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A NOVA LDB: REPERCUSSÕES NO ENSINO DE EDUCAÇÃO FÍSICA*

Eustáquia Salvadora de Sousa **

Tarcísio Mauro Vago ***

__________________________Sumário_______________________1 Introdução; 2 Da lei antiga à nova lei; 3 Uma ‘autonomia’ sob controle; 4 Que escola? 5 Que educação física? 6 Fontes bibliográficas

1 INTRODUÇÃO

A década de 80 foi decisiva para o ensino da educação física no Brasil. Uma época

em que seus alicerces foram abalados por estudos, seminários, congressos, publicações,

que problematizaram as suas origens e a sua história como componente curricular.

Questionaram-se as influências médicas e militares que marcaram a sua inserção nas

escolas, em finais do século passado e na primeira metade deste, fazendo-a portadora de

idéias e de práticas de higienização e disciplinarização dos corpos, tanto para o

estabelecimento de uma ordem na escola, quanto para a preparação física de mão-de-obra

infantil para o mundo do trabalho — uma educação física domadora de corpos humanos.

Questionaram-se as suas articulações com teorias raciais que propugnavam a melhoria da

raça — uma educação física produtora de uma raça forte e enérgica. Questionou-se a sua

mais completa submissão, após a Segunda Guerra Mundial, aos princípios do esporte de

rendimento, dentre eles o privilégio aos considerados mais ágeis, mais hábeis e mais aptos

física e tecnicamente, a seleção, a técnica superando a arte, o resultado — uma educação

física como celeiro de atletas. Questionou-se a sua adesão à psicomotricidade, que

permanece ainda hoje, em que seu ensino foi confundido com tratamento de possíveis

distúrbios psicológicos — uma educação física como terapia escolar. Questionou-se, ainda,

a sua compreensão de corpo humano, reduzido à dimensão biológica, um feixe de músculos

para treinar, uma máquina, cujo ensino surge como instrumento de melhoria da aptidão

* Uma versão resumida deste texto foi publicada na Revista Presença Pedagógica, v. 3, n. 16, julho/agosto, 1997, p.18-29, com o mesmo título.** Doutora em Educação pela UNICAMP; Professora de Prática de Ensino da Educação Física da Faculdade de Educação da UFMG.*** Professor da Escola de Educação Física da UFMG; doutor em Educação na USP

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física dos alunos e das alunas — uma educação física promotora apenas da saúde biológica

e individual.

Esses são alguns fatos da história da educação física que levaram ao

questionamento, até mesmo, da sua própria existência como componente curricular.

Pressionados pela história, os professores e as professoras de educação física, na

década de 90, entenderam que era fundamental ultrapassar a fase dos questionamentos,

buscando a formulação de outras possibilidades de participação da educação física na

cultura escolar. Assim, muitas propostas de ensino da educação física vêm sendo

construídas, seja por secretarias municipais e estaduais de educação, seja por estudiosos

isolados ou reunidos em grupo.

E agora vive-se mais um intenso movimento na educação brasileira, com a

promulgação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), n. 9.394/96,

em 20/12/96. Com certeza, não era essa a lei que queríamos e que defendíamos para a

educação brasileira, porque sabemos que ela quer impor determinadas formas de ver o

mundo, os seres humanos, a cultura, a escola, com as quais não concordamos. Mas, muito

mais que a lei, importa o que vamos fazer dela em nossa prática escolar. Então, o desafio

que se põe é o do conflito, do confronto, da produção de idéias e de práticas escolares nas

quais acreditamos. Por isso, temos, sim, muito o que fazer nas escolas e no ensino da

educação física.

Neste texto, discutimos algumas repercussões da nova LDB no ensino da educação

física, fazendo um contraponto com a lei anterior, n. 5.692/71, e com a antiga legislação

específica da educação física, o Decreto n. 69.450/71. Esclarecemos que as nossas

observações estão sendo formuladas em meio a muitas dúvidas da comunidade de

educadores e a indefinições do próprio Conselho Nacional de Educação. Assim, não

apresentamos idéias acabadas, mas reflexões em construção. Sugerimos o acompanhamento

permanente das discussões travadas no campo da educação e da educação física, bem como

das decisões vindas dos órgãos públicos responsáveis pela educação no País.

Antes, porém, de abordar especificamente o ensino de educação física, registramos

nossa crítica ao fato de o Congresso Nacional, articulado com o atual governo federal, ter

desconsiderado as discussões que o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública

(FNDEP) promoveu sobre a Lei de Diretrizes e Bases, desde a promulgação da

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Constituição de 1988, rejeitando, também, as suas propostas para o texto da lei. O Fórum

aglutinou as principais entidades de educação da sociedade civil de todo o país e formulou

uma proposta de LDB, que chegou a tramitar no Congresso Nacional, mas foi

abruptamente desqualificada e substituída pelo Projeto do Senador Darcy Ribeiro, com

apoio do governo federal.

