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A paixão pelas formas

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  • NOVOS ESTUDOS 74 MARO 2006 87

    (para Antonio Candido)

    Em 1992,o pesquisador e estudioso de cinema Carlos Augusto Calilfez uma entrevista surpreendente com Gilda de Mello e Souza sobre oltimo filme de Luchino Visconti, Conversation piece. Essa entrevista foiao ar pela TVA e teria permanecido nos arquivos da emissora no fosse aincluso nos extras do filme em formato DVD, disponvel no Brasilcomo Violncia e paixo.Graas iniciativa de Calil,os que no a conhece-ram pessoalmente e os que partilharam a companhia dela e a admiraramcomo mulher e intelectual podero rev-la em um momento encantador.

    A PAIXO PELAS FORMAS

    RESUMO

    Com foco nos livros O esprito das roupas e A idia e o figurado,este artigo procura analisar a trajetria intelectual da ensasta Gilda de Mello e Souza (1919-2005). Mostra-se como aautora mobilizou fontes diversas, sejam do mbito da histria, da sociologia, da antropologia ou da esttica, para com-por uma obra rica em pontos de vista inesperados e avessa a academicismos, adensando o foco analtico sobre os obje-tos analisados.

    PALAVRAS-CHAVE: Gilda de Mello e Souza; moda; esttica; sociologia.

    SUMMARY

    Taking the books O esprito das roupas e A idia e o figurado as aguideline, this article analyses the intellectual trajectory of Gilda de Mello e Souza (1919-2005). It shows how theauthor took advantage of a wide variety of sources, from history to sociology, from anthropology to aesthetics, to createa work full of insights and freedom of expression, and to sharpen her approach to the objects analysed.

    KEYWORDS: Gilda de Mello e Souza; fashion; aesthetics; sociology.

    Heloisa Pontes

    Gilda de Mello e Souza

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  • Sob um fundo vermelho vazado de branco, Gilda de Mello Souzadestaca-se pela beleza e elegncia. Vestida com um tailleur de tafetbranco perolado, blusa de seda da mesma cor com apliques em alto-relevo e ligeiramente transparente no colo,calando um escarpin bicolor,bege e marrom, Gilda usa como adereos um colar de prolas e brincosque intensificam o prateado dos cabelos bem penteados.Como maquia-gem, apenas o batom vermelho que irradia luz s cores discretas da ves-timenta e aviva-lhe a fisionomia.Esse elo de identidade e concordnciaque ela cria com a vestimenta e que a tornou conhecida como mulher ele-gante, alm de intelectual brilhante, reforado pelo movimento dosolhos nos momentos em que seu pensamento alcana vo e ouvimos otilintar discreto das pulseiras brancas que se movimentam pelos braose do s mos a segurana dos gestos suaves.

    De incio um pouco retrada e ligeiramente desconfortvel diante dacmera,Gilda vai ganhando a cena medida que a entrevista avana e elase torna senhora de si. Transitando com desenvoltura pela obra de Vis-conti,descortina dimenses inusitadas da personalidade do diretor e dofilme em tela. Conversation piece foi filmado em 1974, com os atoresfalando em ingls, quando Visconti j estava doente. Versa sobre umintelectual maduro e solitrio, magistralmente interpretado por BurtLancaster, que v a intimidade invadida por um grupo ruidoso que giraem torno de uma condessa riqussima e vulgar,papel que coube a SilvanaMangano. Tocado pela sinceridade da filha da condessa e pela sensibili-dade e beleza de seu jovem amante, interpretado por Helmut Berger, oprofessor ser arrastado, a contragosto, num tumulto de paixes.

    Recusando-se a sublinhar a dimenso poltica do filme,tal como res-saltada pelo entrevistador, Gilda prope outra interpretao, lem-brando-nos a posio de crtica.Toda viso que ns temos de uma obrade arte uma viso muito deformada pelo olhar do observador. Eu achoque a minha viso muito deformada pela minha personalidade e pelaminha personalidade apoltica, em muitos casos. Mas justamenteessa deformao que confere tnus interpretao que ela faz do filme.A comear pelo que descortina do ttulo, Conversation piece, aluso aognero pictrico das cenas domsticas e familiares da aristocracia, tobem captadas na pintura inglesa.Transposto para a trama do filme,sina-liza uma espcie de dilogo prolongado e aprofundado entre dois gru-pos de famlias, disparado pela intruso da condessa e seus prximosno resguardo ciosamente cultivado pelo intelectual requintado. Ogrupo de famlias que est petrificado nos quadros e,que,portanto,j foideslocado para o mundo da arte no qual se reconhece o personagemcentral e o grupo da famlia desordenada,catica e sem moral poispertence a um mundo de passagem , que invade a casa do professor.

    No conjunto da obra do diretor italiano, prossegue Gilda, este ofilme anti-herico por excelncia, cujo personagem principal, um inte-lectual de posses, colecionador de obras de arte. Nas palavras da entre-vistada, o filme trata daqueles momentos em que se sabe que algo de

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  • [1] Os trs ensaios mencionadosneste pargrafo foram includos nolivro de Gilda de Mello e Souza,A idiae o figurado (So Paulo: Duas Cida-des/Editora 34, 2005).

    [2] Partes deste artigo desenvolvemos pontos principais da apresentaoque fiz ao livro O esprito das roupas,deGilda de Mello e Souza,no seminrioAs Cincias Sociais em So Paulo:Obras Decisivas, promovido pelo

    decisivo vai ocorrer em breve e que,por isso mesmo,se forado a pas-sar de um patamar a outro,quando ento somos tomados pela rememo-rao de acontecimentos importantes da nossa vida pessoal. Em sn-tese, uma meditao final sobre uma vida que est se extinguindo. Ado diretor e a do personagem principal do filme. Marcado pelo senti-mento da morte e pela conscincia infeliz do intelectual num mundo deescolhas polticas, o professor adere a valores cada vez mais em desusono mundo atual: da maneira como recebe as visitas noo que tem deintimidade como um domnio quase sagrado.

    Noo que no s dele. tambm de Gilda de Mello e Souza e dagerao a que pertencia. Assim, talvez no seja descabido usar a leiturafulgurante de Gilda como uma pista para abordamos alguns aspectos daobra dessa ensasta extraordinria. A paixo que detecta em Viscontipelas formas da vestimenta partilhada tambm por ela, pontuandomomentos precisos e preciosos da sua produo intelectual.No caso dosfilmes do diretor italiano, ressalta Gilda, o exterior das pessoas que dado pela vestimenta como o exterior da casa que dado pela decora-o to importante quanto a narrativa.Reciprocamente dependen-tes, a linha narrativa acompanhada pela roupa das pessoas e pelamaneira de estar dentro delas,pelo comportamento.Notvel nesse sen-tido o uso que Visconti faz da vestimenta para projetar a personalidadeda condessa, interpretada por Silvana Mangano. Uma personalidade aum s tempo construda com muito bom gosto na roupa e extraordina-riamente vulgar, com uma certa baixeza no comportamento pessoal.

    Essa ateno apaixonada pelas formas da vestimenta sobressai naobra de Visconti. E tambm na de Gilda de Mello e Souza. Ela est pre-sente no primeiro trabalho acadmico de flego da autora, A moda nosculo XIX, apresentado em 1950, e no ltimo ensaio que publicou,Notas sobre Fred Astaire. Includo no livro A idia e o figurado (2005)graas iniciativa editorial do crtico literrio Augusto Massi quetambm escreveu a (excelente) orelha ,esse ensaio encerra a produode Gilda. No decorrer desses 55 anos, ela voltou de muitas maneiras,sempre com paixo e rigor, ao tema das formas e do contedo das vesti-mentas. Ora como chave para leituras renovadas da obra de escritoresbrasileiros,como no ensaio Macedo,Alencar,Machado e as roupas,de1995. Ora como pista e indcio indiretos para abordar a produo cine-matogrfica de diretores importantes, caso do artigo Variaes sobreMichelangelo Antonioni, de 1998 1.

