a odontologia do futuro

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C M Y K C M Y K E Ed di it to or ra a: : Ana Paula Macedo [email protected] 3214-1195 • 3214-1172 / fax: 3214-1155 23 CORREIO BRAZILIENSE Brasília, domingo, 17 de março de 2013 A odontologia do futuro Pesquisadores avançam na criação de dentes a partir de células-tronco. A técnica, na qual o Brasil se destaca, promete revolucionar a área dos implantes. Em novo estudo, britânico formou estruturas ao combinar células humanas com a de camundongos » BRUNA SENSÊVE C riar dentes em laboratório usando apenas compo- nentes biológicos é uma das principais buscas da odontologia. Não é para menos. O chamado biodente, desenvolvi- do a partir de células-tronco hu- manas, pode um dia livrar defini- tivamente a humanidade de den- taduras, próteses e pinos de titâ- nio encravados na gengiva. No fu- turo, indicam os estudos, dentes de verdade, novos em folha e com raízes poderão ser implantados na boca dos pacientes. Essa linha de pesquisa foi apresentada pela primeira vez em 2004, no Journal of Dental Re- search. Naquele ano, em uma mesma edição, a revista espe- cializada publicou dois artigos sobre os primeiros experimentos na área, que a publicação cha- mou de “odontologia do futuro”. Um dos estudos era assinado por Paul Sharpe, do King’s College de Londres. O outro, pelos pesquisa- dores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Mônica Duailibi e Sílvio Duailibi. Ainda deve levar algum tempo para que o biodente vire uma ro- tina nos consultórios, mas as pesquisas não param de trazer novidades. Neste mês, no mesmo Journal of Dental Research, Paul Sharpe apresenta sua mais re- cente conquista. Ele descreve co- mo obteve dentes a partir de cé- lulas-tronco extraídas da gengiva de pacientes do Instituto de Odontologia da instituição em que trabalha. Depois de colhidas, A busca por dentes naturais se justifica pelas evidentes e ainda intransponíveis falhas dos modelos usados atualmen- te. A substituição de um dente inteiro tem como limitação a reprodução da estrutura natu- ral da raiz dentária. Os impac- tos contínuos e não amorteci- dos provenientes da mastiga- ção levam a uma reabsorção do osso da mandíbula ao re- dor do implante. O processo causa um desgaste intenso que pode levar à perda severa de massa óssea. Seja por esse processo, seja por uma lesão, a presença desse dano à estru- tura não só é prejudicial como pode até impedir que um den- te sintético venha ser implan- tado no local. Por essa série de motivos, um implante biológi- co com a raiz do dente total- mente integrada ao osso por meio de um ligamento natural é um avanço muito esperado. Algumas pesquisas bus- cam gerar dentes imaturos ou primordiais semelhantes aos observados em embriões e que possam ser transplan- tados como um amontoado de pequenas células ao maxi- lar adulto. Esse conjunto ce- lular se desenvolveria, então, em dentes funcionais. Os es- tudos nessa direção utilizam células-tronco embrionárias que poderiam formar dentes imaturos após serem separa- das e recombinadas com ou- tras moléculas capazes de in- duzir o processo de formação. A utilização de células em- brionárias significa que o ma- terial utilizado não seria o mesmo da pessoa que recebe- ria o dente. Haveria portanto, uma grande possibilidade de rejeição. O organismo recep- tor poderia reconhecer as cé- lulas novas como um patóge- no a ser destruído. Para evitar esse efeito, o indivíduo preci- saria tomar drogas imunossu- pressoras. A estratégia, contu- do, se mostrou ineficaz em testes com animais. As co- baias ficaram tão fragilizadas, devido às drogas, que muitas vezes morriam antes de o bio- dente se formar. Há ainda a questão ética, pois há quem se oponha ao uso de células-tronco embrionárias em estudos desse tipo. Irina Kerkis, professora do Laborató- rio de Genética do Instituto