Mas, o Fórum permanece mobilizado e aqui reforçamos uma das principais críticas

que ele apresenta para essa nova LDB: a descaracterização do Sistema Nacional de

Educação. Dentre outras, essa descaracterização envolve:

a) a desvinculação/fragmentação dos diversos níveis de ensino (por exemplo, com a

“descentralização” da rede escolar em sistemas locais, desarticulados entre si);

b) a criação do Fundo de Desenvolvimento da Educação e de Valorização do

Magistério que não apenas desobriga o Governo Federal de sua responsabilidade

constitucional em relação à educação básica, como também restringe a esfera de atribuições

dos municípios que, na prática, ficam impossibilitados de oferecer tanto a educação infantil

quanto a de jovens e adultos;

c) o enfraquecimento do ensino médio, tanto pela redução das verbas a ele

destinadas (em decorrência do referido fundo), como pela ausência de normatividade

esperada de uma lei;

d) a negação do princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão,

no ensino superior, que institui uma política capaz de cristalizar um sistema de formação

técnico-instrumental, desvinculado da pesquisa e, em contrapartida, um sistema formado

pelos “Centros de Excelência”, voltados para a adequação de pacotes tecnológicos;

e) a negação do princípio de autonomia universitária, que enfraquece a liberdade

acadêmica e torna a Universidade perigosamente subordinada ao governo e aos interesses

do mercado;

f) uma reestuturação jurídica das universidades, o que indica o desmantelamento do

sistema federal de ensino superior, abrindo caminho para a privatização das mesmas;

g) uma drástica limitação na participação das entidades ligadas à educação

representativas da sociedade, com a constituição de um Conselho Nacional de Educação

(CNE), que está limitado a assessorar o Ministério da Educação. Tais críticas do Fórum

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merecem a reflexão permanente dos educadores e das educadoras, tendo em vista sua

atuação político-pedagógica.

Atentos a essas críticas do Fórum à nova LDB, consideramos também que uma

LDB não está acima dos conflitos e das contradições presentes em nossa sociedade. Ao

contrário, ela incorpora tais conflitos e contradições. Por isso, não a entendemos como uma

lei homogênea, mas como uma lei que explicita múltiplos interesses. E se concordamos que

essa LDB tenta silenciar e desqualificar as lutas por uma educação como direito de

cidadania, como espaço de problematização e de transformação sociocultural, então o

desafio que se apresenta agora é o de ocupar os espaços contraditórios da lei e criar

alternativas de atuação político-pedagógica. Isso vale para todos os educadores, portanto,

também para os de educação física. E é sobre as possibilidades de ocupação de espaços por

professores de educação física que a partir de agora vamos tratar.

2 DA LEI ANTIGA À NOVA LEI

2.1 Obrigatoriedade da educação física

A obrigatoriedade do ensino da educação física determinada pela antiga LDB

contemplava todos os graus do então sistema de ensino e era normatizada pelo Decreto

69.450/71, de 1/11/71.

A nova LDB extingue esse decreto e delega a responsabilidade pela normatização

do ensino da educação física aos Conselhos Nacional e Estaduais de Educação, aos

sistemas de ensino, bem como às próprias escolas.

O art. 26 da nova LDB estabelece que

“§ 3º A educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é componente curricular da Educação Básica, ajustando-se às faixas etárias e às condições da população escolar, sendo facultativa nos cursos noturnos.”

A obrigatoriedade da presença do ensino da educação física na escola foi reduzida à

educação básica, constituída de três etapas: a educação infantil, o ensino fundamental e o

ensino médio. Para dirimir dúvidas a esse respeito, é importante registrar que essa

obrigatoriedade está também explicitada no Parecer n. 376/97, de 11/6/97, do Conselho

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Nacional de Educação, que reafirma o § 3º do art. 26 da nova LDB, enfatizando que a

educação física é, sim, componente curricular da educação básica, cuja oferta deverá estar

integrada à proposta pedagógica da escola. Também o Parecer n. 5/97, de 7/5/97, da

Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, garante que aos

componentes curriculares que integrarão a base comum nacional soma-se a educação

física, nos termos da lei.

No entanto, ela deixa de ser componente curricular obrigatório da educação superior

e passa a ser facultativa nos cursos noturnos. A educação física pode experimentar, com

isso, no sistema de ensino proposto pela nova LDB, três processos distintos na escola: um,

de inserção curricular, outro, de permanência curricular e ainda um terceiro, de exclusão

curricular, tratados a seguir.

2.1.1 Educação básica: inserção e permanência da educação física

O referido processo de inserção curricular da educação física ocorre,

especificamente, na primeira etapa da educação básica, a educação infantil, destinada a

crianças até seis anos de idade, podendo se realizar em creches e pré-escolas. É um avanço

para o ensino da educação física. No entanto, entendemos que o fato de estar prevista em

lei não é garantia para a sua inserção curricular efetiva nessa etapa, porque isso depende

também das condições objetivas de trabalho nas creches e pré-escolas que, bem sabemos,

são precárias, principalmente nas instituições públicas. Mas, já são desafios a enfrentar:

primeiro, que a educação infantil seja de fato um direito das crianças, especialmente das

crianças oriundas das classes trabalhadoras. E, segundo, que o ensino de educação física

possa ser incluído sim em seu programa.

O art. 29 da nova LDB explicita que a finalidade da educação infantil é o

“desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus aspectos físico,

psicológico, intelectual e social”. Embora o termo ‘desenvolvimento integral’ seja por

demais genérico e polissêmico, é importante salientar que a construção da corporeidade das

crianças deve integrar a prática pedagógica da escola, que interfere, positivamente ou não,

nessa construção. Do contrário, não se pode falar em ‘desenvolvimento integral’. Daí a

importância de se discutir como a educação física poderá se fazer presente nessa etapa da

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educação básica, com a maior brevidade possível. O que é motivo, dentre outros, para a

produção de mais conhecimento a esse respeito.

