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A P R E N D E R Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação

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A P R E N D E RCaderno de Filosofia

e Psicologia da Educação

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Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Campus Universitário – Caixa Postal 95Estrada do Bem Querer, Km 4 – 45083-900 – Vitória da Conquista – BA

Fone: 77 3424-8716 - E-mail: [email protected]

REITOR

Prof. Abel Rebouças São JoséVICE-REITORA

Profª Jussara Maria Camilo dos SantosPRÓ-REITOR – PROEX

Prof. Paulo Sérgio Cavalcante CostaDIRETORA DO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA (DFCH)

Profª Cláudia Albuquerque de LimaDIRETOR – EDIÇÕES UESB

Jacinto Braz David Filho

COMITÊ EDITORIAL

Profª Ms. Andréa Braz da CostaProf. Dr. Antonio Jorge Del Rei MouraProf. Ms. Júlio César Castilho Razera

Prof. Dr. Marcello MoreiraProf. Ms. Marco Antônio Araújo LonguinhosProf. Ms. Nelson dos Santos Cardoso Júnior

Prof. Ms. Paulo Sérgio Cavalcante CostaProf. Ms. Rosalve Lucas MarcelinoProfª Drª Zenilda Nogueira Sales

Indicações de permutaAceitamos permutas por periódicos de áreas afins, em especial de Educação, Filosofiae Psicologia. Os contatos para essa finalidade podem ser feitos através dos endereçoseletrônicos: [email protected] ou [email protected]

100A661a

Aprender – Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação. Ano 3, n. 4, jan./ jun. 2005. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2005Semestral.ISSN 1678-78461. Filosofia – Periódicos. 2. Psicologia. I. Universidade Estadual do Sudo-este da Bahia. II. Título.

Catalogação na publicação: Biblioteca Central da Uesb

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Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

A P R E N D E RCaderno de Filosofia

e Psicologia da Educação

ISSN 1678-7846

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III n. 4 p. 3-206 2005

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Copyright ©2005 by Edições Uesb

APRENDERCaderno de Filosofia e Psicologia da Educação

Caderno do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas daUniversidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Ano III – n. 4, jan/jun. 2005

Editores ResponsáveisProf. Ms. Leonardo Maia Bastos Machado – UesbProf. Ms. Ruben de Oliveira Nascimento – Uesb

Editoria CientíficaProfª Ms. Ana Lucia Castilhano de Araújo – UesbProfª Ms. Caroline Vasconcellos Ribeiro – Uesb

Prof. Ms. José Luís Caetano – UesbProf. Dr. Marcelo Martins Barreira – Uesb

Profª Ms. Zamara Araújo dos Santos – Uesb/Uesc

Conselho EditorialProfª Dr.ª Ana Elisabeth Santos Alves – Uesb

Prof. Dr. Carlos Henrique de Souza Gerken – UFSJProf. Dr. Dante Galeffi – Ufba

Prof. Dr. Delba Teixeira Rodrigues Barros – UFMGProf. Dr. Diógenes Cândido de Lima – Uesb

Prof. Dr. Filipe Ceppas – UGF/PUC-RioProf. Dr. Francisco Moura – UfopProf. Dr. João Carlos Salles – Ufba

Prof. Dr. José Carlos Araújo – UnitriProfª Drª Maria Iza Pinto Amorim Leite – UesbProfª Drª Maria Luiza Camargos Torres – Univale

Profª Drª Milenna Brun – UefsProfª Drª Marilena Ristum – Ufba

Profª Ms. Rosane Lopes Araújo Magalhães – UescProf. Dr. Silvio Gallo – Unicamp

APRENDER – Caderno de Filosofia e Psicologia da EducaçãoUNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA (UESB)

Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH)Estrada do Bem Querer, km 4, Cx. Postal 95

45083-900 – Vitória da Conquista – BAFone: 77 3424-8652

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SUMÁRIO

DOSSIÊ TEMÁTICO: Infância e Educação

Introdução ............................................................................................. 9-10

A infância no processo civilizadorAnilde Tombolato Tavares da Silva ........................................................ 11-27

Lipman e o ensino de uma filosofia idealLiliane Barreira Sanchez ....................................................................... 29-48

Música e cultura infantil: uma breve revisão bibliográfica para a educaçãoinfantilAna Lúcia Castilhano de Araújo ........................................................... 49-65

Teatro infantil: um olhar para o desenvolvimento da criançaSandra Márcia Campos Pereira ............................................................. 67-88

Relação pais e filhos e o processo de aprendizagem escolar: um estudode casoMaria Aparecida C. Bonfim Silva e Rubem de O. Nascimento .... 89-110

ARTIGOS

Adolescência e arte: estética e práticas culturaisCelso Vitelli ........................................................................................113-140

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O governo da razão: escolarização, subjetivação e psicologia genéticaPaulo Gurgel ......................................................................................141-160

Heidegger educador: acerca do aprender e do ensinarRoberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens ................................................... 161-171

Sartre, 100 anosLeonardo Maia Bastos Machado ........................................................ 173-174

Existencialismo e educação – a filosofia sartriana da liberdade comofundamento pedagógico?Luciano Donizetti da Silva ................................................................. 175-200

Normas para apresentação de trabalhos ................................... 201-203

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DOSSIÊ TEMÁTICOInfância e Educação

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DOSSIÊ TEMÁTICOInfância e Educação

INTRODUÇÃO

É com satisfação que apresentamos, nesse número do CadernoAprender, um dossiê temático abordando Infância e Educação.Apesar da complexidade e amplitude de estudos que esse campotemático evoca, apresentamos reflexões sobre quatro importantesaspectos, que merecem ser mais discutidos, estudados e aplicados: ainfância como um dos centros do processo civilizador; o ensino defilosofia para crianças; a arte na Educação Infantil; as práticas educativasfamiliares e sua relação com o processo de aprendizagem escolar.

São trabalhos que envolvem aspectos como: mecanismosreguladores do pensamento e da formação de estruturas sociais decivilização; a filosofia como base de uma Educação Infantil calcada nodesenvolvimento do pensamento e do questionamento do cotidiano;a música e o teatro infantil e sua importância para o processo educacionale de desenvolvimento da criança; o envolvimento da criança com oprocesso de aprendizagem escolar e sua inter-relação com práticaseducativas familiares.

Infância e Educação, como alicerces do desenvolvimentohumano, tanto em termos individuais quanto sociais, preocupam porseu impacto na formação do individuo. O Caderno Aprender procura,com esse dossiê, contribuir com o estudo e a discussão dessa relação,enfocando aspectos que podem ser mais explorados pela escola,envolvendo não apenas a capacidade cognitiva da criança, mas tambémsuas emoções, sua formação familiar e sua sensibilizada artística.

Os Editores.

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DOSSIÊ TEMÁTICOInfância e Educação

A INFÂNCIA NO PROCESSO CIVILIZADOR

Anilde Tombolato Tavares da Silva *

Resumo: O presente trabalho busca trazer alguns apontamentos em relação aoprocesso civilizador do sociólogo alemão Norbert Elias, principalmente no quese refere às relações de correspondência ocorridas entre as transformações sociaiscom as alterações na estrutura psicológica dos indivíduos, que incidem nospadrões de comportamento, para que possamos refletir sobre as contribuiçõesda infância neste processo. Tomamos como base para este trabalho a obra OProcesso Civilizador, na qual o autor faz uma análise histórica das mudançasque localizou no desenvolvimento da personalidade e das normas sociais noprocesso formador da civilização moderna para o presente. Entendendo acivilização como um processo contínuo e inacabado, apontamos a infância comoum ponto crucial para a moldagem dos padrões de comportamento doindivíduo, visando o desenvolvimento da sociedade moderna.

Palavras-chave: Infância. Processo civilizador. Padrão de comportamento.

O presente trabalho busca trazer alguns apontamentos emrelação ao processo civilizador do sociólogo alemão Norbert Elias erefletir sobre as contribuições da infância neste processo. Consideramos* Doutoranda em Educação pela Unesp de Marília – SP. Docente do Departamento deEducação da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: [email protected]

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III n. 4 p. 11-27 2005

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esta uma empreitada ousada, já que o autor não teve o tema da infânciacomo foco principal de suas obras, mas buscamos através da análisehistórica do processo civilizador e das mudanças que Elias localizouno desenvolvimento da personalidade e das normas sociais no processoformador da civilização moderna para o presente, a fonte para a análisea que nos propomos.

Tomamos como base para este ensaio a obra O ProcessoCivilizador, principalmente, o primeiro volume: Uma História dosCostumes, que parte da origem do conceito de civilité, o qual, segundoElias nasce com a sociedade cavaleiresca medieval e com a unidade daIgreja Católica, uma vez que os valores, atitudes, comportamentos ecostumes são inter-relacionados nos ideais de uma nobreza armada ede uma igreja culta, pelo menos racionalmente, em sua forma de orientaro pensamento naquilo que era designado como o ideal de civilização.Os costumes ocidentais construídos e vivenciados até ali são oscomportamentos construídos, entre outras coisas, do que seconvencionou chamar de “civilização”. A civilização, que no sentidoeliasiano, nasce na formação social da sociedade de corte e do seuideal de conduta e vivência, na interdependência específica de ummomento histórico em que se está formando o absolutismo europeu.

Nas suas obras, Elias busca explicitar a sua teoria dos processosde civilização, baseando-se nas relações sociais existentes na sociedadeguerreira, feudal, de corte e absolutista, terminando no advento dasociedade burguesa, sempre mostrando as relações de correspondênciaocorridas entre as transformações sociais e as alterações na estruturapsicológica dos indivíduos dessas sociedades. Para o autor, “a lembrançade que a cavalaria e a fé romano-latina representa uma fase peculiar dasociedade ocidental, um estágio pelo qual passaram todos os grandespovos do Ocidente, certamente não desapareceu” (ELIAS, 1994, p. 67).

Sua preocupação volta-se, principalmente, à produção doconhecimento sobre o passado, articulando a processos sociais maisamplos, como parte da construção de uma experiência histórica e social,que nada mais é do que a própria civilização. E como afirma Elias:

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A moderação das emoções espontâneas, o controle dossentimentos, a ampliação do espaço mental além do momentopresente, levando em conta o passado e o futuro, o hábito deligar os fatos em cadeias de causa e efeito – todos estes distintosaspectos da mesma transformação de conduta quenecessariamente ocorre com a monopolização da violência físicae a extensão das cadeias da ação e interdependência social.Ocorre uma mudança “civilizadora” do comportamento(ELIAS, 1993, p. 198).

O que o autor busca teorizar é um processo civilizador quecomporta uma dimensão que é necessariamente coletiva e social, mastambém uma dimensão particular e individualizada, que remete para acompreensão dos processos de introjeção das demandas e pressõessociais e coletivas. Elias nos sugere dois enfoques para a análise doprocesso civilizador, capazes de entender a construção social dacivilização como uma forma específica e particular de configuraçãosocial, historicamente marcada, e que, conjuntamente, formam a teoriados processos de civilização do autor: do ponto de vista da Psicogênese(plano psicológico individual) e da Sociogênese (plano onde ocorremas relações sociais) .

Sendo assim, a civilização inscreve-se no campo das ações edecisões humanas, comportando um olhar sobre os indivíduos comoconstrutores e construídos pela sociedade; ou seja, é possível afirmarque a civilização comporta um projeto de ordenação do mundo, querpara o presente, quer para o futuro, em que, no nosso entendimento, ainfância tem um papel fundamental de construção da sociedade cadavez mais civilizada, à medida que “a vida delas tem que ser rapidamentesubmetida ao controle rigoroso e à modelagem específica que dão anossa sociedade seu caráter e que se formou na lentidão dos séculos”(ELIAS, 1994, p. 145).

São essas demandas do processo civilizador que foca o olharde Elias em direção a dois pontos centrais, capazes de aumentar oespaço de experiência das sociedades humanas: em direção ao passadoe ao futuro. Um olhar que organiza o passado segundo os princípios

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de uma narrativa que não deixa espaços vazios entre o passado e opresente, articulando eventos numa cadeia de causas e efeitos, quetendem a naturalizar aquilo que resultou de uma decisão, de uma escolha,dentre as possíveis aos homens enquanto seres históricos. Nesse sentido,o passado transforma-se num vir a ser do presente, uma afirmação danecessidade deste mesmo presente, apagando as lutas e tensões queresultaram nele.

Nesse projeto de civilização de que nos fala Elias, aprender opassado apreendendo-o é, para nós, parte do esforço de entender asalterações sofridas na estrutura psicológica dos indivíduos no decorrerdo processo civilizatório e em suas relações com a “moderação dasemoções espontâneas” e “controle dos sentimentos”, poderosoantídoto contra um risco sempre iminente de aproximar a experiênciahumana daquilo que seria seu contrário – a natureza associada à barbárie.

Buscando a compreensão da experiência humana na sociedadeindustrial, encontramos Krieken (1996), que ao argumentar sobre aautodisciplina na história da sociedade, cita Louis Mumford que ressaltaa “mudança da mente”, a “reorientação dos desejos, hábitos e objetivos”que acompanharam a rendição das sociedades européias “à máquina”.

Segundo este autor,

os teóricos da escola de Frankfurt desenvolveram este pontoextensamente com o argumento de que o capitalismo modernoracionalizado produz um tipo disciplinado particular deconstituição psíquica – baseados em seu interesse em desenvolveruma dimensão psicológica para a teoria social através da integraçãoda psicanálise e do marxismo (KRIEKEN, 1996, p. 154).

Ainda nos coloca que a história das sociedades ocidentais temsido caracterizada pela crescente objetivação e disciplinarização dasubjetividade, um ordenamento da alma sempre intensificado, queconjugado com uma crescente individualização tornou o indivíduomoderno completamente “autocontrolado”, “autista neutro” e“deprimido”. Busca em Marx a observação dos efeitos disciplinares

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do trabalho fabril, a “compulsão cega” da utilização do trabalho e aemergência de uma classe trabalhadora que “por educação, tradição,hábito, vê as condições do modo (capitalista) de produção como leisnaturais auto evidentes” (KRIEKEN, 1996, p. 154).

Foucault contribui nesta argumentação, à medida que apontapara uma das características definitivas da formação do estado europeu,desde o princípio do período moderno que foi

a transição de um poder de estado soberano, que operavanegativamente pela colocação de limites e coerções, para um poderdisciplinar descentralizado que penetra nossas almas, corpos ementes, transformado-os ativamente e produzindo efeitospositivos que nos tornam a todos cidadãos autodominados(KRIEKEN, 1996, p. 155).

Assim como Foucault, Norbert Elias também vê a história socialeuropéia em termos de transformação gradual da estrutura dapersonalidade, de uma intensiva dinâmica da “coerção para aautocoerção”, na qual a regulação do corpo humano, tanto quantonossos impulsos, paixões e desejos são submetidos a um “processocivilizatório”. Para Krieken (1996, p. 156):

Elias explica tal processo em temos de uma crescentemonopolização da violência que acompanhou o processo deformação do estado, dos efeitos de uma competição intensificadaentre e intra grupos sociais característicos da economia de mercado,bem como de uma concomitante tendência histórica em direçãoà interdependência social crescente.

O ponto comum destes dois autores está na noção de que houveuma “socialização do eu”, uma transição da história européia, de umaordem social baseada na coerção externa (poder soberano, podertradicional), para uma dependente da internalização da coerção (poderdisciplinar, dominação racional) (KRIEKEN, 1996, p. 157).

Estudando a história dos costumes e a formação dos Estadosnacionais como aspectos interdependentes do processo civilizatório,

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Elias defendia que a civilização deve ser entendida como um processocontínuo e inacabado. Por isso, um dos objetivos de sua teoria é analisara formação e as alterações sofridas na estrutura psicológica dosindivíduos, e, dessa forma, podemos apontar a infância como umponto crucial para a moldagem dos padrões de comportamento,visando ao desenvolvimento da sociedade civilizada que, como opróprio autor nos afirma,

[...] nada mais é do que o processo civilizador individual a quetodos os jovens, como resultado de um processo civilizadorsocial operante durante muitos séculos, são automaticamentesubmetidos desde a mais tenra infância, em maior ou menorgrau e com maior ou menor sucesso (ELIAS, 1994, p. 15).

O que propriamente quer nos dizer é explicado numa nota derodapé, onde argumenta que o que cabe ser frisado é o fato de que,mesmo na sociedade civilizada, “nenhum ser humano chega civilizadoao mundo e que o processo civilizador individual que eleobrigatoriamente sofre é uma função do processo civilizador social”(ELIAS, 1994, p. 15). E é nesse sentido que aponta a semelhança entre aestrutura dos sentimentos e consciência da criança com a das pessoas“incivis”, e, portanto, pressionada a se modelar conforme os padrõesde comportamento exigidos pela sociedade civilizada.

Atualmente, o círculo de preceitos e normas é traçado com tantanitidez em volta das pessoas, a censura e pressão da vida socialque lhes modela os hábitos são tão fortes, que os jovens têmapenas uma alternativa: submeter-se ao padrão decomportamento exigido pela sociedade, ou ser excluído da vidanum “ambiente decente”. A criança que não atinge o nível decontrole das emoções exigido pela sociedade é considerada como“doente”, “anormal”, “criminosa”, ou simplesmente“insuportável” do ponto de vista de uma determinada casta ouclasse e, em conseqüência, excluída da vida (ELIAS, 1994 ,p. 146,grifo nosso).

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É possível, então, entender que a especificidade da teoria deElias está na indissociabilidade entre o desenvolvimento das estruturasde personalidade e das estruturas sociais; ou seja, não se pode entenderas transformações sofridas pelas sociedades separadamente dasalterações ocorridas nas estruturas de personalidade dos indivíduosque as formam. Os conceitos de indivíduo e de sociedade não sãoantagônicos. O controle social altera a conduta ou o padrão decomportamento das pessoas, sendo lentamente transformado, deforma que passe a policiar o próprio comportamento. É o que Eliaschama de “controle das emoções”, ou dos impulsos e paixões dosindivíduos que se constitui num dos resultados dos processos decivilização.

Para Elias o autocontrole e o superego são precisamente oproduto final dos efeitos das coerções externas sobre a psique humana,de uma rede de interdependência ou das coerções exercidas pelosadultos sobre as crianças. A maioria das crianças é moldada dentro deuma conformidade, com um certo padrão, pela coerção externa oucompulsão (KRIEKEN, 1996, p. 159).

O controle das emoções e o próprio autocontrole são faces dopoliciamento do comportamento quando já está internalizado noindivíduo. À medida que a criança vai sendo condicionada desde amais tenra idade a controlar suas emoções, contribui no processo decivilização da sociedade e vai delineando os padrões decomportamento, ou

um conjunto de regras presentes na nossa estrutura psicológica ede práticas cotidianas de convívio social. O padrão decomportamento produz, por sua vez, patamares para as emoçõeshumanas, acima dos quais, sentimentos como a vergonha, oembaraço e repugnância, por exemplo, se explicitam (BRANDÃO,2000, p. 125).

É neste conjunto de regras do padrão de comportamento quea infância se insere, criando um conjunto de regras na estrutura

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psicológica e das práticas cotidianas de convívio social. Lembrandoque aquilo que consideramos inteiramente natural é porque “somosadaptados e condicionados a esse padrão social desde a mais tenrainfância e teve no início que ser lenta e laboriosamente adquirido paraa sociedade como um todo” (ELIAS, 1994, p. 82).

A criança até os meados do século XIX era tratada como um“adulto em miniatura” e não se fazia qualquer distinção de tratamento,ou de comportamento entre o adulto e a criança. Os sentimentos devergonha e nojo não tinham a mesma conotação que têm na sociedadeatual. “O grau de comedimento e controle esperado pelos adultosentre si não era maior do que o imposto às crianças” (ELIAS, 1994, p.146). Hoje percebemos que a criança tem de atingir, em curto espaçode tempo, o nível avançado de vergonha e nojo que demorou séculospara se desenvolver. O padrão que está emergindo em nossa fase decivilização caracteriza-se por uma profunda discrepância entre ocomportamento dos chamados “adultos” e das “crianças” (ELIAS,1994, p. 145).

No século XIX, segundo Elias, novos modos são inculcados,do adulto para a criança, através de um discurso verbal, na repetiçãode comportamentos, na implantação de novos sentimentos. Asocialização modifica-se pouco a pouco, passa por mudanças lentas econscientes realizadas pelos adultos durante séculos, para umadoutrinação rápida e silenciosa e que passa a fazer parte da vida dascrianças desde muito cedo. Nenhuma justificativa é oferecida à maioriadelas; a cortesia tornou-se absoluta e objetivo a se alcançar. Nassociedades modernas, a socialização da maioria das criançasautomaticamente inculca e reprime um sentimento indispensável parao controle das emoções do indivíduo: a vergonha.

A infância é um universo de várias emoções e sentimentos quevão se fundindo para contribuir na formação do adulto inserido noprocesso civilizador. A vergonha, um dos sentimentos discutidos porElias, foi o instrumento que a família e a escola usaram para conduzira repressão das emoções na civilização moderna.

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Embora Elias tenha feito uma análise clara sobre a vergonhan’O Processo Civilizador, não foi este o elemento chave de suaargumentação e da sua teoria. Aproveitamos aqui, no entanto, seureconhecimento da aplicabilidade da análise da vergonha para oproblema do controle social inserindo nesta argumentação o papelcentral que este sentimento representa como ferramenta dedisciplinamento da infância.

A infância marca o início deste processo de inculcação dosentimento de vergonha e do controle, juntamente com a família e aescola, e se intensifica, na medida em que o padrão de conduta dasociedade é transferido do adulto para a criança, ou “imposto porelementos de alta categoria social aos seus inferiores, ou, no máximo,aos seus socialmente iguais” (ELIAS, 1994, p. 142) Na busca de explicitaro papel da família como retransmissora de padrões sociais e de controledos instintos de sua prole, Elias se remete ao momento histórico emque a família ganha importância:

Só relativamente mais tarde, quando a classe burguesacompreendendo um maior número de pares sociais, torna-se aclasse superior, governante, é que a família vem a ser a única – ou,para ser mais exata, a principal e dominante – instituição com afunção de instilar controle dos impulsos. Só então a dependênciasocial da criança face aos pais torna-se particularmente importantecomo alavanca para a regulação e moldagem socialmente requeridasdos impulsos e das emoções (ELIAS, 1994, p. 142).

É através desse processo regulador e modelador da família edo adulto sobre a criança que se determinam e criam-se as regras paraos sentimentos. Elias vai documentando mudanças graduais, mas decaráter inexorável e usa de estudos dos manuais que contribuíram naimposição de padrões de comportamento e se instalaram de formasilenciosa sobre a confiança de costumes, de estilos; de identidade sobreo respeito, a honra, o orgulho e sobre os sentimentos de vergonha,repugnância e embaraço de cada sociedade.

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Exemplo deste processo é o estudo que faz da obra: Dacivilidade em crianças (De civilitate morum puerilum) de Erasmo deRoterdam, um trabalho dedicado pelo holandês a um menino nobre,filho de príncipe e escrito para a educação de crianças. Este manual

[...] assinala também, no tocante a essas áreas, um ponto nacurva de civilização que representa, por um lado, uma notávelelevação do patamar de vergonha, em comparação com a épocaprecedente,e, por outro se confrontando com tempos maisrecentes, uma liberdade na referência a funções naturais, uma“falta de vergonha”, que para a maioria das pessoas que adotamo padrão atual pode, a princípio, parecer incompreensível e nãoraro “embaraçosa” [...] é muito claro que esse tratado temprecisamente a função de cultivar sentimentos de vergonha (ELIAS,1994, p. 140).

Presenciamos isto, ainda hoje, na forte influência do cristianismoem nossos padrões de comportamento que repassamos a nossos filhos,a exemplo da referência à onipresença do “anjo da guarda”, usada atéhoje como justificativa para o controle dos impulsos da criança e comoinstrumento para condicionar alguns padrões de comportamento ereprimir o prazer, de acordo com a conduta social. É comum ver ospais ou professores repreender a criança com frases: “O anjinho daguarda não gosta que você faça isto” ou “O anjo da guarda não vaimais te proteger se você agir deste jeito”.

O manual escrito por Erasmo trata de um assunto muito simples:o comportamento de pessoas em sociedade – e acima de tudo, dodecoro corporal externo. As razões higiênicas e de saúde receberammais ênfase neste processo, para obter maior grau de controle dosimpulsos e das emoções. Cabe ressaltar que essas razões passaram a“desempenhar um papel importante nas idéias dos adultos sobre oque é civilizado” (ELIAS, 1994, p. 140) sem a percepção da sua relaçãocom o condicionamento das crianças que está em processo.

O autor ainda analisa a obra como

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[...] um mundo e um estilo de vida que, em muitos aspectos,[...], assemelha-se muito ao nosso, embora seja ainda bemremoto em outros. O tratado fala de atitudes que perdemos,que alguns de nós chamaríamos talvez de ‘bárbaras’ ou‘incivilizadas’. Fala de muitas coisas que desde então se tornaramimpublicáveis e de muitas outras que hoje são aceitas comonaturais (ELIAS, 1994, p. 69).

Elias nos mostra que o Tratado funciona como um indicadorde um novo padrão de vergonha e repugnância que começa a se formarlentamente na alta classe secular, principalmente pela via da educaçãoda criança e que este sentimento é uma função social modelada segundoa estrutura social em que

grande parte do que chamamos de razões de “moralidade” ou“moral” preenche as mesmas funções que as razões de “higiene”ou “higiênicas”: condicionar as crianças a aceitar determinadopadrão social (ELIAS, 1994, p. 153).

É só pensar em como as crianças lidam com a sexualidade ecom o corpo na sociedade atual e como lidavam no passado.

Outro comportamento que exemplifica isto é o fato de que secomermos com as mãos, em determinada situação, é condenável, umavez que incorporamos, enquanto segunda natureza, comer com a facae com o garfo, de uma maneira natural. Jogar o que é consideradolixo, como restos de comida, no chão, da mesa de onde se come,como se fazia no século XIII, é interpretado hoje em dia como sinalde “barbarismo”, de “incivilização”, já que esta atitude de falta dehigiene pode ser considerada responsável por atrair insetos portadoresde doenças. Percebe-se o quanto o higienismo foi responsável pormudanças de algumas atitudes e que passam a se incorporar desde ainfância para a garantia da “civilidade” de uma população.

A sociedade está, aos poucos, começando a suprimir ocomponente de prazer positivo de certas funções mediante oengendramento da ansiedade ou, mais exatamente, está tomando

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esse prazer “privado” e “secreto” [isto é, reprimindo-o noindivíduo], enquanto fomenta emoções negativamente carregadas– desagrado, repugnância, nojo – como os únicos sentimentosaceitáveis em sociedade. Mas exatamente por causa desse aumentoda proibição social de muitos impulsos, pela sua “repressão” nasuperfície da vida social e na consciência do indivíduo,necessariamente aumenta a distância entre a estrutura dapersonalidade e o comportamento de adultos e crianças (ELIAS,1994, p. 147).

A nós é ensinado desde a infância a nos comportar, a agirconforme um padrão socialmente estabelecido, o que gera umaestruturação de formação afetiva. Nossa estrutura mental, então,incorpora gestos e movimentos concretos, a ponto de esquecermos anossa natureza animal e chegarmos mesmo a estranhá-la em outrosmomentos históricos e em nós mesmos e criamos o que Elias consideracomo segunda natureza. Condenamos atitudes de povos que viviamsobre a sujeira em suas ruas, como na Idade Média, quando as condiçõesde higiene não atendiam ao ideal de padrão atual, entretanto,reproduzimos o mesmo padrão de sujeira, após uma grande festapública, como comícios ou shows e não estranhamos estescomportamentos. Ao olharmos a história de nosso povo, encontramosatitudes nas quais nos reconhecemos e tantas outras que não seríamoscapazes de nos reconhecer nelas.

Em data tão recente como o século XVII, o garfo era aindabasicamente artigo de luxo da alta classe, geralmente feito de prataou ouro. O que achamos inteiramente natural, porque fomosadaptados e condicionados a esse padrão social desde a mais tenrainfância, teve, no início, que ser lenta e laboriosamente adquirido edesenvolvido pela sociedade como um todo. Isto não se aplicamenos a uma coisa pequena e aparentemente insignificante comoum garfo do que às formas de comportamento que nos parecemais importantes (ELIAS, 1994, p. 82).

Hoje já não discutimos mais o comportamento à mesa, apenasreproduzimos o padrão de conduta para nossos filhos. Por volta dos

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seis meses de vida, quando a criança começa a aprender a comer sozinha,sua primeira natureza faz levar à boca o alimento pelas mãos. Comono nosso padrão de atitudes já incorporadas isto é considerado umcomportamento incivilizado, adiamos a autonomia da aprendizagemnatural da criança em se alimentar e seguimos com o processo deiniciação ao mundo civilizado dos talheres até mais ou menos dezoitomeses de vida; ou seja, a mãe leva o alimento à boca do seu filho atéque ele tenha coordenação motora para segurar o talher e levar oalimento à boca sozinho.

Os padrões e condutas mudam ao mesmo tempo em que mudaa afetividade, diria, talvez, que isto acontece concomitantemente, sempodermos definir o que muda primeiro. E a iniciação aos padrões decomportamentos civilizados continua, ao ensinar a criança a tomarbanho, a não andar nua, a diferenciar-se do sexo oposto pelas atitudesou vestimentas masculinas ou femininas, a não poder tocar nos seusórgãos sexuais diante de outras pessoas. São mostras de que o que estáacontecendo é uma mudança de grau de afetividade, que resulta emuma mudança de estrutura cognitiva de aprendizado das emoções, jána infância.

O maior ou menor desconforto que sentimos com pessoas quediscutem ou mencionam suas funções corporais maisabertamente, que ocultam ou restringem essas funções menosque nós, é um dos sentimentos dominantes no juízo de valor“bárbaro” ou “incivilizado”. Tal, então é a natureza do “mal-estar” que nos causa a “incivilização” ou, em termos mais precisose menos valorativos, o mal-estar ante uma diferente estrutura deemoções, o diferente padrão de repugnância ainda hoje encontradoem numerosas sociedades que chamamos de “não-civilizadas”,o padrão de repugnância que precedeu o nosso e é sua precondição.Surge a questão de saber como e por que a sociedade ocidentalmoveu-se realmente de um padrão para outro, como foi“civilizada” (ELIAS, 1994, p. 72).

“Civilização” e “incivil”, como nos afirma Elias (1994, p. 169),são estágios de um mesmo processo que não constituem antítese de

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juízos de valor entre o bem e o mal, certo ou errado. O nossocomportamento “civilizado” pode causar embaraços para as futurasgerações. Imaginemos daqui a trezentos anos, talvez nossos descendentesao olharem para nós, nos vejam da mesma forma que hoje olhamospara os padrões de comportamentos da Idade Média, sem nosreconhecermos neles. “Dividir uma cama com pessoas estranhas aocírculo familiar fica cada vez mais embaraçoso.” Torna-se mais comumque na mesma família cada um tenha sua cama e hoje já percebemosuma tendência imposta pela privacidade, que cada um tenha seu próprioquarto.

Desde cedo as crianças são treinadas nesse isolamento dos demais,com todos os hábitos e experiências que isto traz. Só selembrarmos como parecia natural na Idade Média que estranhos,crianças e adultos compartilhassem a mesma cama é quepoderemos compreender que mudanças nos relacionamentosinterpessoais se manifestam em nossa maneira de viver. Ereconhecer como está longe de axiomático que a cama e o corpodevam formar essas zonas de perigo psicológicas, como acontecena fase mais recente da civilização (ELIAS, 1994, p. 169).

Entretanto, a simples constatação não resolve o padrão de umnovo comportamento, o que é necessário é entender como se dá estatransformação em pequenas atitudes cotidianas e historicamenteconstruídas, a fim de contextualizarmos os vários aspectos da infânciano processo civilizatório.

A “civilização” que estamos acostumados a considerar como umaposse que aparentemente nos chega pronta e acabada, sem queperguntemos como viemos a possuí-la, é um processo ou partede um processo em que nós mesmos estamos envolvidos. Todasas características distintivas que lhe atribuímos – a existência demaquinaria, descobertas científicas, formas de Estado ou quequer que seja – atestam a existência de uma estrutura particular derelações humanas, de uma estrutura social peculiar, e decorrespondentes formas de comportamento. Resta saber se amudança em comportamento, no processo social da “civilização”

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do homem, pode ser compreendida, pelo menos em fasesisoladas e em seus aspectos elementares, com qualquer grau deprecisão (ELIAS, 1994, p. 73).

Os costumes estão enraizados nas sociedades de tal maneiraque não nos cabe julgar se são “civilizados” ou não, o que interessa ésaber como eles são importantes e necessários exatamente da maneiracomo aparecem. Há alguns anos, seria “normal” em nossa sociedadeirmos até a praia e deixarmos um rastro de sujeira atrás de nós. Hoje,nos últimos vinte anos, talvez, o mesmo ato desperta em algumaspessoas um sentimento de repulsa e de “incivilização”. Durante oprocesso não percebemos totalmente todas as nuances, entretanto, elasse dão no cotidiano, em pequenas atitudes que podem revelar grandescompreensões de uma série de aspectos que elegemos comoimportantes. As relações humanas tomam formas, se moldam, a partirda estrutura social em que estão envolvidas, gerando o comportamentoque passa a ser incorporado ou não.

Nem sempre pode nossa consciência, sem hesitação, recordaressa outra fase de nossa própria história. Perdeu-se para nós afranqueza despreocupada com que Erasmo e seu tempo podi-am discutir todas as áreas de conduta humana. Grande partedo que ele diz ultrapassa nosso patamar de delicadeza (ELIAS,1994, p. 72).

As crianças eram ensinadas, há trinta anos, que a água era umrecurso inesgotável, pois o processo de evaporação das águas dos riostransformava-se em chuva e assim completava-se o ciclo inesgotávelda água. Hoje as crianças estão sendo ensinadas a mudar estecomportamento, já que a água é um recurso escasso e está acabando,podendo comprometer a vida do planeta. A infância contemporâneajá adquiriu esse novo comportamento e as nossas crianças jádemonstram atitudes simples que expressam nas atividades escolares,através de desenhos, cartazes, ao aprender a fechar a torneira depoisde usar, a não desperdiçar água ao tomar banho, a se manifestar ao

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ver um rio próximo de sua casa poluído. Ainda não sãocomportamentos que se naturalizaram entre os indivíduos da nossasociedade, mas já apontam para este fim.

Enfim, podemos perceber que não há radicalização abrupta nasformas de mudanças comportamentais para as quais os temposhistóricos exigem de determinadas relações humanas figurações emuma formação social cuja dimensão é variável. O equilíbrio de tensõesserá responsável por modelar as dependências recíprocas entre osindivíduos. Mas, percebe-se que as relações, no que se refere à infância,sofreram transformações

e só agora, na era que tem sido chamada “o século da criança”,surge o entendimento de que, dado o aumento da distânciaentre uns e outros, crianças não podem se comportar comoadultos que lentamente iriam penetrando no círculo familiarcom os apropriados conselhos e instituições pedagógicas (ELIAS,1994, p. 169).

Tem início aí a preocupação da sociedade com a educação dacriança – para modelá-la ao processo civilizador – de acordo com ospadrões de comportamento aceitos no mundo dos adultos. A educaçãoescolar tem seu papel fundamental, juntamente com a família, para acontinuidade do processo civilizador, que vai se construindo, na medidaem que o indivíduo, desde a infância, passa a ter um novo padrão decomportamento, ou uma estrutura psicológica com novascaracterísticas, atuando de maneira diferente na sociedade, ajudando amodificar as relações sociais nela existentes. É uma relação decorrespondência constante e histórica entre as estruturas psicológicas esociais, que vão passando de geração a geração, e assim formando oprocesso civilizador de Norbert Elias.

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INFANCY IN THE CIVILIZER PROCESS

Abstract: The present work intends to discuss some issues concerning thecivilizer process of the German sociologist, Norbert Elias. Specifically, thecontributions of childhood as they relate to the corresponding relations whichoccurred between social changes and psychological structure alterations ofindividuals affecting patterns of behavior, so that we can think about thecontributions of childhood for this process. We base this study on the workentitled The Civilizer Process, in which the author makes a historical analysisof the changes in the development of personality and social rules in the formationprocess of modern civilization for the present. Understanding civilization as anunfinished and ongoing process, we point out childhood as a crucial feature forthe modeling of patterns of behavior of the individual for the development ofmodern society.

Keywords: Childhood. Civilizer Process. Behavior Pattern.

Referências bibliográficas

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LIPMAN E O ENSINO DEUMA FILOSOFIA IDEAL

Liliane Barreira Sanchez*

Resumo: Este trabalho apresenta os princípios gerais do Programa de Filosofiapara Crianças de Matthew Lipman, questiona alguns de seus pressupostosfilosóficos e pedagógicos, criticando seu caráter normativo e contraditório.Questiona os objetivos deste programa, baseado no ensino da lógica e naformação de valores. Critica a proposta de neutralidade política e ideológica deum ensino de filosofia, que pretende formar bons cidadãos para conviver emuma sociedade democrática ideal, através do uso de metodologias específicaspara esse fim.

Palavras-chave: Filosofia. Educação. Infância.

Na década de 60, o filósofo norte-americano Matthew Lipmansistematizou um programa de ensino de filosofia para crianças, com oqual pretendia reformar o sistema educacional americano, a seu ver atéali incapaz de promover o desenvolvimento adequado do raciocínio e

* Doutoranda em Filosofia da Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro(Uerj). E-mail: [email protected].

DOSSIÊ TEMÁTICOInfância e Educação

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III n. 4 p. 29-48 2005

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da capacidade de julgar dos alunos. Para tanto, segundo Lipman, aprática da filosofia era indispensável. Além de buscar fundamentarteoricamente o papel da filosofia na educação das crianças, o autordesenvolveu uma metodologia e um currículo específicos, destinadosàs escolas. Dessa forma, institucionalizou uma nova área de interesseda educação (e por que não dizer, da própria filosofia?): o de fazerfilosofia com crianças. A proposta, que chegou ao Brasil na década de80, é atualmente aplicada em mais de 30 países do mundo, tendoinspirado críticas e alternativas. Da mesma forma, muitos dos estudos,dissertações e teses a que deu origem pretendem hoje questionar suasbases, sua metodologia e prática.

Em que pesem todos os questionamentos a que vem sendosubmetida, talvez um dos méritos que não se pode negar à iniciativade Lipman é o de trazer para o campo da reflexão filosófica umobjeto que pouco a freqüentou: a infância. Além disso, é precisoreconhecer que, ao menos pelas reações que suscitou, a proposta deLipman reavivou o debate sobre a qualidade crítica do ensino defilosofia correntemente ministrado nas salas de aula. Muitos são ostrabalhos que, principalmente entre as décadas de 70 e 90, debruçaram-se sobre este assunto, motivados pelas discussões sobre a retirada doensino de filosofia da grade curricular, na época da ditadura militar, eseu posterior retorno, num momento considerado de “aberturapolítica”. A maioria destes trabalhos enfatizava o prejuízo ocasionadopelo caráter formal e artificioso que acompanhava a tradição didáticada filosofia, que regularmente substituiu a busca de desenvolvimentodo pensamento original dos alunos pela transmissão de uma históriade autores e correntes. A filosofia acabava por tornar-se uma disciplinaenfadonha, com datas e nomes a serem decorados, ao invés de umadisciplina estimuladora de questionamentos e raciocínios criativos.

O que pretendemos com este trabalho, a despeito da grande evariada quantidade de críticas que a proposta lipmaniana vemrecebendo, é concentrar nosso foco na abordagem que tal propostaapresenta sobre o ideal de um ensino de filosofia, ou, como dissemos

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no título, sobre “o ensino de uma filosofia ideal”. Com isso, acreditamosestar oferecendo uma contribuição, ainda que provisória, para aquiloque vem sendo o principal objeto de nossa preocupação: o caráterexpansionista de tal proposta, sua disseminação mundial e suaassimilação pouco crítica em alguns contextos. Consideramos ser umatarefa urgente analisar os pressupostos ideológicos que a embasam,tendo em vista as prováveis conseqüências que sua adoção poderáacarretar ao campo da educação e da filosofia, sobretudo em nossopaís. Não podemos deixar de mencionar que tal proposta é igualmentemerecedora de análises críticas no que diz respeito a muitos outrosaspectos que lhe são próprios – sejam eles de natureza prática, talcomo a sistemática preconizada pelo autor e sua equipe para a adoçãoe a comercialização do Programa, sejam eles de ordem teórico-conceitual, como é notadamente o caso, dentre outros, da visão dopapel do professor, da concepção de democracia e cidadania e dotipo antropológico de aluno e de infância que estão nas bases do projeto.

No que diz respeito ao nosso objetivo, identificamos umafundamentação claramente normativa na proposta lipmaniana. O autorse preocupa em descrever como “deve ser” uma educação filosóficadas crianças, partindo de quatro conceitos: filosofia, investigação, diálogo eeducação democrática. Segundo o autor, faz-se filosofia quando se praticamregras que se definem pelos parâmetros lógicos e metacognitivos deum diálogo ou uma investigação. Lipman identifica como filosóficasas perguntas que questionam um tema comum (que tenha a ver comtodos os seres humanos e não apenas com alguns poucos, que tenha aver com a “humanidade” dos seres humanos), central (que desprezedetalhes ou particularidades sem maior significado, e coloque questõesde importância para a vida, tais como: liberdade, vida, morte, amizade)ou controverso (capaz de gerar uma polêmica nunca esgotada pelainvestigação).

Lipman concebe como “investigação” toda prática autocríticae autocorretiva. Ele propõe a criação da “comunidade de investigação”como “novo paradigma” em educação, pelo qual as aulas deveriam

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deixar de ser aquilo que são, para converter-se em círculos deinvestigação filosófica. O conceito de “comunidade de investigação”recebe influência significativa da tradição pragmatista, representada nosEstados Unidos por Charles S. Peirce e John Dewey, entre outros.

Em particular, Lipman fundamenta sua teoria usando comobase os conceitos de comunidade e de investigação presentes na filosofia deCharles S. Peirce, destacando sua importância no processo de produçãodo conhecimento. Para Peirce, a dúvida é o elemento inicial de umainvestigação científica, que envolverá a comunidade num processo debusca de respostas (crenças). Porém, essas respostas (crenças) tambémdevem ser continuamente confrontadas com as experiências vividas(empirismo), fazendo com que o processo de conhecimento seja umainfinita busca por argumentações e contra-argumentações, ou umainvestigação sempre aberta a novas verdades e possibilidades. Destaforma, as respostas a serem produzidas (crenças), quando consolidadasdepois de alguns confrontos, tornar-se-iam mais firmes, maisconsistentes. Porém, como é no âmbito da própria comunidade queessas crenças se solidificam, nela encontrando seu solo e suaspossibilidades de interpretação, a comunidade desempenha um papelcrucial no processo do conhecimento, fixando antecipadamente, pode-se dizer, as metas e os limites de cada investigação. Percebe-se, assim,que a transposição operada por Lipman do ideal peirciano de“comunidade científica” para o campo da filosofia não se dá sem umcusto ideológico bastante alto.

Para Lipman, a comunidade é o lugar do diálogo filosófico,que é o caminho autêntico para se fazer filosofia. O autor entende queuma pessoa se constitui pelas normas e valores que adquire no convíviosocial, por isso, é de suma importância cultivar atitudes democráticas efilosóficas na sala de aula, na comunidade de investigação, para que se possamformar alunos com ideais democráticos e atitudes filosóficas. É desuma importância o estabelecimento de tal comunidade, já que, aoestimular o que ele chama de “diálogo filosófico”, ela forneceriadesenvolvimento ao modelo ideal de sociedade, que, por sua vez,

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produziria o modelo ideal de indivíduos. Toda a proposta de Lipman éassim definida por “modelagens”, pela busca de um ideal de homema ser alcançado através da educação filosófica das crianças.

