a ontologia do ser criado compilado por prof. helder salvador

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A ONTOLOGIA DO SER CRIADO Compilado por Prof. Helder Salvador

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A ONTOLOGIA DO SER CRIADOCompilado por Prof. Helder Salvador

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O período medieval nos introduz em um novo horizonte histórico, cuja compreensão da realidade está sedimentada numa cosmovisão teocêntrica. O logos filosófico se deixa guiar pela religião, imprimindo à filosofia a característica de ser serva da Teologia. Há um acasalamento estreito entre fé e razão.

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"A Filosofia que, em si mesma, tem por objeto tratar, só com as forças da razão, dos grandes problemas do mundo, do homem e de Deus, une-se neste período com a fé religiosa, e esta com aquela, fenômeno este que, ademais, neste período de tempo, é também característico da Filosofia árabe e judaica. A união da fé e da ciência, no pensamento do homem medieval cristão, entende-se sob o pressuposto de uma unidade ideológica. Nela repousa o espírito de toda esta época, para a qual nada há de mais significativo do que exatamente essa unidade espiritual. Como nunca, em nenhum período da história do pensamento ocidental, é todo um mundo que vive na certeza da existência de Deus, da sua sabedoria, poder e bondade. Admite, com segurança, a origem do mundo e sua ordem cheia de sentido; a essência do homem e a sua posição no cosmos, a significação da sua vida, as possibilidades do seu espírito para conhecer o ser do mundo e a estrutura da própria existência; a sua dignidade, liberdade e imortalidade; os fundamentos do direito, a ordenação do poder do Estado e o sentido da História". (Johannes Hirschberger, História da Filosofia na Idade Média, São Paulo, Editora Herder, 1966, pp. 1-

2. )

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Esta visão teocêntrica impregna todos os âmbitos da realidade. No mundo socioeconômico, a sua expressão é o feudalismo. Na arquitetura, reflete-se nos estilos românico e gótico; na literatura, como trovadorismo. A vida político-cultural sofre o domínio da Igreja, ciosa do consórcio indissolúvel entre o poder espiritual e o temporal.

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Em harmonia com o pensamento aristotélico, Tomás de Aquino considera a filosofia como uma disciplina essencialmente teorética, para resolver o problema do mundo.

Considera também a filosofia como absolutamente distinta da teologia, - não oposta - visto ser o conteúdo da teologia arcano e revelado, o da filosofia evidente e racional.

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1. POR UMA NOVA PERSPECTIVA A revelação cristã desvela, para o

pensamento filosófico, uma perspectiva nova: o mundo, em sua totalidade e diversidade, é "criado". Supera-se, assim, a concepção antiga que defendia a eternidade do cosmos. Não existe, no mundo, nada que seja "eterno" ou absolutamente necessário. Tudo, ao contrário, é radicalmente "contingente". A distinção entre Deus e a criatura é inconfundível. Ele é o ser necessário, a criatura o ser contingente que tem sua origem a partir Dele.

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A) DEUS "Deus", portanto, não é apenas o "bem

supremo", ou um "demiurgo" que plasma o mundo e se mantém indiferente a respeito do que nele acontece, ou o "primeiro motor", mas é o "criador" do mundo: causa de todo ser criado.

Relativamente às criaturas, Deus é a Causa própria e perfeita do ser como tal.

Todavia, na ordem natural, Deus é cognoscível somente a posteriori, por intermédio das criaturas.

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As vias para provar a existência de Deus, a partir do ser criado, são:

1. a mutação; 2. a causalidade eficiente; 3. a contingência; 4. os graus de perfeição; 5. o finalismo.

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Tomás de Aquino se expressa, por cinco vias pode-se provar a existência de Deus [Suma Teológica I, 11, 111 (.Porto Alegre, Escola Superior de Teologia São Lourenço de Bondes, Livraria Sulina Editora; Caxias do Sul, Universidade de Caxias do Sul, 1980)]: A primeira e mais manifesta é a procedente do movimento;

pois, é certo e verificado pelos sentidos, que alguns seres são movidos neste mundo. Ora, todo o movido por outro o é. Porque nada é movido senão enquanto relativamente àquilo a que é movido, move enquanto em ato. ( ... ). Logo, é impossível uma coisa ser motora e movida ou mover-se a si própria, do mesmo ponto de vista e do mesmo modo, pois tudo o que é movido há de sê-lo por outro. Se, portanto, o motor também se move, é necessário seja movido por outro, e este por outro. Ora, não se pode assim proceder até o infinito, porque não haveria nenhum primeiro motor e, por consequência, outro qualquer; pois os motores segundos não movem, senão movidos pelo primeiro, como não move o báculo sem ser movido pela mão. Logo, é necessário chegar a um primeiro motor, de nenhum outro movido, ao qual todos dão o nome de Deus.

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A segunda via procede da natureza da causa eficiente. Pois, descobrimos que há certa ordem das causas eficientes nos seres sensíveis; porém, não concebemos, nem é possível que uma coisa seja causa eficiente de si própria, pois seria anterior a si mesma; o que não pode ser. Mas, é impossível, nas causas eficientes, proceder-se até o infinito; pois, em todas as causas eficientes ordenadas, a primeira é causa da média e esta, da última, sejam as médias muitas ou uma só; e como, removida a causa, removido fica o efeito, se nas causas eficientes não houver primeira, não haverá média nem última. Procedendo-se ao infinito, não haverá primeira causa eficiente, nem efeito último, nem causas eficientes médias, o que evidentemente é falso. Logo, é necessário admitir uma causa eficiente primeira, à qual todos dão o nome de Deus.

