a ortografia pesudo-etimilÓgica do apÓlogo das Árvores - vieira.pdf

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    A ORTOGRAFIA PSEUDO-ETIMOLGICA DO APOLOGO DAS ARVORES (VIERA)

    Migul Eugenio Almeida (UEMS) [email protected]

    1 . Consideraes iniciais

    Neste trabalho, analisamos a ortografia no texto Apologo das arvores, de Pe. Antnio Viera. Assim, este texto, escrito na ortografia pseudo-etimolgico, foi retirado da Selecta em Prosa e Verso: dos melhores auctores brazileiros e portuguezes (1883), de Alfredo Clemente Pinto. Coutinho (1976), principalmente, orienta-nos teoricamente na organizao deste trabalho; pois, com ele percebemos a preocupao dos escritores do perodo pseudo-etimolgico1 em se manterem presos, o mais prximo possvel, da ortografia latina, onde O critrio adotado pelos que seguem a grafia etimolgica respeitar, tanto quanto possvel as letras originrias da palavra, embora nenhum valor fontico represente. (COUTINHO, 1976, p.75). Portanto, fizemos um levantamento de doze ocorrncias ortogrficas, em que procedemos anlise singularizada destas ocorrncias, procurando mostrar estes elementos em um processo diacrnico. Em princpio, na organizao deste trabalho, pontuamos algumas consideraes tericas tratando do Perodo pseudo-etimolgico e as relacionamos com a viso histrica do Renascimento, porque entendemos a importncia da contextualizao da Histria para dar suporte terico, justificando o retorno s lnguas clssicas, de certa forma, da ortografia da lngua portuguesa. Em outro momento, analisamos propriamente dita, as ocorrncias ortogrficas.

    2 - Perodo pseudo-etimolgico

    Aps o perodo fontico - portugus arcaico (sc. XIII sc. XV) -, a lngua portuguesa retoma a escrita etimolgica, pois [...] a partir do sculo XVI que ela

    1 o perodo compreendido entre o sculo XVI at menos da primeira metade do sculo XX, no

    Brasil; e 1911, em Portugal.

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    [grafia etimolgica] se torna predominante. (COUTINHO, op.cit., p.75) Esse retorno leva-nos compreender, com certa segurana, influncia do Renascimento clssico impregnando o uso das grafias latinas ou latinizadas. A este respeito, o historiador coloca-nos:

    Durante o sculo XV surge um novo esprito que transforma as artes, as letras, as cincias e a filosofia. Para os eruditos e sbios, chamados de humanistas, o mundo temporal tornou-se tambm importante, tendo o ser humano como centro. O Renascimento coincidiu com a descoberta do passado, principalmente na Itlia, onde havia reminiscncia do imprio Romano, e com a descoberta de novas terras, graas s navegaes portuguesas s costas da frica, da ndia, da China e da Amrica. (FLORES, 1996, p.437b-438 a)

    O renascimento caracteriza-se principalmente pelo antropocentrismo, onde o homem o centro do Universo. para ele que todas as atenes se voltam por intermdio das artes, das letras, das cincias e da filosofia. o homem interrogando o prprio homem sobre todos os aspectos. Na verdade, o Renascimento retoma os valores artsticos e filosficos, principalmente, da Antigidade Clssica. Pois, com os clssicos que surgem as primeiras indagaes sobre o homem, ou seja, com os sofistas, dentre eles Protgoras, e com Scrates que a questo do homem foi colocada. O primeiro diz o seguinte: O homem a medida de todas as coisas; e o segundo: Conhece-te a ti mesmo. Isto revela a preocupao dos filsofos, no caso, em colocar a questo do homem em um nvel de suma importncia para o autoconhecimento. Destarte, Petrarca (*1304 - 1374), Erasmo de Roterdam (*1467 - 1536) e outros se esforam em apontar [...] a dignidade do esprito humano em face da Revelao crist. (FLORES, op.cit., p.265 a/b). Esse esforo revela-nos a inteno deles em promover o homem pelos seus papis usando a sua capacidade inerente a prpria natureza. o homem assumindo os seus atos investigados na sua mxima profundidade. guisa de observao, no foi em vo que nesse perodo ocorreram as reformas religiosas crists. Martinho Lutero colocou em questionamento o papel do homem diante do Absoluto, cabendo-nos indagar o seguinte: o que compete ao homem fazer pela sua salvao? diante disto possivelmente que os reformadores religiosos tomam como ponto de partida as suas propostas de reforma.

