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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Instituto de Psicologia A NOÇÃO DO EU DE CRIANÇAS EM SITUAÇÃO DE PRÓTESE OCULAR: estudo de depoimentos. Marília Souza da Silveira Belo Horizonte 2009 Marilia Souza da Silveira

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Instituto de Psicologia

A NOÇÃO DO EU DE CRIANÇAS EM SITUAÇÃO DE PRÓTESE OCULAR: estudo de depoimentos.

Marília Souza da Silveira

Belo Horizonte 2009

Marilia Souza da Silveira

A NOÇÃO DO EU DE CRIANÇAS EM SITUAÇÃO DE PRÓTESE OCULAR: estudo de depoimentos.

Monografia apresentada ao

Instituto de Psicologia da

Pontifícia Universidade Católica

de Minas Gerais como pré-

requisito de aprovação na

disciplina Orientação de

Monografia II.

Orientador: Antonio A. F. Coppe

Belo Horizonte 2009

Marília Souza da Silveira

A Noção do Eu de crianças em situação de prótese ocular:

estudo de depoimentos.

Monografia apresentada ao

Instituto de Psicologia da

Pontifícia Universidade Católica

de Minas Gerais como pré-

requisito de aprovação na

disciplina Orientação de

Monografia II.

Antonio Angelo Favaro Coppe – Puc Minas

Ana Maria Sarmento – Puc Minas

Belo Horizonte, XX de junho de 2009.

À minha mãe,

por me inserir no universo da prótese ocular

e confiar a mim o dom de curar a “janela da alma”.

AGRADECIMENTOS

As pessoas significativas em minha vida;

Coppe, obrigada por me ensinar que a ACP pode sim ser um estilo de vida. Obrigada

por me permitir ser eu mesma e pela amizade construída nesta etapa de orientação.

Ana Maria Sarmento, obrigada por me ensinar com gentileza as idéias de Rogers.

Obrigada pelo carinho e pela disponibilidade.

Elizabeth Silveira – mãe - obrigada por depositar em mim a confiança para ensinar o

que você levou uma vida para aprender. Com convicção farei o meu melhor.

Enaldo Souza - pai - obrigada por favorecer a conclusão deste percurso, além de me

preparar para a vida na razão e na emoção.

Letícia Silveira, obrigada pela amizade e companheirismo fraternos.

Jerbens Junior, obrigada por me motivar sempre e desejar o meu sucesso.

Gabrielle Silveira, obrigada por falar com o coração. Nosso caminho ainda é longo,

mas divertido quando se tem alguém como você por perto.

Fernanda e Glauce – equipe Oculart – obrigada pelas palavras de carinho e pelas

ajudas cotidianas.

Agradeço, em especial, as crianças que se dispuseram a falar de si, tornando este

trabalho mais rico, colorido e divertido.

“Parece haver uma força poderosa dentro de cada indivíduo que luta

continuamente para uma completa auto-realização. Essa força pode ser

caracterizada como uma corrida para a maturidade, independência e

auto-direção. Tal corrida vai inexoravelmente alcançar a consumação,

mas necessita de um bom “terreno” para que se desenvolva uma estrutura

bem equilibrada. Como uma planta precisa de sol, chuva e terreno rico e

bom para atingir seu crescimento máximo, assim também o indivíduo,

para atingir a satisfação direta desse impulso de crescimento, necessita

de permissividade para ele ser ele mesmo; da completa aceitação de si –

tanto por ele mesmo quanto pelos outros – e atingir a dignidade, direito

nato de todo ser humano”.

Virginia Axline

RESUMO

Este trabalho buscou promover uma parceria entre a psicologia humanista e o

campo da prótese ocular para trabalhar em prol dos pacientes mutilados.

