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G WEN C OOPER A ODISSEIA DE HOMERO A história de um gato cego e destemido e as lições que ele me ensinou sobre o amor e a vida

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GWEN COOPER

A ODISSEIA DE

HOMEROA história de um gato cego e destemido

e as lições que ele me ensinou sobre o amor e a vida

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“Todos os estranhos e necessitados vêm de Zeus.E qualquer dádiva, por menor que seja, é preciosa.”

– Homero, A odisseia

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P R E F Á C I O

quando vi o gatinho pela primeira vez, ele não passava de uma mi-

núscula bola de pelo preto aninhada entre as palmas das mãos deuma moça. A princípio, me pareceu um gato como outro qualquer –isto é, até erguer a cabeça e soltar um uivo impressionantementeforte para uma criatura que tinha apenas 10 centímetros de com-primento do focinho à ponta do rabo.

Apesar de tão pequeno, ele se virou em direção à minha voz. Foientão que vi seus olhos. Aquele filhote de duas semanas de idadeestava sofrendo de uma infecção grave que sem dúvida tiraria suavisão – talvez até sua vida.

O casal bem-intencionado que o encontrou só faltou implorarque eu o sacrificasse imediatamente. Ignorando seus pedidos, rea-lizei um exame clínico minucioso enquanto o gato se debatia, agi-tando as patinhas e miando alto na mesa de aço inox. Eu disse que ofilhote parecia perfeitamente saudável, desconsiderando o pro-blema nos olhos. Estariam eles dispostos a adotá-lo se eu tratasse ainfecção?

Por uma série de motivos, o casal não poderia oferecer um larpara um gatinho tão novo. Eles trabalhavam. Tinham um cachorro.Não tinham dinheiro. E, além do mais, quais eram as chances de elevoltar a enxergar?

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Bem... nenhuma. Zero. Eu expliquei que pretendia remover ci-rurgicamente os olhos dele para salvar sua vida.

Tenho certeza de que essa foi a gota d’água. Balançando as cabeçasde incredulidade, os dois decidiram deixá-lo aos meus cuidados. Osmiados agudos provavelmente os levaram a optar pela rejeição – elesacreditavam que o bichinho estava sentindo uma dor terrível.

Depois que o casal resolveu deixá-lo comigo, fiquei responsávelpor tratar do gatinho da maneira que fosse melhor para ele. Aindatinha minhas dúvidas, mas elas se dissiparam quando descobri acausa do seu desconforto naquele momento: fome. Uma tigela deração misturada com leite o fez parar de chorar. Em questão de mi-nutos ele caiu em um sono tranquilo, o que me convenceu a cuidarde seus olhos, independentemente da cegueira que resultaria disso.

Afinal de contas, pensei, aquele gatinho nunca havida tido o pri-vilégio da visão. Ao contrário dos bebês humanos, depois de nasce-rem os gatos permanecem com os olhos fechados para o mundo por10 a 13 dias. Era quase certo que a infecção relativamente longa da-quele filhote tivesse impedido qualquer tipo de visão. Depois de tra-tado, ele ficaria cego sem jamais sentir falta da capacidade deenxergar.

Como muitos animais, filhotes de gato são capazes de redirecio-nar suas habilidades neurológicas em nome da sobrevivência pormeio de um processo chamado adaptação individual ao ambiente –o que é meu jeito sofisticado de dizer “eu me recuso a colocá-lo paradormir”. Se eu era capaz de preservar uma vida que valia a pena servivida, essa era a minha prioridade.

Pergunte a qualquer veterinário jovem e idealista e ele provavel-mente confessará ter cometido o mesmo tipo de pecado que eu co-meti no dia em que aquele gatinho cego cruzou meu caminho. Se oanimal está doente, mas pode ser curado – e se existe a mínimachance de alguém adotá-lo –, pensamos: não foi por acaso. São elesque sempre tocam nosso coração com sua extraordinária capaci-dade de sobrevivência e seu irresistível potencial de patinhos feios.

