais de 20 anos de existência

oficial como Estado-nação. No ano seguinte, em 1992, iniciou o processo de adesão à União

Européia, consolidado em 2004.

A seguir, será apresentada e discutida a opção metodológia que permeará toda esta

reflexão: a análise crítica do discurso e, em seu âmbito, a abordagem proposta pela linguística

sistêmico-funcional. A relação de interdependência entre o sistema linguístico e o sistema

social, o discurso como manifestação de e disputa pelo poder, o papel das ideologias, as

macro-funções da linguagem serão alguns dos temas em análise.

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A Palavra como Alicerce da Nação

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A construção discursiva das identidades nacionais

É possível refletir sobre a questão da identidade nacional a partir de diversas

abordagens, como ilustra a multiplicidade de trabalhos disponíveis sobre o tema. Definindo

como ponto de partida desta reflexão o viés dos estudos culturais (vd. Hall, 1997), propõe-se o

desenvolvimento de três paradigmas: o da identidade nacional como herança, o da identidade

nacional como aprendizado e o da identidade nacional como construção (vd. Kuper, 1999, e

Tann, 2010).

A identidade nacional como herança pressupõe algo inato, um conjunto de

características que seria herdado ao se nascer num determinado país e que induziria a um certo

comportamento ou modo de pensar e sentir o mundo. Todo ser humano carregaria esses dados

em seus genes e pouco poderia fazer para escapar à ação deles. Mais do que uma visão

essencialista, trata-se de uma visão determinista das identidades, na qual o indivíduo assume o

papel de objeto dessa suposta identidade nacional: ao invés de agir sobre ela, sofreria sua ação.

Aceitar a visão determinista implica, em algum grau, acreditar que todos os indivíduos

de uma certa nacionalidade partilham um dado conjunto de características das quais não podem

fugir, estando, assim, condicionados a comportamentos específicos. Esses pressupostos não

condizem com a diversidade que vivenciamos no dia a dia entre indivíduos pertencentes a uma

só nação. Parece difícil, portanto, defender esse posicionamento à luz das sociedades modernas

e da ausência de homogeneidade suposta.

No que diz respeito à identidade nacional como aprendizado, ela traz consigo a noção de

que as identidades são ensinadas. Não nascem com o indivíduo, mas este, desde o início do seu

processo de socialização, aprende a se comportar de uma dada maneira, a pensar e a sentir de

acordo com um modelo pré-estabelecido. Mesmo sem dar-se conta desse processo de

aprendizagem e mesmo que esse aprendizado não seja dirigido ou intencional, o indivíduo

assume como própria a identidade que lhe é ensinada.

Para seguir por essa linha de raciocínio, seria necessário aceitar a existência de um

modelo, de um modo de ser nacional, ou seja, de uma maneira específica de se identificar como

indivíduo pertencente e intrinsecamente vinculado a uma dada nação. Esse modelo claro e

definido seria replicado em todo o território nacional por meio de um poderoso sistema de

ensino, que englobaria não apenas as instituições de educação pública e privada, mas também o

ambiente social de forma mais alargada.

Uma breve tentativa de descrever com clareza esse modelo é suficiente para verificar

sua impossibilidade. Embora seja possível traçar imagens estereotipadas do que seria essa

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A construção discursiva das identidades nacionais

27

identidade nacional, tais esboços não passam de caricaturas, são incapazes de dar conta de toda

a diversidade que caracteriza os diferentes modos de ser em sociedade. Claro que, com essa

afirmação, não se pretende negar ou diminuir a relevância do sistema educativo na construção

de representações individuais ou coletivas. Reconhecer, no entanto, o papel decisivo do sistema

educativo no processo pelo qual a nação é imaginada, como foi feito, aliás, no primeiro

capítulo, não significa atribuir-lhe a autoria de uma nação real.

A impossibilidade de se descrever em minúcias um dado caráter nacional, aplicável ao

conjunto de indivíduos, não esvazia, no entanto, a força desses estereótipos. Embora, à partida,

não seja possível descrever o que seria tal caráter, a referência ao mesmo e a sua presença,

direta e indireta, em discursos, símbolos, imagens – em sentido amplo, no imaginário nacional

– é recorrente.

Passando ao terceiro paradigma, o da identidade nacional como construção, verifica-se

que ele parte do pressuposto de que a identidade não é dada nem aprendida, mas sim construída

e desconstruída repetida e incessantemente no contato com o outro. Não significa dizer que

haveria um conjunto de identidades prévias, pré-formatadas, que seriam chamadas a se

manifestar numa dada situação. Pelo contrário, as identidades seriam construídas no âmbito de

um processo relacional e durariam o tempo exato de duração desse processo.

Nesse contexto, as identidades são recursos dos quais o indivíduo se vale para defender

ou conquistar uma posição (vd. Tann, 2010). O discurso, como forma de mediação entre os

indivíduos e entre estes e o mundo ao redor, é um dos recursos utilizados para construir essas

identidades e será essa a abordagem utilizada no âmbito deste trabalho.

A noção de discurso aqui assumida é a elaborada por Foucault, que situa o discurso

como forma de organização de significados. Gouveia (2001: 337), referindo-se a esse conceito,

afirma: “o discurso se refere aos modos, quase sempre linguísticos, mas não exclusivamente

linguísticos, de organizar o significado, aos sistemas de poder/conhecimento (pouvoir/savoir)

em que assumimos posições de sujeito”.

A ideia de construção discursiva das identidades permite acomodar a multiplicidade de

narrativas, como propõe Bhabha (1990), e sua incompletude, seu estado de permanente

transformação. Ao mesmo tempo, atribui ao indivíduo o papel de sujeito ao longo desse

processo, pois é ele quem constrói esses diversos discursos a partir dos elementos dos quais

dispõe.

Cada indivíduo participa simultaneamente de diversos grupos sociais, no âmbito dos

quais ora constrói sua identidade entre-pares, ora seleciona e retira elementos para construir

outras versões de identidade. Ele dispõe de uma grande variedade de fontes das quais se vale no

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A Palavra como Alicerce da Nação

28

processo de criação de suas múltiplas identidades, de forma mais ou menos consciente, de

acordo com o contexto e com a situação (Cillia, 1999: 17).

Adotar a visão construtivista e assumir o indivíduo como sujeito não significa, no

entanto, afirmar que ele age com liberdade total, ao seu bel-prazer. Há uma série de elementos

que conformam, constrangem e alimentam esse processo de construção, como a história de

vida, os hábitos e costumes adquiridos desde a infância, o processo de socialização, os

temperamentos. Os sistemas de comunicação, em geral, desempenham papel importante nesse

processo, dada sua capacidade de selecionar e disseminar informação, assim como os sistemas

de educação, com seus valores e princípios, e os sistemas de crença religiosa, entre outros.

De forma invisível e insistente, o caráter nacional imprime sua marca no cotidiano, via

meios de comunicação, via proliferação dos símbolos nacionais, via marketing ou mesmo nas

conversas do dia a dia. O contato com o outro funciona como uma espécie de gatilho a disparar

o mecanismo de identificação e diferença, onde um certo estereótipo nacional é chamado a agir

sempre que necessário.

A imagem nacional é desenhada a partir dos discursos cruzados de diversas fontes,

sejam elas oficiais ou não. As dificuldades surgem quando alguns desses discursos são

assimilados como essência e tomados como uma espécie de fato consumado e não mais como

discurso-opção. À medida que algumas dessas narrativas se cristalizam, intensificam-se os

choques e embates entre elas e tantas outras versões contraditórias.

É importante frisar que a perspectiva da construção discursiva não se confunde com a

ideia do discurso como modo de representação de uma ou várias identidades. Longe de se

caracterizar como forma de materialização de uma dada identidade pré-existente, o discurso

determina o período de vigência dessa identidade, que nasce e morre com ele. Ela não existe

antes ou fora do discurso; pelo contrário, começa e acaba com ele, sendo construída e

reconstruída vezes sem conta, sem nunca ser exatamente a mesma.

Pode-se pensar a natureza da construção discursiva das identidades, entre elas as

nacionais, como sendo relacional e processual (vd. Tann, 2010). É relacional à medida que se

constrói em relação de comparação com o outro, seja em busca de semelhanças ou de

diferenças – o próprio conceito de identidade não faz sentido senão num contexto plural. É

processual à medida que se constrói ao longo da dilação do tempo, a partir de peças que se

interligam, montando uma engrenagem, e que só em conjunto podem produzir como resultado a

ideia de identidade.

Como decorrência do caráter processual, é possível ainda pensar a identidade como

efêmera, múltipla e mutável, estabelecendo-se um paralelo com o universo jurídico. É efêmera

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A construção discursiva das identidades nacionais

29

porque termina com a conclusão daquela interação processual; é múltipla porque concorrem

para o desenvolvimento do processo uma pluralidade de variáveis; e é mutável porque passível

de transformação a partir do controle dessas mesmas variáveis.

A questão que surge, no entanto, é que o paradigma da construção discursiva das

identidades não parece refletir o discurso corrente, que desconsidera a pluralidade e a

efemeridade das identidades a favor da adoção dos conhecidos e propagados estereótipos

nacionais, que imprimem marca significativa nas sociedades de hoje. O indivíduo surge, mais

do que condicionado, subordinado a essa identidade estereotipada, ora por vontade própria,

numa espécie de autorreconhecimento, ora por não conseguir dela escapar. Tanto quanto o

discurso político ou midiático, o discurso do dia a dia é extremamente marcado pelo caráter

nacional, seja no âmbito das relações de consumo, de apreciações de contornos culturais ou

mesmo de um programa explícito de marketing nacional.

Essa aparente contradição pode, talvez, ser melhor compreendida a partir do

reconhecimento do conteúdo ideológico das identidades, assumindo, neste caso, que a

ideologia se traduz por “sistemas de pensamento, de valores e crenças (...) que denotam um

ponto de vista particular sobre o real, uma construção social da realidade, independentemente

de aspirarem ou não à preservação ou à mudança da ordem social” (Gouveia, 2001: 338).

A comunidade imaginada como nação tem sua própria linguagem de pertença nacional

(Bhabha, 1999: 293) e é construída e disseminada pelo discurso, em especial pelas narrativas de

afirmação e valorização de uma cultura nacional (Cillia, 1999: 22). Moldada a partir de uma

multiplicidade de fontes, entre elas o Estado, as instituições políticas e econômicas, as redes de

ensino, a mídia, as associações de interesses diversos ou mesmo o indivívuo, a identidade

nacional se realiza no universo variado e difuso das práticas sociais, das quais resultam as

condições materiais e sociais às quais o indivíduo está sujeito. Nesse processo, a prática

discursiva, como uma forma especial de prática social, desempenha papel essencial na

percepção e disseminação das identidades nacionais (ibidem: 29-30).

O discurso de afirmação nacional da Eslovênia

No processo de construção discursiva das identidades nacionais uma série de elementos

podem ser utilizados, alguns de forma recorrente, sendo a existência e partilha de uma língua

nacional um exemplo deles. Veja-se o caso da Eslovênia, que obteve sua independência da

então Iugoslávia em 1991 e, logo no ano seguinte, em 22 de maio de 1992, teve sua adesão à

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A Palavra como Alicerce da Nação

30

União Europeia aceita, num processo que foi concretizado em 2004. Com um território de

pouco mais de 20 mil km2 e cerca de 2 milhões de habitantes, a Eslovênia possui mais de 40

dialetos (Kmecl, 2005: 3), mas utiliza como um dos argumentos para afirmar e, em certa

medida, justificar sua existência como nação a existência e valorização de uma língua nacional.

De acordo com o discurso oficial esloveno, as bases dessa língua teriam sido lançados no século

X, com os “Brižinski spomeniki” (ou “Manuscritos Freising”), que teriam sido os primeiros

textos escritos em esloveno (ibidem: 19), sendo a emancipação à língua de cultura conquistada

no século XIX, especialmente a partir do trabalho do poeta France Prešeren (1800-1849), ícone

da nação eslovena, alçado à categoria de herói nacional.

Em pouco mais de 20 anos de existência oficial como Estado-nação, a Eslovênia

empenha-se em afirmar sua viabilidade num mundo globalizado e de forte competição entre

nações, num cenário em que a exclusividade de sua cultura nacional desempenha papel de

destaque. O projeto nacional esloveno, independentemente da construção da sua imagem

intramuros, implica a divulgação desse caráter para o mundo, especialmente junto aos países

que integram a União Européia, bloco do qual faz parte. Nesse contexto, a língua eslovena

surge simultaneamente como símbolo de unidade nacional e obstáculo à integração

internacional, num aparente estado de tensão. Ao mesmo tempo em que a Eslovênia concentra

esforços na valorização e proteção da sua língua nacional, precisa, em alguma medida, abrir

mão dela em favor de uma língua global de comunicação e acesso internacional.

Entre as estratégias de unificação possíveis em favor da construção de uma identidade

coletiva, duas parecem ganhar destaque: a padronização, “baseada num referencial padrão

partilhado”, e a simbolização, baseada na “construção de símbolos de identificação coletiva”

(Ramalho e Resende, 2011: 29). A existência de uma língua nacional responde a ambas as

estratégias simultaneamente, quer na condição de código ou padrão de comunicação

compartilhado, quer na condição de símbolo de identidade nacional.

Se, a partir da perspectiva construtivista, as identidades são construídas no diálogo com

o outro, de acordo com Kuper (1999: 235), é preciso ter em mente que elas são vivenciadas de

outro modo, numa espécie de autodescoberta que implica a identificação com os outros e,

especialmente, a participação em identidades de natureza coletiva, como, por exemplo, a

identidade nacional: “The inner self finds its home in the world by participating in the identity

of a collecvitivy (for example, a nation, ethnic minority, social class, political or religious

movement)”.

No caso da Eslovênia, a afirmação e a valorização da sua língua surgem como fator de

identificação e critério para participação em uma cultura nacional, independentemente das

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A construção discursiva das identidades nacionais

31

práticas linguísticas vivenciadas dentro das fronteiras do país. Como afirma Kmecl (2005: 4),

não sem antes destacar a exiguidade do território esloveno, que pode ser atravessado de Leste a

Oeste em cerca de três horas, a compreensão recíproca nem sempre é uma realidade: “it is quite

possible that a Slovene from the east will not be able to understand a Slovene from the west,

while a Slovene living in the central part will comprehend neither, and vice versa”.

Uma vez estabelecida a opção por uma visão construtivista das identidades nacionais,

baseada no discurso, e introduzido o caso da Eslovênia, passa-se a uma breve reflexão sobre a

metodologia a ser adotada, neste caso, a análise crítica do discurso e, em especial, as

teorizações e ferramentas oferecidas pela Linguística Sistêmico-Funcional (LSF).

A análise crítica do discurso

A análise crítica do discurso tem como fundamento o pressuposto de que a linguagem

está intrinsecamente ligada à estrutura social, configurando-se simultaneamente em elemento

estruturante e consequência dessa estruturação (Gouveia, 2009). A relação entre texto e

contexto, ou entre discurso e prática social, é de tal natureza que, a partir do conhecimento de

um, é possível apreender o outro, ou seja, representam um viés diferente de um mesmo objeto.

Dentro do escopo da análise crítica do discurso podem ser encontradas várias teorias,

abordagens e modelos que se distinguem entre si (Resende, 2009: 11). Não há uma única versão

da teoria geral, mas sim várias, o que garante sua consistência e lhe atribui maior elasticidade e

riqueza com a multiplicidade das perspectivas.

A abordagem adotada neste trabalho segue a proposta de Fairclough, que atribui ao

texto a capacidade de provocar “efeitos causais sobre as pessoas (crenças, atitudes), as ações, as

relações sociais e o mundo material”, efeitos esses que seriam “mediados pela construção de

significado” (Fairclough apud Resende, 2009: 23). Nessa versão da análise crítica do discurso,

a vida social é compreendida como um “sistema aberto”, que se realiza num mundo social

“constituído de redes de práticas articuladas” (Resende, 2009: 30).

