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Miguel Pinheiro A NOITE MAIS LONGA A 6 de setembro de 1968, enquanto Salazar é operado de urgência depois de cair de uma cadeira, o milionário Ante‑ nor Patiño dá o «baile do século». Dividida entre o hospital e a festa, a cúpula do regime percebe que o seu poder está a acabar. Esta é a história daquelas 13 horas intermináveis.

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Miguel Pinheiro

A NOITE MAIS LONGAA 6 de setembro de 1968, enquanto Salazar é operado de urgência depois de cair de uma cadeira, o milionário Ante‑nor Patiño dá o «baile do século». Dividida entre o hospital e a festa, a cúpula do regime percebe que o seu poder está a acabar. Esta é a história daquelas 13 horas intermináveis.

ÍNDICE

introdução

Um mês de ilusões e treze horas intermináveis . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

20h00 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

21h00 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35

22h45 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103

01h30 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129

04h00 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 171

06h30 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193

epílogo

O que lhes aconteceu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205

notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219

fontes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 275

índice onomástico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 285

António de Oliveira Salazar

rodeado por algumas das

17 enfermeiras que o acompanharam

a partir de 6 de setembro de 1968.

A Censura não deixou que o

Diário Popular publicasse o

número e os nomes de todas elas.

Antenor Patiño, de smoking branco, rodeado por alguns dos seus 1700 convidados. Vieram a Lisboa atrizes de Hollywood, membros de famílias reais e empresários milionários. A Censura não permitiu que os jornais divulgassem os nomes dos membros do governo que foram à «festa do século».

20h00

O Cadillac preto, com 5,75 metros de comprimento e 2350 quilos de peso, estava parado no Forte de Santo António,

em São João do Estoril. Para o seu interior tinham acabado de entrar cinco homens que, juntos, formavam um grupo peculiar: o primeiro estava a morrer, o segundo era médico pessoal de um ditador há 23 anos, o terceiro tinha o desconcertante hábito de andar pelos corredores do hospital onde trabalhava com uma pistola no cinto, o quarto era um antigo admirador de Adolf Hitler e o quinto era um militar da Força Aérea que estava a pouco menos de quatro horas de começar a chorar em público.

Naquele dia, 6 de setembro de 1968, Salazar já tinha 79 anos e a idade fazia com que, por vezes, alguns conselheiros mais próximos o sentissem «ausente» – mas não era por causa disso que estava a morrer. Há pouco mais de um mês, caíra ao tentar sentar ‑se numa cadeira e batera com a cabeça no chão do Forte de Santo António. A fortificação era propriedade do Instituto de Odivelas, um estabelecimento de ensino para filhas de militares, e era lá que Salazar costumava passar longos períodos durante o verão.

O presidente do Conselho tentou ocultar o que tinha acon‑tecido, mas o coágulo de sangue que se formou junto do seu

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cérebro provocou uma degradação, primeiro lenta, depois ace‑lerada, do seu estado de saúde e foi preciso pedir ajuda. Agora, estava sentado no banco de trás da sua limusina oficial e tinha um médico de cada lado.

Um desses médicos chamava ‑se Eduardo Coelho. Era baixo, tinha os ombros largos e, aos 72 anos, estava bem conservado, com uma quantidade razoável de cabelos brancos eriçados a sobreviverem à calvície. Era médico assistente de Salazar desde o fim da Segunda Guerra Mundial, altura em que o ditador se sentira «fisicamente esgotado». Tinha sido a quarta pessoa a quem fora revelado o segredo da queda.

O outro médico chamava ‑se António Vasconcelos Marques. Tinha 60 anos e cabelos grisalhos, penteados para trás. Era alto e, tendo sido praticante de boxe, o seu físico intimidava. Não era só o físico: como costumava trabalhar de noite, tomava a precaução de, para sua proteção pessoal, andar armado com uma pistola, inclusivamente dentro do seu hospital. Trazia ‑a guardada num coldre preso ao cinto e uma vez, para supremo espanto do seu companheiro de refeição, chegou a colocá ‑la em cima da mesa de um restaurante. Vasconcelos Marques era da oposição ao regime e tinha visto Salazar pela primeira vez cinco horas antes. Dentro do Cadillac, os dois médicos estavam a centímetros um do outro. Até aquela noite acabar, tornar ‑se‑‑iam inimigos irreconciliáveis.

