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1 A noite da chuva J ulho, dia 07, sábado – correspondendo ao convite dos amigos, Peixoto e Rogério, fui conhecer o local, chamado “Céu Manacá da Serra”, onde eles oferecem um trabalho xamânico, com Ayahuasca. Foram muitos convites, não sei quantos, e nunca dava certo. Aí, neste dia 07, senti que era o momento... No dia anterior eu já estivera num Trabalho em nossa casa, o Céu de Fátima, em homenagem ao Mestre Irineu, cuja passagem para o mundo espiritual é lembrada todo 06 de julho... Voltei tarde de lá, dormi pouco, mas, estava realmente decidido a ir ao trabalho xamânico no dia seguinte. Dorotéia quase foi comigo, mas, a friagem da noite inibiu, sem contar que Ayrah não estava num momento adequado para também sujeitar-se a tanto frio. Os trabalhos dessa natureza comumente ocorrem em volta da fogueira e o clima de Araçoiaba é sabidamente “diferente” requerendo que se agasalhe bem. Combinei com Rogério e ele me disse que os participantes sairiam da frente de sua casa. Segui de ônibus, pois estou um tempo sem o carro, que está na reforma, depois de uma batida que deram na traseira. Então, saindo da frente da casa de Rogério, embarcaria de carona com eles. Eram poucos os participantes. Ele, mais sua esposa, Aletéia, o Peixoto, o “Miro”, um sujeito engraçado, espirituoso, que e parceiro deles na organização das coisas, uma senhora e seu filho que iam pela primeira vez (Dona Rose e o jovem Murilo), mais uma moça e, Will, um rapaz que já conheci em outros trabalhos. Tinha também umas crianças, sendo que uma delas, Victória, filha do Peixoto, foi sentada ao meu lado. Deve ter uns dez anos. Uma loirinha que parece uma fada, muitíssimo inteligente, desinibida e dada a um falar seguro como de adulto. Para chamar a atenção dela em conversar comigo, perguntei sobre como vão seus estudos e me identifiquei como professor. Saímos em dois carros, com algum atraso, pois, obras nas ruas próximas mudaram todo o trânsito, fazendo-nos dar várias voltas, (ano eleitoral, já viu!). Logo depois, um novo atraso: um dos carros ficou sem embreagem. Era o Rogério, que voltou pra casa engrenado em primeira marcha. Apesar do transtorno o consenso geral foi de que deveríamos ficar contentes por ter ocorrido logo na saída. Poderia ter acontecido na estrada, no meio do caminho e aí, seria realmente complicado. Então, entrou um fusca na jogada, que até considerei que seria mesmo o carro ideal, pois, para chegar ao lugar saímos da Rodovia e pegamos estradas de terra com depressões e lugares merecedores de atenção. É o bairro rural chamado Cercado, em Araçoiaba... Lugar, inclusive conhecido por casos de aparições de Ovnis e aqueles mistérios que o povo do campo costuma contar. Começou a chuviscar e relampejar. Victoria disse a Miro que morre de medo de trovões e relâmpagos. Aproveitei dizer-lhe que há um modo de perder esse medo. Ela prestou atenção. Continuei dizendo que o trovão é apenas o som do relâmpago e que é um barulho gigante, mas, a gente não precisa temer. Disse que se ela pedir ao anjo da guarda, à noite, na hora de agradecer pelo dia vivido, que ajude a dissipar

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A noite da chuva

Julho, dia 07, sábado – correspondendo ao convite dos amigos, Peixoto e Rogério, fui conhecer o local, chamado “Céu Manacá da Serra”, onde eles oferecem um trabalho xamânico, com Ayahuasca. Foram muitos

convites, não sei quantos, e nunca dava certo. Aí, neste dia 07, senti que era o momento... No dia anterior eu já estivera num Trabalho em nossa casa, o Céu de Fátima, em homenagem ao Mestre Irineu, cuja passagem para o mundo espiritual é lembrada todo 06 de julho... Voltei tarde de lá, dormi pouco, mas, estava realmente decidido a ir ao trabalho xamânico no dia seguinte.