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A terceira via, procedente do possível e do necessário, é a seguinte. Vemos que certas coisas podem ser e não ser, podendo ser geradas e corrompidas. Ora, impossível é existirem sempre todos os seres de tal natureza, pois o que pode não ser, algum tempo não foi. Se, portanto, todas as coisas podem não ser, algum tempo nenhuma existia. Mas, se tal fosse verdade, ainda agora nada existiria, pois o que não é só pode começar a existir por uma coisa já existente; ora, nenhum ente existindo, é impossível que algum comece a existir, e portanto nada existiria, o que, evidentemente, é falso. Logo, nem todos os seres são possíveis, mas é forçoso que algum dentre eles seja necessário. Ora, tudo o que é necessário ou tem de fora a causa da sua necessidade ou não a tem. Mas não é possível proceder ao infinito, nos seres necessários, que têm a causa da própria necessidade, como também o não é nas causas eficientes, como já se provou. Por onde é forçoso admitir um ser por si necessário, não tendo de fora a causa da sua necessidade, antes, sendo a causa da necessidade dos outros: e a tal ser todos chamam Deus.

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A quarta via procede dos graus que se encontram nas coisas. Assim, nelas se encontram em proporção maior e menor o bem, a verdade, a nobreza e outros atributos semelhantes. Ora, o mais e o menos se dizem de diversos atributos enquanto se aproximam de um máximo, diversamente; assim, o mais cálido é o que mais se aproxima do maximamente cálido. Há, portanto, algo verdadeirissimo, ótimo e nobilíssimo e, por conseguinte, maximamente ser; pois as coisas maximamente verdadeiras são maximamente seres, como diz o Filósofo. Ora, o que é maximamente tal, em um gênero, é causa de tudo o que esse gênero compreende; assim o fogo, maximamente cálido, é causa de todos os cálidos, como no mesmo lugar se diz. Logo, há um ser, causa do ser, e da bondade, e de qualquer perfeição em tudo quanto existe, e chama-se Deus.

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A quinta procede do governo das coisas. Pois vemos que algumas, como os corpos naturais, carecentes de conhecimento, operam em vista de um fim; o que se concluí de operarem sempre ou frequentemente do mesmo modo, para conseguirem o que é ótimo; donde resulta que chegam ao fim, não pelo acaso, mas pela intenção. Mas, os seres sem conhecimento não tendem ao fim sem serem dirigidos por um ente conhecedor e inteligente, como a seta, pelo arqueiro. Logo, há um ser inteligente, pelo qual todas as coisas naturais se ordenam ao fim, e a que chamamos Deus.

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B) A CRIATURA Depois de Deus, que é a pura realização do

ser como tal, vem a definição mais genérica - a do ser contingente ou da criatura.

O ente contingente é assim definido por Tomás de Aquino: "toda criatura é uma substância composta de essência e de existência, como de dois elementos realmente distintos, conquanto inseparáveis e ordenados entre si como o ato à potência".

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Em conseqüência, o limite, revelado pela multiplicidade, exige em toda criatura que o ato seja misturado de potência.

É preciso conciliar os dois aspectos: conceber uma essência que desempenhe o papel de ato, porque dá ao ser a sua natureza específica; e, por outro lado, desempenhe o papel de potência, porque se limita a uma ordem dada.

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Desta definição do ser contingente, decorre também a distinção real entre substância e acidentes. Só Deus, ser infinito, pode agir pela sua própria essência. Todo ser finito, incondicionalmente, se serve de princípios ativos distintos da sua substância (faculdades ou potências) que lhe manifestam a perfeição.

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2. A VISÃO TOMISTA As ideias, acima explanadas, intencionam

delimitar o ponto de diferenciação entre a cosmovisão antiga e a medieval, como também já nos introduzem na perspectiva tomista.

A perfeição absoluta do ser é o princípio fundamental sobre o qual Tomás de Aquino erige o seu edifício metafísico. A partir deste conceito novo, as categorias - essência e existência apresentam-se distintamente nítidas e se verificam presentes em todas as coisas observáveis. Elas, porém, convergem para um ponto de encontro, no qual se identificam, indicando o pináculo para o qual tende o sistema metafísico tomista: o Esse ipsum (Deus).

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Em Deus reside a plenitude da perfeição do ser e, através desta, a plenitude de qualquer outra perfeição. Ele, causa primeira de todo ente, comunica às suas criaturas verdade, realidade, bondade, beleza e valor. Confere-lhes substância, causalidade e atividade. Torna-as semelhantes a si mesmo, infundindo-lhes, no coração, o desejo de retornar à fonte de onde são provenientes.

Analisemos, agora, estas teses em particular.

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A) O SER Tomás de Aquino retoma a definição

aristotélica de Metafísica: "metaphysica considerai ens et ea quae consequuntur ipsum". Com este sentido, o objeto da Metafísica é o ser do ente, o ente enquanto ente.

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A diferença entre Aristóteles e Tomás de Aquino está no modo de conceber a expressão: "enquanto ente". Para Aristóteles, o ente enquanto ente é a substância, pelo fato de que esta possui a "entidade" de modo autônomo. Já em Tomás de Aquino, aquilo que constitui o ente enquanto ente é o ser. É o ente, por definição, e não outro que possui o ser.

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Definido o ser do ente como objeto formal da Metafísica, Tomás de Aquino faz sobressair a perfeição do ser como princípio predominante. Dentre todas as coisas, o ser é a mais perfeita. Nada lhe é estranho, exceto o não-ser, o qual não pode ser nem forma nem matéria. Toda natureza ou forma adquire perfeição, em virtude de estar dotada do ato de ser. Seria até difícil conceber o conhecimento sem o ser. Ele é o ato do ente, o fim último de cada ação. Em suma, “toda coisa é porque tem ser”.

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Sob este prisma, o ser não é entendido como ideia abstrata, generalíssima, que expressa o mínimo de perfeição. É concebido, aliás, de modo singular: como fonte de onde irradia e para o qual converge toda a realidade e perfeição. Sendo sempre e somente ato, funda a atualidade do ente, pois o que dá realidade ao ente e a todos os seus componentes é o ser. Negar o ser do ente equivale a negá-lo a partir daquilo que ele é, visto que "um ser é considerado perfeito na medida em que é atual; porque perfeito se chama aquilo ao que nada falta nos limites da sua perfeição".

