a outra preparação do actor

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    A outrapreparao do actor:

    ensaio sobre o panorama do actor no simbolismo e expressionismo

    Catarina Mller

    Eriam Schoenardie

    Embora demarcadas por muitos pontos ideolgicos em comum, as diferenas estticasentre simbolismo e expressionismo merecem, em primeiro momento, uma maiorateno do que a suas similaridades. Isso porque enquanto o teatro simbolista se mostraesttico (imvel, fixo), o drama expressionista acima de tudo exttico (o estado dextase). A dualidade entre a proximidade gramatical dos dois termos e a sua distnciasemntica talvez seja uma das melhores formas de elucidarmos as fronteiras entre estascorrentes estticas. ao analisar especificamente a hierarquia e o trabalho do actor noespectculo que poderemos tirar concluses no s sobre tais vanguardas, mas tambmsobre as suas contaminaes na arte contempornea. Para entender a arte do presente

    preciso voltar os nossos olhos para o passado; e assim que chegamos aos escritos deKleist e reflectimos sobre os possveis princpios tcnicos do movimento do actor.

    Palavras-chave: Kleist marionete simbolismo expressionismo anti-naturalismo

    Em 1810, ao escrever o breve texto ber das Marionettentheater1, Heinrich von

    Kleist j chamava a ateno para questes que viriam voga cem anos depois, mas que

    precisariam de quase dois sculos para serem razoavelmente compreendidas. certo

    afirmar que, se analisado com cuidado, o texto quase que metafsico do escritor alemo

    chega at ns como um documento extremamente premonitrio. Afinal, por detrs de

    metforas o que encontramos so observaes precisas da inquietao frente a uma

    forma da arte descompassada aos olhos de Kleist. Era preciso consertar essa mquina,

    pr as suas engrenagens a funcionar conjuntamente, e nada seria mais apropriado do que

    apelar ao maquinista. (...) os movimentos dos dedos [do maquinista], pelo contrrio,tm relaes sutis com os bonecos que esto ligados a eles (Kleist, 1952: 5). Kleist

    busca na figura do maquinista uma metfora para o que se viria a transformar no

    trabalho do encenador, no enquanto manipulador, mas como educador do actor. E se,

    como veremos a seguir, a figura do encenador ganha forma no simbolismo e afirmada

    no expressionismo, podemos dizer que Kleist j profetizava a necessidade de um novo

    artista em tempos muito mais distantes do que aqueles que julgamos partida.

    1Em portugus: Sobre o Teatro das Marionetes.

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    Mas, como mencionamos na apresentao deste artigo, na esfera do movimento

    do actor-bailarino que poderemos tecer maiores interpretaes sobre a teoria da

    organicidade e conscincia fsica de Kleist. Falamos neste caso num movimento que

    pudesse ter toda a leveza de um ser vivo e toda a mecnica de um ser divino. O ensaio

    filosfico prope, atravs das falas do bailarino, um movimento que possa de alguma

    forma tentar igualar um boneco. Pega na ideia de no saber, de desconhecer o

    movimento que ir executar ao mesmo tempo que este s deve acontecer quando

    realmente justificado. Kleist idealiza um actor que seja transmissor de uma mensagem

    alm-homem.

    Cada movimento, disse ele, tem o seu centro de gravidade; basta dirigir este no interiorda figura: os membros, que no passam de pndulas, obedecem mecanicamente, sem o

    auxlio de ningum.(Kleist, 1952: 4)

    O centro de gravidade do corpo um conceito por vezes estranho ao actor, para

    um bailarino o centro vertical fundamental. Se o centro do corpo no estiver forte e

    no se deslocar para se posicionar na parte correcta do corpo ele no conseguir nem o

    equilbrio nem o controle necessrio para danar.2 Ao actor compete compreender a

    mecnica do corpo e ser sensvel para que os membros possam responder alterao do

    centro de gravidade e ao mesmo tempo reagir aos impulsos fsicos do corpo em

    movimento.3

    Um movimento que se distncia do espirituoso, do dramtico, do emocional, a

    independncia entre o corpo e a palavra, as marionetes seriam um dia esvaziadas desse

    ultimo vestgio de esprito () a sua dana passaria inteiramente para o campo da

    mecnica(Kleist, 1952: 5). A marionete uma proposta a um movimento autnomo e

    distante do quotidiano dos homens. No texto, o bailarino menciona uma desconstruo

    do movimento. Com o exemplo de uma prtese na perna, afirma que quando um

    homem com uma perna mecnica se move o circulo dos movimentos , sem dvida,limitado, mas aqueles de que dispem so executados com uma calma, uma leveza, uma

    graa (Kleist, 1952: 6). A ideia de deformao de uma parte do corpo pode suscitar

    2 Como exemplo, para a perna ser elevada altura da cabea, o centro do corpo tem de serdeslocado para cima da perna base, que sustenta o corpo. Os membros adaptam-se ao centro docorpo onde a perna que est no ar faz contrapeso com o brao oposto. Esta relao entre osmembros e o centro segue uma lgica mecnica conhecida a qualquer bailarino ou ginasta.3Tomemos como exemplo o trabalho fsico da personagem Nosferatu (NOSFERATU, 1922:003453) onde o centro do corpo elevado para a altura dos ombros e puxado para a frente,dando quase a sensao de ser pendurado. As suas pernas movem-se de forma mecnica, com o

    mnimo de resistncia gravidade. Isto pode ser uma das muitas formas de dar vida marionetede Kleist.

