a nova imagem do pobre em jon sobrino

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PARALELLUS, Recife, Ano 3, n. 5, jan./jun. 2012, p. 93-108. ISSN: 2178-8162 O SERVO SOFREDOR: A NOVA IMAGEM DO POBRE EM JON SOBRINO Jorge Roberto de Araújo Aguiar 1 Resumo Examinamos neste trabalho o sentido do termo “pobre” na obra “O princípio misericórdiade Jon Sobrino. A ideia do pobre como sacramento de Deus vem sendo transmitida por longa tradição. Essa tradição aparece no cristianismo profético da teologia da libertação, especialmente em Jon Sobrino. Procurou-se inferir subsídios para uma nova hermenêutica do pobre, não mais como uma categoria sociológica, porém como sacramento. A razão simbólica em Jon Sobrino caracteriza- se pela gratuidade, sua luta simbólica tenta mudar as categorias de percepção e apreciação do mundo social, as estruturas cognitivas e de avaliação. Quatro momentos dão forma ao texto: o primeiro deixa claro os objetivos do trabalho. O segundo, verifica as novas perspectivas teológicas entre os anos de 1960 e 1980. No terceiro momento, analisam-se as diversas representações sobre a pobreza em O princípio misericórdia”, descer da cruz os povos crucificados. E, por fim, a título de conclusão, aborda-se a América Latina na visão de Jon Sobrino como lugar de perdão. Palavras-chave: Teologia da Libertação. Pobreza. América Latina. Misericórdia. 1 INTRODUÇÃO O apelo à articulação entre teoria e prática, a sensibilidade especial pela realidade desumana e opressiva vivida pelas populações marginalizadas gerou novas perspectivas eclesiais e sociopolíticas nas décadas de 1960 e 1970. Constam dessa realidade pressupostos que apresentam três aspectos: a dimensão internacional de dominação socioeconômica e política. As expectativas de libertação social motivada por setores críticos do capitalismo e os conflitos gerados pelos governos militares. Nesse contexto, Leonardo e Clodovis Boff, no livro “Como fazer 1 Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco (2011). Especialista em Filosofia e Existência (2006), História do Brasil (1990) e Administração Escolar (1998). Possui graduação em História pela Universidade Federal de Pernambuco (1977). Lecionou no curso de História do Centro de Estudos Superiores de Maceió durante o período de 1984 a 2008. Atualmente é professor do Liceu Alagoano e do Colégio Marista de Maceió. Tem experiência na área de História e Filosofia, com ênfase em História Latino-Americana, Filosofia da História, Ética da Alteridade e da Libertação. Email: [email protected]

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Religiosidade na América Latina

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  • PARALELLUS, Recife, Ano 3, n. 5, jan./jun. 2012, p. 93-108. ISSN: 2178-8162

    O SERVO SOFREDOR: A NOVA IMAGEM DO POBRE EM JON SOBRINO

    Jorge Roberto de Arajo Aguiar1

    Resumo

    Examinamos neste trabalho o sentido do termo pobre na obra O princpio misericrdia de Jon Sobrino. A ideia do pobre como sacramento de Deus vem sendo transmitida por longa tradio. Essa tradio aparece no cristianismo proftico da teologia da libertao, especialmente em Jon Sobrino. Procurou-se inferir subsdios para uma nova hermenutica do pobre, no mais como uma categoria sociolgica, porm como sacramento. A razo simblica em Jon Sobrino caracteriza-se pela gratuidade, sua luta simblica tenta mudar as categorias de percepo e apreciao do mundo social, as estruturas cognitivas e de avaliao. Quatro momentos do forma ao texto: o primeiro deixa claro os objetivos do trabalho. O segundo, verifica as novas perspectivas teolgicas entre os anos de 1960 e 1980. No terceiro momento, analisam-se as diversas representaes sobre a pobreza em O princpio misericrdia, descer da cruz os povos crucificados. E, por fim, a ttulo de concluso, aborda-se a Amrica Latina na viso de Jon Sobrino como lugar de perdo.

    Palavras-chave: Teologia da Libertao. Pobreza. Amrica Latina. Misericrdia.

    1 INTRODUO

    O apelo articulao entre teoria e prtica, a sensibilidade especial pela

    realidade desumana e opressiva vivida pelas populaes marginalizadas gerou

    novas perspectivas eclesiais e sociopolticas nas dcadas de 1960 e 1970. Constam

    dessa realidade pressupostos que apresentam trs aspectos: a dimenso

    internacional de dominao socioeconmica e poltica. As expectativas de libertao

    social motivada por setores crticos do capitalismo e os conflitos gerados pelos

    governos militares. Nesse contexto, Leonardo e Clodovis Boff, no livro Como fazer

    1 Mestre em Cincias da Religio pela Universidade Catlica de Pernambuco (2011). Especialista em

    Filosofia e Existncia (2006), Histria do Brasil (1990) e Administrao Escolar (1998). Possui graduao em Histria pela Universidade Federal de Pernambuco (1977). Lecionou no curso de Histria do Centro de Estudos Superiores de Macei durante o perodo de 1984 a 2008. Atualmente professor do Liceu Alagoano e do Colgio Marista de Macei. Tem experincia na rea de Histria e Filosofia, com nfase em Histria Latino-Americana, Filosofia da Histria, tica da Alteridade e da Libertao. Email: [email protected]

  • ~ 94 ~ AGUIAR, Jorge Roberto. A. O servo sofredor: a nova imagem do pobre...