Dorotéia quase foi comigo, mas, a friagem da noite inibiu, sem contar que Ayrah não estava num momento adequado para também sujeitar-se a tanto frio. Os trabalhos dessa natureza comumente ocorrem em volta da fogueira e o clima de Araçoiaba é sabidamente “diferente” requerendo que se agasalhe bem.

Combinei com Rogério e ele me disse que os participantes sairiam da frente de sua casa. Segui de ônibus, pois estou um tempo sem o carro, que está na reforma, depois de uma batida que deram na traseira.

Então, saindo da frente da casa de Rogério, embarcaria de carona com eles.

Eram poucos os participantes. Ele, mais sua esposa, Aletéia, o Peixoto, o “Miro”, um sujeito engraçado, espirituoso, que e parceiro deles na organização das coisas, uma senhora e seu filho que iam pela primeira vez (Dona Rose e o jovem Murilo), mais uma moça e, Will, um rapaz que já conheci em outros trabalhos. Tinha também umas crianças, sendo que uma delas, Victória, filha do Peixoto, foi sentada ao meu lado. Deve ter uns dez anos. Uma loirinha que parece uma fada, muitíssimo inteligente, desinibida e dada a um falar seguro como de adulto. Para chamar a atenção dela em conversar comigo, perguntei sobre como vão seus estudos e me identifiquei como professor.

Saímos em dois carros, com algum atraso, pois, obras nas ruas próximas

mudaram todo o trânsito, fazendo-nos dar várias voltas, (ano eleitoral, já viu!). Logo depois, um novo atraso: um dos carros ficou sem embreagem. Era o Rogério, que voltou pra casa engrenado em primeira marcha.

Apesar do transtorno o consenso geral foi de que deveríamos ficar contentes por ter ocorrido logo na saída. Poderia ter acontecido na estrada, no meio do caminho e aí, seria realmente complicado.

Então, entrou um fusca na jogada, que até considerei que seria mesmo o carro ideal, pois, para chegar ao lugar saímos da Rodovia e pegamos estradas de terra com depressões e lugares merecedores de atenção. É o bairro rural chamado Cercado, em Araçoiaba... Lugar, inclusive conhecido por casos de aparições de Ovnis e aqueles mistérios que o povo do campo costuma contar.

Começou a chuviscar e relampejar. Victoria disse a Miro que morre de medo de trovões e relâmpagos. Aproveitei dizer-lhe que há um modo de perder esse medo. Ela prestou atenção. Continuei dizendo que o trovão é apenas o som do relâmpago e que é um barulho gigante, mas, a gente não precisa temer. Disse que se ela pedir ao anjo da guarda, à noite, na hora de agradecer pelo dia vivido, que ajude a dissipar

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o medo, ele vai trabalhar para isso com prazer... Que a Virgem Maria, como Mãe, ajuda... E, claro, perguntei se ela tem conversado com o anjo da guarda. Ela deu um sorriso meio amarelinho e disse: “muito pouco”.

- Pois, converse mais! – eu disse - e peça, você vai ver seu medo sumir!...

Fiquei contente pela oportunidade de dizer isso à menina. Ela levava uma caixa com bolo de aniversário no colo, pois era aniversário de sua avó Dona Elisene, mãe do Peixoto, completando naquela data 77 anos...

Logo chegamos ao lugar e, pela chuviscação, não pude sacar grande coisa das entradas e caminhos que Peixoto pegou.

A propriedade que eles compraram tem uma história interessante: foi morada de uma família budista e tem as conformações de uma igreja católica com duas torres de entrada, e as cruzes indicativas em posição superior, mas, vazadas na parede das torres. Notando bem, vi que era um sinal de “+” e não exatamente a cruz cristã, embora o “mais” seja também considerado cruz.

Nesse local, um monge trabalhava com terapias

praticando curas, porém, não sei mais detalhes da história. Quando ele morreu, a propriedade ficou abandonada, entregue ao mato, esquecimento absoluto. Tanto que uma família invadiu o local e quando Peixoto, enfim

adquiriu o espaço, (muito grande, por sinal), teve que negociar a saída desse pessoal que, inclusive, era de jovens ligados ao tráfico de drogas.