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    todo um trabalho para o actor onde este seja afectado mecanicamente e no

    emocionalmente, fazendo uso de uma limitao que o torna mais esttico (factor to

    importante para os simbolistas).

    Os membros da marioneat so apenas pndulos que seguem a pura lei da

    gravitao, uma virtude excelente que procuramos, em vo, na maioria de nossos

    bailarinos (Kleist, 1952: 7). Aqui faz referncia ao trabalho exaustivo na dana

    clssica, que pretende que o brao seja independente do ombro.4 impossvel chegar a

    um ponto de independncia total entre os membros e as articulaes assim como

    impossvel que o movimento humano no tenha resistncia gravidade; ao tentarmos

    deixar a resistncia perdemos a independncia dos membros.

    Kleist lembra o impossvel ao homem quando o bailarino explica que esses

    bonecos tem vantagem de escapar fora da gravidade. Nada sabem da inrcia de

    matria, dessa qualidade das mais contrrias, porque a fora que os levanta para cima

    maior que a fora que os mantm presos terra (Kleist, 1952: 8). Este facto ser

    sempre imbatvel: o homem est sobre as leis da gravidade. O trabalho do corpo do

    actor preso ao cho, a marionete precisamente o oposto. Kleist visiona a habilidade

    de ser livre da gravidade ao mesmo tempo que se reage mesma de forma mais

    orgnica que algum homem possa fazer. Pem-se ento ao actor a tarefa de se mover

    como um boneco, sendo ao ser de carne e osso impossvel quebrar as suas prprias

    regras de existncia.

    Num movimento dotado de vontade prpria vemos que no mundo orgnico,

    quanto mais se enfraquece o poder de reflexo, mais transparece dele a graa radiante e

    dominadora (Kleist, 1952: 12). Kleist exemplifica esta capacidade com um urso que

    numa luta contra um humano no ligava nenhuma s minhas fintas: e de p, olhos nos

    meus olhos, como se pudesse ler em minha alma a pata erguia para defender-se, no se

    mexia se meus golpes no fossem reais(Kleist, 1952: 11). Ele idealiza um movimentoque no seja preso a uma formatao consciente, o movimento cria-se de forma

    orgnica e executa-se de forma mecnica.

    [o boneco] nunca seria afetado. Porque a afetao, como o Sr. sabe, surge quando aalma (vis motrix5) se encontra em um ponto que no o centro de gravidade domovimento (Kleist, 1952: 7).

    4Isto exige que foras contrrias (neste caso os msculos do membro que exercem fora parasustentar o brao e o trapzio que faz presso para que o ombro se mantenha no mesmo sitio)trabalhem exaustivamente.5Em latim no original: fora motriz.

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    Podemos fazer e dizer qualquer coisa ao redor de uma marionete, mas a reaco

    de seu centro de gravidade s se d se estabelecemos um real contato com ela, pois o

    movimento desta acontece nica e somente em decorrncia da fora que aplicamos

    sobre ela. Ou seja, se empurramos uma marionete, o seu balanar ser o mais orgnico

    j visto, pois trata-se da reaco em seu estado mais puro, substituindo a afectao das

    emoes e dos psicologismos pela simples graciosidade da reaco orgnica. Como

    Kleist d a entender em seu texto, a marionete s reage quando realmente necessrio;

    e esta a condio de ser inanimado to importante que escapa existncia humana.

    Sem ela, estamos fadados a cair no erro consciente ou no acerto ingnuo. Pois enquanto

    a graciosidade do movimento reside na sintonia entre o interior e o exterior, a afectao

    que o actor revela em cena se caracteriza exatamente como elemento antagnico destavirtude.

    (...) a graciosidade, depois de, por assim dizer, o conhecimento ter atravessado o infinito,volta a apresentar-se; e de tal maneira que surge em simultneo e de modo mais puronaquela estrutura de um corpo humano que ou no possui conscincia alguma, ou possuiuma conscincia infinita(Kleist, 2010: s/p).

    Kleist chama a nossa ateno para dois pontos: num extremo est o no saber e

    num outro o conhecimento total. O contraditrio que oposies podem convergir na

    mesma qualidade expressiva, pois s a expresso corporal elevada ao mximo doconhecimento tcnico pode igualar a beleza do movimento executado pela primeira vez.

    A obsesso pela beleza destri a graciosidade da arte, pois esta acidental,reside na

    espontaneidade. A referncia bblica (a queda do homem), ento, invocada como uma

    representao mtica do comportamento humano na transio entre a inocncia e a

    rvore do Conhecimento.Ao bailarino cabe associar estes dois opostos, fazendo um

    balano entre a matria e o esprito.

    Em ltimas palavras, na histria enumeram-se pontes chave sobre o movimentohumano e mecnico, estes apresentam contrastes incrveis, como a descrio (quase

    tcnica) dos centros de energia da marionete que deveriam ser mais orgnicos, da

    mesma maneira que o bailarino deve libertar-se do cho e da resistncia gravidade. O

    texto de Kleist d pontos de partida para uma possvel investigao do movimento, onde

    o actor se apresenta como chave a este projecto tcnico. Uma soluo aparentemente

    simples: tirar dos movimentos o mximo de naturalidade possvel, preservando s o que

    orgnico, o que s pode existir como reflexo de uma espontaneidade mecnica que

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    desconhece o movimento e apresenta controlo total sobre o mesmo. Tais apontamentos

    caram no esquecimento por bastante tempo, podia-se pensar que haviam morrido com

    seu autor um ano depois de escritos, quando Kleist dispara em si mesmo nas margens

    do Kleiner Wannsee6. ento que, avanando quase um sculo, nos deparamos com o

    nascimento do simbolismo, onde o anseio por uma arte nova faz com que as ideias do

    terico sejam revisitadas, directa ou indirectamente.