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Eu sabia que não tinha como manter um gatinho cego em minhacasa habitada por um bebê de colo, pessoas alérgicas e um cachorrogrande. Mas com certeza não podia deixar um gato forte como aquelemorrer por um motivo tão banal quanto a falta de um lar. Alguém do

meu círculo de amizades ou da minha família sem dúvida vai achá-lo

tão encantador quanto eu, ponderei. Só precisava encontrar alguémcom a mistura de excentricidade e compaixão necessária para as-sumir esse bichinho de estimação com “necessidades especiais”.

O que se seguiu foram duas semanas de rejeição atrás de rejei-ção. Eu recrutei minha família, um clã de amantes dos animais, queobedientemente espalhou a notícia do gatinho cego que precisavade um lar seguro. Colei cartazes e procurei colegas da faculdade deVeterinária que eu sabia que tinham simpatia pelos desvalidos.Porém, nada adiantou.

A essa altura, eu já havia deixado para trás qualquer dúvida ousentimento de culpa que tivesse. Após a cirurgia, o filhote tinha vol-tado à vida cheio de ânimo – de tal forma que minha equipe e eu fi-camos perdidamente apaixonados por ele. Havia dias em que eusimplesmente não conseguia suportar a ideia de abandoná-lo.

Como não cair de amores por seu pelo preto e espetado, por suacavidade ocular funda e pequenina, por seu apetite insaciável porcomida, carinhos, chamegos e brincadeiras? Sim, ele brincava comoum gatinho normal, apesar de cego. Resumindo, era a coisinha maisadorável... em todos os aspectos, com exceção daquele com o qual amaioria dos humanos se preocupa: a aparência.

Por fim, uma moça que possuía dois gatinhos que eram pacien-tes da clínica me prometeu que daria uma olhada nele. Porém,quando finalmente ia entregar minha bolinha de pelo nas mãos da-quela possível futura dona, fiquei um pouco apreensiva. Será queela o olharia com a mesma repulsa que os outros? Será que inven-taria desculpas por não ser capaz de acolher aquela criatura estranhae deficiente?

Em vez disso, ela sussurrou gentilmente para o filhote e o segu-

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rou nas mãos. Ele ronronou em resposta. Então, para minha sur-presa e total alívio, ela conquistou minha gratidão eterna ao dizer:“Vou ficar com ele.”

Homero foi o primeiro caso “perdido” com o qual me deparei emminha curta carreira. Embora tenha havido muitos outros depois,ele foi minha experiência seminal nesse sentido e ajudou a prepa-rar o caminho para muitas outras.

A “odisseia” de Homero sem dúvida terá significados diferentespara pessoas diferentes. Mas, para mim, a história de Homero sem-pre será um lembrete do grande poder que a medicina veterináriatem quando está imbuída do idealismo da juventude. Aquele gatinhosempre me fará recordar que não há nada que a parceria entre umbom veterinário, um dono amoroso e um paciente esforçado nãopossa fazer.

A história de Homero é um exemplo de vida para todos nós.

Patricia Khully, Doutora em Medicina Veterinária

www.dolittler.comMiami, Flórida

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P R Ó L O G O • O gato que venceu a morte

“Conte-me, ó Musa, sobre aquele herói habilidosoque viajou por toda parte...”

– Homero, A odisseia

a rotina quando eu chego em casa no fim do dia é sempre a mesma.

A campainha do elevador é a primeira pista para seus ouvidossensíveis de que estou chegando. Quando a chave entra na fecha-dura, já posso perceber a pressão leve das patinhas do outro lado daporta. Reparei que costumo abrir todas as portas – até mesmo nacasa de outras pessoas – com cuidado para que nenhum danadinhopeludo acabe fugindo. Assim que a porta abre, é só uma questão desegundos até que essas mesmas patas cravem em minhas pernas eum gatinho preto se esforce ao máximo para escalar meu corpocomo se eu fosse um tronco de árvore.