    PARALELLUS, Recife, Ano 3, n. 5, jan./jun. 2012, p. 93-108. ISSN: 2178-8162

    teologia da libertao, fornecem uma viso global, acessvel e serena de um novo

    modo de fazer teologia, consideram que:

    No contexto de dilogo entre Igreja e sociedade em ebulio, entre f crist e anelos de transformaes e libertao a partir das classes populares, se iniciaram as primeiras reflexes teolgicas que apontavam para a Teologia da Libertao. A atmosfera teolgica marcada por grande liberdade e criatividade que se desenvolvera durante a realizao do Conclio Vaticano II (1962-1965) propiciava na Amrica Latina a coragem de os telogos pensarem nessas questes pastorais com a prpria cabea... aprofundar as reflexes sobre a relao entre f e pobreza, evangelho e justia social (BOFF, 1993, p. 96-97).

    Dessa maneira, na Amrica Latina, ocorreram grandes transformaes no

    modo de fazer teologia e de ser Igreja. Experimentou-se uma nova eclesialidade no

    aparecimento das CEBs, e na opo preferencial pelos pobres. Nas comunidades

    pobres rurais, lutava-se pela reforma agrria, o que ia de encontro aos interesses

    das grandes companhias agroindustriais e as prticas dos sindicatos dos

    trabalhadores, no contexto urbano, davam-se no confronto entre capital e trabalho.

    Busca-se, neste trabalho, no s demonstrar que a anlise marxista, hoje,

    no suficiente como mediao socioanaltica para atender produo teolgica

    como tambm demonstrar a mudana no trato do termo pobre em Jon Sobrino.

    Prope-se perceber uma penetrao, no limite do possvel, no sagrado religioso, que

    mistrio de Deus no pobre, interpelador e impulsionador do ser humano. Faz-se,

    assim, um contraponto relativizao sociolgica.

    A nossa inteno no de contrapor Jon Sobrino s avaliaes feitas por

    Gutirrez, Assmann, Leonardo Boff, Jorge Pixley, Clodovis Boff. Em nossa forma de

    perceber, Jon Sobrino faz parte, tambm, desse crculo de telogos que, no interior

    da Teologia da Libertao, reflete sobre essas questes. O diferencial que vemos

    que, diante da densidade do presente, ele d nfase linguagem teolgica na

    compreenso do termo pobre. E o que se prope demonstrar atravs da

    transformao que o sentido da palavra pobre sofreu em O Princpio Misericrdia a

    partir da compreenso do servo sofredor. A nova imagem do pobre em Jon sobrino

    assumiu o papel de smbolo de Deus.

    Veja-se como ele se expressa referindo-se Amrica Latina:

    Na Amrica Latina a teologizao fundamental consiste em considerar o povo crucificado como a atualizao de Cristo crucificado, verdadeiro servo de Jav; de modo que povo

  • AGUIAR, Jorge Roberto. A. O servo sofredor: a nova imagem do pobre... ~ 95 ~

    PARALELLUS, Recife, Ano 3, n. 5, jan./jun. 2012, p. 93-108. ISSN: 2178-8162

    crucificado e Cristo, servo de Jav, mutuamente se remetem e

    explicam. Assim fizeram os mrtires salvadorenhos que sabiam muito bem do que falavam. Monsenhor Romero disse a alguns camponeses aterrorizados que tinham sobrevivido a uma matana: vocs so a imagem do divino transpassado (SOBRINO, 1994, p. 86, destaque nosso).

    Nesse sentido, o smbolo pobre em Jon Sobrino libera a razo moderna dos

    autoritarismos, utilitarismos e instrumentalizaes em que ela pode cair sobre o

    imprio dos positivismos, inclusive marxistas. Com isso, no se quere negar aos

    telogos dos anos 60 a 80 a compreenso do pobre como smbolo de Deus, porm

    esse momento foi denominado como o das mediaes socioanalticas em que foi

    privilegiado o marxismo como instrumental cientfico de anlises. Agora se faz a

    pergunta: essas questes e respostas com a quais os Telogos da Libertao

    trabalharam, nas dcadas de 1960 e 1970, so compatveis com as necessidades

    da produo teolgica dos dias de hoje?

    Constatamos que a redescoberta e a ressignificao do pobre como smbolo

    de Deus, em Jon Sobrino, estar mais em sintonia com as necessidades atuais,

    embora tambm admitamos nele o uso do instrumental cientfico. A razo simblica

    no pretende dominar, impor, nem tirar partido; ela se caracteriza pela gratuidade,

    pela alteridade e pela no manipulao. Trata-se de uma razo solidria, dialgica

    com as outras formas de racionalidade. No dizer de Jon Sobrino, a teologizao que

    se faz do povo crucificado aqui na Amrica Latina, a partir do servo de Jav, no s

    inclui seu aspecto de vtima, mas tambm seu aspecto historicamente salvfico

    (SOBRINO, 1994). Para captar, adequadamente, essa teologizao, Jon Sobrino

    nos remete aos cantos do servo de Jav. importante destacar tambm que, em O

    princpio misericrdia, nosso autor chama a ateno para os elementos que

    proveram essa alterao. Traz em evidncia o servo como luz, smbolo de Deus e

    essa luz tem a fora de desmascarar a mentira, essa mesma luz que o povo

    crucificado oferece.

    Jon Sobrino admite o fracasso das revolues na Amrica Latina, que o

    socialismo tenha cado, que a globalizao inevitvel, porm ele admite que tudo

    isso ainda no diz nada. Para Ele, existe alguma coisa que tenha a capacidade de

    potenciar o positivo, agir contraculturalmente. E a Jon Sobrino enftico: O amor e

    a defesa de Deus dos mais fracos e a condenao do pecado e dos opressores que

    os produzem (SOBRINO, 2000, p. 16).

  • ~ 96 ~ AGUIAR, Jorge Roberto. A. O servo sofredor: a nova imagem do pobre...