    Uma das primeiras correntes anti-naturalistas a se formar, o simbolismo ocupou-

    se de tragdias quotidianas, onde ambincias e atmosferas criadas em palco

    normalmente prevaleciam sobre a ideia do conflito dramtico aristotlico. Em muitas

    das peas do perodo o conflito no est conectado com a aco cnica, algo que se

    propaga numa esfera mais interior, dando origem a textos que, em alguns casos, se

    caracterizam como drama no feito para a representao ou poema para no ser

    dramatizado (Aslan, 2010: 94). Numa viso sintetizadora, podemos afirmar que a

    proposta era associar o poder imagticodo teatro com a poetizao da palavra, falada

    em seu grau mximo de beleza e significado. A poesia era, sem dvida, o elemento que

    ali tinha maior importncia um dos motivos para o simbolismo nunca conhecer o

    apogeu nos palcos foi certamente por se opor essncia da aco no teatro. Foi, antes de

    mais nada, uma arte formada de almas enaltecidas e corpos esquecidos (idem). Ao

    actor, basicamente, competia verbalizar as tais palavras sagradas sem deixar que a sua

    corporalidade atrapalhasse a perpetuao do smbolo, num mnimo de jogo exterior e

    mximo de tenso interior. Nessa lgica, o menor gesto podia exprimir a maior emoo,

    o que exigia que o espectador tivesse que, praticamente, vero interior o actor.

    [...] alguma coisa de Hamlet morreu para ns no dia em que o vimos morrer no

    palco. O espectro de um ator o destronou (Maeterlinck apudAslan, 2010: 93). Nas

    palavras de Maeterlinck, um dos dramaturgos simbolistas mais influentes, vemos o

    descontentamento com o trabalho do actor no momento em que este personifica Hamlet. como se quisesse dizer que a representao da personagem nunca chegaria altura do

    heri que Shakespeare concebeu no plano literrio. Ser que, ento, precisaramos de

    uma outra espcie de ser para representar Hamlet? Sim. Segundo a ideologia simbolista,

    Hamlet estaria mais bem representado com um conjunto de tcnicas que escapavam

    expresso humana, o que fez com que o movimento, aos poucos, se fosse revelando

    como uma vanguarda baseada numa utopia que nunca se realizaria por completo. Ainda

    6Canal formado por um conjunto de pequenos lagos, localizado nos subrbios a sudoeste doBerlim.

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    assim, tal utopia faria nascer o sentimento de que existiam novos caminhos a serem

    explorados; e se as direes apontadas pelo simbolismo no se mostraram percorrveis,

    outras trajectrias acabariam por ser encontradas nessa busca. O primeiro nome que nos

    pode vir mente o de Edward Gordon Craig e a sua idealizao da bermarionette7.

    Quer os aplausos estoirem em trovoada ou se percam isolados, a marionnette no secomove; os seus gestos no se precipitam sem se confundem; que se cubra de flores e delouvores, a herona conserva um rosto impassvel (Craig, 1963: 109).

    Just like in Kleist: no emoction, no mistakes.O actor ideal de Craig deveria despir

    as suas fraquezas e limitaes humanas em prol de uma transformao que

    transcendesse o seu materialismo terreno. Em outras palavras, transformar-se em

    marionete viva. No no sentido literal, claro. preciso que nos faamos entender

    desde j, pois a ideia da bermarionette de Craig foi muito m interpretada por um

    longo tempo, sendo que s nas ltimas dcadas teve luzes mais racionais jogadas sobre

    si. O facto que, numa total rejeio aos clichs e a m teatralidade, o encenador ingls

    parecia ver na marionete uma certa sacralidade que reflexo de seu contacto com o

    teatro oriental. Odette Aslan lembra que a ideia da metamorfose do organismo do actor

    com a figura da marionete, na verdade, se aproxima muita da esttica do teatro clssico

    hindu: intrprete com tcnica perfeitamente afiada, cdigo dirigindo a expresso e

    espiritualidade aguada. Entretanto, parece que Craig nunca conseguiu oferecermecanismos eficientes para a elaborao de uma tcnica precisa que se opusesse aos

    naturalismos aos quais os actores da poca estavam viciados. Muitos foram os

    seguidores de sua esttica enquanto encenador e cengrafo, mas no trabalho com o actor

    as suas ideias possivelmente nunca chegaram a ser realizadas.