Apresentou como objetivo principal verificar a maneira como a criança

simboliza em sua noção do eu a experiência de ausência do globo ocular, a

partir de seus depoimentos. Realizou-se, assim, uma pesquisa com quatro

crianças, utilizando a entrevista gravada, a partir de uma pergunta disparadora,

como instrumento de coleta de dados. Constatou-se, como resultado da

pesquisa, que a ausência do globo ocular proporcionou uma desorganização

da noção do eu dessas crianças, uma vez que foram incluídos aspectos

negativos na noção do eu quando elas se encontravam em situação de

ausência ocular. Constatou-se, também, que a prótese ocular em si funciona,

muitas vezes, como um aliado no processo de reorganização da noção do eu

dessas crianças. Como objetivo específico, discutiu-se a atuação do psicólogo

centrado na pessoa na reorganização da noção do eu desses pacientes.

Concluiu-se, então, que a atuação do psicólogo se faz pertinente no decorrer

do processo de colocação da prótese ocular, propiciando à criança um espaço

terapêutico para que ela possa expressar suas angústias, dificuldades, medos,

ou qualquer outro sentimento que ela esteja vivenciando naquele momento e,

assim, oferecer condições favoráveis para que a criança possa simbolizar

corretamente a experiência de mutilação facial.

Palavras-chave: Prótese ocular. Noção do eu. Criança anoftálmica.

Abordagem centrada na pessoa. Simbolização. Tendência Atualizante.

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO

............................................................................................................... 01

2. CAPÍTULO I – PRÓTESE OCULAR .......................................................................... 03

2.1. Definição, história e objetivos ..................................................................................... 03

2.2. A criança mutilada .......................................................................................................06

2.3. Aspectos psicológicos de pacientes em situação de prótese ocular .......................... 08

3. CAPÍTULO II – PSICOLOGIA HUMANISTA............................................................10

3.1. Abordagem Centrada na Pessoa (ACP) .................................................................... 10

3.1.1. Alguns conceitos da ACP .......................................................................................... 11

3.2. Atuação do psicólogo na reorganização da noção do eu ........................................ 13

3.3. A psicoterapia infantil ................................................................................................. 15

4. CAPÍTULO III – ASPECTOS REFERENTES À NOÇÃO DO EU DE PACIENTES EM SITUAÇÃO DE PRÓTESE OCULAR.......................................................................18

4.1. Metodologia ...................................................................................................................18

4.2. Participantes ................................................................................................................. 19

4.3. Instrumentos ................................................................................................................ 19

4.4. Procedimentos............................................................................................................... 20

4.5. Identificação da noção do eu em depoimentos de crianças em situação de prótese ocular ................................................................................................................................... 20

4.5.1 Ana – 6

anos................................................................................................................. 20

4.5.2 Cristina – 7 anos

......................................................................................................... 22

4.5.3 Bruno – 9 anos

............................................................................................................ 23

4.5.4 Daniele – 9 anos

.......................................................................................................... 25

4.6. Síntese geral ................................................................................................................. 26 5. CONCLUSÃO ................................................................................................................. 28 6. REFERÊNCIA................................................................................................................. 30

7. ANEXOS .......................................................................................................................... 32

7.1. Entrevista Ana ............................................................................................................. 32

7.2. Entrevista Cristina ....................................................................................................... 34

7.3. Entrevista Bruno........................................................................................................... 35

7.5. Entrevista Daniele ........................................................................................................37

1 - INTRODUÇÃO

Durante a experiência de acolhimento psicológico de crianças

anoftálmicas tornou-se possível observar os efeitos negativos decorrentes da

perda do globo ocular nestes pacientes, assim como, as dificuldades

apresentadas por eles no manejo do processo de reabilitação facial. Ao se

tratar de crianças mutiladas, o medo de vivenciar o sofrimento se faz presente

logo no primeiro contato com a prótese, visto que o processo antecedente à

colocação da prótese ocular propicia uma fragilidade no paciente que procura

não apenas sua reabilitação estética, mas também aceitação, compreensão e

afeto por parte do profissional que o atende.

Os efeitos negativos decorrentes da perda de um órgão podem afetar a

noção do eu de um indivíduo. Quando ocorrida em partes da face, a perda

acarreta alterações estéticas e funcionais, o que pode desencadear na pessoa

repercussões psicológicas em diversos graus. Por meio da face somos

capazes de nos comunicar não apenas pela via da linguagem, mas também

através do olhar, estabelecendo laços relacionais intensos. Desta forma, a

probabilidade do indivíduo aumentar significativamente as atitudes negativas

em relação ao seu eu, frente ao impacto da mutilação, é ainda maior. A partir

das observações aqui relatadas formula-se o objetivo geral deste trabalho que

consiste em verificar, por meio de depoimentos de crianças anoftálmicas, a

maneira como elas simbolizam em sua noção do eu a experiência de ausência

do globo ocular.

