a nova retórica do capital

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Artigo sobre o capital

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  • 275Revista Sociedade e Estado - Volume 26 Nmero 1 Janeiro/Abril 2011

    de Maria Eduarda da Mota Rocha,A nova retrica do capital: a publici-dade em tempos neoliberais(So Paulo: Edusp, 2010)

    Bruno Marinoni1

    difcil acreditar que a publicidade brasileira permaneceria inclume s transformaes pelas quais o Brasil passou na dcada de 80. O aprofunda-mento da crise do modelo desenvolvimentista, a abertura poltica, o novo marco constitucional, a emergncia de novos atores na cena pblica e uma srie de outros processos reconfiguraram o quadro brasileiro de forma sistmica, em um dinamismo marcado pela reciprocidade entre os seus diversos aspectos. Os padres de relao entre grupos baseados em interesses particulares ou coleti-vos acompanharam essas mutaes na medida em que foram modificados seus fundamentos. Os apelos da mercadoria, seus argumentos e sua maquiagem no puderam permanecer indiferentes a todas essas mudanas profundas. com essa compreenso que Maria Eduarda da Mota Rocha segue as pistas dessas metamorfoses em A Nova Retrica do Capital: a publicidade brasileira em tem-pos neoliberais.

    Com uma abordagem que se prope ampla, porm sem perder o ajuste do foco, o livro analisa as transformaes por que passou a publicidade brasileira nas ltimas dcadas do sculo XX, relacionando trs nveis: o do contexto poltico-econmico nacional, o do campo publicitrio e o dos anncios. Essa anlise tri-dimensional procura compreender o discurso publicitrio em seu estatuto atu-al e apontar os seus ncleos significativos, eixos em torno dos quais se organiza a construo imagtica das mercadorias. Atenta para processos que remontam consolidao do campo durante a vigncia da Ditadura Militar no pas e para a disposio dos principais grupos implicados na produo publicitria, buscando as razes do desenvolvimento do que aponta como nova retrica do capital.

    As modificaes por que passa a publicidade durante o perodo analisado so observadas, em seu aspecto mais interior, a partir da discusso especfica dos anncios e do que a autora define como campo publicitrio e, externamen-te, apresentando as transformaes polticas, econmicas e sociais que inci-dem sobre a relao entre o capital e o pblico consumidor. O campo publi-citrio, eixo articulador das diversas dimenses observadas, definido como composto por anunciantes, agncias de publicidade e veculos de comunicao e

    1. Doutorando do Programa de Ps-Graduao em So-ciologia da Univer-sidade Federal de Pernambuco. [email protected]

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    funciona como representao do capital na relao entre este e o pblico geral.

    As transformaes apontadas no interior do campo e na relao com o pblico aparecem como mutaes abrangentes que extrapolam a simples ao de um grupo em direo a outro. a sociedade brasileira mudando, em sua totalida-de, a causa das mudanas no campo. Isso no implica dizer que no apaream exemplos de solues originais no seu interior, mas sim que o ritmo e a direo da nova dinmica so apresentados como fortemente condicionados por novas configuraes externas, a saber: a ampliao da concorrncia proveniente das mudanas na economia (abertura comercial, queda na demanda, novas marcas, etc.), hostilidade da opinio pblica frente s grandes corporaes e fim da tu-tela da publicidade advinda do esgotamento do regime autoritrio.

    Para dar conta do seu intuito de abordar a ampla e variada publicidade no Brasil, a autora valeu-se do recurso de destacar os anncios de marcas mais importan-tes, em que h maiores volumes de negcios implicados e em que aparecem as estratgias publicitrias dotadas de maior prestgio no interior do prprio campo. Como consequncia, foram privilegiados setores especficos: servios financeiros, automveis, bebidas, alimentos e cigarros.

    O livro se divide em quatro captulos, dispostos em ordem cronolgica. A in-troduo que os precede poderia ser j considerada um captulo, pois a autora introduz, na apresentao da pesquisa, a definio dos conceitos e a exposio da abordagem. Todavia, a opo adotada privilegia a harmonia entre as quatro partes (principalmente as trs primeiras) no que diz respeito ao seu encade-amento e morfologia. Embora, em alguns momentos, o texto retome pontos j esclarecidos com persistncia, a autora desenvolve seu raciocnio de forma bastante clara e coerente.

    O primeiro captulo aponta ao leitor a cumplicidade profunda existente entre a formao do campo publicitrio e a Ditadura Militar, assim como identifica a herana do perodo para a reconfigurao do setor. Um dos pontos destacados diz respeito consolidao de uma poderosa publicidade brasileira sob a tutela do regime autoritrio, na esteira do abandono de um projeto mais amplo de modernidade que abrangesse as liberdades civis e a democracia. Fez-se, assim, com que a publicidade focasse sua estratgia na simulao de uma modernida-de plasmada no fascnio pela tecnologia e no desejo por status, o que, no plano coletivo, significava mais industrializao e reverncia hierarquia.