    No sabemos porqu, sempre nos aborreceu o chamado teatro. Seria por temosconscincia de que o actor, por mais genial que seja, trai () o pensamento do poeta?Apenas as marionetasde que somos mestre, soberano e Criador () traduzem, passiva

    e rudimentarmente o esquema da exactido, os nossos pensamentos. () os seus gestosno tm absolutamente nenhum dos limites da vulgar humanidade. () como se fosseuma maquina de escrever e as aces que lhes transmitimos no tem tambm quaisquerlimites. (Jarry, 2005: 297)

    Parece muito evidente o caso de Hamlet, o qual os simbolistas, assim como

    Maeterlinck, pareciam ver assassinado nas mos dos actores. Talvez se deva ao facto do

    actor lidar com uma potica que tem muito de prosa, uma lgica narrativa que ao poeta

    simbolista pode no interessar. O actor habituado psicologia da sua personagem

    7O termo normalmente usado em portugus supermarionete.

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    poder ter dificuldade em expressar acontecimentos nicos e fragmentados. O facto ser

    que os simbolistas no conseguiram dar ao actor o espao para desenvolver uma forma

    de representao icnogrfica. Mesmo anterior a Craig, talvez seja Alfred Jarry quem

    tenha a explicao para o problema do actor no simbolismo. O dramaturgo francs

    parece ter feito mais do que apontar os problemas, ele prope solues tcnicas de palco

    para ajudar o trabalho do actor.

    Jarry tira do teatro de marionetes a mensagem para o seu teatro de ouro. Ao

    contrrio de outros simbolistas (no se pode dizer que Ubu simbolista, mas no se

    pode negar que Ubu um smbolo na sua totalidade) no depositou toda a esperana

    num actor divino que pudesse pr em prtica as iluses internas do encenador e do

    dramaturgo. Jarry, como Appia (com as suas treppe8, entre outras tcnicas de

    cenografia), cria vrias artimanhas de palco que conectam todo o teatro, assim o actor

    fica apoiado a estas alavancas que estilizam e, de certa forma, deformam o actor.

    O caracter eterno da personagem est includo na mscara (Jarry,2005: 284). O

    actor torna-se numa marionete, para isso recorre tcnica da mscara e da mmica. O

    actor representa o caracter da personagem, como na Comdia Dell arte, ele torna -se no

    smbolo da personagem (O Avarento, O Assassino, etc.). Jarry introduz a ideia da

    personagem tipo, ou seja, em vez de ter um exrcito inteiro em palco temos um soldado

    polaco que simboliza um exrcito polaco. Distancia o actor da personagem, que

    coordena o seu corpo como se o mesmo fosse um boneco, com a criao de cinco ou

    seis movimentos que do, atravs da mmica, todas as emoes personagem. O

    movimento adaptado mscara, juntamente com uma voz especial (a voz da

    personagem). A luz permite ver a mscara de forma mais uniforme e mais clara, nas

    diferentes posies da sala. Assim, com gestos das mos e dos braos o actor pode

    controlar as sombras reflectidas. Os figurinos contrastam uns com os outros e suportam

    os efeitos especiais da pea. Para alm disso, o cenrio hbrido e os objectos mutveisformam, em conjunto com actor, a criao do Teatro das Marionetes. Na sua lgica tudo

    deveria ser um smbolo do espectculo, neste caso de Ubu, o naturalismo ou realismo

    posto de lado e o drama passa a ser no mundo das marionetes, o mundo da imaginao.

    Construir o edifcio teatral sobre uma base psicolgica equivale a construir uma casasobre areia: inevitavelmente se desmoronar. Na realidade, todos os estados psicolgicosso condicionados por certos processos fisiolgicos. (Meyerhold apud Borie,Rougemont, Scherer, 2011: 407).

    8Termo alemo para escadas.

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    A ideia da marionete pode ver-se em Meyerhold, encenador na antiga URSS e

    participante do Construtivismo Sovitico, que acaba por beber do simbolismo (com o

    seu movimento esttico) e criar uma tcnica de fisicalidade para o actor: a

    biomecnica.9Esta prtica explora a forma como o corpo se move, de forma estilizada

    ele tenta limpar a sujidade dos movimentos do actor atravs do controlo corporal. Ele

    usa a ideia de marionete e maquinista onde o actor tem um corpo fsico (marionete) que

    controlado pelo corpo interno (maquinista). No desenvolvimento desta nova

    corporalidade Meyerhold (que tem como exemplo o trabalhador da fbrica, o proletrio)

    exemplifica trs caractersticas indispensveis: movimentos produtivos, directos e

    concretos; movimentos ritmados, como a dana; centro de gravidade consciente de um

    movimento sem hesitaes.Meyehold projectava um treino fsico exigente para o actor, que classifica de

    preguioso no teatro convencional (que como quem diz burgus). Os seus actores

    eram no-sentimentalistas e usavam a ironia e o grotesco em prol da mensagem para a

    sociedade. Ressalva tambm o trabalho do encenador, que deixa de sugerir direces

    mas, enquanto maquinista, cria o conjunto, fica responsvel por fazer as suas peas

    comuns ao povo, teis e produtivas.

    Oencenador no temer entrar em conflito com o ator no ensaio at (e inclusive) corpo acorpo. Sua posio solida, porque ao contrrio do ator, ele sabe (ou deve saber) o que oespectculo dever proporcionar amanh. Ele encontra-se obcecado pelo conjunto,portanto mais forte que o ator (Meyerhold apudAslan, 2010: 152).

    Os seus espectculos so um esboo da sua viso, o trabalho do actor feito no

    palco (ao contrrio do estilo ler texto sentado do teatro convencional), procura no

    movimento o mais alm. Usa a arte em movimento como forma de por em prtica as

    ideias revolucionrias de um homem socialista, altrusta que expe em cena o mundo.