Bu- tantan, lembra que as células embrionárias utilizadas no es- tudo do professor Paul Sharpe foram retiradas de camundon- gos. Em humanos, a extração dessas células precisaria de ma- terial abortivo. (BS) Limitações no uso de material embrionário elas foram isoladas e cultivadas em laboratório para, em seguida, serem combinadas com células embrionárias de camundongos, que se mostraram capazes de in- duzir a formação de uma denti- ção primordial. A agregação celular ficou em cultura durante uma semana, quando, então, foi transferida ci- rurgicamente para cápsulas re- nais de camundongos. Seis se- manas mais tarde, ganharam a forma de dentição (veja infogra- fia). Apesar de parecer estranha, a deposição do material nos rins de roedores não é incomum na pesquisa científica. No local, há a presença de muitos hormônios e fatores de crescimento celular ca- pazes de formar diferentes estru- turas, como pelos e cabelo. A criação dos dentes foi bem- sucedida em uma de cada grupo de seis amostras. Para comprovar que a criação dos biodentes exige a combinação de células huma- nas e de roedores, o pesquisador fez experimentos semelhantes usando apenas células humanas ou apenas células dos roedores. Seis semanas após a transferência renal, as células epiteliais huma- nas formaram estruturas pareci- das com cistos, e as de roedores geraram uma espécie de tecido mineralizado. Segundo Sharpe, a principal contribuição do estudo foi iden- tificar células de fácil obtenção e que podem ajudar na criação do biodente. “Essas células epiteliais são facilmente acessíveis e, por isso, devem ser consideradas na formação do biodente humano.” Ele destaca que o próximo desa- fio é identificar uma forma de não utilizar material de roedores. Em São Paulo A linha de investigação do bri- tânico, apesar de buscar o mes- mo objetivo, segue caminho dife- rente do das pesquisa conduzi- das por Sílvio Duailibi e Mônica Duailibi na Unifesp. Mônica ex- plica que, em vez de trabalhar com células embrionárias de ca- mundongos, sua equipe buscou uma alternativa que pudesse ser aplicada clinicamente mais tarde desde a primeira pesquisa. O foco do time da Unifesp é usar células-tronco colhidas da própria pessoa a receber o bio- dente. O trabalho atual busca dri- blar um problema reconhecido e não resolvido por Sharpe: como identificar ou escolher o tipo de dente que será gerado. Os traba- lhos publicados até hoje mostram que ainda é impossível saber pre- viamente se, daquela mistura de células, surgirá um molar, um pré- molar ou um canino. A equipe nacional trabalha com uma estrutura de polímeros biodegradável, parecida com um molde. Com esse recurso e uma técnica de impressão tridimen- sional de órgãos, é possível atin- gir a forma desejada para o dente. “Usamos células humanas reti- radas de germes dos sisos. Eles são extraídos precocemente, as células são retiradas e reconstruí- das nesses moldes”, explica a pes- quisadora. O grupo de Duailibi utiliza ainda o dorso de animais imunossuprimidos, o que impe- de as células de defesa dos bichos de interferir no desenvolvimento do biodente. Palavra de especialista Aplicação distante “A novidade do estudo de Paul Sharpe é ter utilizado células epiteliais humanas e não células mesenquimais. Com certeza existem avanços significativos, mas a viabilidade clínica ainda está muito longe de acontecer. Uma das limitações do trabalho é exatamente a dificuldade de saber qual tipo de dente será formado. Eles inclusive incluem isso na discussão do trabalho. Sem essa informação, não é possível transplan- tar o aglomerado de células em um lugar específico da boca do paciente. Com esse conhecimento, no entanto, começamos a dominar maneiras de ter implantes dentários com maios longevidade.” Gilson Beltrão, doutor em odontologia e especialista em implantodontia do Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS)