Foi uma longa negociação, mas, Peixoto acertou tudo, ele tem um bom jeito para lidar com essas coisas, tem diplomacia. É ex-policial, e há anos, proprietário de uma clínica de repouso para idosos, próxima ao centro da cidade, na Rua Goiás.

Bem, daí,quando finalmente assumiram o lugar passaram a limpar tudo e a restaurar, o que foi um trabalhão. Ainda há muito por fazer, mas, o salão já está bem adaptado para os trabalhos, é espaçoso e, guarda ainda alguns sinais nas paredes de antigos símbolos do Budismo.

Os novos símbolos decorativos são, claro, xamânicos. Há imagens de indígenas ao lado de grandes animais e uma foto do senhor Gideon, chamado “dos Lakotas”, lá da fazenda de Pariquera-Açu, um Centro ayahuasqueiro. Gideon é o guia desse tipo de trabalho e alguns textos referentes a ele pendiam de banners. Este senhor capitaneou a formação de vários núcleos de trabalho com Ayahuasca, do qual o grupo ora denominado “Céu do Manacá” é um deles.

Andando pelo lugar, Rogério me mostrou uma construção alongada no fundo, com muitos aposentos. Há também uma cozinha ao lado do pátio, com balcãozinho, como cantina de escola, e os banheiros novos que eles fizeram. Enquanto preparavam as coisas, Miro botava fogo numa bem arrumada pilha de lenhas, para ser a fogueira da noite. A chuva havia parado, mas, os relâmpagos ainda mandavam luminosas mensagens de disposição elétrica.

Numa das entradas do lugar, duas galinhas d”Angola se bicavam empoleiradas. Pela volta uns marrecos e gansos com seus andares desengonçados...

Miro destroçava algumas caixas, dessas de verduras, da feira, que são ripas fáceis de incendiar, para turbinar o fogo. Enquanto isso, nos chamaram para uma sopa deliciosa de feijão, com torradas. Nos nossos trabalhos não estamos acostumados a comer assim, logo antes da sessão, mas, ali era tudo, tudo absolutamente diferente, e foi para vivenciar essa diferença que eu ali me encontrava de coração aberto. O esforço de Miro em preparar a fogueira

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parecia a mais vã ilusão. A chuva quando reiniciou, mostrou que era pra lavar o mundo. Choveu pra valer!

Quando entrei no recinto dos trabalhos, já me chamou a atenção o altar. Enorme.

Na verdade, pega toda largura do salão. É uma construção onde dá para se colocar muitas imagens, com uma proeminência central e com um segundo piso, um palmo acima do nível do chão onde nos encontrávamos, em forma de semicírculo.

Logo no ponto central, no segundo piso, havia um mamute de gesso bem ornado, carregando um recipiente com varetas de incenso, espalhando o aroma instigador de clima sagrado.

No altar, centralizado, um quadro gigante de Jesus Cristo. Bem distribuídas, mais imagens: a Virgem Maria, Krishna, símbolos indígenas, bastões, (arte africana), cerâmica Marajoara... Aos pés da imagem de Jesus, um castiçal com três velas acesas e num plano logo abaixo via-se a garrafa de Ayahuasca...

Interessante é que a data desse trabalho em especial teve um significado de memória pessoal, pois, exatamente há cinco anos, estava eu no meio da floresta atlântica, num platô, perto de Pariquera-Açu, dançando em volta de uma fogueira, numa cerimônia ayahuasqueira (do Gideon)...

Foi uma passagem memorável e Nadier estava comigo, em 07/07/07... Data simbólica.

Foi nessa oportunidade que conheci Artur, que hoje é um grande amigo lá de Indaiatuba. Foi ele, inclusive, que na ocasião nos deu carona na volta para Sorocaba. Desde então eu não tinha mais tomado contato com a Ayahuasca propriamente dita. Foi muito forte para mim aquele dia, pois, sinto que a Hoasca, (também assim chamada), embora seja a mesma coisa, é diferente do Santo Daime no tipo de trabalho interno que produz, e, embora assim pareça, ainda assim, insisto: nada se pode afirmar com certeza, pois é um mistério... Eu comprovaria isso nesta noite...