Para evitar estragos à minha roupa ou à pele debaixo dela – suasgarras são pequenas, porém muito eficientes –, eu me agacho comum animado “Oi, Pretinho!” (um apelido que lhe dei quando ele erafilhote, por conta de sua pelagem preta e lustrosa). Ele então apro-veita a deixa para saltar nos meus joelhos, pousando as patas dafrente sobre meus ombros e esfregando o focinho contra meu nariz,enquanto ronrona e solta uma série de miaus curtos e entrecortados,

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estranhamente parecidos com os latidos esganiçados de um ca-chorro. “E aí, amiguinho?”, digo, coçando a parte de trás de suasorelhas. Isso faz Homero ter verdadeiras convulsões de prazer, demodo que, não satisfeito com um mero contato focinho-nariz, eleesfrega a cara inteira na minha testa, deslizando-a pela minha bo-checha e subindo de volta.

Ficar agachada com os saltos altos que eu geralmente uso (tenhoapenas 1,55m de altura, mas me recuso a admitir que sou baixinha)é bem mais doloroso do que parece, então pego Homero e o colocode volta no chão, levantando-me e finalmente entrando no aparta-mento em que moro com Laurence, meu marido. Em seguida,guardo as chaves, a bolsa e o casaco. Quando você vive com trêsgatos, aprende que a melhor maneira de evitar que sua roupa fiquecheia de pelos é se trocar assim que chega em casa. Portanto, voudireto para o quarto e coloco roupas mais velhas rapidamente.

Uma sombra peluda segue meus passos pelo apartamento, sal-tando para cima de toda e qualquer mobília pelo caminho. Homeropula sem dificuldade do chão para a cadeira, da cadeira para a mesade jantar e depois de volta para o chão como um alucinado. En-quanto sigo da sala para o corredor, ele sobe numa mesa de canto eentão se atira na diagonal, sem o menor cuidado, para a terceira pra-teleira da estante, ficando empoleirado ali por um momento até eupassar. Em seguida, desce novamente e dispara pelo corredor àminha frente e, de vez em quando, em sua empolgação, tromba comum dos meus outros dois gatos até chegar à porta do quarto. Umavez lá, ele se detém por um pequeno instante no mesmíssimo lugarde sempre, então faz uma curva fechada para a esquerda, atraves-sando a porta como se traçasse um grande L maiúsculo. Em seguida,pula para cima da cama, onde sabe que eu vou me sentar para tiraros sapatos, e sobe no meu colo para outra sessão de rom-rons e es-fregação.

Essa mesma rotina se repete dia após dia. O que muda é a análisedetalhada que faço do apartamento depois que troco de roupa. Ho-

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mero é uma criatura de muitos e variados hobbies e é difícil saber aque novo projeto ele resolveu se dedicar.

Durante um tempo, sua meta parecia ser quebrar o recorde mun-dial de objetos derrubados de cima de uma mesa de centro numúnico dia. Tanto Laurence quanto eu somos escritores, então deixa-mos nossa parafernália – canetas, bloquinhos, pedaços de papelcom anotações – espalhada em meio a revistas, livros, caixas delenço de papel, tíquetes de metrô, óculos de sol, caixas de fósforos,pastilhas de menta, controles remotos e cardápios de restaurantesque entregam em casa. Um dia, encontramos nossa mesa de centrovazia: livros, canetas, controles remotos e tudo o mais estavam es-palhados pelo chão como um quadro de Jackson Pollock. Devolve-mos as coisas aos seus lugares (dando, um pouco encabulados, umapequena arrumada nelas), no entanto, o padrão se repetiu por al-gumas semanas. Não sabíamos ao certo qual dos gatos era nossa em-pregada fantasma até chegarmos uma noite e pegarmos Homerocom a boca na botija, todo orgulhoso de sua façanha e sem um pingode arrependimento.

– Talvez ele não goste de bagunça – sugeri a Laurence. – Deve serdesconcertante para ele tudo estar em um lugar diferente sempreque pula em cima da mesa.

Meu marido não é tão propenso quanto eu a procurar as motiva-ções secretas dos nossos bichinhos de estimação.

– Eu acho que o gato gosta é de derrubar as coisas de cima da mesade centro – foi a resposta dele.