Quanto a Dewey, sua influência sobre Lipman se fazespecialmente visível em sua definição de educação. Dewey vê aeducação como uma forma de aprimorar a experiência do estudante,reorganizando-a, reconstruindo-a, enriquecendo-a. Esse enriquecimentose dá através das ferramentas que a educação propicia ao estudantepara o aprimoramento de suas experiências futuras. Para isso, é precisoque a educação escolar forneça os instrumentos que propiciem aoaluno o estabelecimento de contínuas conexões entre a experiência dopassado, do presente e do futuro, entre a experiência social e individual.Dewey vê na escola o espaço de construção do pensamento do aluno.Por isso, critica a concepção de ensino-aprendizagem baseada apenasna transmissão de conteúdos, que ele considera um processo passivode aprendizado. Longe de desprezar o conhecimento, ele o consideracomo um meio para aprimorar o desenvolvimento do pensamento ejulgamento do aluno, que seriam as atividades principais do processoeducativo. Para Dewey, enfim, a educação é um processo de trocaentre os interesses dos estudantes, suas inquietações e as demandassociais que a escola representa.

Nesses termos, estabelece-se a importância que Dewey atribui àfilosofia, como disciplina que, por excelência, cultiva o pensar eproblematiza a experiência. O autor rejeita a concepção especulativada filosofia que não se compromete com a experiência social: para ele,esta disciplina está intimamente relacionada à concepção de educação,com a qual compartilha suas finalidades, promovendo o enriquecimentoda experiência, e seu questionamento. Porém, são evidentes os limitesque a filosofia recebe na formulação de Dewey, que a concebe comouma teoria geral da educação, não reservando à disciplina qualquer lugarespecial na prática educativa – ao contrário do que é levado a fazer emrelação às ciências, para as quais reserva um espaço mais do que central.Poder-se-ia dizer que Lipman toma em contrapelo as disposições de

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Dewey, não fossem, em sua obra, as fronteiras entre filosofia e ciênciatão pouco nítidas.

Lipman se fundamenta, ainda, na estreita relação que Deweyconstrói entre educação e democracia. Para ambos os autores, ademocracia é a forma de vida mais apropriada ao enriquecimentohumano, pois apenas num contexto democrático é possível ao homemproblematizar e recriar os diversos aspectos de sua experiência. Comoas instituições educativas atuam na ordem social, os autores propõemuma educação “para” e “na” democracia, na medida que uma provêas ferramentas necessárias aos estudantes para o desenvolvimento daoutra, e vice-versa. A educação deve cumprir uma funçãodemocratizante na vida social dos alunos, possibilitando a compreensãodos fundamentos da ordem social, suas causas e conseqüências. Somenteo contexto democrático garante a liberdade e a possibilidade dainvestigação e do pensamento.

Lipman pretende valorizar essa relação entre educação edemocracia centralizando seu foco no ensino da filosofia. Ele consideraque desde o início da formação escolar as crianças estão aptas à práticada filosofia. Assim, caberia à filosofia preparar as crianças para pensarnas outras disciplinas, isto é, tanto para pensar a partir quanto sobre cadadisciplina; e lhe caberia, igualmente, outorgar unidade ao que aparece,no currículo, disseminado. Lipman considera a filosofia como umaprática que fornece à experiência educacional seu sentido e asferramentas que lhe são indispensáveis.

Para construir um diálogo entre as crianças e a tradição ocidentalda filosofia, Lipman criou “novelas filosóficas”, que, segundo ele,apresentariam os problemas filosóficos em linguagem e contextoconsiderados adequados para os seus leitores. Por outro lado, Lipmanpostula o interesse das crianças como o ponto de partida de todainvestigação nas salas de aula. Assim sendo, o programa “filosofia paracrianças” seria o produto da interação entre os interesses, problemas einquietudes das diferentes faixas etárias e aquilo que a metodologialipmaniana preparou para desenvolvê-los “adequadamente”.

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Instrumentos centrais dessa metodologia, as “novelas filosóficas”escritas pelo próprio autor e seus colaboradores, apresentam diálogosentre crianças, pais, vizinhos, professores, tentando simular situaçõescom as quais as crianças-leitoras possam se identificar. As crianças-personagens representam modelos de “investigadores” que debatemquestões significativas do seu cotidiano. Para que os professores semformação filosófica possam lidar com a proposta em sala de aula,Lipman também elaborou manuais que propõem exercícios e planosde discussão a partir das idéias principais contidas nas novelas. Contam-se, ao todo, oito novelas, adequadas para as diferentes séries escolares;no Brasil, somente cinco foram traduzidas e aplicadas. Elas se propõema trabalhar principalmente temas lógicos (raciocínio analítico) e éticos.

Um ponto ausente na proposta de Lipman é a consideraçãodas implicações que o fechamento ideológico em que vivem associedades e grupos sociais poderia suscitar em seu programa. Defato, apesar dos seus pressupostos teóricos de sustentação, a propostade Lipman pretende que as aulas de filosofia para crianças possam serideologicamente neutras – ou capazes de neutralizar a ideologia que ascrianças trazem de seu meio. Seria possível formar cidadãos críticospor meio de aulas de filosofia ideologicamente neutras? Seriam possíveisaulas de filosofia ideologicamente neutras? Então, de que filosofiaestamos falando?

Vários filósofos e educadores, ao longo da história da educação,defenderam diferentes argumentos, métodos e objetivos sobre o sistemaeducacional; todos eles, divergentes ou não, apontam, porém, parauma direção que não deixa dúvidas: a grande importância social deum sistema educativo para a manutenção ou transformação de umregime político e econômico de governo. Sendo assim, e levando-seem conta a dimensão da aceitação de que a proposta lipmaniana temsido objeto, cabe questionar: o que pretende claramente essa propostae o que dela podemos esperar? Que ideologias políticas e pedagógicassustentam os argumentos teóricos que pretendem fazer do ensino defilosofia uma ferramenta para a formação de cidadãos críticos,

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participativos e éticos? Que metodologias e conteúdos têm sidoaplicados ou sugeridos em sala de aula e em que medida eles têmsustentado uma prática coerente com a proposta teórica?

Lipman, seguindo Dewey, prioriza o desenvolvimento dopensamento e do julgamento no processo educacional. Por considerara filosofia como a disciplina dedicada ao pensamento, reserva-lhe lugarde destaque de máxima importância no currículo escolar: ela seria capazde problematizar a realidade, contribuindo inclusive para aproblematização dos diferentes conteúdos das outras disciplinas econstruindo uma ponte de “sentidos” capaz de unificar o currículoescolar. Segundo o autor, a filosofia seria, mais ainda, capaz detransformar o modo de vida das pessoas, por fazê-las capazes depensar melhor, de investigarem com espírito crítico e criativo, de seremmais razoáveis e de serem mais cuidadosas em suas relações sociais eintelectuais.

Enfim, a filosofia se revelaria a própria base da educação, namedida em que se apresenta como ferramenta para o desenvolvimentode todo o pensar – tanto aquele que denomina de “normal” (oucotidiano) quanto o que define como “Pensar de Ordem Superior”.O primeiro seria o pensamento acrítico e mecânico, enquanto que osegundo combinaria as três características máximas da reflexão:criticidade, criatividade e cuidado.

Por criticidade no Pensamento de Ordem Superior, Lipmanentende a capacidade questionadora e deliberativa que problematiza,examina e avalia as razões, os fundamentos e as crenças. Umpensamento crítico é autocorretivo e sensível ao contexto no qual estáinserido. Por criatividade, o autor entende a capacidade de inovar, deser pluralista e independente, aplicando determinados critérios na buscade juízos que transcendem a si mesmos e enfatizando a variedade e adiferença. Por cuidado ele entende a aplicação de valores no própriopensar, considerando a dimensão da emoção daquilo que se aprecia,que se considera importante, valoroso, tal como o exemplo de umaobra de arte ou a atenção dada às relações humanas.

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Estes elementos convergem para o primeiro ponto quegostaríamos de destacar no Programa de Lipman: trata-se da idéia deque crianças que aprendem a desenvolver um Pensar de OrdemSuperior se tornariam, de forma quase que necessária, razoáveis,tolerantes, respeitosas e democráticas. É desta forma que Lipmanfundamenta a função sociopolítica da “educação para o pensar”. Assimsendo, compreende-se que a filosofia para crianças apóia-se em umanormatividade pela qual se pretende que, através do uso edesenvolvimento de algumas ferramentas lógicas e cognitivas, sedesenvolva um determinado tipo de ser humano capaz de umdeterminado tipo de convivência na sociedade. Eis porque e sobreque bases Lipman enfatiza a necessidade de se ensinar “filosofia” desdea mais tenra idade, registrando a tempo e a contratempo a necessidadede que esse ensino as acompanhe por toda a vida escolar, direcionandoo currículo e a própria educação: disso depende, em sua avaliação, acerteza de formação de um bom cidadão democrático, que seria frutonecessário dessa proposta educativa. Envolvendo as crianças emdiálogos filosóficos nas comunidades de investigação, já se estaria desdecedo fazendo com que elas vivenciem um “modelo” que vale pelaprópria democracia, com que elas se acostumem às regras democráticasda deliberação e do respeito ao próximo.

Um segundo ponto a destacar é o do próprio terreno sobre oqual o autor edifica sua proposta filosófica de formação de cidadãoscríticos, criativos e cuidadosos. Como dissemos, Lipman afirma,repetidamente, que a democracia precisa da filosofia como ferramentade preparação para a deliberação democrática. Porém, para o autor, ofiel do diálogo filosófico em uma comunidade de investigação é alógica – que garantiria a sua condução e direção. A lógica direcionariao diálogo, não permitindo que ele se perdesse ou se tornasse confuso.Ela se apresenta, pois, no projeto lipmaniano como a metodologiaimplícita que conduz a investigação. Mais ainda, para Lipman, a lógicaé fundamental no raciocínio, possibilitando a descoberta do critério daverdade. Um bom pensador, imagina o autor, precisa dominar alguns

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critérios, tais como: narração, descrição, análise de conceitos, traduçãode significados, interpretações, inferências, capacidade para sínteses epara se pôr no lugar do outro… e seria a lógica a garantia de aquisiçãode, pelo menos, alguns desses, senão de todos.

Em sua proposta de “educação para o pensar”, Lipman pretendetrabalhar o tema específico da lógica com crianças de 10/11 anos deidade, o que equivale no Brasil à 5ª série do ensino fundamental. Anovela destinada a essa função recebeu, na tradução brasileira, o títulode A descoberta de Ari dos Telles (supostamente uma brincadeiracom o nome de Aristóteles) e seu manual de instruções (dedicado aouso dos professores) foi intitulado Investigação filosófica. Em ambosos volumes, trata-se de ensinar, através de situações de diálogos entreos personagens, os conteúdos básicos da lógica identitária e de relações,tal como se apresenta na experiência “informal”; mas, um espaçoconsiderável é reservado à formalização aristotélica. Não se registra,entretanto, em qualquer passagem de tal novela, a preocupação emmostrar as possibilidades de contestação das verdades lógicas, assimcomo não há um propósito aparente para se questioná-la. Trata-seapenas da imposição de uma ferramenta que deve ser ensinada aosalunos, que deve ser internalizada por eles, da mesma forma comoacontece com os personagens das novelas. Para garantir um bomresultado desse aprendizado, o manual oferece um grande número deexercícios que devem ser aplicados pelo professor.

Ao atribuir tamanha importância à lógica, Lipman define o tipode enfoque dado à filosofia e ao pensamento em sua proposta, que,longe de enfatizar o caráter provisório, aberto e plural da reflexãofilosófica, privilegia o estabelecimento de determinadas regras eparâmetros que, segundo o autor, permitiriam a construção daquiloque é por ele denominado “pensamento”. Repare-se que é esseprivilegiamento da lógica que determina o caráter aparentemente“neutro” do ensino filosófico, em nome do qual o caráter conflitualdo campo político se esfumaça e a educação passa a servir a apenasuma abordagem da filosofia – ainda que o autor insista em proclamar

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que seus propósitos servem a um regime democrático de governo. Éesse privilegiamento, ainda, que fornece ao autor as bases de definiçãoapriorística das regras e das metas da democracia, da mesma formacomo permite determinar de forma acabada e universal a “filosofia”que deve ser aplicada, seus objetivos, métodos e mesmo seusinstrumentos – as novelas e manuais. Profundamente determinista, aconcepção de ensino de filosofia proposta por Lipman deixa, éevidente, pouco ou nenhum espaço para um diálogo com outraspossibilidades do vir a ser, não oferece qualquer abertura ao novo, aooutro, a algo que possa ser diferente dessas definições. Fecha porcompleto a discussão filosófica.

Correlata à tentativa implícita de “neutralização” da reflexãofilosófica, a pretensão à universalidade que atravessa o projeto de ensinode filosofia para crianças introduz problemas insolúveis para a propostalipmaniana. Tanto a filosofia como a educação são práticas históricas esociais. Os materiais de Lipman (novelas e manuais) foram produzidosnos Estados Unidos, nas quatro últimas décadas: apesar daespecificidade dos temas e diálogos neles contidos, mantêm umapretensão de universalidade. Mas, por um lado, se de fato os temasfilosóficos dizem respeito à humanidade em geral (macrocosmo), emque condições poderiam eles fundamentar um pensar sobre a práticasempre particular de cada contexto? Por outro, sendo impossível negarque a recepção desses temas deve (ao menos teoricamente) variarsegundo esses contextos e culturas que atravessam (microcosmo), queespaço é concedido pelo programa à originalidade das criações locais?É preciso, assim, pensar sobre as implicações do uso de materiaispreviamente formulados e sua intencionalidade. Em que sentido e atéque ponto é possível conciliar a defesa de uma educação democráticaà oferta de manuais acabados? Como conciliar a determinação contidanos pressupostos, métodos, procedimentos e instrumentos com adefesa de uma investigação filosófica? Nesse sentido, a normatividadepresente em todos os aspectos, teóricos e práticos, da proposta deLipman denunciam seu caráter profundamente contraditório.

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Repare-se, no entanto, que muito do sucesso amealhado peloPrograma de Filosofia para Crianças repousa no caráter acabado,operacional da proposta de Lipman – que se oferece como um conjuntoprogramático até os mínimos detalhes. Não há dúvidas, ainda aqui,que é a lógica a ferramenta de conversão de seu sistema em umprograma tão sedutor, por sua acessibilidade e sua convergência. Mascomo poderiam a educação democrática, e a reflexão filosófica seacomodarem a materiais e metodologias que pressupõem umaconcepção tão instrumental da filosofia? Assim, o milagre operadopor Lipman parece depender inteiramente da redução das realidadeshumanas, inclusive das questões éticas apresentadas em suas novelas,ao que permite o emprego das ferramentas lógicas de seus manuais.

Lipman pretende que lógica e ética estejam presentes em todasas novelas, porém define Ari como a novela que aborda principalmenteo ensino de lógica e Luísa como a que aborda a discussão de temaséticos. Luísa é uma novela destinada a crianças de 12/13 anos – e, noBrasil, deveria ser adotada na 7ª e 8ªséries do ensino fundamental. Emoutras palavras, o método prevê que o aprendizado das ferramentaslógicas seja anterior à discussão ética, por pressupor que o primeiro écondição da segunda. Além disto, não se preocupa o autor em fornecerargumentos que justifiquem a eleição dos temas propostos para adiscussão, sua real importância, ou seus verdadeiros propósitos. Lipmanlimita-se a apresentá-los, pretendendo que sejam universais, em oferecerelementos que pudessem favorecer sua (re)contextualização. Essaimposição fornece um caráter artificial e uma superficialidade quedificilmente podem ser superados pelo professor, e que acabam pordeterminar o formalismo com que professores e alunos são conduzidosa se relacionar com a questão ética.1

1 Lipman fundamenta seu conceito de educação ética em três autores: Aristóteles, Kant eMill. Do primeiro, afirma extrair a idéia de que a função que caracteriza os seres humanosé viver de acordo com a razão e que uma coisa pode ser considerada boa quando cumprebem sua função: por isso, quanto mais racional for o homem, mais chances tem de serbom. Do segundo, retira o conceito de “lei moral universal”, pela qual os seres humanosdevem agir de acordo com aquilo que consideram ser a forma correta de todos agirem.Do terceiro, adota a abordagem utilitarista, o conceito de felicidade geral, a relação entre

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Note-se, no entanto, que Lipman afirma que não se devepretender prover as crianças com teorias éticas predeterminadas, quesirvam de guias de suas condutas, mas sim capacitá-las através dainvestigação com as ferramentas de raciocínio necessárias para um bompensar (autocrítico e autocorretivo). Ressalta ainda que é a filosofia quepode cultivar todas as habilidades de pensamento que os assuntos sociaispossam requerer, através do desenvolvimento de conceitos, dacapacidade de definições, de inferências, de conexões, distinções, eraciocínio analógico. Porém, considera que o caráter das pessoastambém tem importância significativa para a vida dos cidadãos. Aafirmação seguinte evidencia a relação que o autor estabelece entreeducação ética e o desenvolvimento de algumas habilidades atribuídaspor ele ao ensino de lógica:

Uma pessoa que tem o caráter de “bom cidadão” é aquela queinternaliza – isto é, adota como seus – os mecanismos sociais deracionalidade na prática institucional. Assim, membros de umcomitê de seleção, cujas crenças e atitudes pessoais são diversas,concordarão com a necessidade de imparcialidade de evidências,especificações de trabalho claras e precisas, metas, objetivos ecritérios de avaliação para que os candidatos sejam escolhidosjustamente (LIPMAN, 1990, p. 67).

Contrariamente a sua proposta de um ensino de filosofia“neutro”, o autor afirma que, propositalmente ou não, quem ensinaalgo está sempre ensinando valores também e que o que deve ser feitoé estar atento para um ensino “melhor” de valores, que sejam mais

o bem de cada indivíduo e o bem de todos. Da junção desses elementos, Lipmanformula seu ideal ético, baseado no uso adequado das habilidades cognitivas, na buscapor um consenso razoável, apoiado em argumentos racionais e no diálogo filosófico edemocrático. Para Lipman, as crianças devem ter a possibilidade de experimentar a vidanum contexto de respeito mútuo, de diálogo disciplinado, de investigação cooperativa,livre de arbitrariedade e manipulação, contexto este que é o que ele idealiza como sendouma classe de filosofia para crianças, uma “comunidade de investigação”. Ele afirma quenada aprimora mais as habilidades de raciocínio do que uma conversa disciplinada e queesta, por sua vez, deve seguir às regras dadas pela lógica (LIPMAN, 1990, p. 67). É como umtrabalho circular, no qual as habilidades direcionam o diálogo, ao mesmo tempo em quesão reforçadas por ele. Para o autor, o diálogo é a condição da civilidade.

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racionais e saudáveis. Para isso, ele sugere que se trabalhe com algunscritérios, tais como a abordagem da ambiguidade de valores, através da qualos valores considerados genuínos seriam aqueles oriundos dainvestigação de valores; o fortalecimento do caráter, entendendo por carátero conjunto de hábitos que uma pessoa dispõe para comportar-se demodo recomendável em relação às obrigações cívicas (em se tratandode educação de valores, de formação ética), através do envolvimentodas crianças em discussão de valores de maneira participativa ecooperativa, acatando as regras da discussão, ouvindo umas às outras,dando razões de seus pontos de vista e pedindo razões de seus colegas,aprendendo a apreciar a diversidade de perspectivas e a necessidadede contextualização; a aplicação das habilidades de raciocínio, representadaspelo uso de categorias lógicas (fazer inferências, trabalhar comcoerências e contradições, lidar com ambiguidades, formular questões,compreender relações, dar razões, identificar suposições, fazer analogias,desenvolver conceitos, generalizar, reconhecer imprecisões, construirhipóteses, contextualizar, antecipar, prever e estimar conseqüências,classificar e categorizar); a avaliação como foco da investigação de valores,partindo da idéia de que o modo disperso pelo qual geralmentepensamos não é o modo como podemos e devemos pensar, mas simpodemos e devemos estar constantemente avaliando e reavaliandotudo o que envolve o nosso pensamento (inclusive ele próprio), atravésdo emprego de critérios de aperfeiçoamento e conscientização; e o usode uma pedagogia apropriada para a investigação de valores, que deve assumira forma de investigação dialógica, numa atmosfera de cooperaçãointelectual e respeito mútuo, para que as crianças possam se familiarizarcom os diferentes pontos de vista e perspectivas, possam se acostumara desafiar e serem desafiadas, a dar razões, a refletir crítica eobjetivamente sobre os seus e os pontos de vista alheios e, enfim,tornarem-se mais confiantes.

A filosofia é, para Lipman, a disciplina ideal, capaz de prover oambiente ideal para que as características necessárias a uma educaçãode valores aconteça, não só por considerar a ética um ramo da filosofia,

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mas também por considerar que os modelos de discussões einvestigações filosóficas sempre levam a um aprendizado sobre relaçõeshumanas e sociais, sempre levam a uma tomada de consciência emrelação ao outro, aos seus argumentos e a uma reavaliação de sua própriapostura e de seus próprios argumentos. Diz o autor: “Quando se tratade raciocínio ético, a filosofia é um método indispensável, a subdisciplinada lógica é um aparato indispensável” (LIPMAN, 1990, p. 95).

Mas, seria a filosofia um “método” para se ensinar alguma outracoisa (no caso, valores)? Ou seria a filosofia um conjunto de conteúdosa serem ensinados? Essas e outras perguntas acompanham osprofissionais da área, desde o início de suas formações, principalmentese resolvem seguir carreira como professores, o que ocorre na maioriadas vezes. Afinal, o que deve ser ensinado em uma aula de filosofia epor quê? Enquanto diversos profissionais da área tentam aprofundaressa questão em encontros, seminários e congressos, Lipman oferecesua resposta através de sua definição de filosofia:

A filosofia tenta clarear e iluminar assuntos controversos edesordenados que são tão genéricos que nenhuma disciplinacientífica está equipada para lidar com eles. Os exemplos poderiamser conceitos como verdade, justiça, beleza, individualidade evirtude. Ao mesmo tempo, a filosofia tenta perturbar nossasmentes em relação àqueles assuntos que tendemos a tomar porcertos, insistindo que prestemos atenção aos aspectos que atéagora achamos conveniente relevar. Qualquer que seja o assunto,entretanto, o objetivo da filosofia é o de cultivar a excelência nopensamento, e os filósofos fazem isso examinando o que é pensarhistoricamente, musicalmente, matematicamente – em uma únicapalavra, pensar excelentemente nas disciplinas.Todavia, há algo de mais significativo que a filosofia traz à procurada excelência no pensamento, e que é sua subdisciplina de lógica.A lógica é uma disciplina normativa em vez de descritiva. Isto é,ela não se esforça para descrever como as pessoas pensam, masoferece, em vez disso, critérios por meios dos quais podemosdistinguir um bom pensamento de um mau pensamento. Aindaque os lógicos possam divergir sobre uma ou outra questão, éem geral reconhecido que as considerações da lógica são de grande

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importância na determinação do que significa ser racional. Umavez que a racionalidade é o objetivo primordial da educaçãorefletiva, a lógica tem muito com o que contribuir ao cultivo dopensamento. [...].[...] Se filosofia é o que fazemos quando nossas conversas tomama forma de investigação disciplinada por considerações lógicas emetacognitivas, não temos o direito de negar o termo ‘filosofia’àquelas conversas entre crianças que empregam essa mesmíssimaforma..Antes de considerarmos em mais detalhes a contribuição que afilosofia pode dar ao fortalecimento das habilidades depensamento, deveríamos levar em consideração os modos pelosquais as áreas distintas da filosofia podem contribuir para ofortalecimento da educação. As principais áreas a seremmencionadas aqui são epistemologia, lógica, metafísica, ética eestética. Muito da fragilidade da educação moderna pode serobservado a partir do momento em que são eliminados docurrículo assuntos normalmente tratados por essas subdisciplinas(LIPMAN, 1990, p. 112).

Lipman estrutura suas aulas de filosofia para crianças da seguinteforma:

• Leitura de uma parte do texto (um episódio de uma novelafilosófica), em voz alta, pelos alunos.

• Indicação de passagens interessantes deste texto, o que permitea escolha de itens para a discussão. (Nada impede a participaçãodo professor nesta etapa).

• Discussão a respeito de um tema escolhido pelos alunos (podeser por votação).

• Para fortalecer tal discussão, o professor pode, se considerarnecessário, aplicar os exercícios sugeridos no manual. (Note-se que há uma quantidade de temas sugeridos nos planos dediscussão dos manuais para cada episódio).

• Não é necessário que a turma chegue a uma conclusão ouuma resposta única sobre a discussão, mas sim que faça umaavaliação sobre ela ao final de cada aula.

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O autor recomenda ainda que os cursos preparatórios deprofessores de filosofia sigam a mesma metodologia, para que taisprofessores possam vivenciar o mesmo processo de seus alunos. Paraele, os tópicos filosóficos exercem atração natural nas crianças, porestas serem naturalmente curiosas, questionadoras e por eles seremvagos e permitirem uma certa flexibilidade em suas definições.

Tais conceitos prestam-se prontamente ao diálogo, com os alunosencontrando-se rapidamente engajados num cabo-de-guerrasobre as várias interpretações dos conceitos sob observação. Essascapacidades de os conceitos filosóficos gerarem linhas competitivasde discussão e um senso de investigação cognitiva e cooperativaé o que faz com que pareçam tão significativos e dinâmicos àscrianças (LIPMAN, 1990, p. 110).

O fato de a metodologia de Lipman permitir e até preferir quea escolha dos temas filosóficos a serem discutidos se dê por intermédiodas próprias crianças é justificado por ele pela necessidade de concentraro foco no interesse delas, naquilo que as deixa perplexas, que a seu vercostumam ser os temas que mais se identificariam com aqueles jádenominados por ele de “filosóficos” (comuns, centrais e controversos).Ele acredita que se possa, através dos assuntos de interesses das crianças,aprofundar o desenvolvimento racional e moral delas, baseando-senas regras da comunidade de investigação e do diálogo filosófico. E,assim, evitar que elas sejam vítimas de doutrinações autoritárias ou deum relativismo insensato, pois teriam sido estimuladas pela filosofia apensarem por si mesmas, de maneira crítica e a ouvirem cuidadosa erespeitosamente os outros, perseguindo, porém, um ideal decompreensão objetiva do universo que as cerca.

Conclusão

Parece-nos bastante contraditória a proposta lipmaniana de ensinode filosofia. Se por um lado ele pretende que a filosofia reforce oambiente democrático, por permitir que se formem cidadãos plenos

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de raciocínios críticos e criativos, capazes de deliberarem, questionarem,tomarem decisões, por outro, ele define que tal ensino de filosofiaesteja fundamentado na transmissão de ferramentas lógicas. Para oautor, apenas o desenvolvimento de determinadas habilidades dopensamento pode garantir que seres humanos tenham condutas maisracionais e cuidadosas, necessárias para o convívio democrático. Emsua proposta não está mencionada claramente uma vertente de filosofiapolítica que pudesse estabelecer mais claramente uma relação com umsistema de governo qualquer.

Ele diz como deve ser o ensino de filosofia, elabora novelaspara esse fim e manuais de instruções para sua aplicação, não reservandonenhum espaço para o questionamento crítico ou a criação de novaspossibilidades de se ensinar filosofia, seja pelos próprios professoresou pelos alunos. Ao nosso ver, tal metodologia é pouco filosófica epouco democrática, pois já traz pronto um receituário a ser aplicadode determinada maneira e com determinados fins em vista. Não háum espaço para um debate filosófico de sua proposta de ensino. Há atentativa de imposição de um método, um texto pronto que pretendeapresentar determinados temas que Lipman acredita mereceremdiscussão e interesse por parte das crianças e manuais que ditam asregras, propõem formas de guiar as discussões em sala e oferecemdeterminados exercícios, cabendo aos professores aplicá-los.

O ensino de filosofia para Lipman tem um propósito, umobjetivo definido, que passa pelo ensino da lógica, pretendendo formarcidadãos que raciocinem de uma forma superior aos outros que nãodesenvolveram determinadas habilidades cognitivas e passa por umapreocupação com o ensino de valores, ao mesmo tempo que pretendepossuir neutralidade ideológica. Além de tentar limitar as possibilidadesde pensar o ensino de filosofia, Lipman propõe uma “transmissão deneutralidade”, que por si só já não pode ser considerada neutra, isentade ideologias. O autor busca estabelecer definições para a filosofia e aeducação e não abre espaço para transpô-las.

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O que ele define como raciocínio crítico se limita a aplicação deregras da lógica, o que ele define como raciocínio criativo não leva emconta a dimensão desconhecida das possibilidades do humano e o queele define como cuidadoso limita-se ao cumprimento de determinadasregras de convívio social. O que ele define como filosófico nos pareceestar definido por demais para merecer tal denominação. O que elepretende como educativo se assemelha a uma imposição normativade formação de caráter.

O autor define sua proposta como uma inovação pedagógica,porém intenciona impô-la como uma tábua de salvação para aquiloque considera ser um modelo educativo naufragado. Traz uma receitade bolo já pronta e acabada que serviria para estimular o interessecognitivo dos alunos, tão acomodado pelo gosto insosso dasmetodologias das aulas tradicionais, porém, não intenciona discutir aaplicação de seus “ingredientes”, empurrando-os goela a baixo dosalunos e professores pelo uso das novelas e manuais. Esvazia oquestionamento filosófico da subjetividade necessária para a suarealização, substituindo-a por um “diálogo filosófico” artificial efabricado, por uma metodologia de solving problems. Subtrai apossibilidade de criação, de transformação e de verdadeira inovação.

LIPMAN ET L’ENSEIGNEMENT D’UNE PHILOSOPHIE IDÉALE

Résumé: Dans ce travail, on présente les principes généraux du Programme dePhilosophie pour Enfants de Matthew Lipman. On s’interroge sur certains deces présupposés philosophiques et pédagogiques en critiquant leurs caractèresnormatifs et contradictoires. On s’interroge aussi sur les objectifs de ceprogramme basé sur l’enseignement de la logique et la formation de valeurs. On critique la proposition de neutralité politique et idéologique d’unenseignement de philosophie qui vise à former de bons citoyens pour vivreensemble dans une société démocratique idéale en faisant usage deméthodologies spécifiques à cette fin.

Mots-Clés: Philosophie. Éducation. Enfance.

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Referências bibliográficas

CANIVEZ, Patrice. Educar o cidadão. Campinas: Papirus, 1991.

KOHAN, Walter Omar. O que você precisa saber sobre filosofiapara crianças. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

LIPMAN, Matthew. A filosofia vai a escola. São Paulo: Summus,1990.

SIMON, Maria Célia Moraes Neiva. O ensino da filosofia no 2º grau:crítica ou alienação? Debates Filosóficos, Rio de Janeiro, n. 2, 1980.

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DOSSIÊ TEMÁTICOInfância e Educação

MÚSICA E CULTURA INFANTIL: UMA BREVEREVISÃO BIBLIOGRÁFICA PARA

A EDUCAÇÃO INFANTIL

Ana Lúcia Castilhano de Araújo*

Resumo: Este trabalho procura relacionar questões relativas ao ensinode artes e música na Educação Infantil, e à compreensão de uma culturada Educação Infantil a partir de algumas reflexões sobre a prática doensino de artes para crianças pequenas. O objetivo foi organizarargumentos que reforcem a questão da necessidade de se investir naformação geral da criança pequena, partindo da contribuição que asartes têm para a criança, até chegar à possibilidade de se regularizar oseu ensino nas escolas e pré-escolas.

Palavras-chave: Educação infantil. Prática pedagógica. Artes. Educaçãomusical. Cultura infantil.

* Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Docenteda Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). E-mail: [email protected]

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III n. 4 p. 49-65 2005

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Este texto tem como objetivo levantar algumas questões arespeito da educação da criança de 0 a 6 anos nos aspectos culturaisenvolvidos neste processo, a partir de uma breve revisão bibliográficana área de música e artes. O objetivo é organizar argumentos quereforcem a questão da necessidade de se investir na formação geral dacriança pequena, partindo da contribuição que as artes têm para a criança,até chegar à possibilidade de se regularizar o seu ensino nas escolas epré-escolas. A fim de falar sobre as artes na Educação Infantil, vou meutilizar, ora de textos e comentários específicos sobre música, ora sobretrabalhos e considerações sobre arte em geral. No entanto, há um veiocomum entre ambos que é a formação cultural da criança.

A proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensinofundamental organiza as Artes nos Documentos de Área, sendocolocados aí os conteúdos específicos de cada uma delas. ALDB1 determina que “o ensino da arte constituirá componente curricularobrigatório, nos diversos níveis da educação básica, de forma apromover o desenvolvimento cultural dos alunos” (BRASIL, 1996).

O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil(RCNEI) recomenda o trabalho com a criança em uma perspectivaampla. O documento considera a música como uma linguagemexpressiva, juntamente com o movimento, a expressão cênica e as artesvisuais. Esta linguagem é compreendida como um meio para odesenvolvimento infantil nos aspectos da expressão, do equilíbrio, auto-estima e auto-conhecimento, sendo importante, inclusive, para o trabalhocom as crianças portadoras de necessidades especiais.

Monique Audries Nogueira (2000) realizou uma análise dadiscografia recomendada pelo RCNEI, elogiando a listagem publicadano documento. A autora indica algumas obras que foram deixadas defora, e se detém nas obras que se aproximam do tema brincadeira. Apartir daí, analisa detidamente as obras selecionadas, dando indicaçõessobre origem e contexto cultural no qual foi criada. Em suas conclusões,

1 Lei de Diretrizes e Bases para a Educação, 9394/96, Art. 26, parágrafo 2º.

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a autora chama a atenção para a necessidade de se investir na formaçãomusical dos professores, nos cursos de pedagogia, uma vez que asimples aquisição de alguns títulos (no caso do uso do RCNEI como“receituário”) não resolve todas as questões do trabalho com músicana Educação Infantil. São importantes: o investimento na formaçãodos profissionais assim como a compreensão do desenvolvimentomusical da criança, momento em que a Educação Infantil poderiacontribuir para a formação do ouvinte. A autora propõe um trabalhode formação musical dos professores nos cursos de pedagogia.Considerando a diferença entre a instrução musical que forma músicose a educação musical, que forma pessoas apreciadoras de arte, antesde tudo, o sentido do trabalho com a música é o importante nestasituação, não sendo necessário que o professor tenha uma formaçãomusical sólida como instrumentista, por exemplo.

A questão da valorização da cultura infantil como objetivo daeducação tem sido ampliada nos últimos 20 anos, na medida em quecresce o número de trabalhos publicados com esta temática. Para SôniaKramer, as crianças são seres históricos marcados pela sociedade ondevivem, com suas contradições.

Defendo uma concepção de criança que reconhece o que é específicoda infância – a seu poder de imaginação, fantasia, criação – eentende as crianças como cidadãs, pessoas que produzem culturae são nela produzidas, que possuem um olhar crítico que virapelo avesso a ordem das coisas, subvertendo essa ordem(KRAMER,2003).

A Educação Infantil tem a função de proporcionar à criançaeducação a partir do contato com um mundo de aprendizado de suacultura, incluindo as letras e a arte. Neste sentido, vale a pena procurarcompreender o universo infantil em uma ótica diferente da do adultoe da escola. Podemos considerar que um movimento interessante nessadireção foi o valor dado à brincadeira infantil nas produções acadêmicasem todo o mundo, em trabalhos de diversas correntes como a

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culturalista francesa, antropológica, freinetiana, histórico-cultural, e assimpor diante. Além disso, o incremento de propostas de pesquisa, comapoio na metodologia etnográfica, também aproxima o pesquisadordas questões culturais envolvidas nas relações da criança com a educação,e alerta para a necessidade de a escola assumir uma posição que acateas diversas culturas da infância (QUINTEIRO, 2002).

Hasse (2004), em um levantamento de textos da AssociaçãoNacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) sobreEducação Infantil, analisa o papel da infância expressa pelos autoresdo GT 7 (Educação da Criança de 0 a 6 anos). Para a autora, a infânciaé vista como heterogênea em seus vários aspectos, assim como a criançaé entendida como um sujeito de direitos. Reconhecer a criança comosujeito de direitos implica percebê-la em sua história, como produtorade cultura, marcada pelo meio social no qual vive. Segundo a autora,as famílias são heterogêneas, e “as especificidades da faixa etária dascrianças que freqüentam as instituições de educação infantil requeremque as mesmas sejam observadas, respeitadas e que tenham voz”. Nestesentido, concebe-se a criança como aquela que é marcada pela culturana qual está inserida, mas que também produz cultura sob a forma dediscursos, e entendimento da realidade.

Seguindo uma tendência de alguns autores para expor questõesa respeito da cultura e da educação não formal de crianças, há trabalhospublicados tanto em educação, quanto em temas específicos como aeducação musical. Estão se tornando comuns publicações que abordamas questões culturais de um ponto de vista que não privilegia o olharhegemônico da cultura dominante, mas que tenta abrir espaços paraoutras linguagens, outras realidades, novas possibilidades. Estes trabalhostêm ajudado a compor um quadro em que se detecta a necessidade deampliar os olhares, inclusive sobre as crianças e os diversos tipos deinfância possíveis de serem relatados.2

2 A respeito da historiografia da infância e da discussão sobre os conceitos de infância,ver Kuhlmann Jr. e Fernandes, 2004.

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Nesta perspectiva, poderíamos citar o exemplo do multi-culturalismo3 na educação, assunto trabalhado no texto de Vera MariaCandau (2002), no qual a autora, a partir das relações entre cultura,educação e sociedade brasileira, analisa os movimentos oficiais ecotidianos de inclusão e trabalho com as diferenças, tanto as culturaiscomo aquelas relativas às necessidades especiais. Os movimentos sociaisem sua luta pela garantia de direitos, o embate teórico e cotidianoentre a cultura do aluno e a cultura da escola, são alguns processossociais desencadeantes do estudo do multiculturalismo. Oestabelecimento de processos culturais que articulem igualdade ediferença, o reconhecimento do outro, são desafios tanto paraacadêmicos como para professores em suas escolas.

Dentre os trabalhos mais específicos sobre cultura e educaçãomusical, podemos citar o de Leda Mafiolletti (2001). O texto emquestão trata dos fatores e aspectos da musicalidade no ser humano,chamando a atenção para a cultura, partindo de conteúdos específicosda espécie humana que fazem com que a música seja reconhecida oucompreendida. A autora mostra a discussão de diversos autores arespeito de linhas de pensamento sobre o conceito e papel da músicanas diversas culturas. Ressalta a necessidade de se investir na educaçãomusical das crianças, ao mesmo tempo em que mostra a importânciaque o conhecimento a respeito da produção e valoração da músicatem para os estudiosos do assunto.

Beatriz Ilari (2002) publicou um texto cujo conteúdo é umaentrevista com o professor Francis Corpataux, educador que pesquisaa música infantil em diversas culturas. Seu interesse é a respeito dodesenvolvimento musical das crianças em todo o mundo, ressaltandoo que há de cultural e geral na música infantil. Faz parte de sua pesquisaa música espontânea ou tradicional pertencente à determinada cultura.Neste caso, fica em evidência a postura do pesquisador em ouvir outros

3 Campo de estudos que partiu de movimentos de afirmação das particularidades culturaise das diferenças. Vera Candau (2002) discute as diversas idéias alusivas ao termo, bemcomo as perspectivas de pesquisa que podem ser direcionadas na sociedade e nas escolas.

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sons, investigar outras perspectivas, outros olhares, sem interferir ouestabelecer juízos a respeito do que acontecia em seus contatos comestas outras culturas. Esta é uma postura e uma metodologia bastanteinteressante para o trabalho com a criança pequena, não só na área demúsica, uma vez que todo o processo de aquisições culturais está portrás daquilo que todo o ser humano é.

Na área de música, a produção acadêmica traz avançosimportantes para se compreender os processos culturais nas relaçõesestabelecidas entre adulto e criança, mostrando um discurso que, alémde procurar relacionar o aprendizado da música com odesenvolvimento do pensamento criativo, como exposto em Diaz(2001), apresenta um conjunto de justificativas para a sistematizaçãodo ensino de música nas escolas regulares por profissionais capacitados(NASCIMENTO, 2003). Na área da educação para a arte, há váriasdiscussões a respeito de aulas de dança ou de música ministradas porprofissionais ou por professores, levantando várias considerações sobreas particularidades do ensino da técnica e de formas de expressãocorporais. Neste caso, considera-se a escola como formadora de umpúblico de arte, mais do que como formadora de profissionais dearte (STRAZZACAPPA, 2001). Então, a idéia seria trabalhar em um sentidomais amplo, para além da técnica musical ou cênica, no âmbito dacultura e da estética.

A discussão a respeito dessa questão nos coloca frente a umproblema vivido por qualquer educador que não faça parte dasdisciplinas tradicionalmente reconhecidas como fundamentais para aformação do aluno: português, matemática, ciências. No caso daEducação Infantil, estes conteúdos são privilegiados, inclusive, sob aforma de jogos, os conteúdos da matemática, e de língua materna,ficando as demais áreas do conhecimento em segundo plano (ALMEIDA,2001). A arte, então, passaria a ter um caráter instrumental utilitário,reduzindo uma função que seria muito mais ampla.

Esta situação, no entanto, não é vivenciada em todas as instituiçõesde Educação Infantil. Gilvânia Pontes e Marta Pernambuco (2000)

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realizaram um histórico da creche da Universidade Federal do RioGrande do Norte (UFRN) em Natal, de 1979 a 1998, incluindo apassagem pelas orientações do RCNEI. As autoras relatam experiênciasda creche na área de arte e mostram como a questão da dualidadeentre a arte como expressão e como recurso de apoio a outros temaspode ser equacionada sem prejuízos do conceito e objetivo da arte. Oprojeto foi realizado com crianças de 2 a 4 anos, incluindo atividadesde pintura, desenho livre, artes plásticas, dramatizações e artes cênicas.Neste caso, o papel da arte foi equacionado ao lado das demais áreas,em um processo de composição do currículo daquela instituição. Éum exemplo de como a visão do todo pode oferecer alternativas aoseducadores na Educação Infantil.

Casos em que o ensino de artes nas escolas é trabalhado deforma estreita, simplesmente amparando outras áreas, podem serobservados no uso da arte como instrumento didático para as demaisáreas de conteúdo. O desenho pode servir para ilustrar os trabalhosde português, ciências, matemática. Isso mostra o caráter instrumentalque as artes têm na opinião de muitos professores, conforme mostrao estudo de Célia Maria de Castro Almeida (2001). De acordo com aautora, “as artes são produções culturais que precisam ser conhecidase compreendidas pelos alunos, já que é nas culturas que nos constituímoscomo sujeitos humanos”. Embora muitos autores mostrem aimportância do aprendizado e contato da criança com a arte, hávalorização da expressão da criança na educação, embora o discursodesminta isso sob a forma de leis, como a 9394/96. De acordo comanálise de Maura Penna (2001, p. 32), os documentos para a área daArte configuram claramente uma orientação oficial para a práticapedagógica nas escolas, no entanto, mais uma vez percebe-se umdescompasso entre o proposto e a realidade das escolas. A autoradetectou em sua pesquisa realizada em João Pessoa um número muitomaior de profissionais de artes plásticas do que de música, nas escolas.Neste aspecto, a autora adverte que os documentos oficiais podemlevantar discussões, mas não resolver por si sós o problema, neste

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caso, a transformação da prática do ensino da arte. Assim, há dificuldadeem se admitir na dinâmica dos currículos aquelas disciplinas ou matériasartísticas. Nesse processo de discussão e busca de adequação, há autoresque concordam com as aulas de arte (seja arte em geral ou música outeatro) ministradas por pedagogos ou profissionais com formaçãopedagógica. Outros pretendem um trabalho mais direcionado, comrespeito às especificidades de cada arte.