A análise crítica do discurso oferece os meios necessários para se perceber de que modo

a linguagem é utilizada para a construção e perpetuação de discursos, valores e visões de

mundo que, embora representem os interesses de alguns e sejam resultado de escolhas

determinadas, são assimilados como sendo universais e incontornáveis, transformando-se,

assim, num eficiente mecanismo de produção e reprodução das ideologias (Resende, 2009:

47-78). Essa estratégia de universalização caracteriza a disputa pelo poder, que consiste na

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A Palavra como Alicerce da Nação

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“luta pela instauração, sustentação e universalização de discursos particulares” (Ramalho e

Resende, 2011: 25).

Ao lado da estratégia de universalização e num mesmo sentido, opera a naturalização,

que implica em transformar uma determinada construção social em algo considerado normal e

assumido como certo ou garantido (Holliday, 1999: 251), ou seja, como senso-comum. De

acordo com Gouveia (2001: 341-2), é tarefa da análise crítica “relacionar o micro-evento

(discursivo) com a macro-estrutura (social) e desnaturalizar o que foi naturalizado, ou seja, o

que foi dissociado dos interesses da classe ou grupo social particular que o gerou”.

Uma vez reconhecida a forte carga ideológica das práticas discursivas, as quais “pelo

modo como representam a realidade e posicionam os sujeitos podem ajudar a produzir e a

reproduzir relações de poder desiguais” (Gouveia, 2001: 340), importa ressaltar que, no âmbito

deste trabalho, entende-se a ideologia “não como uma imagem distorcida do real, uma ilusão,

mas como parte do real social, um elemento criativo e constitutivo das nossas vidas enquanto

seres sociais” (ibidem: 338-9).

Dentro do arcabouço de metodologias e abordagens oferecido pela análise crítica do

discurso, a perspectiva adotada neste trabalho é a da linguística sistêmico-funcional. De acordo

com essa teoria, a linguagem desempenha uma pluralidade de outros papéis, além da função de

comunicação, dos quais os mais importantes seriam a função ideacional, a função interpessoal e

a função textual.

Na vertente ideacional, e de acordo com Gouveia (2009: 15), a linguagem serve “para

darmos conta da nossa experiência do mundo, seja este o real, exterior ao sujeito, seja este o da

nossa própria consciência, interno a nós próprios”. Na vertente interpessoal, a linguagem é

utilizada “para estabelecermos e mantermos relações sociais uns com os outros, para

desempenharmos papéis sociais, incluindo os comunicativos, como ouvinte e falante”. Na

vertente textual, a linguagem “providencia-nos a possibilidade de estabelecermos relações

entre partes de uma mesma instância de uso da fala, entre essas partes e a situação particular de

uso da linguagem”, criando, assim, uma série de outras possibilidades de construção de sentido

e relevância.

A linguística sistêmico-funcional opera simultaneamente como uma “teoria geral do

funcionamento da linguagem humana” e um “modelo de análise textual” (Gouveia, 2009: 14),

que será aquele adotado no âmbito deste trabalho. A língua é entendida como “uma realidade

fundamentalmente social, concretizada na materialidade discursiva dos textos e da interação

verbal” (ibidem: 17).

A língua como realidade social, condicionada e condicionante dessa realidade,

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A construção discursiva das identidades nacionais

33

representa uma possibilidade de acesso a esta. Como afirma Gouveia (2009: 25-6), “a relação

entre um texto e o seu contexto, é de tal forma motivada que, a partir de um contexto, será

possível prever os significados que serão ativados e as características linguísticas potenciais

mais previsíveis para as codificar em texto” e vice-versa.

É ao nível do discurso que as questões culturais, às quais a percepção de uma certa

identidade nacional está intrisecamente relacionada, são melhor compreendidas (Holliday,

1999: 252), embora a equiparação da nação com a ideia de uma cultura em grande escala e

homogênea esteja no cerne do desenvolvimento do próprio conceito de nação no cenário

europeu: “Equating nation with homogeneous ideas of large culture also supported the

conceptual development of European nations themselves” (ibidem: 243).

Nesse processo de construção discursiva, que se faz e refaz incessantemente, não só a

ideia de cultura é elaborada, mas também o passado é trazido ao presente, em especial na

reconstrução da história nacional. O embate entre várias narrativas possíveis, das quais umas

emergem e outras são apagadas, revela a relação de poder que se estabelece entre os diversos

grupos: “Power comes visibly into play as soon the various narratives of the past are confronted

with each other and elites select one of the competing narratives and naturalise it as the „past‟

(what „really‟ happened)” (Martin e Wodak, 2003: 8). As estratégias de universalização e

naturalização são, mais uma vez, postas em prática. O mesmo se dá no processo de construção

das identidades nacionais: “Pasts are rearranged, transformed, recontextualized, substituted,

mystified or totally changed” (ibidem, 2003: 11).

Síntese

É possível refletir sobre a questão da identidade nacional a partir de uma pluralidade de

abordagens de acordo com o viés adotado: seja o da antrolopogia, da sociologia, da psicologia,

da história entre outros. Neste capítulo, foi explicitada a opção pela abordagem dos estudos

culturais (vd. Hall, 1997), a partir da adoção de uma visão construtivista, que entende as

identidades como uma espécie de tomada de posição construída no âmbito da prática discursiva

(vd. Tann, 2010).

No esforço de compreensão do processo de construção das identidades nacionais, e do

papel da língua dentro dele, optou-se pela análise do caso da Eslovênia, que será tomada como

referência ao longo deste trabalho.

A metodologia definida foi a da análise crítica do discurso, cuja fundamentação foi

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A Palavra como Alicerce da Nação

34

discutida em contornos bastante gerais neste capítulo. Dentre as ferramentas disponíveis no

âmbito da análise crítica do discurso, optou-se pelo portfólio desenvolvido pela linguística

sistêmico-funcional.

A seguir, serão esclarecidos os critérios de análise efetivamente adotados e será

realizada a análise da introdução a uma coletânea de contos eslovenos de autores

contemporâneos, traduzidos para o inglês, publicados com o objetivo de divulgar a literatura

eslovena no cenário internacional.

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Análise do texto: aspectos de textualização

(Capítulo 3)

Introdução

Estratégias de atração e convencimento

Introdução à Eslovênia via coordenadas geográficas

Descrição e organização geral do texto

Síntese

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A Palavra como Alicerce da Nação

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Análise do texto: aspectos de textualização

37

Introdução

Neste capítulo, será apresentado e discutido o texto selecionado para análise: a

introdução do livro Angels Beneath the Surface – A Selection of Contemporary Slovene

Fiction (Priestly, 2008). Nesta primeira abordagem, serão privilegiados os aspectos de

textualização, destacando-se a função desempenhada pelo texto e sua organização geral.

Importa analisar a introdução em seu conjunto, antes de focar pontos específicos, para extrair

do texto o maior número de significados possíveis.

O primeiro ponto abordado diz respeito às estratégias adotadas pelos autores da

introdução para cativar o leitor e atribuir credibilidade ao texto: por um lado, o humor, como

recurso para promover a aproximação e criar empatia com o leitor; por outro, o

distanciamento, como recurso para construir a ilusão de imparcialidade e conquistar, assim,

maior credibilidade.

A seguir, o foco de atenção recairá sobre o critério adotado logo no início do texto

para a apresentação da Eslovênia: o das referências geográficas. É a posição da Eslovênia no

mapa do mundo, ou seja, a localização e delimitação de suas fronteiras, que surge como a

primeira opção dos autores para introduzir o país. A contraposição entre Leste e Oeste,

bastante frequente no texto, também será considerada neste estudo.

Por fim, a introdução em análise será apresentada em sua integralidade por meio da

descrição dos seis diferentes blocos que a constituem. Os recortes cronológicos e históricos

serão destacados, de modo a proporcionar ao leitor uma ideia da lógica que rege a

organização do texto e a sua fragmentação para construção de um todo coeso, orgânico e

consistente.

A partir da análise da introdução de acordo com os três critérios acima indicados,

pretende-se identificar se, e em que medida, o discurso esloveno de construção da sua

identidade nacional a partir da afirmação e valorização de uma língua e literatura nacionais

está presente. Mais do que isso, busca-se compreender de que maneira esse discurso se realiza

ao longo do texto.

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A Palavra como Alicerce da Nação

38

Estratégias de atração e convencimento

Antes de mais nada, é preciso ter em conta que o texto em análise se apresenta como

introdução a uma antologia de contos escritos por autores eslovenos contemporâneos e

traduzidos para a língua inglesa. Todas as histórias foram criadas no período que vai de 1990

um ano antes da independência da Eslovênia e 2005 um ano após a entrada do país na

União Européia.

A introdução, elaborada em inglês, é assinada por Mitja Čander, editor e crítico

literário, e Aleš Šteger, poeta e também crítico literário, ambos eslovenos. O objetivo

explícito e mais óbvio é o de apresentar aquela seleção de contos e, mais especificamente, a

literatura eslovena contemporânea. O menos óbvio, no entanto, mas logo percebido nas

primeiras linhas do texto, parece ser a apresentação de um país:

Oh, Slovenia, Yeah, right. Hungarians to the north, Italians to the south. No, that can’t be right. Try again: Croatians to the north, Romanians to the South. And Ukraine to the west. Or is it Slovakia? Or Slavonia, rather? Bosnia, perhaps? Yes, that’s it. Bosnia to the west. Germany in the heart. And Russia, far, far away. [Linhas 1 a 5]

O ponto de partida é a assunção de uma grande dose de desconhecimento da Eslovênia

por parte dos leitores. A definição das fronteiras é o critério escolhido para uma primeira

introdução a esse país de fronteiras fugidias e confusas, como se a Eslovênia fosse uma

espécie de território perdido ou imaginado.

A opção pelo registro de humor na abertura do texto surge como um convite à leitura e

parece assumir a dupla função de fator de atração do leitor, pela via da empatia, e de

facilitador de entrada para esse pedaço de mundo semidesconhecido. Também reflete um

certo grau de informalidade e jovialidade, que podem ser associados à juventude, ou seja, à

nova geração de autores apresentados. Esse mesmo tom é retomado no encerramento do texto:

Still, if you, dear distant reader, alone or in pairs, manage to find us there, in the nowhere, to the west of Bosnia, to the left of Italy, we hope you will enjoy the reading. [Linhas 274 a 277]

O recurso ao humor não se restringe, no entanto, à apresentação da Eslovênia, ele é

estendido à caracterização do povo esloveno, como se vê nas passagens abaixo:

For historians of a biological bent, Slovenes could easily serve as somewhat bizarre proof that even the small not only survive physically; sometimes they are rewarded for their persistence, fanaticism, and incestuous nature: the reward being a state of their own (itálicos acrescentados). [Linhas 8 a 11]

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Análise do texto: aspectos de textualização

39

During the long centuries without independence, despite the downdraft of history and a permanent cultural inferiority, The Slovene language became recognized as the common sacred emblem of its stubborn and often narrow-hearted speakers (itálicos acrescentados). [Linhas 21 a 24]

As características atribuídas aos eslovenos dificilmente seriam tomadas como

positivas: fanatismo, natureza incestuosa, teimosia e mesquinhez. Mas são elas que, aliadas à

persistência, conduzem à recompensa final: um Estado próprio. A opção pelo humor pode

justificar, em parte, a atribuição de qualidades negativas na caracterização do povo esloveno,

mas é possível fazer outras leituras. Por fanatismo, pode-se ler fé religiosa; por natureza

incestuosa, pode-se ler identidade étnica; por teimosia, pode-se ler persistência; por

mesquinhez, pode-se entender o desejo de um Estado próprio, ou seja, a construção de uma

identidade e de uma consciência nacionais.

O humor surge carregado de uma boa dose de ironia e autocrítica, evidenciando um

olhar reflexivo, que revela a conexão dos autores com o tema tratado a Eslovênia ,

conexão esta que logo será substituída por uma linguagem de distanciamento. Um bom

exemplo desse tom irônico pode ser encontrado na passagem abaixo, que destaca um certo

isolamento físico do país, seja pela existência de muralhas naturais, numa referência aos

Alpes, seja pela exiguidade da costa marítima, de pouco mais de 46 km:

High, uncrossable Alps throwing deep shadows, and the navy in the Slovene sea adding up to three boats, one of them being a rubber dinghy. [Linhas 5 a 7]

Outro recurso utilizado pelos autores na abertura e no encerramento da introdução é o

da interpelação do leitor. Ao longo de todo o desenvolvimento do texto eles não aparecem;

afastam-se da narrativa e assim atribuem à história que contam uma aparência de verdade,

como se narrassem fatos incontroversos, e não uma versão de tais acontecimentos. Os dados

oferecidos no texto surgem como fatos concretos e incontestáveis. A imparcialidade dos

autores que, embora sendo eslovenos, falam da Eslovênia e dos eslovenos como se não

fizessem parte desse grupo dá o tom de veracidade e credibilidade. Ao mesmo tempo, a não

identificação dos autores como nacionais ameniza o eventual caráter ufanista do texto, de

celebração da identidade eslovena, fortalecendo, assim, o discurso.

Tanto o humor como a interpelação e o distanciamento consistem em estratégias

diferentes de abordagem, embora complementares. Se o humor e a interpelação direta do

leitor destacam-se como abordagens de conquista e pretendem cativar pela proximidade e

empatia, numa espécie de apelo emocional, o afastamento dos autores procura convencer pelo

distanciamento: afastam-se do leitor, agora cativo, para dar credibilidade ao texto.

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A Palavra como Alicerce da Nação

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Introdução à Eslovênia via coordenadas geográficas

As referências à posição geográfica da Eslovênia, quer pela indicação de países ou

regiões vizinhas ou próximas, quer pela contraposição entre Leste e Oeste, nesses casos

muitas vezes com acepção político-econômica, é recorrente na introdução. Na abertura do

texto, é uma constante. Toda essa passagem é construída em função dessas contraposições:

Hungria, Croácia, Ucrânia, Eslováquia, Eslavônia, Bósnia, Alemanha, Rússia. A tal fato

soma-se a ausência de referência direta à Iugoslávia ou aos Bálcãs, que poderiam, a princípio,

ser as referências mais imediatas do leitor.

Se o ponto de partida da introdução é a assunção de desconhecimento do leitor em

relação à Eslovênia, apesar do tom de humor, a referência às fronteiras nacionais podem

remeter a memórias de conflito e tensão entre países, especialmente na região dos Bálcãs, em

função do histórico de violência ainda recente.

A Alemanha aparece no coração da Eslovênia e a Rússia, muito distante (vd. citação

supra, na página 38), num aparente movimento de aproximação com a Europa, aliado à

possível lembrança de um passado comum, e de distanciamento da Rússia e, indiretamente,

do seu passado comunista ideia que parece reforçada pela não menção à Iugoslávia,

conforme referido acima.

Logo a seguir, ainda no início do texto, há mais três ocorrências de passagens que

utilizam as referências geográficas para caracterizar e individualizar a Eslovênia. A primeira é

genérica, associando o surgimento do Estado esloveno a mudanças no mapa da Europa em

função de uma onda pós-comunista:

The Slovene state arose from the wave of post-Communist changes on the map o Europe. [Linhas 11-12]

A segunda, com conotação cultural, situa a Eslovênia no ponto de intersecção entre

diferentes culturas (germânica, românica e húngara), enquanto a terceira contrapõe o país às

demais nações eslavas, posicionando e, simultaneamente, diferenciando a Eslovênia como a

mais ocidental dessas nações:

Historically Slovenes had stopped on the crowded crossroads between the Germanic, Romance, and Hungarian worlds to become the westernmost branch of Slavic nations. [Linhas 14-17]

Aqui, pela primeira vez, a Iugoslávia e os Bálcãs são referidos, mas apenas no

contexto da independência da Eslovênia e após esta ter sido mencionada , valorizando,

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Análise do texto: aspectos de textualização

41

assim, o presente, marcado pela autonomia e liberdade, pela afirmação da nação e não por

uma referência ao seu passado de ausência de autonomia.