Também aprendemos a amarrar com uma cordinha as portas dosarmários da casa. Para um gato, é mais fácil do que você imagina içartodo o peso de seu corpo por uma calça jeans (o jeans é um materialbom e forte, ideal para escaladas) e se enfiar na prateleira de cima,onde ficam as caixas com fotos antigas, os presentes ainda nos em-brulhos (que fazem um delicioso barulho quando rasgados por gar-ras afiadas) e as pilhas confortáveis de roupas macias. Latas de lixo,por mais altas que sejam, são feitas para pular dentro e serem der-

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rubadas. Com alguma persistência, arranhadores de sisal podem sertotalmente desfiados. Estantes podem ser escaladas e livros de capadura lançados das prateleiras mais altas. O mesmo vale para discosde vinil, CDs e DVDs empilhados em um rack. Se tiver imaginaçãosuficiente, as travessuras e os pequenos estragos que um filhote degato pode descobrir no decorrer de um dia normal de trabalho sãoinfinitas. Na verdade, se aprendi uma lição de vida valiosa com Ho-mero, eu diria que foi a importância de encontrar projetos com-pensadores para ocupar o seu tempo.

Recentemente, Homero aprendeu sozinho a usar o banheiro. Porque motivo ele decidiu acrescentar essa proeza ao seu repertório detruques aos 12 anos de idade, não faço a mínima ideia. Já ouvi falarde gatos que foram treinados por seus donos para usar o banheiroem vez de a caixinha de areia, porém nunca soube de um que tivessedominado essa técnica por conta própria.

Descobri essa nova façanha por acaso. Uma bela manhã, acordeicedo e fui cambaleando até o banheiro. Ao acender a luz, vi que elejá estava ocupado, com Homero se equilibrando na beirada do as-sento da privada.

– Ai, desculpe – falei automaticamente, ainda sonolenta. Só de-pois que saí, fechando com cuidado a porta atrás de mim, é que pen-sei: Espere um minuto...

– Nosso gato é um gênio! – falei mais tarde para Laurence, todaempolgada.

– Quando ele aprender a dar descarga, aí sim vai ser um gênio –respondeu ele.

É verdade: a arte de dar descarga ainda está fora do alcance deHomero. Então, dar uma olhada na privada é outro item que acres-centei à minha lista de afazeres quando chego em casa à noite, en-quanto vasculho o apartamento em busca de quadros derrubados,gavetas abertas e bibelôs caídos pelo chão.

Por nunca saber exatamente o que esperar quando atravesso aporta e pelo fato de o próprio Homero ser uma visão um tanto es-

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pantosa para os não iniciados, tento preparar o espírito dos meusconvidados quando eles me visitam pela primeira vez. Desde queconheci Laurence e parei de ter encontros, e à medida que me apro-ximo da idade em que o número de novas amizades diminui, venhoprecisando fazer isso com bem menos frequência.

Mas ainda me lembro da vez em que esqueci de explicar a situa-ção a um novo namorado antes de sua primeira visita. No começoda noite, não pretendia convidá-lo para o meu apartamento.Quando finalmente tomei a decisão, falar sobre meu gato pareceu otipo de coisa que poderia quebrar o clima.

Homero, naquela época, estava especialmente fissurado em brin-car com absorventes internos. Quando calhava de encontrar um pelacasa, ficava fascinado com a maneira como eles rolavam no chão ecom a cordinha na ponta. Gostava tanto deles que descobriu que euos guardava no armarinho debaixo da pia do banheiro e – com pa-ciência e precisão infalíveis – dominou a técnica de arrombar aporta e assaltar a caixa de absorventes.

Quando cheguei com o rapaz, Homero correu até a porta para mereceber. E lá estava, pendendo da sua boca, um absorvente. A bran-cura do algodão se destacava contra o pelo preto em um contrastenítido e humilhante. Ele correu triunfante de um lado para o outro,então disparou na minha direção e se sentou cheio de expectativa àminha frente, prendendo o absorvente entre os maxilares como umcão com um osso na boca.