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    Transpondo a influncia do Renascimento para os aspectos lingsticos da ortografia etimolgica, que a lngua portuguesa sofreu as influncias das lnguas clssicas (latim e grego); pois, To grande foi esse influxo que no s os vocbulos novos entram para o nosso lxico com aspecto grfico alatinado, mas tambm os que j tinham formas vulgares sofrem o travestimento etimolgico. (COUTINHO, op.cit., p.76) J no perodo Moderno da Histria, mais uma nova onda etimolgica invade a lngua portuguesa, ou seja, Com o advento do Romantismo, novo surto etimolgico se observa; desta vez, porm, muito mais funesto, porque no se procura a origem imediatamente no latim, mas atravs do francs, que se imita largamente. (COUTINHO, id., ibid.,mesma pgina). A grafia etimolgica dificulta, de certo modo, a pronncia dessas palavras, [...] porque a presena das letras etimolgicas deixa o leitor nefito quase sempre em dvida sobre se deve ou no pronunci-las. (COUTINHO, id., ibid., mesma pgina). Vejamos alguns exemplos, que melhor elucidam o uso desta grafia, conforme Coutinho (1976):

    sepulchro,chrystal, thesoura, theor, lyrio, cysne, systhema, cathegoria, cathecismo, author, authonomia, contrico, tradico, Hyppolitho, Collyseu, Thiago, Themudo, Ignez, fleugma, lico, enygma, ellipse, dacta, satyra, posthumo, innundar, querella, etc.

    Observamos, no caso, o valor nulo articulatrio do h acompanhando o c /k/ velar e o t alveolar-dental. O grafema y representa o fonema voclico /i/. Notamos ainda a presena do c velar /k/ acompanhando o c sibilante /s/ e o /t/ alveolar-dental. O l e o n aparecem geminados no meio da palavra, mostrando a influncia do latim. A ortografia etimolgica ocupou o seu espao na construo da lngua portuguesa, devido a um modismo de poca por influncia do Renascimento e pela aceitao dos poucos privilegiados, ou melhor, conforme o fillogo:

    Estou de h muito convencido, e vrias vezes o tenho dito pela imprensa, de que a denominada ortografia etimolgica uma superstio herdada, um erro cientfico, filho do pedantismo que na poca da ressurreio dos estudos clssicos, a que se chamou Renascimento, assoberbou os deslumbrados adoradores da antigidade clssica e das letras romanas e gregas, e pode vingar, porque a leitura e a conseqente instruo das classes pensadoras e dirigentes s eram possveis a pequeno crculo de pessoas, cujos ditames se aceitavam quase sem protestar. (VIANA, 1904, p.8)

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    Isto significa a ausncia do princpio do uso parcimonioso das formas elementares da lngua, sem que se possa recorrer adaptao fontica/ fonolgica natural pelos falantes da lngua portuguesa.

    3. Anlise das ocorrncias ortogrficas

    Apresentamos inicialmente o texto Apologo das arvores, para que possamos marcar as ocorrncias ortogrficas. Aps isto, procedemos anlise das doze ocorrncias2, separadamente.

    VIERA, Pe. Antnio. Apologo das arvores. In: CLEMENTE PINTO, A. Selecta em Prosa e Verso: dos melhores auctores brazileiros e portuguezes. Porto Alegre: Selbach & Mayer, 1883.