    A MODA NO SCULO XIX VISTA DE FORMA ENVIESADA 2

    Gilda tinha 31 anos quando escreveu A moda no sculo XIX: ensaio desociologia esttica. Apresentado em 1950 sob a forma de tese de douto-rado, defendida na ento Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras(FFCL) da Universidade de So Paulo (USP), sob a orientao de RogerBastide (de quem a autora era assistente na cadeira de Sociologia I), o

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  • Programa de Ps-Graduao em So-ciologia da USP, em junho de 2001.Agradeo aos organizadores do even-to,Leopoldo Waizbort,Luiz Jackson eFernando Pinheiro, pelo convite epela oportunidade de discutir o livroem pauta na presena da autora.Nesse evento, Gilda fez um depoi-mento fascinante sobre o objeto deseu doutorado e sobre sua relaocom Roger Bastide.Agradeo ainda,eespecialmente, a Mariza Corra, peloincentivo para transformar essa falaem texto (publicado nos CadernosPagu, no 22, 2003) e a Sergio Micelipela leitura aguda, como sempre.

    [3] Cf. Souza, Gilda de Mello e. Oesprito das roupas, p. 7

    [4] No foi por acaso e muito menospor razes intrnsecas s qualidades,inegveis, da tese de doutorado deFlorestan que ele ganhou a guerra(quer como objeto de estudo, quercomo posio institucional) travadanaquele momento na Faculdade deFilosofia, Cincias e Letras de formas vezes veladas, outras nem tanto,para obter os direitos de sucesso nalinhagem acadmica instauradapelos professores estrangeiros. Coma volta de Bastide para a Frana, em1954, Florestan se tornaria o her-deiro da cadeira onde Gilda traba-lhara at ento como assistente e quese converteria, graas sua atuao,em verdadeira instituio dentro dainstituio, responsvel pela criaoda chamada Escola Paulista de Socio-logia. Para detalhamento maior dacarreira de Florestan e de Gilda (bemcomo de outros integrantes do crculo

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    trabalho e a histria da sua recepo do pano para manga.Sobretudo se,no lugar de nos atermos apenas (o que no pouco) apreenso porme-norizada da anlise sutilssima e inovadora que a autora faz da moda,ensaiarmos uma leitura enviesada do livro com o intuito de entrela-lo situao mais geral das mulheres que, como Gilda, se profissionaliza-ram na Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras.

    Simblica e metonimicamente associada ao universo feminino, amoda ganhou nas mos de Gilda um tratamento esttico e sociolgicopreciso que, se estava em conformidade com o esprito cientficovigente na poca na Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras, dele des-toava e se distanciava em muitos aspectos. A comear pela forma deexposio do trabalho. Ensaio sociolgico, sem dvida. Redigido,porm, com aquela prosa apurada de quem domina as manhas daescrita, num momento em que escrever bem deixara de ser uma dasqualidades essenciais na atribuio de valor intelectual de um trabalhoacadmico. Se hoje o estilo de exposio, a mescla da visada esttica esociolgica mobilizada para dar conta de um objeto complexo e multifa-cetado como a moda,as fontes utilizadas (fotografias,gravuras,pinturase trechos de romances e crnicas do sculo XIX) e,sobretudo,a argcia edesenvoltura da autora no andamento da anlise, conferem ao trabalhofrescor e atualidade surpreendentes,nem sempre esse conjunto de fato-res foi ajuizado dessa maneira. Prova disso a receptividade discreta noincio do decnio de 1950.

    Concebido como um ensaio de sociologia esttica, boca pequena otema da tese de Gilda foi considerado como ftil. Coisa de mulher. Nahierarquia acadmica e cientfica da poca, que presidia tanto a escolhados objetos de estudo como a forma de exposio e explicao dos mes-mos,a tese de Gilda constituiu uma espcie de desvio em relao s nor-mas predominantes3.Profana e plebia,a moda,na escala de valor elegitimidade atribudos por esse sistema classificatrio, encontrava-seem uma posio diametralmente oposta ao tema da guerra,por exemplo,que Florestan Fernandes escolhera para a tese de doutorado, atividademasculina por excelncia, sagrada e nobre4.

    Sinal eloqente de um duplo constrangimento. De um lado, daassimetria difusa vivida pelas mulheres, no plano das relaes intelec-tuais e institucionais que estavam se construindo dentro e fora da uni-versidade onde Gilda se formara em 1939 e se profissionalizara comoprofessora universitria. De outro lado, do constrangimento decor-rente da concepo de sociologia dominante na poca.Animada por umesprito cientificista,afeita idia positivista de pesquisa como sin-nimo de anlise sistemtica da realidade,e encarnada de forma exem-plar na figura de Florestan Fernandes, ela expulsou de seus horizon-tes, quando no de seus espaos de atuao institucional e de seuuniverso discursivo, o ensaio e as dimenses estticas dos fenmenossociais. A transferncia de Gilda de Mello e Souza para a rea de Est-tica e a de Florestan para a cadeira de Sociologia I, no ano de 1954, bem

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  • de juventude da autora), ver o meulivro Destinos mistos: os crticos doGrupo Clima em So Paulo, 1940-68(So Paulo, Companhia das Letras,1998). Para uma anlise circunstan-ciada da trajetria e da obra de Flores-tan, ver: Arruda, Maria Arminda doNascimento. A sociologia no Brasil:Florestan Fernandes e a escola pau-lista. In: Miceli, Sergio (org.). Hist-ria das cincias sociais no Brasil, SoPaulo: Sumar/Fapesp, 1995, vol. 2,pp.107-231; Arruda, Maria Armindado Nascimento. Metrpole e cultura:So Paulo no meio sculo XX. Bauru:Edusc, 2001; e Sylvia Garcia, DestinoImpar, So Paulo, Editora 34, 2002.Sobre a relao de Florestan Fernan-des e Roger Bastide e as implicaesna obra de ambos, consultar Peixoto,Fernanda. Dilogos brasileiros. Umaanlise da obra de Roger Bastide. SoPaulo: Edusp, 2000.

    [5] As implicaes dessa oposiona formatao das cincias sociais ena vida intelectual brasileira, porextrapolarem o mbito dessa institui-o, vm despertando a ateno dospesquisadores nos ltimos anos.Nessa direo, conferir os trabalhosde Jackson, Luiz. A tradio esquecida.Os parceiros do Rio Bonito e a sociologiade Antonio Candido. Belo Horizonte:Editora da UFMG,2002;Ramassote,Rodrigo. Antonio Candido e a constru-o social da crtica literria moderna naUSP. So Carlos, monografia de con-cluso de curso apresentada Uni-versidade Federal de So Carlos,2003;e Schwarz,Roberto.Saudaoa Antonio Candido.In:Antonio Can-dido & Roberto Schwarz: a homenagemna Unicamp, Campinas, Editora daUnicamp, 1988, pp. 9-23. LeopoldoWaizbort, em trabalho ainda inditocentrado na anlise densa e bastantesofisticada da obra literria de Anto-nio Candido,achou por bem no dei-xar de lado as implicaes produzidaspela concepo de sociologia no tra-balho e na carreira do autor. Mesmono sendo o ponto central da anlisede Waizbort, essa questo aparecesob a forma de um (certeiro) excurso.A seu ver,para entendermos a posioe a situao de Antonio Candido nosdomnios da cultura e do saber, essencial compreender o que eleentende por crtica, literatura e hist-ria literria e tambm por sociologia.Seu trabalho s , ou deixa de ser,sociologia frente a uma certa sociolo-gia, o que vale dizer que os domnioss ganham identidade contrastiva-

    como a mudana de Antonio Candido,em 1958,para Assis,aps dezes-seis anos na cadeira de Sociologia II (antes da sua volta em 1960 para aUniversidade de So Paulo, como professor de literatura e no mais desociologia) so indcios extremamente significativos da oposio entrecincia e cultura que se estabelecera, na poca, na Faculdade de Filoso-fia, Cincias e Letras da USP5.