    PARALELLUS, Recife, Ano 3, n. 5, jan./jun. 2012, p. 93-108. ISSN: 2178-8162

    2 NOVAS PERSPECTIVAS TEOLGICAS

    Entre os anos de 1960 e 1980, a nova forma de ser Igreja, relacionada

    Teologia da Libertao, est articulada com as possibilidades de transformao

    social e poltica, e buscam uma sociedade justa e igualitria. Sendo assim, a

    Teologia da Libertao representou uma contraposio viso desenvolvimentista.

    Ela assume um novo referencial terico de interpretao baseado nos estudos

    cientficos, especialmente em sociologia. Nesse contexto, a Teologia da Libertao

    tenta compreender a realidade por meio de mediaes cientficas, julga mediante a

    tradio bblica e indica uma nova insero dos cristos nas prticas de libertao

    em curso no continente. Os cristos se inserem, buscando uma relao entre f e

    ao poltica.

    Na dcada seguinte, nos anos 80, esse quadro j no se configurou devido s

    transformaes sociopolticas vivenciadas na dcada de 90, marcada pela

    globalizao econmica e pela excluso social. As prticas polticas e econmicas

    vistas no Brasil e na Amrica Latina so coerentes com as polticas neoliberais

    estabelecidas em todo o mundo. Os processos de libertao deram lugar aos de

    reajuste socioeconmicos. No obstante a existncia de lutas de contestao social,

    no foi vivel na dcada de 1990.

    Queremos deixar bem claro, neste momento, que Jon Sobrino tambm faz

    parte desse crculo de telogos que, no interior da Teologia da Libertao, reflete

    sobre essas questes. Nesse sentido, as avaliaes feitas por Gustavo Gutirrez,

    Hugo Assmann, Leonardo Boff, Jorge Pixeley e Clodovis Boff so total ou

    parcialmente partilhadas por Jon Sobrino.

    No entanto, faz-se necessrio levar em conta o enrijecimento metodolgico da

    Teologia da Libertao. Segundo Ribeiro (2010), em seu livro A Teologia da

    Libertao Morreu?, onde trata da necessidade de novos referenciais para que a

    produo teolgica possa ser aprofundada e adquira novos estgios mais

    relevantes, considera que se faz necessrio levar em conta esse enrijecimento

    metodolgico. Essa proposta metodolgica considerou o crculo hermenutico a

    partir das perguntas oriundas da experincia prtica dos cristos. Essa deveria

    passar pela crtica, para verificar sua validade e ajudar a enquadr-la na realidade

    sociopoltica que necessitava ser compreendida. Esse momento, como j se

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    PARALELLUS, Recife, Ano 3, n. 5, jan./jun. 2012, p. 93-108. ISSN: 2178-8162

    considerou acima, foi denominado como o das mediaes socioanalticas quando foi

    privilegiado o marxismo como instrumental cientfico de anlises. Agora se pergunta

    se essas questes e respostas com as quais os Telogos da Libertao trabalharam

    nas dcadas de 1970 so compatveis com as necessidades da produo teolgica

    dos dias de hoje. A questo do socialismo, por exemplo, motivao utpica dos anos

    60-70, est em sintonia com as necessidades atuais?

    Como se viu, a Teologia da libertao surge como reflexo das prticas

    libertadoras, que foram vividas na dcada de 60 at a dcada de 80. No entanto,

    segundo Ribeiro (2010), o que surgiu foram prticas de reajuste, as quais os pobres

    aceitaram por causa de sobrevivncia. Essa nova pergunta, portanto, no est

    sendo feita em um contexto de libertao, e sim de reajuste, o que altera a forma de

    agir. Ou seja, as anlises marxistas demonstram no serem suficientes como

    mediaes socioanalticas da produo teolgica hoje. Tais anlises encontram

    dificuldades em desvelar outros aspectos da realidade, marcados em especial pela

    dinmica cultural. Soma-se a isso que, na Amrica Latina, o crescimento da

    importncia dos conflitos sociais no so mais de classes, porm, tnicos, raciais e

    de gneros.

    Diante do exposto, atendendo proposta do trabalho, que ressaltar a nova

    hermenutica do pobre em O princpio misericrdia, desejamos chamar ateno na

    sua maneira de perceber o sagrado religioso, que o mistrio de Deus, interpelador

    e impulsionador do ser humano.

    3 O PRINCPIO MISERICRDIA, DESCER DA CRUZ OS POVOS CRUCIFICADOS

    Para Jon Sobrino, chegar a conhecer a Deus o mistrio ltimo do ser

    humano. Porm, conhecer Deus no se faz a partir de nenhum lugar; tampouco a

    partir de El Salvador, mas ele cr que se torna mais fcil, um pouco mais adequado,

    crer na bondade e no mistrio de Deus que se concretiza a favor da vida dos pobres

    (SOBRINO, 1994). Nosso autor enftico nesse ponto. Observe o que ele diz:

    O mistrio de Deus aparece agigantado neste mundo de vtimas e se concretiza no mistrio insondvel de um Deus crucificado, como formulou to belamente J. Moltmann. um Deus que no apenas est a favor das vtimas, mas tambm, merc dos seus verdugos. [...] No meio de tantas vtimas, a Amrica Latina o lugar por antonomsia de se perguntar por Deus, como J e como Jesus na

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    cruz, e tanto mais como quanto simultaneamente ele confessado como Deus da vida (SOBRINO, 1994, p. 23).