De qualquer modo, é bom frisar que o ensino de música para ascrianças pequenas é percebido por autores como Carl Orff e HansKoellreuter e Murray Shaeffer, como um processo não de ensino datécnica musical, mas de educação musical, ponte para o desenvolvimentohumano amplo amparado na sensibilidade que a arte musical podeoferecer. Há propostas para a educação musical que se encaixam naidéia de Educação Infantil de qualidade, como a desenvolvida por TecaAlencar de Brito (2003). Nas palavras da autora, trata-se de:

um trabalho pedagógico-musical que se pode realizar em contextoseducativos nos quais a música é entendida como um processocontínuo de construção que envolve perceber, sentir, experimentar,imitar, criar e refletir.

Assim como a música, os desenhos, a dança, as diversas formasde expressão corporal, são importantes para fazerem parte de umambiente organizado em torno das possibilidades expressivas dacriança. Um dos pontos fundamentais na aprendizagem da criançapequena diz respeito à sua definição sobre o que sente, se é dor, tristeza,alegria, saudade, compaixão. Formas de expressão que podem ajudara criança a desenvolver possibilidades de conviver com diferenças eabrir suas possibilidades de comunicação são sempre interessantes eum ótimo meio para o educador interessado em perceber uma criançacompleta, sem as idealizações comuns na pedagogia ou psicologia.

Maria Isabel Leite (1998, p. 134), referindo-se ao papel da arte edo desenho na Educação Infantil, afirma que:

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Nas sociedades contemporâneas, no contexto de um mundoque se pretende homogêneo e linear, a função primordial da obrade arte é quebrar essa linearidade – criar o estado de choque, deespanto, de inquietação. É desmanchar a estrutura preconcebidapara que ela possa se reestruturar de uma outra forma, gerar umprocesso de estranhamento na percepção – isto é, ir além da vidacotidiana [que leva à subutilização da percepção] e passar adesfamiliarizar o mundo – criar um problema para a percepção,fazendo-a dar conta de um objeto que sai de suas formas ouconteúdos habituais.

A arte, portanto, possibilita à pessoa explorar o pensamentodivergente, buscar novas soluções e propostas alternativas, criando umpercurso no qual se pode investigar, criar e exprimir múltiplas formasde comunicação (LOPES,1998, p. 84). Neste sentido, até mesmo otrabalho com a diferença entre as pessoas em suas várias maneiras dever o mundo pode ser contemplado a partir do trabalho com a arte.Na música, isso pode aparecer sob a forma de alternativas sonoras, desons e canções que fogem à escuta usual da criança. E é importantechamar a atenção para a diferença entre o processo de contato doadulto com a diferença e o novo, neste caso, sempre revestido deansiedade e receio, e o da criança, muito mais plástica, tanto em seuinteresse, como em sua elaboração dos novos conteúdos. O choque, oespanto, e a inquietação na criança pequena são sempre notórios,efusivos, compartilhados com seu grupo.

Ainda em relação à percepção da criança pequena no contatodesta com a arte, Almeida (2001) aponta como fundamental “odesenvolvimento de uma forma especial de se relacionar com omundo”, naquilo que ela chama de atitude estética, relativa a uma atençãoda criança ao que a cerca: formas, cores, linhas e espaços, palavras esons, gestos e movimentos, explorando esses elementos em suasatividades. A percepção da criança mostraria, então, não apenas asrelações formais entre esses elementos, mas a expressão, o sentimentoque eles podem transmitir.

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Esta necessidade da educação tem relação direta com apossibilidade de se abrir espaço para ouvir a criança, deixá-la expressaro que sente, como pensa a sua pré-escola: se gosta do espaço dainstituição, como lida com o seu cotidiano, ou como se ressente docontato maior com flores, plantas e animais (OLIVEIRA, 2001). Estaseria uma forma importante de se estender o olhar do pesquisadorpara além do brincar, colocando em evidência outras formas deexpressão da criança, incluindo a oral.

O ensino de música e artes na Educação Infantil ajuda a criançaa expressar o que sente, a viver e lidar com suas questões individuais eem grupo, algo que vai muito além da técnica e do aprendizadoinstrumental. A abertura necessária da Educação Infantil para a culturada criança nos mostra uma valorização da criança no próprio processoeducativo, voltando o pesquisador (e o professor) para um trabalhoque considera a criança como centro. Isso porque a prática atual daEducação Infantil mostra uma discrepância entre o “proposto” e“vivido” pela criança (BATISTA, 2001), sendo comum encontrarpesquisadores que, ao se voltarem para investigar o cotidiano naEducação Infantil, se deparam com situações inesperadas, uma vezque há uma série de idéias pré-concebidas que ele leva ao seu campode investigação. De acordo com Batista (2001), sua perplexidade sedeu diante da possibilidade da criança pequena contribuir com a própriaproposta pedagógica da pré-escola. Para ela, a rotina também educa,e é constituída também pela ação infantil em conjunto com o adulto.

Seria interessante, para o educador, procurar unir as reflexões arespeito da Educação Infantil e infância e educação musical, de formaa estabelecer uma interface que propicie um desenvolvimento de umacompreensão maior na questão da formação infantil. Talvez assimpudéssemos nos aproximar de uma criança completa, sem osfracionamentos reproduzidos4 nas discussões acadêmicas e na mídia,

4 Reprodução que parte de um contexto muito maior, da própria concepção iluministade criança e educação. A separação entre os mundos do adulto e da criança, e a percepçãodesta como “um outro distinto”. A respeito disso, ver Cynthia Greive Veiga, 2004.

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nas quais geralmente algum aspecto vem tentar defini-la. Então temos,por vezes, uma criança corporal, uma criança que brinca, uma criançacom dificuldades de aprendizagem, uma criança consumidora. Osrótulos são muitos, e em geral não contemplam aspectos que nãoestão ligados a uma certa concepção de infância. São poucos os textosque apontam para algo que vá além da visão alegre de criança, daquelapronta para a diversão, sem malícia, que vive a melhor parte de suavida. A criança, na verdade, ultrapassa esta visão onírica do adulto(ROCHA, 1999). Ela também possui lembranças, medos, frustrações,assim como os adultos.

O reconhecimento de aspectos da infância que ultrapassem estavisão construída, idealizada da infância, é um objetivo a ser perseguidopor quem educa crianças. Na educação, a criança vista em sua diferençaem relação ao adulto, como um contraponto importante no qual a sua“inabilidade, desorientação, falta de desenvoltura” podem mostraraspectos que o mundo adulto já não percebe em sua visão econômica,ajustada na busca pela razão e pela soberania (GAGNEBIN, 1997).

O mundo adulto visto como um valor que deve rebaixar ainfância é algo que torna as crianças incapazes. Daí a surpresa freqüentedos adultos diante de algum comentário sagaz das crianças frente aum assunto que se imagina fora de seu campo de compreensão.Propostas pedagógicas que trazem como mote a escuta de culturas,falas, modos diferentes de se viver, pensar e falar,podem abrir espaçotanto para os adultos como para as crianças, no sentido de deixá-lasmais abertas e sensíveis para o outro.

Ainda que a produção acadêmica tente contemplar o universoinfantil, com suas diversas características, falta muito a ser dito a respeitoda criança que vive em nossa sociedade. Crianças indígenas no interiordo Pará, trabalhadores de cana no interior de São Paulo, filhos deposseiros no Maranhão, ou colonos do Mato Grosso, cada qual comsuas infâncias relatadas em estudos pioneiros como os publicados porJosé de Souza Martins (1991), procurando ultrapassar o padrão criança-escola, criança da classe média urbana.

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Mesmo nos casos em que se trata de crianças como essas, existemalguns mitos conservados pela escola, como a despreocupação e oalheamento da criança diante dos problemas que cercam o seu mundo.Algumas delas expressam preocupações concretas com a fome dosmais pobres, o ambiente, o preço dos alimentos, ou a saúde de seuspais. Para a escola, parece que os sentimentos que a criança tem, o seuchoro ou tristeza em determinados momentos, quer tenham ou nãouma razão justificada (a mãe que se atrasou, o pai que não lhe dáatenção...) podem ser tomados como comportamento patológico.Então, da mesma forma que a aparência dos escolares parece ter queseguir um padrão (roupas, calçados, enfeites para os cabelos), seucomportamento também deve seguir uma rotina dentro da escola.Neste processo de cerceamento, pouco pode se ver de uma culturainfantil5 que não se atenha apenas no modelo contemporâneo deinfância.

Isso faz parte de uma forma de pensar a criança, de umaconcepção determinada sobre o que elas sentem, pensam, ou como sedesenvolvem. De acordo com Cynthia Greive Veiga (2004, p. 74), “oentendimento das especificidades e características individuais dascrianças que as fazem diferentes umas das outras” foi fundamentalpara a infância se tornar um período homogêneo e universal. Então, apartir desta organização, todas as crianças devem se integrar a umpadrão: o padrão da infância feliz, período que antecede a fase daadolescência e fase adulta, estas sim, repletas de confrontos com arealidade, estas sim, reais. Em geral, pertence à filosofia e à sociologiao encargo de levantar a reflexão sobre o quanto a infância pode serdiferente daquilo que está escrito e aceito como normal. A Escola deFrankfurt, especialmente com Walter Benjamin, sempre nos alertampara a condição de entendimento da realidade por parte da criança.

5 Nos moldes que Steinberg e Kincheloe (2001) discutem em sua obra.

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Considerações finais

O objetivo deste texto foi apresentar algumas questões sobre aEducação Infantil a partir de alguns trabalhos sobre música e artes. Portrás da discussão dos autores, pode ser compreendida a concepção decriança que orienta os argumentos a favor do trabalho com a arte naeducação da criança pequena. A questão da concepção de infância queorienta um trabalho (seja ele de natureza acadêmica ou pedagógica) éfundamental para traçar os caminhos tomados nas ações para com ascrianças em qualquer lugar do mundo.

Talvez este texto possa contribuir exatamente para aquelesprofissionais ligados à Educação Infantil com alguma formação musical,ou artística em geral, no sentido de expor um pouco da reflexão emtorno do assunto, e quem sabe, estimulá-los para um contato maiorcom a produção dos demais autores (daí a pretensão de fazer umarevisão da bibliografia na área de educação musical, artes e EducaçãoInfantil).

Nem sempre é fácil arriscar falar sobre o que seria a função daarte na educação da criança pequena. Aparentemente, corre-se o riscode reduzi-la a alguma prática específica. Em geral, os autores comformação em artes possuem opinião contrária à idéia do uso da artecomo decoração, ilustração e apoio a outras disciplinas. Quanto aosprofessores com formação pedagógica sem aprofundamento em artes,tendem a encarar a música e as artes cênicas como peças de apresentaçãodas crianças em festinhas, e as artes plásticas como recurso decorativo.Nesta situação, os objetivos se perdem e a valorização de conteúdosformais, tão combatida na Educação de 0 a 6 anos, ganha corpo ecorre o risco de desvirtuar um trabalho de educação cultural para acriança. Neste caso, vale a pena concordar com a necessidade deinvestimento na formação do profissional que vai atuar na área.

A escola, creche ou pré-escola, pode, tanto trazer para a criançaexperiências com um mundo cultural mais amplo, como pode trabalharmotivos regionais, folclóricos, mais específicos dos grupos queparticipam da instituição em questão. Ainda que o trabalho de conjugar

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a passagem de uma cultura geral para uma cultura particular, específicade cada criança ou grupo, seja difícil, é algo necessário. Justifica-se pelapossibilidade de se oferecer contato à criança pequena com o mundoda cultura musical e artística nacional ou mundial, sem esquecer a culturapopular, o folclore. A instituição pode mediar este contato, deixando àcriança a opção de escolha sobre o que a agrada mais ouvir, ver ou usar.

Do ponto de vista da expressão, com o trabalho de arte naEducação Infantil, a criança pode escolher formas de “falar de si”, deexprimir sentimentos, esperanças, contrariedades. De mostrar comoela, criança , compreende o mundo. Sobretudo, a criança pode perceberque há outras formas de se mostrar ao mundo, utilizando outrosrecursos além da fala (esta sim, aprimorada nos adultos e crianças maisvelhas, e dependente da experiência e da escolarização).

Se as artes são formas de expressão humanas, é necessário queas instituições educacionais se encarreguem de promover o contato dacriança com estas formas de expressão, que, como a fala, podem seraprendidas e aprimoradas a cargo da escola. Um passo importantepara isso é considerar a criança como um sujeito cultural.

MUSIC AND INFANTILE CULTURE: A BRIEF BIBLIOGRAPHYREVIEW FOR CHILD EDUCATION

Abstract: This paper tries to discuss questions related to the teaching of arts,music and Child Education, as well as the understanding of Child Education,based on some reflections about the practice of teaching arts for small children.The objective of the paper was to organize arguments that enforce the necessityto invest on the general formation of small children, considering the contributionof the arts for pre-school children.

Keywords: Child Education. Pedagogical Practices. Arts. Music Education.Infantile Culture

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TEATRO INFANTIL: UM OLHAR PARA ODESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA

Sandra Márcia Campos Pereira *

Resumo: O teatro infantil surge com preocupações didáticas, sendo marginalem relação ao gênero destinado ao adulto, porém, apesar das adversidades,consegue alcançar seu reconhecimento artístico e, ao ocupar espaço em instituiçõesescolares, descaracteriza-se e muitas vezes passa a ter o sentido que lhe era atribuídopelos jesuítas com o Ratio Studiorum. Este trabalho tem por objetivo analisar aimportância do teatro infantil para o desenvolvimento da criança, abordandotanto o teatro encenado por adultos para ela, como aquele realizado pelo públicoinfantil, que geralmente é encenado nas escolas. A metodologia utilizada é decunho qualitativo com base na análise bibliográfica. A conclusão a que se chegoué que o teatro é indispensável para a criança, seja ela uma espectadora ouparticipante direta.

Palavras-chave: Educação. Teatro infantil. Criança

O prazer é a mais nobre função da atividade humana.(Bertold Brecht).

* Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Campus deAraraquara, SP. Docente da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). E-mail:[email protected].

DOSSIÊ TEMÁTICOInfância e Educação

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III n. 4 p. 67-88 2005

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Falar da importância da arte para o desenvolvimento infantilnão é novidade, pois essa é uma temática que está sendo discutida háalgum tempo. A conquista do seu espaço no cenário educacional éfortalecida com a Reforma Curricular nos anos 90, que, ao elaboraros Parâmetros Curriculares Nacionais, explicita a importância dessecomponente no currículo.

Entretanto, apesar da vitória já alcançada no plano teórico e nalegislação, no cotidiano escolar ainda há muito o que avançar. Seja nosentido de romper com uma proposta pedagogizante e padronizadaque impõe limites à criatividade, seja no sentido contrário em queprevalece o espontaneísmo, isto é, a idéia que, para criar, é necessárioliberdade, portanto, não se deve interferir no processo de criação dacriança.

É na arte que encontramos instrumentos que são capazes detrabalhar a mente no que diz respeito à imaginação, refinando asensibilidade, aguçando nossa percepção, desenvolvendo umtipo de habilidade que nos permite ver, perceber e sentir melhoro mundo. É na utilização das diferentes linguagens artísticascomo a dança, a pintura, o desenho, a música, o teatro, etc. queo educador pode explorar e estimular as habilidades e promovero conhecimento de forma ampla e enriquecedora (FERREIRA,2003, p. 1).

O teatro é uma das linguagens que compõe os conteúdos dadisciplina Arte na escola e, como outras linguagens artísticas, a dança, amúsica e as artes visuais, deve ser tratado com a responsabilidade degarantir que os alunos vivenciem aspectos técnicos, inventivos,representacionais e expressivos de forma consistente e planejada.

Seja nas artes cênicas ou nas outras áreas de expressão, é necessárioque o educador e a escola pensem em um projeto pedagógico em quea Arte deva ser acessível a todos em uma concepção de escolademocrática que deva garantir ao aluno a posse de conhecimentosartísticos e estéticos.

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Grupos preocupados com a educação por meio da arte têmtentado recuperar seu valor no desenvolvimento do conhecimentocomo parte importante da cultura humana, com compromisso de umplanejamento com conteúdos, métodos e procedimentos que sejamdesenvolvidos nas aulas de arte.

Seja no teatro, na música, na dança e nas artes visuais o aluno,quando lhe é oferecida a oportunidade, apresenta traços essenciais deindivíduos criativos. É de grande importância o reconhecimento daArte como ação educativa, para que o aluno possa atuar no teatro,observando, analisando e produzindo, pois a arte não é mais uminstrumento de domínio de poucos, algo supremo, inatingível, ela estáalém disso tudo, ela pertence a todos indistintamente. A arte é frutofecundo da resistência à dominação e de afirmação da identidade.

Este trabalho tem o objetivo de discutir a importância do teatroinfantil para o desenvolvimento da criança, abordando tanto o teatroencenado por adultos para ela, como aquele realizado pelo públicoinfantil, que geralmente é encenado nas escolas.

O interesse em estudar esta temática surgiu de uma grande paixãopela literatura infantil e de um posterior mergulho nas artes cênicas,além da observação das reações que as peças teatrais provocam nessepúblico, reações que variam de acordo com a faixa etária e qualidadedos espetáculos apresentados.

Uma vez que é conhecida a difusão da literatura infantil nasúltimas décadas, esse gênero literário, que em alguns casos é consideradoinferior à produção destinada aos adultos, uma vez que nem semprepossui qualidade estética, alcança o reconhecimento e o estatuto dearte literária, devido a grandes autores e suas belíssimas obras, como,por exemplo, Ruth Rocha, Ziraldo, Maria Clara Machado e MonteiroLobato, sendo este último o ícone desse gênero no Brasil.

A literatura infantil caminhou e ainda caminha por trilhastortuosas. O teatro infantil surge com preocupações didáticas, sendomarginal em relação ao gênero destinado ao adulto, porém, apesardas adversidades, consegue alcançar seu reconhecimento artístico e, ao

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ocupar espaço em instituições escolares, também descaracteriza-se e,muitas vezes, passa a ter o sentido que lhe era atribuído pelos jesuítascom o Ratio Studiorum (método de ensino sistematizado utilizado pelosjesuítas).

Teatro infantil: gênero literário ou produção artística menor?

A literatura infantil surge no final do século XVII e durante oXVIII, simultaneamente com o conceito de infância que até então não“existia”. A criança era considerada um adulto pequeno e não serespeitavam as suas fases de desenvolvimento, seus interesses e suasvontades. Adultos e crianças compartilhavam o mesmo espaço e nãoexistia afeto entre ambos.

Com a ascensão da burguesia, muda-se o conceito de família, oafeto entre seus membros torna-se importante e a criança começa aser vista como dependente do adulto por ser considerada frágil eindefesa. Essa ideologia de dependência da criança em relação ao adultoé que passa a definir a infância.

Esta classe social que se encontra no poder valoriza a escola –considerada o lugar de aquisição do saber. Nesse ambiente, a literaturainfantil tem grande espaço ao ser utilizada com intuito pedagógico,uma vez que “os primeiros textos para crianças foram escritos porpedagogos e professoras com marcante intuito educativo” (ZILBERMAN,1981, p. 19).

Segundo Zilberman, é por meio dos clássicos e dos contos defadas que ocorre a constituição de um acervo de textos infantis. Nasua forma original, os contos de fadas, que surgem do folclore, nãoeram destinados à criança, pois eram contados pelos adultos a outrosadultos. Neste contexto, os narradores faziam parte das classes menosfavorecidas economicamente.

A literatura tem como parâmetros contos consagrados pelopúblico mirim de diferentes épocas que, por terem vencido tantostestes de recepção, fornecem aos pósteros referências a respeito da

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constituição da tônica literária do texto destinado à criança. Noséculo XVII, o francês Charles Perrault (Cinderela, ChapeuzinhoVermelho) coleta contos e lendas da Idade Média e adapta-os,constituindo os chamados contos de fadas, por tanto tempoparadigma do gênero infantil (CADEMARTORI, 1986, p. 33).

Quase dois séculos depois, temos uma grande produção decontos, que são uma coleta popular

[...] realizada, na Alemanha, pelos irmãos Grimm (João e Maria,Rapunzel), ampliando a antologia dos contos de fadas. Atravésde soluções narrativas diversas, o dinamarquês ChristianAndersen (O patinho feio, Os trajes do imperador), o italiano Collodi(Pinóquio), o inglês Carrol (Alice no país das maravilhas), o america-no Frank Baum (O mágico de OZ), o escocês James Barrie (PeterPan) constituem-se em padrões de literatura infantil(CADEMARTORI, 1986, p. 33-34).

Segundo Lajolo e Zilberman (1986), a literatura infantil nasceno Brasil, com tentativas de traduções nacionais como as de CarlosJansen (Contos seletos das mil e uma noites), de 1882, entre outras,pois antes tínhamos acesso à literatura infantil por meio das traduçõesportuguesas que eram, muitas vezes, distantes da língua materna brasileira.

Além das traduções, começam a surgir também algumas obrasnacionais e, nesse contexto, nasce a indústria dos livros infantil e didático.A literatura infantil desta época possui um caráter pedagógico,nacionalista e patriótico refletido, muitas vezes, no próprio título dasobras como, por exemplo, o livro Por que me ufano do meu país(1901) de Afonso Celso.

[...] a escola é fundamental enquanto destinatária prevista paraestes livros, que nela circulam como leitura subsidiária ou comoprêmios para os melhores. Daí ela emigra para o interior dostextos, tornando-se com freqüência tema privilegiado, que reforçasua função pedagógica na polaridade das figuras antípodas dobom e do mau aluno (LAJOLO; ZILBERMAN, 1986, p. 19).

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Para essas autoras, o que forneceu condições para a gênese daliteratura infantil foi o fortalecimento da escola juntamente com ascampanhas cívicas que pretendiam mostrar uma imagem demodernização do país. A literatura infantil no Brasil

[...] não teve origem popular, nem aparecimento espontâneo:seu surgimento foi induzido, patrocinado pelos autores queescreviam livros para crianças no período de transição entre osséculos XIX e XX. Desde então, no entanto, e em particular apóso sucesso de Tales Andrade e Monteiro Lobato, as editorascomeçaram a prestigiar o gênero, motivando seu aumentovegetativo ao longo dos anos 20 e 30, bem como a adesãoprogressiva de alguns escritores da nova e atuante geraçãomodernista (CADEMARTORI; ZILBERMAN, 1986, p. 61)

Vimos que a escola foi fundamental para o desenvolvimento daliteratura infantil. Atualmente, ela continua sendo indispensável para adifusão deste gênero literário, que conquistou prestígio, tanto nas escolas,entre as crianças, quanto nas editoras, que faturam muito com suaspublicações para o público infantil.

Infelizmente, com a ascensão desse gênero literário, aparecemobras que, apesar de serem destinadas às crianças, não podem serconsideradas literatura infantil, uma vez que tudo o que podemos extrairdelas é seu caráter pedagógico, conservador e até mesmopreconceituoso.

Apesar da produção em série de literatura infantil estar deixandode lado seu caráter literário, temos obras de ótima qualidade e autoresque se destacam. Poderíamos citar nomes como Monteiro Lobato,Ziraldo, Ruth Rocha, Maria Clara Machado, entre outros.

[...] a literatura infantil atinge o estatuto de arte literária e sedistancia de sua origem comprometida com a pedagogia quandoapresenta textos de valor artístico a seus pequenos leitores, e nãoé porque estes ainda não alcançaram o status de adulto que merecemuma produção literária menor (ZILBERMAN, 1981, p. 23).

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De acordo com Lomardo (1994), existem duas modalidadesde teatro infantil: uma que é feita por adultos para as crianças e a que éencenada pelas crianças que, geralmente, possuem caráter pedagógico.As duas modalidades apresentam, muitas vezes, perspectiva didática.A partir de meados do século XX, esse gênero teatral passa a ser vistocomo atividade artística, atingindo, na década de 70, uma intensaprodução.

O teatro tem sua base no jogo dramático, que

tanto pode ser uma atitude espontânea, como efetivamente é nasbrincadeiras infantis, quanto assumir características direcionadas(jogo dramático dirigido), visando atingir um objetivo específico– educacional, por exemplo (LOMARDO, 1994, p. 10).

Os registros mais antigos de teatro para crianças referem-se àChina, no século III a.C., onde bonequeiros mambembes apresentavamespetáculos, em domicílios, para crianças e para mulheres pertencentesà camada social privilegiada.

Os bonecos, marionetes, fantoches e mamulengos [mamulengo= mão molenga], hoje tão identificados com o teatro infantil,constituem uma das mais antigas manifestações de caráter teatral,seu surgimento remontando a mais de 2.000 a C., mas só muitodepois disso é que passaram a ser utilizados como forma deentretenimento para a criança, mesmo porque uma arte dirigida àcriança não fazia parte do modus vivendi dessas antigas sociedades(LOMARDO, 1994, p. 11).

Após o teatro de bonecos, datado entre os séculos XV eXVII d. C., a próxima manifestação do teatro para crianças é a commediadell’arte, traduzido como “a comédia do artesão” ou “o teatro doprofissional”. Essa modalidade teatral surgiu na Itália, expandindo-se,posteriormente, para outros países.

[...] Era formada por grupo de atores viajantes, profissionais quese ocupavam exclusivamente do teatro, apresentando-se sobre

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palcos móveis em todas as cidades, vilas e aldeias por ondepassassem [...]. Os espetáculos não tinham texto redigido, apenasroteiros simples que os atores desenvolviam em cena (LOMARDO,1994, p. 11-12).

O teatro de bonecos que surge a partir do século XVII, passa ater atividade mais intensa nos séculos XVIII e XIX. Outro movimentoimportante de teatro de formas animadas é o teatro de sombras deDominique Séraphin, que surge na França no século XVIII.

O teatro de sombras, como de bonecos, é uma invençãoantiqüíssima, surgida na China, muitos séculos antes de Cristo,razão pela qual este tipo de teatro é também conhecido como“sombras chinesas” (LOMARDO, 1994, p. 15).

Uma experiência interessante acontece na Bélgica, na cidade deMons, onde o teatro de bonecos é dedicado quase exclusivamente àscrianças, apesar dos textos não se dirigirem exclusivamente ao públicoinfantil, como as peças de Molière.

Até o século XX, as escassas atividades teatrais dirigidas às criançassão restritas às formas animadas (bonecos e sombras). A primeiracompanhia moderna profissional de teatro para crianças, com atores eatrizes adultos representando sem a intermediação de bonecos, é oTeatro da Criança, inaugurado em 1918, na União Soviética.

Após a Segunda Guerra, surgem várias experiências teatraisvoltadas para a criança, mas ainda não existe a preocupação com amesma, com seus interesses, desenvolvimento, etc. Tais experiênciaspossuem finalidades moral e pedagógica, ou até mesmo a preocupaçãoem formar o “espectador do futuro”.

O primeiro congresso internacional de teatro infantil é realizadoem Paris, em 1952. De acordo com Moses Goldberg, “teatro infantilé um teatro com pequeno prestígio, poucos artistas e não há muitaliteratura dramática” (GOLDBERG apud CAMPOS, 1998, p. 47). Apesardeste gênero literário ganhar o mundo, a partir da década de 50, aindanão possui um “reconhecimento como realização artística de

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conformação específica [...] o pouco prestígio do teatro infantil é causae conseqüência de sua indefinição” (CAMPOS, 1998, p. 47).

A mudança no olhar sobre o teatro infantil ocorre de modomais visível nos anos 70, quando aparecem trabalhos sobre amodalidade, advindos do meio acadêmico ou não. Esta transformaçãose completa com a mudança na inserção social da criança.

Campos (1998, p. 48) define teatro infantil como “teatro paracrianças, ou seja, aquele que supõe a realização de espetáculos, porartistas profissionais ou não, para o público especificamente infantil”.

Para esta autora, a história do teatro infantil tem início no séculoXX. Alguns vêem na tradição inglesa da pantomima de natal umantecedente do gênero. Foi “como pantomima de natal que surgiu, em1904, a obra que viria a ser um dos clássicos das produções paracrianças, Peter Pan, o menino que não queria crescer, de James Barrie”(CAMPOS, 1998, p. 48).

O teatro infantil estoura, ao mesmo tempo, no começo doséculo, em vários países europeus e nos Estados Unidos. Campos(1998) classifica como “uma primeira onda” um período que vai até aSegunda Guerra Mundial, quando as ações eram isoladas e/ouintermitentes. Na Inglaterra, em 1927, é criada a primeira companhiabritânica de teatro infantil estabelecida em bases regulares.

No começo do teatro para criança na Europa, destaca-se ocaso ocorrido na Espanha, onde

[...] os primeiros espetáculos acontecem em bases rigorosamenteprofissionais, pelas mãos de um dramaturgo consagrado, JacintoBenavente. Enquanto na maioria dos países se lança mão daadaptação de contos infantis, Benanvente oferece uma peçaoriginal, O príncipe que aprendeu tudo nos livros (El príncipe que todo loaprendió en los libros), e concebe-a não como produto isolado, masdentro de um projeto, o da criação de um Teatro das Crianças(CAMPOS, 1998, p. 49).

Nos Estados Unidos, o teatro infantil tem sua origem ligada àsatividades de cunho educativo e social com a montagem de A

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tempestade, encenada por um elenco de crianças, em New York. Atéa década de 20, importantes espetáculos para crianças são apresentadosna Broadway, como Peter Pan, O pássaro azul, Alice no país dasmaravilhas, A ilha do tesouro. No entanto, não há registro de outroperíodo como este, talvez porque o teatro infantil não seja interessantepara as grandes companhias norte-americanas.

No Leste Europeu, destacam-se os programas soviéticos deresgate da infância, com a criação do Teatro da Criança, inauguradopor volta de 1920, em Moscou. O contexto da região neste período émarcado pela reconstrução, após várias guerras devido à Revolução.

No período pós-Segunda Guerra, o teatro para crianças e jovenspassa por nova fase, várias experiências são articuladas devido àmultiplicação de encontros e congressos nacionais, regionais einternacionais. O teatro infantil é institucionalizado na década de 50 e,a partir de 1965, sua internacionalização é intensificada com a criação,em Paris, da Associação Internacional de Teatro para a Infância eJuventude.

A preocupação educativa é um ponto de aproximação do teatroproduzido na América e no Leste e Oeste Europeu. Maria ClaraMachado, ao participar do Terceiro Congresso Internacional para acriança e juventude, representando o Brasil em 1965, afirma:

O que me pareceu foi que na Europa o teatro infantil é domínioexclusivo da pedagogia e da educação. A maioria quase total doscongressistas era de professores de escolas primárias. Havia rarasexceções entre os marionetistas, único ramo do teatro para criançasonde a preocupação artística vem em primeiro plano [...] osespetáculos apresentados pelos grupos principais desses paísesforam absolutamente despidos de qualquer interesse artístico.Havia completa falta de imaginação nos textos e nas produções(MACHADO apud CAMPOS, 1998, p. 52).

Segundo Campos (1998), dos problemas vividos pelo teatroinfantil destacam-se:

- Falta de amparo oficial;

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- Falta de peças originais (recorre sempre a adaptações dehistórias infantis);

- Presença limitada da crítica.Apesar desses problemas, o teatro infantil se expande

beneficiando-se da explosão de espaço que o teatro alcança na décadade 60. Campos (1998, p. 53) afirma que “uma das características doteatro nos anos 60-70 é a redução, e até negação, do valor do texto. Atônica incide sobre o espetáculo, e a arte da encenação beneficia-se”.

Apesar do curto período de existência do teatro infantil, Camposdiz que

As aproximações entre teatro infantil e teatro popular são antigas.Este, muito provavelmente, tem sido o maior fornecedor deformas dramáticas para aquele. Ambos se caracterizam, antes detudo, como um teatro não psicológico, cuja ação é sustentada porsituações e movimentos externos, envolvendo personagensplanos e genéricos, no sentido de não tenderem à individualização.Aproxima-os ainda o humor e, de modo geral, o caráter lúdicoque se encontra, tanto nos espetáculos populares quanto em boaparte do melhor teatro para crianças (CAMPOS, 1998, p. 56).

As principais contribuições que o teatro infantil pode trazer paraa criança são:

entretenimento, crescimento psicológico, influências educativas,apreciação estética, desenvolvimento de futuras platéias [...]. Aavaliação do teatro infantil implica a concorrência de três áreasbásicas: a estética, a pedagogia e a psicologia (GOLDBERG apudCAMPOS, 1998, p. 57).

Como escrever para crianças é algo muito complexo, poiselas passam por mudanças que hoje são aceleradas, fazer um recorteno universo infantil, por idade, significa distinguir seu interesse porfaixa etária, levando-se em conta as considerações de Piaget, quedescreve os interesses infantis de acordo com seu estágio dedesenvolvimento.

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Juan Cervera também classifica o interesse da criança de acordocom sua faixa etária. Para ele

crianças de quatro a sete anos, vivendo a etapa animista, têmpreferência, por exemplo, pelas encarnações animais; dos sete aosnove, na chamada etapa sociocêntrica, a criança estará maispredisposta ao jogo teatral, musicais e títeres. Dos nove aos onzeanos, já se aceitam comédias breves. Até essa idade a fantasia seriaimportante. A partir daí, declina e perde-se o interesse pelos contosde fadas. A criança ingressa em uma etapa fantástico-realista quedura aproximadamente até os catorze anos (CERVERA apudCAMPOS, 1998, p. 58).

O teatro infantil no Brasil

No Brasil, também, a origem do teatro infantil está centrada noteatro de bonecos, mesmo sem visar ao público infantil, ou seja, nãoera feito para as crianças. No século XX, assim como em outros países,o teatro infantil, no Brasil, é trabalhado em uma perspectiva pedagógicaem detrimento da estética. Nesse período, é inaugurado o teatro escolarcom função pedagógica, sendo a primeira publicação datada de 1905,com o título de teatrinho, escrita por Coelho Netto e Olavo Bilac. Em1915 Carlos Góis lança sua publicação dedicada ao público infantil.

Segundo Lomardo (1994, p. 34), “com força progressiva, osautores começam a impor à criança normas de comportamento quepor um lado correspondem a um modelo adulto e, por outro, a modelode passividade e ausência de iniciativa”.

Na década de 30, temos duas iniciativas interessantes: o teatroescolar de Joracy Camargo e Henrique Pougetti e a companhia teatralde Olavo de Barros. Em 1948, ocorre a montagem de “O CasacoEncantado”, de Lúcia Benedetti, obra de grande importância para oteatro infantil no Brasil, pois “marca ao mesmo tempo a passagem doamadorismo para o profissionalismo e o início do teatro em que adultosrepresentavam para crianças” (LOMARDO, 1994, p. 37).

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Em 1951, acontece o primeiro congresso brasileiro de teatro,em que a fala de Júlio Gouveia, um dos fundadores do Teatro-Escolade São Paulo, mostra que esse gênero deve preocupar-se em formar opúblico adulto para o teatro e seu caráter pedagógico, não sendo feitanenhuma menção ao prazer e ao divertimento. Nesse mesmo ano, éfundado o Tablado (uma companhia escola), por Maria ClaraMachado, Aníbal Machado e Martin Gonçalves, rompendo com avisão que se tinha deste gênero.

A dramaturgia de Maria Clara Machado se caracteriza pelo estilodefinido e por determinadas opções que se revelam desde osprimeiros textos. A principal delas é a colocação clara do conflito,geralmente vinculado [...] a algum bem, pessoal ou familiar,ameaçado ou subtraído (LOMARDO, 1994, p. 53).

Segundo Campos (1998), o teatro infantil brasileiro começa aacontecer no final dos anos 40 e início dos 50, considerando a produçãode uma dramaturgia própria e a realização regular de espetáculos. Maisprecisamente em 1948, com a montagem de “O casaco encantado”,de Lúcia Benedetti. O que não quer dizer que, antes desse período, nãotenha existido algum tipo de modalidade de teatro para crianças. Desdeo começo do século XX, autores têm editado peças, apesar de asmesmas serem em número pouco significativo com relação ao deoutros gêneros.

Supostos textos do século XIX, um deles de Machado de Assis,Beijinhos da vovó, desapareceram, o que vem comprovar o descasocom este gênero literário. No início do século XX, a dupla CoelhoNeto/Olavo Bilac lança o Theatro Infantil, em 1905, constituindo-senum exemplo de produção desse gênero. Neste período, os textosestão mais centrados na defesa de idéias que preocupam os autores doque na criança. É interessante destacar que até final dos anos 40 ostextos de teatro infantil são feitos para serem representados por crianças.

Com relação às publicações de peças, Carlos Góis publica, nadécada de 20, o Theatro das crianças, em que se destacam a Dona decasa e uma opereta, Branca de neve. Nos anos 40, uma revista de Belo

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Horizonte, Era uma vez, publica regularmente histórias curtas, entreelas as de Vicente Guimarães. As peças desse autor continuam sendopublicadas, posteriormente, na revista Sesinho, que ele passa a dirigirjunto ao Serviço Social da Indústria (Sesi), no Rio de Janeiro. Entresuas peças destacam-se: “O Pacificador”, “Tiradentes”, “Uma visitailustre”, “O dia da Bandeira” e “Dia do professor”, todas destinadasaos espetáculos integrantes das festividades escolares.

É comum que as pessoas ligadas à educação escrevam peçaspara representações escolares. “Desde que se organizam as primeirasinstituições escolares, e até antes disso, o teatro é visto como meioeficiente de educação” (CAMPOS, 1998, p. 63).

Segundo Campos (1998, p. 65), “de modo geral, na primeirametade do século, o que se tem é absoluta escassez de publicações oude realizações no teatro para crianças. Os meninos de boa família,quando interessados em teatro, comparecem diretamente às sessõespara adultos”.

Até final dos anos 40, talvez o que mais se aproximou do teatroinfantil moderno foi o teatro de bonecas na Sociedade Pestalozzi, noRio de Janeiro. O Estado também se interessou pela modalidade, tantoque, em 1937, O Boletim do Ministério da Educação e da Saúde,registra o estabelecimento da Comissão de Teatro Nacional, compostapor nomes ilustres como: Sérgio Buarque de Holanda, Múcio Leão,entre outros. Estudar o tema para crianças e adolescentes era um dosobjetivos da comissão, estabelecendo que

a) O teatro para crianças e adolescentes pode ser representado pormenores ou por adultos;b) A representação feita por menores proporciona odescobrimento de vocações autênticas para a arte do teatro;c) O teatro infantil é um valioso instrumento educacional, cujosresultados não se fazem sentir apenas na formação artística, masna formação geral da personalidade;d) Deve ser fomentada a literatura teatral infantil;e) Devem ser organizadas representações infantis em todas asescolas;

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f) Deve merecer cuidado a organização de representações infantisfora da escola, como diversão pública para menores (CAMPOS,1998, p. 66).

Na realidade, a atuação dessa Comissão se resume a iniciar aorganização de um grande espetáculo infantil, que não se realiza, e afinanciar a apresentação de várias peças de alunos do colégio Pedro II,que não têm nada de adolescente ou infantil.

É a partir de 1948, com a peça “O casaco encantado”, de LúciaBenedetti, que o teatro infantil brasileiro se expande. Campos (1998, p.67) diz que

o teatro infantil brasileiro nasce junto com o moderno teatrobrasileiro e nesses tempos iniciais o olho posto na ampliação eformação de platéias é sinal da saúde com que, bem cedo, esseteatro busca expandir-se e afirmar-se.

O teatro infantil, em boa parte, ocupa uma posição secundáriano plano do teatro nacional. Cabe destacar que “O casaco encantado”teve como responsável por sua montagem Os Artistas Unidos,representantes do que havia de melhor no teatro brasileiro nesteperíodo, sendo esta peça premiada como a revelação do ano pelaAcademia Brasileira de Letras (CAMPOS, 1998).

Rapidamente os elencos dispostos a apresentar os espetáculospara crianças multiplicam-se.

[...] já no primeiro semestre de 1949 três grupos, no Rio deJaneiro, se empenham na nova modalidade: o Teatro daCarochinha leva a peça O Sítio do Picapau Amarelo, inspirada naobra de Monteiro Lobato, e A Revolta dos Brinquedos, de PedroVeiga e Pernambuco de Oliveira; o teatro dos Novos leva OPríncipe e o lenhador; [...]. Em São Paulo, o ano de 1949 assiste àcriação do TESP, que, tendo à frente Júlio Gouveia e TatianaBelinky, estréia no Teatro Municipal (CAMPOS, 1998, p. 69).

Do mesmo modo, os textos também são multiplicados e osescritores de prestígio, como Odilo Costa Filho e Silvana Sampaio,

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passam a escrever para esta modalidade. Também são criadaspremiações, como o da prefeitura do Distrito Federal, que, em 1952,contempla Lúcia Benedetti e, em 1953, Maria Clara Machado.

Na primeira Conferência Nacional sobre o Teatro e a Juventudeparticiparam Luísa Barreto Leite, Cecília Meireles e Paschoal CarlosMagno. Até a década de 50, o teatro infantil chegou a ser sinônimo deatividade educativa, mesmo depois dos primeiros sucessos.

Nos anos 60, o teatro infantil volta a ser considerado gêneromenor. Já na década de 70 ocorre nova ascensão do gênero emqualidade e quantidade. Um dos fatores que pode justificar é amodernização que domina o país nesse período.

Como causas da queda do teatro infantil, Cleber RibeiroFernandes atribui o fator econômico e a impossibilidade deexperimentação. Entretanto, Campos (1998) diz que o fator econômiconão é capaz de, por si só, explicar a minoridade do teatro infantil,assim, este poderia ser uma conseqüência e não uma causa. Com relaçãoà experimentação ela diz que o problema é a especificidade do públicoque exige um outro preparo dos realizadores.

Com relação à qualidade ruim das peças, Maria Lúcia Pupoafirma que isto ocorre devido à “uma visão de mundo fragmentadae conformista, veiculada através da mídia, precariedade de domíniodos pressupostos básicos do gênero dramático” (PUPO apud CAMPOS,1998, p. 79).

Contribuições do teatro infantil para o desenvolvimento dacriança

Em seu clássico livro A Psicanálise dos contos de fadas,Bruno Betthelheim, ao referir-se às crianças com necessidades especiais,afirma que “se as crianças fossem criadas de um modo que a vidafosse significativa para elas, não necessitariam ajuda especial”(BETTHELHEIM, 1980, p. 12).

Este autor faz referência aos contos de fadas, gênero que nãotem sua origem vinculada ao público infantil, mas que ao serem

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recuperados por vários autores tornam-se leitura obrigatória ao longode gerações, apesar de tantas transformações sofridas pela sociedade.

Para que uma estória realmente prenda a atenção da criança deveentretê-la e despertar sua curiosidade. Mas para enriquecer suavida deve estimular-lhe a imaginação: ajudá-la a desenvolver seuintelecto e a tornar claras suas emoções; estar harmonizada comsuas ansiedades e aspirações; reconhecer plenamente suasdificuldades e, ao mesmo tempo, sugerir soluções para osproblemas que a perturbam (BETTHELHEIM, 1980, p. 13).

Duras críticas já foram feitas aos contos de fadas, entre algunsargumentos destacam-se aqueles que afirmam que algumas estóriasexpõem as crianças a conflitos e problemas que pertencem ao universoadulto, podendo causar frustrações, ansiedades, etc. Para Betthelheimé necessário colocar a criança em conflito com os problemas que iráenfrentar na vida, mesmo que as sugestões sejam simbólicas.