    UM ESPRITO FEMININO INQUIETO

    Publicada,de incio,numa revista cientfica habituada a receber cola-borao muito diversa, a tese de Gilda teve que esperar mais de mais detrinta anos para vir a pblico sob forma de livro (numa edio capri-chada,com o sugestivo ttulo de O esprito das roupas) e para ganhar o reco-nhecimento intelectual devido6. Em parte, de um lado como resultadoda ampliao de temas e objetos considerados legtimos no campo dascincias humanas, promovida em larga medida pela antropologia, pelasociologia da cultura e pela histria das mentalidades. De outro lado,pela constituio de um novo pblico de leitores interessados na modacomo assunto profissional ou objeto de estudos acadmicos.Esse duplomovimento,somado formao do campo da moda no Brasil,com tudoque ele implica (estilistas, modelos, fotgrafos, revistas, crticos, cursossuperiores de moda,estudiosos do assunto),tornou possvel a absoroe a legitimao, numa escala mais ampla, do tema estudado por Gilda7.Falar de moda, discutir a moda e escrever sobre a moda, aparentementedeixou de ser assunto intelectualmente frvolo. E, para muitos, viroumoda. Da tambm a clarividncia do trabalho de Gilda. No para pro-mover uma recepo congelada e acrtica do tema,mas para nos ajudar amirar, com olhos bem abertos, toda sorte de salamaleques discursivos,simplificaes analticas e exibicionismos mundanos que costumamrondar o universo dos produtores e dos consumidores da moda.

    Para analisar a moda como fenmeno esttico e sociolgico, Gildaescolheu o sculo XIX, por razes bem fundamentadas. Primeiro por-que,no sendo um fenmeno universal,a moda foi por muito tempo umdomnio exclusivo da sociedade ocidental, aguado a partir do Renasci-mento com a expanso das cidades e a organizao das cortes8 eamplamente revigorado no sculo XIX. Oposta aos costumes, depen-dente de um sentimento especial de aprovao coletiva, indissocivel dasociabilidade urbana,do desejo de competir e do hbito de imitar,ela vaise alastrar num ritmo vertiginoso,e no por acaso,no sculo XIX. nessemomento que a moda se espalha por todas as camadas e a competio,ferindo-se a todos os momentos,na rua,no passeio,nas visitas,nas esta-es de gua, acelera a variao dos estilos, que mudam em espaos detempo cada vez mais breves (p. 21).

    tambm nesse sculo que a diferenciao entre os sexos, expressae experimentada com o auxlio das roupas,dos adornos,dos cosmticose de tudo o mais que compe a plasticidade simblica da moda, atinge

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  • mente, mediante processos de auto-identificaes e autodiferenciaesmtuas. Cf. Waizbort, Leopoldo. OAsmodeu dialtico. So Paulo, tese delivre-docncia apresentada Univer-sidade de So Paulo, 2003, p. 65.

    [6] Cf. Souza, Gilda de Mello e. Oesprito das roupas: a moda no sculoXIX. So Paulo: Companhia dasLetras, 1987. O prefcio de AlexandreEullio ao livro, intitulado Panopara manga e o ensaio de JoaquimAlves de Aguiar, Anotaes mar-gem de um belo livro (Literatura eSociedade,no 4,1999,pp.129-40) so,salvo engano, os textos mais consis-tentes produzidos sobre o livro deGilda no mbito da crtica literria.

    [7] Talvez seja mais que uma simplescoincidncia que O esprito das roupastenha sido publicado como livro nomesmo ano em que se fundou o pri-meiro curso universitrio de moda nopas, instalado na Faculdade SantaMarcelina em So Paulo, em 1987.

    [8] Em O olhar renascente, o historia-dor da arte Michael Baxandall mostra,entre muitas outras coisas, que a ado-o,no sculo XV,da cor preta nas ves-timentas dos integrantes das cortesfoi simultnea ruptura com o dou-rado no plano da pintura.A razo paraadotar o preto sbrio, longe de poderser encontrada em pretensas qualida-des internas de cor ou tecido, explica-se por critrios eminentementesociais.Isto ,pelo fato de ter sido ado-tado pela elite de Npoles, que tinhacomo centro de sociabilidade a cortedo rei Afonso. Para se diferenciar dosnovos-ricos da poca, essa elite criouformas de ostentar a riqueza, avessas,por exemplo, exibio de brocados,cores fortes ou ouro nos trajes.O mustda poca em termos de vestimenta erao corte enviesado. O desperdcio detecido provocado por esse tipo decorte tornou-se um smbolo muitomais eloqente de distino social doque o uso de tecidos esplendorosos edourados, que tinham sido moda atento. Ao relacionar a escolha da cor,dos trajes e dos cortes das roupas comoutras dimenses centrais da culturaitaliana da poca, Baxandall se munede instrumentos analticos poderosospara destrinchar o sistema de percep-o visual no perodo. Cf. Baxandall,Michael. O olhar renascente: pintura eexperincia social na Renascena. Rio deJaneiro:Paz e Terra,1991.Outro traba-lho importante nessa direo o cls-

    patamares inusitados, inseparveis, por sua vez, da competio entre asclasses e fraes de classe. Com o advento da burguesia, da democracia(que anulou os privilgios de sangue e eliminou as leis sunturias notocante ao uso de certos trajes, tecidos e cores que at ento tinham sidoprivilgio e apangio das elites aristocrticas), de novos espaos desociabilidade burguesa (como o teatro, a pera, as festas, os sales), dosgrandes magazins (que ajudaram a introduzir a mulher burguesa noespao pblico das cidades), da voga dos grandes costureiros e damquina de costura (que tornou possvel a reproduo em srie e apopularizao das vestimentas), a moda ganha relevncia especial e, sebem analisada, funciona como um poderoso meio de apreenso asdimenses sutis e cruciais que conformam o jogo fascinante e impie-doso das interaes sociais.

    Isso e muito mais revelado no livro de Gilda. Para alm dasevidncias histricas e sociolgicas que pesaram na escolha do sculoXIX, outras, de ordem metodolgica, foram decisivas para dar sustenta-o trama analtica do trabalho. No entender da autora, voltar-se paraum sculo distante do seu, com o propsito de entender um fenmenoto intricado e multifacetado como a moda, a maneira mais acertada de,sem abrir mo da anlise de nenhuma das partes, conceder atenomaior s ligaes da moda com a estrutura social. Cclica, volvel e ple-bia,sujeita s vezes a aberrantes demonstraes de mau gosto,a moda,quando vista de longe,com o auxlio do afastamento no tempo,mostra-nos at onde a aceitao ou rejeio dos valores estticos depende dascondies sociais (p. 23).

    Longe de uma petio de princpio sociolgico, o passo mais acer-tado para escarafunchar a moda a partir de sua trplice e simultnea:est-tica,psicolgica e social.Mas antes disso preciso destacar as fontes uti-lizadas pela autora,arremate final para alinhavar a escolha do sculo XIX.Fotografias, pranchas coloridas de moda, documentao pictrica, deum lado; crnicas de jornal, estudos sobre a moda, testemunhos dosromancistas,de outro.Tais so as fontes de informao privilegiadas.Asprimeiras, por fornecerem um registro visual seguro da moda naquelesculo, eliminam uma srie de dificuldades enfrentadas pelos estudio-sos que desbravaram o assunto nos sculos anteriores, quando, naausncia das pranchas e da fotografia, podiam fiar-se apenas nas pintu-ras, nas gravuras, nos textos escritos e nas bonecas de moda comofonte de pesquisa9.Com a fotografia,as incertezas quanto veracidadedas vestimentas estampadas em quadros e gravuras se invenes doartista ou retrato fiel das roupas usadas na poca so postas de lado.As segundas fontes, escritas por estudiosos do assunto, como Spencer,Tarde e Simmel (responsveis pelos estudos sociolgicos mais impor-tantes sobre a moda produzidos no sculo XIX), trazem o estado da arteda questo para dentro do livro. No sob a forma das costumeiras dis-cusses bibliogrficas que acompanham os trabalhos escritos original-mente como teses de doutorado, e sim como fios discretos que a autora

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  • sico livro de Jacob Burckhardt, A cul-tura do renascimento na Itlia (SoPaulo: Companhia das Letras, 1991),publicado em 1860 e citado por Gildana edio inglesa de 1944.