Nota-se que algumas pessoas, após a colocação da prótese ocular, são

capazes de se reabilitarem socialmente, voltando a viver exatamente como

antes do evento alterador. Estas pessoas possuem uma tendência atualizante,

apresentando facilidade em exercer essa capacidade por não precisar distorcer

ou negar a experiência vivida. Porém, outros pacientes, mesmo após a

reabilitação estética, não conseguem reabilitar-se socialmente sem a ajuda de

um psicólogo, já que a simbolização da experiência de perda não foi realizada

corretamente, mas sim de maneira destorcida por ameaçar a noção do eu

destas pessoas. Discute-se, então, como objetivo específico deste trabalho, a

atuação do Psicólogo Centrado na Pessoa na reorganização da noção do eu

destes pacientes.

No primeiro capítulo desta monografia apresenta-se a história, definição

e objetivo da prótese ocular para melhor situar a criança mutilada e seus

aspectos psicológicos. No segundo capítulo faz-se uma rápida releitura da

história da Abordagem Centrada na Pessoa e seus principais fundamentos,

para discutir a atuação do psicólogo centrado na pessoa na reorganização de

sua noção do eu. Estuda-se, também, a psicoterapia infantil, denominada nesta

abordagem como ludoterapia centrada na criança. Enfim, no terceiro capítulo

apresenta-se uma pesquisa de campo que visa a relacionar a criança em

situação de prótese ocular com a Abordagem Centrada na Pessoa.

Este trabalho marca, assim, o início de uma pesquisa ampla e de uma

nova rede em que a psicologia se faz presente na tentativa de promover o seu

desenvolvimento e, também, oferecer as condições favoráveis para que

pessoas em situação de prótese ocular possam se beneficiar dos princípios da

Psicologia Humanista.

2 - PRÓTESE OCULAR

2.1 – Definição, história e objetivo:

Prótese, segundo Graziani (1982), é a reposição artificial de uma parte

perdida do organismo. Ao se tratar de reconstituição facial, esta passa a ser

chamada de prótese bucomaxilo-facial, resumindo-se a prótese ocular quando

há a “complementação do processo de restauração da cavidade anoftálmica,

reintegrando o paciente à sociedade não somente no ponto de vista médico-

cirúrgico como também do ponto de vista psicológico”. (SOARES, 1997, p.

364).

A idéia de prótese ocular, ou olho artificial, nasceu segundo Coulomb

citado por Rezende (1997), paralelamente ao desenvolvimento das artes

plásticas, quando a importância da reprodução dos detalhes nas obras de artes

tornou-se significativa. Antes, nas pinturas rupestres, primeiras manifestações

artísticas do homem, a região ocular não era reproduzida em seus desenhos,

passando a ser observada em algumas pinturas e estátuas já numa fase de

maiores detalhes técnicos artísticos, retornando há 2500 anos a.C. “A história

relata que os antigos egípcios, com a preocupação de embelezar suas

estátuas, confeccionavam olhos artificiais com ouro e pedras preciosas, o que

certamente inspirou sua manifestação no vivo”. ( FONSECA, 1987, p. 19).

Em seres humanos, a desconfiguração ocular era inicialmente

camuflada com tapa-olho de seda ou metal, tendo na superfície a pintura das

pálpebras e olho para efeito estético, o que posteriormente se desenvolveu

para a prótese intracavitária confeccionada em cerâmica e vidro por Ambroise

Paré (1510 – 1590) considerado, segundo Fonseca (1987), o pai da prótese

ocular.