No banco da frente, ao lado do motorista, seguia Fernando Silva Pais, diretor da PIDE. Chefiava a polícia política desde abril de 1962 e dizia «seguir indefetivelmente Salazar». Mas o presidente do Conselho não era o único líder político que o tinha fascinado. No começo da Segunda Guerra Mundial, escrevera artigos que mostravam a sua admiração por Hitler. Como não podia usar esses textos ao peito, em 1943 conseguiu que um des‑pacho do governo português o autorizasse a utilizar a medalha de Cruz de Mérito da Ordem da Águia Alemã (3.ª classe), que

20h00 27

fora criada pelo líder nazi como condecoração honorífica para estrangeiros.

Aos 62 anos, Silva Pais comandava mais de mil funcionários que tinham a missão de descobrir tudo o que se passava em Portugal. Apesar disso – e apesar de ele próprio se reunir todas as semanas com Salazar – passou um mês inteiro sem perceber que havia algo de muito errado com o ditador. Só naquela tarde é que o tinham informado que o estado de Salazar era tão grave que exigia uma operação de urgência. Quando lhe contaram os detalhes, não mostrou estupefação, horror ou pânico, como outros: limitou ‑se a, tranquilamente, acender um cigarro. Nas horas seguintes, montou, de forma discreta, uma operação de segurança que transformou o Hospital da Cruz Vermelha, onde seria feita a cirurgia, numa pequena fortaleza privada.

Com as mãos a segurarem o volante cor de creme do Cadillac, e com o pé direito tamanho 41 pronto a carregar no acelerador, estava o sargento ‑ajudante da Força Aérea Joaquim de Sousa. Era um dos dois motoristas ao serviço de Salazar e tornara ‑se, de longe, o seu preferido. O presidente do Conselho gostava dele por ser mais novo e por ter «muito bom ar» – aos mais próximos, o ditador gabava a sua «perícia e elegância». Com 41 anos, tinha cabelo preto e liso, olhos castanhos escuros e um rosto oval. A Força Aérea nunca se tinha conseguido decidir sobre a sua verdadeira altura – nuns documentos aparece com 1,69 metros e noutros com 1,70 –, mas pelo menos não havia dúvida de que, sentado, media 84 centímetros. Tinha começado a trabalhar com Salazar quando, a seguir à tentativa de golpe de Botelho Moniz, em 1961, o presidente do Conselho decidira assumir também a pasta da Defesa Nacional.

Joaquim de Sousa recebeu do ditador atenções, louvores e até uma condecoração com a Medalha de Mérito Militar (4.ª classe); e devolveu ‑lhe aquilo que o próprio Salazar descreveu como sendo uma «extrema dedicação, lealdade e espírito de sacrifício».

21h00

Salazar não estava pronto para nada daquilo. Quando o moto‑rista parou o Cadillac à porta do Hospital dos Capuchos, em

Lisboa, onde iria ser feito um eletroencefalograma, o presidente do Conselho saiu pelo seu pé mas não andou muito. Tinha à espera uma cadeira de rodas. Precisou de ajuda para se sentar e disse, em voz baixa:

– É inacreditável, parece inacreditável.Ao longo do mês anterior, o ditador tinha passado por uma

acentuada deterioração física. Cometera o enorme erro de resis‑tir aos conselhos do seu médico, de tentar adiar um tratamento inevitável e de esconder a verdadeira extensão dos seus sintomas. Se naquele momento estava sentado numa cadeira de rodas era por causa de tudo o que fizera – e, tão importante quanto isso, de tudo o que não fizera – desde o início de agosto. Os aconte‑cimentos que se sucederam ao longo dessas semanas ajudam a explicar a gravidade e o dramatismo da noite de 6 de setembro de 1968.

Salazar nunca pensou que uma pequena queda acabasse assim. Na altura, tinha tudo parecido muito insignificante – até pouco depois das 9 horas da manhã, o dia 1 de agosto fora exatamente igual aos outros. Perto das 8 horas, um carro da Presidência do

A NOITE MAIS LONGA40

Conselho tinha parado na Rua do Carmo, em Lisboa, para apanhar um homem «elegante, alto e magro». Tratava ‑se de Augusto Hilário, que se tornara enfermeiro ‑calista do presidente do Conselho por herança. O pai era de Viseu e tinha estudado na mesma escola que Salazar. Quando morreu, deixou ao filho o consultório e o cliente.