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"O ser em si é mais perfeito de todos por atualizar a todos; pois nenhum ser é atual senão enquanto existente. Por onde, o ser em si é o que atualiza todos os outros e, mesmo, as próprias formas. Por isso, não está para outros como o recipiente para o recebido, mas, antes, como o recebido para o recipiente. Assim, quando designo o ser do homem, do cavalo, ou de qualquer outro ente, considero o ser mesmo como princípio formal e como recebido; e não como um sujeito a que sobrevém a existência".

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O ser, interpretado como raiz de tudo, é ato supremo, ato de qualquer atuação, a forma de todas as formas. É sempre perfeição atual. O ente adquire atualidade graças a ele, pois subjacente está a toda realidade, sustentando-a em todos os seus momentos, modalidades e formas. Na trama constitutiva e no desenvolvimento do ente, tudo procede do ser: o ente se forma por causa do ser, move-se no ser e a ele retoma.

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B) OS PRINCÍPIOS ONTOLÓGICOS Se o ser é o objeto da Metafísica, é evidente

que os "princípios primeiros" desta ciência são os que consideram diretamente o ser, como perfeição absoluta e fundamental.

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Tais princípios correspondem à natureza e às exigências do ser, assim definidos:

1) Princípio de não contradição "lmpossibile est esse et non esse simul". Este é o

primeiro de todos os princípios. Exigir a sua demonstração é cair no circunlóquio de retroceder ao infinito.

Este princípio enuncia a coerência do ser consigo mesmo, excluindo a possibilidade da própria negação. O ser, sob este aspecto, se manifesta como sendo algo necessário.

Como princípio lógico, faz entender que é impossível afirmar e negar simultaneamente a mesma coisa, o mesmo sujeito sob o mesmo aspecto.

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2) O princípio de identidade A afirmação "o ente é uno" nos conduz ao

princípio de identidade: "aquilo que é, é necessariamente aquilo que é". Este princípio atesta que todo ente tem uma natureza determinada, que o constitui como tal. Ele está em si mesmo e não em outro. É indivisum in se. Isto quer dizer que ele é totalmente determinado, inconfundível, único.

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3) O princípio de causalidade Tomás de Aquino refaz a clássica fórmula aristotélica:

"tudo o que é movido, o é por outro" (Omne autem quod mouetur, abalio movetur]. "Nada é movido senão enquanto potencial, relativamente àquilo a que é movido, e um ser move enquanto em ato. Pois mover não é senão levar alguma coisa da potência ao ato; assim, o cálido atual, como o fogo, torna a madeira, cálido potencial, em cálido atual, e, dessa maneira, a move e altera.

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Ora não é possível uma coisa estar em ato e potência, no mesmo ponto de vista, mas só em pontos de vista diversos; pois, o cálido atual não pode simultaneamente ser cálido potencial, mas é frio em potência. Logo, é impossível uma coisa ser motora e movida ou mover-se a si própria, no mesmo ponto de vista e do mesmo modo, pois tudo o que é movido há de sê-lo por outro".

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O princípio de causalidade, em Aristóteles, servia para explicar o movimento, o devir das coisas: em Tomás de Aquino a explicação possui uma densidade ontológica bem mais profunda. Além de usá-lo para a comprovação da existência do movimento, é empregado, sobretudo, para explicar a origem primeira.

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Tomás de Aquino concebe o princípio de causalidade com um nexo ontológico que liga realmente a causa ao efeito. A causa comunica parte de sua perfeição ao efeito; este é capaz de receber e assimilar a realidade, a perfeição, que lhe vêm comunicada mediante a causa.

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Três expressões eloquentes, utilizadas por Tomás de Aquino, ilustram as diferentes funções da causa eficiente.

- "Criação" Indica a total inexistência do ente antes de sua produção por

parte do Ente subsistente, pois criar é propriamente causar ou produzir o ser das coisas. E todas as coisas são postas no ser por Deus. Consequentemente, Deus é a causa do ser de todas as coisas. Nenhuma coisa há fora de Deus que dele não provenha. Por sua perfeição e atualidade, Deus compreende todas as perfeições. É autor das coisas enquanto é ato. "Não o seria, porém, se existisse alguma coisa que por natureza não dependesse dele, pois não há nada que por natureza dependa de outro e que, por sua vez, não dependa dele; porque, se por natureza não depende de outro, é necessário que exista por si mesmo, e então não é possível que dependa de outro. Logo, não existe nada que não procede de Deus".

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- "Comunicação" "Os seres naturais, não somente têm inclinação natural

para adquirir o bem próprio, se não o possuem, e nele repousar, seja o possuem, mas também a dífundí-lo nos outros na medida do possível. E, por isso, vemos todo o agente, na medida em que é atual e perfeito, gerar um semelhante a si. E que é da essência da vontade comunicarmos a outrem o bem que possuímos, na medida do possível ( ... ). Donde, se as coisas naturais, enquanto perfeitas, comunicam a outras o seu bem, com maioria de razão e por semelhança, é próprio à vontade divina comunicar a outros o seu, na medida do possível". Desse modo, as coisas, enquanto são perfeitas, comunicam às outras a própria bondade. Convém, analogicamente, ao ser comunicar aos entes, na medida do possível, o próprio bem.

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- "Participação" "As coisas não se distinguem entre si segundo

possuem o ser, porque o ser convém a todas elas. Se elas diferenciam-se umas das outras convém ou que o próprio ser seja especificado por diferenças que lhe são acrescentadas, de modo a haver, nas coisas diversas, ser especificamente diversificado, ou que elas se diferenciem porque o ser atribui-se a naturezas especificamente diversificadas. A primeira suposição é impossível, porque ao ser não se pode acrescentar algo conforme o modo pelo qual a diferença acrescenta-se ao gênero, ( ... ). Portanto, resta que as coisas diferenciem-se por possuirem naturezas diversas, pelas quais o ser é recebido diversamente".