A industrialização desse recurso técnico teve início em Veneza,

evoluindo-se na Alemanha, em 1835, com a colaboração de Ludwing Muller

Uri, assoprador de vidro que, inicialmente, fabricava olhos para bonecas,

desenvolvendo sua técnica na produção de olhos de vidro para seres

humanos. Nestas condições, o mercado de prótese ocular alemão tornou-se

líder na fabricação e exportação do produto, porém, devido à fragilidade do

material e a necessidade de manter um grande estoque variando a coloração

da íris e tamanho da prótese, os países importadores iniciaram suas buscas no

aprimoramento da matéria-prima da prótese ocular a fim de se tornarem

independentes quanto a sua manufatura. “Outro fator que estimulava a auto-

suficiência dizia respeito a um possível barateamento do produto, com o

objetivo de beneficiar as camadas sociais menos favorecidas”. (FONSECA,

1987, p. 25).

Vários materiais foram utilizados na tentativa de aprimorar a prótese

ocular, dentre eles, o alumínio, marfim, chifre e celulóide, devido suas levezas

e fácil manipulação, porém a técnica de confecção da prótese ocular não era

compartilhada por seus autores, o que ocorreu apenas com a Segunda Guerra

Mundial, frente a uma incontrolável epidemia de traumatismos oculares

provocando grande demanda de prótese ocular e, também, pela

“impossibilidade de a América receber olhos artificiais da Alemanha. Assim, o

Exército americano reuniu Niiranen, Erpf, Dietz e Wirtz para resolverem o

problema. Estes publicaram, a seguir, trabalhos sobre técnicas de confecção

de olhos artificiais individuais em acrílico, baseados em conhecimento de

prótese dental”. (REZENDE, 1997, p. 131).

Na América do Sul, a prótese ocular pode ser considerada relativamente

recente, já que as primeiras publicações ocorreram em Santiago do Chile e

Argentina, em 1949. No Brasil, os estudos e práticas deste recurso iniciaram-se

no estado do Rio Grande do Sul protagonizados por Wilson Tupinambá, Eurico

Kramer de Oliveira e Gaspar Soares Brandão, avançando para o norte do País

com Gemaque Álvaro, e posteriormente para o nordeste com Antônio Gamboa

Varela. (FONSECA, 1987, p. 30).

Hoje, após um percurso histórico de constante aperfeiçoamento, a

prótese ocular de melhor qualidade é realizada individualmente para cada

cavidade anoftálmica, confeccionada em resina acrílica e pintada

manualmente, de modo a copiar todas as características do olho remanescente

do paciente, oferecendo um resultado estético satisfatório, além de contribuir

significativamente no que diz respeito ao aspecto psicológico do paciente.

Quando no globo ocular é sofrida alguma alteração patológica que

emerge/ MARÍLIA: CREIO QUE A PALAVRA AQUI É EXIGE E NÃO,

EMERGE a retirada do mesmo através de cirurgia, ou ainda, frente a uma

alteração congênita sofrida neste órgão, como microfitalmia, olhos hipotróficos

e olhos cegos cosmeticamente desfigurados, há a indicação de uso da prótese

ocular. Segundo Soares (1997), toda cavidade anoftálmica é passível de

albergar uma prótese ocular, modificando apenas as condições favoráveis, ou

não, para um resultado estético satisfatório na medida em que o procedimento

cirúrgico, colocação e tamanho do implante esférico, preservação das

estruturas e da funcionalidade da cavidade interferem significativamente no

resultado final da estética do paciente após a colocação da prótese ocular.

Tem-se aí a importância do trabalho multidisciplinar na avaliação da cavidade

do paciente antes mesmo da realização da cirurgia.

A prótese ocular tem como objetivo principal reconstruir esteticamente a

face do paciente prejudicado pela perda ou malformação do globo ocular, “já

que a função não pode ser reconstituída por meios artificiais”. (MORONI, 1982,

p. 311). Sua utilização é de extrema importância para a proteção da cavidade

anoftálmica contra ciscos, poeira e poluição. Na perspectiva da beleza, ela

promove a reestruturação estética e funcional do rosto do paciente, atuando,

segundo Graziani (1982), sobre a própria sede da expressão fisionômica

definida por ele “...como o resultado das expressões transmitidas a face pelos

sentimentos e emoções habituais do indivíduo”.(p.1). A utilização da prótese

facial favorece, não apenas a reintegração do paciente em seu convívio social,

mas também contribui no que diz respeito à auto-estima e autoconfiança do

mesmo. Sendo assim, a prótese funciona como um recurso técnico para a

manutenção da relação sujeito – perda, contribuindo, de certo modo, para a

reabilitação psicológica do paciente mutilado.