Assim como a literatura infantil (poesia e prosa) está presente naescola de modo marginalizado, sendo utilizada, geralmente, comocomplemento à aprendizagem dos conteúdos escolares, portanto comcaráter pedagógico em detrimento de aspectos proporcionados pelaarte como prazer, imaginário, lúdico, simbólico, sensibilidade, etc, oteatro infantil caminha na mesma direção, quando rompe com os murosdas instituições escolares para ser absorvido pelas escolas com intençõespedagógicas, perdendo, muitas vezes, seu estatuto de arte.

Koudela (2002) afirma que, na medida em que o trabalhoeducacional abre espaço para o teatro, corre-se o risco do pedagógicoprevalecer. Na incorporação do teatro-educação pela educação,segundo essa autora, a Escola-Nova teve papel importante ao mudara concepção de ensino/aprendizagem.

Em lugar de enfatizar o produto final, os professores modernosdão maior importância ao processo. Se a peça construída emtorno de Robin Hood é boa, tanto melhor. Isto no entanto nãoé tão importante quanto o crescimento que resulta da experiênciade criar uma peça. Esta mudança de ênfase do aspecto exibicionista

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para o aspecto educacional fez com que o teatro se transformasseem uma disciplina do currículo escolar que tem uma contribuiçãovaliosa para a educação (WARD apud KOUDELA, 2002, p. 20)

Koudela (2002), ao diferenciar teatro de jogo dramático, defineo primeiro como arte adulta e este último como manifestaçãoespontânea da criança. Assim, a diferença entre os dois reflete-se napreocupação em resguardar a espontaneidade na representação. Aautora afirma, ainda, que a atividade artística é periférica na escola, cujaprioridade ainda é ensinar a ler e escrever.

Defendendo a importância do significado da experiência parao desenvolvimento infantil, Koudela (2002, p. 31) diz que

aprender por meio da experiência significa o estabelecimento deum relacionamento entre antes e depois, entre aquilo que fize-mos com as coisas e aquilo que sofremos como conseqüência.Nessas condições, fazer torna-se experimentar.

Apesar de Betthelheim (1980) analisar apenas os contos de fadas,pode-se ampliar algumas de suas discussões para o teatro infantil. Se oprimeiro proporciona o desenvolvimento e a resolução de conflitos,o segundo gênero também tem contribuições significativas. Nesse pontoentra-se em duas discussões.

Primeiramente, aborda-se a questão do teatro para criançasencenado por adultos ou por elas mesmas. Apesar desse gênero aindaser considerado, em alguns casos, menos importante – como já foidiscutido no capítulo anterior – o encantamento e envolvimento queproporciona à criança, se for realizado com qualidade, é inquestionável.Basta olhar a expressão dos pequenos e verificar que eles se transportampara outro universo, entram em êxtase e, em muitas situações, dão aimpressão de que estão fazendo uma viagem interior.

A partir dessas idéias pode-se reforçar a necessidade de peçasteatrais de qualidade para esse público. Essa preocupação é manifestadapor vários autores, dentre eles Pupo (1991), em seu excelente livro Noreino da desigualdade, em que examina peças teatrais encenadas na

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cidade de São Paulo, no período de 1970 a 1976, uma vez que os anos70 foram profícuos para o teatro infantil no Brasil.

A segunda questão está atrelada ao teatro realizado pelas criançassem a preocupação com a técnica, mas com o processo, com aconstrução realizada por elas. Nesse sentido, Koudela (2002) trabalhacom jogos dramáticos.

O objetivo do jogo dramático é equacionado pelas experiênciaspessoais e emocionais dos jogadores. O valor máximo da atividadeé a espontaneidade, a ser atingida através da absorção e sinceridadedurante a realização do jogo. Dentre os muitos valores do dramaestá o valor emocional, e Slade propõe que o jogo dramáticoforneça à criança “uma válvula de escape, uma catarse emocional”(KOUDELA, 2002, p. 22).

Piaget (1975, p. 18) destaca a importância da representação parao desenvolvimento infantil. Para ele o problema da imitação leva aoda representação “na medida em que esta constitui uma imagem doobjeto [...] deveria então ser concebida como uma espécie de imitaçãointeriorizada, quer dizer, um prolongamento da acomodação”.

Para esse autor a representação começa a partir dos 18 meses,período que ele classifica como fase VI, em que a criança ainda encontra-se no estágio sensório-motor. Mas, é a partir do estágio seguinte, opré-operacional, que vai dos dois aos sete anos, que a representaçãomanifesta-se de modo efetivo, ou seja, a criança já consegue criar ummodelo interno ou recordação. Assim sendo, provavelmente a partirdesta fase é mais significativo para a criança o trabalho com o teatroinfantil, o que não significa que antes dos dois anos a representaçãonão deva fazer parte do universo infantil.

Durante o período 6, uma criança passa de um nível de inteligênciasensório-motora para a inteligência representacional. Isto significaque a criança torna-se apta a representar internamente(mentalmente) objetos e eventos e subseqüentemente torna-secapaz de (cognitivamente) resolver problemas através darepresentação (WADSWORTH, 1993, p. 43).

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Considerando que a preocupação desse trabalho é discutir aimportância do teatro infantil para a faixa etária de 0 a 6 anos (EducaçãoInfantil), é irrefutável que a presença desse gênero nas instituiçõeseducacionais seja primordial, se realmente a preocupação é a criança.

Adentrando nesse ponto, esbarramos em um empecilho que é afalta de pessoas qualificadas para desenvolver esse trabalho, pois, apesardo percurso exposto com relação à idéia sobre a arte que se construiuno ambiente escolar, os resquícios conservadores e distorcidos dostrabalhos realizados em toda manifestação artística, ainda está presenteno ambiente escolar.

Portanto, quando se quer trabalhar com teatro é preciso conhecê-lo, ter claro o que se pretende com ele, o que se espera das crianças, asdificuldades, etc. É preciso romper com o princípio de que

Tradicionalmente, sob o aspecto educacional, o teatro é consideradoum braço da educação formal. A preocupação “pedagogizante”não inclui entre seus objetivos a fruição de arte pela criança,reduzindo a platéia infantil à categoria de alunos aos quais devemser ministrados ensinamentos (KOUDELA, 2002, p. 92).

O teatro realizado na escola não deve ser pensado com o intuitode prevalecer o resultado, ou seja, a apresentação de alguma peça, paraque os pais vejam que a escola trabalha com teatro, o que os leva a seorgulhar do desempenho de seus filhos, que, em alguns casos, ficamtão decepcionados que podem passar a odiar o teatro.

A ênfase deve ser dada ao processo, em como a criança sente,nas transformações internas sofridas por ela durante o trabalho com aencenação. Ao trabalhar esse tipo de teatro, o centro deve ser a criança,nunca a encenação de peças para os adultos. Do mesmo modo, aoincentivar a ida dos infantes a espetáculos teatrais, ou mesmo aoproporcionar tal atividade, a escola deve ter um plano de trabalho quecontemple o teatro infantil ao estatuto de arte, por isso é preciso termuito cuidado com o tipo de encaminhamento adotado.

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87Teatro infantil: um olhar para o desenvolvimento da criança

Essa discussão sobre o teatro infantil deve ser ampliada para sepensar o papel da arte no ambiente escolar e sua função no processode desenvolvimento da criança. Nesse sentido, Martins et al., afirmaque se a arte é por si mesma

a experiência sensível em que nosso corpo perceptivo reflete,propor situações de aprendizagem em arte implica vibrar nessecorpo o assombro pelo mundo e o estranhamento diante daquiloque, amortecidos, com os sentidos embotados, já não vemosmais. Percepção de corpo inteiro desperto para o mundo e seusreflexos dentro de si (MARTINS, 1998, p. 118).

Nessa perspectiva, o trabalho do teatro deve estar integrado aum projeto mais amplo, ou seja, deve proporcionar o envolvimentoda criança no mundo das artes, visando seu desenvolvimento globalpor meio do lúdico, da imaginação, da criatividade, etc. Para que essaproposta se realize é necessário ter clareza sobre o projeto pedagógicoe uma formação dos professores coerente com os objetivos traçados,pois, deve-se tomar cuidado para não limitar o potencial criador dosalunos e não perder de vista o trabalho com arte.

INFANTILE THEATER: A LOOK AT CHILDDEVELOPMENT

Abstract: Children’s theater comes with didactic worries, being marginal inregard to the adult-oriented genre but, in spite of the odds, it can attain itsartistic acknowledgement and, while taking part in school institutions, it losesits frame and is often viewed in the sense attributed by the Jesuits under theRatio Studiorum. This work aims at analyzing the importance of children’stheater in child development by approaching both the theater staged by adultstoward kids and the one made by kids themselves, which is usually staged inschools. The methodology used was qualitative based on bibliographic analysis.The conclusion to which one has come is that theater is essential to childrenregardless of being spectators or direct participants. In the first case, they cantake an inner trip by means of the story, the characters, the scenery, etc, so theycan solve conflicts. Through staging they can assimilate the real and a lot ofchanges may be provided. Now, when a child takes part in the show, it isnecessary to be aware of it by valuing the process of construction and creationand by trying to understand the change which it is going through. The final

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product must be a consequence of the process, not the aim of the work whichis being performed.

Keywords: Education. Children’s theater. Child development.

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RELAÇÃO PAIS E FILHOS E O PROCESSO DEAPRENDIZAGEM ESCOLAR: UM ESTUDO DE CASO1

Maria Aparecida Carmem Bonfim Silva*

Ruben de Oliveira Nascimento* *

Resumo: Este trabalho é um resumo revisto e ampliado de um estudo de casode um aluno do ensino fundamental, que apresentava baixa motivação paraaprendizagem e pouco envolvimento com as tarefas propostas. Na análise docaso, observou-se uma relação entre essa baixa motivação para a aprendizagemcom o contexto familiar, principalmente no tocante à relação pais-filho. O trabalhotraz reflexões sobre a relação pais e filhos, e suas possíveis repercussões noprocesso de aprendizagem escolar.

Palavras-chave: Relação pais e filhos. Motivação para a aprendizagem. Cogniçãoe afeto. Família e escola.

1 Este trabalho é um resumo revisto e ampliado, sobre um caso atendido pela ProfessoraMaria Aparecida Carmem Bonfim Silva, atuando como psicóloga escolar, relatado notrabalho monográfico elaborado pela professora, sob orientação do Prof. Ms. Ruben deOliveira Nascimento, para conclusão do curso de pós-graduação lato sensu em Psicologiada Educação, promovido pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).* Pós-graduada lato sensu em Psicologia da Educação pela Universidade Estadual do Sudoesteda Bahia (Uesb). Docente de Psicologia da Faculdade de Tecnologia e Ciências (FTC). E-mail: [email protected].** Mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Docente dePsicologia da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) e da Faculdade JuvêncioTerra. E-mail: [email protected].

DOSSIÊ TEMÁTICOInfância e Educação

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III n. 4 p.89-110 2005

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Apresentação

A busca pelo conhecimento, no contexto escolar, é uma açãoque envolve o ser total, em suas dimensões cognitiva, emocional efísica. Ela também envolve a consecução de etapas e de passospropostos pela interação educativa.

Por parte do aluno, essa busca implicaria cumprir ou superarpassos ou etapas solicitadas pela interação educativa, a fim de queresultados sejam alcançados. Para isso, envolvimento ativo com as tarefasescolares e motivação para aprender têm uma participação importanteno processo.

Contudo, entendemos que as dimensões acima citadas, somadasao interesse pelas tarefas escolares e à motivação para aprender – vistoscomo necessários a uma aprendizagem escolar satisfatória –, não sãoformados ou constituídos exclusivamente no contexto escolar e suasatividades cotidianas. Nossa posição é de que são também formadosou constituídos no interior da relação familiar, a partir da dinâmicapsicológica que estabelecem seus membros; e que o envolvimentoemocional e cognitivo da criança com os passos necessários para aaprendizagem escolar, expressados na demonstração de seu nível deinteresse e motivação para aprender, podem refletir a dinâmica familiara que está submetido.

Este trabalho apresenta aspectos de um caso observado, numaescola privada de ensino fundamental. O artigo visa examinar osseguintes fatores envolvidos nesse caso: baixa motivação para aaprendizagem, a conduta familiar na educação dos filhos e os possíveisefeitos dessa conduta no rendimento escolar, considerando-se o modocomo a dinâmica psicológica familiar, principalmente na relação pais-filhos, pode repercutir no nível de desempenho, interesse e esforçodemonstrado pelo aluno para cumprir as atividades ou passar pelastarefas escolares propostas.

Nossa intenção com a apresentação desse estudo de caso écontribuir com a discussão e a reflexão acerca da aprendizagem escolare dos possíveis efeitos que a dinâmica familiar na formação da

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personalidade da criança possa ter no processo de aprendizagemescolar, incentivando mais pesquisas nessa direção.

O problema e o objetivo de pesquisa

Na escola, alguns alunos podem não se mostrar motivados adedicar tempo, atenção e esforço suficientes para uma boaaprendizagem, envolvendo-se pouco com as atividades escolares, sejaem sala de aula ou em ambientes extra-classe, comprometendoresultados esperados ou possíveis. Muitas podem ser as causas paraessa situação, mas, sabemos que mesmo com todo o preparo e esforçodo professor, se o aluno não estiver interessado em aprender, muitodo processo de aprendizagem se perde ou mesmo não se completa.Queremos frisar também que, em muitos casos, o fato de umdeterminado conteúdo interessar ao professor, não implicanecessariamente que o mesmo será de interesse do aluno. Esses aspectostocam na importante questão da motivação para aprendizagem e deaspectos afetivos como componentes impulsionadores do processode construção de conhecimento.

Autores como Mouly (1993), Coll (1996), Norman A. Sprinthalle Richard C. Sprinthall (1997), Tápia e Fita (1999), Arantes (2002) eWadsworth (2003) assinalam que aspectos afetivos e motivacionais sãoimprescindíveis à aprendizagem no contexto escolar, como tambémpara o esforço cognitivo que ela demanda. Assim como envolvimentoafetivo e motivação são fundamentais para a aprendizagem bemsucedida, baixos níveis de motivação e de interesse também podemestar igualmente ligados a um processo mal sucedido ou insatisfatóriode aprendizagem.

Norman A. Sprinthall e Richard C. Sprinthall (1997, p. 304),comentam a correlação que apontamos acima, dizendo que

está implícito em toda a literatura sobre o rendimento baixo ouelevado o pressuposto de que as variáveis motivacionais eemocionais desempenham um papel crucial, se não o mais crucial,no sucesso acadêmico (grifo nosso).

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Partindo-se da observação do desempenho do aluno, entreoutros fatores possíveis, levantou-se o questionamento de que a baixamotivação demonstrada por essa criança para a aprendizagem escolarpoderia estar relacionada à conduta familiar na educação dos filhos. Ahipótese proposta foi de que existiria relação entre baixa motivaçãopara a aprendizagem escolar e conduta familiar na educação dos filhos,como um fator dentre outros, capaz de interferir acentuadamente noprocesso de aprendizagem.

Com esse estudo de caso objetivou-se examinar a relação entrebaixo nível de motivação e interesse no cumprimento das atividades eações pedagógicas, solicitadas na interação educativa promovida nocontexto escolar, e a conduta familiar na educação dos filhos.

Metodologia de pesquisa e objetivo

O caso diz respeito a uma criança de dez anos de idade, dosexo masculino, aluno da quarta série do ensino fundamental, comqueixa de baixa motivação para as atividades escolares.

Segundo Gil (1999), Estudo de Caso é um processo de estudoempírico de um ou poucos objetos, caracterizado pela investigaçãoprofunda de um fenômeno dentro de um contexto, no qual se podeutilizar várias fontes de evidência, descrevendo as situações do contextoe suas variáveis.

Para o levantamento e análise dos dados, utilizou-se entrevistascom pais e professores, observação do comportamento da criançaem atendimentos e atividades realizadas na própria escola ao longo doano letivo, e instrumentos projetivos de avaliação psicológica (teste dasfábulas de Duss) e teste de nível intelectual (WISC).

Fundamentação teórica

A seguir, apontaremos as referências teóricas em que nosbaseamos para fundamentar a análise dos dados e a conclusão a quechegamos.

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Para uma apresentação organizada dessas referências, asapresentaremos por temas inerentes à pesquisa e ao seu objetivo, quesão: motivação e aprendizagem; aspectos dinâmicos da motivaçãopara aprendizagem; família e escola. Queremos frisar que essestemas devem ser vistos como combinados e formando um quadrogeral de referências interligadas.

Motivação e aprendizagem

A abordagem interacionista piagetiana baseia-se no princípio deque o desenvolvimento da inteligência é determinado pelas ações mútuasentre o indivíduo e o meio. A noção central é de que o homem nascepotencialmente inteligente, mas precisa da interação com os objetosexternos para o desenvolvimento e desdobramento desse potencial.Assim sendo, o homem reage aos estímulos externos, agindo física ementalmente sobre eles para constituir e organizar o seu próprioconhecimento a respeito desses objetos, de forma cada vez maiselaborada cognitivamente. A necessidade de conhecimento é intrínsecaao indivíduo desde o início do seu desenvolvimento. Nesse sentido, ateoria de Piaget valoriza os impulsos de exploração, as necessidades deatividades, cujo conhecimento é uma construção dependente daatividade do sujeito na relação com o objeto. Assim, a necessidade deconhecer está contida na atividade intelectual, dela não se separando.Não existe um fator separado de motivação, pois o mesmo está contidonos processos complementares de assimilação e acomodação (PIAGET,1999; WADSWORTH, 2003).

Levando os aspectos acima apontados para o contexto escolar,podemos observar que a ação mental sobre os objetos deconhecimento tem na motivação e na curiosidade importantes forçasimpulsionadoras do processo cognitivo, sendo assim alguns doscomponentes básicos para a realização dos passos necessários para aaprendizagem, considerando-se que o sujeito precisa interagir compessoas e tarefas propostas no cenário educacional.

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Nesse sentido, o processo de aprendizagem tem, entre outrosfatores, na motivação, na vontade de aprender e na disposição afetiva,componentes ou impulsos necessários para sua realização. Diversosautores sustentam a importância da motivação e do envolvimentoemocional com as tarefas escolares, vendo motivação e aprendizagemcomo recíprocos (COLL, 1996; SPRINTHALL, N. A.; SPRINTHAL, R. C., 1997;TÁPIA; FITA, 1999; ARANTES, 2002; NETTO, 2002; WADSWORTH, 2003).

Considerando cognição e motivação como fatores interligadosno processo de aprendizagem, Norman A. Sprinthall e Richard C.Sprinthall (1997, p. 505), comentam que “não só a motivação afeta aaprendizagem, como também a aprendizagem afeta a motivação”.Essa característica de afetação mútua caracterizaria a reciprocidadedesses fatores.

Essa relação tem componentes dinâmicos importantes queprecisam ser considerados no processo educacional.

Aspectos dinâmicos da motivação para aprendizagem

A reciprocidade entre motivação e aprendizagem temcomponentes psicológicos e variáveis contextuais. Segundo Tapia eGarcia-Celay (1996), os alunos possuem metas, que influenciam o seucomportamento e, de acordo com certas variáveis contextuais, aconsecução de algumas são mais viáveis do que de outras. De acordocom este autor, as metas podem ser agrupadas em quatro categorias:metas relacionadas com a tarefa (experimentar que se aprendeu algo,incrementando a própria competência e produzindo-se assim umaresposta emocional gratificante); metas relacionadas com o EU (aquelascujo fim é alcançar um nível de qualidade preestabelecido socialmente,geralmente já alcançado pelos colegas. O aluno busca experimentarque é melhor do que os demais ou que não é pior, evitando osentimento de vergonha ou humilhação trazido pelo fracasso); metasrelacionadas com a valorização social (dizem respeito muito mais àexperiência emocional advinda da valorização social conseqüente àprópria atuação, do que com a aprendizagem ou a conquista acadêmica

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propriamente dita); metas relacionadas com a consecução derecompensas externas (são metas cujo fim é a obtenção de prêmios,presentes, etc, e também não estão relacionadas com a aprendizagemou com a conquista acadêmica propriamente dita).

É importante ressaltar que as metas apresentadas não sãoexcludentes. Segundo esses autores, na maioria das vezes, os alunosbuscam mais de uma delas no processo educacional.

Tápia e Garcia-Celay assinalam que os alunos também diferemnas justificativas que tendem a dar às conquistas escolares e nasexpectativas que precisam poder controlar para a consecução das metasacadêmicas. Alguns atribuem os êxitos a causas internas (competênciae esforço), ao passo que outros os atribuem a causas externas e não seconsideram capazes de controlar a consecução das metas, ao contráriodos primeiros. Como conseqüência destas diferenças, a aprendizagemdifere, sendo mais efetiva no primeiro caso.

Comentam ainda que a forma de pensar difere de acordo coma meta do indivíduo, especialmente diante do fracasso. Quem buscaaprender, pergunta-se como pode resolver o problema, repassa o quefoi feito e busca novas informações, enquanto que aqueles que apenasbuscam ficar bem pensam que não vão conseguir resolver o problema,que ele é muito difícil e está além da sua capacidade; estes últimostendem a abandonar a tarefa antes de seu fim.

Esses autores argumentam que a motivação depende, em grandeparte, de que a consecução das metas perseguidas seja vista: comodependente exclusivamente daquilo que alguém faça (de seu esforço ecapacidade), como dependente de que aquilo que alguém faça supereou não o que façam os outros, e por fim, como dependente do esforçocoordenado de vários. Ou seja, a motivação pela tarefa depende dograu e tipo de interdependência de metas.

Esses aspectos dinâmicos demonstram que muitas variáveisinterferem na aprendizagem, e que não é apenas a disposição intelectualdo aluno que pesa na aprendizagem, mas também sua disposiçãoemocional, sua motivação e sua percepção das tarefas escolares, de

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acordo com metas que estabelece para si conforme o contexto queexperimenta. Nesse sentido, Norman A. Sprinthall e Richard C.Sprinthall (1997, p. 505), comentam que

[...] tem de se compreender que a motivação nunca atua separadanem da aprendizagem nem da percepção. Os três grandes daPsicologia – a aprendizagem, a percepção e a motivação – estãoem constante interação, cada um afetando e sendo afetado pelosoutros dois (grifo do autor).

Família e escola

César Coll (1999) define a família como um contexto primordialde desenvolvimento das pessoas. Entretanto, a mesma definição doque é uma família, suas funções e as oportunidades que oferecem aosseus membros para a aprendizagem e desenvolvimento estácondicionada aos valores culturais da comunidade da qual faz parte.Oliveira (2001, p. 163) comenta que com

[...] forte influência na formação do indivíduo, a família é oprimeiro grupo social a que pertencemos. Embora as normassociais institucionalizadas determinem as regras defuncionamento da instituição familial, cada família tem aindasuas próprias regras de comportamento e controle.

Quando se define uma família, geralmente são incluídos osmembros do grupo familiar, e a sua estrutura, os vínculos que mantéme as funções que possui. Em relação à estrutura, pode ser definida comofamília nuclear ou família extensa (COLL, 1996, 1999; OLIVEIRA, 2001).

A família nuclear é formada pelo casal e pelos filhos não-adultos.A família extensa diz respeito àquelas nas quais convivem mais de umnúcleo conjugal. Pode ser tanto em relação ao eixo vertical, quecorresponde a diferentes gerações que a constituem em um dadomomento, como em relação ao eixo horizontal, quando se incluem osmembros de uma mesma geração.

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97Relação pais e filhos e o processo de aprendizagem escolar: um estudo de caso

Atualmente nas sociedades desenvolvidas, a família nuclear éuma das estruturas mais encontradas, desde que as famílias extensas,devido às mudanças na organização da vida e da fixação em núcleosurbanos, perderam muitos vínculos que antes possuíam e preservavam(COLL, 1999).

De acordo com o enfoque de nosso trabalho, e analisando afamília como um quadro de interações, mencionamos Shaffer apudColl (1999), que considera que a natureza das relações interpessoais é ofator determinante para o desenvolvimento da criança na família,mesmo que a estrutura familiar não seja a tradicional.

Ao se destacar as relações que ocorrem na família para explicaro seu impacto no desenvolvimento das crianças, é necessário considerá-la como um sistema. Assim definida, a família ressalta um contexto noqual as ações e atitudes de cada membro afetam os outros e vice-versa(GOMES, 1987, COLL, 1999).

Como todo sistema, a família tem uma estrutura e algumas pautasreguladoras de seu funcionamento que tendem a manterem-se estáveis.

As famílias são compostas por vários subsistemas, tais como, osubsistema casal, o dos filhos, etc., entre os quais existem limites maisou menos flexíveis. Numa família saudável, a existência e percepçãodo sistema familiar como um todo não é incompatível com aautonomia de seus subsistemas. Tanto as famílias muito desligadas comoas excessivamente aglutinadas podem gerar conflitos e problemasemocionais (COLL, 1999).

São funções da família a proteção aos seus membros e ofavorecimento a sua adaptação à cultura da qual faz parte. Deve oferecerproteção às crianças, garantindo-lhes a subsistência e contribuir para asocialização das mesmas, sendo por isso considerada pela Sociologia(FERREIRA, 1993; COSTA, 1998; TOSCANO, 1999; OLIVEIRA, 2001;) umainstituição conservadora e reprodutora da estrutura social dominante.Deve dar suporte a sua evolução, ajudando-lhes no processo deescolarização e de instrução progressiva em outros aspectos da vidasocial. Finalmente, deve contribuir para que as crianças se tornem

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pessoas emocionalmente equilibradas, capazes de formar vínculosafetivos com os outros, por terem uma boa auto-estima e umaidentidade bem estabelecida (COLL, 1996, 1999).

Enfim, a vivência familiar dá ao indivíduo a oportunidade deestabelecer relações baseadas no respeito mútuo e no afeto.

Vemos assim o quanto a estrutura familiar pode ser um contextode desenvolvimento para as pessoas. As aprendizagens feitas nestecontexto acontecem em meio a relações e sentimentos de afeto e devinculação. Nesse sentido, Gallart (1999) assinala que

Embora em diferentes graus, no contexto da família combinam-se as exigências com a estima, as diretrizes e os ajustes e o alentopara enfrentá-los, as dificuldades com o reconhecimento por tê-los superados, a orientação direcionada à tarefa bem feita com apossibilidade de errar, o estímulo até a autonomia progressivacom a segurança que proporciona saber que existem outraspessoas que a estimam e que estão dispostas a ajudar quandonecessário. Aqui, nota-se que as experiências educativas oferecidasna família e aquilo que se aprende não pode ser examinado àmargem de todos esses aspectos, à margem das relações em quetomam corpo, já que são esses os responsáveis pelo impacto quetêm no desenvolvimento (GALLART, 1999, p. 160).

Essa autora frisa ainda que as crianças aprendem a condutahabitual com adultos próximos e durante longos períodos. As mudançasobservadas durante a infância não podem ser entendidas desvinculadasdas aprendizagens e das relações que acontecem no contexto familiar,como também na escola e em outros meios sociais. Elas podemexperimentar com os objetos e com as pessoas; vivem situaçõesconhecidas e novas; os seus comportamentos são repreendidos ouestimulados e aplaudidos; observam o comportamento dos outros,os imitam e deles recebem ajuda, podendo assim progredir em váriasáreas de atuação.

Examinando essas questões Gallart aponta que as práticaseducativas divergem no que se refere ao grau de controle exercidopelos pais em relação ao comportamento dos filhos. Para ela, essa

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dimensão tem uma grande importância no desenvolvimento doindivíduo, já que, pela orientação e pelo controle que os pais exercem,a criança aprende a controlar e a regular a sua conduta de maneiraautônoma. O controle por meio de uma combinação de firmeza erazão ajuda muito mais a criança a adquirir autocontrole do que quandoa intervenção dos pais é por meio de uma atitude autoritária ouexcessivamente permissiva.

Gallart comenta que outra diferença encontrada nas famílias emrelação às práticas educativas é a capacidade de estabelecer um ambientocomunicativo. Seriam famílias nas quais é possível explicar as normas eas decisões que são tomadas, sempre se levando em consideração asidéias e os pensamentos dos outros. Nessa dinâmica, tudo écompartilhado, desde os problemas, conflitos, dúvidas e ansiedades,até as expectativas e satisfações. É um ambiente que favorece amanifestação dos sentimentos e emoções.

Gallart assinala que tem importância também o grau dematuridade que as famílias exigem dos filhos. Algumas possuemexpectativas demasiado elevadas que causam ansiedade nos mesmos.Já outras são otimistas e confiam no seu potencial, o que contribuipara o desenvolvimento e a autonomia. Coll (1996, 1999) e Papália eOlds (2000) destacam que de todas as dimensões, a afetiva tem umaimportância crucial nas relações. O controle exercido com firmezanum ambiente distante e frio, não tem o mesmo efeito que outroexercido num ambiente afetuoso.

As referências teóricas acima apresentadas mostram que ocontexto familiar, sua dinâmica psicológica, o estabelecimento de seusvínculos e as práticas educativas adotadas, combinam fatores que podemrepercutir no comportamento da criança em outros ambientes econtextos, interferindo em suas atitudes frente aos desafios e às tarefaspropostas nesses contextos.

Nessa direção, é fácil observar que as crianças podem mostrargrandes diferenças quanto à curiosidade, quanto à disposição paraexperimentar e indagar, principalmente no contexto escolar. Tomando

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como base as premissas acima, entendemos que essas diferenças podemestar relacionadas com as experiências vividas na família.

Gallart (1999) considera o desenvolvimento das crianças comoum processo social e culturalmente mediatizado, dentro de contextos.A autora comenta que família e escola formam contextos quecompartilham entre si muitas funções educativas em comum, comopor exemplo, promoção das capacidades cognitivas, motoras, derelação interpessoal, de inserção social, etc. A autora frisa que, ao invésde serem acentuados os aspectos que distinguem os dois contextos,melhor seria acentuar os aspectos que são complementares.

Nesse sentido de interconexão de contextos, lembramos aperspectiva ecológica de desenvolvimento elaborada porBronfenbrenner (1996). Bronfenbrenner elaborou uma perspectivateórica sobre o desenvolvimento humano em estreita relação com oambiente ecológico. Segundo esse autor, desenvolvimento é definido“como uma mudança duradoura na maneira pela qual uma pessoapercebe e lida com o seu ambiente” (BRONFENBRENNER, 1996, p. 5).Esse ambiente é ecológico na medida em que compreende diversoscontextos interconectados. A estrutura do ambiente ecológico é tambémum importante fator. Portanto, Bronfenbrenner concebe ambienteecológico como muito além da situação imediata, envolvendo aconexão com outras pessoas e contextos, formando um complexode inter-relações marcadas pelo modo como o indivíduo percebe oambiente ecológico.

Desse modo, podemos pensar família e escola como sistemas econtextos interatuantes e interrelacionados, que compartilham funçõeseducativas semelhantes e que, por conseguinte, exigirão respostascognitivas e afetivas às tarefas, desafios, situações e atividades propostas;respostas estas que terão relação com a aprendizagem social eestruturação psicológica desenvolvidas e aprendidas nas relações emambos os sistemas.

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Histórico do caso

A criança em estudo tinha dez anos de idade e cursava a 4ª sériedo ensino fundamental. Iniciou na escola em 1996, para cursar o 1ºperíodo e desde então vinha apresentando problemas ligados aodesempenho nas atividades diversas. Segundo relato da professora naépoca, era uma criança que necessitava de ajuda e muito estímulo, devidoà falta de atenção e ritmo lento.

Desde a alfabetização apresentava bom relacionamento com ogrupo, sempre tranqüilo e sociável, e sua linguagem oral correspondiaà idade cronológica. Já neste período evidenciou uma tendência àinibição e contenção das emoções. À medida que as dificuldadesnormais do processo de alfabetização surgiam, passou a demonstrarbaixo interesse pelas atividades. Concluiu a alfabetização ainda comalgumas dificuldades na leitura e na escrita.

Ao ingressar na primeira série, na primeira unidade obteveresultados dentro da média, com exceção de uma disciplina: IntegraçãoSocial. Seu melhor desempenho era em Matemática, em todas asunidades. As suas dificuldades na leitura e escrita se evidenciaram durantetodo o ano letivo, pelo baixo desempenho em português, tendo ficadoabaixo da média na terceira unidade. Concluiu a primeira série dentroda média em português e um pouco acima nas demais disciplinas.

Na segunda série, as dificuldades se acentuaram, ficando abaixoda média em português nas três primeiras unidades e em matemáticanas duas primeiras, com boa recuperação nas duas últimas, chegandoao final do ano letivo com recuperação em português.

Segundo o relato das professoras, mostrava um comportamentoapático e desinteressado em relação à execução das atividades em classe,necessitando de muito estímulo e ajuda. Sua participação nas aulassempre foi muito aquém da esperada, raramente perguntando eexpondo dúvidas. Em relação ao comportamento social, nuncaapresentou problemas, relacionando-se bem com os colegas, em partedevido a sua passividade e baixa agressividade.

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No inicio da segunda série, foi encaminhado ao Serviço deOrientação Educacional pela coordenadora do ensino fundamental.A mãe solicitou atendimento, preocupada com o baixo rendimentodo filho na primeira unidade.

Foi realizada uma avaliação psicológica com os seguintesresultados: os dados anamnésicos revelaram que a gravidez não foiplanejada, tendo sido recebida com tensão e ansiedade, sendo,inicialmente, escondida pelo fato dos pais ainda não serem casados.Foi feito o pré-natal durante todo o período gestacional, tendo todosos exames resultados normais. O parto foi normal e a termo e acriança chorou logo ao nascer. Foi alimentado ao seio durante trêsmeses e o desmame aconteceu quando o leite secou. A partir de então,usou mamadeira até os quatro anos. Sempre teve problemas para sealimentar, somente comendo o que queria. Usou chupeta até os trêsanos. O desenvolvimento neuropsicomotor transcorreu sem problemas.

A criança dorme bem, em seu próprio quarto, mas atérecentemente dormia no quarto dos pais e ainda sai de sua cama paradormir na cama deles, com o que ambos concordam. É sociável etem amigos dentro e fora da escola, embora não tenha muita iniciativapara procurar as pessoas.

Os pais dizem ter bom relacionamento um com o outro, e comrelação ao filho, o pai mostra-se “desligado” ou desinteressado, e amãe muito protetora. A criança é muito apegada à mãe e ciumenta.

Na área escolar, sempre recebeu ajuda de professoresparticulares,pois a mãe nunca conseguiu que ele assumisse aresponsabilidade pelas tarefas, as quais exigiam dele um esforço quenão precisava fazer em nenhuma outra atividade da vida diária, já queem tudo era atendido prontamente.

Após a avaliação, os pais foram atendidos e aconselhados abuscar avaliação psicológica conjunta, para eles e para o filho, e apensarem a respeito da conduta familiar que vinham promovendo.

Quanto ao aluno, houve um atendimento no Setor de OrientaçãoEducacional, voltado a fazê-lo sentir a necessidade de submeter-se auma orientação psicológica para vencer as suas dificuldades.

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Reconhecemos que num estudo de caso muitos aspectospodem ficar à margem das análises produzidas, por isso, colocamosesses detalhes do histórico do caso para que o leitor possa tambémlevantar outras possibilidades de análise e investigação de acordo comsua própria leitura.

Análise dos dados e algumas reflexões

Os dados levantados no teste de nível intelectual (WISC)mostraram que a criança possuía nível intelectual acima da média, combom raciocínio lógico-matemático, boa capacidade de aquisição deconhecimentos e boa memória.

Esses dados sinalizaram para uma compreensão de que nãohavia evidências que a baixa motivação estivesse relacionada com odesenvolvimento ou capacidade intelectual da criança, fazendo crerque, cognitivamente, tivesse condições satisfatórias para aprender.

Os testes psicológicos projetivos, as observações diretas e asentrevistas com os professores e com os pais, mostraram os aspectosa seguir.

Filho de pais jovens, com pai distante e pouco envolvido, e mãeimatura e superprotetora, que lhe tratava com zelo exagerado,poupando-lhe esforços, ajudando e facilitando excessivamente em tudoque oferecia qualquer dificuldade, inclusive fazendo as tarefas escolarespela criança. A criança mostrava-se muito dependente da mãe.

Em sala de aula, a criança apresentava-se insegura e reagia deforma negativa em situações que apresentavam algum grau dedificuldade, mostrando-se inibida e dependente de ajuda ou estímulo.

Adrados (1988) destaca o lado negativo que a superproteçãopode originar, determinando uma atitude que desprepare a criançapara as exigências da vida. A superproteção cria obstáculos aodesenvolvimento da independência da criança e implica numadiminuição ou excesso de controle por parte dos pais. O excesso decuidados e atenção, vividos pela criança, pode levá-la a desenvolverpouca confiança em suas capacidades.

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A escola coloca essas crianças numa situação muito difícil, pois,tais crianças podem não aceitar com facilidade o dever, aresponsabilidade e a separação do lar e dos pais que a vida escolarapresenta. Como crianças assim podem apresentar baixa autoconfiança,o esforço torna-se muito penoso, pois não crê que possa superar asdificuldades. No contexto escolar, o resultado disso pode ser baixamotivação para a aprendizagem e, conseqüentemente, dificuldades deaprendizagem e até mesmo fracasso escolar.

Lembramos também, nessa altura da análise, a colocação queTápia e Garcia-Celay (1996) fazem sobre a importância que tem omodo como o aluno vê a tarefa escolar (em termos de dificuldades edesafios), como se vê diante dessa tarefa (sentindo-se capaz ou não) eas expectativas que constrói dessa tarefa e das dificuldades ou facilidadesque apresenta, formando um quadro de variáveis psicológicas econtextuais interatuantes. Portanto, maior ou menor confiança em sipode afetar a interação da criança com a tarefa a ser executada, refletindoem alta ou baixa motivação.

Portanto, nosso entendimento é que a criança do estudo emquestão enquadrava-se num perfil de filho superprotegido, comdificuldades de enfrentar sozinha os desafios escolares e de superar ospassos necessários à aprendizagem, temendo fracassos e frustrações.Entendemos que o resultado dessa disposição psicológica aparecia nainibição e na apatia frente às tarefas escolares propostas.

Também observamos que a criança em questão apresentavainteligência e condição intelectual para um desempenho escolar normal,mas não mostrava motivação para as atividades escolares, comdificuldade para enfrentar ou mesmo realizar os passos necessáriospara a aprendizagem de um assunto. Compreendemos que issoassinalava para a possibilidade de interferência de aspectos afetivos noprocesso, uma vez que intelectualmente a criança mostrava-se apta paraaprender normalmente. Assim, o baixo rendimento escolar não sedevia à capacidade intelectual da criança, mas, a sua falta deenvolvimento efetivo com as tarefas escolares, resultando no não

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cumprimento das tarefas preparadas para a concretização daaprendizagem, como esperado. Portanto, a questão afetiva, nesse caso,mostrou-se tão relevante quanto a capacidade intelectual, inibindo aparticipação total da criança nas tarefas escolares, e conseqüentementeprejudicando sua produção escolar.

Nesse sentido, Martinelli (2002, p. 99-100), apresentando umarevisão da literatura sobre dificuldades de aprendizagem, comenta que

as relações entre os domínios cognitivo e afetivo têm sidodiscutidas em diferentes perspectivas teóricas. Embora estas nemsempre sejam concordantes entre si, em muitos aspectos não hácomo negar que existe uma relação entre os fatores afetivos e osatos inteligentes,

e que as pesquisas apontam fatores como autoconceito, auto-estima,percepção de habilidades, expectativa de fracasso e sucesso, etc., comovariáveis das dificuldades de aprendizagem.

Arantes (2002, p. 160), fazendo uma análise da afetividade nocenário educacional a partir de reflexões conceituais e revisão da literaturaa respeito, comenta que

no trabalho educativo cotidiano não existe uma aprendizagemmeramente cognitiva ou racional, pois os alunos e as alunas nãodeixam os aspectos afetivos que compõem sua personalidade dolado de fora da sala de aula, quando estão interagindo com osobjetos do conhecimento, ou não deixam latentes seussentimentos, afetos e relações interpessoais enquanto pensam(grifo do autor).

Nossa análise geral foi de que a maneira como a educação familiarse processava para esta criança, baseada numa relação pais-filho, compai ausente e distante e mãe superprotetora, desenvolveu na criançaposturas afetivas defensivas e atitudes evasivas frente aos desafiosescolares que normalmente se apresentam no cotidiano do processoeducacional, mostrando baixa motivação para aprender e produzir.

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A capacidade cognitiva, nesse caso, pareceu-nos ficar obstruídaou potencialmente inibida frente aos aspectos afetivos mais prementes,considerando os apelos e desafios que o processo educacionalnormalmente fazia à criança, durante a promoção do processo ensino-aprendizagem.

Tápia e Fita (1999, p. 9) comentam que a motivação escolaré um assunto complexo, processual e contextual. Esses autoresassinalam que

[...] o ser humano, o aluno, é alguém que se move por diversosmotivos e emprega uma energia diferencial nas tarefas que realiza.Esse caráter pluridimensional evita a tentação de interpretar aconduta humana como devida a um só fator e convida à reflexãopessoal e ao exame das razões por que as pessoas fazem o quefazem (grifos do autor).

Nossa compreensão desse caso é que, antes de classificar o alunocomo cognitivamente ou intelectualmente incapaz de efetuar tarefasescolares, apenas baseando-se em avaliações normativas, importantese faz considerar contextos, variáveis e fatores interatuantes diversosde outros ambientes interferindo no processo; incluindo-se, também,a consideração de que as dimensões cognitivas e afetivas têm umarelação dinâmica entre si, e que, conforme o caso, podem afetar amotivação, com repercussão no desempenho escolar em geral.

Concluímos que as bases das dificuldades da criança do estudoem questão em realizar devidamente ou cumprir, como esperado, astarefas escolares solicitadas, tinham raízes na dinâmica psicológica darelação pais-filho, estabelecida no contexto familiar, e não, precisamente,em sua capacidade cognitiva ou em sua vida escolar.

No caso da dimensão cognitiva, esta nos pareceu como quesomente “bloqueada” pelas questões afetivas, mostrando-nos comosão fatores interatuantes e de igual importância. Apoiados nos dados,nossa compreensão foi que a baixa motivação para aprenderapresentada pela criança era resultado de dificuldades emocionais para

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lidar, sozinha, com os desafios e com os obstáculos que a interaçãoeducativa e as tarefas escolares acabavam impondo à essa criança; eque essas dificuldades emocionais faziam com que ela evitasse umenvolvimento maior com as atividades escolares, temendo o fracassoe a frustração, fazendo com que não investisse energia suficiente, nemcognitiva e nem afetiva, nas atividades propostas.

Considerações finais

O estudo desse caso sugeriu que o excesso de zelo e apermissividade expressada na conduta familiar podem ter impedidoque a criança em questão desenvolvesse condições emocionais necessáriaspara lidar com as dificuldades escolares; e que a superproteção porparte da mãe interferiu na formação da personalidade da criança,causando sentimentos de insegurança, baixa auto-estima e atitudes deacomodação e falta de persistência no esforço, com repercussõesescolares em termos de baixa motivação para a aprendizagem, mesmoa criança tendo boas condições intelectuais para as tarefas escolares.

Apesar de ter sido um estudo de caso, cujos resultados são dedifícil generalização (GIL, 1999), entendemos que ele indica a existênciade um fenômeno que precisa ser mais investigado e mais discutido.Além desse caso, outros semelhantes a este aconteceram na escola,com os sujeitos também vivendo contextos familiares parecidos,mostrando a relevância do tema.