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A participação significa que os entes tomam parte da perfeição do ser, cujo inicio já se dá através da comunicação. A medida da participação de um ente ao ser é definida a partir da essência, que tem a tríplice função de "definir" os entes, de "diversificá-los" e de "multiplicá-los".

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4) Princípio de analogia Vinculado ao princípio de causalidade, o princípio de

analogia afirma que a causa produz um efeito, em certa medida, semelhante a ela. A analogia entre causa e efeito é uma consequência necessária da causalidade compreendida como comunicação e participação da perfeição da causa ao efeito. A relação entre os entes e o ser é, nitidamente, uma relação de analogia.

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Como todo agente pretende introduzir no efeito a sua semelhança, na medida que o efeito a possa receber, tanto mais perfeita é a ação, quanto mais perfeito é o agente. Vê-se, por exemplo, que quanto mais uma coisa é quente, tanto mais perfeita é a forma que introduz na obra. Ora, Deus é o agente perfeitíssimo. Por isso, cabia-lhe introduzir nas coisas criadas de modo perfeitíssimo a sua semelhança, conforme a conveniência da coisa criada.

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Mas a perfeita semelhança as coisas criadas não a podem conseguir em uma só espécie de criatura, porque, a causa excedendo o efeito, o que na causa está simples e unificado, está em composição e multiplicado no efeito, a não ser que este se equipare à espécie da causa. Mas isso não pode ser atribuído ao nosso caso, porque a criatura não se pode igualar a Deus. Foi, pois, necessário ter havido multiplicidade e variedade nas coisas criadas, para que nelas houvesse, a seu modo, perfeita semelhança de Deus.

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5) Princípio de teleologia Quer indicar que toda ação ou movimento se realiza

em vista de um fim (telos). O ato último, neste caso, é sempre o ser. Sendo o devir uma passagem da potência ao ato, é indubi- tável que o ser seja o ato último para o qual o devir se inclina.

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Todo agente age por um fim; ao contrário, da ação do agente não resultaria antes uma que outra coisa senão pelo acaso. Ora, o agente e o paciente como tais têm idêntico fim, mas em sentidos diferentes. Pois uma e mesma coisa é o que o agente visa imprimir e o que o paciente visa receber. Há, porém, certos seres que simultaneamente agem e sofrem a ação, e são os agentes imperfeitos; e a esses convém que, mesmo no agir, visem a alguma aquisição. Mas ao agente primeiro, que é somente agente, não cabe agir para a aquisição de algum fim; mas ele visa somente comunicar a sua perfeição, que é a sua bondade. E cada uma das criaturas visa a conseguir a própria perfeição, que é semelhança da perfeição e da bondade divina. Assim, pois, a divina bondade é o fim de todas as coisas". Daí se pode afirmar que o princípio de teleologia é decorrente da compreensão do ser como bondade, como valor.

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C) O ATO DE SER E A ESSÊNCIA O ente é o que tem o ser, o que participa do

ser. A perfeição do ser, do qual é dotado, não é de modo pleno a perfeição do Esse ipsum: a perfeição absoluta, total, completa, infinita. Ele contém uma porção de ser finita, restrita e limitada. Para Tomás de Aquino, a limitação da perfeição do ser nos entes e a razão última da diferença ontológica entre ente e ser encontram-se na "essência". As essências são como recipientes que contêm tanto de ser quanto comporta a sua apacidade.

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Por isso, "tudo o que por sua natureza é finito, é determinado pela essência de algum gênero". "Ser absolutamente considerado é infinito, porque infinitas coisas podem participar dele de infinitos modos. Ora, se o ser de alguma coisa é finito, convém que seja limitado por outra que, de certo modo, será causa do ser"." A razão da delimitação da perfeição do ser é a essência.

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O ente real se explica pela determinação de essência e de ato de ser (actus essendi). A essência significa aptidão ou capacidade para o ser, não se identificando com ele. Stricto sensu, é potência para o ser ("id quod potest esse"). Não é identificação, como se verifica em Deus, com o ser. Nisso está subentendido que as coisas são contingentes, não existem necessariamente. Podem não ser; e, se existem, podem deixar de ser. Elas existem não por sua virtude, mas em virtude de outro, cuja essência se identifica com o ser - Deus.

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Nesta interpretação, é evidente que a essência é uma forma possível de existência, sendo esta o seu ato. Ela existe em potência e, como tal, limita, configura o ser da coisa; delineia o contorno dentro do qual a coisa pode existir. De fato, é o ser que realiza a essência que, por definição, não passa de um poder-ser.

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Segundo Tomás de Aquino, existem três modos segundo os quais a essência pode encontrar-se concretizada nas diversas coisas, nas substâncias: a) Primeiramente, existe algo, como Deus, cuja essência é o seu

próprio ser ou existência", b) "De um segundo modo, a essência se encontra concretizada

nas substâncias criadas intelectuais, nas quais o ser ou existência difere da essência, embora a essência nelas exista sem a matéria. Daí que o ser dessas substâncias não é absoluto, mas recebido, e por conseguinte limitado e finito, conforme a capacidade da natureza recipiente, embora a natureza ou quididade delas seja absoluta e carente de matéria",

c) "De um terceiro modo a essência se encontra concretizada nas substâncias compostas de matéria e forma, nas quais o ser é recebido e também finito, pelo fato de terem o ser de outros, sendo a natureza ou quididade delas recebida na matéria signada, razão pela qual são finitas, tanto se comparadas com os seres superiores como se comparadas com os seres inferiores".

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D) OS TRANSCENDENTAIS A doutrina dos transcendentais deriva

diretamente de Aristóteles, que os concebia como propriedades universais do ente. Retomada por Tomás de Aquino, sofrerá alguns retoques, exigidos pela necessidade de relacioná-los ao Esse ipsum e ao ente que é dotado de unidade, de verdade e de bondade, em virtude de sua participação no Ser.