    [9] As bonecas de moda se-gundo Maria do Carmo Rainho (cujotrabalho tem uma dvida intelectualexpressa para com o livro de Gilda) eram manequins de cera, de madeiraou porcelana,dos quais se trocavam asvestimentas de acordo com a estao.Nas cortes, prncipes e princesastinham por hbito fazer o intercmbiodos modelos de roupas vestidas pormeio dessas bonecas. Ao longo dosculo XVIII, entretanto, as bonecasde moda vo perdendo a utilidade apartir do aparecimento de gravuraspublicadas nos jornais, que logo setornam uma fonte de informaoessencial. Mais econmicas e commaior mobilidade graas multi-plicao das tipografias as gravurasde moda rapidamente atingem umpblico mais amplo, que ia alm doscrculos aristocrticos. Cf. Rainho,Maria do Carmo. A cidade e a moda.Braslia,Editorada UnB,2002,p.71.

    vai desfiando no andamento da anlise, cujo acerto deriva tambm damaneira como mobiliza o testemunho dos romancistas,a fonte indiretamais reveladora do assunto.

    Balzac, Proust e os nossos romancistas Alencar, Macedo e Machadocomparecem em alguns dos momentos de maior acuidade analtica deGilda. Atentos significao expressiva dos detalhes, esses escritorescaptaram, com requinte descritivo inigualvel, o dimorfismo estticoque tomou conta do sculo XIX no domnio da moda e do vesturio. Adiferena entre os sexos, materializando-se nas vestimentas, aparecesob duas formas distintas: X para as mulheres, com a cintura compri-mida por espartilhos,e H para os homens,com o terno de fazenda sperae cores sbrias.Distintas e complementares,as formas;distintos e com-plementares os sexos que as trajam. O modelo o casal burgus. Oencanto feminino e a determinao masculina no se excluem mutua-mente: na verdade, so parcelas que se somam na contabilidade astu-ciosa da ascenso (p. 83). Enquanto os homens se cobrem de preto, asmulheres se enredam em cores, sedas, rendas, babados, fricotes, laaro-tes, xales e decotes. Com os corpos, movimentos e vestimentas, ao con-trariar qualquer racionalidade de ordem prtica, elas mostram literal-mente quanto o domnio da moda afeito s intempries do simblicoe aos imperativos das injunes sociais.

    Exercendo uma verdadeira volpia de posse distncia (p. 74),derramando-se na descrio dos trajes femininos,contendo-se no tratoda indumentria masculina, os escritores, por sua vez, captam melhorque ningum, nos meios elegantes, o acordo da matria com a forma, daroupa com o movimento, enfim, a perfeita simbiose em que a mulhervive com a moda (p. 24). Perfeita porque plenamente enlaada nosconstrangimentos sociais e psicolgicos derivados do duplo padro demoralidade que regula a conduta de homens e mulheres na poca.De umlado,uma moral contratual,um cdigo de honra originado nos contra-tos da vida pblica,comercial,poltica e das atividades profissionais;deoutro, uma moral feminina, relacionada com a pessoa e os hbitos docorpo e ditada por um nico objetivo,agradar aos homens (p.58).Car-reira,nem pensar.Casar era a soluo:nica sada para evitar a condena-o e o desprestgio social. Nesse contexto burgus, o casamento eraento uma espcie de favor que o homem conferia mulher,o nico meiode adquirir status econmico e social, pois aquela que no se casava eraa mulher fracassada e tinha de se conformar vida cinzenta de soltei-rona, acompanhando a me s visitas, entregando-se aos bordadosinfindveis, educao dos sobrinhos (p. 90).

    Restrita aos interesses domsticos, as mulheres se aplicavam comesmero no trato com as roupas. Desde muito cedo. Pois sabiam que agraa, o encanto, a elegncia e o frescor eram dos poucos recursos de quedispunham para conquistar um lugar ao sol. Se o casamento era a meta,ao ser contrado, longe de atenuar, ampliava o interesse delas pelas arti-manhas da vestimenta.Uma vez que a graa de trazer o vestido,de exibir

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  • [10] Sobre o amplo interesse intelec-tual de Bastide,ver Fernanda Peixoto,Dilogos brasileiros.

    [11] Trechos de resenha que Flores-tan Fernandes publicou na revistaAnhembi (dez. 1952, no 25, pp. 139-40, realces da autora deste artigo).Devo a Luis Jackson a indicao dessaresenha.

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    no baile os braos e os ombros, fazendo-os melhores por meio de atitu-des e gestos escolhidos [era] simtrica ao talento e ambio, exigidospela carreira [do marido] (p.83).Desse viver nos olhos dos outros queas roupas, os adornos, os cosmticos retiravam a fora e a significao.Nesse mostrar-se recusando-se, as mulheres eram especialistas, ten-tando tirar o mximo partido do mnimo a que estavam confinadas emdecorrncia dos imperativos implacveis da dupla moralidade vigente nainterao entre os sexos.

    Disso do testemunho os escritores que Gilda utiliza no decorrer daanlise. Como Machado de Assis, por exemplo. Citando uma passagemadmirvel de uma crnica do escritor, centrada na anlise do comporta-mento de nossas elites no Segundo Reinado, Gilda sublinha a tramaintricada de competio. Nela cada um de ns precisa acrescentar svitrias pessoais, duramente conquistadas que [Machado] chamacom ironia as glrias de plena propriedade as glrias deemprstimo,isto ,as vitrias dos muitos prximos,que se refletem emns (p. 83). E arremata a autora: a anlise dessa curiosa contaminaode prestgio,em que o triunfo da mulher repercute vivamente na posiomasculina e vice-versa ,representa,alis,um dos fulcros principaisdo romance do sculo XIX, tanto na Europa como no Brasil (p. 83).

    A intimidade de Gilda com o universo literrio adquirida desdemuito cedo, como leitora compenetrada e reforada por meio da longa edecisiva influncia de seu primo em segundo grau,Mrio de Andrade seria revigorada, no perodo em que escreveu a tese, pela convivncia etroca intelectual intensa com o marido, Antonio Candido (na pocatambm ele s voltas com o sculo XIX e com a elaborao de Formao daliteratura brasileira) e pela orientao que recebera de Roger Bastide,socilogo interessado em todas as manifestaes simblicas da vidasocial, entre elas as artes e a literatura10. Advm da um dos trunfos deGilda, que tanto incomodou Florestan Fernandes. Na resenha quepublicou em 1952 na revista Anhembi,ele destaca de incio a qualidade datese de Gilda, para em seguida lamentar a forma de exposio.

    Tal como se apresenta, o trabalho da Dra. Gilda de Mello e Souza reveladuas coisas.Primeiro:o talento e a extraordinria sensibilidade da autora paraa investigao de um fenmeno to complexo,por causa das diversas facetas deque pode ser encarado e explicado.Segundo,um seguro conhecimento do campode sua especializao,em um nvel que at pouco tempo era raro no Brasil.Essasqualidades se refletem na composio do trabalho,tornando a sua leitura muitoamena e instrutiva. Poder-se-ia lamentar, porm, a explorao abusivada liberdade de expresso (a qual no se coaduna com a natureza deum ensaio sociolgico) e a falta de fundamentao emprica de algu-mas das explanaes mais sugestivas e importantes.11

    Vistas de hoje,as restries emitidas por Florestan em 1952 so jus-tamente o ponto alto do trabalho. De um lado, o estilo de exposio. De

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    outro,a desenvoltura com que a autora transita da sociologia para a est-tica.Valendo-se,para tanto,no s da habilidade para enlaar o testemu-nho dos escritores argumentao analtica autoral e sociolgica que d tnus ao livro,como dos olhos de lince para perscrutar as dimen-ses estticas do fenmeno em pauta. Pois tendo ligao direta com adiviso sexual e a diviso em classes, nem por isso a moda deixa de seruma forma sutil de expresso de sentimentos pessoais. Sobretudodaqueles que se ressentem da falta de espaos socialmente legitimadospara se expandir.Tal era o caso dos sentimentos da mulher burguesa (ouaspirantes a) no sculo XIX.