    Ao invocarmos Meyerhold e lembrarmo-nos do seu fuzilamento pelas mos das tropassoviticas, somos convidados a repensar o papel do actor enquanto agente de uma aco

    revolucionria que acontece em palco, mas que escorre para fora de cena, acertando o

    espectador diretamente. Em oposio estupidificao egocntrica da burguesia,

    Meyerhold pe em prtica as ideias Marxistas, que por coincidncia se complementam

    com a sua tcnica mecnica. Nasce um teatro onde o Homem do povo to merecedor

    de criar e de receber a arte como qualquer burgus ignorante.

    9Conceito que depois foi adaptado ao estudo do movimento em ginastas e se tornou um ramocientfico.

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    No h dvida que a ideia de democratizar a arte fulcral a todas estas novas

    vertentes que se revoltam, sem medo, contra os preconceitos aristotlicos de um

    ocidente hipcrita e uma arte silenciosa. No se pode esquecer o legado marginal do

    teatro de marionetes, um teatro subversivo que muitas vezes expunha problemticas

    relacionadas com o povo, temtica que acaba por influenciar todos estes artistas que se

    marginalizavam por no quere pertencer ao mundo do romantismo snobe e naturalismo

    enfadonho. O expressionismo um dos exemplos mais concretos, por ter uma a atitude

    intelectual que esboa uma esttica que rompe radicalmente com o contexto do incio do

    sculo XX. Com uma reaco visionria e violenta baseada numa concepo do mundo

    que, embora manifestada num perodo de tempo razoavelmente curto, influenciaria

    nomes que acabariam por direccionar a arte para uma esfera assumidamente poltica.

    Piscator e Brecht aparecem, ento, como dois nomes que sofreram a influncia

    expressionista, no to perceptivelmente no plano esttico, mas sim em relao sua

    postura de revolta que refletida em cena.

    Manifestao esttica directamente relacionada com o contexto histrico de medo

    vivido na poca, o expressionismo alemo surge a partir de 1910 como uma espcie de

    grito de desespero como o da pintura de Munch perante uma atmosfera sombria que

    parecia estar apenas no incio. A I Guerra Mundial e a consequente derrota alem, bem

    como a repentina industrializao do pas, vm como factor agravante da crise de

    identidade compartilhada por uma nao inteira. Germinando sobre os corpos dos

    mortos nos conflitos, o expressionismo ganha fora como vlvula de escape do

    negativismo e desesperana do ps-guerra, sentimento que acaba por culminar na recusa

    da representao da figura humana nos seus traos naturais. Ao ver o quo desumano o

    ser humano podia ser, j no fazia mais sentido trat-lo como tal. Em busca de uma

    definio sobre a corrente, o historiador de arte Jean-Michel Palmier diz:

    O expressionismo um movimento artstico que, a partir da pintura, vai inflamar todas asartes, quebrando as fronteiras, para fazer do material, da realidade, o simples pretextopara a exteriorizao do eu. Ele se manifesta como uma reao muito violenta aonaturalismo e ao impressionismo e esboa em todas as artes uma esttica nova (PalmierapudBarsalini, s/d: 3).

    Em outras palavras, o movimento firma-se como vanguarda artstica na qual o

    revelado aos olhos do espectador algo que est no plano da abstrao, onde o artista

    que, exteriorizando os seus fantasmas, permite o conhecimento da sua prpria essncia.

    Segundo Eugnia Vasquez, o drama autobiogrfico impessoalizado de muitos dos

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    dramaturgos expressionistas revela um estilo de Ich-Drama10, onde a expresso da

    subjectividade se transforma num smbolo do coletivo. hora da criao de um novo

    drama, que busca o seu territrio num mundo surreal e supra-sensvel: Das

    berdrama.11 O esprito do gtico medieval se une ao onirismo sombrio para

    manifestar uma evidente relao entre o bem e o mal, onde o ltimo aparece fortemente

    personificado, ao contrrio do simbolismo, que sempre tratou de insinu-lo.12

    O expressionismo invoca os seus fantasmas para exorciz-los. Um estilo plstico,

    que faria uso das formas para escapar de qualquer lgica social conhecida e, dessa

    maneira, ver-se livre para explorar uma viso trgica do mundo. Para a construo dessa

    atmosfera soturna, o expressionismo herda do simbolismo a preocupao com a

    cenografia e a iluminao como mecanismos de composio visual dos estados da alma.

    Recortes de luz so pontuais e aproveitam-se de sombras como forma de materializao

    do no visto, enquanto a arquitetura dos cenrios usa de nveis e linhas diagonais para

    intensificarem as tenses e, de certa forma, sufocar suas personagens.

    Para receber do corpo vivo a sua parte de vida, o espao deve fazer oposio a essecorpo; unindo-se s nossas formas ele aumenta ainda mais a sua prpria inrcia. Por outrolado, a oposio do corpo que anima as formas do espao. O espao vivo a vitria dasformas corporais sobre as formas inanimadas. A reciprocidade perfeita.(Appia apudBorie, Rougemont, Scherer, 2011: 433).