Na menção à posição da Eslovênia como ponto de encontro entre culturas distintas, o

referencial geográfico é indireto, mas se faz sentir. Tem-se uma ideia mais clara da

localização da Eslovênia no mapa, assim como da riqueza cultural que resulta da

convergência das influências de culturas distintas, representadas por países como a Alemanha,

a Itália e a Hungria. Ao mesmo tempo, a Eslovênia só tem a ganhar com a associação da sua

história à de nações já reconhecidas.

Outra mensagem que parece estar subentendida é o da vocação do país para a

mediação cultural, característica bastante valorizada hoje no cenário internacional e

diretamente relacionada às questões de estabilidade política e de manutenção da paz. Em

documento intitulado “Slovenia entering to EU – April 2004”, produzido pelo departamento

de relações públicas da Eslovênia à época da entrada do país na União Europeia, esse

potencial de mediação é destacado quer como uma contribuição da Eslovênia para a União

Europeia, quer como um compromisso assumido com o futuro (vd. The Government Public

Relations and Media Office of Slovenia).

Por fim, ao reconhecer-se como a nação eslava mais ocidental, a Eslovênia não só

reforça seu movimento de aproximação com o ocidente cujo fato político mais marcante

talvez seja a adesão à União Européia em 2004 como acentua o seu processo de

diferenciação das demais nações eslavas. Reconhece a origem comum e, exatamente por

conta disso, busca a diferenciação como forma de fortalecer sua própria identidade.

Talvez essa necessidade de afastamento e diferenciação em relação às demais nações

eslavas seja o mais contundente desses movimentos. Ao se aproximar de um outro distante,

aqui representado pela União Européia, a identidade nacional eslovena é realçada pela

diferença. Já no contato com o próximo, nesse caso com as nações eslavas, essa diferença

corre o risco de se esvanecer. Nesse contexto, o suposto afastamento da Eslovênia em relação

ao mundo eslavo talvez faça ainda mais sentido, considerando-se a necessidade de

diferenciação como parte do processo de construção de sua identidade nacional.

Ao longo do texto, verificam-se também quatro registros envolvendo, de forma direta

ou não, a contraposição entre a Europa ocidental e a Europa oriental. No primeiro deles, a

Iugoslávia é posicionada entre uma e outra:

Having overcome the 1948 dispute with Stalin, Yugoslavia engaged in finding a middle course between the East and the West... [Linhas 134-135]

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A Palavra como Alicerce da Nação

42

Em outro momento, a menção à Europa ocidental surge num contexto de tentativa de

aproximação e relativização das barreiras:

Despite certain restrictions, from the middle of the 1960s on, Slovene authors had virtually no lack of information concerning contemporary literary trends in Western Europe. [Linhas 137-139].

A mensagem geral que se depreende das citações acima é, mais uma vez, a de

diferenciação e afastamento entre o regime comunista adotado pelo mundo soviético e aquele

vivido na Iugoslávia. De modo geral, parece sugerir que o regime iugoslavo tenha sido mais

brando, menos opressor.

Em duas outras passagens, os autores indiretamente situam a Iugoslávia como parte

das nações do chamado bloco do Leste ao referirem-se a ela como “other Eastern bloc

nations/countries” (linhas 135 e 159).

Essa questão representa um ponto de conflito que reside na inclusão ou não da então

Iugoslávia no grupo de países referidos como o bloco do Leste. Pelo registro do texto, os

autores do prefácio parecem assumir essa participação, pois, ao se referirem aos outros países

do bloco de Leste, subentende-se que a Iugoslávia fazia parte desse grupo. Em sentido

contrário, alguns autores consideram que apenas os países alinhados com a URSS fariam

parte desse bloco, o que excluiria a Iugoslávia.

Ao final da introdução, como já referido, é retomado o discurso de abertura, com uma

nova tentativa de identificação da Eslovênia com suas sempre fugidias coordenadas

geográficas, perdida entre a Bósnia e a Itália: “in the nowhere, to the west of Bosnia, to the

left of Italy” (linhas 275 e 276).

Descrição e organização geral do texto

O texto está dividido em seis blocos de tamanhos desiguais. Com exceção dos dois

primeiros, que servem de apresentação do país sem que a literatura seja mencionada uma

única vez, os demais traçam um breve painel da história da Eslovênia e da sua literatura, em

ordem cronológica, com destaque para grandes acontecimentos políticos.

O primeiro bloco, ou seja, a abertura do texto, representa uma tentativa de

aproximação dos autores em direção ao leitor, caracterizada pelo uso de interjeições e de

interpelações, simulando a fala direta, como já mencionado. Do segundo bloco em diante, o

tom assumido pelos autores é de distanciamento, quer do leitor, a quem não mais se dirigem

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Análise do texto: aspectos de textualização

43

diretamente, quer da condição dos mesmos em relação às suas nacionalidades. Embora ambos

sejam eslovenos, ao se referirem a seu país e seus conterrâneos, utilizam sempre os pronomes

em terceira pessoa. Nessa passagem do texto, os autores procuram informar o leitor sobre de

„quem‟ se fala: da Eslovênia e dos eslovenos.

Num rápido recorte histórico, são destacados a Guerra dos 10 dias, que representaria o

início do que seria a Guerra dos Bálcãs e da consequente dissolução da Iugoslávia, e o

passado remoto, sob o domínio dos Habsburgos, no século XV. De lá, dá-se um novo salto em

direção ao século XX para se destacar o período monárquico, vivenciado após a 1ª Guerra

Mundial, e o “experimento socialista de Tito” (linhas 19 e 20), levado a cabo após a 2ª Guerra

Mundial. Seriam esses os principais episódios que marcariam a memória coletiva eslovena.

Faz-se, portanto, referência a uma consciência nacional eslovena, que encontra seus

fundamentos num passado longínquo e comum, e, ao mesmo tempo, diferencia-se a vivência

da Eslovênia dentro do bloco dos países socialistas, afastando-a, em certa medida, dos demais

países alinhados à antiga URSS.

No terceiro bloco, a descrição parte de meados do século XVIII, no período

Romântico, e termina na primeira metade do século XX, seguindo o critério cronológico.

Aqui efetivamente começa o processo de resgate das raízes nacionais, ou seja, tem início o

despertar do sentimento nacional: “the nation‟s self-awakening process” (linha 62).

A Eslovênia surge como uma espécie de realidade adiada, uma nação com raízes

profundas, que, por contingências históricas, só virá a ser reconhecida com a independência,

em 1991. A língua seria o símbolo desse povo, um forte fator de união e de identidade, e a

literatura, um dos mecanismos de resgate e de mobilização política e social.

Em destaque a figura de France Prešeren (18001849), o poeta romântico

transformado em herói nacional por elevar a língua eslovena antes rústica e sem valor

estético ao patamar mais alto na escala cultural. A língua e também a literatura eslovenas

são apresentadas como propulsoras desse movimento a favor de uma identidade nacional,

como forma de superação de uma suposta inferioridade cultural vivenciada pelo país até

então.

O padrão de comparação cultural é Goethe, numa referência à cultura da Europa

ocidental, grupo com o qual a Eslovênia de hoje, na condição de país membro da União

Européia, cada vez mais se identifica e interage. Essa referência é ainda mais significativa se

levarmos em conta que, durante o período romântico, a língua eslovena esforçou-se por se

afastar da influência alemã, que um dia representou o poder dominante.

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A Palavra como Alicerce da Nação

44

O processo de despertar da consciência nacional nasce com a elevação da língua e da

literatura ao nível mais alto da escala cultural, comparável ao das nações reconhecidas e

respeitadas. É a poesia lírica e apaixonada seu mote, e não a prosa épica. É a emoção, e não a

ação, o ingrediente essencial à construção da identidade nacional nesse primeiro estágio. Na

ausência de um território reconhecido e de autonomia política, os eslovenos encontram na

língua comum o seu fator de identificação.

O corte temporal desse bloco de texto tem início com Prešeren e termina com outro

poeta, Srečko Kosovel, morto em 1926, passando pelos também escritores Josip Jurčič

(18441881), Ivan Cankar (18761918) e Zofka Kveder (18781926). A literatura eslovena e

seus autores são apresentados e louvados: Prešeren é o poeta maior, inventor da língua

eslovena; Jurčič é o “fundador” (linha 67) da prosa eslovena; Cankar é a figura sem a qual a

“literatura contemporânea eslovena não existiria” (linhas 81 e 82); Kveder é a “primeira

escritora eslovena de destaque” (linhas 85 e 86); e Kosovel é “um dos mais significativos

poetas eslovenos” (linha 91).

Com exceção de uma referência à ascensão do fascismo, associado a um “sentimento

de horror generalizado” (linha 93), nenhum outro evento político é mencionado, nem mesmo

a 1ª Guerra Mundial. Enfim, nada que possa desviar o leitor do caminho indicado: o despertar

da consciência nacional eslovena pelas mãos de uma língua e de uma literatura que se

afirmam, valorizam e evoluem.

Ainda assim, e apesar de todo o empenho, a Eslovênia está longe de acordar, como

indica o final deste bloco de texto que se encerra com os versos de um poema de Kosovel

intitulado “Ljubljana spi” (“Ljubljana dorme”):

Hey, green parrot, tell me, how things are in Europe. The green parrot replies: “man is not symmetrical.” [Linhas 104-107]

No quarto bloco, o período abordado tem início com a Segunda Guerra Mundial e

segue até a morte do General Tito, um dos principais responsáveis pela formação da

Iugoslávia, a qual liderou por quase 40 anos como Primeiro Ministro e, mais tarde, como

Presidente. O desenvolvimento da literatura é registrado pela sucessão de autores, que surgem

invariavelmente em situação de resistência ou mesmo de confronto ao poder político.

A 2ª Guerra Mundial é apresentada como um episódio traumático da história eslovena,

que ainda produz seus ecos, dividindo o país entre aqueles que vêem a participação do país

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Análise do texto: aspectos de textualização

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sob o manto de uma “glória mítica” (linha 121) e aqueles para as quais trata-se de um “pecado

a ser esquecido” (linhas 121 e 122).

O Nazismo e o fascismo são os grandes criminosos, responsáveis por uma “cruel

ocupação” (linha 111), contra os quais os eslovenos opõem uma “corajosa resistência” (linhas

110 e 111). Logo a seguir, os autores apontam a “guerra fratricida” (linha 112) em que os

eslovenos se viram envolvidos nesse período e que culminou numa série de episódios de

violência e no massacre de mais de 15 mil soldados no período do pós-guerra.

A caracterização do regime comunista em vigor na Eslovênia é mais uma vez marcada

pela afirmação das diferenças em relação ao praticado nas outras nações do chamado bloco do

Leste. O regime esloveno seria mais brando ao permitir maior liberdade de comunicação e o

não isolamento da Eslovênia, que, desde os anos 60, teria tido acesso às tendências literárias

do ocidente, embora com restrições (vd. citação supra, na pág. 42).

Apesar do discurso de relativização, são lembrados episódios como a prisão de

autores, as restrições à liberdade de expressão que se busca contornar pelo apelo às metáforas,

a imposição de 30 anos de silêncio sobre os massacres do pós-guerra.

É nesse contexto que o protagonismo da literatura é novamente realçado, agora via

Edvard Kočbek (19041981), o poeta que rompe o silêncio e, pela primeira vez, escreve sobre

os massacres. Kočbek, além de poeta, teve também uma relevante atuação política, ocupando

o cargo de ministro durante o primeiro governo iugoslavo, mas foi só graças ao apoio

internacional que conseguiu vencer as pressões feitas sobre ele e dar voz a esse tema. A

relação entre a literatura, aqui representada pelos autores eslovenos, e a repressão instituída

pelo regime comunista é descrita como de vigilância e resistência. Com o enfraquecimento do

regime, é a literatura que eleva sua voz e fala em nome dos eslovenos. Esta parte do texto se

encerra no final dos anos 80, às vésperas da declaração de independência da Eslovênia.

O quinto bloco do texto assinala o período de transição e de ruptura entre o passado

e o futuro iniciado com a morte de Tito e que se encerra com a declaração de independência

da Eslovênia em 1991. O desaparecimento de Tito é associado a um sentimento generalizado

de liberdade. A rejeição a Tito implica, em alguma medida, a rejeição ao regime comunista e

ao modelo iugoslavo. Nesse contexto, pode ser entendido como forma de afirmação e defesa

de uma identidade eslovena.

Surge aqui a primeira referência direta ao objeto do livro apresentado: o conto

esloveno (na linha 184, de um total de 277). A referência ao gosto literário nesta passagem é

dirigida ao grande épico nacional, gênero em que Tolstói é apontado como o grande mestre.

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A Palavra como Alicerce da Nação

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Além de invocar a proximidade histórica com a Rússia, é interessante notar a passagem da

poesia lírica para o romance épico. Passa-se da emoção, que marca o início do despertar de

uma consciência nacional, para a ação, que será necessária para a concretização desse

processo, no momento em que se aproxima a independência.

A postura do escritor em relação à vida nacional também começa a se alterar. Agora

ele observa e pondera; não é mais o móvel, o iniciador, o agitador. A referência literária

utilizada como contraponto é Hemingway, mencionado aqui para acentuar a mudança de

postura e marcar uma distância entre o escritor esloveno e o mundo que este observa de longe,

sem sair do seu lugar.

O sexto bloco do texto cobre o período que se inicia com a independência e segue até

os dias atuais. Nesse percurso, é destacado o “poderoso papel simbólico” (linha 198)

desempenhado pela literatura e a “glorificação” (linha 202) de que esta foi alvo nos discursos

políticos proferidos logo após a declaração de independência.

Assim chega-se à literatura contemporânea eslovena, especificamente aos contos que

fazem parte da antologia referida. Nem um único autor é identificado nesse bloco, tampouco

há referências significativas a episódios políticos. O que se destaca aqui é a mudança do papel

social da literatura, representada por seus autores. Com a independência, estes não mais

desempenham papel de oposição e resistência ao regime. A ideia de uma missão literária

parece perder o sentido.

Com o reconhecimento da Eslovênia como nação, a literatura está livre de suas

amarras. Começa agora a redescoberta do mundo, de um mundo real e alargado, e a tentativa

da jovem nação eslovena de se entender e reconhecer nele. Livre do seu compromisso

nacional, a literatura eslovena pode ser simplesmente literatura.

De acordo com os autores da introdução, a literatura eslovena contemporânea é

marcada pelo foco perpétuo no outro e por uma busca incessante da liberdade, que surge

como a última “herdeira da utopia” (linha 153). A ânsia pelo real e pelo autêntico,

frequentemente associadas a uma sociedade que se afirma pós-moderna, são a tônica. No

lugar da metáfora, surge a metonímia, enquanto a língua segue atuando como fator de

diferenciação em relação ao outro e de identidade nacional por meio da acentuação de suas

especificidades, como, por exemplo, a dualidade da língua eslovena.

Dos seis blocos de texto acima referidos, três deles serão retomados ao longo do

próximo capítulo: o terceiro, que representa o papel da língua e da literatura no despertar da

consciência nacional eslovena e que será identificado como “Despertar” (com um total de 921

palavras), o quarto, que representa o papel da língua e da literatura como fator de mobilização

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Análise do texto: aspectos de textualização

47

e transformação social e que será identificado como “Mobilização” (com um total de 806

palavras), e o sexto, que representa o papel da língua e da literatura na Eslovênia hoje e que

será representado como “Contemporânea” (com um total de 906 palavras).

Síntese

Neste capítulo, o texto-objeto de reflexão e análise foi apresentado a partir de uma

visão ampliada e de conjunto. Partiu-se da discussão sobre as estratégias escolhidas pelos

autores da introdução para atrair o interesse do leitor e conquistar credibilidade. O recurso ao

humor e à ironia foi destacado, assim como a estratégia de distanciamento dos autores, no que

diz respeito à condição de cidadão nacional, para estimular a percepção de independência e

imparcialidade, que consiste numa importante estratégia de convencimento.