Emblemático também o fato de que Dona Elisene estava a fazer 77 anos em

07/07... Comentei isso com ela, que gostou de saber que este é um número diretamente relacionado com a Divindade.

Aliás, uma pesquisa sobre os mistérios que envolvem esse número rende muito! O grande Pitágoras dizia que o sete é poderoso, sagrado e perfeito. Ele é uma combinação do três com o quatro. O três, simbolizado pelo triângulo é o espírito e o quatro representado pelo quadrado é a matéria. O sete é, assim, a força do espírito atuando na matéria, ancorado, portanto, nos quatro elementos que a regem.

Bem, nos encontrávamos já sentados e senti necessidade de falar algo à senhora Rose, que estava próxima e que era iniciante. Perguntei:

- A senhora já praticou meditação?

Não - disse ela.

Eu continuei: - é como uma meditação. Tem que ficar tranquila e fechar os olhos...

- E pensar em quê? – questionou.

- Em Deus - respondi.

E completei:

- E não se preocupar com seu filho nem ele se preocupar com a senhora, cada um deve somente confiar em que está tudo bem e garantido no trabalho...

- Por favor, diga isso a

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ele também – ela pediu.

Eu o fiz, mas, o rapaz parecia pouco afeito a ouvir, acho que estava tenso; o que é natural.

Peixoto, então, logo veio nos falar. Explicou o que era o líquido sagrado e quais os objetivos do trabalho. Como havia pessoas novatas naquela noite, ele foi didático. Disse inclusive o seguinte:

- O objetivo é expandir a consciência e não perder-se nos próprios pensamentos, principalmente no questionamento do que é diferente. Muitas vezes somos tentados a julgar, é automático e o julgamento nos faz sofrer, traz dilemas pra mente. Então, esvazie-se, não pense nada, e deixe a Ayahuasca lhe mostrar as coisas... Quanto ao que vemos nesse altar, é tudo imagem apenas, decoração, não é algo que nos sirva pra nenhum tipo de adoração, nada disso. Vejam esse quadro grande de Jesus Cristo. Não é a imagem que tem sentido, Jesus é que faz sentido... Enfim, é por aí...

Assim, dadas as instruções básicas ele pediu que humildemente nos ajoelhássemos para rogar ao Cristo um bom trabalho. Aletéia serviu às mulheres e Rogério serviu aos homens. São dois copinhos, daqueles de café, (50 ml) de entrada e pela segunda parte do trabalho, mais um... Recomendaram que na segunda parte não nos furtássemos de tomar, pois seria importante para o aprofundamento... Deram-nos saquinhos plásticos para eventuais momentos de “limpeza”.

Apagaram-se as luzes. Ficou somente uma lâmpada central, bem no topo do salão, do tipo “luz negra” e as velas no altar: o castiçal e uma vela em cada lateral. O altar, iluminado somente pelas velas, ficou com aspecto ainda mais imponente.

Duas muretas em forma de escada formavam os limites laterais do altar. Cada mureta com sete “degraus”...

Depois que o trabalho inicia tudo é à base da luz de velas, até nos banheiros.

Dali em diante, foi só música, como uma cascata. Ecletismo absoluto: canções xamânicas, som instrumental, Sérgio Chapelein com mensagens cristãs, canto

indígena, canto Indiano, mais canto indígena com tambores, som Gospel, piano, enfim, um pouco de tudo...

Uma música era tão longa e não acabava nunca e, pior: percebi que não estava gostando nem um pouco dela em especial, um som estranho, mas, se repetiu tanto e tanto, que chegou um momento eu não sabia mais se não gostava dela... Tentei discernir se a primeira impressão preponderava e tudo agora era mais que relativo... Larguei mão, relaxei, e ela durou um tempão, mas, não incomodou mais...

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Fiz minhas orações, pedindo por todos nós e por quem não estava ali. Em diversos momentos, recordações de pessoas volveram à minha memória, encarnados e desencarnados e fiz meu trabalho em relação a essas memórias,

segundo as particularidades de cada caso.