    Apologo das arvores

    O primeiro apologo que se escreveu no mundo (que fbula com significao verdadeira) foi aquelle que se refere a Sagrada Escriptura no capitulo 9 de Juizes. Quizeram, diz, as arvores fazer um rei que as governasse, e foram offerecer o governo oliveira, a qual se escusou, dizendo que no queria deixar o seu leo, com que se ungem os homens e alumian os deuses. Ouvida a escusa, foram figueira, e tambm a figueira no quis acceitar, dizendo que os seus figos eram muito doces e que no queria deixar a sua doura. Em terceiro lugar, foram vide, a qual disse que as suas uvas, comidas, eram o sabor e, bebidas, a alegria do mundo; e a quem tinha to rico patrimonio no lhe convinha deixa-lo para se metter em governos. De sorte que assim andava o governo universal das arvores, como de porta em porta, sem haver quem o quizesse. Mas o eu noto nestas escusas que todas convieram em uma s razo, e a mesma, que era no querer cada uma deixar os seus fructos. E houve alguem que dissesse ou propuzesse tal cousa a estas arvores? Houve alguem que dissesse oliveira que havia de deixar as suas azeitonas, nem figueira os seus figos, nem vide as suas

    2 Omitimos a anlise de trs ocorrncias, porque esto repetidas no texto; e as demais formas

    seguem o modelo ortogrfico de propuzesse (linha 14 do texto).

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    uvas? Ninguem. Somente lhes disseram e propuzeram que quizessem acceitar o governo. Pois, si isso foi s o que lhes disseram e offereceram, e ningum lhes falou em haverem de deixar os seus fructos, porque se excusam todas com os no quererem deixar? Porque entenderam, sem terem entendimento, que quem accita o governo dos outros s h de tratar delles e no de si; e que, si no deixa totalmente o interesse, a convenincia, a utilidade e qualquer outro gnero de bem particular e prprio, no pde tratar do commum.

    A seguir, apresentamos a anlise das ocorrncias:

    a) aquelle (linha 2)

    accu llu > aquelle XIV > aquello XVIII > aquelle XIX > aquele

    ecquo - adv. aonde, para onde; llu pron. l; acol O uso do l geminado na lngua portuguesa segue por um longo espao de tempo, por influncia da forma llu latina.

    b) escriptura (linha 2)

    scrptura > scritura XIII > escriptura XV/ XIX > escritura No caso, percebemos diacronicamente que o uso das consoantes duplas pt no aparecem no sculo XIII, mas retornam no sculo XV/ XIX, prosseguindo a ortografia latina. Notamos ainda que no sculo XV ocorre a prtese do fonema voclico anterior-mdio /e/, permanecendo at o momento presente.

    c) offerecer (linha 4)

    offerescre > offerecer XV/ XIX > oferecer As consoantes geminadas ff tambm permanecem, por muito tempo, na ortografia verncula. A guisa de descrio diacrnica, temos as seguintes transformaes fonticas: a sncope do grafema s, no sculo XV, e distole na mudana da forma latina para a forma do portugus arcaico e portugus moderno.

    d) acceitar (linha 6)

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    acceptare > aceptar XV > acceitar XIX > aceitar

    Ocorreu, na passagem do latim para o portugus arcaico, o desfazimento das consoantes geminadas cc e sncope do fonema oclusivo bilabial /p/. J no sculo XIX (texto em questo), houve o retorno epntese da consoante geminada cc, orientado pelo modelo ortogrfico latino.

    e) metter (linha 10)

    mttre > meter XIII > metter XIX > meter

    Na passagem do latim para o portugus arcaico, houve o desfazimento das consoantes geminadas tt; e, no sculo XIX, percebemos o retorno epntese da geminada tt, seguindo o paradigma ortogrfico latino.

    f) fructos (linha 13 e 19)

    frctus > fruyto XIV > fructo XIV/ XIX > fruto

    Diante deste quadro, a mudana fontica do latim para o portugus arcaico acontece pela sncope do fonema velar c = /k/, seguida de vocalizao e ditongao da semivogal alta anterior /y/. No prximo momento, temos a passagem do portugus arcaico para o portugus moderno (sculo XIV/ XIX) com a sncope da semivogal /y/, seguida da epntese do fonema velar c = /k/, no contexto da ortografia latina.

    g) Em propuzesse (linha 14) e outras palavras, tais como quizesse (linha 12), percebemos que h uma indefinio do uso dos grafemas z e s para representar o fonema sibilante sonoro /z/, no portugus moderno.

    h) offereceram (linha 18) offerescre > offerecer XIV/ XIX > oferecer Do latim para o portugus arcaico e portugus moderno (sculo XIX), ocorre a sncope do grafema s e a apcope da vogal e. Assim, permanece a geminada ff at ento, desfazendo-se aps este tempo.