    Nesse sentido, ele concebe os pobres deste mundo como smbolos de Deus

    entre ns, pois oferecem luz para que os contedos possam ser vistos mais

    adequadamente, constituem interpelao e exigncia de converso. A misericrdia

    exigncia que Jon Sobrino redescobriu em El Salvador e que levou ao seu

    despertar. Reagiu em sua vida com misericrdia e empenhou-se completamente em

    descer da cruz os povos crucificados. Para ele, a dificuldade no se perceber que

    nos pobres acontece o mistrio. Neles irrompeu Deus, irrompeu, portanto, o

    mistrio. Para Jon Sobrino, sabido que nenhum mistrio fcil de ser aceito

    porque imanipulvel. menos se esse mistrio se faz presente nos pobres

    (SOBRINO, 2008). Ele faz uma advertncia em se trivializar os pobres e os

    mistrios, quando so domesticados atravs de doutrinas. Porm ele deixa claro que

    a iniciativa vem de Deus, que nos amou primeiro (SOBRINO, 2008). Porm esse

    mistrio de Deus e de Cristo vai-se revelando com os pobres deste mundo. Ele

    explica:

    Na realidade existencial, estamos dentro do circulo hermenutico. Afirmamos que os pobres nos levam a Deus e seu Cristo. Mas conhecidos esse Deus e esse Cristo, revelam que esse seu lugar, o dos pobres, e que assim aparece na palavra revelada (SOBRINO, 2008, p. 46).

    Reconhece-se uma relao intrnseca entre Deus e os pobres nos textos de

    Jon Sobrino. Para ele, os pobres no so somente uma categoria sociolgica. A

    Amrica Latina, a seu ver, um lugar teolgico em que Deus se revela no avesso de

    uma religiosidade pag que s v Deus como poder. Jon Sobrino nos lembra que a

    revelao tem como fundamento o povo oprimido e seu clamor, e que a relao de

    Deus com os pobres aparece como uma constante de sua revelao. Ela se

    constitui uma resposta aos clamores dos pobres. Portanto, para conhecer a

    revelao de Deus, preciso conhecer a realidade dos pobres (SOBRINO, 1994).

    Consequentemente, em sua compreenso, pode-se situar os pobres no mbito do

    mistrio de Deus e Deus no mbito dos pobres.

    Jon Sobrino faz uso da expresso povo crucificado, cunhada por Ellacura.

    A expresso aponta para a subespcie dos no existentes, os sobrantes. No

  • AGUIAR, Jorge Roberto. A. O servo sofredor: a nova imagem do pobre... ~ 99 ~

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    comentrio de Gilberto Kraisch, a linguagem do povo crucificado desafia e

    desmascara os defensores da atual ordem mundial (KRAISCH, 2008).

    Em Jon Sobrino, os pobres, para manifestarem sua resistncia, fazem-no a

    partir de uma produo simblica, essa uma linguagem do oprimido. O vigor da

    teologia de Jon Sobrino est no fato de ter mergulhado na tenso com a produo

    simblica no mbito popular. Aqui, Jon Sobrino, faz uso de uma linguagem til e

    necessria em nvel religioso porque cruz evoca pecado e graa, condenao e

    salvao, ao dos homens, ao de Deus. Coloca o prprio Deus fazendo-se

    presente nessas cruzes, e os povos crucificados se convertem no principal sinal dos

    tempos (SOBRINO, 1994). Nesse texto, o sinal da presena de Deus no nosso

    mundo constante, e sempre no povo historicamente crucificado.

    De Karl Rahner, Jon Sobrino faz uso da expresso a realidade quer tomar a

    palavra. Nessa afirmao, a realidade deixa de ser realidade fatual e torna-se uma

    realidade falante que se afirma em momentos decisivos. importante realar que,

    em O princpio misericrdia, a revelao acontece quando Deus escuta a palavra

    da realidade em forma de um clamor de seres humanos empobrecidos (SOBRINO,

    2007). Portanto, para ele, os pobres so os mediadores da salvao dos ricos.

    Vejamos o que diz Jon sobrino referindo-se a El Salvador

    Todo esse sangue mrtir derramado em El Salvador e em toda Amrica Latina, longe de levar ao desnimo e desesperana, infunde novo esprito de luta e nova esperana em nosso povo. Neste sentido, se no somos um novo mundo nem um novo continente, somos, claramente, de uma maneira verificvel e no exatamente pelas pessoas de fora um continente de esperana, o que um sintoma extremamente interessante de uma futura novidade diante de outros continentes que no tm esperana e que a nica coisa que realmente tem medo (SOBRINO, 2007, p. 127, destaque do autor).

    Nesse texto denso e rico, aparece a dimenso salvadora do pobre em Jon

    Sobrino. Para ele, a salvao se d na histria no somente atravs das mediaes

    tericas e prticas como tambm atravs da dimenso salvadora do servo. Ou seja,

    as realidades sociais conflitivas no podem obliterar as exigncias de um amor

    universal que no reconhece fronteiras de classe social, raa ou gnero. A

    afirmao de que o ser humano agente da sua histria deve ser feita de tal modo

    que se perceba a iniciativa gratuita de Deus no processo salvfico, sentido ltimo do

    devir histrico da humanidade.

  • ~ 100 ~ AGUIAR, Jorge Roberto. A. O servo sofredor: a nova imagem do pobre...

    PARALELLUS, Recife, Ano 3, n. 5, jan./jun. 2012, p. 93-108. ISSN: 2178-8162

    Em El Salvador, descobre, tambm, como Deus olha para sua criao posta

    na cruz. este mundo de pobreza e de povos crucificados que lhe permite superar a

    cegueira e descobrir a mentira. Os pobres de El Salvador iro mostrar-lhe que

    continuam tendo esperana, a no ser que ela degenere em otimismo no progresso.

    No entanto, o que diz a f crist, segundo ele, que Deus far justia s vtimas e,

    por extenso, aos que se identificam com elas. Para ele, essa uma esperana

    ativa, que desencadeia criatividade em todos os nveis da existncia humana

    (SOBRINO, 2007). No meio da pobreza, ele via o impulso forte da vida e o encanto

    do humano2.