Bem, o tempo passou. Foi um trabalho muitíssimo rico em instrução. Sem imagens, sem miração. Tudo o que eu pensava se convertia em lição, em

percepções que no dia a dia a gente pouco alcança. Tudo fluía serenamente de forma clarificada, objetiva e enquanto isso a chuva era torrencial, o som no telhado traduzia-se em intensidade e força. Quando entrou uma nova música que coincidentemente tinha som de chuva e trovões também, imagine-se como ficou!

No transcurso do tempo, várias coisas que andam precisando de um “fecho” em meu pensamento, coisas do dia a dia, surgiram e, sobre algumas, aproveitei formular uns questionamentos... Foi sintomático e perfeito, como as explicações surgiam, até, causando surpresa, por sua natureza.

Bem quando senti necessidade de ir ao banheiro, “enrolei” o máximo que pude, pois não tinham guarda-chuva lá e era necessário atravessar o pátio sob a chuvarada... Simplesmente não dava a mínima vontade de deixar o conforto da cadeira e se aventurar lá fora, claro... Quando me levantei, logo um fiscal veio ao meu encontro. Era o Rogério, que me arrumou uma capa de chuva. Quando corri lá fora, a surpresa: debaixo daquela chuva toda a fogueira seguia acesa e bem acesa! A cena não parecia verdade...

Como se explica uma coisa dessas? Foram mais de quatro horas de chuva pesada e o fogo permaneceu alto... Seja qual for a explicação que se queira dar, a verdade é que, para um trabalho xamânico, com a ancestral Ayahuasca, saída da morada dos tempos, nada mais simbólico do que a presença imponente do Fogo subindo da terra, num encontro romântico com precipitantes águas em pleno ar... Quatro elementos em apoteótico concerto e harmonia divinal.

Passei correndo ao lado dessa dança universal, voltando ao meu lugar. Rogério me esperava à porta.

Lá dentro, todos estavam muito bem concentrados, a luz fraca das tremeluzia no ambiente e as músicas seguiam incessantes, como a chuva que não parava...

Prossegui meu trabalho. A inspiração me pegava soando palavras bem combinadas, que vinham em ondas e que depois eu teria que lembrar para transformar em escritos. Um dos textos que formatei ali tem o título de “O Adepto”, cujo título e início se formaram, em verdade, no trabalho do dia anterior, no Céu de Fátima.

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Entrei numa fase mais profunda, parecendo que um período de silêncio interior se processou sem que me restasse memória de nada... Não sei dizer quanto tempo passou. Quando abri os olhos e mirei aquele grande altar decorado com tanta arte, um sorriso brotou-me sem que eu me apercebesse. Este natural sinal físico era a comprovação inequívoca de uma só coisa: estava me sentindo muitíssimo satisfeito e gratificado por estar ali...

Tudo podia ser diferente do que estou acostumado, na forma ritualista do Santo Daime, mas, a essência, que é o bem estar e o concurso da luz nos pensamentos, era a mesma... E é isso o que se espera atingir com o mágico vegetal.

Logo se acenderam as luzes. Aletéia foi ao altar e retirou reverencialmente a garrafa, trazendo-nos mais um pouco do precioso líquido. Era a segunda parte do trabalho, que ocorria depois de mais ou menos três horas do seu início.

A música parou por um tempo só restando o som das águas, escorrendo pelas canaletas, cantando nos beirais, ritmando pingadas fortes em largas poças.

As galinhas fizeram um alarido em certo momento. Cheirou pena queimada. Pensei que alguma tivesse voado para a fogueira num ato suicida e essa idéia,

de tão improvável, me divertiu por alguns segundos... Sorri para mim mesmo, achando graça do pensamento. Enquanto isso, a música reiniciou com o admirável conjunto musical Sacra Anima...

Peixoto falou em tom baixo que aquela segunda parte da sessão podia ser feita deitado. Já havia colchões dispostos. As pessoas foram se acomodando.

Dona Elisene, a aniversariante, cobriu-se bem de cobertas, sentada numa cadeira de balanço. Peixoto e os demais ao fundo do salão, também se cobriram, em cadeiras reclináveis.

Quando ele me convidou ao relaxamento, pedi mais um tempo, disse que iria depois, estava achando muito bom ficar diante daquele altar de ecletismos, apesar do frio que começava a pegar.