O calista e o ditador costumavam ver ‑se de três em três sema‑nas. Essa periodicidade não era um capricho – era uma necessi‑dade. Quando era mais novo, Salazar partira o pé direito e nunca recuperara. Tinha os ossos encavalitados uns nos outros e apa‑re ciam ‑lhe calos que lhe provocavam dores. Aliás, por isso é que usava umas botas de pelica muito fina, característica que levaria os opositores do regime a tratá ‑lo, com desprezo, por O Botas.

Nessa quinta ‑feira, ao chegar ao Forte de Santo António, no Estoril, Augusto Hilário passou a porta de madeira e ferro. No átrio, onde existe um azulejo com excertos de Os Lusíadas em cada parede, a temperatura estava mais fresca do que lá fora. Subiu um primeiro lanço de escadas e logo depois outro. Virou à direita e atravessou o longo corredor com o teto em abóbada que divide as duas alas do forte. Era ali, na zona conhecida como «Arca de Noé», que Salazar costumava ler os jornais, almoçar e receber visitas – mas àquela hora não havia ninguém. O calista abriu a quarta porta à esquerda e entrou numa sala grande, a que chamavam «rouparia», dividida por um arco e com armá‑rios pintados de branco em todas as paredes. À direita ficava um recanto onde D. Maria costumava cozinhar para Salazar. Hilário pousou a pasta e começou a preparar os instrumentos de que ia precisar para o tratamento.

Naquele momento, Salazar estava a acabar de vestir o seu casaco de linho branco, no primeiro andar do forte. Saiu do quarto, atravessou um pequeno corredor, desceu dois lanços de escadas, atravessou a «Arca de Noé», entrou na sala onde estava o calista e cumprimentou ‑o. Depois pediu ‑lhe:

21h00 41

– Empreste ‑me os seus jornais.Hilário sabia que, sempre que ia ao forte, tinha de levar os

matutinos. Era um pedido de D. Maria, a governanta de Salazar. Por causa de um daqueles inexplicáveis atrasos de que apenas as burocracias estatais são capazes, os jornais do presidente do Conselho só costumavam chegar ao fim da manhã. Quando havia visitas, podia começar a lê ‑los mais cedo. Naquele dia, Salazar podia escolher: Hilário tinha ‑lhe trazido o Diário de Notícias e A Bola. Preferiu o DN.

Desta vez, não houve tempo para falarem sobre música, sobre teatro ou sobre os espetáculos no São Carlos, como era hábito. Hilário virou ‑se para ensaboar as mãos num lavatório encostado à parede, junto à porta, e ouviu um estrondo. Virou ‑se imedia‑tamente. Salazar, que tinha o perigoso hábito de se deixar cair quando se sentava, calculara mal a distância que o separava da cadeira de lona estilo realizador. Estava no chão e tinha batido fortemente com a cabeça. Quando se baixou para o ajudar a levantar ‑se, Hilário viu que Salazar estava «branco como a cal».

Em pânico, sentou ‑o «com cuidado» na cadeira e sugeriu que talvez fosse mais prudente pedir ajuda. Salazar disse ‑lhe que não com a cabeça. Minutos depois, o ditador decidiu que não bastava o silêncio, era preciso um segredo: exigiu que o calista prometesse que nunca contaria a ninguém o que tinha acabado de ver. Hilário aceitou, mas ainda insistiu:

– Tome ao menos um pouco de água com açúcar.Nem isso Salazar quis. Não voltou a pegar no jornal e manteve‑

‑se quieto, enquanto o calista trabalhava. Ao fim de algum tempo estava melhor, pelo menos aparentemente.

– O senhor presidente já parece outro!– E o senhor também. Olhe que ficou muito pálido…No forte, havia uma terceira pessoa assustada. D. Maria,

que estava no seu quarto, ouviu um estrondo e primeiro achou que tinha sido uma porta a bater. Quando desceu, percebeu