    Como podemos perceber, em Louvre dart vivant13 (1921), Adolphe Appia falado movimento rtmico do actor que, em contacto com o espao, acaba por contamin-lo

    de vida, confere-lhe significado. Juntamente com Craig, Appia quem melhor

    manifesta a forte presena da figura do encenador simbolista. O encenador e cengrafo

    suo cria o ritmo do seu espectculo ao associar o movimento do actor com a msica, a

    cenografia linear, a iluminao pontual... Seus escritos sobre a encenao so

    verdadeiros tratados estticos. Na sua pesquisa por um cenrio que age com o intrprete,

    Appia cria diferentes nveis em palco para ajudar a criar distanciamento entre os actorese estilizar as emoes. O espao manifesta-se como elemento activo da aco, que

    deixou de se concentrar no drama e passa passou a focar-se apenas num conceito

    10Em portugus: o drama do eu.11O superdrama: o conceito aparece na obra de Yvan Goll em 1919. Segundo a argumentaodo poeta e dramaturgo expessionista, trata-se-ia da terceira e ltima fase do drama (a primeirafase teria sido a do drama grego e das lutas entre homens e dos deuses, enquanto a segunda secaracterizava pelo individualismo do homem moderno comum ao naturalismo.)12 Na pea simbolista A Intrusa, do belga Maurice Maeterlinck, a morte a verdadeira

    protagonista do drama e a sua presena imaterial o maior agente da aco.13Em portugus: A obra de arte viva.

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    ideolgico, onde o encenador a a figura responsvel pela concepo duma unidade de

    expresso em palco.

    O certo que, para os alemes, o espao e a natureza exercem uma grande

    influncia nessa unidade, mas, assim como para Appia, o actor o principal meio de

    manifestao dessa viso marcadamente ptica. Um homem moderno sufocado na

    angstia, um ser smbolo de outros seres. A identidade e a ideia do psicolgico da

    personagem destruda.14 O expressionismo procura o oposto, um super-homem ou

    supermarionete, algo como um meio deus que, ao contrrio de Hrcules, projectado

    nas suas fraquezas e dores. O actor nem expressa o seu eu pessoal (isso faz o autor),

    nem encarna totalmente a personagem, ele constri uma sucesso artificial de

    momentos: fabrica uma entonao, uma postura (Aslan, 2010: 117). O que impede que

    sua interpretao caia na caricatura o apelo espiritualidade e a sua crena energtica

    que sustenta o jogo, pois a imaginao criadora despertada e projecta-se acima de

    qualquer banalidade.

    No se trata de desenhar um papel, de se disfarar em uma personagem, porm de vivera aventura da pea, de senti-la com todos os sentidos, de construir em si um universo e apartir desse material, dessa vivncia fabricada, o ator mostra todos os aspectos de suaalma multiforme, desse mundo criado nele. Ele o retranscreve com paixo, indo at olimite do tangvel, orientando-se para a abstrao (Martin apudAslan, 2010: 117).

    O actor expressionista ganha com o topo da hierarquia do espectculo, o portador

    da ideia, o mensageiro da pea ao pblico, dever libertar-se de qualquer inspirao

    realista e procurar fora da normalidade os elementos que o ajudaro a transpor a ideia

    ou o Grundmotiv15. No h vontade de fazer um esteretipo do perfeito por parte dos

    expressionistas, um actor que simbolize o grupo e a essncia da pea. Ele parte de uma

    mensagem, no uma iluso do belo. Uma mensagem sempre portadora de uma tenso

    que culminou num teatro de energia, de fora e at de violncia (Aslan, 2010: 119).

    Assim o actor convidado a entrar num mundo do todo, sem vergonha de representar,sem identidade e sem face. Isso reflecte-se no plano literal, pois a actuao

    expressionista remete marionete ao se basear na pouca utilizao de expresses faciais

    e numa maior ateno na composio corporal da personagem.

    Os gestos do ator, tanto quanto sua maquiagem, diferem se se trata da personagemprincipal ou das figuras secundrias. Estas ltimas tm o rosto branco, os olhos marcados,

    14O trabalho de actor para os naturalistas era precisamente o oposto: um ser muito complexo,uma personagem criada ao pormenor pelo actor, baseada em conceitos psicolgicos realistas e

    enfadonhos.15Termo em alemo para o grande motivo, ou seja, a grande mensagem da pea no seu todo.

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    um rictusde marionete que range e se deslocam em grupo como uma entidade, em funoda personagem principal de quem so reflexo ou contraponto(Aslan, 2010: 121).

    Ao invocar a figura da marionete, Aslan nos possibilita uma interpretao bastante

    interessante quanto a realidade expressionista: seriam as personagens secundrios

    simples marionetes, enquanto o heri expressionista aquele ser que transcende e, com

    isso, torna-se um ser humano completo?

    O actor deveria representar uma ideia formal, composta de gestos fragmentados e

    movimentos nem sempre legveis. Deve procurar o abstracto e esperado que consiga

    transmitir estados emocionais atravs de movimentos estilizados e ressaltar s as

    caractersticas importantes da personagem. A aco corporal requer uma disposio que

    chega a aproximar-se da dana, com movimentos grotescos, rudes e aumentados, quase

    que numa coreografia para exteriorizar os estados de esprito. As mos, por exemplo,

    sempre falam por si s no expressionismo. Saber quando se deve agir e dar a

    importncia necessria ao movimento para que este ocorra por uma razo concreta e no

    como bengala do texto.