Paciente mutilado é classificado por Moroni (1982) como aquele que

sofreu uma deformidade ou deformação destruindo total ou parcialmente partes

da face, como olho, orelha, maxilar, nariz, sofrendo, muitas vezes, extensas

mutilações faciais que comprometem o funcionamento fisiológico das partes

afetadas. As malformações congênitas ou traumatismos, seqüelas pós-

infecciosas, pós-cirúrgicas e pós-queimaduras, os tumores e suas

conseqüências, constituem os principais fatores etiológicos responsáveis pelas

mutilações faciais.

2.2 – A criança mutilada:

A perda do globo ocular, quando ocorrida em crianças é causada em

sua maioria por acidentes domésticos, segundo Dr. Virvílio/OU VIRGÍLIO?

Centurion, oftalmologista e diretor do IMO: Instituto de Moléstias Oculares. Em

entrevista para Marcos Vinhal, ele afirma que “entre os agentes causadores, as

estatísticas são variáveis, porém, podemos inferir que os objetos pontiagudos,

as contusões e as substâncias cáusticas são as causas mais comuns [de perda

ocular], em crianças”. (VINHAL, 2007). Estudos realizados na Universidade

Federal de Uberlândia demonstram o alto índice de traumas oculares em

crianças que acontecem na própria casa da vítima, podendo “...ser difícil

prevenir a ocorrência do trauma doméstico, mas aumentando-se a consciência

dos pais, melhorando-se a supervisão e a exposição de crianças mais novas

aos objetos e às situações potenciais de perigo pode-se conseguir reduzir a

ocorrência de tantos traumas em crianças”. (E.Arcieri, Rocha, Resende,

R.Arcieri e Machado, 2004, p.13)

Existem crianças que se apresentam ao laboratório SERIA BOM

EXPLICITAR: laboratório de prótese ocular, após experienciar um processo de

reabilitação invasivo, sem profissionalismo e respeito com o paciente e sua

cavidade anoftálmica. Em alguns casos, estes pacientes desenvolvem traumas

psíquicos provenientes da falta de cuidado do profissional ao colocar a prótese

ocular, fazendo-o de maneira bruta e forçada, de modo a desconsiderar a

subjetividade de seu paciente. Já os pais, frente à dificuldade de lidar com a

imperfeição do filho, repeteM esse tratamento ao tomarem o profissional como

referência.

Diferente do adulto, a criança está em fase de desenvolvimento físico. A

face ainda se encontra em crescimento, assim como os ossos em

desenvolvimento, sendo que qualquer agressão sofrida neste período pode,

mais tarde, ocasionar deformidade de maior ou menor grau. Ao se tratar de

perda ocular, ou anoftalmia congênita, o cérebro da criança recebe a

mensagem da inexistência do órgão, tendendo a atrofiá-lo já que não possui

função orgânica. E, caso não haja a reabilitação com a prótese ocular, o lado

anoftálmico do rosto da criança interrompe seu crescimento, enquanto o lado

são continua a desenvolver-se. Segundo Soares (1997),

“a expansão orbitária, principalmente quando iniciada o mais

precocemente possível, é o estímulo principal para o crescimento

craniofacial, sendo por isso indispensável no tratamento da cavidade

anoftálmica congênita.... Apesar do crescimento ósseo craniofacial estar

concluído em torno dos 13 anos, estas cirurgias [enucleação e

evisceração] não podem prescindir do implante quando feita após esta

idade, pois a cavidade sem implante também sofre redução tardia da sua

amplitude por expansão dos seios paraorbitários.” (p.363 e 364)

Shaksper (1977) afirma que desde os primeiros meses de vida da

criança, quando o bebê descobre que pode influenciar o meio circundante a

partir de seus próprios movimentos, de modo a distinguir o que é “eu” e o que

“não é eu”, se inicia a constituição da base do seu conceito de Eu. O que se

torna ainda maior quando ela já se reconhece no espelho. A partir desse

conceito, constrói-se a representação mental de seu próprio corpo, sua imagem

corporal, que em crianças deficientes, implica dificuldades na medida em que

“... tem menos experiência de uso de seu próprio corpo... [e] por não poder

aprender tanto a seu respeito através dos outros” (Shaksper, 1977 p.26).