No ensino fundamental e no ensino médio, segunda e terceira etapas da educação

básica, a educação física permanece como componente curricular, conforme já previa a

antiga Lei n. 5.692/71, para os então chamados 1º e 2º graus.

2.1.2 Cursos noturnos da educação básica: inserção facultativa, exclusão iminente

A nova LDB, ao estabelecer que a educação física é um componente curricular

facultativo para os cursos noturnos, deixa dúvidas se essa opção é da escola ou do aluno.

Entretanto, o Conselho Nacional de Educação, por meio do parecer n. 05/97, esclarece:

“Certamente, à escola caberá decidir se deseja oferecer educação física em cursos que funcionem no horário noturno. E, ainda que o faça, ao aluno será facultado optar por não freqüentar tais atividades, se esta for a sua vontade.”

Portanto, a educação física será componente curricular se a escola quiser. E o aluno

participará desse eventual ensino se e quando desejar. Além disso, por ser facultativa, as

aulas de educação física não serão computadas entre as 800 horas exigidas pela lei. Ou seja,

entrarão como acréscimo a esse total. Ora, sem a obrigatoriedade que a antiga lei

determinava também para esses cursos, e tendo em vista a redução de custos que sua

ausência possibilita para as escolas de ensino privado (com professores, material e espaço,

dentre outros), a inserção curricular facultativa da educação física é sinônimo de exclusão.

O mesmo tende a ocorrer nas escolas públicas, onde a precariedade com que esse ensino

vinha sendo ministrado pode agora ser usada como justificativa para não incluí-la nos

programas de ensino. A lei permite a prática do nivelamento por baixo: em vez de tentar

melhorar o que ainda não está bom, exclui um componente curricular.

É a lei de Pilatos: a União lava as mãos e transfere para as escolas e para os

sistemas de ensino a responsabilidade de decidir sobre sua presença. É lamentável, porque

os cursos noturnos são freqüentados majoritariamente por alunos que trabalham durante o

dia. Para eles, há mesmo uma dupla penalização: a primeira, por terem de cumprir uma

jornada de trabalho durante o dia, que se estenderá até a noite, para que possam estudar.

Com isso, seu tempo de lazer diário desaparece. E agora são penalizados ainda pela

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discriminação que lhes será imposta com a exclusão virtual da educação física do currículo

dos cursos noturnos. Assim, os trabalhadores, como na legislação anterior, continuam

excluídos da educação física. Fica evidente que ela permanece equivocadamente entendida

na nova lei como um componente curricular que atua sobre um corpo apenas biológico,

aumentando o cansaço físico desses trabalhadores-alunos e comprometendo o seu

rendimento no trabalho.

A não-obrigatoriedade da inserção da educação física nos cursos noturnos, em nossa

opinião, fere abertamente vários princípios da Constituição brasileira. Por exemplo, o art.

3º, IV, estabelece que o País tem como objetivo promover o bem de todos, sem

preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

E, ainda, está no art. 5º que todos são iguais perante a lei. Ora, o mesmo deveria valer

para a lei da educação. No capítulo específico sobre educação, o art. 206 da Constituição

prevê a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, incorporado pelo

art. 3º da LDB 9.394/96. Para nós, então, facultar o ensino da educação física nos cursos

noturnos é uma forma de discriminação, já que o público das escolas noturnas poderá

deixar de ter acesso a um componente curricular garantido para o público da educação

básica. Uma discriminação que se registrará nos corpos dos trabalhadores, que são também

alunos, se forem impedidos de usufruir das práticas corporais que a educação física lhes

poderia possibilitar.

Diante disso, entendemos que é importante que os cursos noturnos incluam em seu

projeto pedagógico o ensino da educação física. É fundamental, para tanto, que os

professores apresentem argumentos sobre a contribuição do ensino da educação física na

formação humana que a escola realiza, ao mesmo tempo que desenvolvem práticas que

busquem alternativas a essa possível exclusão.

2.1.3 Educação de jovens e adultos: exclusão mantida

A nova LDB mantém a educação física fora dos programas de educação de jovens e

adultos, que apenas compreenderão a base nacional comum do currículo (art. 38), na qual

tudo indica, a educação física não será incluída. Os jovens e adultos que, principalmente

pela necessidade de trabalhar, precisaram abandonar a escola e, com isso, não tiveram

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acesso ao ensino da educação física, continuarão excluídos de seu ensino, caso retornem à

escola, nos cursos supletivos previstos. Seus corpos foram duas vezes excluídos da

educação física.

2.1.4 Educação superior: exclusão sumária da educação física

Não há nenhuma referência na nova lei sobre a educação física na educação

superior. De fato, nesse nível escolar ela passa a sofrer um processo de exclusão sumária

dos currículos escolares. No entanto, o citado Parecer n. 376/97, do Conselho Nacional de

Educação, esclarece que a sua oferta passa a ser facultativa para o ensino superior e

decorre de proposta institucional de ensino e não de norma oriunda de órgão superior.

A lei fecha um ciclo: a educação física foi introduzida no ensino superior com a

reforma universitária promovida pelo regime militar, em 1968, com o notório objetivo de

tentar desmobilizar politicamente os estudantes, que então constituíam um importante foco

de resistência à ditadura, procurando distraí-los com a prática de esportes. Parece que, não

sendo mais necessária como fator de desmobilização política, agora a educação física pode

ser excluída dos programas da educação superior.