Em dado momento, senti uma sensibilização na orelha direita, como fosse uma picada de abelha e ao primeiro sinal de reação instintiva, contive-me. Esperei um pouco, não sabia o que poderia ser. Se havia um inseto... Porém, conhecedor das passagens misteriosas que compõem um trabalho, fiquei imóvel esperando mais um pouco... Diminuiu um pouco a intensidade, mas, continuou. Então, passei a mão para constatar e realmente não era nada físico.

Depois me deitei um pouco, mas, não tinha sono. A pessoa mais próxima

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roncava e enviei uma ordem mental para que mudasse de posição. Logo mudou. Depois de um tempo, a ordem mental acho que “perdeu validade” e ele voltou a roncar...

Fiquei um pouco de tempo, depois fui lá fora novamente, ao banheiro. A fogueira seguia magnífica... Quando voltei deitar, de olhos fechados pus-me a perceber uma claridade acima de mim. Mas, não havia luz ali naquele ponto do recinto, a única lâmpada acesa era fraca, roxa, localizada bem no meio do salão. A sensação era muito interessante, porque podia ser bem medida, ou seja, com toda calma era possível observar que havia mesmo uma claridade ali, uma improvável claridade, pois saída de onde? De qualquer modo, aquilo gerava um sentimento bom e não fiquei a questionar mais do que isso, sabedor que todo trabalho tem os seus momentos de puro mistério...

Como a chuva não cessasse e, lembrando dos chãos de terra revolvida por onde passamos para chegar àquele local, pus-me a pensar que talvez não conseguíssemos sair dali naquela madrugada... Por certo os carros iriam encalhar... “Acho que vamos amanhecer aqui e por essa eu não esperava” – pensei. Mas, logo deixei de pensar, não estava ali para preocupações e sim para me interiorizar. Relaxei...

Depois resolvi me levantar, voltei à cadeira e fiquei lá envolvido por uma sensação tão boa que buscar palavras para defini-la será vão esforço. Há coisas, realmente, que não conseguimos representar em definições...

Não sei se foi lá pelas três da manhã ou quatro horas, comecei a sentir uma movimentação e então acenderam as luzes... Uma mesa redonda foi trazida diante do altar.

Convidaram-nos ao término. Novamente ajoelhados, agradecemos por tudo... O bolo de aniversário foi para a mesa, ao lado de duas panelas com sopa, torradas, bolacha, refrigerantes...

Todos estavam bem, tranquilos, ninguém fez “limpeza”. Claro, os iniciantes ainda estavam tentando encontrar as palavras para definir o que sentiram, mas, eles mesmos a si diziam: “Acho que vou precisar de uns dias para tentar falar...”. É assim mesmo.

Hora dos parabéns pelos 77 anos de Dona Elisene, alegria e palmas na madrugada.

A chuva cessou exatamente ao final do trabalho (ou o trabalho encerrou ao cessar da chuva? - que sincronia!...). O irmão fogo, agora mais baixo por ter consumido as toras, reluzia refletido nas poças, numa espécie de epopéia vencida.

Revi as crianças que estavam deitadas num quartinho assistindo desenho animado. Perguntei à Victória se iria se lembrar de minha “receita” quanto ao som dos trovões. Ela foi rápida e firme na resposta positiva.

Terminada a festa, feitos os comentários todos, era hora de voltar. Subimos a pé um pedaço do caminho, para que os carros seguissem mais leves. Peixoto derrapou, mas se divertiu. Deixamos para trás o “Céu de Manacá”, depois dessas memórias indeléveis.

Como estava quase amanhecendo, peguei um dos primeiros ônibus do dia, saindo do terminal Santo Antônio tendo como passageiros somente eu e mais uma mulher. Ela desceu no meio do caminho e não subiu mais ninguém, de forma que cheguei ao meu bairro como único passageiro e, numa sensação muito boa de meninice estava achando isso bem divertido, ver aquele “busão” conduzindo só a mim...

Antes de descer, saudei o motorista desejando um bom dia de serviço, ao que ele agradeceu contente.

Fui pra casa descansar, com todas essas memórias e as que eu não consegui reproduzir aqui... Não deixando de notar que, por uma coincidência, ou não, esse relato se finaliza com sete páginas...