    Foi assim que Jon Sobrino adquiriu novos olhos em El Salvador, l aprendeu

    a perguntar o que realmente o humano dos seres humanos. Percebeu que o ser

    humano ocidental no humanizou a outros nem est humanizando a si mesmo,

    produziu um mundo infra-humano no Terceiro Mundo e um mundo desumanizante

    no Primeiro. Ficou surpreso, tambm, com a falta de historizao da compreenso

    do ser humano, porm insiste que zombaria repetir aos milhares de pobres que

    so todos seres humanos, ou continuar exortando-os a ter pacincia, porque um dia

    chegaro a ser seres humanos como todos. Finalmente, surpreendeu-se com a falta

    de dialtica ignorando o fato fundamental e antagnico da diviso entre os que tm e

    os que no tm3. Jon Sobrino descobriu, em El Salvador, que o verdadeiro ser

    humano foi aparecendo l onde menos se esperava, no rosto dos pobres e das

    vtimas. L teve a convico de que, para conhecer nossa essncia humana, era

    necessrio faz-la desde e para os pobres (SOBRINO, 1994), l em El Salvador as

    vtimas lhe revelaram onde os cristos devem conhecer Deus na histria.

    2 Luiz Carlos Susin, no livro Dialogando com Jon Sobrino, organizado por Afonso Maria Ligrio Soares, afirma que: so os pobres, as vtimas, os cados, os pequeninos que discernem e nos do sinal de beleza crist, a verdadeira beleza que salva o mundo (SUSIN, 2009, p.172).

    3 Sobre este problema, questiono a forma pela qual Bourdieu desenvolveu as ideias de Marx. Contudo, em um aspecto fundamental, Bourdieu tambm se desviou do marxismo na apropriao que fez do modelo dos campos baseado em O capital, em especial pela supresso da categoria de explorao que to central na anlise marxista do capitalismo. Central tambm a relao recproca entre a explorao (relaes de propriedade, de produo, de distribuio) e a prpria produo (o processo de trabalho, a diviso de trabalho, as relaes produtivas). A anlise feita por Bourdieu dos campos sociais tende a colapsar essas duas relaes, reduzindo a diviso de trabalho simples posse de um capital e, com isso, eclipsando a ideia da explorao que, pelo menos nos esquemas marxianos, conduzia s lutas de classe (BURAWOY, 2010, p.37).

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    PARALELLUS, Recife, Ano 3, n. 5, jan./jun. 2012, p. 93-108. ISSN: 2178-8162

    4 A TRANSFORMAO DO POBRE EM UM PAPEL DEFINITIVO NO MUNDO SIMBLICO RELIGIOSO DE JON SOBRINO

    Observe a transformao que o sentido da palavra pobre sofreu em O Princpio

    Misericrdia, a partir da compreenso do servo sofredor, na qual a nova imagem

    do pobre assumiu o papel de smbolo de Deus.

    Em O princpio misericrdia, Jon Sobrino confirma o que Ellacura prope:

    uma teologizao do povo crucificado. No s por razes histricas, como tambm

    por razes teolgicas, assim tambm se encontra a criao de Deus. A criao est

    mal para Deus, a terrvel pobreza aumenta na Amrica Latina. Tanto o olhar cristo

    como o secular esto de acordo com essa tragdia (SOBRINO, 1994). Diz Jon

    Sobrino nesta importante passagem em que Monsenhor Romero fala em uma

    homilia:

    Jesus Cristo, o libertador, tanto se identifica com o povo que os interpretes da escritura no sabem se o servo de Jav que Isaas proclama o povo sofredor ou o Cristo que vem redimir. Ellacura diz a mesma coisa: Esse povo crucificado a continuao histrica do servo de Jav, a quem os poderes deste mundo continuam despojando de tudo, continuam arrebatando-lhe a vida, sobretudo a vida (SOBRINO, 1994, p. 86).

    Ao tratar dessa questo, Jon Sobrino quer dizer que os pobres salvam porque

    muitos deles realizam, em sua vida, os valores evanglicos de solidariedade,

    servio, simplicidade e disponibilidade para acolher o dom de Deus. Ser pobre quer

    dizer: os materialmente pobres, os que no do a vida por certo. Os despossudos

    do fruto de seu trabalho. So os privados do poder social e poltico. So os

    considerados inexistentes. So os que despertaram do sono dogmtico. So os

    libertadoramente pobres, os que transformam a tomada de conscincia em prxis de

    libertao solidria. So os espiritualmente pobres os que vivem sua materialidade,

    sua tomada de conscincia e sua prxis com gratuidade, com misericrdia. Por

    ltimo, vista a realidade dos pobres desde a f crist, sua pobreza possui a

    dimenso teologal: a predileo de Deus por eles, a presena de Cristo neles

    (SOBRINO, 2008). Jon Sobrino vai mais longe e diz:

    As diversas dimenses da realidade dos pobres dependendo de pocas e lugares produziro uns ou outros frutos de salvao. Dito em forma de sntese, por sua realidade crua podem produzir converso e compaixo, e tambm verdade e prxis de justia. E por

  • ~ 102 ~ AGUIAR, Jorge Roberto. A. O servo sofredor: a nova imagem do pobre...

    PARALELLUS, Recife, Ano 3, n. 5, jan./jun. 2012, p. 93-108. ISSN: 2178-8162

    seu Esprito multiforme, podem humanizar de vrias formas o ar impuro que o Esprito respira (SOBRINO, 2008, p. 98).