No entanto, muitos professores vêm concretizando práticas de educação física

diferentes daquela implícita na reforma de 1968, no ensino superior. O mesmo desafio que

se coloca para a educação física com relação aos cursos noturnos aqui se repete: legitimar

a presença da educação física nos currículos da educação superior com argumentos sobre

suas contribuições para a formação humana.1

1A propósito, registramos a experiência vivida na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), relatada pelos professores do seu Departamento de Educação Física, Eliene Lopes Faria e Heber Eustáquio de Paula. Com a aprovação da nova LDB, a administração central da UFOP apresentou uma proposta de extinção da obrigatoriedade da Educação Física, interpretando a nova lei como autoaplicável, sem a necessidade de uma discussão de caráter acadêmico por parte da comunidade universitária. Esse entendimento reducionista e automático da aplicação da LDB não foi compartilhado pelo Departamento de Educação Física e gerou um questionamento, inicialmente por parte do conjunto de seus professores, mas que, rapidamente, se ampliou para toda a comunidade, tornando-se pauta de reuniões de todos os Colegiados de curso, do movimento estudantil e dos grupos atendidos por projetos de extensão universitária. Houve uma intensa discussão acadêmica que se deu, prioritariamente, sobre o conceito de autonomia universitária contido na lei. Para essa discussão, o Departamento de Educação Física produziu um documento em que apontava a importância da disciplina Educação Física no contexto específico da UFOP, considerando os seus aspectos históricos, os norteamentos filosóficos e político-pedagógicos da atual proposta que vem sendo implementada, indicando o seu importante papel na formação do universitário, além de desenvolver uma análise contextual que considerou as condições sociais e políticas do panorama explicitado pela lei no ambiente específico da comunidade da UFOP. Essa análise produzida pelo Departamento de Educação Física, aliada às discussões nos diversos Colegiados, culminou com a deliberação favorável, em quase todos

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2.2 Concepção de educação física

O Decreto n. 69.450/71 concebia a educação física como atividade que por seus meios, processos e técnicas, desperta, desenvolve e aprimora forças físicas, morais, cívicas, psíquicas e sociais do educando, constituindo um dos fatores básicos para a conquista das finalidades da educação nacional.

Aqui, vale lembrar que tanto esse decreto quanto a LDB n. 5.692/71 foram

impostos quando o País vivia sob a ditadura militar, sendo mesmo manifestações dela.

A partir desse conceito, o decreto impunha à educação física uma bússola

norteadora para as suas ações na escola — a aptidão física —, que constituía a referência

fundamental para orientar o planejamento, o controle e a avaliação do ensino da

educação física nos estabelecimentos de ensino. Ficava evidente uma visão de ser

humano e de seu corpo, que era reduzido à sua dimensão físico-biológica. A propósito, o

decreto pretendeu algo semelhante ao que quiseram os higienistas, quando defenderam a

introdução da educação física na escola, no século passado: atribuir-lhe uma

responsabilidade pela melhoria da saúde dos brasileiros, mas uma saúde vista apenas pelo

prisma biológico — uma expressão daquela educação física concebida como produtora de

uma raça forte e enérgica.

O Decreto n. 69.450/71 também apresentava uma caracterização dos objetivos

para o ensino da educação física. A bússola indicada, a aptidão física, era mesmo a tônica

de tais objetivos. Para o então ensino primário, a consolidação de hábitos higiênicos, o

desenvolvimento corporal e mental harmônico, a melhoria da aptidão física. Da 5ª série

ao 2º grau, o aprimoramento e aproveitamento integrado de todas as potencialidades

físicas, morais e psíquicas do indivíduo, a conservação da saúde, a implantação de

hábitos sadios. E para o ensino superior, além de prosseguir com os objetivos iniciados

nos graus anteriores, o decreto prescrevia ainda práticas que conduzissem à manutenção e

aprimoramento da aptidão física, à conservação da saúde. Havia, ainda, objetivos

eles, à manutenção da disciplina Educação Física nos programas dos cursos da UFOP. Outra importante iniciativa do Departamento de Educação Física foi apresentar uma consulta ao Conselho Nacional de Educação, que enviou um parecer esclarecendo que não existe nenhuma proposta de extinção automática da Educação Física na educação superior na aplicação da LDB. Ou seja, cada instituição, no exercício da sua autonomia, deve decidir, em coerência com o seu projeto de educação superior, a pertinência ou não dessa disciplina nos seus diversos programas de ensino.

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relacionados ao senso moral e cívico, ao fortalecimento da vontade, ao estímulo às

tendências de liderança, à consolidação do sentimento comunitário e de nacionalidade.

O decreto prescrevia como conteúdo, para o então chamado ensino primário, as

atividades físicas de caráter recreativo, sem qualquer detalhamento sobre tais atividades, a

não ser o de que deveriam atender aos objetivos citados acima. A partir da 5ª série e até o

ensino superior, o único conteúdo citado explicitamente pelo decreto a ser incluído nos

programas é o das atividades de iniciação esportiva ou práticas de natureza desportiva.

Dessa maneira, a submissão do ensino da educação física ao esporte, iniciada após a

Segunda Guerra Mundial, foi ainda mais radicalizada, o que contribuiu para que ele se

consolidasse praticamente como o conteúdo exclusivo das aulas de educação física.