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    i) A forma verbal accita (linha 20) derivada da forma verbal acceitar (linha 17), j descrita anteriormente. Esta forma ocorre da neutralizao do fonema voclico mdio-anterior /e/ pelo arquifonema /I/, desfazendo o ditongo decrescente /ey/. A geminada cc uma herana latina.

    j) delles (linha 21): contrao da preposio de + o pronome pessoal elle.

    lle > elle XIV/ XIX > ele Ocorre a dissimilao do fonema voclico alto anterior /i/ para o fonema voclico anterior mdio /e/, na passagem do latim para o portugus arcaico; porm esclarecemos o seguinte: a forma latina corresponde a classe de palavra designada pronome demonstrativo, mudando para pronome pessoal do caso reto. Destarte, a geminada ll segue a ortografia latina.

    k) commum (linha 23)

    commnis > com XIV > commum XIX > comum

    H desfazimento da geminada mm na passagem do latim para o portugus arcaico. Ocorre, ainda, a sncope do n e apcopes do i;s, mas, em seguida, ocorre a nasalizao do fonema voclico posterior alto /u/ marcado pelo sinal diacrtico de nasalidade til (~). No portugus moderno (sculo XIX), observamos o retorno da geminada latina mm.

    l) haver (linha 11)

    habre > aver XIII > haver O fonema levemente aspirado latino h suprimido afrese na mudana do latim para o portugus arcaico; e retorna para o portugus moderno, mas no com o valor de fonema, formando dgrafo com a vogal baixa /a/. O mesmo ocorre com a forma homem, por exemplo.

    Portanto, diante do postulado saussuriano de que o signo lingstico arbitrrio quer na forma do significado, quer na forma do significante, entendemos que a variao das ocorrncias trabalhadas no texto em questo sofreu alteraes apenas para acomodar, em geral, a adaptao fontica/ fonolgica das mudanas dos estgios da

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    formao contnua da lngua portuguesa. Assim, percebemos a preocupao dos escritores do portugus arcaico, em muitos casos dos usos ortogrficos, e dos escritores do portugus moderno buscar a escrita etimolgica para seus textos.

    4. Consideraes finais:

    O texto Apologo das arvores (Viera) mostra-nos poucas ocorrncias da ortografia do perodo pseudo-etimolgico. Observamos, com certo estranhamento, que a forma haver incorpora-se etimologicamente no portugus moderno, ou seja, no sculo XIII (portugus arcaico), o grafema h foi suprimido em aver. Isto significa a no ocorrncia articulatria do fonema latino levemente aspirado h. Posteriormente, o portugus moderno retomou este grafema h funcionando apenas como elemento formador de dgrafo. Esta ortografia vem, apesar de algumas posies crticas, se aproximar da escrita latina, confirmando notoriamente as amostras aqui analisadas. A lngua latina, ainda em nossos dias, serve de aparato lexicolgico para a criao de vocabulrio cientfico e tcnico.

    5 Referncias bibliogrficas:

    COUTINHO, I. L. Pontos de Gramtica Histrica. Rio de Janeiro: Ao Livro Tcnico, 1976.

    FLORES, M. Dicionrio de Histria do Brasil. Porto Alegre: EDIPUCS, 1996.

    GONALVES VIANA, A. R. Ortografia Nacional. Lisboa,1904.

    VIERA, Pe. A. Aplogo das arvores. In: CLEMENTE PINTO, A. Selecta em Prosa e Verso: dos melhores auctores brazileiros e portuguezes. Porto Alegre: Selbach & Mayer, 1883.