    E prossegue mais adiante, tornando ainda mais clara a sua noo de pobre

    como sacramento de Deus, compreenso que formulou mediante o contraponto com

    a perspectiva vigente de pobre at aquele momento. No dizer de Jon Sobrino, a

    teologizao que se faz do povo crucificado aqui na Amrica Latina, a partir do servo

    de Jav no s inclui seu aspecto de vtima, mas tambm seu aspecto

    historicamente salvfico (SOBRINO, 1994). Para reforar sua posio, Jon Sobrino

    nos remete aos cantos do servo de Jav. O que dizem os cantos sobre o servo?

    Pergunta ele. o homem de dores, acostumado ao sofrimento: fome, enfermidade,

    moradia precria, desemprego. Essa a condio normal do povo crucificado, diz

    Jon Sobrino em relao ao servo sofredor:

    [...] sem figura e sem beleza, sem rosto atraente. E feiura da pobreza cotidiana se acrescenta a do sangue desfigurante, o espanto das torturas, das mutilaes [...] Ento, como o servo, causam nojo: muitos se espantaram com ele, porque, desfigurado, no parecia homem nem tinha aspecto humano. E adiante dele se escondem os rostos, porque d nojo v-lo, mas tambm para que no pertubem a falsa felicidade dos que produziram o servo, para que no desmascarem a verdade do que se esconde nos eufemismos que inventamos diariamente para descrev-los (SOBRINO, 1994, p. 88).

    No entanto, em meio a tanto tormento, de onde surge o anseio de viver.

    Quando Jon Sobrino fala de santidade primordial, est querendo dizer que santa a

    vida e santo defend-la, ou seja, fascinante ver os enormes esforos para

    favorec-la, trata-se da dimenso contracultural da bondade, a santidade do

    sofrimento que, por querer viver, tem uma lgica diferente. importante destacar em

    Jon Sobrino que esses elementos de pobreza e vtimas no exigem imitao, muito

    pelo contrrio, a imitao desses santos rejeitada por muitos. Mas, l onde reside

    a bondade, afirma Jon Sobrino, gera-se um sentimento de venerao diante de suas

    vidas, que provoca alguma humanizao (SOBRINO, 2007). Nesse sentido, ele

    enftico:

    Tambm no so mediadores que ajudam a vencer a infinita distncia entre os seres humanos e Deus, na realidade so presena de Deus. Mantm, em relao a ns, a alteridade especfica da divindade, qual, simultnea e paradoxalmente, tornam presente no mundo [...]. So vicrios de Cristo, como se dizia na Idade Mdia, de forma lcida e nada obscurantista, muito avanada em relao atual conscincia eclesial oficial (SOBRINO, 2007, p. 114).

  • AGUIAR, Jorge Roberto. A. O servo sofredor: a nova imagem do pobre... ~ 103 ~

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    Aqui se configura a subverso simblica de Jon Sobrino. Se a Igreja contribui

    para a manuteno da ordem poltica, ou melhor, como diz Bourdieu, para o reforo

    simblico das divises da ordem, pela sua funo especfica de contribuir para a

    manuteno dessa ordem simblica, atravs da inculcao dos esquemas de

    percepo, pensamento e ao conferindo a tais estruturas a legitmao e

    naturalizao da ordem (BOURDIEU, 2007), nesse sentido, a Igreja vai combater, no

    terreno simblico, as tentativas profticas de subverso simblica de Jon Sobrino

    em relao ao termo pobre. Esto a as notificaes enviadas a ele pela

    Congregao para a Doutrina da F, que lana mo da autoridade religiosa de que

    dispe a fim de combater, combater no terreno propriamente simblico as suas

    investidas profticas.

    Em relao sua teologia, Vera Ivanise Bonbonatto faz as seguintes

    observaes: em Jon Sobrino, todo conhecimento teolgico participa do mistrio:

    Jesus de Nazar remete-nos para o mistrio de Deus e do ser humano. Na relao

    desses dois, conta, acima de tudo, o pobre como expresso do mistrio. Destaca

    que Jon Sobrino foi forjando sua linha de pensamento e seu fazer teolgico no

    confronto com a injustia de El Salvador. Tudo comeou, diz Bonbonatto, na

    percepo de uma nova realidade: os pobres e as vtimas. Esse despertar teve

    consequncias decisivas para os interesses intelectuais. Exigia-se honradez com

    realidade histrica de represso e morte, o que o levou a perceber no s a

    existncia de Deus, mas tambm dos dolos. Vera ressalta que Jon Sobrino

    descobriu a correlao transcendental entre Deus e os pobres. Em Jon sobrino, diz

    ela: os pobres e as vtimas tornaram-se sacramentos de Deus e presena de Jesus

    em nosso meio. Continua Bonbonatto em seu comentrio, Jon sobrino, sem ignorar

    o intellectus fidei, passou a ter preferncia pelo intellectus amoris4, uma teologia que

    pretende descer da cruz os povos crucificados, por isso mesmo intellectus

    misericordiae. Sua teologia tambm intellectus gratiae, fecunda e alimenta seu

    labor teolgico (BOMBONATTO, 2007).

    4 Na epistemologia sobriniana, rico J. Hammes apresenta a definio global do seu teologizar como intellectus amoris. Ele identifica aqui uma nova fase, que na falta de um nome melhor, chamou de hermenutica agpica, para distingui-la da anterior. Na verdade, segundo Hammes, apenas uma determinao da hemenutica prxica e aparece claramente formulada a partir de 1998. No comentrio de Hammes, efetivamente o amor, a misericdia e a justia termos colocado em paralelo por Sobrino so atitudes que qualificam a prxis. Nesse sentido, poderia falar-se, segundo Hammes, em hermenutica prxica misericordiosa, agpica ou caridosa e justa (HAMMES, 1995, p. 30).

  • ~ 104 ~ AGUIAR, Jorge Roberto. A. O servo sofredor: a nova imagem do pobre...