    Abandonada em si mesma, na ociosidade e submisso, e

    tendo a moda como nico meio lcito de expresso,a mulher atirou-se desco-berta de sua individualidade,inquieta,a cada momento insatisfeita,refazendopor si o prprio corpo,aumentando exageradamente os quadris,comprimindoa cintura, violando o movimento natural dos cabelos. Procurou em si jque no lhe sobrava outro recurso a busca do seu ser, a pesquisaatenta de sua alma. E aos poucos,como o artista que no se submete natu-reza, imps figura real uma forma fictcia,reunindo os traos esparsos numaconcordncia necessria (p. 100).

    Mostrando a complexidade de sentimentos que envolvem a moda,reconhecendo o comprometimento com as injunes sociais e admi-tindo, de sada, que a forma em larga medida sancionada pela socie-dade, Gilda no abre mo da anlise esttica. Pois, a seu ver, a moda arte sim, e de um tipo especial. Para decifr-la nessa chave necessrio aum s tempo intimidade com o objeto em pauta (a tal da simpatia socio-lgica?) e conhecimento amplo das formas simblicas expressas emdiversos suportes artsticos. Gilda tinha ambos de sobra.

    A mais viva de todas as artes, a moda tal como a pintura, a escul-tura e a arquitetura encontra na forma o seu veculo de expresso.Oumelhor, a moda forma. Valendo-se da materialidade dos tecidos, ocostureiro (ou costureira) enfrenta desafios anlogos aos dos artistasem geral, ao lidar com as seguintes dimenses estticas: forma e cor.Mas, diferentemente dos demais artistas, seu grande desafio a mobi-lidade. No por acaso uma das ltimas dificuldades a serem resolvidasna histria do vesturio. De um lado, por injunes sociais: durantemuito tempo, a roupa hirta incmoda aos olhos de hoje era sm-bolo de distino social: prova visvel, oferecida a todos, de que o por-tador,no se dedicando aos trabalhos manuais,desprezava o desemba-rao dos membros e o conforto das vestes (p. 48). De outro, porconstrangimentos internos feitura das vestimentas.Muito pano paramanga foi gasto para chegar, por exemplo, simplicidade do vestidocavado em estilo tubinho.

    Diferentemente de outras artes,a vestimenta,como mostra Gilda,sse completa no movimento.

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  • [12] Citao retirada da nota 31, docaptulo 3 do livro de Gilda, p. 229,realces adicionais da autora desteartigo.

    Arte por excelncia de compromisso, o traje no existe independente do movi-mento, pois est sujeito ao gesto, e a cada volta do corpo ou ondular dos mem-bros a figura total que se recompe, afetando novas formas e tentando novosequilbrios. Enquanto o quadro s pode ser visto de frente e a esttua nos ofe-rece sempre em sua face parada,a vestimenta vive na plenitude no s do colo-rido,mas do movimento (p. 40).

    Se assim , talvez possamos arriscar uma hiptese sobre a relaoentre arte, movimento e atrizes, apenas insinuada no trabalho de Gilda.Em nota de rodap,ela cita Simmel para reter o que convm e duvidar doque lhe parece pouco acertado:

    Em seu ensaio Cultura feminina, Simmel defende o ponto de vista de que amulher um ser unitrio por excelncia, faltando a ela essa qualidade tomasculina de manter intacta a essncia pessoal mesmo quando se dedica a umaproduo especializada,que no implica a unidade do esprito.Cada uma dasatuaes da mulher, ao contrrio, pe em jogo a personalidade total e nosepara o eu dos seus centros sentimentais. Da realizar-se plenamenteapenas nas artes do espao, como a arte teatral, onde efetua a imersointegral da personalidade toda na obra ou fenmeno artstico. Contudo pergunta-se Gilda at onde esse temperamento unitrio ser fruto defatores sociais?12

    A indagao absolutamente pertinente e ser respondida commaestria no s no restante da nota, como no decorrer do captulo empauta no aleatoriamente portador do mesmo ttulo, Cultura femi-nina, do ensaio de Simmel. Certa na observao mais geral, Gilda dei-xou de lado a hiptese mencionada acima, embora me parea repletade sentidos a equao entre sociabilidade urbana + desejo de imitaoe de distino + moda + arte do movimento + teatro + atrizes + a artedo espao. Se o teatro um dos campos de produo simblica quemais conferiram notoriedade s mulheres que dele participam na con-dio de atrizes, h algo a ser explorado no fato de as atrizes se notabi-lizarem na arte do espao e, ao mesmo tempo, na maneira desenvoltae desimpedida como portam os trajes e as vestimentas das persona-gens. Basta lembrar, para tanto, que no sculo XIX e em boa parte doXX, antes do advento e supremacia do cinema, eram as atrizes de tea-tro as principais responsveis pela difuso de novas modas. Coque-tes e plebias, elas esto para a moda assim como sua atuao noespao teatral est para o movimento que a vestimenta exige para secompletar como arte.

    Se o movimento que confere vida vestimenta , a princpio, dis-ponvel a todos pois basta usar uma roupa para que ela se movi-mente , nem todos conseguem o plus que a singulariza e diferencia

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  • [13] Conferir, nessa direo, o ensaiode Simmel,Georg.La moda.In:Sobrela aventura: ensayos filosficos. Barce-lona: Ediciones Pennsula, 1988, pp.26-55.

    os seus portadores dos demais. Isto , a elegncia, definida por Gildacomo elo de identidade e concordncia que se estabelece entre a ves-timenta e a pessoa. Claro que para adquiri-la o dinheiro ajuda, comobem sabem os novos-ricos. Mas no basta. Como sabem tambm osbem-nascidos, que transformam o aprendizado prolongado (sob aforma de habitus) da elegncia numa segunda natureza. Elegncia que,por ser visvel e estampada nos movimentos e nas roupas dos bem-nascidos e elegantes,pode ser copiada pelos que no pertencem ao cr-culo imediato dos privilegiados. Da o movimento espiralado damoda. Uma vez adotada pelos mais iguais entre os iguais (isto ,pelos distintos crculos de elite), tende a ser imitada pelos que estoabaixo (as classes mdias) e pelos muito abaixo, que, sequer che-gam a incomodar os iguais dos muito acima, mas que so um pro-blema e tanto para os que esto medianamente abaixo. Nessa buscaincessante de diferenciao, exacerbada pela vida urbana e pela demo-cracia que aboliu os privilgios de sangue, a vestimenta se torna osinal mais eficaz de inferncia direta sobre o prximo. Mas essamesma democracia que no estabelece barreiras ntidas entre as clas-ses inventa um novo suplcio de Tntalo: permite que as elites usu-fruam uma moda que a classe mdia persegue sem jamais alcanar eque os pequenos funcionrios e todos os prias sociais espiam nasvitrinas com o olhar sequioso (p. 141).

    Apreendendo a moda como objeto complexo, um todo harmo-nioso mais ou menos indissolvel,com mltiplas serventias servea estrutura social,reconcilia o conflito entre o impulso individualiza-dor de cada um de ns e o socializador, traduz uma linguagem arts-tica, exprime idias e sentimentos (p. 29) , Gilda d ao assunto adimenso espiralada que lhe prpria13. Ou seja, inicia o ensaio desociologia esttica pela abordagem da moda como arte, passa pela liga-o da moda com a diviso de classes,detm-se na ligao da moda coma diviso entre os sexos, revira pelo avesso a cultura feminina e fecha olivro com o mito da borralheira. Exemplo vigoroso da profuso deachados analticos que podem ser garimpados nessa sociologia dafesta, o captulo final mostra como as festas adquirem um carter decerimonial de iniciao, onde entram em jogo mais as qualidades pes-soais de cada um que os atributos de sua classe (p. 166). Espaos depeneiramento e reorganizao das elites, as festas so, ao mesmotempo, momentos privilegiados paro exerccio pleno do jogo de sedu-o entre os sexos pautado,no nos esqueamos,pela dupla morali-dade prpria do sculo XIX. Nelas, os adornos, as roupas e os gestosganham, junto com as maneiras e os modos dos portadores, significa-o mxima na interao social. Sem eles e terminada a festa, algunsvoltam condio de borralheira, outros permanecem onde estavam ealguns, poucos, triunfam, nessa longa cadeia de provas que [lhes] vosendo antepostas e cuja vitria final h de conferir aos nefitos a cida-dania na classe mais alta (p. 166).