O conceito de Eu em crianças com anoftalmia adquirida, ou alguma

outra deficiência adquirida ao longo da vida, de acordo com Shaksper (1977),

tem que ser alterado ou reconstruído em sua totalidade não apenas para o

próprio indivíduo, como também para aqueles que o conheceram antes do

evento alterador. Isso acontece, pois o conceito de Eu engloba a percepção do

indivíduo no que diz respeito aos papéis que pode desempenhar em relação

aos outros, assim como os papéis que deseja desempenhar em relação a si

mesmo.

Adicionado a esta dificuldade, a criança mutilada cresce recebendo

estigmas por ser considerada diferente daqueles que constituem o seu campo

relacional, muitas vezes restrito à família e escola. A criança encontra-se,

então, sem um espaço terapêutico onde possa experienciar e simbolizar a

situação de prótese ocular para, então, atingir um grau de congruência

favorável ao seu desenvolvimento. Estes fatores nos levam a pensar sobre a

hipótese de uma possível desorganização da Noção do Eu destas crianças

devido às experiências sofridas desde a perda do globo ocular até a colocação

da prótese. Desta forma, a importância da intervenção do psicólogo no

processo de reabilitação de crianças anoftálmicas torna-se evidente, passando

a ser essencial na medida em que a significação emocional atribuída à

experiência de mutilação da criança seja incongruente com a sua Noção de Eu,

ocasionando assim uma desorganização ou desajuste psíquico.

2.3 – Aspectos psicológicos de pacientes em situação de prótese ocular.

Muitas são as causas de desajuste psíquico que acometem pacientes

em situação de prótese ocular, seja a deficiência congênita ou adquirida. No

primeiro caso pode-se pensar que o impacto psicológico sofrido pela pessoa

frente à anoftalmia é pequeno devido a não experiência anterior da visão

bilateral. Como também, por construir desde o início a sua imagem corporal

acordante com a situação real de deficiência. Entretanto, no decorrer do

desenvolvimento desta pessoa em suas relações com os outros, a

probabilidade de ser acometida por problemas ou questões envolvendo sua

condição física congênita pode influenciar negativamente seu funcionamento

ótimo se a Noção do Eu for ameaçada. Soares (1997) afirma que, “o paciente

deve ser preparado para aceitar que, no seu caso, o olho não funcionará

jamais e que em consequência da evolução natural ou de procedimentos

cirúrgicos a serem porventura realizados, surgirão defeitos que somente

poderão ser reparados com o uso de uma prótese.” (p.327).

Ao se tratar de anoftalmia adquirida, acredita-se que o abalo psíquico é

praticamente inerente a situação de mutilação, uma vez que além da perda do

órgão e, consequentemente, da visão, os procedimentos médicos e cirúrgicos

subseqüentes e necessários para a possível reabilitação com a prótese ocular

são bastante dolorosos. “Já traumatizados emocionalmente pela perda da

visão, muitos recusam-se à cirurgia e suportam olhos atróficos e dolorosos,

iludidos na esperança que a medicina lhes traga o milagre da recuperação”.

(SOARES, 1997, p.351).

O grau em que a deficiência adquirida afeta cada pessoa varia de

acordo com o significado atribuído por ela a esta deficiência em função de suas

experiências anteriores e estilo de vida. A simbolização da experiência de

mutilação pode ser realizada de modo destorcido por ameaçar a Noção do Eu

do indivíduo. Esta ameaça é classificada como um estado de angústia que

necessita ser impedido de se reproduzir no organismo. Ativam-se, assim, os

mecanismos de defesa que utilizam a percepção seletiva, deformação da

experiência, ou intercepção parcial ou total da experiência para impedir a

reprodução do estado de angústia. Entretanto, trazem como conseqüência na

pessoa a rigidez perceptual, necessidade de deformar dados da experiência e

simbolização incorreta da experiência. (ROGERS, 1975).