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    No comentrio de Vera Bombonatto, Jon Sobrino, homem marcado pelo

    sofrimento e pela morte na luta em favor da vida, pode ser chamado de mrtir

    sobrevivente. Foi testemunha da cruel pobreza e da injustia como tambm da

    luminosidade, esperanas sem conta das vtimas de El Salvador. Ela no deixa de

    evidenciar que o grande mrito de Jon Sobrino est no fato de ter contribudo,

    eficazmente, para a elaborao de uma cristologia da libertao, com novos marcos

    interpretativos que articulam teoria e prxis, histria e transcendncia

    (BOMBONATTO, 2007). Nesse sentido, tornou-se evidente, na leitura de O princpio

    misericrdia, que o uso do seu marco interpretativo no serve aos sistemas de

    representaes e prticas que buscam eficcia mistificadora. Jon Sobrino no

    suaviza as tenses e conflitos econmicos e culturais.

    Jos Comblin, referindo-se Notificao enviada a Jon Sobrino, faz a

    seguinte reflexo. A notificao faz restries expresso Igreja dos pobres.

    No entanto hoje em dia a Cristandade est em um dilema: ou renova a aliana entre o clero e as novas foras polticas e econmicas dominantes e se aparta dos pobres, ou entra no mundo dos pobres e os faz o corpo da Igreja. Esse dilema o desafio da Amrica Latina. Desde Medellin, h uma tradio de opo pelos pobres. H outros elementos que buscam a aliana com as novas foras polticas, que so os sucessores dos antigos Imperadores e reis. No impossvel e h muitos elementos das classes dominantes que o desejam. O que se espera da Santa S que deixe plena liberdade do Episcopado latino-americano para fazer sua opo (COMBLIN, 2007, p. 88).

    A opo pelos pobres em nome do Evangelho e da Igreja dos primeiros

    tempos se tornou uma tradio aqui na Amrica Latina, h quarenta anos. Jon

    Sobrino faz parte dessa tradio e um dos seus mais notrios membros. Insiste no

    fato de que o povo crucificado traz a salvao. Mais ainda, que o escolhido por Deus

    para trazer a salvao o servo. E deixa claro que:

    [...] a teologia no sabe o que fazer com esta afirmao central, a no ser buscar a expiao vicria do servo como um modelo terico

    de compreenso da redeno Cristo na cruz, sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvao a cruz traz e, muito menos, que salvao histrica a cruz traz hoje (SOBRINO, 1994, p. 90).

    Sendo assim, no aceitar a salvao que o servo traz seria eliminar algo

    muito importante da f. Portanto, para o nosso autor, ver a salvao que o servo traz

    o que a teologia da libertao tentou fazer at agora. preciso ressaltar que, em

  • AGUIAR, Jorge Roberto. A. O servo sofredor: a nova imagem do pobre... ~ 105 ~

    PARALELLUS, Recife, Ano 3, n. 5, jan./jun. 2012, p. 93-108. ISSN: 2178-8162

    se tratando do sofrimento do povo crucificado, capta-se a salvao no como coisa

    de especulao ou interpretao de texto, mas de captar a realidade.

    importante destacar, tambm, que, em O Princpio Misericrdia, nosso

    autor chama a ateno para os elementos que proveram essa alterao, pois traz

    em evidncia o servo como luz, smbolo de Deus. Para Jon Sobrino, essa luz tem a

    fora de desmascarar a mentira, e essa mesma luz que o povo crucificado oferece.

    Se, diante dele, o primeiro mundo no consegue ver a verdade, no sabemos o que

    poder conseguir com que veja, (SOBRINO, 1994). Referindo-se a esta questo da

    luz que os povos crucificados trazem, Jon sobrino faz aluso a Ellacura, quando,

    referindo-se ao Terceiro Mundo, dizia:

    No meu ponto de vista e isto pode ser algo proftico e paradoxal ao mesmo tempo , os Estados Unidos esto muito pior do que a Amrica Latina. Porque os Estados Unidos tm uma soluo, mas, na minha opinio, uma soluo ruim, tanto para eles como para o mundo em geral. Na Amrica Latina, porm, no h solues, s h problemas; mas por mais doloroso que seja, melhor ter problemas do que ter uma m soluo para o futuro da histria (SOBRINO, 1994, p. 91).

    Torna-se evidente que a soluo que os pases ricos oferecem irreal,

    porque no atinge a todos, e eticamente desumanizante no s para o terceiro

    mundo como tambm para o primeiro. Dizia Ellacuria, no comentrio de Jon Sobrino,

    que o Terceiro Mundo oferece o que hoje se entende por utopia. A utopia do mundo

    de hoje no pode ser outra que a civilizao da pobreza, onde h espaos para

    todos partilharem os recursos da terra austeramente. E neste compartilhar se

    consegue o que o Primeiro Mundo no oferece: fraternidade e sentido de vida. E

    como caminho para se chegar a esse sentido Ellacuri prope a civilizao do

    trabalho em contraposio civilizao do capital (SOBRINO, 1994), essa a

    contraproposta que os povos crucificados oferecem.

    5 CONCLUSO: AMRICA LATINA LUGAR DE PERDO

    Para Jon Sobrino (1994), a Amrica Latina , antes de mais nada, o lugar de

    um grande pecado. O grande pecado do continente configura toda realidade social e

    histrica, crucifica e mata povos inteiros. Nesse contexto, pergunta Jon Sobrino em

    O Princpio Misericrdia: o que significa perdoar o pecado e perdoar ao pecador?

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    Segundo ele, a pobreza injustamente infligida produz morte lenta e violenta e os

    dolos que produzem exigem vtimas para subsistir.