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  • RELAO SUJEITO-OBJETO

    O ltimo ponto que gostaria de abordar aqui diz respeito a umaspecto menos evidente do livro de Gilda, mas que me parece centralpara entender a sua fora: a maneira como a experincia complexa dasmulheres da gerao dela, que inventaram para si mesmas um destinopara o qual no haviam sido preparadas se introduz no trabalho daautora. Migrando do registro biogrfico para dar suporte empreitadaanaltica, essa experincia ser indiretamente abordada no final do ter-ceiro captulo, centrado na anlise da cultura feminina. Para arrematar ocaptulo, Gilda puxa um fio discreto e arma uma trama nova, deixandoentrever as marcas decisivas do reprocessamento da experincia socialno trabalho intelectual. Vejamos como isso acontece.

    Aps mostrar que as mulheres, no sculo XIX, desenvolveram aoinfinito as artes relacionadas com sua pessoa,criarndo um estilo de vidaque se expressava simbolicamente por meio da moda, Gilda chama aateno para a experincia das mulheres que embaralharam esseesquema dualista. Entre elas, as suffragettes, que, aspirando a uma exis-tncia diversa e vendo na carreira uma fonte de realizao pessoal, obri-gavam-se ao desinteresse pelo adorno, pela vestimenta rebuscada, pelapreocupao com a moda. Mas, nas palavras de Gilda, no se desisteimpunemente de velhos hbitos que anos de vida bloqueada desenvol-veram como uma segunda natureza (p. 106).

    Lanando-se no spero mundo dos homens, a mulher viu-se,segundo a autora,

    dilacerada entre dois plos, vivendo simultaneamente em dois mundos, comduas ordens diversas de valores. Para viver dentro da profisso adaptou-se mentalidade masculina da eficincia e do despojamento, copiando os hbitosdo grupo dominante, a sua maneira de vestir, desgostando-se com tudo aquiloque, por ser caracterstico do seu sexo, surgia como smbolo de inferioridade: obrilho dos vestidos, a graa dos movimentos, o ondulado do corpo. E se na pro-fisso era sempre olhada um pouco como um amador,dentro do seu grupo,ondeos valores ainda se relacionavam com a arte de seduzir, representava verda-deiro fracasso. No de se espantar que esse dilaceramento tenha levado amulher ao estado de insegurana e dvida que perdura at hoje. Pois perdeu oseu elemento mais poderoso de afirmao e ainda no adquiriu aquela con-fiana em si que sculos de trabalho implantaram no homem (p. 106).

    Essa longa citao para mostrar que, embora a autora esteja abor-dando a experincia das suffragettes, tambm dela e das mulheres da suagerao que est falando. Ou seja, das mulheres que, como ela, experi-mentaram uma transio de modelos de comportamento, procurandonovas formas de expresso simblica da feminilidade,ao mesmo tempoem que se lanaram profissionalmente em carreiras at ento considera-das masculinas. Por essa razo, elas viveram por inteiro um momento

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  • [14] Trechos do depoimento queGilda de Mello e Souza fez na USP,emjulho de 1984, por ocasio da 36aReunio da SBPC e por iniciativa doCentro de Estudos Rurais que pro-moveu o encontro A Mulher nos Pri-meiros Tempos da Universidade deSo Paulo. Transcrito no artigo deBlay, Eva e Lang, Alice Gordo. Amulher nos primeiros tempos daUniversidade de So Paulo, Cincia eCultura, no 36 (12), dez. 1984, p. 2137.Para uma anlise exaustiva da situa-o das mulheres na Faculdade deFilosofia, Cincias e Letras, ver Trigo,Maria Helena Bueno.Espaos e temposvividos: estudo sobre os cdigos de socia-bilidade e relaes de gnero na Facul-dade de Filosofia da Usp (1934-1970).Tese de doutorado apresentada aoDepartamento de Sociologia da Uni-versidade de So Paulo, 1997.

    [15] Trechos do depoimento de Gildade Mello e Souza, p. 2137..

    [16] Idem.

    fecundo e simultaneamente dodo de transio social no domnio quehoje se convencionou chamar de gnero.O acesso formao intelectualque tiveram na Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras, somado vivncia indita de uma sociabilidade bastante ancorada na vida univer-sitria, permitiu a vrias delas reorientar o papel social para o qualtinham sido educadas:mes e donas de casa.O impacto dessa experin-cia renovadora propiciada pela faculdade foi enorme, sobretudo paraaquelas que efetivamente tentaram inventar para si um novo destino,como foi o caso de Gilda.Mas isso se deu custa de conflitos,inseguran-as e dilemas muito especficos.

    Relembrando, em outra ocasio, o tempo de estudante, Gilda afir-mou que

    vivia dilacerada entre o estilo tradicional da casa que me recebia,da famlia,dogrupo que eu comeava lentamente a abandonar e o apelo da nova vida [....] Ovento da rebeldia varreu rapidamente tudo:crenas,hbitos piedosos,estilo devida,fita de Filha de Maria,tudo foi,enfim,mesmo as banalidades das antigasdistraes. S havia no meu horizonte o interesse pela faculdade. A revelaodas aulas e o encantamento do novo convvio, aquela nova maneira de ser queestava se desenhando ali,que eu ainda no sabia bem no que ia dar14.

    O apelo de uma sociabilidade universitria,a sensao inquietante deestar, seno na contramo, a lguas de distncia do destino socialmenteesperado e previamente traado para as mulheres de sua classe social, odilaceramento produzido pelo ire-vir entre dois estilos distintos de vida,um tradicional e outro mais arrojado, que no lhe conferia ainda as insg-nias pblicas de aprovao e reconhecimento tudo isso, somado, con-tribuiu para gerar uma profuso de sentimentos tumultuados. Nas pala-vras de Gilda, no se pode abandonar assim, do dia para noite, os velhoshbitos pelos novos,sem sofrer muito e sem sentimento de culpa15.

    Decorrentes no s de uma experincia individual, esses sentimen-tos foram ganhando forma em meio s interaes intelectuais e pessoaisque ento tiveram lugar na Faculdade de Filosofia,Cincias e Letras.Emparte,como resultado da viso escandida que os colegas tinham sobre asreais potencialidades intelectuais das colegas.No fundo,eles no acre-ditavam muito na vocao nossa de mulheres,na nossa vocao intelec-tual. No de espantar, ento, sintetiza Gilda, que a opinio agressivados grupos conservadores que ns tnhamos abandonado, e a opinioambivalente e flutuante de nossos colegas tenham contribudo para aelaborao de um ser frgil, tmido, dividido entre a revolta e o medo, odesejo de afirmao e a dolorosa conscincia do empecilho16.

    A argcia com que Gilda em O esprito das roupas reconstri avivncia e, em certo sentido, a posio em falso e cambiante das suf-fragettes, que despontaram na cena poltica, tem a ver, portanto, com a

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  • [17] Cf.Aras,Vilma.Prosa Branca.Discurso, no 26, 1996, p. 26.

    [18] Cf. Souza, Gilda de Mello e. Otupi e o alade. So Paulo: Duas Cida-des, 1979.

    maneira discreta com que mobiliza e converte a prpria experinciaem chave sutil de inflexo analtica. Por meio de um olhar de esgue-lha17 que outra escritora, Vilma Aras, j detectara na fico daautora , Gilda aproxima experincias distintas de mulheres dife-rentes: das suffragettes, diretamente, e dela e de sua gerao, indireta-mente. Dessa aproximao, sobressaem os traos mais abstratos quecontornam a ambivalncia funda que as singulariza. Maneira inespe-rada de introduzir a relao sujeito-objeto sem o enquadramentometodolgico usual que essa relao costuma receber nas teses dedoutorado.No lugar de pr um ponto final na anlise da cultura femi-nina tal como expressa no sculo XIX, Gilda abre com a questo daambivalncia um novo campo de debate refratrio a enquadramentossimplistas e polaridades redutoras.