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A noção de transcendental assinala que existem propriedades que se identificam com o ser, que têm a mesma extensão do ser. Por este motivo, estas propriedades são inseparáveis dele, e a ele totalmente convertiveis, de forma que dizer que o uno, o bom e o verdadeiro são transcendentais do ser equivale a afirmar que o ser é uno, bom e verdadeiro.

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1) A unidade Expressa a indivisão interna do ente e a sua

distinção em relação aos outros. "A unidade não acrescenta nada ao ser, mas só

a negação da divisão; pois ser uno não é senão ser indiviso; e daqui resulta, claramente, que a unidade é conversível no ser. Pois todo ser ou é simples ou composto. Aquele é indiviso, atual e potencialmente. Este não recebe o ser enquanto as suas partes estiverem divididas. Mas, só depois que elas o constituem e compõem. Por onde, é manifesto que o ser de qualquer coisa consiste na sua indivisão; e daí vem que todo ente conserva o seu ser na medida em que conserva a unidade".

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A unidade depende do grau de ser. É diferente a unidadede Deus comparada à do homem, e deste com a da pedra. A unidade de Deus é a da simplicidade, ao passo que a do homem é a da composição, como também a da pedra, só em grau inferior. "Sendo uno o ser indiviso, o ser soberanamente uno será, por força, o que for, nesse mesmo grau, ente e indiviso. Ora, uma e outra coisa convém a Deus. Assim, é soberanamente ente porque não tem o ser determinado por nenhuma natureza à qual advenha, mas é o ser mesmo por si subsistente, indeterminado de todos os modos. É também soberanamente indiviso pois não é divisível, por nenhuma espécie de divisão, nem atual nem potencialmente, porque é absolutamente simples, ( .. .). Por onde, é manifesto que Deus é soberanamente uno".

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2) A verdade A verdade, em sentido ontológico, é uma

propriedade transcendental do ente. Vemos que, em absoluto, o ente é verdadeiro, porque é inteligível, racional. É conhecível na medida que "é", na medida que está em ato. É verdadeiro, porque participa do ser. "A verdade está nas coisas e no intelecto, ( ... ).

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Mas, a verdade existente nas coisas converte-se substancial- mente com o ser; a que, porém, existe no intelecto converte-se com o ser, como o manifestativo com o manifestado"."

Afirmar, no entanto, que o ente é verdadeiro indica que ele é expressão do arquiteto supremo. É fruto do pensamento divino, manifestação do projeto de Deus. A verdade ontológica, então, é a correspondência exata entre os seres e o conhecimento que Deus tem deles, pois só Deus conhece exaustivamente os seres. É a adequação do ente ao intelecto divino (adaequatio rei ad intellectum).

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"Ora, a coisa inteligida pode se ordenar para certo intelecto ou em si, ou por acidente. Em si, ordena-se para o intelecto do qual o seu ser depende; por acidente, a um intelecto do qual é cognoscível. Como se dissermos que a casa depende, em si, do intelecto do artífice; e, por acidente, é relativa a um intelecto do qual não depende. Ora, julgamos uma coisa fundada, não no que ela existe por acidente, mas no que lhe pertence por essência. Por onde, uma coisa é considerada verdadeira, absolutamente falando, quando se ordena para o intelecto, do qual depende. Por isso, são chamadas verdadeiras as coisas artificiais, em ordem ao nosso intelecto· assim é chamada verdadeira a casa resultante da semelhança da forma, existente na mente do artífice; e verdadeira a oração, enquanto procede do intelecto verdadeiro. Semelhantemente, as coisas naturais chamam-se verdadeiras, enquanto realizam a semelhança das espécies existentes na mente divina· assim, chamamos verdadeira à pedra que realiza a natureza própria da pedra, preexistente no conceito do intelecto divino".

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A verdade ontológica, neste caso, distingue-se da verdade lógica ou verdade humana, compreendida como adequação do nosso intelecto à coisa (adaequatio íntellectus nostrí ad rem),

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3) A bondade o ser não é só conhecível, como também amável.

"Assim como o bem designa o termo para o qual tende o apetite, assim, a verdade, o termo para o qual tende o intelecto. Ora, a diferença entre o apetite e o intelecto, ou qualquer conhecimento, está em que o conhecimento supõe o objeto conhecido, no conhecente, ao passo que o apetite supõe que apetente se inclina para a coisa mesma apetecida. E, assim, termo do apetite, que é o bem, está na coisa apetecível, enquanto o termo do conhecimento, que é a verdade, está no próprio intelecto. Ora, o bem está na coisa, enquanto esta se ordena para o apetite; por isso, a noção da bondade deriva da coisa apetecível para o apetite, sendo assim, a razão por que chamamos bom ao apetite do bem".

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Aquilo que é apetecível, desejável, é capaz de provocar uma tendência que o busque. Por isso, "o dito - o bem é o que todos os seres desejam - não significa que cada bem seja desejado por todos, mas, que tudo o que é desejado tem o caráter de bem"." Assim, o bem é aquilo que pode ser desejado. O bem e o ser, portanto, são noções convertíveis.

Todas as coisas são boas, porque possuem um grau de ser e de perfeição. E, acima de tudo, porque são fruto e expressão da bondade suprema de Deus.

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“Cada ser é bom pela divina bondade, princípio primeiro exemplar, efetivo e final de toda bondade. Contudo, cada realidade é considerada boa também por uma semelhança da divina bondade, que lhe é inerente, que é a sua forma própria e o fundamento essencial das denominações. De modo que há uma só bondade, em virtude da qual todas as coisas são boas; e, por outro lado, há muitas bondades”.

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REALISMO MODERADO DE TOMÁS DE AQUINO

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Quanto aos Universais Tomás parte do pressuposto que os universais, os conceitos, as ideias, não são inatas na mente humana, como pretendia o agostinianismo, e nem sequer são inatas suas relações lógicas, mas se tiram fundamentalmente da experiência, mediante a indução, que colhe a essência das coisas. A ciência tem como objeto esta essência das coisas, universal e necessária.