Entendemos que essa repetição de casos parecidos mostra anecessidade das instituições escolares considerarem mais de perto algunsaspectos da interseção entre o contexto familiar e o contextoeducacional, conforme o caso, a fim de que sejam desenvolvidasintervenções cuidadosamente planejadas, tanto em nível psicológicoquanto pedagógico, para fornecer o apoio institucional mais adequadoa alunos com esse perfil.

As escolas estão habituadas a se concentrarem mais nodesempenho cognitivo ou racional de seus alunos. No entanto, é precisotambém considerar que cognição e afeto são fatores interatuantes, e

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que devem ser valorizados igualmente, investigando-se melhor suasfontes de formação e interrelação.

O estudo desse caso nos sugeriu que alguns aspectosmotivacionais e afetivos da criança, e seu envolvimento com o processode aprendizagem escolar, não são formados ou desenvolvidosexclusivamente no contexto escolar, mas são também provenientes dadinâmica familiar; e que os contextos familiares e escolares estãointerligados no desenvolvimento da personalidade da criança(BRONFENBRENNER, 1996). Como aponta Gallart (1999), a família e aescola, apesar de terem identidades diferentes, possuem funçõessemelhantes, exigindo disposições cognitivas e afetivas para ocumprimento das tarefas, obrigações, responsabilidades, interações,etc; e ambas devem educar a criança de modo que ela aprenda a lidarcom dificuldades e frustrações, pelo menos de maneira mais ou menosbem sucedida.

De um modo geral, as crianças vivem em diferentes contextossociais, contudo, passam boa parte do seu dia transitando entre ocontexto familiar e escolar. Por isso, necessário se faz examinar einvestigar as possíveis interseções e conexões que possam apresentaresses dois contextos, como por exemplo, a relação entre pais e filhos esuas repercussões no processo de aprendizagem escolar da criança.

PARENT-CHILD RELATIONS AND THE SCHOOLLEARNING PROCESS: A CASE STUDY

Abstract: The present article is a broadened and revised summary of a casestudy of an elementary school student who showed low learning motivationand little involvement with proposed school activities. It was noted in the casestudy that there is a relation between low learning motivation and the familycontext, mainly concerning parent-child relationships. The work reflects onparent-child relationships and the possible repercussions that may evolve duringthe school learning process.

Keywords: Parent-child relationships. Learning and motivation. Cognition andaffection. Family and school.

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ARTIGOS

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ADOLESCÊNCIA E ARTE: ESTÉTICA E PRÁTICASCULTURAIS

Celso Vitelli *

Resumo: Este trabalho traz o adolescente para o centro da cena, considerandoa velocidade das mudanças que marcam o tempo presente. A teoria aponta paraa presença das diferentes identidades constituídas em relação a estes adolescentesque vêm se alterando conforme o surgimento de novas “tribos”. Revela-se umcotidiano social no qual a adolescência é celebrada em nossa cultura e interpeladapor uma sociedade fortemente voltada para o consumo, interferindo naconcepção de valores sociais e culturais, produzidos e reproduzidosconstantemente.

Palavras-chave: Estética. Cultura e adolescência

Neste texto1 procuramos trabalhar com os conceitos de estéticaexistentes tanto no campo das Artes Plásticas que circulam dentro das

* Doutorando em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Docente daUniversidade Luterana do Brasil (Ulbra), de Canoas, RS. E-mail: [email protected] Texto produzido a partir da Dissertação de Mestrado: Estação adolescência: identidadesna estética do consumo, defendida em agosto de 2002, no Programa de Pós Graduaçãoda Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),Porto Alegre, 2002.

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III n. 4 p. 113-140 2005

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escolas, quanto com os conceitos que circulam para além das mesmas:em casa, nos grupos dos adolescentes, na mídia; enfim, discursos quepermeiam o nosso cotidiano e vêm construindo diferentes conceitosde estética no senso comum e diferentes visões que alguns autores têmsobre este conceito. Para trabalhar com esses conceitos e relacioná-loscom o ensino nas escolas, realizamos entrevistas com adolescentes de14 a 18 anos, por meio das quais, procuramos “compreender maissobre o tempo presente, sobre a cultura que vivemos, sobre os modosde vida que produzimos e que nos produzem” (FISCHER, 2001, p. 11),principalmente no campo da educação em arte e sobre o universoadolescente.

Ao costurar algumas das respostas obtidas através dosquestionários que realizamos e das análises produzidas sobre tudo oque foi dito por estes adolescentes também nas entrevistasgravadas,2 dialogando com a literatura referida sobre o assunto, tivemoscomo eixo principal desta discussão o pensamento baudrillardiano,além de outros autores. Em um de seus textos publicados no jornalfrancês Libération,3 Baudrillard (1999), em suas reflexões, parte desdeo destino do nascimento artificial da criança, até o entendimento deuma adolescência sem fim que, como nos diz o autor, referindo-se àgeração contemporânea,

escapa ao olhar adulto, não se preocupa mais em tornar-seadulta – adolescência sem fim e sem finalidade que seautonomiza sem consideração pelo Outro, por si mesma evolta-se por vezes violentamente contra o Outro, contra oadulto do qual não se sente mais nem descendente nemsolidária (BAUDRILLARD, 1999, p. 67).

2 Refiro-me aos seis adolescentes de escolas particulares de Porto Alegre - RS que foramentrevistados, lembrando que todos pertencem às classes A e B. Previamente, estesadolescentes já haviam sido entrevistados por mim através de um questionário escritocom 27 perguntas. Este questionário escrito serviu de roteiro para algumas das questõesformuladas durante as entrevistas gravadas.3 BAUDRILLARD, Jean. O continente negro da infância. In: ______. Tela total: mito-ironias da era do virtual e da imagem. Porto Alegre: Sulina, 1999.

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115Adolescência e arte: estética e práticas culturais

Seria importante salientar, no texto de Baudrillard (1999, p. 67),a caracterização da criança, desde a artificialidade de seu nascimentoaté a “criança-clone”, cuja realidade, conforme o autor nos alerta, nãopertence a um amanhã, a um futuro remoto, mas “já está presente noimaginário científico coletivo”. Seguindo seu raciocínio, o autor nosexplica a afinidade da geração jovem com as novas tecnologias dovirtual, referindo-se ao privilégio obtido através da instantaneidade.Ainda sobre a criança, acrescenta que “no que diz respeito ao temporeal, está definitivamente adiantada em relação ao adulto, que só podeparecer-lhe retardado, assim como, no terreno dos valores morais, sópode parecer-lhe um fóssil”.

É partindo deste cenário que, apresentado talvez de uma formaum pouco apocalíptica por Baudrillard, acompanhamos a atuação dacriança/adolescente no espaço escolar e, por que não dizer também,no espaço social (não perdendo o senso observador sobre as falas/ações das crianças e adolescentes diariamente). Arriscamos dizer que apalavra “fóssil”, utilizada pelo autor para referir-se ao adulto, não seriaum exagero diante de certas práticas cotidianas, tanto sociais quantoescolares. Desta forma, acreditamos nas cenas baudrillardianas diárias,como crianças de 8 ou 9 anos ensinando suas professoras a usaremcertos programas de computador ou discutindo cenas sobre filmesou novelas, opinando sobre problemas ou situações que há bem poucotempo não faziam parte do seu universo infantil. Além disso, tambémsomos questionados por estas crianças/adolescentes sobre os maisdiversos assuntos.

Desse modo, foi na velocidade e na linguagem da comunicaçãocontemporânea utilizada pela criança/adolescente, que responderam,alguns dos adolescentes entrevistados, sobre os mais diversos assuntos,sejam eles do seu [nosso] dia-a-dia ou mais distantes.

Cena 1: as entrevistas

Das entrevistas gravadas, destacamos a de Roberto, a quemperguntei sobre as suas aulas de artes e sobre como ele se sentia em

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relação a esta disciplina. Sua resposta foi: “Eu achava que era legal [...].Mas eu acho, que tem coisa mais importante do que as artes”.

Dentro desta mesma resposta ele foi mais adiante, apresentandotodo um quadro sobre a sua professora de artes (2001),4 demonstrando,desta forma, alguma coisa que teria legitimado a sua falta de interessepela arte. Certamente, não posso fixar em Roberto uma indignaçãopela falta de interesse em relação à arte ou à prática do ateliê na escola.Este discurso que desenha um certo “desprezo” para com o ensino dearte já está posto, não é um discurso de Roberto. E este discurso estátão “bem” colocado e sustentado no campo escolar, que o próprioRoberto se utiliza dele para explicar o porquê da existência de outrasdisciplinas mais importantes do que a das artes. Ele diz: “[...] eu achoque sempre tem umas disciplinas mais importantes e outras não. Tanto éque, pela carga horária, né, tem mais períodos de tal coisa e outras não”.

Quando perguntado sobre quais seriam as disciplinas maisimportantes, Roberto afirmou: “Eu acho que [...] Matemática,Português, Física, Química e Biologia, não fugindo muito destas”.

Diríamos (baseados em algumas das respostas5 obtidas dosadolescentes) que o estudo sobre o assunto arte, para algunsadolescentes, poderia ser classificado como “fóssil”, usando uma palavraempregada anteriormente por Baudrillard. Marc Jimenez (1999, p. 9)nos responderia que “os professores das disciplinas artísticas sabem muitobem que se beneficiam de um status particular, incapaz de rivalizar como de seus colegas da Matemática, das Letras ou da Lingüística”. Parece-me que, na história do ensino, o “Partido das Artes” tem tido menostempo de exposição nas diferentes mídias [para dizer ao que veio] doque os seus outros “concorrentes”. A consciência deste status particularpode ser lida em um depoimento que roubamos neste momento (entre

4 O quadro apresentado por Roberto, é de que sua professora era desorganizada napreparação das aulas, não tinha paciência. Enfim, seus argumentos demonstraram que arelação dele com a professora, poderia ter afetado a relação aluno/professor.5 Surgiram mais de sessenta códigos de respostas dos questionários dos adolescentessobre como eles viam a arte nos dias de hoje, o maior número de respostas semelhantes,encontram-se na frase: “Meio apagada. Desvalorizada infelizmente. A arte é esquecida enão tem seu valor real. As pessoas não se interessam por ela”.

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tantos outros), da professora (Bárbara), entrevistada por Luciana Loponte(1998) em sua dissertação de mestrado. Ela nos diz o seguinte:

[...] Às vezes tu te deparas com tantos problemas, em relação a tuadisciplina de artes, que dá vontade assim: “Que bom seria...”. Eujá me peguei dizendo isso: “Que bom seria se eu desse Matemática,pelo menos ninguém iria me contestar no que eu estou dizendo,no que eu estou falando” (LOPONTE, 1998, p. 118).

Outro exemplo que ilustra bem esta posição é a resposta deFátima (outra adolescente entrevistada), quando lhe foi perguntadosobre a existência de uma hierarquia entre as disciplinas do colégio, seela achava que existia ou não. A menina respondeu: “Eu não colocoem primeiro, segundo, a importância. O colégio coloca, naturalmente.Os meus professores colocam, aquela coisa toda”.

Nos perguntamos, dessa forma, sobre este “tratamento” quevem sendo dado à disciplina de arte. Qual o lugar/o tempo que ocupaa arte na educação? Estará ainda sendo vista como “um campo àparte?” Não se trata de querer privilegiar a posição do ensino de artena escola ou, muito menos, de inverter o status (segundo o pensamentode Jimenez exposto no parágrafo anterior) que foi dado a esta disciplina.Talvez, em relação à primeira pergunta, poderíamos encontrar naspalavras de Baudrillard (1997, p. 84), uma das possíveis respostas, oupelo menos parte delas: “Num mundo voltado à indiferença, a arte sópode acrescentar a essa indiferença”.

Também nos interessou levantar quais seriam os valores estéticoseleitos pelo público adolescente hoje em dia diante da diversidade deimagens e conceitos e, quais seriam os conceitos que envolvem belezae onde eles a vêem. Estas questões podem vir a alimentar a práticacotidiana do trabalho de um profissional que atua na educação emarte. Acreditamos que, através deste tipo de pesquisa, poderemosconhecer mais (para melhor interferir) sobre o que pensa o adolescenteacerca destes assuntos.

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Na nossa condição contemporânea, talvez a formulação destasquestões (mesmo no campo cultural ou especificamente da educação)possa parecer estar um pouco fora de uma agenda oficial, a qualgeralmente prioriza outros pontos em sua pauta, que, provavelmente,não seriam estes que marcam a relação entre valores estéticos e osadolescentes hoje, por exemplo. Marc Jimenez (1999), no prefácio doseu livro O que é estética?, nos questiona sobre qual seria acontribuição da arte no campo do conhecimento, associando-a à estéticacomo herdeira da mesma ambigüidade nela verificada:

[...]a ambigüidade da arte, atividade ao mesmo tempo racional,que supõe materiais, instrumentos, um projeto, e irracional, namedida em que permanece afastada das tarefas cotidianas queocupam a maior parte de nossa experiência. Da ciência esperam-se descobertas que influam diretamente sobre nosso ambiente;da técnica prevêem-se progressos que facilitem nossa ação sobreo mundo; da ética esperam-se regras de conduta que guiemnossos pensamentos e nosso comportamento; porém,poderemos extrair da arte um ensinamento tão útil, sério, rentávelquanto aquele dispensado por essas outras disciplinas sensatas?(JIMENEZ,1999, p. 11).

A questão posta pelo autor nos leva a pensar e questionar aexistência dessa ambigüidade, uma vez que estaria, já na realização dosprojetos dos artistas, no exercício da criação, o papel de seriedade daarte. Em contrapartida, concordamos que a rentabilidade e a utilidadenão seriam incumbências pertinentes ao mundo artístico. Logicamentea extensão deste assunto exigiria um aprofundamento maior, que nestetexto não poderia ser desenvolvido com o devido cuidado. Por outrolado, podemos considerar pertinente a relação que o autor estabeleceentre o belo e o sublime; na sua visão, “o belo é harmonia, o sublimepode ser disforme, informe, caótico. Prazer para um, dor e prazerpara outro” (JIMENEZ, 1999, p. 144).

6 Ver VITELLI, Celso. Estação adolescência: identidades na estética do consumo.Dissertação de Mestrado defendida no programa de Pós-Graduação em Educação, daFaculdade de Educação da UFRGS, Porto Alegre, 2002.

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Perguntamos diante desta afirmativa, se estaria aí a explicaçãopara a beleza vista por um certo número de adolescentes6 nas cenas dadestruição das torres gêmeas do World Trade Center ocorridas no dia11 de setembro de 2001. Perguntados sobre aquilo que considerariambelo (ou teriam visto de belo nas últimas semanas), recortamos aqui asfrases de dois meninos que responderam o questionário: “A queda doW.T.C. em Nova Iorque, pois isso me fez perceber que não sou só euque não gosto das injustiças socais”. “O Afeganistão bombardeandoos EUA, porque eu não gosto deles”.7

Por outro lado, a solidariedade com os mortos e feridos doacontecimento também foi vista como algo belo. Talvez a demonstraçãode alguma falta de harmonia em geral, nas áreas da arquitetura, damúsica, das Artes Plásticas, da cultura em geral, esteja colaborandopara a construção de uma apreciação estética diferente da que tínhamosaté então. São certas suposições que levantamos, para entender umpouco mais sobre aquilo que talvez não tenha nenhuma explicaçãodefinitiva dada pela história, mas que nos surpreende e muitas vezesnos estremece (como no citado caso das torres do W.T.C.), diante detantas visões diferentes daquilo que possa ser belo para uns e paraoutros não. Como sustenta a frase escrita acima por Jimenez – o“disforme”, o “caótico”, assim apresentados por esta destruição,podem ser também, sim, sinônimo de “prazer” para algumas pessoas.

É difícil escrever sobre a existência de “uma estéticacontemporânea”, ou “uma estética específica do adolescente de classemédia/alta”, até mesmo porque o próprio conceito da palavra estéticaaponta para diferentes discursos acerca da mesma. Em seu livro,Jimenez cita as idéias de Hegel8 sobre estética, chamando a atençãopara o fato que já em 1805, o filósofo alemão questionava a existênciade uma disciplina sobre estética na universidade e, em substituição a

7 As duas frases foram escritas por dois adolescentes de 14 anos, e fazem parte daDissertação de Mestrado Estação adolescência: identidades na estética do consumo, deCelso Vitelli, 2002.8 Ver: JIMENEZ, Marc. O que é estética. São Leopoldo: Unisinos, 1999. p. 166.

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este termo, pareceu-lhe mais adequado o uso da filosofia da arte paratratar deste assunto.

Quando vemos certos grupos de jovens adolescentes dediferentes escolas de Porto Alegre (aí incluímos as escolas públicas eprivadas) visitando exposições de arte contemporânea em galerias,museus, bienais, levantamos a possibilidade9 de uma identificação maiorpor parte deles com a vertente da arte na qual muitos artistas abordamo tema do cotidiano em seus trabalhos. Desta forma, em certosmomentos, presenciamos que a distância ora existente entre a obra e opúblico parece diminuir diante da exposição de propostas interativas,bem como através dos ícones do cotidiano que ora aparecem supervalorizados nestas obras (personagens de história em quadrinhos,atrizes/atores – nacionais ou internacionais; enfim, toda uma diversidadede imagens que desfilam em torno deste tema).

Para alguns adolescentes, a relação com a arte passou a ser vividacomo um divertimento, uma recreação. Esta identificação ligada aodivertimento se processa até pelos próprios meios e temas com osquais os artistas vêm utilizando a mediatização. Repetimos a perguntade Jimenez:

Se as práticas artísticas se baseiam na quantidade de banalidadescotidianizadas – dou uma volta ao museu antes de ir para oescritório – a relação entre a arte e a realidade não correrá o risco,por conseqüência, de ser vivida como um divertimento, umadistração pura e simples, uma “recreação dominical” como já olamentava Ionesco? (JIMENEZ, 1999, p. 16).

Talvez a relação do olhar que o adolescente esteja dedicando àarte seja muito parecida com a relação que ele estabelece com a televisão,onde o seu olhar é guiado pelo recurso do zapping , passando porfilmes, desenhos, noticiários, clips musicais – tudo isto acontecendo

9 Conversando com alguns adolescentes de classe média/alta é que retive estespensamentos sobre a sua relação com o campo das Artes Plásticas. Importante marcar queme refiro sempre à mesma classe de adolescentes, com a qual trabalhei com entrevistas equestionários.

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numa fração de segundos. Os videoclipes, tão assistidos pela geraçõesdesde os anos 80, trazem a linguagem de um ritmo frenético decombinações de imagens. No videoclipe, “nenhum plano dura maisque cinco segundos. Muitas vezes não há enredo; tudo se move pelaestimulação de efeitos visuais” (CARMO, 2001, p. 156). O autor traz oexemplo do videoclipe, relacionando a linguagem às mensagensfragmentadas, associando, desta forma, uma visão de realidade quevaloriza o “transitório e o fugidio”. Complementando este pensamento,Sarlo (2000, p. 53), nos chama a atenção para as imagens que, atravésdas suas sucessões, estão ali “só por um momento, ocupando o tempo,enquanto não for sucedida por outra imagem”.

Estamos vivendo em um tempo no qual predomina aexperiência imediata, a rapidez. “Aciona o controle remoto. Fecha osolhos e tenta lembrar da primeira imagem: eram umas pessoasdançando, mulheres brancas e homens negros?” (CARMO, 2000, p. 53).Os nossos contatos parecem que “exigem” que esta relação aconteçadesta forma. E esta rapidez vem se materializando também naprodução plástica das crianças/adolescentes.

Como educadores, temos acompanhado alunos nas suas aulaspráticas de ateliê, nas quais o envolvimento dedicado por eles àspropostas de trabalho em arte tem sido cada vez mais veloz. Aspropostas de trabalho em arte necessitam de um tempo maior deenvolvimento, e exigem também continuidade, para que o aluno possadesenvolver um processo de trabalho seu. As experiências neste campotêm apontado visões de uma continuidade construída através deconstantes descontinuidades, ou seja, a grosso modo, eles estão fazendoum trabalho velozmente, envolvendo-se o mínimo possível,perguntando qual será a próxima proposta, quanto tempo vão terpara finalizá-la e, mesmo sabendo que têm um tempo próprio paracada uma das diferentes propostas apresentadas (um tempo de semanasou meses, dependendo do trabalho), eles começam a trabalharrapidamente perguntando ainda “quantos pontos vai valer estaatividade?”. É o cálculo sobre o ato inventivo? É a economia sobre o

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tempo da reflexão dedicada à arte? Enfim, continuamos trabalhandodescontinuamente, ou seja, faltaria equacionar melhor a relaçãodiversificada que os adolescentes têm com os estímulos sonoros evisuais (sons e imagens oriundos dos vídeos, televisão, Internet, etc.).Existe uma gramática nova para a atenção/concentração, que deve serpesquisada. Para Caiafa (2000, p. 23), “o imediatismo ditado pelomercado e a exigência do aspecto ‘aplicado’ para o saber vão contra oprocesso de criação na arte e no pensamento”.

Parece-nos que estes adolescentes (e não só eles, as criançastambém vêm encarando o processo de trabalho em arte desta forma)já entram em aula com o olhar contemporâneo de quem não tem muitotempo “a perder”. Eles muitas vezes parecem estar nos dizendo comseus comportamentos e ações que “já fizeram tudo” (esboçado em umgesto que se resume apenas a um risco no meio da folha de desenho).“É arte contemporânea sor!”, afirmam alguns em um tom irônico.

É em atitudes como estas que vemos o quanto eles nãoconseguem mais tolerar aquilo que dura muito tempo, que tenha queser planejado, rascunhado; que exija um pensamento mais elaboradodiante do tema com o qual estejam trabalhando. Mais uma vez,questionamos como trabalhar com um tempo em que a relaçãoprodução/apreciação da arte “tem que ser rápida”. Ficamos diante deum paradoxo, uma vez que a condição principal para que acontemplação aconteça, tanto na apreciação das obras de arte quantona produção das mesmas, é o tempo. E trabalhar com a velocidadeacelerada em relação à arte, tanto na sua produção como na suaapreciação, vem dissolvendo muitas propostas de ensino em arte,fazendo com que elas percam sua consistência como experiência,conhecimento; deixando a desejar tanto a produção destes alunos,quanto a sua relação de contemplação com as artes em geral (música,pintura, poesia, cinema). Talvez uma das supostas explicações paraestes acontecimentos esteja nas palavras de Gianni Vattimo (1996, p.51), quando ele menciona que “o que acontece na época dareprodutibilidade técnica é que a experiência estética se aproxima cada

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vez mais daquilo que Benjamin chamou de ‘percepção distraída’”.Entendemos que esta “percepção distraída” regula, nos dias de hoje, opensamento com o qual a maioria dos jovens vê as obras de artecontemporânea – no sentido de que estas, geralmente não têm emsuas mensagens conteúdos tão explícitos. Talvez esteja aí um dos pontosque desencadeiam uma percepção sem grandes envolvimentos [detempo] por parte dos adolescentes.

Esta relação de rapidez destinada à produção/contemplaçãodo adolescente com a arte/produção não se construiu somente porparte deles, obviamente. O papel das escolas, que vêm reduzindo otempo destinado aos períodos de arte, colaborou, e muito, para que oentendimento que o adolescente tem sobre esta disciplina seja aexperiência de um contato rápido, fugidio. A discussão desta cenaescolar seria longa, mas nos permite pensar que algo sempre escapa aopresente, parecendo muitas vezes que realizamos um trabalho emeducação onde as frestas aparecem mais do que a construção comoum todo.

Hoje fala-se muito nas “competências” que as crianças eadolescentes devam ter dentro de cada área na educação. Sendo assim,quais seriam as competências necessárias que formariam este sujeitono campo de conhecimento da arte, e para quê? Perguntamos entãose, desta forma, conseguiremos algum dia pôr em prática a fraseproferida por Albert Camus (1971, p. 226-2277), que diz que “todomundo tenta fazer de sua vida uma obra de arte”.10 Em nome de umafastculture, um contêiner se abre para que se deposite nelerelacionamentos rápidos, leituras rápidas, contatos rápidos... Enfim,fala-se numa geração super informada, mas não se questiona o quetem sido feito com estas informações.

10 Ver, a propósito, o debate sobre fazer da própria existência uma obra de arte, emFOUCAULT, Michel. A cultura de si. In: ______. História da sexualidade, 3: o cuidadode si. Rio de Janeiro: Graal, 1985. p. 43-73 e DELEUZE, Gilles. As dobras ou o lado dedentro do pensamento (subjetivação). In: ______. Foucault. Rio de Janeiro: Graal, 1991.p. 101-130.

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Existem os museus, as visitas aos mesmos acontecem, as imagensde arte são vistas através da Internet, de vídeos, quadros, mas sãocontatos de apreciação diferentes de 20 ou 30 anos atrás. A relaçãoexistente entre o público e as obras de arte na atualidade, deixa umpouco cambaleante a antiga experiência de estética tradicional (na qualo público jamais poderia encostar um dedo sequer numa obra dearte), mesmo que esta relação mais “tradicional” de contato ainda exista.Esta comparação entre as diferentes apreciações do público não temum caráter saudosista ou sugere que o correto seria a existência desomente uma delas. Ambas são importantes, mesmo porque as telas aóleo ainda existem, continuam sendo feitas e não devem ser tocadaspor nossas mãos. O que tentamos chamar a atenção aqui diz respeitoao tempo dedicado à apreciação, que pode alterar toda a sua concepçãoda obra de arte.

Um outro ponto a ser considerado neste contato do adolescentecom a arte tem a ver com a escassez da produção de material escolar(ou em outros meios também: televisão, revistas) sobre este assunto,dirigido especificamente11 ao público adolescente. Este material é, naverdade, quase inexistente. O que temos no mercado seria voltadomuito mais para as crianças (e ainda assim não em grande quantidade).É lógico que sobre cultura, no seu conceito mais amplo, circulamalgumas reportagens (muito raras) nos encartes de jornais e revistasdestinadas ao público de adolescentes, que tentam realizar um papelpedagógico em relação ao conhecimento sobre o campo da arte.Acreditamos ser importante salientar que, tanto a informação sobre ocampo da arte quanto à informação sobre a cultura em geral (música,teatro, literatura) vem sendo obtida pelos adolescentes principalmenteatravés da mídia (impressa, televisiva, etc.). Um levantamento mais

11 Quando me refiro à palavra “especificamente”, estou querendo dizer que não existeum material com uma linguagem que seja atrativa para o adolescente. São poucos osvídeos, por exemplo, que abordam o conceito de arte no seu sentido mais amplo –tratando [exemplificando novamente] de desenhos de tatuagens, grafite; enfim, ondeexista o cruzamento das diferentes artes. Mesmo os vídeos que existem sobre osmovimentos artísticos, na sua maioria, têm uma apresentação [tanto de narração, quantode imagens] pouco atrativa para o público adolescente.

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amplo sobre a proveniência das informações obtidas pelos adolescentesfornecidas pela mídia, pode ser medida pelo conhecimento que elestêm sobre assuntos como sexo, drogas, doenças... Enfim, a lista ficariamuito extensa para registrar aqui.

Cena 2: adolescentes de classe média/alta – suas estéticas esuas críticas sobre a mídia e o cotidiano escolar

No texto de Fischer (1996), podemos visualizar com muitaclareza o papel que a mídia desempenha no campo das informações,partindo de um leque no qual o adolescente apreende conceitos dasmais diversas fontes. Como nos escreve a autora,

imagine-se então no discurso da mídia, que não se fundamentaem apenas uma disciplina, mas em várias [ligadas ao jornalismo,à publicidade, às artes plásticas, ao cinema, às tecnologias deinformação, à teoria da comunicação e assim por diante] (FISCHER,1996, p. 114).

E mais, “a mídia, suponho, constrói, reforça e multiplicaenunciados seus, em sintonia ou não com outras instâncias de poder”(FISCHER, 1996, p. 123). Nos questionários escritos realizados durante apesquisa de Mestrado com os adolescentes de classe média/alta,verificamos o quanto são diversificadas as respostas sobre aquilo queseria considerado bonito para eles. A relatividade atribuída ao conceitode beleza à visão de mundo que temos e devido ao período históricono qual estamos vivendo, tornou-se difícil para estes jovens,principalmente no que diz respeito à construção sobre tudo aquilo quepossa ser belo para eles. Muitos deles não conseguiram responder aesta questão. Exemplificando, talvez para alguns meninos não teria sido“politicamente correto” [mesmo que o quisessem] responder que “abeleza” questionada estaria somente no corpo das mulheres e vice-versa, para as meninas. Talvez, por isso, tenha sido a “solidariedade”um dos sentimentos que mais aparece nas respostas de alguns delessobre aquilo que considerariam belo e, principalmente, a solidariedade

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mostrada na mídia, nas campanhas do agasalho, de doação debrinquedos. Atores e atrizes famosos dando depoimentos e participandodas mais diversas campanhas. Nos rostos destes atores e atrizes vemosa solidariedade estampada na afetuosidade das suas expressões, nassuas falas, na seriedade e compromisso que passam através das suasimagens. Literalmente, eles, na maioria das vezes, “vestem as camisetas”das campanhas das quais participam. Passam a representar o papel dequem tem compromisso com a sociedade em geral, e assim chamamas pessoas à participação.

Além dos conhecidos atores e atrizes, a mídia traz à tona oherói anônimo, que estará presente nas imagens mais plurais, como ada freira que toma conta das crianças pobres, do grupo de adolescentesque vai à vila para fazer oficinas de arte com as crianças, ou na figurado bombeiro socorrendo as vítimas do World Trade Center. Enfim, nãofaltam espelhos plurais daquilo que pode ser entendido como açõessolidárias. Isso está ilustrado na fala de Priscila (uma das adolescentesentrevistadas), quando ela diz:

Eu acho legal tu ajudar uma pessoa assim, na campanha doagasalho, tu dar alguma coisa, dá um brinquedo, tu ir visitar. Masde solidariedade, o que eu achei muito legal do World TradeCenter, que se juntaram pra abrigar aquele monte de pessoasassim, isso eu achei legal.

Outra situação, que envolve exposição de sentimento e éapontada como bonita, está presente na fala de Carla:

Quando eu vejo assim um tipo de relação mãe e filha... elas estãoandando juntas e conversando, se divertindo. Eu não sou muitode me abrir assim pra minha mãe né, de conversar aquela coisaamiga, mas de vez em quando bate aquela coisa assim: – Ah mãe,te amo! Eu acho isso legal assim, de expor alguns sentimentosque os outros possam ver também: – Bah, aqueles lá são felizes,não sei o quê.12

12 A referida citação trata-se da tentativa de transcrição de trecho de uma entrevista coma adolescente Carla e, portanto, traz marcas da oralidade.

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Torna-se visível neste depoimento de Carla a beleza que elaapreende da exposição de certos sentimentos como o amor, asolidariedade, a amizade, entre outros – valorizados publicamente.Como lembra Fischer:

de acordo com as conveniências destes nossos tempos, de pessoasque se voltam para si mesmas e, em relação à vida privada,aprendem um comportamento e um modo de dirigir-se que,mesmo pasteurizado e multiplicado na mídia, apareça como umaopção pessoal e como um modo de atingir um tipo especial defelicidade (FISCHER, 1996, p. 202).

Depoimentos como o da adolescente Carla podem justificar amultiplicação por exemplo, dos reality shows que, provavelmente, estejamatendendo à necessidade de certas pessoas de assistirem à exposiçãodesses e outros sentimentos humanos no espaço público. “Numasociedade em que ninguém consegue ser reconhecido pelos outros, cadaindivíduo torna-se incapaz de reconhecer sua própria realidade”, disseDebord (1997, p. 140). Se levarmos em conta um exemplo deBaudrillard, o surgimento dos reality shows não é tão recente como sepensa. O autor nos traz como um exemplo vivo o caso da princesaDiana. Segundo Baudrillard, nós não somos mais espectadores passivos,“mas atores principais, segundo uma interatividade assassina da qual amídia é a interface” (BAUDRILLARD, 2002, p. 141). Para o autor, Diananão seria inocente, e num roteiro coletivo,

as massas desempenham um papel imediato, via mídia e paparazzi,em um verdadeiro reality show da sua vida pública e privada, daqual desviam o curso e fazem a transmissão em tempo real, naimprensa, nas ondas e nas telas (BAUDRILLARD, 2002, p. 142).

Complementando o que compõe o quadro dos reality shows e oque tem garantido a sua permanência, está o seu espaço, no qual tudoé confessado ao vivo. E são exatamente estas cenas confessadas ao vivoque seduzem determinados públicos. Fischer escreve que

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a compulsão aprendida de tudo falar, de tudo confessar, nãosignifica univocamente que o dito libera, o falado em si produzaverdade; é como se estivéssemos de fato num jogo de verdade efalsidade, e a confissão – com todas as técnicas de exposiçãoilimitada de si mesmo – para permanecer como prática desejávele permanente, também produzisse “desconhecimentos,subterfúgios, esquivas”, como escreveu Foucault em Scientiasexualis, de A vontade de saber (FISCHER, 1996, p. 84).

Mais do que a exacerbada exposição de sentimentos de amor,amizade, solidariedade, importa é que estes sejam “verdadeiros”, entrepessoas comuns, como eu ou você. Os reality shows nutrem-se de cenasmais comuns, maximizando-as na tela televisiva, em cenas cruas debeijos, abraços, choros [de alegria e de tristeza], risos – tudo isto dentrode um mundo que “aparenta existir”, fatias de vidas do mundo dosque amam, choram, gritam, brigam “de verdade”. No espaço televisivo,o tempo é caro, e se é extremamente caro, poderíamos questionar oporquê deste uso em coisas tão fúteis. Mas nos lembra Pierre Bourdieuque o tempo é algo extremamente raro na televisão. E “se minutos tãopreciosos são empregados para dizer coisas tão fúteis, é que essascoisas tão fúteis são de fato muito importantes na medida em queocultam coisas preciosas” (BORDIEU, 1997, p. 23). Resta-nos, talvez,investigar quais seriam as preciosidades ocultas que vêm atender adeterminados públicos. Como nos disse Carla no seu depoimentoanterior, parece que as pessoas precisam dizer, comprovadamente,através destas situações reais, frases como: “Bah,13 aquelas lá são felizes”.Para o indivíduo, nos diz Bauman,

o espaço público não é mais que uma tela gigante em que asaflições privadas são projetadas sem cessar, sem deixarem de serprivadas ou adquirirem novas qualidades coletivas no processoda ampliação: o espaço público é onde se faz a confissão dossegredos e intimidades privadas (BAUMAN, 2001, p. 49).

13 Termo regionalista equivalente a uma interjeição.

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É nesta “tela gigante” de Bauman que Carla também quer servista. Sua afetividade, se validada no cotidiano (espaço público), podeser mais satisfatória, mais verdadeira. Os reality shows proporcionamuma fusão dos papéis de atores e espectadores, como escreveBaudrillard (2002, p. 142): não há mais atores nem espectadores,“estamos todos imersos na mesma realidade, na realidade transmissora,em um mesmo destino impessoal que é somente a realização de umdesejo coletivo”. Desta forma, acreditamos que os valores que estãosendo construídos (e em construção) sobre as diferentes culturas, asdiferentes concepções de mundo, de gostos, de beleza, certamentenão se desvinculam do processo histórico-social da humanidade.Seguindo este pensamento, vemos no cotidiano uma fonte de construçãodestes conceitos (sociais e culturais) que não deve ser desprezada e,sim, estudada exaustivamente.

É o mesmo cotidiano que nos faz retornar ao conceito de estéticano seu “largo sentido” (usando um termo de Jimenez14 ) e,complementando, o autor escreve que a “história da estética revela-seatravés das rupturas sucessivas que a sensibilidade não cessa de opor àordem dominante da razão” (JIMENEZ, 1999, p. 25).

Um outro questionamento se dá também sobre o espaço deconstrução que tem sido dado à sensibilidade no seu termo mais amplo.No que a escola, a mídia, a família, têm ajudado na construção de umser sensível, apreciador dos diferentes tipos de beleza existente nomundo? E mais, quais são hoje as “belezas” endereçadas, mostradas à

14 Ele nos descreve a estética como sendo por conseqüência, não a história das teorias edas doutrinas sobre a arte, sobre o belo ou sobre as obras, mas a história da sensibilidade,do imaginário e dos discursos que procuram valorizar o conhecimento sensível, ditoinferior, como contraponto ao privilégio concedido, na civilização ocidental, aoconhecimento racional (JIMENEZ, 1999, p. 25).15 O termo foi o primeiro usado nesse sentido no século XVIII e estética tem sido umaparte proeminente da filosofia germânica, mais influentemente na obra de Kant. Atendência nesta discussão tem sido tentar identificar aspectos transcendentes e eternosde beleza e discriminá-los em oposição ao que é contingente e, por conseqüência, não éarte (BROOKER, 1999, p. 2-3).

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apreciação do público (criança/adolescente/adulto)? Segundo PeterBrooker, o termo estética tem tanto um uso restrito quanto amplo. Aestética, assim sendo, abrange o estudo de qualquer ou de todas essascoisas. Tradicionalmente, para Brooker,15 ela se relaciona com a natureza,percepção ou julgamento de beleza.

O que o adolescente tem nos mostrado através da sua aparência,gestos, falas, dependendo do grupo ao qual ele pertence, pode ser umdesafio aos cânones estéticos construídos e apreciados pelo mundoadulto. Muitas vezes, estes jovens se enfeiam, contradizendo, destaforma, o conceito estético tão arraigado no mundo adulto. SegundoCalligaris (2000, p. 50),

assim como o adolescente pode parecer contestar a idolatria dovalor financeiro, econômico [por exemplo, recusando-se a ostentaros apetrechos desse valor nas vestimentas e em outros símbolostradicionais de riqueza], tornando-se feio ele poderia criticar umsistema que valoriza a desejabilidade dos corpos como razão doreconhecimento social.

Se existe uma transgressão, uma ruptura de uma estéticaanteriormente construída por parte do público adulto, então assistimostambém a uma apresentação de uma estética do adolescente, seja elauma tribo clubber, punk, mauricinho, patricinha, etc. Os conceitos que setem sobre o termo estética construídos na história (em geral), passamobviamente pela construção do pensamento do adolescente em relaçãoao que apreciar, ao que possa ser belo. Talvez, os conceitos aprendidossobre estética na escola, na família, nos grupos, se incorporam, seengendram, espelhando o leque de possibilidades de interpretação destetermo. Se o olhar do adolescente deixou de ser atento em relação àalta cultura, certamente também são reflexos do espelho de interessesideológicos de uma época. Ou seja, ensina-se também na família, nasescolas, nos grupos (tribos), na mídia, que se dá uma “certa” importânciapara a arte, sim, mas que seja algo rápido, só para não passarmosdesapercebidamente sobre este assunto.

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Afinal de contas, cabe perguntar se em tempos deglobalização toda informação é realmente válida, mesmo que venhasem grandes aprofundamentos. Acreditamos que a cultura implicaem conhecer um repertório de bens simbólicos e interferir naconstrução/produção dos mesmos. Ao conversarmos com váriosadolescentes, muitos deles relataram que foram visitar o espaço doSantander Cultural,16 por exemplo, falaram muito da sua arquitetura,da beleza do espaço, mas pouco sabiam ou comentaram sobre asobras de arte então expostas naquele espaço. Lembrando Canclini (2000,p. 65), talvez isto possa estar acontecendo porque

se os museus procuram seduzir o público através da renovaçãoarquitetônica e dos artifícios cenográficos, é – também – porqueas artes contemporâneas já não geram tendências, grandes figuras,nem surpresas estilísticas como na primeira metade do século.

Logicamente, toda esta prática amplamente explicitada, na qualse faz a ligação do termo estética muito mais à moda, aocomportamento, aos cuidados com o corpo do jovem adolescente,dificulta para os mesmos a indagação de qual seria a real importânciade uma relação mais próxima com artistas/obras de arte/a criação(do próprio adolescente também) em si. Arriscamos dizer que evidencia-se a falta de um trabalho mais diversificado no Rio Grande do Sul, oqual atinja as diferentes manifestações artísticas. As ações culturais doEstado não são tão fortes em termos de interpelação do público jovem,em comparação com a mídia. Os “atrativos” da mídia se engendramnuma teia que atende, pelo menos, grande parte do público adolescente.Seria até mesmo inócua a comparação entre os recursos de atraçãoprovenientes da mídia, que promovem novos ou repetidos conceitos

16 O Santander Cultural é um prédio tombado pelo patrimônio histórico, que localiza-sena Praça da Alfândega em Porto Alegre. Antiga sede dos bancos Nacional do Comércio eSul Brasileiro, foi construído em estilo neoclássico entre os anos de 1927 e 1932, fazendoparte de um conjunto arquitetônico da região central. São cerca de 5.600 m² de áreaconstruída.

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de estética, e os pouquíssimos recursos destinados à veiculação da arteem nosso país. Para Joffre Dumazedier (1999, p. 166),

a iniciação às artes e à literatura, que os professores efetuampacientemente, precisa ser prolongada por toda uma rede deatividades cinematográficas, teatrais, plásticas, literárias, que nãopoderiam ser estimuladas unicamente pelo conteúdo dos jornaise das revistas vendidos nos quiosques. Seria preciso aumentar onúmero de edições, instituições, agrupamentos que ensinamcomo escolher e que, eles mesmos, difundem, em todos os meios,obras ao mesmo tempo belas e sedutoras.

A rede de atividades apresentadas hoje aos adolescentes pelasrevistas, pelos programas de televisão, de rádios, os livros, os shows,estariam desempenhando plenamente o papel de “prolongadores” dainiciação às artes [em geral] e à literatura (como bem expõe Dumazedieracima)? Por não acreditar numa experiência estética que limite a criança,o adolescente ou o adulto somente ao contato direto com as obras dearte que estão em museus ou galerias, pensamos em como temacontecido a extensão do encontro com a estética (no seu sentido maisamplo) hoje. Sabemos que este encontro pode se dar tanto com anatureza quanto no próprio corpo humano, ou ainda,

nos fogos de artifícios, na ornamentação doméstica e corporal,de tatuagens primitivas e pinturas rupestres a cosméticoscontemporâneos e decoração de interiores e, com certeza, nasinumeráveis cenas cheias de cor que povoam nossas cidades eembelezam nossa vida cotidiana (SHUSTERMAN, 1998, p. 38).

Acreditamos no papel da arte através de seus textos e da exibiçãode suas obras ao público, como mais uma via necessária no processode construção do conceito de estética. Para que este processo aconteça,vemos como tão necessários o ver/apreciar/discutir tanto o quadrode um artista plástico, por exemplo, quanto os cenários de um filmecomo O Show de Truman (1998), certas propagandas de televisão ede outdoors, os videoclipes da MTV; enfim, o povoamento destas imagens

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tendem (ao serem analisadas) a construir possíveis conceitos no campoda estética.

Perguntamos hoje, também, sobre a arte e o diálogo estabelecidocom a utilização de novos meios, de uma acessibilidade maior (atravésda televisão, Internet)? Quais os temas que estão gerando discussõesneste campo?