    O reprocessamento da experincia de transio vivida pelas mulhe-res de sua gerao permite a Gilda,como autora,uma lucidez particular-mente aguda em relao aos meandros da chamada cultura feminina,vistasempre em relao e conexo com o universo masculino. Da, semdvida, o fato de o alcance analtico de O esprito das roupas ser maior ebem mais intrigante do que vrias das anlises feitas,anos depois,sobrea chamada condio da mulher.

    Aprisionada lgica simplista de algozes e vtimas, uma parte daproduo feminista dos anos de 1970 e 1980 no foi capaz de perceber,e menos ainda de aprofundar, aquilo que Gilda, de maneira discreta,quase sem alarde, detectou como resultado da ambivalncia vividapelas mulheres.Apreendendo a moda como linguagem simblica,aptaa dar plasticidade e expresso a idias e sentimentos difusos, e no scomo meio de marcar pertencimentos e sublinhar distncias e distin-es sociais, Gilda mostrou, muito antes da voga dos estudos degnero,que as sociabilidades distintas de homens e mulheres no sculoXIX (mas no apenas nele) s podem ser entendidas como resultado deum engate simblico que, por ser estrutural, exige acionar uma anlisede tipo relacional.

    Advm da o frescor desse livro,escrito h mais de meio sculo.Pode-mos dizer ento, e sem medo de errar, que o alcance e a atualidade dessetrabalho resultam no apenas da mobilizao de instrumentos intelec-tuais agudos numa prosa precisa e elegante,mas tambm da transmuta-o da situao social de transio vivida pelas mulheres da gerao daautora numa chave apta a renovar o debate e a reflexo sobre as relaesde gnero. Assim, talvez possamos dizer sobre O esprito das roupas omesmo que Gilda disse sobre outro grande livro da nossa histria inte-lectual: Macunama, de Mrio de Andrade.

    Livro tpico de pocas de transio social, que no desejam a volta ao passado,no sabem o que tem de vir e sentem o presente como uma neblina vasta,Macu-nama no deve ser tomado como uma fbula normativa.Ele antes o campoaberto e nevoento de um debate do que o marco definitivo de uma certeza18.

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  • [19] Para uma anlise sofisticada doscontos escritos por Gilda de Mello eSouza, conferir o ensaio de Aras,Vilma.

    [20] Cf. Bourdieu, Pierre e Delsaut,Yvette.Le couturier et sa griffe:contri-buition une thorie de la magie.Actes de la Recherce en Sciences Sociales,no1,1975,pp.7-36.

    [21] Originalmente publicado nestarevista (no 41, mar. 1995), esse ensaiofoi includo no livro de Gilda de Melloe Souza, A idia e o figurado. As cita-es feitas no decorrer desse seg-mento foram retiradas do livro.

    Aplicadas ao esprito da autora e a seu esprito das roupas, essacitao nos ajuda a refletir sobre as razes mais sutis e menos evidentesque garantem a fora do livro e sustentam sua armao conceitual e nar-rativa. Sendo menos a marca de certezas e muito mais a incitao aocampo aberto e nevoento do debate, essas razes so inseparveis daforma como ao longo do livro se molda e costura o argumento analticode Gilda em relao moda e suas ligaes com a arte,as classes,os sexose todas as injunes da vida social.Quero dizer com isso que o contedosubstantivo da anlise inseparvel da forma como ele apresentado,ouseja, do ensasmo e da prosa modernista da autora.

    Forma e contedo,na escrita de Gilda,aludem tambm escritora queela certamente teria sido se,no lugar da carreira universitria,tivesse per-seguido uma das vocaes de juventude: a de contista, revelada nas pgi-nas da revista Clima19. Mas se isso tivesse acontecido, teramos ganhadouma escritora e perdido,isso sim,a ensasta plena,dona de um estilo pre-ciso e desimpedido, a um s tempo clssico e modernista, responsvelpelo corte impecvel que soube imprimir aos vrios objetos culturais eestticos com que se defrontou ao longo de sua produo intelectual.

    Portanto,no descabido fazer uma analogia enviesada entre O esp-rito das roupas de Gilda e o estilo de moda lanado por Chanel. Por umdesses processos extraordinrios de alquimia social, responsveis pelatransmutao vigorosa do valor simblico do produto, proporcional raridade do produtor, Chanel conseguiu o trunfo mximo que um cria-dor da moda pode alcanar. Isto , a suspenso do tempo, em um uni-verso onde estar na moda estar sempre na ltima moda, como mos-tram Pierre Bourdieu e Yvette Delsaut no notvel estudo sobre as grifese os produtores da alta costura francesa20.

    Por caminhos diversos,Gilda conseguiu a mesma proeza de Chanel,s que no campo intelectual, graas acuidade analtica com que tratoua moda. A suspenso do tempo na recepo desse livro, que, no lugar deenvelhecer, ganhou frescor e atualidade inquietantes, parece ser a con-trapartida da manuteno do tempo no andamento da anlise.Tanto dotempo das mulheres de elite,s voltas com a moda do seu tempo,quantodo tempo da autora, que, filtrando a experincia social de sua gerao,soube converter o tempo em fonte preciosa do trabalho intelectual.

    Transitando da histria para a sociologia, desta para a antropologiae para a esttica,mobilizando fontes diversas e pontos de vista inespera-dos,Gilda adensou o foco analtico sobre a moda e produziu essa jia deensaio esttico e sociolgico.

    O GRAU ZERO DA VESTIMENTA E A DANA DE FRED ASTAIRE

    A ateno s formas e aos usos da vestimenta que Gilda descortinanas obras de alguns de nossos escritores mais significativos,seria reto-mada em 1995 no ensaio Macedo, Alencar, Machado e as roupas21.Entre a tese de doutorado e esse ensaio transcorreram 45 anos. Mais

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  • madura intelectualmente, Gilda volta ao tema das roupas com volta-gem analtica redobrada e economia mxima de linguagem para esqua-drinhar o caminho percorrido pelo erotismo na obra desses romancis-tas, a partir da maneira como eles vestiram os personagens efalaram de suas roupas. Enquanto Macedo, no romance Rosa (1849),descreve as vestimentas das mulheres com mincia documentria,mostrando-se um escritor empenhado na transcrio do real (-embora sem imaginao, pontua Gilda), Alencar e Machado, hbeisem desentranhar do visvel a verdade oculta das coisas,revelam os sig-nificados das roupas em meio a procedimentos narrativos mais sutis.Em Lucola (1875) e em especial Senhora (1875), Alencar, aparente-mente frvolo na descrio minuciosa das vestimentas e adereosfemininos, cerca o assunto com acento pessoal e clida sensualidadepara descrever simbolicamente a psicologia de suas protagonistas.Da acuidade da descrio,sobressai a simbiose que reduz corpos e ves-timentas a uma realidade nica, palpitante (p. 76).

    Em Machado a forma de pinar o tema das roupas mais complexa.A comear pela rotao de eixo, do plo feminino para o masculino. Nolugar da ateno detalhista nas roupas femininas,praticada por Macedoe Alencar,ele se volta para a descrio dos trajes masculinos como via deacesso privilegiada para caracterizao psicolgica e social de seus per-sonagens. Dependente desse vnculo que une sujeito e vestimenta, atrama narrativa em Machado tem ritmos distintos quando se trata deabordar os usos e significados das roupas para homens e mulheres. Atarefa que cabe vestimenta das mulheres acelerar o impulso erticoatravs do negaceio constante entre o empecilho da roupa e o desvenda-mento da nudez (p. 83). Econmico na descrio dos trajes femininos,Machado jamais esquece que a sua funo bsica destacar o encantoda dona e, com isso, o erotismo possvel na poca. A simbiose entre ocorpo e a roupa na mulher machadiana apenas um pretexto para ir des-cartando aos poucos o intil excessivo, at reencontrar, des-cobrir a ver-dade originria (p. 84).