O decreto foi extinto e a nova LDB não explicita conceitos, objetivos nem

conteúdos para o ensino da educação física, mas apresenta três condicionantes: além de

integrar a proposta pedagógica da escola, ela deve estar ajustada às faixas etárias e às

condições da população escolar.

Ora, então é fundamental perguntar: o que pode ser uma educação física integrada

à proposta pedagógica da escola? Depende! Sim, há muitas respostas a essa questão.

Imaginemos, por exemplo, que a proposta pedagógica da escola seja a de

preparação para o mercado de trabalho. Ora, então, uma educação física integrada a essa

proposta deve orientar o seu ensino para a preparação física da força de trabalho, como

fazia em suas origens escolares. Retomaríamos aquela educação física domadora de corpos!

Admitamos, noutro exemplo, que a proposta pedagógica da escola seja integrar a educação

física colocando-a como instrumento de preparação para as aprendizagens dos demais

componentes curriculares. Nesse caso, ela poderia funcionar como um momento de

descontração, de compensação aos sacrifícios realizados para aprender matemática,

português, ciências. Pode-se estender para todo o ensino fundamental uma estratégia muito

comum em suas séries iniciais: estabelecer que a educação física seja uma forma de

controle da disciplina das crianças, um prêmio ou um castigo, dependendo do seu

comportamento.

Apesar de parecerem absurdos, esses exemplos não foram inventados por nós

apenas para ilustrar a questão levantada. Eles decorrem de nossa observação direta do

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cotidiano escolar e também da leitura de pesquisas, livros, artigos, de outros estudiosos da

educação física. E, lamentavelmente, tais exemplos não são raros nas escolas.

Mas, o que estamos pretendendo com tais exemplos? Estamos pretendendo chamar

a atenção dos professores para o caráter genérico da prescrição da nova LDB, de que a

educação física deve estar integrada à proposta pedagógica da escola. É genérico porque

essa denominação comporta qualquer possibilidade de organização da educação física na

escola, como os exemplos citados. É preciso então estarmos atentos e atentas, porque, em

nossa opinião, é exatamente aí que reside uma possibilidade de ação concreta dos

professores de educação física, se atuarmos aproveitando os conflitos e as contradições da

lei. Ação concreta no sentido de construir a escola e a educação física que queremos, e não

a que a lei quer impor.

Diante disso, o momento exige o aprofundamento das discussões sobre as

diferentes propostas de ensino da educação física. Por exemplo, há propostas no sentido de

orientá-lo a partir da psicomotricidade; dos estudos de aprendizagem e desenvolvimento

motor; do desenvolvimento cognitivo; do esporte; do patrimônio de práticas corporais

lúdicas que os seres humanos produziram culturalmente. Então, deve-se perguntar: Que

conceito e que objetivos para a educação física tais propostas apresentam? Que proposta

pedagógica de escola defendem? Como o ajustam às faixas etárias? Como percebem as

condições da população escolar?

Defendemos que os debates sejam intensificados. É importante mesmo, para a sua

prática escolar, que a educação física radicalize uma ‘luta de concepções’ que pretendam

orientar o seu ensino.

2.2.1 Número de alunos e de aulas, tempo e espaço

Para viabilizar o ensino da educação física organizado a partir da referência da

aptidão física, o Decreto n. 69.450/71 explicitava também os padrões de referência e as

exigências para a sua realização.

Para o 1º e o 2º graus, o decreto determinava três aulas semanais de 50 minutos,

evitando-se a concentração de atividades em um só dia. As turmas podiam ser constituídas

por 50 alunos do mesmo sexo, preferencialmente agrupados em nível de aptidão física,

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tendo cada aluno o mínimo 2m2 de espaço para se movimentar. Para o 3º grau, eram duas

aulas por semana, e o espaço devia ser de 3m2 por aluno.

A determinação desse pequeno espaço por aluno foi claramente influenciada pela

organização de aulas com a realização de exercícios de repetição de movimentos precisos,

sem deslocamento pelo espaço, como a ginástica calistênica, que buscava a

homogeneização de ritmos, de movimentos, de corpos, enfim.

Com a nova LDB, nada disso é previsto. Mas as disposições gerais para a

educação básica (Capítulo II, Seção I) possibilitam um entendimento de que a carga

horária anual, o número de aulas e de alunos, a composição das turmas, a duração de cada

aula e o espaço para o ensino da educação física poderão ser estabelecidos a critério de

cada sistema de ensino e mesmo de cada escola isoladamente.

Assim, por exemplo, uma escola pode adotar as mesmas 72 horas/aula/ano de

educação física, com duas aulas semanais de 50 minutos, como vinha normalmente

ocorrendo. Mas, se desejar, pode reduzir a sua carga de ensino para 50 horas, com

módulos de aula de 25 minutos; ou pode aumentá-la para 100 horas. Enfim, as aulas

podem durar o tempo que a escola ou o sistema de ensino decidir. Se quiserem que as

turmas sejam separadas por sexo, podem fazê-lo, mas se desejarem que estejam ao mesmo

tempo na aula, também isso é possível. Se quiserem organizar aulas com turmas e mesmo

com séries diferentes, nada pode impedir. No limite, se a escola ou sistema de ensino

quiserem que todas as horas destinadas ao ensino da educação física sejam dadas de uma

só vez, num determinado mês letivo, até isso eles podem fazer, porque a lei permite (art.