Em muitas respostas dos adolescentes nos questionáriosaplicados, aparece um certo desencantamento de alguns com as artesvisuais,17 muitas vezes descritas nas palavras dos adolescentes como“chatas”, “desinteressantes”, “difícil de entender”, “muito abstratas”,como “algo que pertence ao passado”... Por parte de outros, existeum respeito, uma admiração ainda pela palavra “arte”, mas muitoligada a algo que ficou somente no passado. Já com a música aidentificação se dá de uma maneira mais próxima, talvez porque omeio de difusão seja mais acessível. A música certamente é vista, alémda facilidade do acesso e da sua difusão, como um aspecto do lazerquase cotidiano. Basta ver a quantidade de pessoas que carregam seuswalkmans, ligam o rádio do carro ao entrar – em muitas escolasparticulares, o recreio é sempre com música [na maioria das vezes, éuma iniciativa do grêmio estudantil]. Com uma presença diversificadados mais variados grupos musicais ou cantores e cantoras (AdrianaCalcanhoto, Bob Marley, Tribo de Jah, Pearl Jam, Iron Maiden, entre tantosoutros), a relação do adolescente com a música talvez tenha umapenetração maior no seu universo devido, também, ao caráter fugidio/efêmero que existe tanto no surgimento e permanência destes grupos/cantores quanto nas temáticas musicais expostas pelos mesmos. ParaFischer (1996, p. 53), “a música talvez seja a forma de expressão quemais una e identifique os jovens. Sua vida cotidiana é pontuada pelossons, ritmos e letras que ouvem nas rádios e nos discos”. A autora,

17 Refiro-me às artes visuais porque, dentro deste mesmo instrumento, a relação do jovemcom a música é outra, pautada pela aproximação, pelo interesse, pelo envolvimento. Deveficar claro que as artes visuais às quais refiro-me neste momento, dizem respeito aoconjunto das obras expostas em museus, galerias de arte, bienais ou até mesmo àsreproduções de obras de arte que chegam ao adolescente através de livros, de aulasexpositivas, etc.

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mais adiante no seu texto, levanta a importância do surgimento denovos grupos musicais, cantores; enfim, todo o aparato que envolve omundo das rádios FM e sua variedade de ofertas musicais.

É visível também, principalmente sobre aquilo que seria belopara o adolescente, a presença de frases e poesias que circulam hámuito e são universais. Exemplo: “Nunca cruze os braços para asdificuldades da vida, porque o homem mais poderoso morreu debraços abertos!”; ou ainda a frase de Bob Marley, “Amo a liberdade,por isso deixo livre as coisas que amo, se elas voltarem é porque asconquistei, se elas forem é porque nunca as possuí.”18 Exatamente pormanterem um caráter universal (e isso pode acontecer com a músicatambém), as frases de Bob Marley ou de pensadores anônimos circulampelo mundo com a vantagem de permanecerem durante um tempomaior (principalmente os ditos “pensamentos”) do que as músicas,que, navegando no mar midiático, tendem a uma duração de vidamais curta.

Lembremos [segundo Jimenez] o princípio do sistema das artes:arquitetura = matéria inerte, opaca; escultura = matéria e forma,aparência da vida orgânica; pintura = aparência visual em duasdimensões; música = interioridade subjetiva, ligada ao tempo,efêmera; poesia = subjetividade exteriorizada nas palavras(JIMENEZ, 1999, p. 176).

Mais uma vez,19 a revista Veja (set. 2001, p. 70) realiza outragrande edição especial dedicada ao público jovem, tendo em letrasgarrafais o título “JOVENS – Um retrato da geração mais beminformada de todos os tempos”. “A cultura jovem (como pauta deum dos assuntos investigados na pesquisa) é uma cultura planetáriadesde os anos 50”, assim afirma Tatiana Chiari no subtítulo “Aglobalização espalha a cultura jovem com mais velocidade”. Sobre aestética do corpo, a autora Letícia Castro afirma: “Nunca se cuidou

18 Ver VITELLI, op cit.19 Muitos pesquisadores apontaram, em suas teses e dissertações, reportagens da mesmarevista em diferentes épocas.

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tanto do corpo nessa faixa etária como hoje”. Um dono de academia(na mesma reportagem) diz que “a academia é para os jovens de hojeo que foi a discoteca para a geração dos anos 70”. A Veja, com moldesde estrutura de reportagem muito parecidos com a revista Capricho,apresenta o mesmo leque de informações sobre sexo, chats, diário,drogas, tribos, violência, política, livros, ídolos, globalização, vestibular,mesada, moda; com todos os depoimentos “de direito”: de especialistasdas mais diversas áreas.

Relendo as entrevistas transcritas, observamos que algunsadolescentes “acham legal desenhar, fazer isto ou aquilo”. Este fazerao qual eles se referem, e que aparece na maioria das respostas, estásempre ligado ao aprendizado de uma técnica, que, geralmente, é odesenho. Encaramos com um certo desconforto aquelas aulas de arteque têm em seu programa de curso somente o fazer, a prática deateliê. Que tipo de educação estética está sendo construída neste fazer?Acreditamos que não seja só o fazer que dá ao aluno uma concepçãodaquilo que possa ser arte, da estética do cotidiano. De como podemser questionados “certos tipos de arte” e também a própria estética docotidiano?

Apoiado no texto de Vincent Lanier (1999), encontramos naspalavras do autor boas justificativas para a ampliação da experiênciaestética, através de outras fontes que não sejam somente os museus ouas reproduções de artistas [europeus]. Explicando que a experiênciaestética do aluno é anterior à sua entrada na escola, ele nos diz que“não a introduzimos para nossos alunos mas incrementamos a partirde algo que já está lá” (LANIER, 1999, p. 46). E mais, que as ArtesPlásticas devem oferecer também como experiência estética muito maisque “o óleo em moldura dourada e o mármore sobre pedestal dosmuseus. Devem incluir artesanato e arte popular, em particular, e amídia eletrônica como o cinema e televisão”.

Outros adolescentes que também responderam às questões sobreas aulas de arte sinalizaram, em suas respostas, seu gosto pelas mesmas,mas geralmente se referindo ao conhecimento que obtiveram na prática

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de ateliê. Foram poucos (na entrevista gravada apenas um menino) osque mencionaram, por exemplo, a importância que teria uma discussãoa respeito de um filme, ou de uma campanha publicitária, e quandomencionado, não foi visto como algo diretamente ligado às aulas dearte na escola. Um exemplo disto estaria na fala de Hermes, quandofoi questionado se seria interessante que as aulas de arte não ficassemsó no desenho, mas que também abordassem temas de filmes ouvideoclipes. A resposta foi:

seria bem legal se a gente saísse pra ver um estúdio de desenho,por exemplo. Não sei se existe estúdio de desenho. Mas acho quedeve existir. Ou então como é que se faz um filme, assistir a umagravação? Seria bem legal mas, não seria bem Artes Plásticas.

A fala de Hermes parece ser o fruto de uma educação em ArtesPlásticas que procurou manter uma distinção entre certas práticas(desenho, pintura, escultura, etc.) das imagens de filmes, desenhosanimados. Com seus quinze anos, ele já carrega uma visão fechadasobre o universo das artes visuais. Em uma resposta de outraadolescente entrevistada, quando foi questionada sobre qual seria adisciplina que ela mais gostava, citou sete, entre as que mais gostava eas que mais “detestava, tinha pavor, odiava” (usando os termosutilizados pela adolescente). A disciplina que ela elegeu entre as quaismais gostava foi a Matemática. Observamos entre os comentáriosbons e ruins, que várias disciplinas foram citadas, tanto da área humanaquanto da área das ciências exatas, exceto artes. Como nos lembraShusterman (1998, p. 114), de uma maneira geral “gostamos daquiloque somos treinados e condicionados a gostar e daquilo que as ocasiõese as circunstâncias nos permitem achar bom”. Sobre a afirmação doautor, nos assusta um pouco utilizar palavras como “treinar” e“condicionar” em relação ao gosto, mas, ao mesmo tempo, vemosnelas um alerta sobre a formação que as crianças e adolescentes têmrecebido para construírem suas noções sobre arte, gosto e estética. Porexemplo, começa-se a construir o raciocínio de que se alguém tem um

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bom conhecimento matemático/físico/químico certamente se sentirá“bem treinado” para enfrentar um concurso como o vestibular e,certamente também, esta pessoa dedicará a maior parte do seu tempoescolar/ou de estudo a determinadas disciplinas que ofereçam umapossibilidade maior de sucesso. O condicionamento pode se darpositivamente/negativamente em relação a estas; ou melhor, levar oadolescente a gostar mais de determinadas disciplinas ou, ao contrário,a até mesmo odiá-las.

Em relação às visitas aos museus, que poucos adolescentesmencionaram em suas respostas, aqueles que os freqüentaramafirmavam ter gostado de tudo: da visita, das obras em geral; mesmoque muitos não tenham entendido nada sobre o que estava expostodiante deles. Não se espantaram diante de uma ou outra obra que nãotem nada a lhes dizer; a indiferença lhes pareceu a melhor resposta.Afastam-se, porque não sabem, nem tem importância saber. Para quê?Cai no vestibular? Em se tratando da cultura visual em geral, talvezfosse importante informar aos nossos alunos, através das palavras deFernando Hernández, a importância das mais diversas imagens presentesno cotidiano. Ele nos diz que

as imagens são mediadoras de valores culturais e contêmmetáforas nascidas da necessidade social de construir significados.Reconhecer essas metáforas e seu valor em diferentes culturas,assim como estabelecer as possibilidades de produzir outras, éuma das finalidades da educação para a compreensão visual(HERNÁNDEZ, 2000, p. 133).

Finalizando, percebemos que a visão que temos sobre opanorama endereçado ao adolescente no campo da arte/estética emgeral, e o que esta geração está construindo com todas estasinformações, vêm transformando e reelaborando conceitosfundamentais e que permeiam o cotidiano de nossas salas de aula e,certamente, influenciam a reelaboração de planejamentos, interessesque constroem a disciplina de arte. Para tanto, acreditamos neste estudosobre a estética contemporânea como algo permanente. Assim,

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conhecendo cada vez mais um pouco sobre o tempo presente,poderemos mudar a premissa de Rosa Fischer, no que se refere aoendereçamento de nossas aulas e de nossos currículos. Como afirmaa autora, “talvez não tenhamos ainda conseguido uma sintonia comestes novos alunos” (FISCHER, 2001, p. 32). E foi exatamente a buscade uma sintonia maior entre professores/alunos que motivou arealização desta pesquisa.

ADOLESCENCE AND ART: AESTHETICS ANDCULTURAL PRACTICES

Abstract: The objective of this paper is to bring the adolescent to the center ofthe scene, taking into consideration the speed of the changes that mark thepresent time. The study points out the presence of different identities, relatedto these adolescents, which have been changed and formed according to theemergence of new “gangs”. The paper unveils a social quotidian in whichadolescence is celebrated in our culture and influenced by a society stronglydirected towards consumption. This interferes with the conception of socialand cultural values, which are constantly produced and reproduced.

Keywords: Esthetics. Culture and adolescence.

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O GOVERNO DA RAZÃO: ESCOLARIZAÇÃO,SUBJETIVAÇÃO E PSICOLOGIA GENÉTICA

Paulo Gurgel 1

Resumo: Neste artigo abordamos o sujeito epistêmico formatado pela instituiçãoescola, espaço privilegiado da história da educação ao longo do século XX. Paratanto, procedemos uma análise da psicologia genética de Jean Piaget em suasrelações com práticas pedagógicas centradas no sujeito-aluno. Enquantotecnologias de produção de cidadãos em tempos de liberalismo e de bem-estarsocial, estas práticas ditaram os ideais do governo da razão e se encontram naraiz do sujeito piagetiano, tanto em sua dimensão diacrônica como sincrônica.

Palavra-chave: Governamentalidade. Subjetivação e epistemologia.

A idade da inocência é o tempo do governo dos outros. Nisso,pasmem, concordam Jean Piaget e Michel Foucault. Aqui, todavia,cessam as similitudes; pois, se para o primeiro a autonomia é umcorolário da lógica evolutiva, para o segundo não há razão, seja elapura ou prática, para além da história, que possa justificar ser a

1 Doutor em Educação pela PUC-SP. Docente de Psicologia da Educação da Faculdade deEducação da Ufba. E-mail: [email protected].

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III n. 4 p. 141-160 2005

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heteronomia necessariamente sintoma de desrazão. Tempo houve emque o autogoverno dizia respeito, exclusivamente, aos que governavam.E se há algum sentido em fazer a história do presente, ele é exatamentea compreensão, ainda que tardia, de que o autogoverno é apenas umdos vários micro-exercícios possíveis de poder.

Necessitamos aqui, para melhor abordarmos o autogovernocomo uma forma específica de exercício do poder, fazer referênciaao que, em aula ministrada no Collège de France, em 01 de fevereiro de1978, Michel Foucault denominou de “governamentalização do estadona modernidade”:

Desde o século XVIII, vivemos na era da governamentalidade.Governamentalização do Estado, que é um fenômenoparticularmente astucioso, pois se efetivamente os problemas dagovernamentalidade, as técnicas de governo se tornaram a questãopolítica fundamental e o espaço real da luta política, agovernamentalização do estado foi o fenômeno que permitiu oestado sobreviver. Se o estado é hoje o que é, é graças a estagovernamentalidade, ao mesmo tempo exterior e interior aoestado. São as táticas de governo que permitem definir a cadainstante o que deve e o que não deve competir ao estado, o que épúblico ou privado, o que é ou não estatal, etc.; portanto o Estado,em sua sobrevivência e em seus limites, deve ser compreendido apartir de práticas de governamentalidade (FOUCAULT, 1979, p. 292).

Denominamos de “liberalismo” uma das práticas possíveis degovernabilidade dos estados modernos. Seus objetivos principais sãomaximizar a liberdade individual e minimizar a intervenção do Estadona sociedade dos indivíduos. Dentre suas formas de intervenção,interessa-nos aquelas destinadas à produção do sujeito do si – o self:

Se há um valor que parece se situar para além de qualquer crítica,em nosso atual e confuso clima ético, é o do self e dos termos quea ele se agregam – autonomia, identidade, liberdade, escolha,realização. É em termos de nosso autônomo self que entendemosnossas paixões e desejos, definimos nosso estilo de vida,escolhemos nossos parceiros, casamento, e, até mesmo,

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143O governo da razão: escolarização, subjetivação e psicologia genética

paternidade/maternidade. É em nome do tipo que realmentesomos que consumimos mercadorias, expressamos nossosgostos, desenhamos nossos corpos, marcamos nossas diferenças.[...]. Nesta ética da liberdade, o self autônomo parece desempenharum papel fundamental nas diferentes formas que homens emulheres entendem, experienciam e avaliam a si próprios, a suasações e as suas vidas (ROSE, 1996, p. 1, tradução nossa).

Certamente que a produção de nós mesmos, do self de cadaum de nós, é de importância capital para o liberalismo, aqui abordadocomo tecnologia de governo. É sobre as populações, e não somentesobre o território, que se exerce o poder nos estados nacionais damodernidade. Poder que não mais se define por sua negatividade, ouseja, pela pura e simples repressão, mas, e principalmente, pela suapositividade. Positividade construída na intricada rede de relações entresaber e poder que se materializa, também, nas instituições fundadaspelo estado com o objetivo de formatar sua população. A escola, talcomo a conhecemos hoje, gerida por experts, é uma destas instituições.

É mister que pensemos historicamente o nascimento da escolaem suas relações com tecnologias de governo dos estados nacionais quese multiplicaram por todo o ocidente ao longo da idade moderna. Agerência destes territórios e de suas populações só se fez possível comuma crescente multiplicação de domínios discretos de poder exercidospor experts ao nível de uma microfísica de relações de força – governoda economia, segurança interna e externa, bem estar social, disciplinamoral, etc. Neste quadro, identificamos o nascimento da escola comoum dos meios encontrados pelo estado para o treinamento moral desua população. Certamente que a esse treinamento moral, à medida quese multiplicaram as tecnologias de produção e o mercado passou a exigirmais do que corpos dóceis como requisito de empregabilidade, foiagregado um conjunto de saberes necessários à profissionalização doscidadãos. Não nos adiantemos, contudo. Por enquanto, procedamos auma narrativa sobre o nascimento da escola moderna, tomando comoreferência um seminal texto produzido por Jones e Williamson (1979) apropósito do nascimento da escolaridade obrigatória na Inglaterra.

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Jones e Williamson (1979) defendem a tese de que o nascimentoda escola pública não pode ser compreendido senão em suas relaçõescom a crescente onda de urbanização das populações para atender àdemanda de mão-de-obra gerada pelo desenvolvimento das novastecnologias de produção de mercadorias. É preciso, pois, pensar ainstrução pública como instrumento de produção e gerência daspopulações destes centros que, já então, enfrentavam problemas decriminalidade, pauperismo e turbulência política.

As primeiras máquinas inglesas de instrução coletiva, as escolaslancasterianas, tinham como característica distintiva o uso da instruçãomútua – um aluno mais velho e de confiança do mestre, tendoaprendido com ele, ensinava as lições aos mais novos. Esta inovaçãoorganizacional e pedagógica tinha como um dos seus principais atrativoso baixo custo de sua estrutura e funcionamento. Um mesmo professor,pago pelo estado, podia ensinar a centenas de crianças ao mesmo tempocom o auxílio de seus monitores e consumia minimamente materialdidático visto que, predominantemente, a instrução era uma práticaverbal.

Não obstante a popularidade destas escolas nas primeirasdécadas do século XIX na Inglaterra, elas entraram em declínio porvolta de 1830 e progressivamente deram lugar a uma nova pedagogia.As razões para tais transformações foram determinadas por uma novaconfiguração das formações discursivas referentes ao domínio do saberadministrativo sobre as relações entre criminalidade, pauperismo, saúdepública e a população dos grandes centros urbanos:

O problema não era mais como educar o ignorante, mas comomudar a maneira pela qual a criança já tinha sido educada pelafamília, isto é, como alterar a forma na qual as crianças tinhamsido treinadas. Era necessária uma abordagem mais geral, pensarem termos de todo o curso da educação da criança até a idadeadulta [educação em seu verdadeiro sentido] que era definida poruma determinada topografia moral (JONES; WILLIAMSON, 1979, p.86, tradução nossa).

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Esta redefinição dos objetivos da educação popular em funçãodo treinamento moral foi diretamente responsável pelo aparecimentode um conjunto de novos problemas concernentes ao espaço interiorda escola. Não mais definida como máquina de instrução, mas comomáquina de treinamento moral, esta nova concepção dos objetivos dapedagogia determinou, entre outras mudanças, a redefinição do lugardo professor, a partir de uma nova concepção metodológica de ensinoque colocava este profissional da educação no centro do processoensino-aprendizagem.

Concluindo esta interessante empresa genealógica da escolarizaçãona Inglaterra, os autores não se limitam a apresentar, a título deconsiderações finais, uma simples síntese de suas análises. Apresentama necessidade de se prolongar o estudo por eles realizado, a fim deenglobar a universalização e obrigatoriedade do ensino, que passam aconstituir parte integrante do cenário das políticas educacionais inglesasao final do século XIX:

Claramente, do ponto de vista das análises que realizamos acima,a radicalidade da transformação do discurso em defesa da educaçãona última parte do século dezenove apresenta algo de paradoxal.O seu alcance se torna incomensuravelmente maior,transformando a educação pública em uma forma compulsória,mas o modo no qual ele representa os efeitos táticos da educaçãopública se desvincula do que havia, até então, sido um padrãoessencial; isto significa que um componente essencial dasjustificações práticas da existência da educação pública é deletado– sua capacidade de moralizar. Uma pergunta, então, deve sercolocada: o que tornou tal mudança possível? O que permitiu aparadoxal reestruturação deste discurso? (JONES; WILLIAMSON,1979, p. 98, tradução nossa).

A hipótese explicativa apresentada pelos autores deriva de umnovo sistema de relações que se estabelece entre a instituição escolar eum conjunto de instituições políticas e sociais, as quais o cidadãocomum passa a integrar a partir da segunda metade do século XIX. Aparticipação dos cidadãos nestas novas instituições pressupunha,

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necessariamente, a aquisição das habilidades básicas de leitura, da escritae da matemática. Assim, o papel da escola foi reescrito em uma lógicasecular com o objetivo de instrumentalizar o cidadão para sua inserçãonesta rede de instituições democráticas:

Uma justificação da escola pública devido ao seu papeldesempenhado na gerência de grandes problemas sociais [comona primeira metade do século XIX] é, então, transformada emuma justificação baseada na sua representação como condição deexistência de certas instituições. A proposição da necessidade deuma educação pública, que agora repousa no efeito de suaamplificação, foi possível de ser enunciada a partir dos discursosdas instituições; isto significa que a amplificação da escola repousaem proposições de sua necessidade para a formação de uma boademocracia representativa e da necessidade difundida doenvolvimento dos cidadãos em institutos mecânicos. E estediscurso sobre as instituições torna possível este efeito através daredefinição da função tática da educação pública: não uma funçãode inculcação de princípios de conduta e nem como estratégia degerenciamento de topografias morais, mas como uminstrumento de criação de um campo de implantação de outrasinstituições formando os indivíduos como seus membrospossíveis (JONES; WILLIAMSON, 1979, p. 99-100, tradução nossa).

Este processo de redefinição do papel da escola em sua novafunção secular, segundo os autores, não se faz acompanhar por grandesmudanças na prática pedagógica, ainda que os objetivos da educaçãopública tenham sido redefinidos em três eixos principais, a saber: (1)um eixo concernente à educação como um benefício social para oindivíduo, dando a ele maiores chances de uma melhoria nas suascondições de vida; (2) um eixo concernente à educação e o seu papelna constituição dos indivíduos como sujeitos membros de instituiçõesdemocráticas; e (3) um eixo concernente à educação como meio depromoção e crescimento econômico das nações:

Discordamos, contudo, destes autores quando defendem a tesede que estas novas funções da educação pública não implicaram emgrandes mudanças no que diz respeito às práticas pedagógicas. Para

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nós, a secularização da escola, iniciada ao final do século dezenove edesenvolvida na primeira metade do século vinte, implicou não apenasem profundas mudanças no que diz respeito às práticas pedagógicascomo também em uma inflação de sua função moralizadora. É o quetentaremos demonstrar em seguida.

Já nos últimos anos do século XIX, podemos encontrar naliteratura educacional das sociedades ocidentais claros sinais indicativosde mudanças nas práticas pedagógicas. Trata-se de projetos pioneirosque propõem uma profunda alteração de foco na agenda da pedagogiaque, antes centrada no professor, passava a se centrar no aluno. Vejamoscomo Jean Piaget narra a história do nascimento destes novos métodos:

É que a transformação geral das idéias sobre a personalidadehumana obrigou os espíritos abertos a considerarem a infânciade outra maneira: não mais [era o caso de Rousseau] por causa deopiniões preconcebidas sobre a bondade do homem e a inocênciada natureza – mas por causa do fato, novo na história, de que aciência e, mais geralmente, as pessoas honestas, estavam de possede um método e de um sistema de noções aptos a dar conta dodesenvolvimento da consciência e, particularmente, dodesenvolvimento da alma infantil. Somente então esta atividadeverdadeira, que todos os grandes inovadores da pedagogia tinhamsonhado introduzir na escola e deixar desenvolver-se os alunossegundo o processo interno de crescimento físico, tornou-se umconceito inteligível e uma realidade suscetível de ser analisadaobjetivamente: os novos métodos se constituíram assim aomesmo tempo em que a psicologia infantil e em estreitasolidariedade com seus progressos (PIAGET, 1976, p. 150, grifonosso).

Esta solidariedade muito significa para a nossa empresagenealógica aqui desenvolvida. Primeiramente, ela aponta para umamudança de pólo de onde a verdade sobre a educação passaria a serenunciada. Até então, os tratados de pedagogia eram escritos, em suamaioria, por filósofos e por pessoas diretamente ligadas à pastoralcristã. A partir de então, a educação passou a ser um assunto científico.

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Esta mudança de pólo de enunciação nos remete à questão dagovernamentalidade em sociedades liberais onde, como corretamentesublinha Rose (1998), a produção do sujeito se tornou progressivamente,ao longo da história, assunto concernente exclusivamente ao domíniodos experts. Se, pois, consideramos a escolarização como uma tecnologiade governo, claro se torna, a partir da citação de Piaget (1976), que ofinal do século dezenove se constitui no momento em que a psicologiase torna o centro de produção de verdade sobre o sujeito-aluno. Aautoridade pedagógica se tornou, então, laica. Doravante, repousariaela sobre a razão.

Analisando o movimento globalizado de construção dos métodosativos em sua estreita relação com o desenvolvimento da psicologiainfantil na Europa e além mares, Piaget reserva ao seu país de origem,a Suíça, o grande mérito desta genuína revolução pedagógica:

No entanto, foi na Suíça que a famosa teoria de Karl Groos – ojogo é um exercício preparatório; logo apresenta significaçãofuncional – encontrou sua primeira aplicação pedagógica. É naverdade a Claparède, que desde seus primeiros trabalhos haviareagido contra o associacionismo e defendido o ponto de vistadinâmico e funcional, que se deve à compreensão da importânciada doutrina de Groos para a educação. Daí os métodos de ensinoe os jogos educativos desenvolvidos na Maison des Petits deGenebra, como também o movimento dirigido por ele – antes edepois da criação do Instituto Jean-Jacques Rousseau – em favordo ensino simultâneo da infância e das técnicas educativas: discata puero magister, esta era a divisa da instituição que ele fundoucom P. Bovet (PIAGET, 1976, p. 152-153).

O jogo, usurpado pela ciência e transformado em instrumentoda educação, marca, pois, o fim da inocência da brincadeira infantil.Foram as bolas de gude que a Piaget permitiram construir toda umalógica do desenvolvimento do julgamento moral da criança, no iníciodos anos trinta do século vinte. Crianças a brincar na Maison des Petits setornaram, então, objeto de observação, registro e análise dos progressosda inteligência. A atividade da criança, fundamento dos métodos ativos,

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para além de revolucionar a prática pedagógica, se constituiu em umpoderoso instrumento de desenvolvimento da psicologia da criança.A escola se tornou, então, tal como já havia acontecido aos hospitais eprisões ao longo do século XIX, lugar privilegiado de produção desaber sobre o homem. Produzindo sujeitos, ela também, e ao mesmotempo, produzia verdades sobre eles.

É, pois, da ordem do discurso da psicologia que Piaget se fazouvir no métier psicopedagógico do século vinte. Não esqueçamos, contudo,que a escola constituiu a superfície de emergência desse métier e que,portanto, sem os problemas por ela enfrentados na formatação dossujeitos do breve século vinte, o sujeito epistêmico, muito provavelmente,jamais teria emergido como objeto da psicologia. Mais do que lugarde aplicação dos conhecimentos sobre este sujeito, a escola foi o lugarde produção mesma deste objeto de pesquisa que ocupou grandeparte da empresa epistemológica de Jean Piaget.

Certo é que a teoria piagetiana da gênese e desenvolvimento dainteligência e suas relações com o métier psicopedagógico constituem umdos temas nevrálgicos da literatura educacional do século XX.Possivelmente, nenhum outro teórico tenha desencadeado tantas reaçõesde amor e ódio ao seu sujeito epistêmico como Jean Piaget. Muitasrazões podem ser aventadas para tanto. Dentre elas, destacamos duas,a saber: o fato mesmo da psicologia genética ser derivada de pesquisascom sujeitos escolares, pois que tinha como função, dentre outras,buscar soluções para os problemas educacionais de seu tempo e ofato de Piaget ser um cientista com participação ativa em organismosinternacionais de gestão da educação, o que certamente em muitocontribuiu para a difusão de suas idéias.

Escolhemos, para abordar o governo da razão pura pela escola,um texto de Jean Piaget publicado no ano de 1962 e intituladoComentários sobre as observações críticas de Vygotsky acercade: A linguagem e o pensamento da criança. Neste texto, Piagetsublinha ter sido para ele uma alegria descobrir que também o psicólogorusso, para propósitos de estudo, distinguia os conceitos espontâneos,

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“construídos pela criança em sua interação com o mundo”, dosconceitos científicos, “adquiridos pela criança por intermédio daaprendizagem escolar”. Ambos admitem existir uma interação entreestas duas categorias de conceitos. Vygotsky, contudo, segundo JeanPiaget, o interpreta incorretamente, ao lhe imputar a idéia de que oseducadores deveriam considerar o pensamento espontâneo da criançacomo um inimigo a ser vencido:

Em todos os meus escritos pedagógicos, antigos ou recentes,tenho ao contrário, insistido em que a educação formal poderiaganhar uma grande dimensão, muito maior do que aquelaproporcionada pelos atuais métodos, através de uma utilizaçãosistemática do desenvolvimento mental espontâneo da criança(PIAGET, 1991, p. 166).

E para provar que assim o é, Piaget faz uma referência a umasérie de estudos por ele realizados, com a colaboração de A Szemiskae B. Inhelder, sobre o desenvolvimento dos conceitos de número, dequantidades físicas, de ação, de velocidade e do tempo, de espaço, decausalidade, da indução de leis físicas e da estrutura lógica das classes.Estudos que, segundo Piaget, deveriam servir de guia de apoio nadeterminação do programa das disciplinas escolares, mas que, comoera o caso específico do ensino da geometria na Suíça e na França, nãoo foram. E o resultado desse desconhecimento da lógica evolutiva dodesenvolvimento muitas vezes se traduz em fracasso escolar:

Através desses exemplos [desenvolvimento das operaçõesgeométricas nas crianças em oposição à lógica dos programas degeometria em escolas suíças e francesas], que podem sermultiplicados, torna-se fácil responder às críticas de Vygotsky.Em primeiro lugar, ele reprova-me por eu não ver que oaprendizado escolar é totalmente relacionado com odesenvolvimento espontâneo da criança. Contudo, deve ficar claroque, em minha opinião, não é a criança que deve serresponsabilizada por eventuais conflitos de aprendizagem, massim a escola, que usualmente não tem consciência do que poderia

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deduzir do desenvolvimento espontâneo da criança, o qual eladeveria reforçar por métodos adequados em lugar de inibi-lo,como freqüentemente o faz. Em segundo lugar – e este é oprincipal erro de Vygotsky em sua interpretação sobre o meutrabalho – ele acredita que, de acordo com a minha teoria, opensamento adulto, depois de várias acomodações “substitui” opensamento infantil através de uma espécie de abolição mecânicadeste último (PIAGET, 1991, p. 167-168).

Sublinhemos que nosso objetivo aqui não é tomar partido quantoaos pontos de discordância entre Piaget e Vygotsky, no que diz respeitoaos conceitos espontâneos, a aprendizagem escolar e os conceitoscientíficos. Claramente, nosso objetivo primeiro é destacar a maneirapela qual Jean Piaget pensa como a escola deve governar o processode construção da razão pura pelo aluno. Os educadores devemsubordinar seus objetivos educativos à lógica evolutiva do pensamentodo escolar. E para tanto, devem necessariamente conhecer os progressosda psicologia do desenvolvimento se não desejam incorrer nos mesmoserros daqueles que desenharam os programas de geometria das escolassuíças e francesas.

Retomemos, neste ponto, a tese de Rose (1998) para quem, apartir da modernidade, a história do self não poderia ser contada semrecorrermos ao domínio, cada vez maior, dos experts. Agreguemos aela a nossa tese de que a secularização da escola, iniciada ao final doséculo XIX e desenvolvida na primeira metade do século XX, podeser contada em termos de uma progressiva usurpação da educaçãopelo saber científico, sobremaneira o saber produzido pelas ciênciashumanas. Decalquemos destes saberes o saber produzidoespecificamente pela psicologia genética de Jean Piaget em relação àgênese e desenvolvimento da razão pura. Projetemos este saber emperíodos evolutivos da lógica da criança à lógica do adolescente.Confrontemos as características de cada um dos períodos com oconteúdo das disciplinas escolares e teremos uma clara idéia da razãopela qual Piaget teve tanta penetração no métier psicopedagógico damodernidade.

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Interessante sublinhar aqui a escolha, certamente não aleatória,dos conceitos pesquisados por Jean Piaget e seus colaboradores apropósito da gênese e do desenvolvimento de cada um deles ao nívelda razão pura. São todos eles conceitos concernentes às ciências físicase matemáticas, certamente as denominadas “ciências duras” do séculoXX. Imaginar a maquinaria industrial do século passado sem eles nãonos parece possível. Impossível também imaginar uma escola que nãoos tenha incluído em seus objetivos de ensino no que diz respeito àaprendizagem dos conceitos científicos. Extrapolando a simplesexperiência física, estes conceitos nos remetem ao que Piaget denominade experiência lógico-matemática:

A experiência física responde à concepção clássica da experiência:ela consiste em agir sobre os objetos, para extrair umconhecimento por abstração, a partir dos próprios objetos. Porexemplo, a criança, ao erguer sólidos, perceberá por experiênciafísica, a diversidade dos pesos, de sua relação com o volume emdensidade igual, da variedade de densidades, etc. A experiêncialógico-matemática, em compensação, consiste em agir sobre osobjetos, mas com abstração dos conhecimentos, a partir da açãoe não mais dos próprios objetos. Neste caso, a ação começa porconferir aos objetos caracteres que não possuíam por si mesmos[e que conservam, aliás, suas propriedades anteriores] e aexperiência incide sobre a ligação entre os caracteres introduzidospela ação no objeto [e não sobre as propriedades anteriores deste]:neste caso, o conhecimento é abstraído da ação como tal e não dapropriedade física dos objetos (PIAGET, 1973, p. 76-77).

“Agir sobre os objetos para deles extrair conhecimentos”, eis oparadigma dos métodos ativos e a razão pela qual já em 1935 Piagetiria escrever um artigo defendendo-os: Os novos métodos, suasbases psicológicas. A aquisição dos conceitos científicos, através daaprendizagem escolar, deveria não apenas obedecer à lógica da gênesee desenvolvimento dos conceitos espontâneos, mas exigia da pedagogiaum novo método de ensino que muito se diferenciava da simplespreleção ou da pura experiência física dos próprios objetos. A “escolanova” necessariamente pressupunha um “método novo” de ensino.

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Escolhemos, para abordar os novos métodos pedagógicos, umtexto apresentado por Piaget no V Congresso Internacional deEducação Moral, realizado em Paris, no ano de 1930 e intitulado Osprocedimentos da educação moral. Sua análise não somente nospermitirá discutir estes novos métodos, mas também abordar o governoda razão prática pela escola.

Piaget (1996) inicia sua exposição sobre o tema afirmando queos procedimentos da educação moral podem ser classificados sobdiferentes pontos de vista:

Primeiramente, do ponto de vista dos fins perseguidos: é evidenteque os métodos serão muito diferentes se desejarmos formaruma personalidade livre ou um indivíduo submetido aoconformismo do grupo social a que ele pertence. Verdade é queaqui não temos de tratar dos fins da educação moral, mas somosforçados para classificar os procedimentos a distinguir aquelesque favorecem a autonomia da consciência e aqueles queconduzem ao resultado inverso. Em segundo lugar, podemosconsiderar o ponto de vista das próprias técnicas: se queremosalcançar a autonomia da consciência, podemos perguntar se umensinamento oral da moral – uma “lição de moral” – é tão eficazcomo supõe Durkheim, por exemplo, ou se uma pedagogiainteiramente “ativa” é necessária a este fim. Para um mesmo fimpodem ser concebíveis diferentes técnicas. Em terceiro lugarpodemos classificar os procedimentos da educação em funçãodo domínio da moral a ser considerado: um procedimentoexcelente para desenvolver a veracidade, a sinceridade e asvirtudes que podemos chamar intelectuais, é bom, também,para educação da responsabilidade ou do caráter? (PIAGET, 1996,p. 1-2, grifos nossos).

Esta matriz de três entradas para a abordagem da educaçãomoral pode, segundo Piaget, facilmente precipitar a discussão sobre otema em um caos se não comporta um princípio ordenador quepermita uma orientação simultânea para os fins, as técnicas e osdomínios. E que princípio seria este?

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Não existe alguma divisão mais simples, algum princípio quenos permita uma orientação simultânea para os fins, as técnicas eos domínios? Nós acreditamos que sim, mas sob a condição departirmos primeiramente da própria criança e de aclarar a pedagogiamoral através da psicologia moral infantil. Quaisquer que sejamos fins que se proponha a alcançar, quaisquer que sejam as técnicasque se decida adotar e quaisquer que sejam os domínios sob osquais se aplique estas técnicas, a questão primordial é a de saberquais são as disponibilidades da criança. Sem uma psicologiaprecisa das relações das crianças entre si e delas com os adultos,toda discussão sobre os procedimentos da educação moral resultaestéril (PIAGET, 1996, p. 2, grifo nosso).

Revisando, contudo, a história da educação e também da filosofia,identificamos outros tempos nos quais a moral se punha como umaquestão que dizia respeito à pastoral cristã e/ou à reflexão filosóficados iluminados espíritos livres. Não obstante, estes tempos se perderamno tempo como um rosto desenhado na areia à beira mar. A razãoprática não é mais uma questão metafísica, sequer transcendental.Usurpada pela ciência, ela se desenvolve de acordo com um conjuntode leis que regem o desenvolvimento da inteligência da criança. Ogoverno da razão prática pela pedagogia, pois, se torna, doravante,prisioneiro da psicologia.

As leis regentes do desenvolvimento da moral da criança,identificadas pela psicologia genética de Jean Piaget, têm pretensõesuniversais, pois que são científicas. Rezam elas, contudo, que a educaçãomoral do homem pode ou não atingir sua forma mais desenvolvida,o “sujeito autogovernado”, a depender do grau de evolução dasociedade a qual pertence este sujeito:

A moral da heteronomia e do respeito unilateral parececorresponder à moral das prescrições e das interdições rituais[tabus], próprias das sociedades ditas “primitivas”, nas quais orespeito aos costumes encarnados nos anciões prima sobre amanifestação da personalidade. A moral de cooperação, aocontrário, é um produto relativamente recente da diferenciaçãosocial e do individualismo que resulta do tipo “civilizado” de

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solidariedade. Em nossas sociedades, conseqüentemente, opróprio conteúdo moral é, em síntese, o da cooperação. Dito deoutro modo, as regras prescritas, mesmo que na forma de deverescategóricos e imperativos de motivos religiosos, não contém, atítulo de matéria, mais que o ideal de justiça e de reciprocidadepróprios à moral do respeito mútuo. Somente cada um, tendoem vista a educação que recebeu, pode, no que concerne à forma,diferenciar o sentimento do dever do livre consentimento própriodo sentimento do bem (PIAGET, 1996, p. 9).

Iniciamos nosso trabalho sublinhando que Foucault e Piagetconcordam que o tempo da inocência é do governo dos outros. Otempo da inocência é o tempo da infância, seja ela do sujeito epistêmicoem sua dimensão sincrônica ou diacrônica. Perder a inocência, contudo,é para Piaget condição necessária para que se evolua de um modoprimitivo a um modo civilizado de solidariedade. Para ele, oindividualismo de nosso tempo é sintoma de evolução de um estágiode moral heterônoma para um estágio de moral autônoma. É mister,pois que assim determina as leis da psicologia genética, que o fim daeducação moral seja a produção de sujeitos autogovernados. E paraque a pedagogia possa reger esta produção, necessário se faz que elarecorra aos métodos ativos:

Para os participantes da escola ativa, a educação moral não constituiuma matéria especial de ensino, mas um aspecto particular datotalidade do sistema. Dito de outro modo, a educação formaum todo, e a atividade que a criança executa com relação a uma dasdisciplinas escolares supõe o esforço de caráter e um conjunto decondutas morais, assim como supõe uma certa tensão dainteligência e mobilização de interesses. Esteja ocupada emanalisar regras da gramática, a resolver um problema dematemática ou a comentar um ponto da história, a criança quetrabalha “ativamente” é obrigada, não só diante de si, mas diantedo grupo social que é a classe ou a equipe da qual faz parte, acomportar-se de modo muito diferente do aluno tradicional queescuta uma lição ou realiza um “dever” escolar. Enquanto nestetudo reconduz à obediência e às virtudes a ela ligadas, isto é, amoral do respeito unilateral, naquele, ao contrário, a investigação

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escolar implica as mesmas qualidades pessoais e as mesmascondutas coletivas de ajuda recíproca, de respeito na discussão, dedesinteresse e de objetividade que a pesquisa científica dosintelectuais adultos. A classe constitui assim uma organização detrabalho e evidencia-se que a vida moral está intimamente ligadaa toda atividade escolar. A educação do caráter é, em particular,singularmente intensificada e, para canalizar as atitudes e paraconstruir o controle pessoal, não é necessário recorrer a meiosexteriores artificiais: o próprio princípio da atividade conduz aestes resultados (PIAGET, 1996, p. 20-21, grifo nosso).

Razão prática que a tudo ativamente atravessa porque é inerenteao próprio princípio da atividade. E assim, estando a educação moralinerentemente ligada a toda e qualquer atividade de governo da razãopura, não podemos, portanto, concordar com Jones & Williamson(1979) que identificaram na secularização da escola um retraimentodas questões morais ao nível dos discursos pedagógicos do final doséculo XIX e início do século XX. Em verdade, o que vemos, tomandocomo base a citação de Jean Piaget, é uma inflação do governo darazão prática, agora inserida em todo o processo de aprendizagem.

Ainda que possa nos parecer paradoxal, a inflação do governoda razão prática pela escola não significa que a escola do século XX seaproxime das instituições disciplinares abordadas por Michel Foucault(1979) em Vigiar e Punir e que, segundo ele, caracterizaram associedades ocidentais do século XVIII e XIX. Na “escola nova” oideal panóptico de Benthan (cf. FOUCAULT, 1979) se torna uma questãode fórum íntimo – fagocitado pelo self, torna-se um problema não degoverno, mas de autogoverno:

O self deve se tornar um ser subjetivo, ele deve aspirar porautonomia, deve lutar por sua realização pessoal em sua vidaterrena, ele deve interpretar sua realidade e seu destino comoproblema de sua responsabilidade individual para encontrar osentido de sua existência formatando sua vida através de atos deescolha. Estas formas de pensar os seres humanos como selves,e estas formas de julgá-los, estão ligadas a certas formas de atuarsobre estes selves. A orientação dos selves não mais depende da

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autoridade religiosa ou da moralidade tradicional; ela é agoraresponsabilidade dos “experts em subjetividade” quetransfiguram questões existenciais sobre o sentido da vida e dosignificado do sofrimento em questões teóricas sobre as formasmais efetivas de gerir disfunções e de melhorar a qualidade devida (ROSE, 1998, p. 151, tradução nossa).

A escola, pois, não deve ser pensada como simplesestacionamento de crianças para pais trabalhadores. Ela é, sobretudo,o lugar em que subjetividades são produzidas e o são de acordo como credo que rege o métier psicopedagógico em determinado instante dahistória. É isto que permite a Piaget enunciar que o governo da razãoprática na “escola nova” não se configura como um exercício particular,mas transversal da razão.

Os novos métodos, portanto, surgem para atender estademanda de um longo governo da razão pela escola em sua funçãode produzir sujeitos autogovernados. Produção esta estritamentecontrolada por experts em subjetividade que, pautados nos científicosconhecimentos da psicologia do desenvolvimento, estão autorizados aproduzir uma série de tecnologias pedagógicas capazes de garantir osucesso da empresa educativa. Vejamos um exemplo deste arsenaltecnológico que foi apresentado pelo próprio Jean Piaget em suaconferência sobre a educação moral. O nome do instrumento é Ligada Bondade e foi, segundo ele, apresentada pela primeira vez em 1912no Congresso de Educação Moral de La Haya:

Para fazer parte da liga da bondade a criança se compromete,simplesmente, a perguntar-se, todas as manhãs, o que poderáfazer de bom durante o dia. À noite deve dar-se conta do resultadode seus esforços e lembrar-se do bem que tenha desejado fazerao seu redor. Os resultados, quaisquer que sejam, tratem-se devitórias ou fracassos, são escritos numa folha não assinada que acriança deposita numa caixa colocada na classe para este fim. Essasanotações anônimas são lidas na classe durante a aula de moral.O sucesso desse método tão simples tem sido surpreendente econtrasta com a carência de benefícios dos métodos puramente

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verbais. De onde vem este sucesso? Em primeiro lugar evidencia-se que toda a atenção está colocada sobre a própria atividade dacriança e não sobre o seu discurso. Os assuntos que servem dematéria para a reflexão moral não são episódios históricos oufictícios, que o professor propõe arbitrariamente e que se mantémexteriores aos interesses espontâneos do aluno: são os própriosatos das crianças. Em segundo lugar, pelo fato de haver uma liga,uma mutualidade é criada entre as crianças e um forte empenhoconjunto é assim desencadeado. [...]. É assim que, em muitoscasos, são as próprias crianças que designam o titular do prêmioanual das ligas. Esta flexibilidade permite, então, um livre progredirdo autogoverno e da atividade da criança (PIAGET, 1996, p. 25).