    O segundo captulo enfatiza as turbulncias da dcada de 1980, a crise eco-nmica e as transformaes sociopolticas por que passa o Brasil, apresentan-do a emergncia de um novo discurso publicitrio sem que, necessariamente, o anterior tenha perdido a hegemonia. O destaque aqui para a importncia

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    da saturao dos mercados frente a uma demanda inelstica e para a consta-tao do fracasso do projeto de se submeter o crescimento econmico ao bem estar social. J possvel observar, nesse momento, algumas tendncias no dis-curso publicitrio que apontam para o abandono de uma estratgia discursiva focada no sucesso em direo a outra que enfatiza o bom gosto (um enclave entre a nfase no prestgio e na qualidade de vida).

    Encontramos, no terceiro captulo, a anlise dos anos 90. A internacionalizao da economia, as fuses e a chegada de novos atores no cenrio econmico apa-recem como dinamismos que influenciam uma nova presso dos anunciantes sobre as agncias de publicidade, forando-as a se adaptar mais rapidamente s novas exigncias que hegemonizam a poltica e a economia no pas. nes-se momento, tambm, que acontece definitivamente a submisso dos depar-tamentos de criao aos de planejamento nas agncias de publicidade, reafir-mando o poder de dominao da racionalidade tcnica no setor. Por outro lado, emerge com fora um discurso promotor do voluntarismo, como foi possvel ver em campanhas famosas como as que apelam para Gente que faz ou Amigos da escola, entre tantas outras. O quarto e ltimo captulo desdobra o que foi apresentado no anterior, detendo-se, principalmente, anlise dos anncios, discutindo o novo discurso publicitrio que emergiu e se consolidou como he-rana da dcada de 1990.

    No centro disso tudo, um dos grandes brilhos de A nova retrica do capital con-siste em apresentar e discutir as mudanas que ocorreram no campo, observan-do as transformaes na comunicao entre o capital e o seu pblico. Embora no aparea na pesquisa nenhum estudo de recepo, claramente perceptvel a presena da sombra de uma maioria silenciosa, que se relaciona, resiste e demanda da mercadoria maior esforo e novas estratgias para atender s ne-cessidades de um consumidor que tambm obedece dinmica das mutaes.

    O objeto de desejo da mercadoria, o dinheiro, encontra-se sob os auspcios de seu mediador, o consumidor, que passa por transformaes que extrapolam sua simplificada dimenso econmica. um sujeito que, em determinado momen-to, viu reduzida sua crena nos projetos coletivos que apontavam para a moder-nizao do pas e passou ento a ser encarado pela publicidade como um ser de individualismo exacerbado. , ao mesmo tempo, um cidado que, desconfiado dos efeitos e dos interesses que inspiram as grandes corporaes, exige mais do que simples objetos materiais que cumprem funes utilitrias ou que servem como provedores de status. Exige contrapartidas (mesmo que, em geral, muito pontuais) para amenizar os malefcios incontornveis provenientes do avano desenfreado de um capitalismo realmente selvagem (e que no nos faz exage-rar ao invocar este lugar-comum). com esse ser que o discurso do capital tem

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    que se defrontar e ao qual tem que se conformar, por meio do intermedirio que o anncio publicitrio. Emergem, assim, estratgias de fomento cultura, ao lazer, de combate destruio do meio ambiente e tantas outras que podem ser reunidas sob o desgnio de responsabilidade social, como formas de se apresentar como engajado na tarefa de contornar o incontornvel.

    Por outro lado, as mudanas no perfil do consumidor exigiram tambm uma revoluo copernicana no discurso publicitrio. Anteriormente focado no valor intrnseco do produto, a partir de ento precisa enfatizar a sua relevncia para a vida do consumidor. O desejo de se destacar e estar frente dos outros cede lugar promoo de uma romntica plenitude efmera que se associa aos pro-dutos e que promete aos consumidores o sonho da qualidade de vida. A deso-lao proveniente da sensao de que tudo est perdido, obstculo para pro-jetos de longo prazo, faz com que se exija esse momento fugidio de redeno.

    O papel da publicidade, nesse processo, se confunde com o de relaes pbli-cas do capital, intensifica-se o seu papel de promotora da boa vontade de um pblico desconfiado de que j no mais possvel contar com benefcios futu-ros promovidos por autoproclamados agentes do desenvolvimento. Na diviso social do trabalho, o setor especializado na produo da imagem e retrica da mercadoria, as agncias de publicidade, que tem que se haver diretamente com essas questes.

    A nova retrica do capital, assim, serve como um prisma com o qual possvel observar a transformao dos valores da sociedade brasileira aos olhos de um setor privilegiado na reproduo desses valores e que ressalta a importncia da vida cultural no capitalismo tardio. So prticas e ideias com as quais ns convivemos todos os dias, ao utilizarmos nossos meios de comunicao, e que o acompanhamento dos seus processos de formao, desde a origem, nos per-mite compreender de forma mais clara e detida. Se no podemos circunscrever ao Brasil essas transvalorizaes, possvel, ao menos, identificar processos in-ternos que dinamizaram e promoveram todas as mudanas que nos levaram ao patamar em que nos encontramos. Dificilmente, aqueles que ainda sonham, ao ler este livro, no se incomodem ao ver como alguns desses sonhos j tm lugar reservado no mecanismo de reproduo da dominao. Quem sabe, o mal estar no sucumbe ante nostalgia de nos reencontrarmos com exemplares diverti-dos de slogans publicitrios que povoaram a nossa vida at tempos recentes e que aparecem em nmero representativo no corpo do texto.