23 e seu § 2º).2

No entanto, é preciso aguardar ainda por possíveis definições dos Conselhos

Nacional e Estaduais de Educação a respeito das condições mínimas de participação de

cada componente curricular. Entendemos que é fundamental a construção de propostas de

educação física que busquem para ela um tratamento igualitário nos currículos escolares,

em relação aos demais componentes.

2.2.2 Dispensa das aulas

2Entendemos que isso vale também para os demais componentes curriculares: a escola poderá organizá-los com critérios próprios.

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O Decreto n. 69.450/71 previa que determinados alunos fossem dispensados das

aulas de educação física. Quem eram os alunos excluídos? Os trabalhadores-alunos, com

jornada de seis horas diárias; os alunos maiores de 30 anos; os que estivessem prestando o

serviço militar; as alunas que tivessem prole; e os alunos portadores de doenças infecto-

contagiosas. Afinal, se a concepção de educação física era a da melhoria da aptidão física,

não se podia perder tempo a não ser com os alunos que possuíssem corpos considerados

úteis, com potencial a ser explorado no mercado: corpos jovens, corpos saudáveis, corpos

bonitos...

A nova LDB, ao facultar o ensino da educação física aos cursos noturnos e à

educação superior e, ainda, ao manter sua exclusão da educação de jovens e adultos,

praticamente o restringiu aos alunos menores de 18 anos.

Para a educação básica, até o momento, não há nenhuma normatização sobre

dispensa de alunos das aulas de educação física por quaisquer motivos. Entretanto, é

possível que novas definições sejam tomadas posteriormente pelos Conselhos de

Educação. Esperamos que todos os alunos da educação básica — com seus corpos

singulares, suas marcas históricas próprias — sejam incluídos nas aulas de educação física.

2.2.3 Avaliação do ensino

Como mostramos, o Decreto n. 69.450/71 determinava que a avaliação do ensino

da educação física fosse conduzida a partir da aptidão física e dos objetivos previstos. Para

tanto, as escolas deveriam utilizar os testes de aptidão física indicados pelo MEC para

acompanhar a evolução das possibilidades dos recursos humanos nacionais. Ou seja, para

detectar a evolução física dos alunos e saber quais são os mais aptos, os de melhor

rendimento. Os dados colhidos nesses testes deveriam, como manda o parágrafo único

desse artigo, ser arquivados para a possibilidade de solicitação de informações pelos

órgãos competentes. Ora, em outras palavras, a avaliação na educação física era concebida

como controle sobre os corpos dos alunos.

A antiga LDB previa dois critérios de verificação do rendimento, a serem

considerados concomitantemente: a avaliação do aproveitamento e a apuração da

assiduidade. Cada escola podia definir em regimento os procedimentos a serem adotados.

Embora não houvesse impedimento dessa lei de que a educação física usasse os dois

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critérios, a maioria das escolas optou apenas pelo critério de apuração de assiduidade,

considerando aprovado o aluno que tivesse freqüência igual ou superior a 75% das aulas.

Na nova LDB, esses dois critérios são separados: verificação do rendimento e

controle da freqüência. O primeiro pode ter instrumentos próprios e se preocupa em

avaliar o progresso do aluno em um componente curricular e a necessidade ou não de

recuperação. No critério de controle da freqüência, o aluno está obrigado a comparecer a

75% do total de horas letivas para ser aprovado, caso contrário, estará automaticamente

reprovado, sem direito a qualquer mecanismo de recuperação. Como são 800 horas/aula

exigidas, um aluno pode perder até 200 horas (o equivalente a 25% do total de 800 horas)

e, mesmo assim, ele estará aprovado em assiduidade. É o que confirma o Parecer n. 5/97,

já referido: “O aluno tem o direito de faltar até o limite de 25% do referido total. Se ultrapassar esse limite estará reprovado no período letivo correspondente. A freqüência de que trata a lei passa a ser apurada, agora, sobre o total da carga horária do período letivo. Não mais sobre a carga específica de cada componente curricular, como dispunha a lei anterior.”

Há uma séria repercussão dessa assertiva para a avaliação do ensino da educação

física. Exemplifiquemos: suponhamos que uma escola garanta as mesmas 72 horas anuais

que vêm sendo destinadas normalmente para o ensino da educação física (com duas aulas

semanais de 50 minutos) e que essa escola não adote nenhum critério de verificação de

rendimento para aprovação em educação física, como é o mais comum atualmente. Ora,

um aluno poderá faltar a todas essas 72 horas/aula de educação física e ainda assim terá

25% a que tem direito, podendo ser promovido sem problemas. Noutras palavras, nesse

exemplo um aluno pode simplesmente passar o ano todo sem participar das aulas de

educação física. Fica a seu critério, já que o regimento da escola não pode ferir esse direito

garantido em lei.3 Uma alternativa a ser discutida é a escola adotar também para a

educação física algum critério de verificação do rendimento escolar, seja por notas ou

outros instrumentos, como nos demais componentes curriculares.

3Da mesma forma, isso vale para todos os demais componentes curriculares. Hipoteticamente, um aluno poderia faltar a todas as aulas de qualquer disciplina curricular sem atingir o limite de 200 horas a que tem direito. No entanto, há uma diferença a ser considerada: as demais disciplinas contam com instrumentos de verificação do rendimento escolar (provas, trabalhos, dentre outros) que implicam distribuição de pontos com vistas à aprovação, constituindo-se numa forma de controle da presença do aluno nas aulas, o que nem sempre está previsto para o ensino de Educação Física. Não se infira deste comentário a defesa de que a Educação Física passe a ter provas e notas, por exemplo. Não concordamos que seja isso que lhe garantirá status pedagógico. Apenas insistimos na discussão do tema.