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Matéria premiada em primeiro lugar no Prêmio CROSP de Jornalismo 2013, concedido pelo Conselho Federal de Odontologia de São Paulo.

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EEddiittoorraa:: Ana Paula [email protected]

3214-1195 • 3214-1172 / fax: 3214-1155

23 • CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, domingo, 17 de março de 2013

A odontologia dofuturo Pesquisadoresavançamnacriaçãodedentesapartirdecélulas-tronco.Atécnica,na

qualoBrasil sedestaca,prometerevolucionaraáreados implantes.Emnovoestudo,britânico formouestruturasaocombinarcélulashumanascomadecamundongos

» BRUNA SENSÊVE

C riar dentes em laboratóriousando apenas compo-nentes biológicos é umadas principais buscas da

odontologia. Não é para menos.O chamado biodente, desenvolvi-do a partir de células-tronco hu-manas, pode um dia livrar defini-tivamente a humanidade de den-taduras, próteses e pinos de titâ-nio encravados na gengiva. No fu-turo, indicam os estudos, dentesde verdade, novos em folha e comraízes poderão ser implantadosna boca dos pacientes.

Essa linha de pesquisa foiapresentada pela primeira vezem 2004, no Journal of Dental Re-search. Naquele ano, em umamesma edição, a revista espe-cializada publicou dois artigossobre os primeiros experimentosna área, que a publicação cha-mou de “odontologia do futuro”.Um dos estudos era assinado porPaul Sharpe, do King’s College deLondres. O outro, pelos pesquisa-dores da Universidade Federal deSão Paulo (Unifesp) MônicaDuailibi e Sílvio Duailibi.

Ainda deve levar algum tempopara que o biodente vire uma ro-tina nos consultórios, mas aspesquisas não param de trazernovidades. Neste mês, no mesmoJournal of Dental Research, PaulSharpe apresenta sua mais re-cente conquista. Ele descreve co-mo obteve dentes a partir de cé-lulas-tronco extraídas da gengivade pacientes do Instituto deOdontologia da instituição emque trabalha. Depois de colhidas,

A busca por dentes naturaisse justifica pelas evidentes eainda intransponíveis falhasdos modelos usados atualmen-te. A substituição de um denteinteiro tem como limitação areprodução da estrutura natu-ral da raiz dentária. Os impac-tos contínuos e não amorteci-dos provenientes da mastiga-ção levam a uma reabsorçãodo osso da mandíbula ao re-dor do implante. O processocausa um desgaste intensoque pode levar à perda severade massa óssea. Seja por esseprocesso, seja por uma lesão, apresença desse dano à estru-tura não só é prejudicial comopode até impedir que um den-te sintético venha ser implan-tado no local. Por essa série demotivos, um implante biológi-co com a raiz do dente total-mente integrada ao osso pormeio de um ligamento naturalé um avanço muito esperado.

Algumas pesquisas bus-cam gerar dentes imaturosou primordiais semelhantesaos observados em embriõese que possam ser transplan-tados como um amontoadode pequenas células ao maxi-lar adulto. Esse conjunto ce-lular se desenvolveria, então,em dentes funcionais. Os es-tudos nessa direção utilizam

células-tronco embrionáriasque poderiam formar dentesimaturos após serem separa-das e recombinadas com ou-tras moléculas capazes de in-duzir o processo de formação.

A utilização de células em-brionárias significa que o ma-terial utilizado não seria omesmo da pessoa que recebe-ria o dente. Haveria portanto,uma grande possibilidade derejeição. O organismo recep-tor poderia reconhecer as cé-lulas novas como um patóge-no a ser destruído. Para evitaresse efeito, o indivíduo preci-saria tomar drogas imunossu-pressoras. A estratégia, contu-do, se mostrou ineficaz emtestes com animais. As co-baias ficaram tão fragilizadas,devido às drogas, que muitasvezes morriam antes de o bio-dente se formar.