    Isso significa que nossos intrpretes franceses, com voz de ouro, teriam sido dotadospara esse tipo de jogo? Se os expressionistas alemes no manifestassem tanta fora, tantapotncia na expresso, poder-se-ia pensar tambm na tcnica simbolista, na medida emque o ator se empenha em desvendar o interior de uma personagem, em representar a

    ideia da ao mais do que da prpria ao, em sugerir uma vida supranatural, em falarcomo num sonho(Aslan, 2010: 119).

    Ao invocar o sonho, e para a noo de um panorama geral, talvez devssemos

    chegar at o nome de Antonin Artaud e a sua idealizao do corpo sem rgos. Embora

    fosse interessante uma maior anlise entre os pontos de simetria nas obras de Artaud e

    de Kleist, podemos nos limitar a dizer que o terico francs fecha o ciclo dos primeiros

    passos numa nova vertente esttica. Isso porque, de Kleist Artaud, passando por Jarry,

    Craig, Appia, Meyerhold e tantos outros, vemos nascer o interesse pela esttica do

    movimento como elemento cada vez mais influente na desautomatizao da arte. O

    teatro fsico filho desses novos parmetros que viram no trabalho corporal do actor

    uma linguagem de expresso independente e universalmente reconhecvel. Depois de

    Artaud teremos todos os seus seguidores, agora j amparados pelas suas teorias que,

    embora ainda metafsicas, comearam a fazer mais sentido a partir da dcada de 1960

    do que os escritos profticos de Kleist fizeram h dois sculos atrs.

    Ao falar sobre ambas as correntes, preciso salientar que a sua afirmao de

    ruptura com a conveno naturalista conferiu ao espectador um maior poder de leitura

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    subjectiva do espectculo e, assim, acabou por despertar uma conscincia semitica na

    interpretao e complementao da obra teatral. O estudo da esttica de recepo

    consequncia directa dos novos panoramas que os simbolistas, e posteriormente os

    expressionistas, desenharam sob a esttica teatral e cinematogrfica16do sculo XX.

    Pode pensar-se no simbolismo como o nascimento prematuro de uma esttica que

    ainda hoje ignorada e incompreendida, a ideia de uma arte assumidamente artstica.

    Como uma criana precoce, o simbolismo no conseguiu sobreviver, se no no esprito

    de alguns libertinos, a uma mquina de entretenimento convencional que continua a

    empurrar a arte para uma forma industrial. O expressionismo enraizou-se no

    subconsciente e quando Walter Hasenclever afirma no haver expressionismo fica em

    aberto a possibilidade de que aquilo que no existe existir sempre. O expressionismo

    poder ser, de facto, o espectro do simbolismo. Uma luz ao fundo do tnel para novos

    artistas que queiram escapar mquina de produo de uma sociedade que engole tudo.

    O no-naturalismo existe no ADN humano, uma arte que sabe que ser artstico

    pressupor que no se humano para ver o homem sobre uma outra perspectiva. Esta

    viso to merecedora da verdade quanto o naturalismo. A rstia de esperana, reside

    no facto destas correntes poderem agir como um vrus, deixando a hiptese (numa era

    em que a arte se tornou institucionalizada e to formatada que quase parece engenharia)

    de que a memria de outros tempos se instaure no esprito dos novos artistas que no se

    contentam com tcnicas retrogradas e teorias formais.

    Esqueceu-se completamente que a cena no outra coisa seno lente de aumentar. Osgrandes dramaturgos souberam-no sempre: o Grego calava o coturno. Shakespearedialogava com espritos gigantes. Esqueceu-se por completo de que o primeiro smbolodo teatro era a mscara (Goll apudBorie, Rougemont, Scherer, 2011: 419).

    Como Goll explicita, os espectculos simbolistas e expressionistas aceitaram essa

    condio de arte artificial. Ignorada pelas escolas de teatro clssicas onde, na maior

    parte dos casos, o actor baseia-se nas falas do texto e na sua dramaturgia com uma

    abordagem o mais naturalista possvel. Em contrapartida, a fisicalidade acaba por ser

    aproveitada por outro ramo do teatro que perde qualquer sentido emocional ou terico,

    caindo numa mmica to imitadora da realidade quanto o naturalismo. Infelizmente,

    ambas estas escolas tendem a criar obras onde a arte perde toda a sua importncia

    metafsica. impossvel explicar como se perdeu toda uma perspectiva de actuao

    16 De facto grande parte da tcnica expressionista chega at ns graas a sua influncia nocinema, o que faz muitos historiadores referirem este como o primeiro estilo cinematogrfico.

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    onde o gesto vive em balano com a palavra. Hoje podemos ver actores que tentam, na

    maior parte das vezes em vo, encontrar uma outra forma de representar, mas os

    resultados no passam de apontamentos. A educao artstica fechou-se aos que

    revolucionaram a arte. Estas vertentes so normalmente um ponto de referncia em

    aulas tericas, fazendo uma pequena ponte a alguns artistas descritos quase como

    loucos. Existe provavelmente um problema na nossa sociedade em compreender o

    trauma de tempos horrveis, como o ps I Guerra Mundial, onde o mal deixou de se

    limitar a pequenas dores e ganhou renome mundial. nesta memria de tempos difceis

    que reside uma preciosa ideia para a tcnica do actor que tem de ser reintroduzida no

    seu currculo. Ser necessrio que escolas, as mais rebeldes, percam a vontade formar

    actores com manuais que descrevem a construo psicolgica do subconsciente que os

    inserem no mercado profissional (a arte imaterial logo no pode ser tratada como

    mercadoria). Como no expressionismo no podemos deixar a imaginao (mensagem

    criada pelo subconsciente e executada pelo consciente) merce da lgica comercial.