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Os artigos das disposições gerais da educação básica permitem concluir que a

avaliação do ensino da educação física também pode ser elaborada a critério de cada

sistema de ensino e mesmo de cada escola. Assim, se desejarem manter a avaliação em

educação física como na legislação anterior, com os testes de rendimento físico, não há

impedimentos legais. Se quiserem adotar a verificação do rendimento escolar por meio de

notas, menções ou conceitos, também nada impedirá. Tudo dependerá da concepção de

educação física e de avaliação que um sistema de ensino ou uma escola adotar.

Em síntese, se não mais existe uma legislação federal de ensino que dê orientações

específicas para a organização do ensino da educação física, quanto à sua conceituação,

objetivos, conteúdos, número e duração das aulas, número de alunos em aula, formas de

avaliação, dispensas, como a educação física vai se integrar à proposta pedagógica da

escola? São as respostas a essa questão que possibilitam aos professores de educação física

e aos órgãos pertinentes interferirem na formulação de propostas para o seu ensino.

3 UMA ‘AUTONOMIA’ SOB CONTROLE

Numa primeira análise, consideramos que essas são as principais repercussões da

nova LDB no ensino da educação física. Parece, a princípio, que estamos diante de uma

autonomia muito ampla para organizarmos os sistemas de ensino, as escolas e o ensino da

educação física. Depende...

Depende, primeiramente, porque essa autonomia é desde logo bastante relativizada,

já que o governo federal está muito empenhado em impor os chamados Parâmetros

Curriculares Nacionais (PCNs) para todas os componentes curriculares. Para nós, os PCNs

se configuram, de fato, numa tentativa de imposição de um currículo nacional para a

escola. Os PCNs de educação física, silenciosamente elaborados por assessores

convidados pelo MEC, contemplam, por enquanto, os dois primeiros ciclos do ensino

fundamental (antigas 1ª à 4ª séries). Eles apresentam, segundo seus autores, uma

justificativa teórica, os objetivos gerais da área, os conteúdos para o ensino fundamental, os

critérios de seleção, organização e avaliação dos conteúdos do programa, e, ainda,

apresentam orientações didáticas para as aulas. O que o MEC pretende com esse currículo

nacional de educação física? Certamente não é o fortalecimento de uma autonomia dos

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professores. Ao contrário, pretende sim influenciar diretamente a organização do ensino de

educação física nas escolas.

Sinteticamente, em nossa primeira leitura da sua versão se 1996, consideramos,

dentre outros aspectos, que eles ignoram a realidade educacional brasileira, apresentam

uma visão de ser humano abstrata e universal, tentam buscar um consenso entre propostas

divergentes de educação física, desprezam a produção bibliográfica da área e se

fundamentam excessivamente na psicologia.4

Tudo isso indica a necessidade de uma análise crítica rigorosa desses parâmetros,

para não nos iludirmos com aquela idéia de autonomia, ao mesmo tempo em que somos

levados a elaborar o ensino de educação física por intermédio da imposição dos PCNs pelo

MEC.

Depende, em segundo lugar, porque a pretensa autonomia da nova LDB é limitada

por um instrumento de controle representado por um processo nacional de avaliação do

rendimento escolar (previsto no art. 9, VI), que é de competência exclusiva da União, com

a mera colaboração dos Estados e dos Municípios, e ao qual as escolas deverão se

submeter. Tal como nos mostra o exemplo do provão aplicado no ensino superior, esse

processo de avaliação leva em consideração apenas o resultado, o produto, o quantificável.

É, por isso mesmo, a expressão de uma concepção de educação tecnocrática,

centralizadora, elitista e competitiva. É muito importante acompanhar as suas repercussões

nas escolas e no ensino da educação física, com vistas a contrapor-se-lhe com outras

formas de avaliação.

No entanto, em nossa opinião existem possibilidades de ação concreta dos

professores de educação física, por exemplo, aproveitando os conflitos e as contradições da

lei, sem que se curvem às suas imposições, e resistir. E acreditamos que a principal forma

de resistir é tentar construir a escola e a educação física que queremos, e não a que uma lei

deseja impor.

4 QUE ESCOLA?

Embora a nova LDB tenha como uma de suas estratégias conformar as práticas

escolares a determinadas idéias, a escola não é, necessariamente, aquilo que a lei lhe impõe. 4O parecer integral sobre os PCNs da área de Educação Física, elaborado por Cláudio Lúcio Mendes, Eustáquia Salvadora de Sousa e Tarcísio Mauro Vago, também está sendo publicado neste livro.

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Ela é muito mais o produto das práticas diárias de seus professores, alunos, funcionários e

pais e das relações que estabelece com o todo social. É por isso que acreditamos que

importa muito mais, para o nosso trabalho, aquilo que queremos e podemos construir nas

nossas escolas.

Para nós, a escola é um lugar de produção de cultura, de conhecimento, e como

tal ela interfere decisivamente na história cultural da sociedade. Ora, isso é completamente

diferente daquelas posições que entendem a escola como uma instituição sem força,

reduzida à tarefa de transmissão de um conhecimento produzido fora dela. De fato, como

André Chervel5, não aceitamos o entendimento de que a escola seja, por excelência, o lugar

do conservadorismo, da inércia, da rotina, da sujeição, e o professor um agente impotente

de uma didática que lhe é imposta do exterior.