Qualquer semelhança com as práticas confessionais da pastoralcristã não é pura coincidência. Meticulosamente o aluno é incitado,pelo seu sucesso, a confessar seus pecados e submetê-los ao julgamentode sua comunidade. Não obstante, não é mais o padre aquele quejulga as ações de suas ovelhas e lhes confere penitências ou bênçãos. Éo professor, que por sua autoridade inteligente, apenas guia o processode confissão e de julgamento. São as próprias crianças, por meio desua atividade, que constroem um autogoverno dos atos morais dosmembros do grupo. A confissão se seculariza e a ordem religiosa selaiciza. Nem padres e nem fiéis, mas professores e alunos. “E tudo istoabençoado pelo poder do evangelho segundo a psicologia genética”.

Resta-nos, enfim, brevemente sublinhar a razão pela qual oautogoverno se tornou o fim último da educação em democraciasliberais do século XX. Em tempos de neoliberalismo que agoravivemos, é no mínimo redundante recordar que o liberalismo é umadoutrina de governo que se caracteriza pela arte de minimamentegovernar uma comunidade de cidadãos livres. A liberdade não é,contudo, uma categoria transcendental: “é a resultante de um conjuntode tecnologias de produção de sujeitos a partir de regimes de verdadesinstituídos por especialistas em subjetividade”. Dentre estes, certamente,destacam-se os especialistas em educação que compuseram o métierpsicopedagógico do século passado.

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159O governo da razão: escolarização, subjetivação e psicologia genética

THE GOVERNMENT OF REASON: EDUCATION,SUBJECTIVENESS AND GENETIC PSYCHOLOGY

Abstract: This paper deals with the epistemic subject formatted by an institutioncalled school, a privileged space for the history of education throughout the 20th

century. An analysis of Jean Piaget´s genetic psychology in its relation withpedagogical practices centered on the student will be conducted. Like technologiesdesigned to produce citizens in liberal and welfare times, these practices dictatedthe ideals for governing reason and they are in the roots of the piagetian subjectin his synchronic and diachronic dimensions as well.

Keywords: Governmental. Subjectiveness and epistemology.

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HEIDEGGER EDUCADOR: ACERCA DOAPRENDER E DO ENSINAR

Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens*

Resumo: O texto questiona a possibilidade do aprender/ensinar. Investigaremosse a educação e seus conteúdos podem ser considerados mathematas (para osgregos: “aquilo que pode ser aprendido”). Apresentaremos as contribuiçõesque Heidegger traz à Filosofia da Educação ao afirmar que todo ensinar éreconduzir quem aprende ao “lugar” de todo aprender. Assim, o aprender/ensinar seria recordar desta instância na qual se constituem os significados capazesde orientar a existência deste indivíduo que aprende.

Palavras-chave: Aprender. Ensinar. Mathematas. Filosofia da educação.

Heidegger não é um educador. Não, se entendermos poreducador um “teórico da educação”. Heidegger1 é um pensador dafilosofia; estando, pois, envolvido com questões específicas e

* Doutorando em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Docentedo Centro Universitário Plínio Leite (Unipli). Autor de Filosofia primeira: estudossobre Heidegger e outros autores. Rio de Janeiro: Papel & Virtual, 2004. E-mail:[email protected] Martin Heidegger: Nascido em Messkirch/Alemanha em 1889. Foi docente daUniversidade de Freiburg de 1924-1945, na qual também foi Reitor em 1933. Aluno eassistente de E. Husserl, teve seu nome ligado a escolas como a Fenomenologia e oExistencialismo, foi professor de nomes como H. Marcuse, H. Arendt, H-G. Gadamer, E.Lévinas e H. Jonas. Morreu em 1976.

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III n. 4 p. 161-171 2005

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concernentes a um fenômeno histórico chamado “metafísica”. Ametafísica, entre suas muitas conceituações, é a chamada “ciência objetivada verdade”, procedimento especulativo que visa determinar a verdadedas coisas em seu ser. Assim como a maioria dos pensadores, Heideggeresteve envolvido com a atividade docente. Lecionou filosofia: eraprofessor. Ocupou-se com o ensino de filosofia durante toda a vida,ministrando cursos e conferências, inclusive em outros países.

O melhor testemunho de sua aplicação à prática educativaencontramos em textos escritos especialmente para a cátedra (visandoo apoio à leitura de seus alunos) ou na forma de preleções.2 Nessestextos, presenciamos demonstrações da preocupação do autor emadequar seus métodos ao perfil de seus alunos, utilizando uma linguagemdidática e imagens acuradamente escolhidas para ilustrar e esclareceridéias mais abstratas.3

Embora considerando isso, é forçosa a pretensão de incluirHeidegger no rol dos pensadores da educação, pois, em sua obra, oautor apenas sinaliza, de maneira esparsa, suas concepções pedagógicas;este material ainda seria insuficiente para constituir o corpus de umateoria educacional. Entretanto, tendo sido um pensador da filosofia, enão pedagogo, Heidegger trouxe profundas contribuições para as ditasCiências Humanas (KNELLER, 1971), inclusive à educação, na medidaem que empreendeu toda uma investigação acerca do sentido do ser eda existência do Homem. Seu trabalho possibilitou que certos conceitosfundamentais ao pensamento ocidental pudessem ser pensados a partirde novos paradigmas, permitindo que noções tradicionais como as derazão, sujeito, indivíduo, existência etc, ganhassem nova compreensãoe abordagem.

Na educação dita “tradicional”, (centrada em concepções comoas de subjetividade, intelecto e conhecimento, pressupondo o indivíduocomo algo dado essencialmente) as idéias de Heidegger provocaram

2 As chamadas Vorlesungen, modalidade de curso ainda muito usada na Alemanha queconsiste basicamente na leitura de um texto do mestre diante da turma. Textos que sãousualmente reunidos e publicados após a apresentação do curso.3 Características nem sempre observadas em seus tratados e conferências.

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transformações capazes de serem observadas naquela que DemervalSaviani (1995) chama de “concepção humanista moderna de Filosofiada Educação”. Esta, por oposição à primeira, pauta-se na vida, naexistência, nos afetos e nas atitudes, caracterizando-se como uma posturade leitura da vida e do mundo sem que o indivíduo estivesse afastadocomo mero espectador. Para essa postura humanista, que se apóia emescolas como o Vitalismo, a Fenomenologia e o Existencialismo,4 oindivíduo é sempre ator, sendo na medida em que existe,experimentando a si próprio na existência, estando envolvido com opensamento e sentimentos; já compreendendo o mundo a partir destessentimentos. Saviani enfatiza estes traços enquanto comenta aapropriação que alguns educadores fizeram a partir dessas idéias. Oautor aponta também o conceito que podemos fazer de indivíduodesde esta perspectiva:

Atualmente alguns educadores buscam rever suas posiçõespedagógicas à luz da fenomenologia e do existencialismo [Husserl,Merleau-Ponty, Heidegger]. [...] registrei de modo explícito essadiferença matriz ao afirmar que a referida concepção admite aexistência de formas descontínuas da educação [...] na medidaem que, em vez de considerar a educação como um processocontinuado, obedecendo a esquemas predefinidos, seguindo umaordem lógica, considera-se que a educação segue o ritmo vital queé variado, determinado pelas diferenças existenciais ao nível dosindivíduos; admite idas e vindas com predominância dopsicológico sobre o lógico; num segundo sentido [mais restritoe especificamente existencialista], na medida em que os momentosverdadeiramente educativos são considerados raros, passageiros,instantâneos [...]. Acontecem independentemente da vontadeou de preparação. Tudo ao que se pode fazer é estar predispostoe atento a esta possibilidade (SAVIANI, 1995, p. 72).

4 Correntes filosóficas de grande vulto no início do século XX junto à filosofia européia,tendo influenciado o restante da produção filosófica deste século. Um exemplo daimportância dessas escolas pode ser observado na obra de autores como Paulo Freire,quando, em seu livro Pedagogia do oprimido, encontramos notas de rodapé referentesa estes nomes; declarando a influência que o autor brasileiro sofreu do chamado“Existencialismo Cristão”, corrente derivada destas escolas filosóficas (FREIRE, 1983).

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Após esta introdução, que teve por intuito apresentar a figurade Heidegger, a importância e ambiência de suas idéias, temos opropósito de pensar, com base em diversas passagens seletas da obrado autor, algumas reflexões sobre a compreensão que o autor faz doaprender/ensinar, buscando pontuar, através de um “enfoquefilosófico”, possíveis contribuições de Heidegger para a História daFilosofia da Educação. Este exercício justifica-se por tratar de“conceitos considerados fundamentais” à educação e recorrentes àpauta dos autores da Filosofia da Educação, justamente por constituirseus “princípios”,sendo, pois, “condição de possibilidade” a todoprocesso, “prática e discurso educacional”.

O texto ocupa-se dos conceitos de aprendizado e ensino a partirda análise que o autor faz do conceito grego de mathemata, presenteprincipalmente no livro O que é uma coisa? (1962).

Reunimo-nos em torno da “pergunta pela possibilidade do ensino”,questão persistente que um dia se afirma a todo professor comprometidocom seu ofício. Buscaremos interpretar esta pergunta como um vocativoe uma boa ocasião para pensar naquilo que fazemos quando estamosem sala de aula diante de nossos alunos. É neste momento singular quedevemos deixar se afirmar a pergunta: “É possível ensinar algo aalguém?” Entretanto, esta pergunta não espera uma resposta cabal parasi; isto é, um sim ou um não e depois um conjunto de proposiçõescapazes de justificar argumentativamente a opção por sua afirmativa ounegativa, mas um exercício de reflexão que, dando um “passo paratrás”, questiona sua possibilidade e o fazer de quem se ocupa dela.

Observa-se que a colocação da pergunta “é possível ensinaralgo a alguém?” parece não durar muito, pois, ao invés de aexperimentarmos serenamente, logo desconsideramos sua gravidadena busca de uma intelecção lógica seguida de resposta. Daí, passamosa ter novas perguntas derivadas da primeira por decomposição: o queé ensinar? (sua variante, o que é aprender?) Ensinar o quê? Ensinar aquem? E assim, mesmo antes de experimentarmos radicalmente essesnovos questionamentos, novamente nos arvoramos a dar respostas.

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É possível, então, que a pergunta pela possibilidade do ensinarseja respondida simploriamente. Afinal, deduz-se que ensinar o quequer que seja é possível, pois, denotativamente, não seria mais queministrar, de maneira unilateral, conteúdos que o professor previamentepossui, ao aluno que ainda não os tem e supostamente necessita. Ou,usando uma linguagem muito celebrada neste início de século XXI:

aparelhar os indivíduos com os instrumentos necessários para aassimilação das muitas informações produzidas por esta novaEra, possibilitando aos indivíduos a orientação para a plenarealização de seus projetos e desenvolvimento individual.

Isto faz com que a atividade docente se reduza a uma instrução,ou seja, uma transferência de informações e procedimentos.

Este modo de conceber o problema é o mesmo que reputasupérflua a pergunta pela natureza do aprender/ensinar. Questão que,uma vez colocada, transgrediria as normas do bom senso acadêmicoe da metodologia pragmática, tão prezada pelas atuais correntes daeducação. Afinal, parece ser mais que claro que o ensinar é possível.Contudo, esta pressuposição (a qual não deixamos de ter, caso contrárionão seríamos professores) adquiriu com o tempo uma rigidez que,por vezes, impossibilita o professor de rever o fazer que lhe é próprio,questionando seu modo de ser.

O exercício que propomos, do modo com que questionamos,vem perguntar pela autêntica possibilidade da educação, pensando esteproblema a partir do aprender/ensinar. Presumimos que a conduçãodesta idéia deverá descortinar adiante o sentido da educação, cujapossibilidade de aprendizado e ensino parte da requisição colocadapor Heidegger, segundo a qual, o que quer que possa ser ensinado,deve ser necessariamente matemática.

Entendemos matemática não como a ciência que investiga asrelações abstratas entre entidades numéricas, capazes de ser observadasa partir de suas operações lógicas, mas como Heidegger nos descreve,segundo sua compreensão primeira junto aos gregos antigos:

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O “matemático”, segundo a origem etimológica, resulta do gregotá mathemata, o que se pode aprender e, ao mesmo tempo; emconseqüência, o que se pode ensinar. Manthanoein significaaprender. Mathesis significa lição e, na verdade, num duplosentido: lição no sentido de “ir a uma lição e aprender” e liçãocomo “aquilo que é ensinado”. Ensinar e aprender são aquitomados num sentido lato e, ao mesmo tempo, essencial, nãono sentido estrito tardio, utilizado na escola pelos doutos(HEIDEGGER, 1987, p. 76).

É segundo esta compreensão de matemático que deve serentendido o conhecido lema do Liceu de Platão, que traz inscrito emseu pórtico o seguinte: “Afaste-se daqui quem não sabe matemática”(sic). De acordo com essa nova acepção apresentada no comentárioacima, a epígrafe platônica poderia ser interpretada como: “Afaste-sedaqui quem não sabe aprender”. A afirmativa de Heidegger remontaa isto, mais que a uma restrição aos não hábeis em efetuar cálculos,apresentando a matemática como um pré-requisito para quem deseja,efetivamente, aprender o que quer que seja.

Ao conceito de mathemata são atribuídas muitas determinações,algumas bem específicas, as quais enumeramos apenas as principais: a)coisas físicas, na medida em que se dão por si mesmas; b) coisasproduzidas, que chegam a nós através do trabalho do homem; c)coisas no uso, sendo, pois, os instrumentos, ferramentas, aparelhosutilizados para auxiliar a execução de ocupações e tarefas. Este últimoenfatiza o aspecto de prática (práxis), no sentido de ação, exercício ouuso situacional, servindo mesmo como suporte para as demaiscompreensões de mathemata (HEIDEGGER, 1987).

Notemos que todas as determinações da mathemata possuemalgo em comum, dizem respeito ao modo de ser das coisas em umadeterminada perspectiva; ou seja, já desde uma orientação das coisas,desde um modo de aprender. Neste momento, é preciso queconfirmemos nossos termos, à guisa de uma compreensão segura doproblema:

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167Heidegger educador: acerca do aprender e do ensinar

Mathesis significa aprender; mathemata, o que se pode aprender.De acordo com o que foi dito, as coisas são visadas com estadesignação, na medida em que se podem aprender. Aprender éum modo de aprender e do apropriar-se (HEIDEGGER, 1987).

O que Heidegger pretende apontar com essa passagem é queaprender, em sentido rigoroso, não é tomar as coisas como suas,prontamente (isto é, em um momento não se conhece um objeto, e nomomento seguinte, após ter sido experimentado este objeto, passa-sea tê-lo como empiricamente conhecido). Para nosso autor, a relaçãocom o objeto do aprendizado dá-se a partir de um exercício; nissofica marcado enfaticamente o caráter prático do aprender como umdos sentidos do mathemata, exercício que conduz quem aprende aaprender a apreender (sic).5

5 Com esta consideração, Heidegger marca posição frente a autores da educação queteorizam sobre o modo com o qual ocorre o processo do aprendizado. Autores cujobreve contraponto nos parece oportuno para comparações eventuais. Comenius talvezseja a primeira figura da História da Educação a afirmar algo sobre a natureza do aprendizado.Para este autor [um monge luterano formado à luz dos dogmas do texto bíblico], oindivíduo tem sua natureza inicialmente perfeita; criado à imagem e semelhança divina.Pela desobediência a Deus [pecado original] o homem decai deste estado, assumindopara si a instabilidade e a desarmonia, passando a ter, doravante, a tarefa de “conquistar acada instante” o estado perfeito do momento da criação. Para Comenius, o aprender é oveículo que viabiliza esta recondução à natureza perfeita criada por Deus, posto que “Umdos primeiros ensinamentos que a Sagrada Escritura nos dá é este: sob o sol não há outrocaminho mais eficaz para corrigir as corrupções humanas que a reta educação da juventude”(COMENIUS, 2002). Outra figura importante a esta temática é Lev Vygotsky. Para este autor, oaprendizado é produto de uma relação constante e ininterrupta com o mundo, o quecolabora para endossar sua convicção de que o modo com que cada indivíduo apreendeo mundo é singular. Jean Piaget enxerga o aprender através da relação do indivíduo como mundo, edificando uma subjetividade composta por faculdades cognitivas em constantedesenvolvimento construído na experiência (ARAÚJO apud PELLEGRINI, 2001). A mesmapressuposição aparece em Gardner, quando este autor “cartografa” o indivíduo queaprende, propondo diversos tipos de inteligências capazes de comandar habilidadesdiferenciadas em cada indivíduo, investigação que atualmente se expande, apontandonovas múltiplas inteligências e enfocando a educação para o século XXI. A concepçãoque Heidegger tem do aprender tem pontos de semelhança com a visão construtivista daeducação piagetiana, posto que o autor acredita que “O autêntico pensar não pode serapreendido nos livros. Também não pode ser ensinado, se o mestre não continuar sendoum discípulo até a velhice” (HEIDEGGER, 2001, p. 251). Esta proposição parece tangeraquelas que reconhecemos como as quatro principais teses do modelo construtivista, queseriam: 1. Aprendemos a partir da experiência dada na situação de aprendizagem, mastambém do sentido dos conhecimentos prévios; 2. Apreendemos organizadamentefazendo a distinção entre conhecimento declarativo (aprender “o quê”) e conhecimento processualou procedimental (aprender “como”); 3. O indivíduo que aprende tem a responsabilidadeem ocupar-se de sua própria aprendizagem; 4. quem aprende constrói seu aprendizadode maneira ativa, reconduzindo-se a suas referências prévias, à identidade do que éapreendido (SEQUEIROS, 2000).

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Assim, quando aprendemos o que quer que seja, já o fazemosdesde a recondução do aprendido a um sentido que lhe é próprio, eque de antemão possuíamos, ou como Heidegger nos assegura:

Na verdade, este “tomar conhecimento” é a essência autêntica doconhecer, a mathesis. As mathematas são as coisas, na medida emque as tomamos no conhecimento, enquanto tomamosconhecimento delas, como aquilo que verdadeiramente já sabemosde modo antecipado: o corpo como corporeidade; na planta, avegetalidade; no animal, a animalidade; na coisa a coisidade etc.Este verdadeiro aprender é, por conseqüência, um tomar muitopeculiar, um tomar no qual aquele que toma, toma,fundamentalmente, aquilo que já tem. A este aprender corresponde,também, o ensinar. Ensinar é um dar, um oferecer; no ensinar,não é oferecido o ensinável, mas é dada somente ao aluno a indicaçãode ele tomar aquilo que já tem (HEIDEGGER, 1987, p. 79).

Aqui, Heidegger aponta que o aprender/ensinar dá-se em umtipo de relação com as mathematas, capaz de estabelecer uma identidadeentre “quem aprende e o que é apreendido”. É isso que Heideggerquer dizer quando afirma que ensinar é indicar a quem deseja aprenderaquilo que já se tem. Daí, a tarefa premente de quem ensina (doprofessor) é “oferecer a oportunidade de o aluno reconhecer em siesta identidade fundamental e como a mesma se dá”. Pois, o ensinar,segundo Heidegger, nada mais é do que provocar o aluno a descobrirum sentido próprio a si e à própria necessidade do seu aprender.

O conceito de sentido é caro ao pensamento de Heidegger,pois, para este autor esta experiência diz respeito ao contexto no qualse mantém a possibilidade das coisas se darem em seu ser. Do mesmomodo, sentido é o que orienta o horizonte de realização de um indivíduo,na medida em que este revela uma perspectiva própria a seu projetoexistencial através da qual construirá seu acesso ao aprendizado.

O ensinar, então, torna-se a tarefa heurística que revela sentido,que faz com que o aprender tenha sentido, daí: “dizer que o ente temsentido significa que ele se tornou acessível em seu ser, que só então,projetado em sua perspectiva, ele propriamente tem sentido”(HEIDEGGER, 1996, grifos do autor).

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Estamos convencidos de que nisso reside a compreensão maisprópria do aprender/ensinar, tal qual nos expressa o termo latinoeducare, que em sua etimologia indica um “trazer para fora”, um “tirarde...”; depois, acumulando também o sentido de criar. Constataçãoque, por si só, ratifica a improcedência do modelo de professor enquantoaquele que possuiria a mera tarefa de ministrar conteúdos, tal comomencionamos anteriormente. Pois, para Heidegger:

Quando o aluno recebe apenas qualquer coisa oferecida, nãoaprende. Aprende pela primeira vez, quando experimenta aquiloque toma como sendo o que, verdadeiramente, já tem. Overdadeiro aprender está, pela primeira vez, onde o tomar aquiloque já se tem é um dar a si mesmo e é experimentado enquantotal [sentido]. Por isso, ensinar não significa senão deixar osoutros aprender, quer dizer, um conduzir mútuo até aaprendizagem. Aprender é mais difícil do que ensinar; assim,somente quem pode aprender verdadeiramente – e somente namedida em que tal consegue – pode verdadeiramente ensinar(HEIDEGGER, 1987, p. 79-80).

Segundo o autor, o aluno não aprende verdadeiramente o quelhe é transferido, pois isto não lhe diz respeito, pois isto não faz sentido.É preciso, portanto, que o aluno esteja ocupado na tarefa de descobrirum sentido próprio a si. Cuidando, portanto, por aprender a colocar-se numa perspectiva através da qual lhe seja possível aprenderverdadeiramente desde sua existência individual. Pois, somente assimo aprendizado é autêntico.

Nesses termos, ainda segundo a citação de Heidegger, oprofessor diferencia-se do aluno somente por ter diante de si, de maneiramais clara, o aprender em sua forma mais autêntica; daí outra afirmaçãodo mesmo autor: “Em todo ensinar, professor é quem mais aprende”(HEIDEGGER, 1987).6

6 Esta proposição de Heidegger se assemelha a certas assertivas que Paulo Freire (1983) fazem muitos momentos de sua obra. Freire certamente concordaria com esta proposiçãoheideggeriana, contanto que permanecesse resguardada a ambivalência deste professorque aprende enquanto educador-educando, na medida em que o professor é que maisaprende por também está aberto a aprender com seus alunos, processo que o autoralemão chamou de “um conduzir mútuo até a aprendizagem”.

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Aprender/ensinar é, segundo Heidegger, reconduzir-se a umlugar no qual se pode descobrir um sentido próprio ao indivíduo queaprende, ao que é aprendido de maneira temática (e até mesmocurricular) sem, contudo, perder de vista seu sentido originário;possibilitar um sentido orientador da perspectiva de sua existência doindivíduo. Em vista disso, ensinar é ensinar uma “postura”, é ensinar oaluno a se reportar ao ethos de todo aprender, é dar através de umrelato a indicação que conduzirá o aluno ao seu aprender. Por isso, sófaz sentido ensinar quem está pré-disposto a aprender, ou seja, a ouviro tal relato. Pois tal relatar atinge apenas aquele que um dia experimentoua possibilidade fundamental de apreender um sentido próprio a si.

Todas estas proposições sobre a natureza do aprender/ensinartalvez se resumissem ao que Heidegger, parafraseando Nietzsche,chama de:

Saber-se de si fora do vulgar: tornar-se sabedor de si mesmo, nãosó como indivíduo, mas como humanidade. Reflitamos,recordemos: percorramos os pequenos e os grandes caminhos(NIETZSCHE apud HEIDEGGER, 1987, p. 48).

À guisa de conclusão, é preciso considerar que muitas das idéiascontidas neste texto possuem relação com diversos conceitos dopensamento de Heidegger (não abordados aqui de maneira rigorosa),principalmente no período em que o autor está envolvido com a“analítica existencial”, investigação empreendida na obra Ser e tempo(1927). No referido, presenciamos as noções de existência, “ser-no-mundo”, “ser-com-o-outro”, “ser-junto”, “ocupação”,“preocupação”, “sentido” e, ainda, a noção de “cuidado”. Esta últimaexplorada por diversos autores que tentam pensar as implicações éticasdeste conceito (HODGE, 1995). A reflexão sobre “Filosofia daEducação” empreendida aqui aponta para um desdobramento futuro,ainda em fase de pesquisa, que busca pensar o conceito de cuidadoneste mesmo âmbito.

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171Heidegger educador: acerca do aprender e do ensinar

HEIDEGGER, THE EDUCATOR: ON LEARNING AND TEACHING

Abstract: The aim of this essay is to question the possibility of learning/teaching. For that purpose, we will investigate if education can be consideredmathematas. We will present Heidegger’s contributions to the Philosophy ofEducation, when he states that all teaching process reconducts the one wholearns to the “place” of learning. Thus, the learning/teaching process would bethe remembrance of instances in which the whole group of meanings enablethe existence of the one who learns.

Keywords: Learning. Teaching. Mathematas. Philosophy of education.

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SARTRE, 100 ANOS

Se, vivo, Sartre estaria completando 100 anos. Mas é certo que,mais que qualquer outro pensador do último século, sua vida ultrapassouem muito os limites exíguos das marcações cronológicas. Mais que osquase 75 anos vividos entre 1905 e 1980, mais que os cem anos queagora se comemoram, a condição inigualável de pensador total deu-lhe, na verdade, e talvez para nunca mais, o caráter intemporal dohomem que compreende a integralidade de seu tempo, e que, portanto,estando dentro dele mais do que qualquer outro, está também foradele, para além desse tempo que é o seu.

Último, possivelmente, a encarnar o ideal iluminista do Intelectualpleno, do filósofo-ativista, cuja militância é a efetiva militância doPensamento em sua realização material, vivida, algo hoje já quaseincompreensível, talvez devêssemos encontrar aí o modo de explicaçãodo verdadeiro alcance e sentido da obra sartriana para nós, nesse ponto,precisamente, já dele tão distantes: a coincidência intransigente entrevida e pensamento, entre ação e avaliação. Ninguém pôde entender eexpressar melhor sua condição central do que de Gaulle quando, noauge da Guerra da Argélia, aconselhado a decretar a prisão de Sartrepor seu incisivo ativismo anti-colonialista, respondeu com a frase: “Não

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se pode prender Voltaire”. E desde Sartre, de fato, ninguém mais pôdeexercer tamanha força de barragem sobre o poder.

Herói do pensamento, herói da literatura, herói da militânciapolítica, Sartre o foi antes, porém, por renúncia, por sucessivos einesperados deslocamentos. Recusa em lecionar, renúncia ao PrêmioNobel ofertado em 1964, recusa, de todos os modos, como ele nãocessava de dizer, em “institucionalizar-se”.

Mas a comemoração do centenário é ocasião, ainda, para umareavaliação de sua filosofia. A partir de um certo período, Sartre tornara-se o alvo preferencial de todo crítico, filósofo ou não-filósofo, à direitaou à esquerda. Na Filosofia, o mote principal foi sempre o de que seupensamento, na verdade, era uma reprodução simplificada dafenomenologia de Husserl e Heidegger. A distância no tempo já ésuficiente ao menos para nos mostrar que não é nada disso.

Muitos dos novos caminhos tomados na Filosofia, nesse últimoséculo, que vieram acentuar seu distanciamento do período moderno,tiveram em Sartre um agente fundamental, senão um precursor: umaacepção impessoal ou a-subjetiva da transcendentalidade, retomadapor Deleuze, a “metodologização” do marxismo com vistas àinstauração de um (novo) pensamento material, levada adiante por nomescomo Althusser ou já Negri e Hardt, bem como as insistentes e preciosasrelações estabelecidas entre filosofia e literatura, hoje desenvolvidaspor Derrida, enfim, boa parte das principais formulações das filosofiasque lhe sucederam acabam por contar com a presença onipresente,mesmo que até certo ponto inesperada de Sartre: deus in machina.

Assim, nesse atual tempo errático, de absolutas indefinições, suavida, sua filosofia, seus olhos tortos indicam-nos, mais que outros, adireção conflitante e paradoxal que temos a seguir.

Em seu número 4, através de artigo do Professor LucianoDonizetti, o APRENDER quer prestar homenagem a esse grandepensador.

Leonardo Maia Bastos MachadoProfessor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).

Editor Responsável.

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EXISTENCIALISMO E EDUCAÇÃO – A FILOSOFIASARTRIANA DA LIBERDADE COMO

FUNDAMENTO PEDAGÓGICO?1

Luciano Donizetti da Silva*

Resumo: Este artigo tem como objetivo principal responder à seguinte questão:a filosofia sartriana da liberdade pode fundamentar uma pedagogia? Pararespondê-la é preciso, antes de tudo, entender a noção de liberdade na filosofiade Sartre, seu fundamento ontológico e sua explicitação fenomênica. A seguir, épreciso haver-nos com as dificuldades decorrentes de tal liberdade, e assim buscaruma pedagogia progressista que se paute pelo respeito à liberdade individualque é, para Sartre, a razão de ser de todos os homens.

Palavras-chave: Sartre. Educação. Liberdade.

A Filosofia Sartriana da liberdade como fundamento pedagógico?

Não se trata de saber por que nós somos livres, mas quais são oscaminhos da liberdade. Sobre isso estamos em pleno acordo comHegel que afirmava: “Ninguém, nenhum homem pode ser livre, setodos os homens não o são”. Sartre(Écrits, As Moscas).

1 Esse trabalho foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de SãoPaulo (Fapesp).* Mestre em Filosofia Contemporânea pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).Doutorando em História da Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).E-mail: [email protected] - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III n. 4 p. 175-200 2005

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No dia quinze de abril de 1980 morria em Paris um dos maiorespensadores de nosso tempo, Jean-Paul Sartre, escritor, dramaturgo,novelista, político, ideólogo, anarquista, rebelde, ativista de esquerda e,sobretudo, filósofo. Longe do frisson que causou no Brasil na décadade 60, a filosofia de Sartre começa lentamente a retomar seu lugarcomo uma das mais importantes do século passado e, sem qualquerdúvida, o filósofo é merecedor de atenção nesse novo século. Suaobra, por demais vasta, comporta muitas mudanças e dificuldadesdoutrinais; isso faz com que qualquer escrito sobre ele necessite deuma clara delimitação, pois, do contrário, além de prejudicar acompreensão de suas questões, pode-se retomar os velhos chavõesque mascaram o caráter eminentemente filosófico de seu pensamento.Assim sendo, esse texto tem como objetivo preciso responder àseguinte questão: a filosofia de Sartre pode fundamentar uma teoriapedagógica?

Entenda-se que essa questão se desdobra numa diversidade deoutros problemas, tais como a relação entre uma filosofia da liberdadee a instituição educacional, ou a relação entre currículo e a liberdadeindividual, ou ainda, sobre como avaliar um aluno se o princípio é aliberdade. E nossa questão se complica sobremaneira porque não hánenhuma obra de Sartre que tematize especificamente a educação, alémde a bibliografia secundária sobre o tema ser escassa e, não raro,equivocada com respeito a aspectos importantes da teoria sartriana.Assim, faremos um exercício teórico, e deixaremos para os especialistasem educação a tarefa de decidir sobre sua valia e aplicabilidade; aoseducadores fica a responsabilidade de, ainda que inseridos numadeterminada instituição de ensino, procurar espaços que possam serpreenchidos pelas idéias que serão aqui discutidas.

Para tanto, esse ensaio será dividido em dois momentos: primeiro,apresentaremos alguns aspectos técnicos da filosofia de Sartre, emespecial o conceito de existência e a conseqüente liberdade essencial.Feito isso, será o momento de discutirmos as objeções a uma propostaeducacional que se fundamente no pensamento do filósofo; sobre esse

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aspecto faremos uso de um artigo de Khemais Benhamida, que cumprejustamente o papel de mostrar a inviabilidade dessa empreitada;2 é comesse intuito que faremos, inicialmente, um estudo indicativo que busqueser o mais fiel possível ao desenrolar da obra de Sartre. Antecipo queuma enormidade de problemas secundários, e mesmo questões deprimeira importância, de interesse unicamente filosófico, serãodesconsiderados em vista da economia do texto; ainda assim, oselementos fundamentais para uma introdução ao pensamento dofilósofo serão explicados. Esperamos que o leitor, ao final, possa estarem condições de formular sua resposta sobre se o existencialismo podeou não contribuir para fundamentar uma pedagogia; será suficiente seos pré-conceitos sobre a filosofia de Sartre forem dissipados e se,independente da resposta, positiva ou negativa, para essa indagação,que ela seja construída com base naquilo que o filósofo escreveu e nãonaquilo que se acredita que ele tenha escrito.

Existencialismo e liberdade

A consciência se purificou, ela é clara como um grande vento, nadamais há nela, salvo um movimento para se escapar, um resvalamentopara fora de si; se, ainda que impossível, vocês entrassem “em” umaconsciência, seriam tomados por um turbilhão e lançados para fora,próximos a árvore, em plena poeira, pois a consciência não tem“dentro”; ela não é senão o fora de si mesma e é essa fuga absoluta,essa recusa de ser substância que a constituem como uma consciência.Sartre (Uma idéia fundamental da fenomenologia de Husserl).

Falar em existencialismo requer que nos voltemos para a históriada Europa, que viveu muito de perto os efeitos das duas grandesguerras, em especial a segunda. Terminado o conflito, em 1945, emmeio aos destroços e perdas, surge o que se convencionou chamar a“moda existencialista”. Era natural que após a experiência da guerra as

2 BENHAMIDA, K. O Existencialismo de Sartre e a Educação: a falta de fundamentaçãopara as relações humanas. Educational Theory, Illinois (EUA), n. 23, p. 230-239, citado porBURSTOW, B. The Sartre’s philosophy as foundation of the education. Tradução NewtonRamos-de-Oliveira. Educação e Sociedade, Campinas: ano 21, n. 70, abr. 2000. Original:Journal of Philosophy of Education, n. 2, v. 17, 1983, p. 171-185.

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pessoas estivessem inconformadas e pessimistas com relação ao futuro;e é nesse panorama que Sartre escreve O Existencialismo é umhumanismo, objetivando defendê-lo das críticas rasteiras das quais ateoria era vítima (pessimista, quietista, não solidária, etc.). Não é deespantar que, logo no início do texto, Sartre afirme que “A maior partedas pessoas que utilizam este termo ficaria bem embaraçada se o quisessejustificar”.3 Segundo Sartre, pode-se falar que um pintor ou um músicoé existencialista e, segundo a “moda”, isso apenas significaria uma“postura” ante a vida – postura invariavelmente pessimista. Mas, noslembra ele, o Existencialismo é uma filosofia e, como tal, merece umpouco mais de atenção.

Não é novidade, uma das expressões mais utilizadas (nem semprecom propriedade) para explicar o existencialismo é a seguinte: “Aexistência precede a essência”. Sartre pergunta se aqueles que fazemuso dessa expressão compreendem “exatamente” qual seja seu sentido.E responde que, não raro, a incompreensão é tamanha que faz comque sejam cometidas as injustiças com respeito ao pensamentoexistencialista. Assim, “Que significa aqui dizer que a existência precedea essência? Significa que o homem primeiramente existe, se descobre,surge no mundo; e que só depois se define”.4 Explicando melhor,poderíamos perguntar qual é a essência de um objeto qualquer – edeterminaríamos, com base na técnica para fazê-lo e no objetivo parao qual ele é feito, sua essência. Porém, o que responder sobre a essênciado homem? Que ele é um “animal racional”? Que ele é “um animalpolítico”? Que ele é uma “alma à imagem e semelhança de Deus que,todavia, está presa num corpo”? Qual dessas respostas daria conta dasingularidade de cada um dos homens?

Nenhuma delas é claro! Porém, como Sartre exemplifica, seperguntarmos sobre a essência de um livro, há uma receita para fazê-lo(escrever, editar, imprimir, publicar, ler). Esse é, em resumo, o quesignifica dizer que, no homem, a existência precede a essência; é também3 SARTRE, J-P. O Existencialismo é um humanismo. Tradução de Vergílio Ferreira. SãoPaulo: Abril Cultural, 1978, p. 4. (Coleção Os Pensadores, v. Sartre).4 Idem, ibidem, p. 6.

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a origem do termo existencialismo. Mas há ainda uma possibilidade: ese Deus for considerado o artífice que “faz” o homem, comportandoassim a essência humana? Sartre se adianta em afirmar-se ateu, e umavez que a noção de Deus seja excluída, estamos de posse do sentidomais geral do existencialismo sartriano: Deus não faz o homem à suaimagem e semelhança, do que decorre que o homem simplesmenteexiste, tendo como sua essência aquilo que ele fizer dele mesmo.Chegamos assim ao núcleo do problema, afinal, uma vez que ohomem não tem uma essência pré-determinada, mas “se escolhe”ao longo de sua vida, ele é livre. Noutros termos, o homem é“essencialmente livre”.

Há ainda uma outra expressão, também bastante popular,utilizada para explicar a essência libertária da filosofia de Sartre: “Ohomem está condenado a ser livre”. Parafraseando o filósofo, estoucerto que a maioria das pessoas que utilizam tal expressão se sentiriambastante desconcertadas se tentassem explicar seu sentido.O mesmopode ser dito da expressão utilizada por Garcin na peça Huis Clos,também bastante popular: “O inferno são os outros”; essa, por suavez, é largamente utilizada para se referir à impossibilidade desolidarização entre os homens, uma das conclusões mais difundidas eequivocadas da obra de Sartre. Isso se deve, em parte, à popularidadeque o filósofo angariou com suas obras literárias e suas peças de teatro;mas, infelizmente, é também devido à pouca seriedade com que aacademia trata seu pensamento.

O uso fácil e simplório do pensamento de Sartre tem sua origemdentre os filósofos, se espalha para as demais áreas do conhecimentoe chega, inclusive, ao senso comum, onde tais equívocos seriamaceitáveis. As razões para tal fenômeno, além da notória popularidadeque o filósofo alcançou com sua arte, têm uma origem comum: adificuldade, profundidade e extensão de sua teoria. Em suma, Sartreiniciou seu pensamento em 1933, quando foi para Berlim estudar afenomenologia de Husserl e, pode-se dizer, apenas parou em 1980,com sua morte. São, portanto, quarenta e sete anos de intenso trabalho

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intelectual que tem, além de textos técnicos, peças de teatro, romances,entrevistas, ensaios, cartas, roteiros para filmes, entre outros. Há aindaas intervenções políticas que, por si só, justificariam um estudo. Assimsendo, espero apresentar de forma sucinta, mas fiel, sua teoria da liberdadee as possíveis implicações para que ela fundamente uma pedagogia.

O primeiro texto filosófico de Sartre é de 1934, ano que ofilósofo passou em Berlim estudando a Fenomenologia de Husserl.Segundo ele, era preciso um pensamento que fizesse frente à filosofiaidealista (de cunho hegeliano e neo-kantiano) que era então disseminadana França. E foi na Alemanha que Sartre conheceu a noção de“intencionalidade da consciência”, segundo a qual toda consciência éconsciência de alguma coisa; noutros termos, a consciência “intenciona”objetos diferentes dela. Mas, quais as conseqüências de tal descoberta?Sartre utiliza o conceito de intencionalidade da consciência para fazerfrente ao psicologismo francês, em especial àquilo que esse consideravaos “conteúdos da consciência”. Ao afirmar que toda consciência éconsciência de algo que não é ela, Sartre está dizendo que a consciênciaé “vazia”, que não pode ser determinada por nenhum objeto e, nempor ela mesma.5 A consciência não é determinada por nada, uma vezque ela “se dirige” livremente para onde quer que ela queira.

É por essa razão que o primeiro texto filosófico de Sartre éuma crítica à noção de conteúdos de consciência, principalmente àcrença de que pelas sensações pode-se constituir a imagem de umobjeto na consciência.6 Expliquemo-nos: a concepção tradicional desensação, tal qual o senso comum, afirma que um determinado objetocom o qual entramos em contato pode ser “revivido” na consciência,ainda que tal objeto esteja ausente. Trata-se da “sensação remanescente”e, desse modo (já que não se está em face do objeto mesmo) ele seformaria na consciência. Ora, para Sartre, a intencionalidade mostra oerro de tal concepção, e a urgência de libertar a consciência de tais

5 SARTRE, J-P. Une Idée Fondamentale de la Phénoménologie de Husserl: L’Intentionnalite. Situations I. Paris: Gallimard, 19476 SARTE, J-P. La transcendance de l’ego: esquisse d’ une description phénoménologique.Paris: Recherches Philosophiques, 1937.

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conteúdos. Trata-se de mostrar o erro comum aos psicólogos deafirmar que existe um aparato psíquico e que tal aparato determina oindivíduo em suas escolhas cotidianas (tais como o Ego, Superego, Id,etc.). Desse modo, a consciência poderia ser comparada a uma “caixa”que processa sensações, colocando em risco sua espontaneidade e,pior, sua liberdade.

O resultado da noção de intencionalidade da consciência é quetodo objeto, por princípio, está fora da consciência, está no mundo. Omesmo se aplica às qualidades secundárias de cada objeto, tais comocor, forma: todas elas pertencem ao objeto e, como tal, sãotranscendentes. Entretanto, para aqueles que possam pensar que essa éa razão da filosofia de Sartre ser identificada à liberdade, é bom dizerque esse é apenas o primeiro passo. Uma vez que Sartre purificou ocampo transcendental de modo absoluto (a consciência é “intenção”do transcendente), é preciso agora explicar como essa consciência,purificada, se relaciona com o mundo. E note-se que se trata de umatarefa ingrata, afinal existe uma gama de pontos intermediários entre aconsciência intencional e o objeto físico; seria simples mostrar que umcinzeiro, por exemplo, não faz parte da consciência (ele está no mundo),mas como explicar que a lembrança que posso ter, nesse exato momento,de minha mãe, não está em minha consciência, mas é transcendente?Pior, como explicar que eu possa imaginar um centauro sem fazerreferência ao cavalo e ao homem, objetos do mundo que eu conheço,sem concluir que eu fiz a “soma” dos dois em minha consciência?

Esses problemas ocuparam um breve período do pensamentode Sartre, e foram tratados em duas obras que antecedem O Ser e oNada. Em A Imaginação Sartre mostra as falhas da concepçãoclássica da imagem; em O Imaginário o filósofo apresenta sua respostapara as questões que ele mesmo colocou.7 Trata-se de um trabalho defôlego acompanhar todos os meandros da teoria desenvolvida porSartre, mas em resumo, o que ele faz é mostrar que existem diferentes

7 A Imaginação e O Imaginário, cf. referências bibliográficas.

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níveis de relação com o mundo, desde a intenção de um objeto físico(que é visto) até as imagens que são formadas a partir, por exemplo,de uma mancha num muro. Assim, trata-se da ação da consciência queé diametralmente oposta à proximidade do analogon do objeto mesmo,ou seja, quando intenciona um objeto físico, a consciência contribui omenos possível; porém, quando se trata de uma mancha num muro, apartir da qual é possível intencionar o rosto de Jesus, por exemplo, aconsciência colabora muito. Seja como for, o filósofo mostra que éum erro considerar que a consciência possa ser entendida como umacaixa que faz a adição de imagens que, previamente, estariamarmazenadas dentro dela. Tanto a translucidez da consciência quanto aliberdade são mantidas.