    A arte subordinada realidade perdeu a razo de sua existncia e tornou-se

    escrava de uma rplica medocre. Logo tem de ser instigado uma procura numa tcnica

    de actor mais idealizada, no para termos melhores actores, mas para termos

    diferentesactores, para dar espao a criaes de mbito metafisico. A tcnica do actor

    parou no tempo e por este caminho corre-se o risco que ela estagne de vez. Como ser

    possvel que os actores no trabalhem activamente com a cenografia ou os figurinos

    como Appia props? Onde esto os responsveis por uma educao artstica

    fragmentada (um cengrafo, outro actor, outro msico cada um segregado na sua sala

    de aula) especialmente interessada na produo de artistas o mais homogneos possvel?

    As escolas de artes perderam a vontade de ser diferentes, perdemos as memrias de

    tempos que evoluram custa de vanguardistas destemidos. Onde est a memria de

    tempos como a Bauhaus!?17

    Nos nossos dias, o actor aplica-se a personificar um carcter e a interpret-lo; amanh,tentar represent-lo e interpret-lo; um dia criar ele prprio. Assim renascer o estilo(...) para os outros artistas a palavra vida tem um sentido ideal; s para os actores,ventrloquos e naturalistas pr a vida na sua obra significa fornecer uma imitaomaterial, grosseira, imediata da realidade(Craig, 1963: 94-95).

    Os escritos de Craig transportam-nos para uma realidade preocupante a qual o

    teatro atravessava. Chegava-se a se questionar o estatuto de artista do actor, uma vez

    17Escola de artes na Alemanha que se caracterizava pela as suas descobertas formais, onde asdiferentes ramificaes da arte trabalhavam em coeso.

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    que este no passava de reprodutor de comportamentos. Hoje em dia, certo que no se

    pode acusar o actor de no ser criador. Entretanto, o actor contemporneo parece ter

    perdido a sua ligao com algo mais essencial ao teatro. Ele orbita num plano

    intermedirio, entre o real e a fico, mas no assume nem um nem outro. O actor vive

    uma fase de extrema preocupao quanto ao sentido que o espectador dar para a sua

    performance, quanto ideologia a qual a sua imagem estar associada. Assim, julgando

    e condenando-se a si mesmo, suprime logo de partida no s a sua liberdade de

    expresso, mas tambm a liberdade de interpretao do espectador.

    O que mais importa atrair a ateno do espectador, fazer com que o drama se

    revele frente a este sem que os seus olhos espiem o relgio de pulso ou a sua mente fuja

    para fora da sala de apresentao. Numa sociedade meditica e tecnolgica como esta a

    qual chegamos, a maior vitria passou a ser seduzir uma pessoa a ponto de esta passar

    uma ou duas horas sem dar uma vista de olhos no seu telemvel. Mas qual o preo que

    temos que pagar para que isso acontea? Secar a alma da nossa arte at faz-la

    reconhecvel primeira vista? No, definitivamente no! Cabe ao espectador lidar com

    o que no lhe familiar assim como cabe ao actor acreditar no seu acto de criao.

    Falta-nos ser mais marionetes na concepo da nossa arte, no nos sufocarmos pelo

    racionalismo sinttico que a sociedade contempornea nos incutiu. Caso contrrio, tudo

    ser reduzido a dinheiro e entretenimento. Todo o resto, tudo que a priori estranho,

    deixa de existir. Pois ou o artista aceita a estranheza da sua obra e o choque, o

    desconforto e a rejeio que ela causar... Ou ento devemos assumir que temos

    vergonha de fazer teatro e partir para uma forma de arte mais confortvel para o

    pensamento crtico j formatado. Neste ltimo caso, corremos o risco de matar a arte e

    fazer do actor um espelho do ego ocidental.

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    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    ASLAN, Odette (2010). O ator no sculo XX. Trad. Rachel Arajo de Baptista Fuser,Fausto Fuser e J. Guinsburg. So Paulo: Perspectiva.

    BARSALINI, Glauco. Nosferatu: uma personagem romntica com elementosexpressionistas. In: Max Planck Faculdade. S/d. Disponvel em: . ltimo acesso em 23 de junho de 2014>.

    BORIE, Monique; ROUGEMONT, Martine de; SCHERER, Jacques (2011). Estticateatral: textos de Plato a Brecht. Trad. Helena Barbas. Lisboa: Fundao CalousteGulbenkian.

    CRAIG, Edward Gordon (1963). Da arte do teatro. Trad. Redondo Jnior. Lisboa:Arcdia.

    JARRY, Alfred (2005). Ubu. Trad. Lusa Costa Gomes. Porto: Campo das Letras.

    KLEIST, Heinrich von (1952). Teatro de marionetes. Trad. Paulo Mendes Campos. Riode Janeiro: Os Cadernos de Cultura.

    KLEIST, Heinrich von (2009). Sobre o teatro de marionetas e outros escritos. Trad. JosMiranda Justo. Lisboa: Antgona.18

    NOSFERATU Uma Sinfonia de Horror (1922). Direo: F. W. Murnau. FriedrichWilhelm Murnau Stiftung, 96 min.

    18O texto do livro em questo est disponvel em , por isso no apresenta numerao de pginas.