O rapaz que estava comigo pareceu surpreso, para dizer o mínimo.– O que... aquilo é um... – Ele gaguejou por um instante, antes de

finalmente conseguir falar: – Aconteceu alguma coisa com o seugato?

Eu me agachei e Homero subiu alegremente no meu colo, lar-gando o absorvente roubado aos meus pés.

– Ele está bem – respondi. – Ele não tem os dois olhos, só isso.O visitante pareceu chocado com essa informação.– Não tem olhos? – perguntou ele.

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– Bem, ele nasceu com olhos – expliquei. – Mas precisaram serretirados quando ele era filhote.

Existem cerca de 90 milhões de gatos vivendo em aproximadamente38 milhões de lares nos Estados Unidos, de acordo com as estima-tivas da sociedade protetora dos animais Humane Society – então,de certa forma, Homero é um gato como outro qualquer. Ele come,dorme, brinca com bolinhas de papel amassadas e passa metade dotempo arranjando mais encrencas do que consigo evitar. E, como étípico dos felinos, tem opiniões bem firmes quanto ao que gosta ounão gosta. A felicidade, no mundo de Homero, é um atum recém-saído da lata; subir em qualquer coisa que possa suportar o seu peso;atacar suas duas irmãs desprevenidas (e muito, muito maiores); ecochilar na nesga de luz do sol que cai sobre a sala de estar ao en-tardecer. A tristeza é ser o último dos meus gatos a conseguir umlugar privilegiado ao lado da mamãe no sofá; uma caixa de areia quenão esteja perfeitamente limpa; acesso negado de modo perma-nente à sacada do apartamento (gato cego, peitoril alto – faça as con-tas); e a palavra não.

No entanto, Homero assume proporções majestosas em minhaimaginação, e muitas vezes penso que sua história só pode ser con-tada em termos épicos. Ele é o Gato que Venceu a Morte – um vira--lata órfão que quase morreu de fome, superou uma doença graveque lhe tirou os olhos quando tinha apenas duas semanas de idade eque ninguém queria adotar mesmo quando ficou claro que se recu-peraria. Ele é o Demolidor, o famoso super-herói das revistinhasMarvel que perdeu a visão em um acidente, mas cujos outros senti-dos ganharam poderes sobre-humanos. Da mesma forma que nahistória do Demolidor, a audição e o olfato de Homero, além de suacapacidade de mapear e desviar de todos os obstáculos em um lugardesconhecido após atravessá-lo apenas uma vez, beiram o sobrena-tural. Ele é um gato que consegue sentir o cheiro de um pedacinho depeixe a três cômodos de distância, que consegue dar um salto de um

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metro e meio e apanhar uma mosca em pleno voo. Cada pulo seu deuma cadeira para o tampo de uma mesa é dado na base da fé, um po-tencial salto em direção ao abismo. Cada bola perseguida por um cor-redor é um ato de bravura. Cada cortina ou balcão escalado; cadainício de amizade com uma pessoa nova; cada passo dado sem al-guém para guiá-lo rumo à escuridão vazia ao seu redor é um milagreda coragem. Ele não tem um cão-guia, uma bengala ou uma lingua-gem que possa tranquilizá-lo ou fazê-lo entender a forma e a natu-reza dos obstáculos que encontra. Meus outros gatos podem ver pelasjanelas da casa, de modo que conhecem os limites do mundo que ha-bitam. O mundo de Homero, no entanto, não possui fronteiras e é,em última análise, incognoscível; qualquer lugar em que ele estejatem tudo o que seria possível e, portanto, é infinito. Por possuir ape-nas uma vaga relação com o tempo e o espaço, ele transcende os dois.