    Mais que qualquer outro escritor da poca, Machado compreen-deu e mostrou nos romances, principalmente em Memrias pstumasde Brs Cubas (1881),que o despojamento sempre o trao definidor doritual amoroso, que pode ocorrer em duas verses: assumido pelamulher, como oferta simblica, e pelo homem, como momento preli-minar da iniciao (p. 86). Ao contrrio de Alencar, que transfere alibido para a vestimenta, Machado enfrenta o problema sem subter-fgio (p. 84). E o faz por meio de sua inscrio, mediada pela formanarrativa, no solo social das interaes possveis entre homens emulheres no Brasil do sculo XIX. Distinguindo as funes diversasda vestimenta para homens e mulheres na sociedade da poca,Machado evidencia a posio social distinta de ambos. Para oshomens, as roupas cumprem sobretudo um papel civil, definidor destatus e instaurador de uma identidade fictcia, mas pacificadora.

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  • [22] Cf. Bastide, Roger. Machado deAssis, paisagista. Revista do Brasil,Rio de Janeiro, 3a fase, no 29, 1940,pp.3-14.O texto foi republicado com omesmo ttulo na Revista da USP, no56, dez.-fev. 2002-2003.

    [23] Segundo Bastide,se na Europa,o poeta pode dizer que les yeux desfemmes sont des Mditerrane, osolhos das heronas de Machado deAssis, olhos verdes, olhos de ressaca,olhos de escuma com reflexos irisa-dos, so feitos da prpria cor dooceano que banha as praias do Brasil,guardando em suas vagas o encantode Yemanj, o apelo dos abismos, acarcia e a traio. Reproduzido deBastide, Roger. Machado de Assis,paisagista, p. 199.

    [24] Cf. Candido, Antonio. Recortes.So Paulo: Companhia das Letras,1993, p. 103.

    [25] Idem, p.109.

    Para as mulheres, a um s tempo submissas e sequiosas de corres-pondncia afetiva, as roupas so um auxiliar eficiente do jogo er-tico, num momento social instvel, ambguo, de conquistas recentese aspiraes sufocadas (p. 88).

    Advm da, arremata Gilda, a dificuldade da crtica do perodo emaceitar a naturalidade com que Machado de Assis iniciava entre ns odiscernimento misterioso e no entanto equilibrado do erotismo (p.89). Viciada pelas asperezas do naturalismo, ela no foi capaz deapreender a dimenso inovadora da abordagem machadiana no planodo erotismo.

    Essa leitura desempenada de Gilda faz ecoar a lio aprendidacom seu orientador, Roger Bastide, que publicou em 1940 um artigosobre Machado de Assis destoante do ramerro corrente da crtica,que teimava em denunciar a ausncia da paisagem brasileira na obrado escritor22. Com o ttulo, Machado de Assis, paisagista, o artigomostra que ela est presente, mas no nos lugares estipulados pelasconvenes naturalistas, revelando-se por inteira nos olhos enevoa-dos de Capitu23.

    Artigo capital para Gilda e os companheiros de gerao,que naquelaaltura davam os primeiros passos rumos ao empreendimento que osprojetaria na cena cultural da cidade de So Paulo (a revista Clima), oimpacto causado pela leitura do texto foi de tal ordem que marcou umareorientao na maneira de conceber certos aspectos fundamentais danossa literatura24. Nas palavras de Antonio Candido, Bastide mostrouque em Machado de Assis a paisagem est presente de maneira maispoderosa,porque no enquadramento descrito,mas substncia impl-cita da linguagem e da composio, inclusive como suporte das metfo-ras. Em vez de procurar o tema foi descobrir o modo de elaborar o dis-curso,cuja latncia mostrou de maneira moderna e forte para o estado dacrtica nos anos de 194025.

    Meio sculo depois, Gilda mostrou, tambm de forma definitiva,que o erotismo em Machado mais sutil e complexo porque, veladopelos constrangimentos sociais da poca, s se deixava descobrir nojogo de oferecimento e recusa propiciado pela plasticidade simblicadas roupas.

    Atenta aos significados distintos que os nossos romancistas insu-flaram s roupas das personagens,Gilda pinou o jogo sinuoso do ero-tismo num compasso analtico, interessado em perscrutar as ligaesprofundas entre forma e contedo social.Esse mesmo movimento estpresente no ensaio Notas sobre Fred Astaire,ltimo escrito da autorae fecho do livro A idia e o figurado. Entre os textos que integram ovolume, esse o nico que permanecera indito. Um dos pontos altosde sua produo intelectual, o ensaio notvel pelo que diz e pelamaneira como diz. Nele, o foco deslocado das roupas e dos adereos

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  • usados por Fred Astaire (1899-1987) que a autora considera o maiordanarino moderno para o significado dos gestos e destes para areflexo surpreendente sobre o sentido da beleza ou de sua ausncia naconformao do artista pleno.A simplicidade do ttulo Notas sobre...tem menos a ver com a idia de apontamentos e muito mais com a buscaapaixonada pelas formas depuradas, apreendidas pela ensasta nadana do super elegante Fred Astaire, nos quadros cubistas, na traoa lpis de Seurat.

    A adeso modernidade que Gilda flagra em Fred Astaire revela-sena maneira de cantar, na seleo dos compositores (Cole Porter eGeorge Gershwin), na escolha dos trajes (a casaca preta, a cartola, abengala, os sapatos pretos de verniz) e, sobretudo, no modo como usae ajusta o corpo indumentria a leveza desentranhada do figurinode gala. Instalado no grau zero da vestimenta sublinhado pelo usodo preto e do branco , Fred Astaire um homem ancorado no coti-diano, sem nostalgias nem ressentimentos, que, ao contrrio do bai-larino tradicional, no se destaca em nada do que o circunda, no sediferencia na vestimenta, na gesticulao, na dinmica corporal, narelao com os objetos do cotidiano (p. 171). Por isso, afirma Gilda,quando ele salta, como se no houvesse pernas,pois o que apreende-mos o arabesco das abas da casaca em pleno vo, a nitidez grfica dodesenho, o preto no branco (p. 176).

    Assim, possvel (e desejvel) compar-lo a outros artistas repre-sentativos do mundo contemporneo, como Chanel e Charles Cha-plin. A primeira, pela busca das formas simplificadas da vestimenta, osegundo, pelo poder de transfigurar os objetos com percia de presti-digitador. Com a diferena de que a magia promovida por FredAstaire tem uma dimenso ldica e realiza uma admirvel transposi-o potica do mundo, fazendo do gesto traduo da metfora,enquanto a de Chaplin se faz no registro do caricaturista crtico dasdiferenas sociais, para sublinhar o lado trgico e chegar represen-tao do absurdo (p. 174).

    Reduzindo o corpo a um suporte do gesto, no simbolizando emnenhum momento a beleza muscular e a plstica corporal, como fazemo bal clssico e Gene Kelly (p. 172), Fred Astaire libera e, ao mesmotempo,encena a beleza do gesto pura,livre,autnoma e descarnada(p. 172). Nessa qumica paradoxal, uma vez que a beleza projetada peloartista moderno s se manifesta integralmente quando esbate o suportecorporal, reside a genialidade desse danarino. Nas palavras de Gilda,

    Fred Astaire um dos poucos gnios artsticos do sculo XX e foi bom que nofosse bonito,como Robert Taylor,Clark Gable,Gary Cooper ou Tyrone Power,porque, sendo como era, manteve-se gesto, gesto puro, graa pura, libertando-se dos cacoetes da mocidade para se tornar na dana um desenhista, um dan-arino grfico,puro arabesco sem cor (p. 177).

    104 A PAIXO PELAS FORMAS: GILDA DE MELLO E SOUZA Heloisa Pontes

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    Nas mos de Gilda,o gesto puro do danarino converte-se em escritaplena, liberta ela tambm dos cacoetes da linguagem acadmica, paradescartar o intil excessivo e reter o que importa.Nesse caso,a acuidadeanaltica da autora, que, inseparvel de sua paixo pelas formas, entre-laa-se maneira como se expressou ao longo da vida e vestiu osassuntos de sua predileo.

    Heloisa Pontes professora no Departamento de Antropologia da Unicamp e pesquisadora

    do ncleo de estudos de gnero Pagu.

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    Recebido para publicao em 25 de fevereiro de 2006.

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