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A realidade, para ele, não é nem uma única estrutura ôntica nem uma infinita diversidade de objetos incognoscíveis, mas um sistema de modos de ser, que permitem ao intelecto chegar ao conhecimento do próprio individual, na base do comum especifico e genérico.

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O olhar de Tomás, passando sobre o estritamente individual nas coisas, busca o típico e comum a grandes grupos de seres, mas sem perder-se na infinita distância de uma intuição idealista, que põe uma identidade absoluta em lugar da diversidade ordenada e inteligível.

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O mundo se compõe de coisas, de objetos reais. Mas nós podemos, até certo ponto, conhecer estas coisas. Como? Pensando-as, pesquisando aquilo que são, determinando as essências delas, descobrindo as ideias delas. Depois de ter descoberto a ideia de uma coisa, de ter sua essência, de saber aquilo que essa coisa é, dizemos que conhecemos essa coisa. Mas levanta-se, então, ante o filósofo, o gravíssimo problema seguinte: essas ideias das coisas onde estão? Não se diga que essas ideias estão em mim, porque é bem evidente que antes de adquirir eu ou descobrir eu, a ideia de tal ou qual coisa, essa coisa era já o que é, existia já sua essência ou ideia, embora eu não a conhecesse. Das ideias eu me aposso no ato de conhecer. Mas onde estão, se as considero independentemente do ato de conhecer?

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Só duas soluções são possíveis a este problema. Uma: dizer que as ideias estão nas próprias coisas. Outra: que as ideias estão fora das coisas.

Neste segundo caso, as ideias podem situar-se: ou em nenhuma parte - e esta é a solução de Platão, que nega localização às ideias no espaço e no tempo e as faz eternas realidades transcendentes - ou em alguma mente, que, não podendo ser humana, teria que ser necessariamente a divina - e esta é a solução dada por Agostinho, que, como é bem sabido, sofreu profundamente a influência da filosofia platônica.

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A solução que considera as ideias como residentes nas coisas mesmas foi a que descobriu Aristóteles; segundo ele, nós conhecemos partindo da percepção sensível das coisas, sobre a qual realizamos um trabalho de abstração, prescindindo do estritamente individual em cada coisa, para chegar, por depurações e por destilações sucessivas, até o conjunto das notas ou caracteres essenciais, até a essência, até aquilo que a coisa é, até a ideia.

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Entre as duas soluções, a aristotélica de uma parte e a platônico-agostiniana de outra, abre-se um verdadeiro abismo que parece impossível preencher. A contradição das duas soluções chegou, na época de Tomás, a apresentar caracteres de extraordinária agudeza e mesmo violência. Na época de Tomás, discutiam e combatiam os aristotélicos contra os platônico-agostinianos. E Tomás viu-se, desde logo, na necessidade de tomar em conta o problema e escolher entre a solução aristotélica ou a solução platônico-agostiniana.

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Neste ponto, Tomás rejeita o dilema: ou Aristóteles ou Platão-Agostinho. Converte simplesmente a conjunção ou em a; e escolhe Aristóteles e Agostinho. Toma as duas soluções; não uma das duas; porque não crê que, em definitivo, as duas soluções sejam incompatíveis uma com a outra, mas que ambas têm seu fundamento, sua realidade e sua verdade. As ideias estão nas coisas como diz Aristóteles. Mas também estão na mente de Deus, como diz Agostinho. Não está a ideia da estátua na mente do escultor e também na própria estátua? Ou, por acaso, a estátua é informe? Não; a estátua não é informe.

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Toda realidade, toda coisa real é uma matéria que possui certa forma. Aristóteles colocou a ideia da coisa, como forma da coisa. Mas essa ideia que é forma da coisa, não está também, prévia e exemplarmente, na mente de Deus? Aristóteles, para explicar em que sentido a realidade da coisa contém a ideia da coisa, descobriu esta teoria da matéria e da forma, como constituintes de toda realidade substancial.

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Porém esta teoria aristotélica não é, nem de longe, incompatível com a de Agostinho, que coloca as ideias na mente de Deus. Não se pode ser, em filosofia, exclusivista e parcial. Não é possível deixar de aceitar a alternativa. Nosso pensamento deve ser amplo, complexo, matizado, eclético; porque assim é a própria realidade, eclética, matizada, complexa e vasta. O ser não é unívoco, nem equívoco; o ser é análogo, quer dizer, diverso e, todavia, uno.

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A filosofia de Tomás começa pela realidade, pelo ser, e trata de fixar em conhecimentos verdadeiros a estrutura própria da realidade, destas e aquelas realidades, de toda a realidade em geral e daquela realidade que é fonte e origem de toda realidade.

A filosofia de Tomás é realista; procura ajustar o pensamento ao ser; está sempre atenta a submeter a razão às exigências do objeto. É objetiva no amplo sentido da palavra; quer dizer, submissa humildemente às modalidades do objeto puro.

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No realismo, a fé, a razão, a crítica, a análise, a observação, a experimentação, são vias e métodos igualmente legítimos que nos proporcionam conhecimentos verdadeiros da realidade, quando se adaptam, convenientemente, às estruturas ônticas do objeto estudado.

A unidade da verdade, firmada sobre a unidade do ser, não somente não sofre detrimento, mas ao contrário, se afirma e enaltece com a diversidade harmônica dos modos humanos de conhecer. A filosofia de Tomás aceita todas essas modalidades de conhecimento e as faz convergir todas na síntese total do saber.