    O pecado objetivo da Amrica Latina a misria que marginaliza. a

    situao de pobreza em que vivem milhes de latino-americanos. Teologicamente,

    mostram a presena ou ausncia de Deus.

    No meio de uma realidade pecaminosa, existem pecadores, que so os dolos

    que matam; perdoar-lhes significa, para Jon Sobrino, erradic-los. Esses dolos tm

    agentes concretos que causam ofensas concretas.

    A primeira coisa a ser afirmada na Amrica Latina, segundo Jon Sobrino, a

    existncia do perdo desse tipo de ofensas como resposta crist ao pecador. Por

    ser perdo de ofensas to graves, a realidade desse perdo ilumina sua essncia

    muito melhor do que qualquer anlise conceitual (SOBRINO, 1994).

    A Amrica Latina, portanto, o lugar do pecado, mas tambm lugar de

    perdo. O pecado e o perdo na Amrica Latina no podem ser coisa s de e para

    latino-americanos, mas de todos e para todos.

    Conclui Jon Sobrino dizendo: se os povos crucificados fazem descobrir o

    pecado do mundo, se esses povos esto dispostos a oferecer o perdo e acolher o

    mundo pecador para humaniz-lo em sua conscincia desgarrada, se esse convite

    for aceito, ento sero possveis de reconciliao, a solidariedade e o futuro do reino

    de Deus na histria (SOBRINO, 1994).

    Jon Sobrino deixa mais claro ainda a necessidade de uma mudana de

    lgica. Referindo-se Europa, ele diz: esta Europa que Kant fez despertar do sono

    dogmtico ainda no despertou do sono de inumanidade em que est mergulhada.

    Esta Europa ainda no se responsabiliza pela negao do mnimo de vida justa e

    digna no Terceiro mundo. No entanto, ali encontrar, na viso de Jon Sobrino, a

    reserva de luz e de esperana. Nesse sentido, no uma verdade da razo a que

    se refere Jon Sobrino, mas essencial f crist afirmar que, no servo sofredor, h

    luz e salvao (SOBRINO, 1994).

    Abre-se, aqui, um campo de anlise dos conflitos e da violncia simblica5. A

    luta simblica de que Jon Sobrino participa tenta mudar as categorias de percepo

    5 Torna-se necessrio deixar claro o que vem a ser dominao simblica em Bourdieu: no comentrio de Burawoy, a eficcia da dominao simblica em Bourdieu, localiza-se no na apresentao dos interesses da classe dominante como interesses universais, mas sim no ofuscamento e no encobrimento da prpria categoria sociolgica da classe social. As categorias de

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    PARALELLUS, Recife, Ano 3, n. 5, jan./jun. 2012, p. 93-108. ISSN: 2178-8162

    e de apreciao do mundo, as categorias de percepo, isto , no essencial, as

    palavras, os nomes que constroem a realidade social tanto quanto a expressam so

    o mvel por excelncia da luta poltica. No entanto, no cabe aqui esta anlise, fica

    para outro momento.

    THE SUFFERING SERF: THE NEW IMAGE OF THE POOR PEOPLE IN JON SOBRINO

    Abstract

    We want to analyse with this paper the meaning of the word "poor" in the book The Principle of Mercy by Jon Sobrino. The idea of the poor as a sacrament of God has been transmitted in a long tradition. This tradition appears in prophetic Christianity of liberation theology, especially Jon Sobrino. We tried to get subsidies for a new hermeneutic of the poor not as a sociological category but as a sacrament. The symbolic reason for Jon Sobrino is characterized by generosity, their symbolic struggle trying to change the categories of perception and appreciation of the world's social, cognitive structures and evaluation. The text have four parts: the first one makes it clear and show our objectives. The second checks the new theological perspectives between the years 1960 and 1980. In the third phase we analyze the representations of poverty in The Principle Mercy down from the cross the crucified peoples. And finally, by way of conclusion, approaches to Latin America through Jon Sobrino's eyes as a place of forgiveness

    Keywords: Liberation Theology. Poverty. Latin America. Mercy.

    REFERNCIAS

    BOFF, Clodovis. Teologia da libertao e volta ao fundamento. REB Revista Eclesistica Brasileira, Petrpolis, v. 67, n. 268, p. 1001-1022, out. 2007.

    BOFF, Leonardo; BOFF, Clodovis. Como fazer teologia da libertao. Petrpolis: Vozes,

    1985. BOMBONATTO, Vera Ivanise. Seguimento de Jesus: uma abordagem segundo a

    cristologia de Jon Sobrino. So Paulo: Paulinas, 2002.

    distino que oferecem os padres e modelos para nossas vidas so tomadas como algo dado; por isso, a prpria dominao torna-se imperceptvel ou irreconhecvel como tal. Assim antes mesmo de haver lutas de classe pela conquista da hegemonia, dever haver lutas pela afirmao da existncia e do significado das classes sociais, desse modo, as lutas de classificao precedem as lutas por hegemonia (BURAWOY, 2010, p.70).

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    PARALELLUS, Recife, Ano 3, n. 5, jan./jun. 2012, p. 93-108. ISSN: 2178-8162

    BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingsticas: o que falar quer dizer. 2. ed. So

    Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2008. BURAWOY, Michael. O Marxismo encontra Bourdieu. Trad. Fernando Rogrio Jardim.

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    RIBEIRO, Cludio de Oliveira. A teologia da libertao morreu? Reino de Deus e espiritualidade hoje. So Paulo: Editora Santurio, 2010. SOBRINO, Jon. A f em Jesus Cristo: ensaio a partir das vtimas. Trad. Ephraim Ferreira

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    Fontoura. So Leopoldo: Sinodal, 2007. ______. O princpio misericrdia: descer da cruz os povos crucificados. Trad. Jaime A.

    Clesen. Petrpolis: Vozes, 1994.