A identificação da Eslovênia por via das referências geográficas, que também servem

como meio de caracterização e diferenciação do país em relação aos demais, foi descrita a

seguir. Fronteiras de linhas esbatidas confundem-se e evocam países sem uma ordem

aparente, mas numa desordem de origens históricas, marcada por conflitos como as duas

grandes guerras. A contraposição entre Leste e Oeste, em sua multiplicidade de sentidos,

também foi explorada.

Por fim, o texto foi descrito em pormenor, a partir da sua divisão em blocos, de modo

a proporcionar ao leitor uma visão orgânica do mesmo. Privilegiou-se a reconstrução de

episódios históricos, colocando em evidência a opção feita pelos autores da introdução e a

seleção de personalidades de destaque.

Com a discussão sobre as estratégias adotadas pelos autores para endereçamento do

texto, o posicionamento da Eslovênia nele e a descrição geral da introdução, pretendeu-se dar

ao leitor uma visão de conjunto antes de se refletir sobre temas mais específicos. No próximo

capítulo, a análise recairá em determinadas características do texto, recorrendo-se à

abordagem e a algumas das ferramentas oferecidas pela Lingüística Sistêmico-Funcional.

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Análise do texto: aspectos de representação

(Capítulo 4)

Introdução

Palavras frequentes: slovene, literature e literary

O papel dos atores sociais: língua, literatura e nação

Uma representação de mundo via a análise dos processos relacionais

Síntese

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A Palavra como Alicerce da Nação

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Análise do texto: aspectos de representação

51

Introdução

Para entender de que maneira os conceitos de língua e literatura são articulados em

função da construção da identidade nacional eslovena, neste capítulo serão observados

aspectos específicos do texto, que poderiam passar despercebidos na leitura, mas que

codificam informações relevantes sobre a visão de mundo apresentada e representada na

introdução.

O primeiro aspecto selecionado para análise consiste na identificação das três palavras

mais utilizadas no texto – slovene, literature e literary –, as quais, por si só, já revelam o tema

em destaque, ou seja, a literatura eslovena. Essas palavras serão avaliadas dentro dos

diferentes grupos nominais (vd. Hartnack, 2002: 118) de que fazem parte, ora na condição de

núcleo, ora na condição de modificador.

O segundo aspecto escolhido refere-se ao papel desempenhado pelas

palavras/entidades “língua” e “literatura” no interior da oração. Interessa observar a relação de

agenciação, ou seja, as situações em que os nomes língua e literatura, na condição de

participantes de um dado processo, assumem a função de agente ou, ao contrário, a de objeto

ou beneficiário do mesmo. A observação do modo como os principais atores sociais são

representados no texto serve de indicativo da relevância de cada um na construção do discurso

e, assim, dos seus respectivos papéis.

O terceiro e último aspecto eleito trata da incidência dos processos relacionais,

avaliados no âmbito do sistema da transitividade, como proposto por Halliday (apud Martin et

al, 1997), e aqui evidenciado pela frequência do verbo to be, nas variações is, are, was e

were.

Cumpridas as tarefas acima indicadas, completa-se o processo de análise efetiva do

texto, iniciado no capítulo anterior. Se, no capítulo três, privilegiou-se uma visão ampliada da

introdução, sem se perder de vista a ideia de conjunto, neste capítulo o foco incide sobre

aspectos de representação, respeitando-se sempre os respectivos contextos.

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A Palavra como Alicerce da Nação

52

Palavras frequentes: slovene, literature e literary

A partir da contagem das palavras utilizadas na introdução, foram identificadas as três

mais frequentes: slovene, literature e literary. Dessas três, duas desempenham

prioritariamente a função de modificadores: os adjetivos slovene e literary. Slovene é o termo

mais frequente, com trinta e um registros; a seguir, vem literature, com vinte e oito; e, por

fim, literary, com quinze.

Para entender melhor os possíveis significados da recorrência desses termos no texto,

retoma-se o enquadramento da Linguística Sistêmico-Funcional (LSF). Para a LSF, a unidade

adequada para análise das diferentes metafunções da linguagem – ideacional, interpessoal e

textual – seria a oração (Martin et al, 1997: 5). Ela representaria a unidade mínima de

significação, seguida pelos grupos nominais (Thompson, 1996: 179), nos quais, segundo

Martin (1997: 100), a metafunção ideacional também se manifestaria no que diz respeito ao

modo de organização desses grupos.

No caso de slovene, a análise realizou-se em três etapas. A primeira delas consistiu na

identificação dos grupos nominais que continham o termo em estudo e na sua dispersão ao

longo do texto, em função dos blocos definidos como “Despertar”, “Mobilização” e

“Contemporânea”. Excluindo-se um único caso, em que slovene aparece na função de

substantivo, representando o esloveno, ou melhor, a língua eslovena, em todos os demais,

slovene surge como adjetivo.

A segunda etapa consistiu na identificação dos respectivos núcleos dos grupos

nominais; neste caso, aquilo que é modificado pelo adjetivo slovene. Tais núcleos foram

classificados em três categorias distintas: Estado, Sociedade e Língua. Em Estado, foram

reunidos os termos que remetem à organização e infraestrutura pública do mesmo (sea, state e

branch of the people’s front). Em Sociedade, foram classificados os termos que referem

diretamente a pessoas e ao contexto social (identity, history, society e students). Em Língua,

foram contabilizados os termos relacionados ao mundo literário e seus representantes

(authors, language, literary space, literature, novel, poetry, poets, prose e writer).

A terceira e última etapa consistiu novamente na identificação do modo de dispersão

desses núcleos ao longo do texto, mas, dessa vez, considerando-se a categoria a que

pertencem. Buscou-se, dessa forma, avaliar quantos núcleos da categoria Estado foram

encontrados em “Despertar”, “Mobilização” e “Contemporânea”, e assim suscessivamente

para as categorias Sociedade e Língua.

Do total de trinta registros do termo slovene, quinze encontram-se em “Despertar”

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Análise do texto: aspectos de representação

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(50%), sete em “Mobilização” (23,3%) e apenas três em “Contemporânea” (10%) – os cinco

restantes (16,7%) dividem-se entre os demais blocos do texto. Desse mesmo total, mas

considerando-se a classificação dos núcleos modificados por slovene, temos que vinte e três

pertencem à categoria Língua (76,7%), quatro à categoria Sociedade (13,3%) e três à

categoria Estado (10%), como destacado nos Quadros 1 e 2.

Quadro 1 – Incidências de slovene no texto

Blocos do Texto Nº de Incidências

“Despertar” 15 (50,0%)

“Mobilização” 7 (23,3%)

“Contemporânea” 3 (10,0%)

Outros 5 (16,7%)

Total 30

Quadro 2 – Incidências de slovene

por categoria

Categoria Nº de Incidências

Língua 23 (76,7%)

Sociedade 4 (13,3%)

Estado 3 (10,0%)

Total 30

Existe, portanto, uma predominância de slovene em “Despertar” e uma predominância

de núcleos da categoria Língua, o que não destoa do propósito do texto sob análise, que se

propõe introduzir uma antologia de contos de autores eslovenos a leitores da língua inglesa.

Ainda assim, a significativa presença de slovene na função de adjetivo e sua associação com

conceitos diretamente relacionados à língua e literatura constituem um forte indício do que

parece ser um outro objetivo da introdução: não só divulgar a literatura eslovena, mas também

divulgar um país. Uma vez que o texto trata única e exclusivamente da língua e da literatura

eslovenas, é razoável supor que a repetição do modificador slovene, em várias dessas

passagens, não fosse realmente necessária.

Considerando a dispersão desses grupos nominais ao longo do texto, em função da

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A Palavra como Alicerce da Nação

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classificação dos seus respectivos núcleos, verifica-se que doze, dos vinte e três que totalizam

a categoria Língua, surgem em “Despertar” (52,1%). Outros cinco aparecem em

“Mobilização” (21,7%) e apenas três em “Contemporânea” (13,1%) – neste último caso,

representam a totalidade dos grupos nominais encontrados, conforme indicado no Quadro 3.

Quadro 3 – Incidências de slovene

na categoria Língua

Blocos do Texto Língua

“Despertar” 12 (52,1%)

“Mobilização” 5 (21,7%)

“Contemporânea” 3 (13,1%)

Outros 3 (13,1%)

Total 23

É em “Despertar” que se afirma o processo de construção nacional esloveno, o

despertar de uma consciência nacional. Nesse sentido, a forte presença do adjetivo slovene

modificando núcleos da categoria Língua ressalta o papel desempenhado pela literatura nesse

contexto.

Os núcleos da categoria Estado aparecem logo no início da introdução, nos dois

primeiros blocos de texto, e, a seguir, em “Mobilização”, verificando-se um único registro em

cada um dos casos. Os núcleos da categoria Sociedade dividem-se entre “Despertar”, com três

registros (75%), e “Mobilização”, com apenas um registro (25%), como destacado abaixo.

Quadro 4 – Incidências de slovene nas categorias

Estado e Sociedade

Blocos do Texto Estado Sociedade

“Despertar” - 3 (75,0%)

“Mobilização” 1 (33,4%) 1 (25,0%)

“Contemporânea” - -

Outros 2 (66,6%) -

Total 3 4

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Análise do texto: aspectos de representação

55

Assim como slovene, há outras referências a palavras diretamente relacionadas às

ideias de nação e nacionalidade. Ao longo do texto, é bastante frequente a utilização desses

termos em várias formas: Slovenia, slovenene(s), nation e national.

Slovenia (com cinco registros) e slovenes (com quatro registros), na função de

substantivo, surgem em nove passagens. Some-se a isso a referência a slovene, representanto

a língua eslovena, e temos um total de dez registros contra trinta do modificador slovene –

25% como substantivo e 75% como adjetivo, respectivamente, o que perfaz um total de

quarenta incidências de Slovenia, slovene e slovenes. O papel predominante da Eslovênia no

texto, portanto, independentemente do modo como ela aparece representada, é de

modificador.

As referências a nation e national contabilizam doze registros, divididos em partes

iguais. Dos seis registros de nation, sempre na qualidade de substantivo, em quatro (66,7%) a

palavra não aparece como núcleo de um grupo nominal, mas sim como modificador: nation’s

future, nation’s self-awakening e nation’s destiny (dois registros). Já national, como adjetivo,

modifica os seguintes núcleos: awareness, awakening process, sovereignty, messianism,

reality e epic.

Embora national e slovene, no contexto da introdução, possam ser tomados um pelo

outro, isto é, sejam intercambiáveis, é significativa a escolha dos autores em relação aos

núcleos que cada um deles modifica. Se, no caso de slovene, há uma certa variedade – com a

classificação dos núcleos nas categorias Estado, Língua, Sociedade –, o mesmo não acontece

com national. Há uma uniformidade maior entre os núcleos modificados por esse adjetivo,

uma vez que quase todos eles podem ser direta ou indiretamente relacionados à construção da

ideia de uma nação eslovena.

De modo geral, a presença de termos que remetem à ideia de nação é significativa,

sendo manifesta a preferência pelos termos Slovenia e slovene(s), em detrimento de nation e

national. Tal fato reforça a ideia já explicitada de que a introdução busca também promover

um país e acentua a imbricação entre o processo de construção da identidade nacional

eslovena e o discurso de valorização da sua língua e literatura. Procura-se construir uma

história que revele o Estado esloveno ao público leitor e, em certa medida, justifique sua

existência. A história do país é entretecida com a história de sua língua e literatura ao ponto

de quase não se conseguir dissociá-las.

Esse recurso é especialmente utilizado em “Despertar”, que representa o aflorar do

sentimento nacional esloveno. Não é por acaso que esse trecho do texto, além de reunir 50%

dos registros de slovene, na função de modificador, reúne também onze (50%) das vinte e

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A Palavra como Alicerce da Nação

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duas referências à Slovenia, slovene(s), nation e national, ou seja, metade do total de

indicadores nacionais tomados em conjunto.

No cômputo geral, foram identificados cinquenta e dois registros dos termos acima

indicados, os quais remetem à ideia geral de nação (nation, national) – em doze casos

(23,1%) – ou à ideia de uma nação eslovena propriamente dita (Slovenia, slovenes, slovene) –

em quarenta casos (76,9%), como destacado no Quadro 5.

Quadro 5 – Incidências de termos que remetem à Eslovênia

e/ou à ideia de nação

Termos Nº de Incidência

Slovenia, slovenes, slovene 40 (76,9%)

Nation, national 12 (23,1%)

Total 52

Vale observar que as referências à Yugoslavia e yugoslav não foram contabilizadas na

análise deste quesito, pois, embora a Eslovênia tenha pertencido a essa organização política

num determinado momento histórico, em nenhum instante tais referências surgiram com o

intuito de representação de ou de identificação com o Estado esloveno.

Retomando a relação de palavras mais utilizadas no texto, temos literature e literary.

Para literature, considerou-se os modificadores que lhe são atribuídos no interior dos

diferente grupos nominais em que surge como núcleo. Dos vinte e oito registros da palavra

literature, em quatorze (50%) ela aparece modificada por um adjetivo. Desse total de

quatorze, em oito ocorrências (57,1%) tal adjetivo é slovene, enquanto nos demais seis casos

(42,9%) encontramos modificadores distintos: modernist, subversive, good, high, world,

modest/intimate. Nos restantes quatorze registros (50%), a palavra literature aparece sozinha,

isto é, sem que nenhum modificador lhe seja diretamente associado.

Tendo em conta a dispersão do termo literature ao longo do texto, verificou-se que, do

total de vinte e oito incidências já referido, treze encontram-se em “Despertar” (46,4%), oito

em “Mobilização” (28,6%) e quatro em “Contemporânea” (14,3%), conforme indicado no

Quadro 6.

Já das quatorzes incidências em que a palavra literature aparece acompanhada por um

modificador, sete estão em “Despertar” (50%), quatro surgem em “Mobilização” (28,6%) e

apenas uma aparece em “Contemporânea” (7,1%), como explicitado no Quadro 7.

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Análise do texto: aspectos de representação

57

Se, em “Despertar” e “Mobilização”, a distribuição de processos onde literature surge

qualificada e onde surge sem nenhum modificador diretamente a ela atribuído aparece

equilibrada, o mesmo não ocorre em “Contemporânea”. Nesse último bloco do texto,

predominam os processos em que literature surge sem qualquer modificador. Tal fato parece

reforçar a mensagem de que a literatura contemporânea eslovena ganha independência do

contexto de afirmação nacional – muito forte em “Despertar” e ainda bastante presente em

“Mobilização – e, enfim, pode existir por si só. A literatura eslovena contemporânea se

afastaria de uma suposta missão nacional para ser simplesmente literatura.

Quadro 6 – Incidências de literature no texto

Blocos do Texto Nº de Incidência

“Despertar” 13 (46,4%)

“Mobilização” 8 (28,6%)

“Contemporânea” 4 (14,3%)

Outros 3 (10,7%)

Total 28

Quadro 7 – Incidências de literature modificada

por um adjetivo

Blocos do Texto Literature + modificador

“Despertar” 7 (50%)

“Mobilização” 4 (28,6%)

“Contemporânea” 1 (7,1%)

Outros 2 (14,3%)

Total 14

Para literary, repetiu-se a análise feita com slovene. Considerando-se a dispersão do

termo ao longo do texto, do total de quinze registros, foram contabilizados seis em

“Contemporânea” (40%), cinco em “Despertar” (33,4%), dois em “Mobilização” (13,3%) e

outros dois nos demais blocos (13,3%), como ilustrado no Quadro 8.