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ENTE ENTE LÓGICO

Nem tudo o que é pensado existe assim como é pensado. O caráter universal dos conceitos é fruto da faculdade abstrativa do intelecto (= realismo moderado)

ENTE REAL tudo o que existe é ente, mas de modo analógico: Deus, p. ex., é o ser, enquanto o criado tem o

ser por participação. O ente real se distinguem em: UNO

O ser é uno, ou seja, não é autocontraditório, é indivisível, mas participável TRANSCENDENTAIS

(verdadeiro, uno, bom) O ser é uno, verdadeiro e bom

ESSÊNCIA É atitude/potência para ser. É universal

ATO DE SER É aquilo que existe de fato. Nas criaturas essência e ato de ser são distintos; em Deus

coincidem BOM

O ser é bom porque desejado pela bondade de Deus VERDADEIRO

O ser é verdadeiro porque é inteligível e é inteligível porque Deus o pensou para cria-lo DEUS

Apenas em Deus essência e existência coincidem. Deus é o ser de forma originária; o mundo por participação

MUNDO CRIADO As criaturas, enquanto participam do ser divino, em parte se assemelham a Deus e em parte

não. Isto significa que entre Deus e o mundo há analogia, no sentido que aquilo que se predica das criaturas também se pode predicar de Deus, não porém, do mesmo modo, nem no mesmo grau.

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Portanto nem tudo o que é pensado existe assim como é pensado. O caráter universal dos conceitos é fruto da faculdade abstrativa do intelecto (=realismo moderado)

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Para entender melhor o realismo será oportuna recordar isto que se diz a propósito da dimensão sensitiva do conhecimento: O estímulo físico, para poder influir sobre ato da

sensação, deve em qualquer modo vir transformado em uma qualidade de ordem biofísico ou bioquímico, consistente na reação de um órgão ao estímulo mesmo; se o órgão não possui esta capacidade, a reação não acontece.

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A teoria escolástica admite na passagem do sentido ao intelecto, um certo poder de adaptação e de iluminação; este poder é chamado intelecto agente, para distingui-lo do intelecto paciente. O intelecto agente, em presença da imagem sensível, produz no intelecto paciente uma qualidade de ordem superior e espiritual, chamada species impressa, graças à qual dos dados fornecidos pela dimensão sensitiva do conhecimento, chamados fantasmas, vêm liberada a inteligibilidade e o intelecto paciente produz a species expressão verbo mental.

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O intelecto humano, uma vez em posse de conceitos, poderá formular juízos e fazer raciocínios. Através o ato de intelecção o conhecido e o conhecedor, enquanto tal, é a mesma coisa; isto quer dizer que o objeto inteligível e identicamente o mesmo no conceito e na realidade; a única diferença está no modo de existência: essa é imaterial e abstrata na inteligência, material e concreta na realidade.

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O conceito é o resultado de dois fatores: de uma parte o objeto apresentado da dimensão sensitiva do conhecimento, que ao inteligível confere determinação específica, e de outra a atividade do intelecto, que colhe e liberta o inteligível. Assim no conceito é a coisa mesma a ser conhecida, por que o intelecto forma um ou outro conceito segundo os dados da realidade que lhe vem apresentado.

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O conceito como tal não é conhecido se não por reflexão do intelecto sobre próprio ato. Diretamente e em primeiro lugar, é a realidade objetiva que vem colhida do ato intelectivo, bem que em forma imaterial. Por tal motivo esta teoria se chama "realismo".

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Mas a tese defendida por Tomás de Aquino é a do realismo moderado, imanente, que o universal tem em si uma realidade objetiva, fora da mente, mas é imanente nos objetos singulares de que é essência, forma, princípio, corresponde à posição aristotélica, com a doutrina da forma que determina a matéria, os universais existem antes da coisa na mente de Deus (ante rem), como forma das coisas (in re), e como conceito mental, no intelecto (post rem).

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ABSTRAÇÃO

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A abstração: etimologicamente, abstrair (abstrahere) significa "separar". Com o nome de abstrair, em geral, se entende aquela operação ou aquele conjunto de operações com as quais o intelecto forma o conceito universal, a qual conteúdo, mesmo sendo um, a causa da identidade, vêm atribuído a cada um dos indivíduos aos quais se destina. Tal é o conteúdo do conceito "mesa" respeito a todas as singulares mesas às quais se pode atribuir pela identidade, ou do conceito "ser humano" respeito a todos os indivíduos humanos. Assim posso dizer com verdade: "Pedro é ser humano", "Paulo é ser humano".

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A abstração é, então, o processo através o qual se passa do sensível concreto ao inteligível abstrato; das coisas particulares das realidades aos conceitos universais. O intelecto humano, a diferença dos sentidos, toma o inteligível no sensível, a lei nos fatos; penetra em profundidade até à estrutura inteligível que se acha sobe os aspectos sensíveis. O intelecto é imerso no mundo e conhece através a sensibilidade. O essencial da abstração é a interiorização (intuslegere) e a penetração até ao aspecto inteligível das coisas. Por meio da abstração o espírito humano se coloca acima do conhecimento animal.

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O processo completo da abstração se realiza em três estágios: a) elaboração da espécie sensível, conteúdo do

conhecimento sensível, da parte dos sentidos externos e internos;

b) elaboração da espécie inteligível, fruto do intelecto agente, a partir da espécie sensível;

c) assimilação da espécie inteligível da parte do intelecto paciente e produção do conceito.

A abstração do primeiro estágio, devida aos sentidos, se chama omissiva, por que cada um sentido percebe somente um aspecto do objeto: cor, dureza..., e omite os outros. Os estágios segundo e terceiro constituem a abstração intelectiva.

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Para Tomás de Aquino, esta se distingue ainda em abstração total e abstração formal. Na abstração total, na qual o universal vem abstraído do

particular, se trata da passagem do singular concreto ao universal, do indivíduo particular à essência geral; por exemplo, dos indivíduos Pedro, Paulo..., se obtém o conceito universal "ser humano". Vem chamada abstração "total" porque nessa se obtém um totum (ser humano) a partir das pares (indivíduo), isto é, se prescinde das notas individuais e se toma isto que é comum a muitos. Desta abstração se fala quando dizemos que o ser humano elabora conceitos universais e pode conhecer a essência das coisas. Essa é comum a todas as ciências porque todas trabalham com conceitos universais.