Também concordamos com António Nóvoa6 quando escreve que não é mais

possível ignorar o trabalho interno de produção de uma cultura escolar, que estará sempre

se relacionando com o conjunto das culturas em conflito numa dada sociedade. Mas a

escola possui especificidades próprias que não podem ser olhadas apenas pelo prisma das

determinações do mundo exterior, acrescenta.

Com isso, defendemos que a escola tem certa liberdade de manobra na organização

de sua prática pedagógica e, ao mesmo tempo, um movimento propositivo de intervenção

cultural na sociedade. Obviamente, sabemos que há interesses conflituosos no campo da

educação escolar que geram práticas políticas opostas em seu interior e nas suas relações

com a totalidade social. São conflitos de interesses culturais, que evolvem aspectos

econômicos e sociais. No entanto, referimo-nos aqui a uma escola que assuma sua tarefa

política de participar da construção histórica de uma sociedade igualitária, justa, solidária e

fraterna, sem dominação de classe, de gênero, de raça ou de etnia.

5 QUE EDUCAÇÃO FÍSICA?

A partir dessa compreensão de escola, entendemos que o nosso maior desafio é nos

mantermos no caminho que já vínhamos trilhando, prosseguindo com o que de fato já

vínhamos fazendo, mesmo que de formas diferenciadas, antes da nova LDB: tentando

construir um ensino da educação física que possa participar da produção da cultura escolar 5Cf. CHERVEL, 1992.6Cf. NÓVOA, 1992.

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como um tempo e um espaço de conhecer, de provar, de criar e recriar as práticas corporais

produzidas pelos seres humanos ao longo de sua história cultural, como os jogos, os

brinquedos, as brincadeiras, os esportes, as danças, as formas de ginástica, as lutas.

Fazendo isso, o ensino da educação física se configura como um lugar de produzir cultura,

sendo os professores e os alunos os sujeitos dessa produção.

Ora, isso pressupõe que aos professores de educação física cabe investigar,

tematizar e problematizar o acervo cultural daquelas práticas corporais disponível na

sociedade, em termos dos valores, da ética e da estética corporal que propõem. Para nós,

isso constitue um processo de escolarização desse acervo. Mas, além disso, pressupõe

também, e fundamentalmente, que a educação física é um lugar de produção de outras

práticas corporais, ou de outros significados para as práticas corporais existentes. Para esse

processo de escolarização e de produção defendemos que a educação física se esforce para

imprimir um caráter lúdico a essas práticas corporais, sem desconsiderar, no entanto, que

sua realização pode também envolver tensões, conflitos, que devem ser problematizados.

Nas aulas, os professores e as professoras de educação física, com os seus alunos e

as suas alunas, podem perpetuar ou recriar tais práticas e, principalmente, produzir novas

práticas corporais, fruindo e usufruindo delas imediatamente nas aulas — aproveitando

uma expressão de Clarice Lispector, diríamos no “instante já” de cada aula —, e sempre, na

história que seguirão construindo.

Assim, a educação física produz uma cultura escolar de jogos, de danças, de

esportes, de ginástica, de lutas, de brincadeiras, de brinquedos, dentre outras práticas

corporais lúdicas, que pode intervir na cultura que a sociedade produziu sobre essas

mesmas práticas. Tal intervenção pode-se dar, por exemplo, com o estabelecimento de uma

relação de tensão permanente entre a cultura escolar e a cultura mais ampla da sociedade, o

que caracteriza um movimento propositivo da escola em suas relações com outras práticas

culturais da sociedade.

Nem domadora de corpos humanos; nem produtora de uma raça forte e enérgica;

nem celeiro de atletas; nem terapia escolar; nem promotora de uma saúde estritamente

biológica. Pensamos numa educação física que não está preocupada em produzir ‘corpos

esculturais’, mas em participar da construção dos ‘corpos culturais’ das crianças, dos

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adolescentes, dos trabalhadores, enfim, dos homens e das mulheres, que com eles sentem,

pensam, desejam, sofrem, agem, produzem, brincam, jogam...

6 FONTES BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Lei 5692/71, 11 ago. 1971. Fixa diretrizes e bases do ensino de 1º e 2º graus e dá outras providências. Currículos plenos dos estabelecimentos de Ensino Regular de 1º e 2º graus. Belo Horizonte: Lâncer, 1988c, p. 27-41.

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_____. Constituições: República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988. 292 p.

_____. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, n. 9.394/96, de 20/12/1996. CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de

pesquisa. Teoria e educação, Porto Alegre: Pannonica, n. 2, p. 177-229, 1990.DAOLIO, Jocimar. Da cultura do corpo. São Paulo: Papirus, 1995FORQUIN, Jean-Claude. Saberes escolares, imperativos didáticos e dinâmicas sociais.

Teoria e educação, Porto Alegre: Pannonica, n. 5, p. 28-54, 1992.NÓVOA, António. História da educação: perspectivas atuais. 1994 (mimeo.)REVISTA EDUCAÇÃO E REALIDADE. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio

Grande do Sul, Faculdade de Educação, v. 21, n. 1, jan./jun. 1996.SILVA, Tomaz Tadeu & GENTILI, Pablo (Orgs.) Escola S.A. Brasília: CNTE, 1996.SOARES, Carmem Lúcia. Educação física: raízes européias e Brasil. Campinas:

Autores Associados, 1994, 167p.

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