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A Palavra como Alicerce da Nação

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Quadro 8 – Incidências de literary no texto

Blocos do Texto Nº de Incidências

“Despertar” 5 (33,4%)

“Mobilização” 2 (13,3%)

“Contemporânea” 6 (40,0%)

Outros 2 (13,3%)

Total 15

Há um relativo equilíbrio na utilização do modificador literary em “Despertar” e

“Contemporânea”, ao contrário do que acontece em “Mobilização”, onde os registros desse

termo caem para menos da metade. Mas tais números, por si só, não permitem uma reflexão

mais aprofundada sobre as escolhas dos autores. Nesse sentido, parece mais interessante

observar o uso de literary em função da ocorrência de literature no interior dos blocos de

texto em análise. Considerando que ambos os termos remetem para uma mesma entidade,

nesse caso a literatura, a opção por representá-la como núcleo – nesse caso, como substantivo

– ou como modificador de um núcleo distinto – nesse caso, como adjetivo, pode ser mais

elucidativa.

Em “Despertar”, de um total de dezoito registros, treze correspondem a literature

(72,2%) e cinco correspondem a literary (27,8%). Há, portanto, uma forte predominância do

uso do substantivo. O mesmo se dá em “Mobilização”: de um total de dez registros, oito

referem-se a literature (80,0%) e apenas dois, a literary (20,0%). Em “Contemporânea”, no

entanto, registra-se situação diversa: é literary, com seis registros (60,0%), que predomina

sobre literature, com quatro (40,0%), de um total de dez casos, como destacado abaixo.

Quadro 9 – Incidências de literature e de literary no texto

Blocos do Texto Nº de Incidências

de Literature

Nº de Incidências

de Literary

Total

“Despertar” 13 (72,2%) 5 (27,8%) 18

“Mobilização” 8 (80,0%) 2 (20,0%) 10

“Contemporânea” 4 (40,0%) 6 (60,0%) 10

Outros 3 (60,0%) 2 (40,0%) 5

Total 28 15 43

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Análise do texto: aspectos de representação

59

É interessante notar que a preferência por literature em relação à literary se dê nos

dois blocos em que a literatura é chamada à ação, quer na condição de embrião de uma

consciência nacional, quer na condição de força de mobilização social. Já o contrário se

verifica no bloco em que tal papel não é mais exigido da literatura.

Em relação aos núcleos modificados por literary, estes foram classificados em quatro

categorias: Língua, Missão, Realização e Projeção. Em Língua, foram computados os termos

diretamente associados à língua e literatura: language, texts. Em Missão, foram classificados

os termos de uso recorrente quando se aborda o papel da literatura na construção de um

sentimento nacional: tradition, mission, iconography, hero. Em Realização, foram reunidas as

palavras que representam a literaura em ação, ou seja, a atividade literária em si mesma:

circus, performances, creations, space. Em Projeção, foram contabilizadas as expressões que

remetem para as origens e tendências literárias, referidas com um maior grau de abstração:

sources, current, trends, perception, creativity. Os quinze registros identificados estão assim

distribuídos: cinco em Projeção (33,3%), quatro em Realização (26,7%), o mesmo para

Missão, e dois em Língua (13,3%), como registrado no quadro a seguir.

Quadro 10 – Incidências de literary

por categoria

Categorias Nº de Incidência

Projeção 5 (33,3%)

Realização 4 (26,7%)

Missão 4 (26,7%)

Língua 2 (13,3%)

Total 15

Considerando os núcleos modificados por literary, também se verifica um equilíbrio

entre as categorias Projeção, Realização e Missão, que destoa do que acontece na categoria

Língua, que representa, no máximo, a metade dos registros anteriores. Tendo em conta a

afinidade entre os termos língua e literatura – e, no caso esloveno, a forte associação entre

ambos –, a pouca incidência do modificador literary sobre núcleos associados à língua não

causa surpresa.

Uma análise geral dos dados obtidos até este momento aponta para a frequente

presença de termos que remetem à ideia de nação, especificamente ao Estado esloveno, e que

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A Palavra como Alicerce da Nação

60

consistem num indício do caráter de afirmação nacional do texto em análise. Pode-se

perceber, sem grande esforço, que o discurso de afirmação e valorização da língua e da

literatura eslovenas está fortemente associado ao surgimento de uma consciência e ao início

do processo de emancipação nacionais.

A incidência de palavras relacionadas ao conceito de nação e nacionalidade é maior

em “Despertar”, se comparado com “Mobilização” e “Contemporânea”, e, na maioria das

vezes, as palavras encontradas remetem diretamente ao país – Slovenia, slovene(s) – em

detrimento de referências mais genéricas – nation, national.

O papel dos atores sociais: língua, literatura e nação

Ao longo da introdução, língua e literatura aparecem frequentemente relacionadas ao

conceito de nação e de identidade nacional. Para melhor compreender o papel da língua e da

literatura, de um lado, e de Estado e nação, de outro, optou-se por uma análise baseada no

critério de agenciação. O processo adotado foi o de identificação de orações do texto em que

tais conceitos desempenham o papel de agentes, ou seja, de atores responsáveis pela execução

da ação. Eles deixam de ser o tema sobre „o qual se fala‟ e assumem o papel de „quem fala‟,

ou seja, assumem voz própria e passam a ser aqueles que se manifestam.

Considerando a estrutura da oração, na perspectiva do sistema da transitividade, que

será discutido mais à frente, ator e processo representam duas funções recorrentes, sendo, em

geral, a primeira desempenhada por um nome ou grupo nominal e a segunda, por um verbo ou

grupo verbal (Martin et al, 1997: 7).

A presente análise consistiu na identificação de orações que tivessem como atores

nomes que representassem a Eslovênia e os eslovenos (slovenes, they, the Slovene state, the

nation), por um lado, e a língua e a literatura (literature, it, literary texts, poetry, prose,

narration), por outro. A seguir, a partir da observação dos respectivos processos, foram

excluídas as orações em que tais atores não assumiam a realização dos mesmos, segundo o

critério de agenciação previamente estabelecido, como, por exemplo, nos casos de voz

passiva. Por fim, tais registros foram discriminados em função da sua disposição em

“Despertar”, “Mobilização” e “Contemporânea”.

De um lado, temos a Eslovênia e os eslovenos, que respondem por seis (11,1%) do

total de cinquenta e quatro registros. Nessas orações, é a Eslovênia que fala, diretamente ou

representada pelos eslovenos. Isso se dá em “Mobilização”, trecho que narra o

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Análise do texto: aspectos de representação

61

desenvolvimento da literatura no período do pós-guerras até o final dos anos 80, com dois

registros (33,3%), e em “Despertar”, com um registro (16,7%).

Do outro lado, temos a literatura, que responde pelos demais quarenta e oito casos

(88,9%). Esta surge ora mencionada diretamente ora representada pela obra literária ou pelos

escritores. As passagens nas quais a literatura assume a condição de protagonista encontram-

se especialmente em “Despertar”, com vinte e um registros (43,8%), seguido de

“Contemporânea”, com quinze (31,2%), e de “Mobilização”, com dez (20,8%), conforme

ilustrado no quadro abaixo.

Quadro 11 – Registros de Slovenia ou Literature no papel de atores sociais

Blocos do Texto Slovenia Literature Total

“Despertar” 1 (16,7%) 21 (43,8%) 22

“Mobilização” 2 (33,3%) 10 (20,8%) 12

“Contemporânea” - 15 (31,2%) 15

Outros 3 (50,0%) 2 (4,2%) 5

Total 6 48 54

No cômputo geral, portanto, a iniciativa da ação cabe predominantemente à literatura.

Mais do que objeto do discurso, ela assume a condição de agente. Esse dado parece reforçar a

ideia do seu papel ativo na construção de uma identidade nacional eslovena, tema que é

desenvolvido de forma explícita ao longo da introdução.

Para entender melhor o papel da literatura nesse contexto, optou-se por distinguir as

orações em que a literatura fala em nome próprio e aquelas em que ela é representada por

escritores, sejam estes últimos identificados ou não, como exemplificado abaixo.

A literatura atuando em nome próprio:

Literature and the social life related thereto offered room for excess. [Linhas 163 a 164]

A literatura representada por autores não identificados:

In opposition to their colleagues in other Communist countries of the time, Slovene writers soon rejected the politically prescribed Socialist Realism. [Linhas 132 a 134]

A literatura representada por autores identificados:

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A Palavra como Alicerce da Nação

62

At the beginning of the twentieth century, Ivan Cankar (1876-1918), a writer without whom Slovene contemporary literature would not exist, created a series of extraordinary prose and drama works. [Linhas 80 a 83]

Do total dos quarenta e oito registros já mencionados, a literatura fala diretamente em

dezesseis deles (33,3%), sendo representada por escritores, identificados ou não, nos demais

trinta e dois casos (66,7%). Considerando apenas os casos em que a literatura se manifesta via

escritores, dezoito deles (56,25%) referem-se a escritores identificados – dezesseis em

“Despertar” (88,9%) e dois em “Mobilização” (11,1%) – e os demais quatorze (43,75%)

referem-se a escritores não identificados – oito em “Contemporânea” (57,2%), cinco em

“Mobilização” (35,7%) e um em “Despertar” (7,1%), como exposto abaixo.

Quadro 12 – Registros de escritores identificados

e não identificados no texto

Blocos do Texto

Literatura via escritores

Escritores

identificados

Escritores não

identificados

“Despertar” 16 (88,9%) 1 (7,1%)

“Mobilização” 2 (11,1%) 5 (35,7%)

“Contemporânea” - 8 (57,2%)

18 14

Total 32

“Despertar”, portanto, reúne a grande maioria dos casos em que a literatura se

manifesta sendo representada por autores identificados. O destaque é France Prešeren, que

responde por oito (44,4%) do total de dezoito registros encontrados, seguido por Ivan Cankar

e Srečko Kosovel, cada um com três (16,7%). Quem fala não é a literatura de forma indistinta,

mas sim seus representantes. É na voz dos diferentes autores, identificados e devidamente

apresentados ao leitor, que a literatura se manifesta. Este é o momento que marca o início da

história da literatura eslovena e o simultâneo despertar da nação. A personalização do

discurso, a identificação da literatura com o percurso de autores específicos, a apropriação do

prestígio individual de cada autor é crucial, pois daí advém a força necessária para dar

impulso à causa nacional. Nessa passagem do texto, o discurso de identificação do início do

processo de construção de uma identidade nacional eslovena com a valorização da literatura

nacional é muito forte, a ponto de quase não ser possível dissociá-los.

Page 77: A palavra como alicerce da nação   21.02.12 - creative commons

Análise do texto: aspectos de representação

63

A literatura também se manifesta como agente em “Mobilização” e “Contemporânea”;

porém, nesses casos, fala em nome próprio ou é representada por autores não identificados,

como denotam os exemplos abaixo, raramente sendo representada por autores

individualizados – há apenas duas ocorrências (11,1%) em “Mobilização”, conforme já

mencionado, e nenhuma em “Contemporânea”.

In opposition to their colleagues in other Communist countries of the time, Slovene writers soon rejected the politically prescribed Socialist Realism (itálicos acrescentados). [Linhas 132 a 134]

Literature played a powerful symbolic role in Slovenia’s gaining independence in 1991 (itálicos acrescentados). [Linhas 198 e 199]

Em “Mobilização” ainda encontramos outros autores identificados como atores

sociais, mas, em geral, eles são apenas mencionados, não assumem o papel de agentes (é o

caso de Dušan Pirjevec, Uroš Kalčič, Emil Filipčič, Tone Perčič, Lojze Kovačic, Florjan

Lipuš e Boris Pahor), como no exemplo abaixo:

A pronounced retreat into the inner worlds of imagination, accompanied by linguistic brilliancies and fantastic, risk-talking plays on words, can be traced to a kind of ultramodernism whose significant representatives are Uroš Kalčič (b. 1951), Emil Filipčič (b. 1951), and Tone Perčič (b. 1954). [Linhas 179 a 183]

É nesse momento que, à medida que nos distanciamos do período do pós-guerras, o

discurso de afirmação da literatura começa se separar, a se descolar da causa nacional.

Participa dela, mas já não parece ser sua condição de existência. A literatura ganha alguma

independência, alguma liberdade de criação. Estamos no final dos anos 80.

Em “Contemporânea”, só a literatura fala sem que um único escritor seja

individualizado. Aliás, vale observar que, ao longo da introdução, em nenhum momento os

autores incluídos na antologia foram mencionados. Ainda assim, é a literatura quem toma a

palavra. Mas a literatura que agora se representa é uma literatura emancipada e, de certo

modo, independente da causa nacional. A literatura contemporânea já não surge associada ao

férreo compromisso de construção de uma identidade nacional eslovena. É, portanto, em

“Despertar” que os escritores são identificados e valorizados e desempenham o papel de

atores, ao contrário do que ocorre em “Mobilização”, por exemplo, em que os autores, embora

identificados, são apenas mencionados, não assumindo o papel de protagonistas. Já em

“Contemporânea”, sequer há individualização dos autores.

Conforme nos aproximamos do presente, especificamente na segunda metade do

século XX, a relação estabelecida pelo discurso se abranda. A literatura ainda tem papel

Page 78: A palavra como alicerce da nação   21.02.12 - creative commons

A Palavra como Alicerce da Nação

64

proeminente no processo de construção da identidade nacional, mas este já tem vida própria e

alguma autonomia.

Em resumo, se, num primeiro momento, a língua e a literatura surgem como agentes,

como os iniciadores do processo de resgate de uma certa consciência nacional ou mesmo

como os (re)fundadores dessa identidade, num segundo momento, ela parece perder a

condição de protagonista no movimento por uma identidade eslovena, embora ainda participe

dele ativamente. A literatura sofre com a violência do pós-guerra e a opressão de um regime

totalitário, mas resiste e sobrevive. No final, parece haver um distanciamento entre a literatura

e a causa nacional.

Uma representação de mundo via a análise dos processos relacionais

Uma última análise mostrou-se interessante a partir da contabilização das palavras

mais frequentes no texto, que apontou para o uso intensivo do verbo to be, nas flexões is

(trinta e sete registros), was (vinte e três registros), were (treze registros) e are (onze

registros). Essa informação remete para a provável existência de um número significativo dos

chamados processos relacionais, os quais serão discutidos a seguir.

Ainda no contexto da metafunção ideacional e da sua aptidão para explicitar as –

muitas vezes diversas – representações de mundo desenhadas ao longo do texto, destaca-se o

sistema de transitividade como meio de materialização dessas representações. Tal sistema

consiste num “recurso gramatical para construir acções e actividades, representadas como

configurações de processos, participantes envolvidos nesses processos e circunstâncias que

informam esses processos” (Pedro et al, 2002: 17).

Esse sistema de transitividade constrói as diferentes ações e atividades por meio de um

reduzido número de processos: os processos materiais, processos mentais, processos

relacionais, processos verbais, processos comportamentais e processos existenciais (Pedro et

al, 2002: 17 e 18). Do conjunto, neste momento interessam os processos relacionais, que

consistem em “processos de ser ou estar em algo e estabelecem uma relação entre dois

conceitos” (ibidem: 54). Segundo a Gramática Sistêmico-Funcional, há dois tipos

fundamentais de processos relacionais: os atributivos e os identificativos. Fala-se em processo

relacional atributivo “quando a um Portador (…) é dado um Atributo” e de processo

relacional identificativo “quando algo ou alguém, o Identificado, (…) é caracterizado por

meio de um Identificador” (Pedro et al, 2002: 55).

Page 79: A palavra como alicerce da nação   21.02.12 - creative commons

Análise do texto: aspectos de representação

65

Embora os processos relacionais possam ser construídos a partir de um número

variado de verbos, são os verbos ser ou estar os mais frequentes. A presença desses verbos,

por sua vez, não implica a efetiva caracterização do processo como sendo de natureza

relacional, representa apenas essa possibilidade. Considerando-se, portanto, a incidência do

verbo to be na introdução e a estreita ligação que se verifica entre o seu uso e a construção de

processos relacionais, a análise se concentrou no uso de tais verbos.