A abstração formal chega a forma separada, não somente das notas individuais, mas mesmo do sujeito; por exemplo, quando de Pedro afirmamos, não já que é ser humano, bem sim a humanidade, quer dizer isto que faz sim que Pedro seja ser humano. Esta abstração faz diferentes as ciências entre si e tem três graus: o primeiro é próprio das ciências naturais, o segundo da matemática e o terceiro da metafísica.

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Como é possível a passagem do particular material ao universal? O intelecto paciente: o intelecto humano no início é

como uma tábua rasa; é uma potência passiva disposta a receber, já que no sentido mais geral "sofrer" significa passar da potência ao ato. Quando nós entendemos, passamos da potência ao ato, porque o nosso intelecto, não possuindo em ato todo o ser, é em potência de entender, e quando entende passa da potência ao ato; esta potência a chama intelecto paciente.

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O intelecto agente: o intelecto humano é também uma potência ativa: porque a espécie sensível não é inteligível em ato, afim que o intelecto possa entender deve torná-la inteligível em ato; e assim como nada passa da potência ao ato se não mediante um ser em ato, o intelecto humano é mesmo uma potência ativa. A espécie inteligível que o intelecto elabora pode vir somente do conhecimento sensível, porque nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu. A espécie sensível, porém, não é inteligível em ato porque depende da matéria e então não pode ser inteligível por si, nem pode agir sobre o intelecto que é espiritual. Para passar do plano sensível ao intelectivo, a iniciativa deve vir do intelecto, e por isto nesse se acha uma potência ativa chamada intelecto agente.

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A função do intelecto agente: consiste no atualizar (colocar em ato) os elementos inteligíveis que estão em potência na espécie sensível. A ação do intelecto agente, sempre em ato, se exercita diretamente sobre a espécie sensível elevando-a a nível inteligível. Esta função do intelecto agente não consiste no espiritualizar a espécie sensível, que é sensível e continua a ser sensível; o espírito humano não tem o poder de transformar ontologicamente as coisas. Não se acrescenta nada às espécies sensíveis, porque neste caso o intelecto seria criado do objeto inteligível, e chegaria somente isto que o mesmo espírito teria introduzido nas coisas. A função do intelecto agente é aquela de atualizar o inteligível, revelá-lo ou escondê-lo, porque a quididade é presente no sensível, mas os sentidos não podem descobrir: Sócrates é ser humano, mas vendo-o não se vê a essência "ser humano", somente a cor, a altura, etc... É o intelecto que deve penetrar e ler dentro (intuslegere).

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O verbo mental: uma vez formada a espécie inteligível, passamos ao nível intelectivo. O intelecto paciente recebe a espécie inteligível e entende; o intelecto agente se limita a revelar, a iluminar. O intelecto paciente, bem que seja uma potência passiva, não é puramente passivo; todavia não pode agir, entender, se não lhe vem apresentada a espécie inteligível. A sua ação é imanente, essa exprime em si mesmo a essência da coisa em uma espécie expressa, isto é em um verbo mental, ou conceito. O conceito não é o objeto que se conhece (id quod cognoscitur), mas o meio através o qual a essência da coisa é conhecida (id quo obiectum cognoscitur).

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Convêm precisar que não se chamem "paciente" e "agente" o uno referente ao outro, mas por relação ao mesmo objeto. Bem que com funções diversas, todas as duas constituem uma unidade, como dois momentos essenciais complementares do único conhecimento humano. Ambos são complementares a um e ao outro, igualmente conformados no seu ser, se si prescinde da receptividade ou espontaneidade que os distingue. O intelecto agente mostra a espontaneidade do espírito humano, isto é quo est omnia facere; o intelecto paciente mostra a possibilidade que tem o espírito humano de entender, é isto quo est omnia fieri.

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Para finalizar, vemos que a metafísica de Tomás de Aquino é a metafísica do ser, orientada a definir o alicerce que funda a realidade e a posssibilidade concreta das essências. "Trata-se de um fundamento que não buscamos, pelo simples fato de que está sempre já presente no fato de ser dos entes, nesse milagre pelo qual aquilo que poderia não ser existe de fato.

Trata-se da redes coberta da estupefação diante do mistério do ser, fazendo renascer a estupefação originária que desperta em nós quando percebemos o dom inestimável e indizível do ato graças ao qual somos tirados do nada para o ser".

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O tema do ser é a tese que traça a originalidade e a fecundídade do pensamento tomista. Na cosmovisão de Tomás de Aquino, não existem barreiras para a compreensão do ser, porque o pensamento não é estranho ao ser, não está fora dele. E, em particular, o seu momento mais elevado: o momento no qual o ser torna-se transparente a si mesmo.

Se o ser abrange tudo, tal pressuposição expressa que o pensamento está no ser. Isso revela a própria atitude intelectual de Tomás de Aquino. Não existe doutrina filosófica e teológica que ele não tenha redimensionado, repensado na perspectiva do ser. Penetra em qualquer âmbito do pensamento, mostrando que a chave para a solução do problema metafísico, teológico e antropológico é o ser.

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Sendo assim, "tal filosofia é otimista, porque descobre um sentido profundo no fundo daquilo que existe; é uma filosofia do concreto, já que o ser é o ato graças ao qual as essências existem de fato. Mas também é a filosofia do crente, porque só o crente pode lançar as essências à discussão e captar o ato básico e positivo graças ao qual existe algo ao invés de nada".

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EXERCÍCIOS HERMENÊUTICOS 1) Em Tomás de Aquino, metafísica e teologia estão

intimamente interligadas. Esta vinculação, para a reflexão filosófica, é algo necessário?

2) Comumente, escutam-se os chavões: sem Deus, a vida é um absurdo; sem Deus, tudo é permitido. Semelhantes afirmações, de fato, são verdadeiras? Fora de Deus, a existência está totalmente destituída de sentido e de valor?

3) Como interpretar corretamente a questão do ateísmo?