Manter a consciência em sua absoluta espontaneidade e pureza,que por certo, são a base para considerá-la livre, não é suficiente. Afilosofia de Sartre, após esse percurso, poderia facilmente ser identificadaao idealismo, uma vez que passa a impressão de que o mundo podeser reduzido à imagem que dele é feita. Mesmo que Sartre tenhamostrado que a consciência é livre em relação ao objeto, como explicarque eu possa nesse exato momento intencionar essa folha em minhafrente e, no momento seguinte, de olhos fechados, intencionar a mesmafolha? Não parece que na mesma medida em que a consciência ganhouem translucidez, o mundo perdeu em realidade? Que diferença háentre a árvore, “na beira da estrada, empoeirada, rugosa”, e a árvoreque imagino? Apenas a intencionalidade da consciência não pode sersuficiente, uma vez que seu destino certo é o idealismo. Sartre precisaráresolver essa questão.

E é justamente com esse intuito que o filósofo, já no final de OImaginário, se aproxima da filosofia de Heidegger, em especial doconceito de situação. A esse respeito é preciso lembrar que o que levouSartre a aproximar-se da fenomenologia foi que ela apresentava apossibilidade de superar a antinomia do realismo e do idealismo.8 A

8 BEAUVOIR, S. A força da Idade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 138 e 188.

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intencionalidade permite libertar a consciência de quaisquer conteúdos,sejam provenientes da sensibilidade ou do senso íntimo. Está assimesboçado o primeiro momento da filosofia de Sartre que, a partir dafenomenologia de Husserl, forja um argumento que “coloca aconsciência em relação direta com o objeto”.9 O Imaginário (1940)distingue a matéria da percepção e da imaginação, passo fundamentalpara diferenciar o “real” e o “irreal”, primeira alternativa de superar oidealismo ao qual a “redução” levava. Para isso, Sartre recusa a primaziado conhecimento – o juízo é posterior à existência. Assim ele“reintegra” o homem ao mundo, já que “ser é”, e não “é pensado”. Oproblema da relação com o mundo regride até sua gênese, tem seuhorizonte levado ao âmbito pré-reflexivo – trata-se do “homem-no-mundo”, ou seja, a experiência filosófica passa a ter seu domínio naquiloque a “antecede”, na “situação” (mundo e consciência sinteticamenteunidos) anterior à cisão entre sujeito e objeto.

A “união sintética do homem com o mundo” é, para Sartre, ocampo fenomenológico por excelência; a relação da consciência como transcendente é, portanto, o “concreto”.10

Com o trabalho de depuração do campo transcendental, Sartremostra a consciência como “nada de ser” (néant) e, por isso, em relaçãosintética com o mundo. Ora, isso requer por sua vez explicar a relaçãoontológica entre consciência e mundo. O problema de teoria doconhecimento, que parecia estar na origem da antinomia do realismo e

9 O conhecimento ou pura “representação” é apenas uma das formas possíveis de minhaconsciência “desta” árvore. Posso amá-la, temê-la, odiá-la, e esse ultrapassamento daconsciência por si mesma, que se chama “intencionalidade”, se encontra no temor, noódio e no amor. [...] É uma “propriedade” da máscara japonesa ser terrível, uma inesgotável,irredutível propriedade que constitui sua natureza mesma – e não a soma de nossasreações subjetivas a um pedaço de madeira esculpida. In: SARTRE, op. cit., p. 34.10 Em O Ser e o Nada (Capítulo I) Sartre passa sem prévio aviso de temas “ontológicos”,propriamente ditos, para a análise de condutas humanas e vice-versa. Em alguns casos, aconduta é apenas a demonstração, no mundo, de teses ontológicas; noutros, a conclusãoontológica é retirada da análise das condutas. “A própria investigação nos oferece aconduta desejada: o homem que eu sou”; “se meu carro sofre uma pane, interrogarei ocarburador, as velas, etc; [...]”; “Sem dúvida, o bar, por si mesmo, com seus clientes, suasmesas, bancos, copos, sua luz, a atmosfera esfumaçada e ruídos de vozes, bandejasentrechocando-se e passos, constitui uma plenitude de ser”. In: SARTRE, J-P. L’ Être etle Néant – Essai d’ ontologie phénoménologique. Paris: Gallimard, 1943, p. 38-44.

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do idealismo, mostra-se apenas o escopo da questão: na verdade trata-se de uma “relação de ser”. No âmbito fenomênico não vai além deuma obviedade mostrar que só existe mundo porque há consciência eque a consciência existe em relação ao mundo; pior, obviedadeidealista.11 Cabe levar esse problema para seu terreno originário e, ali,apresentar a solução cabível. Passamos assim de vez a um problemamuito mais sério e mais amplo, qual seja, mostrar que a consciênciadepurada se relaciona com o mundo concreto, e não com imagens(ou com um espectro de mundo); trata-se da ontologiafenomenológica, trata-se de O Ser e o Nada.

A resposta para equacionar a liberdade humana e a noção desituação está em A Liberdade Cartesiana (1945): o homem éabsolutamente livre, mesmo que sua potência seja limitada e variável –ser homem é ser “liberdade”.12 Sendo o homem tão livre quanto Deus,a liberdade humana retoma seu caráter produtivo, não só para o erro,mas também para a verdade, as essências e seu encadeamento. Aliberdade é “o fundamento do real, e a necessidade rigorosa que aparecena ordem das verdades é, ela mesma, sustentada pela contingênciaabsoluta de um ato criador”.13 Assim sendo, trata-se apenas de identificarvontade e entendimento humanos (assim como Sartre entende queocorre com o Deus cartesiano) e, uma vez que Deus é tirado de jogo,dizer, pura e simplesmente, que é o homem quem cria o mundo? Não.O que Sartre está buscando é a possibilidade de explicar a “finitude”sem fazer referência ao “infinito”, ou seja, explicar o mundo sem quepara isso seja necessária a noção de Deus.14

Quando considerada no âmbito especificamente humano,percebe-se que é pela liberdade que há mundo. É pela negação “livre”

11 BORNHEIM, G. A. Sartre – Metafísica e Existencialismo. São Paulo: Perspectiva, 1971,p. 170.12 SARTRE, J-P. La Liberté Cartésienne in Situations I. Paris: Gallimard, 1947, p. 296.13 Idem, ibidem, p. 306.14 Sartre está procurando na liberdade divina, hipostasiada por Descartes em Deus, os“desdobramentos lógicos” da liberdade humana, ou, da “liberdade” pura e simples.Diretamente, Sartre pretende mostrar que é pelo homem que o mundo (com todo oencadeamento de essências) vem ao ser, ou seja, é pela negação que se estabelece umaordem de fenômenos denominada “mundo”.

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do homem que é engendrado o sistema de verdades, que em geral érelegada a Deus. A noção sartriana da liberdade humana é, então, aquelapela qual o homem é fundador das essências e de seu encadeamento,constituindo assim o “real” (sem a noção de Deus, obviamente). Épela liberdade irrestrita e absoluta que o real se constitui, liberdadeessa que é negativa (o homem pode dizer “não” ao ser) e ao mesmotempo produtora, afinal, é por essa livre “negação” que o mundosurge. A liberdade, enquanto “ato metafísico absoluto” é o fundamentodo ser, e o homem enquanto ser que “é liberdade”, torna-se oprincipal agente constituidor do mundo. A diferença é que se o Deuscartesiano pode livre e positivamente criar do nada, o homem criapela “negação do ser”.

Dessa feita, sendo a “produção” do mundo resultante danegação, a contradição entre liberdade absoluta e situação não é maisque aparente. Estar em situação, ao invés de um limite da liberdadetorna-se um pressuposto para que a liberdade seja exercida; mais, estarem situação é “exercer o ser livre”. Uma vez que não existe uma ordemde verdades pré-estabelecida, e é pela negação do ser que tal ordemvem ao mundo, o homem pode estar em situação e, ainda assim, serabsolutamente livre. A consciência não encontra na situação umlimitativo de sua liberdade, mas, ao contrário, “condições” para exercê-la. É por um ato humano absolutamente livre que o mundo vem aoser, o que não apenas supera a aparente contradição como, eprincipalmente, faz com que o mundo perca seu caráter de dado apriori. Ao mostrar o aspecto produtivo da negação (que além de permitirque o homem se refugie no nada, faz com que o mundo exista), Sartrepode perfeitamente manter sob uma mesma rubrica a noção de situaçãosem que isso signifique uma limitação da espontaneidade da consciência.

Em O Ser e o Nada, a liberdade é identificada à negação, ouseja, ser homem é “negar o ser”; é também pela negação que Sartreconstitui sua ontologia ou, melhor dizendo, uma vez tendo encontradodois reinos do ser incapazes de se comunicarem (ser-para-si e ser-em-si), é pela negação que Sartre mostrará que essa ruptura do ser é devida

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a uma má colocação do problema. Em resumo, a análise provisóriado fenômeno de ser empreendida na introdução de O Ser e o Nadaredunda numa dualidade entre “em-si” e “para-si”; o “ser-em-si” éabsoluto, no sentido que não pode senão ser ou, numa palavra, o em-si é; o “ser-para-si” é o que não é e não é o que é, ou seja, não hácoincidência em seu ser. Com isso, o que Sartre conseguiu foi mostrar“dois seres separados”, uma vez que da maneira como foram descritos,esses estão determinados exteriormente e só poderiam ser reunidospor um ato consciente e externo.

Porém, Sartre não entende a negação no caso da “consciênciaque somos” como uma negação externa ao ser: o para-si é, nalgumamedida, em-si; a consciência é o ser que nadifica o nada em seu ser: elaé “não”. Originariamente, a consciência “nega” o ser, e não o faz estando“fora” do ser (o espaço é uma categoria que só pode advir dessanegação originária), mas a partir do ser mesmo que ela “é”. Essa negaçãofundante é a origem do não-ser, do nada, da falta que “infesta” o sera partir do ser mesmo e faz com que haja a ruptura original, rupturaque não é dualidade (a consciência é ausência de dimensão):

Todavia, minhas reflexões me levaram principalmente a encarar ocaso que a consciência não era o que ela era, isto é, quando anegação se manifesta na homogeneidade de uma única e mesmaexistência e onde o negado retorna por si mesmo àquilo que énegado, uma vez que é um e o mesmo ser (SARTRE, 1992, p. 217).

Nesse sentido, “em fusão com o mundo, enquanto é, aconsciência escapa ao mundo e se separa dele na medida em que ela‘não é’”.15 Esse caráter duplo da consciência, que não se identifica como ser nem pode superá-lo, é resultado do surgimento da consciência,que “nasce” do ser negando-o e não é mais que essa negação; se, porum lado, a negação fosse causa de separação “efetiva” entre consciênciae ser, não haveria mais o que ser dito, afinal a consciência seria “nadaabsoluto”; por outro lado, se a consciência coincidisse com o ser,

15 SARTRE, J-P. Diário de uma guerra estranha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992,p. 223.

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também nada poderia ser dito, uma vez que esse seria o domínio deuma totalidade absoluta e indizível. Assim, mundo para Sartre não éesse “resultado”, tanto que não há mundo sem para-si, assim comonão poderia haver para-si sem em-si. Essa relação “é” o mundo, queengloba ambos pela negação, no sentido de que o para-si nega o em-si sem possibilidade de superá-lo, nem de dele se desgarrar.

Dizer que o para-si cria o mundo é dizer que ele nega o ser. A“situação” é para Sartre a “livre necessidade”, que o para-si encara emseu ser, de negar o em-si livremente e não poder, ainda que o negue“eternamente”, superá-lo; por isso o homem está condenado a serlivre. Ser-para-si é negar-se e negar o em-si, e as duas únicaspossibilidades de superação interrompem o projeto de ser do para-si,levando-o à inexistência (nada absoluto) ou a ser engolido pela totalidade(tornar-se em-si).16 A situação é, desse modo, essencial para que hajaliberdade – sem ela o para-si estaria descolado do ser, caso não seaclare o papel produtor da negatividade, o homem livre é apenas um“não”, “sem corpo”, “sem lembrança”, “sem saber”, “sem ninguém”.Além de restituir a concretude do mundo, a noção de situação devolveao homem a sua co-pertença ao ser. Assim, após esse resumo de umaparte da filosofia de Sartre, podemos entender mais claramente porqueser homem é ser liberdade. Mas, já falamos bastante sobre isso –cumpre agora tentar responder se tal filosofia pode fundamentar aeducação ou, ao menos, contribuir para a constituição de um projetoeducacional que prime pela liberdade humana.

Educação e liberdade

No sistema de pensamento de Sartre, a educação é entendida apenascomo meio de doutrinação da pior modalidade. O indivíduo, porimposição legal, é obrigado a freqüentar a escola; é submetido a umcurrículo e a uma disciplina; é forçado a fazer exames, etc. Do pontode vista sartriano, tais práticas significam uma violência sobre averdadeira liberdade e existência do indivíduo.

Benhamida (O existencialismo de Sartre e a educação).

16 SARTRE, op. cit., p. 259.

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Conforme vimos, o existencialismo leva sim à conclusão deque o homem é livre – mas há que se mediar essa liberdade, afinal acontinuidade da obra do filósofo não autoriza a simplificação grosseirade que ser livre é fazer o que se quer. Por isso, alguns teóricos buscaramem Sartre a possibilidade de fundamentar uma educação “progressista”;é o caso de Geoge Kneller e Van Cleve Morris, ambos norte-americanos, e suas pesquisas que datam do final da década de sessentae início dos anos setenta.17 Também é esse o tema do artigo de BonnieBurstow, professora do Instituto para Estudos em Educação, daUniversidade de Toronto (Canadá), além de trabalhos desenvolvidosno Brasil.18Mas seja como for, não faremos uma discussãopormenorizada de cada uma dessas teorias, afinal o teor “positivo”apresentado pelos autores é muito parecido entre si e, também,parecido com a tese que vou apresentar; assim, todos estão de algummodo presentes nesse ensaio. O que há de maior interesse é justamentea crítica à pretensão de utilizar a filosofia de Sartre para fundamentar aeducação; nesse sentido, nosso trabalho será em muito facilitado peloartigo da Drª Bonnie Burstow, haja vista que ela discute as objeções deKhemais Benhamida a esse respeito.

Benhamida afirma que educação e existencialismo sãoantagônicos, e tem razão, a julgar por aquilo que Sartre escreve nasegunda metade de O Ser e o Nada. Na introdução de sua ontologia,o filósofo define o ser como “em-si”, “si-mesmo”, “fechado em si”;nos dois capítulos seguintes ele mostra o erro de se considerar que aconsciência, por ser livre, não se relaciona com esse ser, e mostra quehá sim relação negativa entre o para-si e o em-si. Já exploramos bastanteesse tema, mas não nos referimos ao capítulo seguinte, “O Ser-para-outro”, no qual o filósofo explica as relações humanas.19 Até o momentotrata-se da relação de uma consciência com o mundo, ou seja, trata-sede apenas um indivíduo. Mas como se dá tal relação quando surge um

17 Existentialism and education e Existentialism in education, cf. referênciasbibliográficas.18 BURSTOW, B. The Sartre’s philosophy as foundation of the education, p. 171-185.19 SARTRE, op. cit., p. 272.

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Outro no horizonte do para-si? Até agora a relação entre a consciênciae o objeto foi explicada a partir da negação; mas há que se notar que ohomem nega o objeto (minha negação faz com que um cinzeiro tomesua forma “cinzeiro” pela exclusão da mesa, do ar que o rodeia, etc.)sem que o objeto o negue. A relação negativa entre o homem e o mundotem uma única via; mas como seria o encontro entre dois “para-sis”, jáque ambos se relacionam com o transcendente de modo negativo?

Está aí o sentido da frase já citada de Huis-Clos, afinal, umarelação em que o outro me negue e que eu o negue só pode secaracterizar como infernal. O resultado dessa estrutura relacional é quea solidariedade entre os homens se torna nula, na medida em que suabase é o conflito. Mais do que simplesmente ser um limite para minhaliberdade, o Outro tem como objetivo primordial tornar-me coisa,objeto entre os demais (caneta, cinzeiro, etc.). Essa questão gerou críticasde âmbito filosófico muito mais sérias do que essas deBenhamida;20 mas, por hora, concordemos com ele, e aceitemos queseria impensável buscar fundamentar uma pedagogia com base numafilosofia que redunda num mundo de “almas penadas”, onde todosos homens são medusas que buscam transformar seu próximo emuma estátua de pedra. O panorama se torna ainda mais aterrador selevarmos em conta a maneira pela qual Benhamida entende o processoeducativo: o professor deve colaborar com o aluno para que ele sedesenvolva. Como haver colaboração se o professor é um limite paraa liberdade do aluno ao mesmo tempo em que o aluno busca apossar-se da liberdade que é o professor?

Isso nos leva imediatamente a uma pergunta: podemos concordarcom Benhamida no que concerne ao conceito de educação? É certoque, conforme ele define em Educational Theory, a educação tempor base o relacionamento entre o professor e o aluno; mas não épossível perceber nessa compreensão de educação um certo rançoconservador, na medida em que o professor “auxilia” o aluno? Seria

20 É o caso das críticas de Merleau-ponty, Gerd Bornheim, Marilena Chauí, dentre outros.

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algum exagero substituir o termo auxiliar por ensinar, no sentido deque o professor traz a verdade e o aluno a acata? Ainda assim,concedemos que ele está certo que partindo da relação entre os “para-sis”, tal qual O Ser e o Nada, não é possível ir muito longe, afinal, paraque haja tal relação é preciso a concordância entre os sujeitos doprocesso educacional; mas como pensar tal situação se a filosofia deSartre se pauta pela impossibilidade de relação harmoniosa entre osseres humanos? Se para Sartre o homem “é liberdade” e o Outrobusca aprisionar seu ser, ou seja, a presença do Outro coloca emperigo a liberdade de cada um, não há nem mesmo possibilidade defalar em educação.

Mas se concordamos com Benhamida que nesse panorama seriaforçoso pensar um processo educativo, nos sentimos na obrigação deesclarecer que o pensamento de Sartre não acaba em 1943, com OSer e o Nada. É preciso lembrar que a situação extremamente difícilna qual se encontra o “para-si”, no final da ontologia é retomada naCrítica da Razão Dialética, e que ali Sartre mostra, não só que épossível a cooperação entre os homens, mas também como ela sefundamenta justamente na liberdade individual.21 A impressão passadapor Benhamida é a de que ele não travou conhecimento com essetexto; ou que ele não leva em conta a necessidade de distinguir planosespecíficos do conhecimento, sendo que a ontologia, à qual ele se refere,se resume exclusivamente ao primeiro deles. Sartre parte do Ser, uno,indiviso – o mais simples que a capacidade humana pode pensar; doser chega ao “para-si”, mais complexo e fundamento do modo deexistir do homem; desse, a situação se complica mais um pouco, comas análises do “para-outro”, que fundamenta as relações sociais. Agora,partindo do “para-si” saltar para a sociedade constituída e perguntarsobre a relação desses fundamentos com a educação “atual” é, semsombra de dúvida, desconsiderar toda metodologia de pesquisa ou, oque dá no mesmo, ignorar a obra de Sartre.

21 SARTRE, J-P. Crítica da razão dialética. Tradução de Guilherme João de Fritas Teixeira.Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p. 259.

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Se fosse tomado o devido cuidado, Benhamida veria que a obrade Sartre não ficou estagnada no “para-outro”, que ele explora e tirasuas conclusões. Na Crítica da razão dialética, Sartre mostra que osfundamentos de sua ontologia estão presentes na sociedade constituída;porém, houve um processo que exigiu que os homens cedessem sualiberdade e que, fazendo uso dessas liberdades, constituiram-se macro-estruturas, e que se formos falar de fundamentar a educação, será precisolevar em conta tal processo. Em resumo, Sartre afirma que o homemé essencialmente livre, mas que em sociedade tal liberdade foi alienada,criando a bizarra situação na qual o indivíduo sozinho, não pode maisfazer uso de sua liberdade, uma vez que ela está esmagada pelasestruturas sociais que foram criadas. Se essencialmente a relação entreos “para-sis” se dá enviesada, no sentido de que o objetivo é apossar-se da liberdade alheia, em sociedade, nem mesmo dessa liberdadeessencial os homens usufruem, haja vista que ela foi cooptada por umaestrutura mais ampla que ele. No entanto, a revolução, momento emque um grupo de homens recupera suas liberdades e se engajamlivremente em um projeto comum de mudança é sempre possível.22

Enfim, se Benhamida tivesse levado sua questão até o fim (oumesmo lido O Ser e o Nada com mais cuidado) veria que há sim nafilosofia de Sartre possibilidade de agremiação humana. Mais do queisso, veria que na ontologia tal possibilidade já estava presente no conceitode reciprocidade – e o problema seria de outra ordem. A crítica queele faz, qual seja, que não pode haver colaboração humana e por issonão pode haver processo educativo, cai por terra; o problema passariaa ser a maneira pela qual o professor reconheceria o aluno como um“ser livre” e, assim, de que modo seria possível haver educação semque o professor limite tal liberdade. Noutras palavras, o que Benhamidaoblitera é que, em se tratando da ontologia de Sartre, é possível simque o professor “colabore” com o aluno, desde que essa colaboraçãotenha como objetivo essencial reconhecer o aluno como “umaliberdade”, e não como um ser ignorante que deve ser “auxiliado”.

22 Crítica da Razão Dialética, livro II, nº 1: o Grupo em Fusão, p. 450 ss.

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Mesmo que a crítica de Benhamida possa ser colocada em xequejusto em seu fundamento, vejamos sua continuidade: ainda segundoele a filosofia de Sartre mostra que cada indivíduo se escolhe a partirde seu projeto. Ora, em O Ser e o Nada, o projeto do “para-si” écoincidir com seu ser, ao mesmo tempo em que continua conscientede si. Em vista disso, na medida em que dois projetos jamais coincidem,a “única relação possível entre dois indivíduos é o conflito”.23 A primeiratentação que temos, e por isso já nos referimos às incompreensões esimplificações do pensamento de Sartre, é de concordar com isso.Mas, de novo é preciso lembrar que ele está confundindo o planoontológico e o plano existencial. Há sim concordância de projetosexistenciais, pois, de outro modo, como poderia ter ocorrido aRevolução Francesa? Se milhares de liberdades não tivessemconcordado que aquela situação era inaceitável e não tivessem seengajado nessa causa, livremente e sob pena de perder a vida, nãoteríamos jamais a “queda da Bastilha”. Além disso, no plano existencial,é perfeitamente possível que, uma vez que a liberdade de todos sejarespeitada, haja um projeto educacional que sirva tanto ao aluno quantoao professor. E se isso envolver mais liberdades (pais, instituição, MEC,etc.) tanto melhor!

Porém, se o processo for pensado de cima para baixo, de modocentralizador e autoritário, não há mesmo qualquer possibilidade deequacionar a liberdade e a educação. Isso reforça nossa suspeita deconservadorismo de Benhamida, principalmente quando se nota asconclusões que ele tira desse engodo: uma vez que não há comunhãoentre os homens, não pode haver compreensão e assim, é impossívelhaver critérios, sejam objetivos, sejam subjetivos, para o processo deaprendizagem. Noutras palavras, o professor não teria qualquer meiopara se comunicar com o aluno e “auxiliá-lo”; e ele ainda vai maislonge, afinal, ainda que houvesse possibilidade de comunicação entreo professor e o aluno, Sartre afirma que não há como determinar oque é o Bem e o que é Mal e, desse modo, não haveria parâmetros

23 BENHAMIDA apud. BURSTOW, p. 179.

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para ensinar. Cada indivíduo, livremente, escolheria seus valores – nãohá Moral comum, não há, enfim, sociedade.

Com respeito a haver ou não sociedade, já mostramos que acontinuidade da obra de Sartre contradiz a interpretação de Benhamida.E mais uma vez podemos concordar com ele que a filosofia de Sartrenão permite que haja uma moral que tenha sua base transcendente eque seja válida para todos e em todas as situações. Porém, isso não sedeve à diferença dos projetos que cada homem estabelece para si, massim à inexistência, para Sartre, de uma entidade superior ao homemque possa estabelecer previamente os valores aos quais todos devamse aderir. Já vimos isso com respeito ao texto A liberdade Cartesiana(não há Deus); mas vamos explorar um pouco mais essa idéia. Paraisso recorramos a um texto de 1952, publicado entre O Ser e oNada, que Benhamida critica, e Crítica da Razão Dialética que,parece, ele desconhece.

Em Saint Genet, ator e mártir, Sartre analisa a situação real deum indivíduo, Genet, que é livre e ainda assim se vê coagido pelamoral maniqueísta da burguesia do início do século XX.24 Essa obra émuito mais rica do que o único aspecto que iremos aqui abordar, masnela Sartre se refere à moral criada pelos proprietários de terra, quedefinem o ser pelo ter; Genet é adotado por uma dessas famílias e,porque não tem para ser, deliberadamente rouba. Um dado momento,quando é pego roubando, ele é imediatamente condenado por todos– aqueles mesmos que definiram o ser pelo ter e que lhe negarampropriedades, afinal, Genet era órfão e foi adotado por proprietários.Ele viveria como um agregado, mas jamais receberia qualquerpropriedade por herança. O que podemos tirar desse breve eesquemático exemplo? Que uma ética humana comum é impossível,como diz Benhamida, ou que qualquer ética que não considere todosos homens como “liberdades que merecem ser respeitadas” écondenável? Sartre não nega que possa haver valores sociais – esse éapenas um dos exemplos que mostra isso. Mas ele faz ver que não há,

24 SARTRE, J-P. Saint Genet, comedien et martyr. Paris: Gallimard, 1952

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isso sim, uma moral que esteja inscrita na natureza ou que seja diretamenteditada por um ser superior que regeria a vida dos homens.

Ao contrário, Sartre mostra que toda moral tem sua origem nohomem, nos valores que determinada sociedade cria para suamanutenção – Sartre mostra que esses valores são hipostasiados emDeus (ou na “lei”) justamente como meio de forçar todos os homens,os que se beneficiam e os que sofrem com isso, a aceitá-la. De outromodo, como explicar o “direito divino dos reis” na Idade Média, e o“direito divino da propriedade e do capital” nos dias de hoje? Seráque todos os homens concordam com isso, ou uma minoria cria taisvalores e os impõe aos demais? A tomarmos pelas manifestaçõescontrárias aos encontros do G-8 ou pela revolta generalizada contra oprocesso de globalização presente em todos os países do mundo,podemos identificar claramente essa crítica: a liberdade da maioriaestá alienada aos interesses de alguns, ainda que a todos sejam pregadasas verdades do neoliberalismo.

Mas Benhamida encontra nessa crítica apenas uma razão parafundamentar sua tese de que o pensamento sartriano não condiz comnenhuma pedagogia. Assim, vamos adiante e tentemos um contraargumento: se para ele o processo se resume ao auxílio que o professordeve propiciar ao aluno, poderíamos dizer com ele (conforme Knellere Morris) que desse modo o professor poderia ajudar o aluno “a serlivre”. A tarefa do professor seria, portanto, auxiliar o aluno a entenderque ele é essencialmente livre, e que sua situação se deve à força dasmacro-estruturas criadas pelo homem (elas não são o Bem, nem sãoeternas), e que cabe a ele modificá-la ou aceitá-la. Mas segundoBenhamida, o indivíduo deve escolher seu ser e a “ajuda” seria umaimposição que minimizaria a liberdade; o aluno agiria de má-fé, afinalele estaria aceitando encenar um papel que, a princípio, contraria seuser. Nesse caso hipotético, seria mesmo assim?

Não nos parece. Primeiro, e por isso se trata de uma situaçãohipotética, haveria reciprocidade pela qual o professor reconheceria oaluno como liberdade. Não se trata de encenar nenhum papel se o

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indivíduo, oprimido por sua situação, tiver acesso aos meios paradescobrir-se essencialmente livre e vítima daquilo que lhe é imposto; ecomo o caso é hipotético, poderíamos aventar a possibilidade de que,uma vez feita essa descoberta, o aluno conclua que o processo que ofez conhecer sua liberdade é impositivo. Ainda assim ele estaria livrepara abandonar a escola, porém certo da outra face da moeda: namesma medida em que o homem é livre ele é responsável. Asconseqüências dessa decisão seriam imputadas unicamente a ele, nãocabendo ao professor nenhuma responsabilidade; de outro lado, oprofessor que age segundo a “lei” é responsável por jamais trabalharpela emancipação do aluno e, assim, não pode reclamar de serconsiderado por aquele “um objeto que ensina”.

Um último ponto da crítica de Benhamida nos chama atenção.Tudo o que cogitamos até agora foi pensado para a educação dehomens – de pessoas adultas que de algum modo estão em plenaposse de sua consciência e aptos a fazer suas próprias escolhas. Mas oque dizer da educação infantil? Nesse caso, em que a situação é hipotética,podemos argumentar que em geral o adulto escolhe se quer ou nãoestudar;25 mais do que isso, ele escolhe seu curso, o que garante umamargem maior de liberdade. Mas e com respeito às crianças? Benhamidanão está alheio a esse pormenor e é categórico: no universo de Sartrenão há crianças. Sendo assim, não haveria qualquer possibilidade, apartir de tal teoria, para falar em educação infantil. Mais uma vez oautor ficou preso apenas a O Ser e o Nada; é verdade que Sartre nãotematiza especificamente a educação em nenhum de seus textos; tambémé verdade que a criança é escassa na ontologia e nem mesmo aparece naCrítica da razão dialética. Mas isso é razão suficiente para tal afirmação?

25 Trata-se de uma situação hipotética que visa discutir a possibilidade ou não de utilizara liberdade como fundamento epistemológico da educação. É claro que existem situações,especialmente financeiras, que não permitem ao aluno fazer tal escolha. Não entraremosnessa questão, mas a indicação para equacionar tal problema já foi apontada: nenhumaestruturação social ou econômica é eterna, e pode ser mudada a qualquer momento. Bastaque haja o engajamento livre e consciente de um número suficiente de liberdade (grupoem fusão) para, por exemplo, no caso do Brasil, que ostenta uma das maiores desigualdadessociais do mundo, colocar por terra tal estrutura e, sob seus escombros, erigir uma outra,na qual de fato o aluno possa escolher entre estudar ou não.

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Não. Em O Ser e o Nada, Sartre afirma que cada indivíduo,antes de sua história, vive sua “proto-história”; nesse período cada umapenas lida com aquilo que encontra ao seu redor.26 Posteriormente,tem-se início sua história individual em virtude da dialética (conflito)que se dá entre a liberdade e a resistência das coisas. Apenas nessemomento o indivíduo faz sua escolha fundamental (escolha de si) eassim dá vazão a seu projeto; mas muito cedo, há que se notar, essahistória começará a se ampliar, até o momento em que ela se confundirácom a história da humanidade. Como exemplo, podemos lembrar ocaso de Genet que, sem bens num mundo de proprietários, decidiuroubar para ter; ao ser pego, ele assume seu “ser ladrão”. Trata-se deum desvio, não há dúvidas, mas a escolha fundamental que marca amalfadada história de Genet tem sua origem num episódio ocorridona vida do poeta quando ele era criança.

Mas Saint Genet não é o único exemplo que poderíamos utilizarpara refutar essa afirmação de Benhamida.27 Há, ainda, As Palavras,livro no qual Sartre narra desde os primeiros momentos seu contatocom o universo da literatura; ele era uma criança e, de modoautobiográfico, ele nos mostra como sua escolha fundamental pelaspalavras se constituiu. O Idiota de Família é um outro exemplo clarode que há crianças no universo de Sartre, afinal ali ele examina a infânciade Flaubert, e mostra que sua genialidade literária se deve à escolha queele fez de si mesmo. Por fim, poderíamos citar ainda Baudelaire que,em seu primeiro capítulo, trata da infância do escritor. Assim, é umairresponsabilidade afirmar que “no universo de Sartre não há espaçopara a infância”. De modo mais comedido, poderíamos dizer que acriança não é o objeto específico de sua indagação filosófica e que aeducação infantil jamais o preocupou. Porém, excluir a infância de seupensamento já é um pouco demais.

Enfim, as objeções de Benhamida a Sartre têm como fundamentoa liberdade, justamente aquela que, a nosso ver, poderia contribuir noprocesso educativo. Essa objeção, por sua vez, se desdobra em três,26 SARTRE, op. cit., p. 714.27 Pela ordem: As palavras, L’Idiot de la famille e Baudelaire, cf. bibliografia.

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quais sejam, a impossibilidade de relações humanas, o conflito presenteem toda relação humana e a inexistência da infância em seu universode pensamento. Porém ser homem é ser liberdade em situação; afacticidade do para-si não permite, de modo algum, entender aliberdade essencial como possibilidade de se fazer o que se quer, masao contrário, responsabiliza cada indivíduo por aquilo que ele faz “como que fizeram dele”. Se “o fizeram” despossado numa sociedade deproprietários, ele pode superar tal situação; se “o fizeram” deficientefísico, ele deve se fazer respeitado e útil, e assim por diante. Pode-sedizer que “não é fácil” – concordo; pode-se dizer “é impossível”;discordo plenamente. Os mecanismos para uma mudança estrutural Sartrejá os mostrou, e a possibilidade para qualquer mudança pessoal está namão de cada um, fundamentada na sua irrestrita e absoluta liberdade.

Ser homem é ser negação do ser; a ruptura que encontramos nomais essencial de nossa existência mostra que não há causalidade, nãohá determinismo psíquico ou social, não há limites físicos que possamtolher a liberdade do homem. É verdade que essa afirmação exigebom senso de quem ouve e mediação de quem diz: não é mesmopossível que alguém com as duas pernas amputadas ande “com suaspernas”; mas ela é livre para aceitar o que “fazem dela” (inútil, deficiente,dispensável) ou nadar e ganhar várias medalhas de ouro nas Para-olimpíadas. De modo ainda mais direto e realista, ela pode lutar paraque os demais tornem adequadas as cidades para que ela se locomovacom sua cadeira, ou ficar em casa resmungando. Tudo passa pela decisãoindividual – e o mais importante, também essa decisão é corroídapelo nada que o homem é, podendo mudar a cada instante.

Sartre não é insano, como possa parecer quando ele fala queestamos condenados à liberdade. Existem limites fáticos para todosos homens; se por isso quisemos entender que os obstáculos queencontramos são “determinantes”, estamos de acordo com a filosofiade Sartre. É um fato que a parede não pode ser atravessada. Mas afilosofia de Sartre é ainda mais rica, afinal garante para cada indivíduoa liberdade fundamental para formular seu projeto e, desse modo,

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“escolher-se”. A confusão se faz porque para Sartre, a situação écondição para que sejamos livres; sem qualquer resistência jamaissaberíamos se estamos vivendo ou sonhando. O problema é quedo mesmo modo pelo qual se entende uma determinação (não terpernas) como intransponível, entende-se que a sobre-determinação(inválido) também o é. Contra esse conformismo e quietismo oExistencialismo afirma que ser homem é ser liberdade, o quesignifica dizer que as “possibilidades”, seja de cada um, seja dahumanidade, estão sempre abertas.

Nossa conclusão não é novidade para ninguém: a filosofia deSartre pode sim fundamentar epistemologicamente um projetoeducacional. E o caminho para tal projeto se encontra na estrutura do“ser homem” (para-si), apresentada por Sartre. Sua filosofia nos falade liberdade, de autenticidade e de responsabilidade. E para ser autênticoe responsável por seus atos, torna-se indispensável a incômoda presença(e ação) do Outro, muito longe da postura, essa sim pessimista, deBenhamida. Assim, deixo para o leitor e para os especialistas da área atarefa, se isso valer a pena, de buscar as devidas respostas faltantes.Gostaria ainda de dizer que o artigo de Benhamida foi utilizado comocontraponto para essa fala; quero registrar aqui que as críticas a eledirigidas devem-se unicamente às conclusões que ele tira do pensamentode Sartre. O mais importante no que se refere ao processo educativo,ao menos se levarmos em conta o que dissemos aqui (e por isso façoessa ressalva), é buscar entender e jamais trair um pensamento, qualquerque seja ele. As conclusões a que chego se devem ao que Benhamidaescreveu sobre Sartre e àquilo que Sartre efetivamente escreveu, quecontraria o artigo em questão. E se for o caso de dar minha opinião,sou favorável em gênero e grau à tese de Bonnie Burstow: “defendo ouso que educadores, como Morris e Kneller, têm feito da filosofiasartriana. Convido outros a continuar esse trabalho. E sugiro que asapreensões de críticos como Benhamida podem ser deixadas de ladocom toda segurança”.28

28 BURSTOW, op. cit., p. 183.

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EXISTENTIALISME ET ÉDUCATION – LA PHILOSOPHIESARTRIENNE DE LA LIBERTÉ COMME

FONDEMENT PÉDAGOGIQUE?

Résumé: Dans cet article, on a le but principal de répondre à la question suivante:la philosophie sartrienne de la liberté peut-elle être à la base d’une pédagogie?Pour y répondre, on a avant tout besoin de comprendre la notion de libertédans la philosophie de Sartre, son fondement ontologique et son explicitationphénoménologique. Ensuite, il faudra traiter des difficultés courantes d’unetelle liberté, et ainsi chercher à construire une pédagogie progressiste fondée surle respect de la liberté individuelle, qui est, d’après Sartre, la raison d’être de tousles hommes.

Mots-clés: Sartre. Éducation. Liberté.

Referências bibliográficas

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BENHAMIDA, K. O existencialismo de Sartre e a educação: a faltade fundamentação para as relações humanas. Educational Theory,Illinois (EUA), n. 23, p. 230-239, 2000.

BORNHEIM, G. A. Sartre – metafísica e existencialismo. São Paulo:Perspectiva, 1971.

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Luciano Donizetti da Silva200

SARTRE, J-P. Baudelaire. Paris: Gallimard, 1975.

______. Crítica da razão dialética. Tradução de Guilherme Joãode Fritas Teixeira. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

______. Diário de uma guerra estranha. Rio de Janeiro: NovaFronteira, 1992.

______. Huis clos. Paris: Gallimard, 1947.

______. La Liberté Cartésienne in Situations I. Paris: Gallimard,1947.

______. La transcendance de l’ego: esquisse d’une descriptionphénoménologique. Paris: Recherches Philosophiques, 1937.

______. O ser e o nada – ensaio de ontologia fenomenológica.Tradução e notas de Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, 1997.

______. L’Idiot de la famille. Paris: Gallimard, 1988. 3 v.

______. O existencialismo é um humanismo. Tradução de VergílioFerreira. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores, v.Sartre).

______. O imaginário. Tradução de Duda Machado. São Paulo:Ática, 1996.

______. Saint Genet – ator e mártir. Tradução de Lucy Guimarães.Petrópolis: Vozes, 2002.

______. Une Idée Fondamentale de la Phénoménologie deHusserl: L’Intentionnalite. Situations I. Paris: Gallimard, 1947.

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NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS

O Aprender é uma publicação que pretende divulgar trabalhossobre o processo educacional em suas variáveis filosóficas oupsicológicas, ou contribuições de outras áreas de conhecimento, deacordo com o enfoque da publicação.

Dada a abrangência do processo educacional, o Aprender defineenfoques temáticos para melhor orientar o conteúdo dos trabalhoscandidatos à publicação:

Filosofia da Educação:

• A aprendizagem como problema filosófico: como e em quecondições se dão a transmissão, construção ou apropriação doconhecimento.• A filosofia e a instituição escolar.• A abordagem teórica das diferentes escolas pedagógicas.• Diferentes conceitos e concepções de educação.• Educação e Filosofia: as correntes filosóficas e sua relaçãocom processos educacionais.• Ética e Educação: a ética como fundamento para a formaçãoe a aprendizagem, a ética profissional do educador, entre outros.• O papel da filosofia nas transformações da educaçãocontemporânea.• Novas tendências e tecnologias de ensino: aspectos filosóficos.

Psicologia da Educação:

• Aprendizagem como problema psicológico: como e em quecondições se dão a transmissão, construção ou apropriação doconhecimento.• Aspectos psicológicos voltados para o estudo do campo dasnecessidades educativas especiais: dificuldades de aprendizagem,

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educação especial, preparo e formação de professores, entreoutros.• Escolas psicológicas e sua relação com processos educacionais.• Novas tendências e tecnologias de ensino: aspectospsicopedagógicos.• Psicanálise e Educação.• Psicologia Escolar/Educacional: trabalho docente, processoensino-aprendizagem, aquisição da leitura e da escrita, interaçãoprofessor-aluno, cultura escolar, atuação do psicólogo na escola,entre outros.• Psicologia do Desenvolvimento e Educação.• Relações humanas na escola.• Trabalho e Educação.

Obs.: Somente serão aceitos trabalhos que se enquadrem em um oumais enfoques temáticos citados acima.

Envio dos trabalhos:Os trabalhos candidatos à publicação deverão ser enviados por

e-mail, com o texto anexo, digitado em Word for Windows, para osseguintes endereços eletrônicos:[email protected] e [email protected] ainda, por correio, contendo uma cópia impressa em papel tamanhoA4, e uma cópia em disquete, para o endereço abaixo:Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb)Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH)APRENDER – Caderno de Filosofia e Psicologia da EducaçãoEstrada do Bem Querer, Km 445083-900 – Vitória da Conquista – Bahia

Tanto no envio por endereço eletrônico ou pelo correio, ostrabalhos deverão vir acompanhados por uma página ou folha à parte,contendo os seguintes dados de identificação:

• Título do trabalho acompanhado pelo resumo e palavras-chave em português;

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• Nome completo do(s) autor(es);• Instituição de origem e função que está exercendo;• Endereço eletrônico e telefone para contatos.

Formatação dos trabalhos:

Os trabalhos candidatos à publicação deverão ser digitados daseguinte forma:1. Título do trabalho em fonte Arial, tamanho 12, em negrito e caixaalta, centralizado no alto da página inicial.2. Dois espaços abaixo do título do trabalho, deverá vir o nome do(s)autor(es) em fonte Times New Roman, tamanho 12, em itálico, alinhadoà direita da página, e somente com as primeiras letras em maiúsculo.3. Dois espaços abaixo da indicação do(s) autor(es) do trabalho, deverávir o Resumo e as Palavras-Chave em português e outra em inglês oufrancês.4. Os Resumos deverão ter no mínimo 50 (cinqüenta) palavras e aspalavras-chave deverão ser no máximo 5 (cinco).5. Títulos secundários em fonte Times New Roman, tamanho 12, emnegrito, somente com as primeiras letras em maiúsculo, e alinhadas àesquerda da página (não devem ser numeradas).6. A fonte do corpo do texto deverá ser Times New Roman, tamanho12, com espaçamento de 1,5 entre linhas.7. A configuração da página onde será digitado o trabalho deverá serde 2 (dois) centímetros nas bordas superior, inferior, direita e esquerda,com papel tamanho A4 e orientação tipo retrato.8. Os trabalhos deverão ser digitados em Word for Windows.9. Figuras e fotos deverão vir no corpo do texto, em local desejadopelo autor, somente em preto e branco.10. Gráficos deverão vir no final do trabalho, somente em preto ebranco, de maneira legível e com legendas por extenso.11. Os trabalhos deverão conter no máximo 20 (vinte) páginas,excluindo-se a referência bibliográfica e o resumo em língua estrangeira.

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EQUIPE TÉCNICA

Coordenação editorialJacinto Braz David Filho

CapaLuiz Evandro de Souza Ribeiro

Imagem: Child with Crayons © Royalty-Free/Corbis.http://pro.corbis.com/search/searchframe.aspx

Editoração eletrônica e acompanhamento gráficoAna Cristina Novais Menezes

DRT-BA 1613

Revisão de linguagem (Português)Marluce de Santana Vieira

Normalização técnicaJacinto Braz David Filho

Revisão das traduções:

InglêsDiógenes Cândido de Lima

FrancêsCarlos Alberto Almeida Ferraz e Araújo

[email protected]

Impresso na Empresa Gráfica da BahiaNa tipologia Garamond 11/15/papel offset 80g/m²

Em janeiro de 2006.

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