A primeira etapa desta análise consistiu em identificar as orações em que is, are, was e

were surgiam para, a seguir, selecionar entre essas orações aquelas que efetivamente

representavam processos relacionais. De oitenta e quatro registros, foram selecionados trinta e

um casos (36,9%).

A segunda etapa consistiu em determinar a dispersão desses processos em função dos

três blocos de texto em destaque. Considerando-se apenas “Despertar”, “Mobilização” e

“Contemporânea”, foram contabilizados um total de vinte e sete processos relacionais

(87,1%), sendo doze em “Contemporânea” (44,4%), oito em “Despertar” (29,6%), e sete em

“Mobilização” (26,0%), conforme disposto no quadro abaixo.

Quadro 13 – Incidência dos processos relacionais no texto

Blocos do Texto Nº Proc. Relacionais

“Despertar” 8 (29,6%)

“Mobilização” 7 (26,0%)

“Contemporânea” 12 (44,4%)

Total 27

A terceira etapa da análise consistiu em classificar esses vinte e sete processos

relacionais como identificativos – dezessete casos (63,0%) – ou atributivos – dez casos

(37,0%). Verificou-se, portanto, a predominância dos processos identificativos. Embora

ambos os processos construam caracterizações, fazem-no de formas distintas: os atributivos

cumprem essa tarefa fazendo uso de características, enquanto os identificativos se valem de

relações abstratas. O predomínio dos processos relacionais identificativos parece apontar,

portanto, para o predomínio das relações abstratas.

Antes de prosseguir, importa observar que, neste estudo, optou-se pela não distinção

entre as chamadas ranked clauses e as embedded clauses (estas últimas também referidas

como rankshifted ou downranked), segundo a classificação desenvolvida por Halliday (1985:

Page 80: A palavra como alicerce da nação   21.02.12 - creative commons

A Palavra como Alicerce da Nação

66

188). A partir da observação da estrutura da oração e com base na definição de uma escala

hierárquica organizada – “oração”, “grupo nominal” e “palavra”, em ordem decrescente de

complexidade – sempre que encontramos um item de posição superior realizando a função de

um item de posição inferior, temos a situação caracterizada como rankshifting ou embedding,

como esclarece Martin et al (1997: 17):

When choices are opened up again (…), at a rank lower than we would normally expect them, we say that one unit has been embedded in another (…). This disturbs the normal layering we find in clause structure – instead of a clause consisting of one or more group/phrases and group/phrases consisting of one or more words, we have a clause consisting of another clause among the group/phrases.

A incidência dos processos relacionais no texto em análise evidencia, em alguma

medida, sua natureza introdutória. Os autores da introdução se propõem apresentar um novo

tema, um tema desconhecido dos seus prováveis leitores; daí a necessidade de se dizer “o que

é” e “como é”, ou seja, de se valer de recursos voltados à identificação e à qualificação.

Exemplos de processos relacionais atributivos são:

…writing that was indifferent to the ties of society.

Josip Jurčič… was not really indifferent to the nationality of the lady…

Exemplos de processos relacionais identificativos são:

… the poets only literary sources of the time were texts of religious,

didactical, or derivative nature…

The public glorification of literature is one thing…

A poet is the prophet of better times.

A quarta e última etapa da análise consistiu em avaliar a dispersão desses processos ao

longo do texto a partir da classificação dos mesmos em atributivos ou identificativos. Em

“Contemporânea”, dos doze processos relacionais encontrados, sete foram classificados como

identificativos (58,3%) e cinco como atributivos (41,7%). Em “Despertar”, dos oito processos

relacionais encontrados, cinco foram classificados como identificativos (62,5%) e três como

atributivos (37,5%). Em “Mobilização”, dos sete processos relacionais encontrados, cinco

foram classificados como identificativos (71,4%) e dois como atributivos (28,6%), como

destacado no Quadro 14.

Há um maior equilíbrio entre processos relacionais identificativos e atributivos em

“Contemporânea” e em “Despertar”, se comparados com “Mobilização”, onde a

predominância dos processos identificativos é mais acentuada.

Page 81: A palavra como alicerce da nação   21.02.12 - creative commons

Análise do texto: aspectos de representação

67

Quadro 14 – Incidência dos processos relacionais identificativos e atributivos

Blocos do Texto

Processos Relacionais

Total

Identificativos Atributivos

“Despertar” 5 (62,5%) 3 (37,5%) 8 (100%)

“Mobilização” 5 (71,4%) 2 (28,6%) 7 (100%)

“Contemporânea” 7 (58,3%) 5 (41,7%) 12 (100%)

Total 17 10 27

Olhando para os mesmos dados, mas de um outro ângulo, observou-se que, do total de

dezessete processos relacionais identificativos, a dispersão por bloco de texto foi de sete para

“Contemporânea” (41,2%), cinco para “Despertar” (29,4%) e cinco para “Mobilização”

(29,4%), como destacado no Quadro 15. Há, portanto, uma distribuição relativamente

equilibrada de processos relacionais identificativos ao longo dos blocos de texto em destaque.

Esses dados evidenciam a premissa, assumida pelos autores da introdução, de

desconhecimento do leitor em relação ao tema tratado: a literatura eslovena e o própria

Eslovênia. Reforçam, assim, o caráter de apresentação que marca a integridade do texto.

Quadro 15 – Incidência dos processos relacionais identificativos no texto

Blocos do Texto Nº Proc. Rel. Identificativos

“Despertar” 5 (29,4%)

“Mobilização” 5 (29,4%)

“Contemporânea” 7 (41,2%)

Total 17

Considerando o total de dez processos relacionais atributivos, a dispersão por bloco de

texto foi de cinco para “Contemporânea” (50,0%), três para “Despertar” (30,0%) e dois para

“Mobilização” (20%), conforme indicado no Quadro 16.

Uma vez que os “os processos relacionais atributivos parecem veicular, de uma forma

muito mais evidente, a subjectividade de quem fala, ou escreve, relativamente à realidade

observada” (Pedro e Azuaga, 2002: 60), pode-se reconhecer em “Contemporânea”, portanto,

uma margem maior para a manifestação dos autores da introdução, como ilustram os

exemplos abaixo:

Page 82: A palavra como alicerce da nação   21.02.12 - creative commons

A Palavra como Alicerce da Nação

68

…nor can it be taken as a pile of unambitious fragments having nothing

to offer but tinsel under which all is hollow.

For them, any retreat to a completely isolated island where they could

enjoy their aesthetic games and intellectual gymnastics is impossible.

…duality…that even the majority of native speakers have difficulty

mastering, let alone those for whom it is less well known.

It seems that the reality that surrounds them is simply too dense,

neurotic even, and tempting…

Quadro 16 – Incidência dos processos relacionais atributivos no texto

Blocos do Texto Nº Proc. Rel. Atributivos

“Despertar” 3 (30,0%)

“Mobilização” 2 (20,0%)

“Contemporânea” 5 (50,0%)

Total 10

O tempo também parece ser um caráter importante de distinção entre os diferentes

blocos de texto, no que diz respeito à incidência dos processos relacionais atributivos. Em

“Despertar” e “Mobilização”, o tempo é passado; narra-se uma história já acontecida, contada

e recontada inúmeras vezes, independentemente do desconhecimento do leitor a quem a

introdução é dirigida. A predominância dos processos identificativos se coaduna com o

recurso a um conteúdo histórico, marcado por verdades assimiladas, por discursos

naturalizados, tornando menos visível a subjevidade de quem fala, que é evidenciada nos

processos relacionais atributivos.

Não se pretende, com a afirmação acima, negar a subjetividade que permeia os

processos relacionais, independentemente de sua classificação, nem definir uma gradação

diferente de intensidade para os processos atributivos e identificativos. No entanto, parece

razoável supor que a subjetividade inerente aos processos de identificação seja menos visível,

isto é, seja mais difícil de ser identificada pelo leitor, até porque a mensagem/imagem que se

pretende passar é a de constatação/descrição de algo ou alguém, e não a de

julgamento/opinião. Pelo contrário, nos processos atributivos a possibilidade dessa

subjetividade é assumida logo de partida.

Passando para “Contemporânea”, verifica-se que o tempo aí é atual. Embora também

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Análise do texto: aspectos de representação

69

aqui se presuma o desconhecimento do leitor em relação ao tema tratado, ou seja, a literatura

eslovena contemporânea e a Eslovênia, os autores da introdução se posicionam com maior

liberdade, pois referem-se a fatos que ainda estão em desenvolvimento. Não houve tempo

suficiente para que determinadas versões desses fatos se cristalizassem, exigindo um esforço

maior de alteração ou impondo sérios constrangimentos.

Para concluir, a utilização de processos relacionais ao longo do texto, além de reforçar

seu caráter de apresentação, como já discutido, também atua no estabelecimento de uma

relação de empatia, ou seja, de maior envolvimento com o leitor, uma vez que tais processos

promovem a construção de emoções (Martin et al, 1997: 121) – recurso de grande relevância

para o desenvolvimento de estratégias de sensibilização. A subjetividade que pode

caracterizar tais processos e, acima de tudo, a construção de significados e de representações

de mundo a partir do estabelecimento de relações entre conceitos, oferecem o espaço de

abstração necessário para que os autores desenvolvam tais estratégias de atração e

convencimento.

A predominância dos processos relacionais identificativos, em relação aos atributivos,

também pode ser interpretada, de modo geral, como uma maneira de dar ao texto maior

credibilidade, pois, como já foi dito, tais processos tornam menos evidente o caráter sempre

subjetivo de uma dada representação do mundo, focando-se mais no mundo da relações

abstratas.

Síntese

Neste capítulo, promoveu-se a análise de características específicas do texto em

continuidade com as reflexões desenvolvidas no capítulo anterior. Em comum, os critérios de

avaliação utilizados nesta etapa evidenciaram os aspectos de representação do texto, os quais

correspondem à materialização da função ideacional, segundo o enquadramento da

Linguística Sistêmico-Funcional.

O ponto de partida foi a verificação da incidência de palavras frequentes ao longo da

introdução. Slovene, literature e literary foram os termos encontrados e analisados no

contexto dos grupos nominais do qual participam. A relação entre o discurso literário e o

discurso de afirmação nacional foi explorada especialmente a partir da análise ora dos núcleos

modificados por slovene e literary ora dos modificadores atribuídos a literature.

A seguir, explorou-se o papel desempenhado, por um lado, pela língua e pela literatura

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A Palavra como Alicerce da Nação

70

e, por outro, pela Eslovênia, na condição de atores de uma representação do mundo, segundo

o critério de agenciação. Procurou-se identificar de que maneira esses conceitos surgiam de

alguma forma representados como agentes, assumindo a responsabilidade pela realização de

um dado processo.

Por fim, o foco da análise convergiu para a utilização de processos relacionais ao

longo do texto, considerando-se suas duas principais modalidades: os processos relacionais

atributivos e os processos relacionais identificativos. A partir da observação de tais processos,

procurou-se explorar seus diferentes significados ao longo do texto.

No quinto e último capítulo, o objetivo será consolidar os resultados obtidos à luz das

atuais teorias de construção de identidades nacionais, discutidas no início deste ensaio e

refletir sobre os desafios que a Eslovênia enfrenta hoje, em seu processo de

internacionalização e de efetiva integração na União Europeia.

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Confluências: discurso, representação e identidade

(Capítulo 5)

Introdução

De volta ao discurso de afirmação nacional da Eslovênia

Representação: novos significados para discursos antigos

Os desafios do século XXI: os riscos de uma crise identitária

Síntese

Page 86: A palavra como alicerce da nação   21.02.12 - creative commons

A Palavra como Alicerce da Nação

72

Page 87: A palavra como alicerce da nação   21.02.12 - creative commons

Confluências: discurso, representação e identidade

73

Introdução

Da análise do texto de introdução à coletânea Angels Beneath the Surface: A Selection

of Contemporary Slovene Fiction, ressalta a relevância da língua e da literatura para o

processo de construção discursiva da identidade eslovena. Neste capítulo, a análise do

discurso esloveno de afirmação nacional será retomada e entretecida com outras referências

sobre a história e a cultura do país, de modo a se construir um quadro ampliado do tema, que

permita rever esse discurso em face do cenário atual, no qual a Eslovênia se esforça para

conquistar visibilidade em âmbito internacional e em promover sua efetiva integração no

espaço europeu.

O ponto de partida será a reconstrução do discurso de forte associação entre a história

da língua e da literatura eslovenas e o surgimento do sentimento nacional, ainda na primeira

metade do século XIX. A relevância do papel da língua e da literatura no processo de

emancipação nacional será, a seguir, reavaliado em função da longevidade do dicurso

identitário.

Repetindo, aparentemente, o discurso de afirmação da língua a favor de uma

identidade nacional, adotado pelas nações tardias do século XIX, a Eslovênia, assim como

outras novas nações tardias, surgidas a partir do final do século XX, precisa enfrentar os

desafios do século XXI. Num contexto tão diverso, parece razoável esperar que o discurso

identitário esloveno se modifique ou, ao menos, assuma outros significados para se adaptar a

essas novas circunstâncias.

Por fim, o foco desta análise convergirá para o impacto produzido no discurso

identitário esloveno pelo processo de globalização e pelo desenvolvimento dos meios e das

tecnologias de comunicação, os quais promovem um alargamento do universo onde atuam,

quer o ser humano, quer uma comunidade nacional. Face à necessidade de alcançar

visibilidade internacional e aos desafios inerentes à adesão da Eslovênia à União Europeia,

em 2004, importa repensar a questão da língua.

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A Palavra como Alicerce da Nação

74

De volta ao discurso de afirmação nacional da Eslovênia

Neste início de século, as questões envolvendo o tema identidade parecem mais atuais

do que nunca. À medida que as conquistas em favor da liberdade de ação e pensamento se

acumulam, multiplicam-se as opções identitárias em proporção direta. Se o século XX

representa o fim da era dos nacionalismos, vivemos hoje uma espécie de “era das

identidades”.

Os movimentos de migração em massa da população mundial, a maior mobilidade e o

incremento da circulação de bens e pessoas, o desenvolvimento das tecnologias de

comunicação e o processo de globalização promovem a multiplicação dos contatos,

conformando esse cenário. Entre tantas possibilidades de identificação e diferença, temos a

identidade nacional.

Nesse contexto, a língua como fator de identidade, entre tantos outros possíveis, é

constantemente chamada à ação, pois constitui um insumo importante do mecanismo de

identificação e diferença que é posto em funcionamento no contato com o outro. Sem

diminuir o seu valor, no entanto, é importante lembrar que a língua é apenas um dos recursos,

entre tantos outros, que alimentam esse processo. Além disso, por mais frequentemente que

seja utilizada para distinguir ou reconhecer, nem sempre cumpre essa função: afinal, é

possível pensar em vários outros processos de identificação construídos em torno de valores

distintos – como idade, gênero, modo de vida etc. –, que podem sobrepujar a questão da

língua em determinados contextos.

A questão que aqui se discute, no entanto, não é o discurso de associação entre língua

e identidade por si mesmo, mas sim a caracterização dessa identidade como nacional, num

contexto em que ainda se atribui um caráter essencialista a tais identidades. Muitos dos

conflitos e tensões que acompanhamos hoje – seja na Espanha, na Bélgica ou na Turquia, para

dar apenas alguns exemplos – utilizam o discurso de associação entre língua e identidade

nacional numa espécie de relação causa-efeito. A perspectiva da construção discursiva das

identidades nacionais é afastada e, com ela, a possibilidade de ação e de transformação, ou

seja, a capacidade de assumirmos a posição de sujeito nesse processo, e não de mero objeto,

como discutido no capítulo 2. Movimentos como a lusofonia ou a francofonia, entre outros,

exploram o potencial de identificação da língua – seja do ponto de vista social, cultural,

político ou econômico – sem, contudo, condicioná-lo ao reconhecimento de uma única

identidade nacional.

No caso da Eslovênia, os desafios impostos à língua – e, desse modo, à sua identidade

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Confluências: discurso, representação e identidade

75

– pela transformação do cenário mundial e, também, em consequência do reconhecimento da

Eslovênia como nação, a partir da independência, em 1991, reclamam um novo

equacionamento da relação estabelecida entre língua e identidade.