As condições psíquicas atuais de cada paciente são claramente

demonstradas por eles a partir da relação que se estabelece com o Ocularista

– profissional responsável pela confecção da prótese ocular – durante o

processo da reabilitação estética com a prótese. Elizabeth Silveira, ocularista

do laboratório Oculart – Confecção e Adaptação de Prótese Ocular, afirma que

“após um contato maior com o paciente é possível perceber se a reabilitação

social do mesmo ocorrerá paralelamente à colocação da prótese ocular ou se,

além disso, o acompanhamento psicológico se fará necessário”. (SIC). Nestas

condições, aqueles pacientes que conseguiram simbolizar a experiência de

mutilação de modo congruente com sua Noção de Eu, serão capazes de

avaliar a prótese ocular por si só como aliada em seu processo de reabilitação.

Diferentemente daqueles que, mesmo após a reabilitação estética, precisarão

de um profissional que os escute e lhes ofereça condições favoráveis para

então tornarem-se capazes de ouvir a si mesmos e assim reorganizar o seu Eu

frente ao impacto da mutilação.

3 - PSICOLOGIA HUMANISTA

3.1 - Abordagem Centrada na Pessoa (ACP)

A chamada terceira força da psicologia – Psicologia Humanista – conta

com importantes contribuições de Carl Ransom Rogers no que diz respeito ao

desenvolvimento do conhecimento da pessoa, e em sequência à origem da

ACP.

Carl Rogers, fundador da Abordagem Centrada na Pessoa, utilizava-se

das idéias freudianas no início de seus estudos como psicólogos, em trabalhos

realizados no “Child Study Department da Associação para a Proteção à

Infância em Rochester, Nova York”. (ROGERS,1961, p.21). Durante os oito

primeiros anos de profissão, as técnicas de diagnóstico e planejamento de

caso eram aplicadas constantemente por ele em suas sessões com crianças

delinqüentes, acompanhada sempre do questionamento sobre o resultado e

eficácia das técnicas.

No decorrer de sua experiência de trabalho cotidiano, não satisfeito com

o método utilizado, Rogers cita ter vivido três momentos de desilusão, sendo

elas “... em relação a uma autoridade, em relação ao material e em relação a

mim [si] mesmo”. (ROGERS, 1961, p. 22). Momentos estes que o permitiu

refletir sobre a importância do cliente no processo terapêutico, já que ele é o

único a saber de si, daquilo que o faz sofrer, e assim, da melhor direção a se

seguir no movimento do processo terapêutico. Segundo Coppe, “neste

momento o processo de psicoterapia progride de uma abordagem formal e

diretiva para a que Rogers chamará mais tarde de Abordagem Centrada na

Pessoa”. (COPPE, 2001, p.27).

Ao tornar-se professor na Universidade Estadual de Ohio, Carl Rogers

deparou-se com uma nova teoria que vira a elaborar a partir da sua própria

experiência. Em suas palavras; “ao tentar ensinar o que aprendera sobre o

tratamento e couseling aos estudantes comecei a perceber-me pela primeira

vez de que tinha talvez elaborado uma perspectiva muito pessoal a partir da

minha própria experiência”. (ROGERS, 1961, p.25).

Já denominada anteriormente como Acompanhamento Não Diretivo,

Terapia Centrada no Cliente, Ensino Centrado no Aluno, ou Liderança

Centrada no Grupo, a hoje Abordagem Centrada na Pessoa, desenvolvida a

partir das experiências de Rogers de interrelação com o outro, traz como

hipótese central a autorrealização frente à crença no potencial humano. Rogers

considera a pessoa, e não o problema, como foco de sua atenção, enfatizando

os elementos emocionais e as situações imediatas. Já dizia Ávila, 2006, que

“em função dessa crença no potencial humano o psicoterapeuta

acolhe e considera seu cliente em todos os seus aspectos, quer

sejam positivos, negativos ou ambíguos, esforçando-se por se

colocar no lugar dele, de maneira a captar as emoções sentimentos

e vivências ainda não explicitados pelo cliente”.