Há ainda a questão ética,pois há quem se oponha ao usode células-tronco embrionáriasem estudos desse tipo. IrinaKerkis, professora do Laborató-rio de Genética do Instituto Bu-tantan, lembra que as célulasembrionárias utilizadas no es-tudo do professor Paul Sharpeforam retiradas de camundon-gos. Em humanos, a extraçãodessas células precisaria de ma-terial abortivo. (BS)

Limitações no uso dematerial embrionário

elas foram isoladas e cultivadasem laboratório para, em seguida,serem combinadas com célulasembrionárias de camundongos,que se mostraram capazes de in-duzir a formação de uma denti-ção primordial.

A agregação celular ficou emcultura durante uma semana,quando, então, foi transferida ci-rurgicamente para cápsulas re-nais de camundongos. Seis se-manas mais tarde, ganharam aforma de dentição (veja infogra-fia). Apesar de parecer estranha,a deposição do material nos rinsde roedores não é incomum napesquisa científica. No local, há apresença de muitos hormônios efatores de crescimento celular ca-pazes de formar diferentes estru-turas, como pelos e cabelo.

A criação dos dentes foi bem-sucedida em uma de cada grupo

de seis amostras. Para comprovarque a criação dos biodentes exigea combinação de células huma-nas e de roedores, o pesquisadorfez experimentos semelhantesusando apenas células humanasou apenas células dos roedores.Seis semanas após a transferênciarenal, as células epiteliais huma-nas formaram estruturas pareci-das com cistos, e as de roedoresgeraram uma espécie de tecidomineralizado.

Segundo Sharpe, a principalcontribuição do estudo foi iden-tificar células de fácil obtenção eque podem ajudar na criação dobiodente. “Essas células epiteliaissão facilmente acessíveis e, porisso, devem ser consideradas naformação do biodente humano.”Ele destaca que o próximo desa-fio é identificar uma forma denão utilizar material de roedores.

EmSão PauloA linha de investigação do bri-

tânico, apesar de buscar o mes-mo objetivo, segue caminho dife-rente do das pesquisa conduzi-das por Sílvio Duailibi e MônicaDuailibi na Unifesp. Mônica ex-plica que, em vez de trabalharcom células embrionárias de ca-mundongos, sua equipe buscouuma alternativa que pudesse seraplicada clinicamente mais tardedesde a primeira pesquisa.

O foco do time da Unifesp éusar células-tronco colhidas daprópria pessoa a receber o bio-dente. O trabalho atual busca dri-blar um problema reconhecido enão resolvido por Sharpe: comoidentificar ou escolher o tipo dedente que será gerado. Os traba-lhos publicados até hoje mostramque ainda é impossível saber pre-viamente se, daquela mistura decélulas, surgirá um molar, um pré-molar ou um canino.

A equipe nacional trabalhacom uma estrutura de polímerosbiodegradável, parecida com ummolde. Com esse recurso e umatécnica de impressão tridimen-sional de órgãos, é possível atin-gir a forma desejada para o dente.“Usamos células humanas reti-radas de germes dos sisos. Elessão extraídos precocemente, ascélulas são retiradas e reconstruí-das nesses moldes”, explica a pes-quisadora. O grupo de Duailibiutiliza ainda o dorso de animaisimunossuprimidos, o que impe-de as células de defesa dos bichosde interferir no desenvolvimentodo biodente.

Palavra de especialista

Aplicação distante“A novidade do estudo de Paul Sharpe é ter utilizado células epiteliais

humanas e não células mesenquimais. Com certeza existem avançossignificativos, mas a viabilidade clínica ainda está muito longe deacontecer. Uma das limitações do trabalho é exatamente a dificuldadede saber qual tipo de dente será formado. Eles inclusive incluem isso nadiscussão do trabalho. Sem essa informação, não é possível transplan-tar o aglomerado de células em um lugar específico da boca do paciente.Com esse conhecimento, no entanto, começamos a dominar maneirasde ter implantes dentários com maios longevidade.”

GilsonBeltrão,doutor emodontologia e especialista em implantodontia doHospitalSãoLucasdaPontifíciaUniversidadeCatólicadoRioGrandedoSul (PUC-RS)