Localizada num território historicamente marcado por conflitos e pela dominação

sucessiva de diversos povos, a estratégia de sobrevivência dos eslovenos ao longo dos séculos

passou pela capacidade de se tornarem invisíveis e pela habilidade camaleônica de se

adaptarem às diferentes realidades dominantes, social e culturalmente, como propõe Kmecl

(2005: 10 et passim): “who wants to stay alive must become invisible, must resort to

mimicry”.

Um bom exemplo da sensibilidade eslovena à questão da identidade nacional é a

citação, feita por Gow e Carmichael (2000: 2), da fala de uma personagem criada pelo escritor

esloveno Vitomil Zupan (1914-1987):

The Italians call us Schiavi, the Austrians Windisch swine, the rest of Europe thinks we belong to the Balkans, Balkan peoples think that we’re part of the old Austrian empire, while for the rest of the world we’re just somewhere tucked away between Turkey and Czechoslovakia.

Sem um território definido, uma família real (Kmecl, 2005: 13) que a representasse ou

um exército organizado, o discurso de afirmação de uma identidade eslovena e de

emancipação nacional foi fortemente centrado na questão da língua e na exclusividade da

cultura a ela associada. A língua é apontada como uma espécie de “fortaleza” (Kmecl, 2005:

91), um espaço antigo de resistência cultural, e um dos principais fatores de unidade nacional

(vd. Kmecl, 2005: 57; Debeljak, 2004: 1; Gow e Carmichael, 2000: 2): “While Slovenes are a

highly literate and multilingual people, it is Slovene itself that lies at the heart of their sense of

identity” (Gow e Carmichael, 2000: 7).

A partir da afirmação da língua, o discurso identitário esloveno alcança facilmente a

literatura. É por meio dela que a língua eslovena é recriada, especialmente pela atuação de

Prešeren, como é destacado no texto analisado. Mais do que isso, no entanto, a literatura, ou

melhor, a existência de uma literatura de qualidade, é apontada como uma espécie de prova

do caráter nacional, como afirma Kmecl (2005: 59), ao se referir ao cenário europeu da

segunda metade do século XIX:

In Europe at that time there prevailed a conviction that a nation without a novel is not a proper nation, as the novel’s mimetic wholeness, its capacity for genesis – creating as perfect a quasi-world as possible out of nothing – was fundamental proof of creative power and, with it, the full value of the national literature and consequently of the nation itself.

A relevância do papel da língua e da literatura na construção da identidade nacional

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A Palavra como Alicerce da Nação

76

eslovena também transparece na introdução. Não por acaso, a apresentação da sua história e

literatura, desenvolvida no texto analisado a partir da seção designada de “Despertar”, tem

início em meados do século XVIII, atravessando a fase romântica, frequentemente associada

ao início da era dos nacionalismos. E é o principal poeta romântico esloveno, France

Prešeren, quem surge como artífice dessa recém-nascida identidade nacional e,

simultaneamente, como o responsável pelo renascimento da língua eslovena.

A importância de Prešeren para a língua eslovena e, consequentemente, para o

processo de construção de uma identidade associada a ela, pode ser facilmente apreendida a

partir da afirmação de Debeljak (2004: 10):

France Prešeren (1800-1848), who wrote with equal elegance in Slovene and German, is a case in point. German was the lingua franca of Central Europe until World War I. To reject German as a literary medium, like Prešeren did, meant a divorce from the dominant linguistic sphere, with its large market and stimulating cultural life. But Prešeren’s commitment to his mother tongue represented a different set of values. His decision was not simply about a choice of medium, about whether to swap one mode of expression for another in order to gain easier access to certain resources. For him, using Slovene was an article of faith, an existential and political decision that seems especially relevant today.

Embora a relevância do papel da língua e da literatura no discurso de afirmação

esloveno seja uma constante, ao longo do texto em análise parecem coexistir duas literaturas

distintas: a literatura-símbolo nacional, mitificada, cujos autores são equiparados a heróis

nacionais, e a literatura propriamente, feita de escritores e livros. O destaque dado aos autores

do século XIX – identificados e valorizados – em comparação com a não individualização dos

autores contemporâneos – nem um só nome é citado – parece confirmar essa ideia.

Mais uma vez, France Prešeren é o principal exemplo desse processo. Além da

existência de um feriado nacional, em que se comemora o Dia de Prešeren, a sétima estrofe do

seu poema “Zdravljica” (vd. Anexo 2) foi adotada como letra do hino nacional e há uma

estátua em sua homenagem, localizada em Ljubljana, capital do país, no centro da cidade

antiga, numa praça que também leva o nome do poeta: a Prešernov Trg.

O discurso de afirmação nacional esloveno também passa em alguma medida pelo seu

afastamento da antiga Iugoslávia e do mundo comunista, como já discutido no capítulo 3. O

passado da Eslovênia sob o regime comunista é sempre associado diretamente à Iugoslávia, e

não à Eslovênia propriamente dita. Ao mesmo tempo, é destacado o papel de resistência,

exercido pelos escritores eslovenos, contra a opressão do regime.

A imagem de um país dividido entre o Leste e o Oeste é reforçada e explorada com o

intuito aparente de marcar o afastamento da Eslovênia em relação ao oriente e de

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Confluências: discurso, representação e identidade

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aproximação com o ocidente. Parece haver uma mudança simbólica de posição da Eslovênia.

Ela deixa de estar localizada a Oeste da Europa oriental e passa a situar-se a Leste da Europa

ocidental (vd. Velikonja, 2005: 7). Essa mesma mudança é apontada por Debeljak, mas sob

perspectiva diversa, destacando o afastamento da realidade experimentada na condição de

república iugoslava e a nova realidade vivida como membro da União Europeia: “In other

words, the Slovene nation has made the transition from being a big fish in the pond of

Yugoslavia to being a little fish in the sea of Europe” (2004: 14).

Representação: novos significados para discursos antigos

O recurso à afirmação e à valorização de uma língua e literatura nacionais no processo

discursivo de construção de identidades não é novo, nem é exclusivo da Eslovênia (vd.

Anderson, 1983, e Hobsbawm, 1990), como já mencionado na introdução a este ensaio. O que

chama a atenção é a intensidade do discurso identitário esloveno e sua recorrência, sejam

quais forem os motivos que se encontram na origem desse discurso. Há uma espécie de

vinculação entre língua e identidade nacional. A língua parece exercer a dupla função de

prova cabal de existência de uma identidade/nação eslovena e de força motriz, geradora dessa

identidade/nação.

Mas, se o discurso identitário esloveno permanece o mesmo, o entorno se modifica e

transforma. Nesse sentido, a resistência do discurso a essas mudanças parece ser um dado

relevante para melhor compreender o processo de construção das identidades nacionais em

torno da unidade linguística. Também parece razoável supor que, em algum momento, esse

discurso do passado venha a entrar em choque com o presente. Nesse sentido, acompanhar o

desenvolvimento dessas novas nações tardias pode ser de grande ajuda.

Reconhecendo à língua uma função ampliada, que, na acepção da Linguística

Sistêmico-Funcional, extrapola o contexto da comunicação e assume também, e não só,

funções de representação (metafunção ideacional), de posicionamento/avaliatividade

(metafunção interpessoal) e de formalidade textual (metafunção textual), o discurso de

vinculação entre língua e identidade nacional amplia seus significados.

Debeljak (2004: 6) dá um bom exemplo dessa função ampliada da língua ao afirmar

que, em alguma medida, os limites estabelecidos pela língua por ele falada definem os limites

do mundo em que habita, retomando, assim, o pensamento de Wittgenstein (1961: 114): “Os

limites da minha linguagem significa os limites do meu mundo”. Apoiando-se na associação

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A Palavra como Alicerce da Nação

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entre a língua e uma determinada concepção de mundo que lhe estaria intrinsecamente

vinculada, ideia desenvolvida especialmente a partir de 1930, com as proposições de Sapir e

Whorf, o autor prossegue:

I am not talking merely about the extent o my linguistic skills. I am speaking, rather, of the whole symbolic, mental, and social experience deposited in the layers of a nation’s historical existence and collective mentality. Individuals absorb the collective mentality through language, which is not merely some mechanical means of communication but, first and foremost, the encapsulation of a metaphysical worldview. And this worldview was not something I could ever fully convey to my wife, a New Yorker who was born in California.

Nesse ponto, parece importante fazer uma ressalva e distinguir entre a relação que se

estabelece entre língua e concepção de mundo, na visão de Sapir e Whorf, e entre língua e

representação de mundo, na acepção da LSF. Afirmar que, por meio da língua, são

construídas representações do mundo, não é o mesmo que afirmar que a língua carrega em si

mesma uma determinada visão de mundo. Pelo contrário, a LSF toma partido de uma versão

fraca da hipótese de Sapir-Whorf, afastando-se de uma visão determinista, incompatível tanto

com os princípios da LSF quanto com a perspectiva da construção discursiva das identidades

nacionais, adotada neste trabalho.

Ao longo da análise da introdução à coletânea de contos, cada vez mais a língua

parece assumir um caráter simbólico. Para além das funções por ela desempenhadas, mas em

razão delas, ela se transforma aos poucos numa espécie de insígnia nacional. Retomando o

viés da construção discursiva das identidades nacionais, essa língua-símbolo surge como um

recurso poderoso nesse processo. Nesse sentido, parece razoável supor que o discurso

identitário esloveno talvez não seja de mera repetição. Embora a relação entre língua e

identidade seja reiterada e intensificada, nos moldes dos discursos identitários do século XIX,

há aqui uma perspectiva temporal que não pode ser afastada. O discurso esloveno de

identidade nacional está no passado. A relação que se estabelece entre essa língua-símbolo e

essa literatura-mito refere-se de forma mais contundente ao despertar de uma consciência

nacional, do que à identidade eslovena de hoje. Em resumo, o reconhecimento, mesmo que

parcial, do papel simbólico da língua permite que sejam atribuídos novos significados ao

antigo discurso e, simultaneamente, valoriza o caráter imaginado da ideia da nação e a

perspectiva da construção discursiva.

A Eslovênia deste início de século passou por mudanças profundas, que provocaram

impacto, inclusive, sobre a sua posição relativa no mapa do mundo, conforme destacado por

Velikonja, já referido na página 77. A independência, em 1991, seguida do longo processo de

adesão à União Europeia, concluído em 2004, representou uma grande transformação do

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Confluências: discurso, representação e identidade

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universo esloveno dentro e fora de suas fronteiras. Nesse contexto, não se pode negar que o

discurso identitário esloveno, baseado na afirmação da língua, também tenha sido afetado.

Se, em sua origem, esse discurso buscava justificar a existência de uma nação

eslovena e viabilizar, assim, o reconhecimento de um Estado independente, a partir de 1991,

alcançado tal objetivo, ele perde ao menos parte do seu significado. O Estado esloveno era

agora uma realidade. No entanto, a Eslovênia independente precisava garantir sua

sobrevivência nesse novo mundo de fronteiras redefinidas, e o caminho por ela escolhido foi

o da adesão à União Europeia. De 1991 a 2004, o discurso identitário esloveno teve que se

modificar para atender as exigências impostas por essa nova realidade. Nesse sentido, a

mudança relativa de posição da Eslovênia entre ocidente/oriente, mencionada acima, torna-se

ainda mais significativa.

Por fim, a partir de 2004, com a consolidação do processo de adesão, muda-se o

cenário mais uma vez. Nesse momento, o discurso identitário esloveno precisa se modificar

para dar conta de duas necessidades concorrentes: atribuir valor à diferença – ou seja,

valorizar a especificidade e riqueza de uma certa cultura nacional – e promover a identidade –

em outras palavras, promover a efetiva integração da Eslovênia no universo europeu.

A rigor, parte dos desafios enfrentados pela Eslovênia nesse quesito são partilhados

pela maioria dos países que hoje fazem parte da União Européia. O papel da língua nacional

num ambiente de multiplicidade linguística, de disseminação das chamadas línguas de

comunicação global – onde se apregoa a perspectiva econômica das línguas e a importância

delas na preservação de uma das grandes riquezas e diferenciais da Europa, a diversidade

cultural –, vem sendo questionado e reavaliado.

Os desafios do século XXI: os riscos de uma crise identitária

Num universo de atuação ampliado em função do processo de globalização e do

desenvolvimento dos meios e das tecnologias de comunicação, a típica função de

comunicação das línguas merece ser reavaliada. A língua que permite a comunicação no

interior de um dado grupo social ou mesmo, pensando nas línguas nacionais, no interior de

um dado país, não necessariamente cumprirá essa mesma função nesse novo cenário.

Com exceção das chamadas línguas globais, que, em razão de uma série de fatores que

aqui não serão abordados, permitem a comunicação entre um número alargado de pessoas,

independentemente de suas respectivas nacionalidades, as línguas nacionais têm um campo

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A Palavra como Alicerce da Nação

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bastante restrito. No caso do esloveno, falado por algo em torno de 2 ou 2,5 milhões de

pessoas, essa realidade é ainda mais contundente. A língua que une essa comunidade

representa, ao mesmo tempo, uma barreira de acesso ao mundo além fronteiras e vice-versa.

Levando-se em conta a estreita associação entre língua e identidade nacional no caso

esloveno, é possível ter uma ideia dos conflitos que decorrem dessa situação. Se a língua

nacional é fator de identidade, também é, ao mesmo tempo, obstáculo para a

internacionalização, em função do reduzido número de falantes e dos empecilhos à

comunicação num cenário ampliado, conforme refere Kmecl (2005: 74):

(…) but the Slovene sensitivity is so much greater because Slovenes have always regarded their language and its use as a vulnerable point and one of the main ramparts of their existence (in the sense of Levstik’s contention that when you take away language from a nation you have deprived it of everything and also, of course, erased the historic memory of the endless tortuous efforts invested in its establishment and preservation).

Essa tensão entre preservar a língua eslovena e ao mesmo tempo promover a

internacionalização do país produz efeitos. Um bom exemplo pode ser encontrado no âmbito

acadêmico, que parece servir de arena para o embate entre a língua nacional e uma língua

global, neste caso, a língua inglesa. Tal embate é fortemente marcado pelo discurso de

afirmação nacional, como facilmente se apreende a partir da leitura da seguinte afirmação de

Kmecl (2005: 73-74):

Even today, the whole technical field exhibits a dual atitude to linguistic issues: with the meticulous and enthusiastic compiling of specialist language (for example by Albert Struna) contrasting with a considerable resistance to Slovene in science and at the university, now with the justification that the international language of science is English. The linguistic Anglo-globalism of te late 20th century has spread from the technical field to other academic areas, even into the so-called national or national identification sciences (history, Karst studies, etc.), where it is, with regard to motivation, very hard to differentiate between national defeatism, lack of linguistic creativity or laziness on the one hand and real communicational needs on the other.

A questão é como proteger, valorizar e preservar a língua eslovena sem promover uma

espécie de clausura nacional. O risco de isolamento torna-se ainda mais crítico em se tratando

de um país extremamente jovem, com pouco mais de 20 anos de existência oficialmente

reconhecida, e reduzida visibilidade no cenário internacional – desconhecimento, aliás,

pressuposto pelos autores da introdução aqui analisada e não só (vd. Debeljak, 2004, e Gow e

Carmichael, 2000).

A Eslovênia parece viver o dilema de preservar sua língua – e a identidade nacional a

ela atrelada – e abrir mão dela em nome da visibilidade necessária para existir. Se, no início

da sua história, a estratégia de sobrevivência eslovena passava pela invisibilidade e pela

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Confluências: discurso, representação e identidade

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capacidade de mimetização, agora a situação parece ter se invertido: a estratégia atual de

sobrevivência eslovena passa por ganhar visibilidade no cenário internacional e por

reassegurar a exclusividade e riqueza de sua cultura.