A princípio, Homero foi para a minha casa porque ninguém maisqueria adotá-lo. Então, é sempre uma surpresa para mim a maneiracomo as pessoas ficam fascinadas – até mesmo aquelas sem nenhuminteresse em especial por gatos – ao conhecê-lo, ou ao ouvir falardele. Ele é perfeito para quebrar o gelo nas conversas, algo que eunão podia prever quando o adotei. Noventa milhões de gatos lá forasignifica que existem pelo menos 90 milhões de histórias sobreesses animais fantásticos, porém – posso estar sendo absurdamentepreconceituosa, eu sei – nunca encontrei um que fosse tão extraor-dinário quanto o meu. Pelo menos uma vez por semana, durantetodas as semanas dos últimos 12 anos, ele fez algo que me divertiu,me enfureceu ou simplesmente me deixou atônita; e ele nunca meparece mais encantador do que quando o vejo pela primeira vezatravés dos olhos de outra pessoa.

Oh, coitadinho! é o que os outros costumam dizer ao saberem queos olhos de Homero tiveram de ser removidos quando ele era filho-tinho. Geralmente respondo que, se alguém conseguir encontrarum gato mais feliz e espevitado no mundo, eu pago cem pratas sópara vê-lo. Como ele faz para se virar?, a pessoa pergunta. Usando as

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patas, como qualquer outro gato saudável, respondo. Às vezes,quando ele está brincando com mais empolgação que o normal,ouço o barulho da sua cabecinha batendo contra uma parede ouperna de mesa que ele esqueceu que estava lá. Isso é algo que sem-pre me faz rir, embora também parta meu coração. Eu rio porquequalquer um que já tenha visto um gato brincando alucinadamente,caindo de costas de um sofá ou se atirando de cabeça contra umaporta de vidro fechada não consegue ficar sério. E fico de coraçãopartido porque, num mundo ideal, Homero teria sido encontradouma semana antes, quando a infecção em seus olhos ainda poderiater sido diagnosticada como “grave”, em vez de “incurável”.

É claro que, nesse mundo, Homero quase certamente não teriaentrado na minha vida, para começo de conversa.

Meu momento favorito na celebração do Pessach – feriado que co-memora o fato de Deus ter libertado Moisés e os judeus da escravi-dão e os conduzido para a Terra Prometida – é quando cantamos aDayenu, uma alegre canção entoada a plenos pulmões e acompa-nhada por muitas palmas e batidas de pés no chão. A Dayenu, quesignifica “já teria sido o suficiente” em hebraico, reconta os mila-gres que Deus operou em favor dos judeus, afirmando que cada umdeles já teria bastado por si só. Se Ele tivesse nos libertado do Egitosem tê-los julgado, dayenu! Se Ele os tivesse julgado e não aberto omar para nós, dayenu! Se Ele tivesse aberto o mar para nós e não su-prido nossas necessidades no deserto por 40 anos, dayenu!

E assim por diante.Nesses 12 anos que vivi com Homero, eu compus uma Dayenu

particular. Se Homero tivesse apenas conseguido viver mais queduas semanas, já teria sido suficiente. Se ele tivesse apenas apren-dido a encontrar seu pote de comida e sua caixinha de areia sozi-nho, já teria sido suficiente. Se tivesse apenas descoberto como semover de um cômodo a outro da casa sem ajuda, já teria sido sufi-ciente. Se tivesse apenas aprendido a correr, pular, brincar e fazer

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sem medo todas as coisas que me disseram que ele talvez jamais pu-desse fazer, já teria sido suficiente. Se tivesse apenas me feito gar-galhar todos os dias por mais de uma década, já teria sido suficiente.

E se tivesse se tornado simplesmente uma das fontes de alegria einspiração mais leais, meigas e corajosas que conheci na vida... bem,já teria sido mais do que suficiente.

Estar em uma situação aparentemente desesperadora, na qualnão se espera nada de bom, e acabar recebendo tudo de bom é o quecostumamos chamar de milagre. Alguns de nós temos a sorte depresenciar milagres assim em nosso dia a dia.

Dessa forma, este livro é para pessoas como eu, mas também paraaqueles que não acreditam mais em milagres cotidianos e heróis;para amantes de gatos e para antifelinos empedernidos; para os quepensam que normal e ideal significam a mesma coisa, e para os quesabem que, às vezes, se desviar um pouco da normalidade pode en-riquecer toda a sua vida.

Para todos vocês, eu apresento Homero, o Supergato.Dayenu!

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