Com a adesão à União Europeia, essa preocupação é redobrada. No cenário europeu,

marcado pelo multilinguismo e por uma não necessariamente saudável “competição” entre

línguas nacionais, a Eslovênia mais uma vez precisa de uma estratégia de integração. A

possibilidade de comunicação, troca, contato para disseminação de conhecimento, pessoas,

bens e serviços passa pelo domínio de uma língua global, entre as quais o inglês se destaca.

Nesse contexto, o discurso identitário esloveno de afirmação da língua é posto em causa como

destacam Gow e Carmichael (2000: 9-10):

For the Slovenes this is ironic: they had adapted and protected their identity through language and culture over the centuries; yet it was at the point where a state had come into being as titular repository of this identity that these faced their biggest test as Slovenia sought to balance its modern and conservative characteristics in order to deal with European, international and global demands of openness and integration.

O desafio atual da Eslovênia passa por conciliar sua identidade nacional – fortemente

identificada com a existência de uma língua nacional e da cultura a ela associada – com o

processo de internacionalização e de integração européia. Para se ter uma ideia das

proporções desse desafio e do longo caminho que ainda precisa ser percorrido, basta destacar

a autodescrição dos eslovenos, realizada por Debeljak (2004: 94-95), em tom irônico e

provocativo:

We, who came from a region of blurs on the map, the birthplace of tribal consciousness and fanatic hatred, the site of Ottoman backwardness and Byzantine corruption, the home of turbulent primitive passions and gripping mythical stories – we present a disturbing figure wherever we turn up.

Síntese

A partir da análise da introdução à coletânea de contos eslovenos, pode-se apreender o

discurso esloveno de afirmação da língua e da literatura em prol da sua identidade nacional. A

língua eslovena, e a literatura que a reinventa, é apontada como um dos principais fatores de

unidade nacional e elemento indissociável da identidade eslovena. Esse discurso, no entanto,

embora não seja novo, manifesta-se num cenário bastante distinto daquele em que surgiu. No

contexto atual, ele se reveste de novos significados e suscita outras questões.

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A Palavra como Alicerce da Nação

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Neste capítulo, o discurso identitário esloveno construído a partir do texto em análise

foi contrastado com outras referências. Do mesmo modo que, da introdução à coletânea de

contos, parecem surgir duas literaturas – uma mitificada e outra a literatura propriamente dita

– o mesmo parece acontecer com a língua. Independentemente das diversas funções a ela

associadas, a língua se destaca como símbolo de uma dada comunidade, uma espécie de

símbolo nacional.

A longevidade do discurso de associação entre língua e identidade nacional, adotado

pela Eslovênia, foi objeto de reflexão, assim como os diferentes significados que tal discurso

parece assumir no contexto atual. A repetição desse mesmo discurso em face de uma

realidade tão díspar, marcada pelo processo de globalização e pela evolução das tecnologias e

meios de comunicação, transforma o discurso inicial.

A necessidade de conquistar espaço no cenário global, associada ao esforço de

integração decorrente da adesão da Eslovênia à União Europeia, produzem significativo

impacto sobre a questão da proteção e preservação da língua eslovena. A língua, tão cara ao

projeto nacional, agora parece surgir como obstáculo à consecução dos objetivos atuais. O

equilíbrio entre a preservação da identidade eslovena e a efetiva internacionalização do país

passa pela redefinição do seu discurso sobre a língua.

Em resumo, embora o discurso identitário esloveno pareça repetir discursos antigos,

ele assume nova significação pelo simples fato de ser afirmado num novo contexto. Por esse

mesmo motivo, enfrenta também novos desafios, que passam pela disputa com as chamadas

línguas globais e pela necessidade de atender as exigências de internacionalização e de

integração, especialmente no contexto Europeu.

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Conclusão

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No discurso esloveno de construção de uma identidade nacional, a afirmação e a

valorização da língua e da literatura – assim como da cultura associada a elas – desempenham

papel essencial. Embora tal discurso não seja exclusivo da Eslovênia, não se pode negar sua

força e intensidade, que parecem extrapolar o uso corrente dessa relação.

O texto analisado nesta Tese é um bom exemplo do modo como esse discurso permeia a

vida social e se reafirma incessantemente. Trata-se de um texto de divulgação internacional,

escrito em língua inglesa, que se propõe a apresentar a literatura produzida por autores

eslovenos entre 1990 e 2005, ou seja, num período decisivo para a história nacional. A opção

pela sua análise, entre outras escolhas possíveis, decorreu precisamente da possibilidade de ele

permitir várias e distintas leituras. Ao lado da afirmação categórica da importância da língua e

da literatura no despertar da consciência eslovena e no processo de emancipação nacional,

coexistem outras narrativas que constroem essa mesma representação, porém de forma menos

evidente. Esses discursos foram explicitados ao longo dos capítulos 3 e 4. Apenas para ilustrar

tal afirmação, veja-se a insistência na redundância do uso do modificador slovene,

especialmente associado a núcleos da categoria Língua, ao longo de um texto que trata única e

exclusivamente da literatura eslovena.

No capítulo 1, a partir de uma breve perspectiva histórica sobre os nacionalismos, foram

destacadas as caracterizações atuais que defendem o caráter inventivo/imaginado da nação.

Nesse sentido, as teorias da segunda metade do século XX, especialmente a partir dos trabalhos

de Gellner (1964, 1983), Anderson (1983) e Hobsbawm (1983, 1990), representam uma ruptura

em relação aos conceitos do passado. Independentemente de se defender ou não a ideia de que

os nacionalismos teriam chegado ao fim, importa reconhecer essa mundança de rumos e

reavaliar o papel dos nacionalismos na atualidade – assim como, na abordagem definida neste

ensaio, avaliar o papel da afirmação da língua nesse contexto.

No capítulo 2, explicitou-se a opção pelo processo de construção discursiva das

identidades, o que implica o entendimento de que estas se constroem repetida e

incessantemente, pela via do discurso. Afastou-se, assim, o caráter essencialista,

frequentemente associado à caracterização das identidades, especialmente as nacionais. A

filiação deste ensaio à perspectiva da análise do discurso e, em especial, a opção pela

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metodologia e pelas ferramentas oferecidas pela Linguística Sistêmico-Funcional também

foram explicitadas.

No capítulo 3, teve início a análise propriamente dita do texto, complementada no

capítulo seguinte. Foram privilegiados os critérios associados a questões de textualização. Em

primeiro lugar, procurou-se identificar as estratégias de abordagem e apresentação adotadas

pelos autores. Num jogo de aproximação e afastamento, os recursos utilizados para criar

empatia com o leitor e, ao mesmo tempo, imprimir credibilidade ao texto foram explorados. A

seguir, considerou-se a opção de apresentação da Eslovênia a partir de coordenadas

geográficas, que parece refletir as preocupações do país com sua posição no mapa do mundo e

seu esforço de afastamento do oriente – e, com ele, do seu passado comunista – e de

aproximação com o ocidente. Por fim, o texto sob análise foi descrito em função de sua

organização e fragmentação em blocos, levando-se em conta os aspectos históricos relevantes e

as personagens destacadas.

No capítulo 4, prosseguiu-se com a análise da introdução à coletânea de contos, mas,

dessa vez, os critérios utilizados recaíram sobre aspectos de representação. A partir da

identificação das palavras que surgiram com mais frequência, procurou-se determinar os

diferentes significados que estas imprimem ao texto. Dos três termos recorrentes, dois

classificam-se como adjetivos – slovene e literary – e um como substantivo - literature. A

análise dos grupos nominais dos quais tais palavras fazem parte serviu de enquadramento para

esta reflexão. A seguir, procurou-se identificar o papel desempenhado pela ideia de nação e

pelo conceito de literatura por meio da representação dos atores sociais. Com a aplicação do

critério de agenciação, foram identificadas as orações em que tais palavras/entidades

assumiram o papel de protagonistas. Por fim, procurou-se contabilizar a incidência dos

processos relacionais e explorar a significação dos mesmos ao longo da introdução.

No capítulo 5, o discurso esloveno de afirmação e valorização da língua, com fins de

reconhecimento e justificativa de uma certa identidade nacional, foi retomado e confrontado

com os novos significados que esse discurso parece assumir na atualidade. Os desafios

resultantes da mudança de posição relativa da Eslovênia no cenário mundial – quer na condição

de país idependente, desde 1991, quer na condição de membro da União Europeia, desde 2004

– apontam para a necessidade de se repensar esse discurso.

A partir da análise da introdução à coletânea de contos, pode-se perceber o modo como

a questão nacional está arraigada ao discurso identitário esloveno e a sua grande relevância. Tal

fato condiz com o histórico de desenvolvimento da Eslovênia, que culmina com sua

independência recém-adquirida – afinal, vinte anos representam apenas um instante na história

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de um país. Não se trata apenas de constastar a forte associação entre a afirmação da língua e da

literatura eslovenas e o processo de construção discursiva de sua identidade, mas também de se

perceber a importância da questão nacional no contexto esloveno.

O apelo à lingua e à literatura como essência e como prova de uma identidade nacional

eslovena, apesar das semelhanças com alguns dos discursos identitários do século XIX, assume

hoje significados distintos, pois se realiza num outro contexto. Parece razoável afirmar, ao

menos, que esse dicurso resulta de escolhas diferentes, uma vez que o universo de ofertas deste

século XXI, no que se refere aos nacionalismos e aos conceitos de identidade, também é

distinto.

Cada vez mais, a língua parece assumir seu valor simbólico. Com a ampliação do

universo de atuação do ser humano, motivado em grande parte pela globalização e pela

concomitante evolução dos meios e tecnologias da comunicação, a função comunicativa da

língua, muitas vezes, acaba circunscrita a um dado território. Na maioria dos casos, ela deixa de

ser capaz de cumprir essa função nesse universo alargado. Tal fato parece, em certa medida,

realçar outras funções da língua, como o seu papel de identificação e sua capacidade de

representação, ou seja, seu valor simbólico.

O momento atual do discurso de afirmação da língua eslovena parece ser de impasse,

como exemplifica a tensão que se estabelece entre a língua inglesa – uma língua global – e a

língua eslovena no processo de internacionalização do país, ou seja, de conquista de

visibilidade internacional e de maior integração. Nesse contexto, o discurso identitário

esloveno também é afetado, mas a tensão que se destaca agora é a estabelecida entre as visões

essencialista e construtivista das identidades nacionais. Adotando-se uma visão essencialista, o

discurso que vincula língua e identidade pode se transformar numa espécie de amarra,

convertendo-se em obstáculo à consecução dos objetivos definidos pelo país. Tal risco não se

verifica, no entanto, se a perspectiva adotada for a construtivista, o que representa mais um

incentivo a favor dessa abordagem.

Embora muito mais possa ser dito a respeito do papel desempenhado pela afirmação e

valorização da língua no processo de construção discursiva das identidades nacionais e, nesse

contexto, sobre a realidade eslovena, não se pretende ir mais longe no âmbito deste estudo.

Algumas questões, no entanto, surgem e pedem desdobramentos. Identificar e analisar os

discursos de afirmação e defesa das identidades nacionais dessas novas nações tardias pode

dizer muito sobre os contornos que os nacionalismos assumem neste século XXI. Que papel

esses nacionalismos desempenham hoje? Num contexto tão distinto do seu apogeu, no século

XIX, como essas novas nações podem se afirmar no cenário atual?

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Considerando o cenário europeu, marcado pela pluralidade de línguas e pela

necessidade de comunicação e integração internacional, que novos significados pode assumir o

discurso identitário baseado na afirmação da língua? Há viabilidade e longevidade para tais

discursos? Nesse ambiente, é possível afirmar que o prestígio associado às línguas e sua

capacidade de representação tornam-se mais importantes do que sua função comunicativa?

Outro ponto relevante diz respeito à associação entre uma língua e uma determinada

cultura nacional. Alargando, portanto, os termos dessa discussão, podemos considerar os

discursos que equacionam língua, cultura e identidade nacional. A cultura associada a um

universo linguístico pode ser compartilhada e vivenciada num outro universo, dissociado da

língua que lhe deu origem? Em outras palavras, qual é a natureza da relação que se estabelece

entre língua e cultura nacional? De que modo e em que medida essa relação participa do

processo de construção das identidades nacionais?

Neste início de século, marcado, como sempre, por novas oportunidades e vellhos

conflitos, a questão identitária nacional continua em evidência. Analisar de que maneira as

diferentes identidades nacionais são construídas pode ser de grande ajuda para promover o

diálogo e encontrar soluções pacíficas para os problemas que persistem e/ou surgem. Do

mesmo modo, compreender o papel da língua, que representa um importante recurso no

processo de construção identitário, parece ser um bom caminho para se evitar uma nova torre de

Babel.

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Referências

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Introduction

by Mitja Čander e Aleš Šteger

(Anexo 1)

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Zdravljica

France Prešeren

(Anexo 2)

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Zdravljica A Toast

1.

Prijatlji! odrodile, The vintage, friends, is over,

so trte vince nam sladkó, And here sweet wine makes, once again,

ki nam oživlja žile, Sad eyes and hearts recover

srce razjásni in oko, Puts fire into every vein.

ki utopi Drowns dull care

vse skrbi, Everywhere

v potrtih prsih up budi!

And summons hope out of despair.

2.

Komú narpred veselo To whom with acclamation

zdravico, bratje! čmo zapét'? And song shall we our first toast give?

Bog našo nam deželo, God save our land and nation

Bog živi ves slovenski svet, And all Slovenes where'er they live,

brate vse, Who own the same

kar nas je Blood and name,

sinov sloveče matere!

And who one glorious Mother claim.

3.

V sovražnike 'z oblakov Let thunder out of heaven

rodú naj naš'ga trešči gróm, Strike down and smite our wanton foe!

prost, ko je bil očakov, Now, as it once had thriven,

naprej naj bo Slovencov dom; May our dear realm in freedom grow.

naj zdrobé May fall the last

njih roké Chains of the past

si spone, ki jim še težé!

Which bind us still and hold us fast!

4.

Edinost, sreča, sprava Let peace, glad conciliation,

k nam naj nazaj se vrnejo; Come back to us throughout the land!

otrók, kar ima Slava, Towards their destination

vsi naj si v róke sežejo, Let Slavs henceforth go hand-in-hand!

de oblast Thus again

in z njo čast, Will honour reign

ko préd, spet naša bode last!

To justice pledged in our domain.

5.

Bog žívi vas Slovenke, To you, our pride past measure,

prelepe, žlahtne rožice; Our girls! Your beauty, charm and grace!

ni take je mladenke, There surely is no treasure

ko naše je krvi dekle; To equal maidens of such race.

naj sinóv Sons you'll bear,

zarod nov Who will dare

iz vas bo strah sovražnikov!

Defy our foe no matter where.

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6.

Mladenči, zdaj se pije Our hope now, our to-morrow -

zdravica vaša, vi naš up; The youths - we toast and toast with joy.

ljubezni domačije No poisonous blight or sorrow

noben naj vam ne usmŕti strup; Your love of homeland shall destroy.

ker po nas With us indeed

bode vas You're called to heed

jo sŕčno bránit klical čas!

Its summons in this hour of need.

7.

Živé naj vsi naródi, God's blessing on all nations,

ki hrepené dočakat dan, Who long and work for that bright day,

da, koder sonce hodi, When o'er earth's habitations

prepir iz svéta bo pregnan, No war, no strife shall hold its sway;

da rojak Who long to see

prost bo vsak, That all men free,

ne vrag, le sosed bo mejak!

No more shall foes, but neighbours be.

8.

Nazadnje še, prijatlji, At last to our reunion -

kozarce zase vzdignimo, To us the toast! Let it resound,

ki smo zato se zbrat'li, Since in this great communion

ker dobro v srcu mislimo; By thoughts of brotherhood we're bound

dókaj dni May joyful cheer

naj živí Ne'er disappear

vsak, kar nas dobrih je ljudi! From all good hearts now gathered here.