Cliente, pois a pessoa participa ativamente em seu processo de

desenvolvimento, conduzindo-o a partir de sua própria necessidade de

mudança.

3.1.1 – Principais fundamentos da ACP

O ser humano segue a tendência de obedecer à lei da sobrevivência em

busca do equilíbrio entre o meio externo e si próprio, o que implica no

balanceamento de suas necessidades básicas, seus sentimentos, emoções e

valores, com o meio social, em suas relações (FONSECA, 1987). Para Rogers

(1977) todo organismo é formado por uma tendência inerente ao

desenvolvimento, movido por um fluxo interno que “movimenta o ser em

direção a construção de suas potencialidades, desenvolvendo-as de maneira a

conservar-se e enriquecer-se” (COPPE, 2001 p.13). Denominada Tendência

Atualizante, este é o pilar da Abordagem Centrada na Pessoa.

Segundo Rogers e Kinget (1997), “tudo que passa no organismo em

qualquer momento e que está potencialmente disponível à consciência”,

(p.161) é definido como experiência do indivíduo. As percepções relacionadas

ao eu, ao meio e aos outros, além dos atributos usados na construção da

identidade da pessoa, ou seja, suas experiências, formam “um conjunto

organizado e mutável de percepções relativas ao próprio indivíduo” (COPPE

2001, p. 14), denominado Noção de Eu. Em sua teoria, Rogers (1977) afirma

que a experiência relacionada ao “eu” possibilita o ser a formar uma imagem ou

idéia de “eu” disponível à consciência e, assim, construir o seu Ideal de Eu a

partir do que gostaria de ser.

Ao perceber alguma inadequação entre a experiência e o ideal de eu, o

organismo se sente ameaçado, reagindo com a defesa. Para não modificar a

estrutura de eu, o organismo reage à ameaça deformando a realidade, ou

recusando compreendê-la, de modo que a experiência e simbolização da

condição atual da pessoa ocorre, neste caso, de maneira incongruente,

acarretando assim o desacordo psíquico. Para Coppe (2001), “o desajuste

acontece quando a imagem do eu e a experiência real não condizem, fazendo

com que a pessoa viva uma distância entre o eu e a experiência” (COPPE,

2001, p.17), causando no indivíduo vulnerabilidade na medida em que ele se

comporta “ora através do ideal de eu, ora através das exigências do

organismo” (COPPE, 2001, p.16), permitindo assim que o “eu” se sinta

angustiado, ameaçado e desorganizado. O desajuste psíquico ocorre, então,

na medida em que o organismo percebe que “alguns elementos de sua

experiência não estão de acordo com o seu ideal de eu” (COPPE, 2001) devido

a não representação no eu, ou a representação deformada, de elementos

importantes da experiência causando, segundo Rogers (1977), a não

compreensão do seu próprio comportamento por parte do indivíduo.

3.2 - Atuação do psicólogo na reorganização da noção do Eu

Para que haja a reorganização da Noção de Eu do paciente anoftálmico

de forma congruente com a experiência de mutilação por ele sofrida é preciso,

segundo Rogers e Kinget (1977), que dimensões importantes do “eu” sejam

exploradas e avaliadas. Esse exercício só é possível através da psicoterapia,

que objetiva proporcionar aos clientes condições favoráveis para seu

desenvolvimento.

A psicoterapia para Rogers (1977) perpassa a técnica. Para ele o

terapeuta deve se esforçar, tão plenamente quanto possível, em se conduzir

como pessoa e não como especialista. “Seu papel consiste em por em prática

atitudes e concepções fundamentais relativas ao ser humano – não na

aplicação de conhecimentos e habilidades especiais, reservadas

exclusivamente a seu contato terapêutico” (ROGERS e KINGET, 1977, p.9).

Contudo, o psicoterapeuta se apropria das atitudes da abordagem centrada na

pessoa para além de sua profissão, e sim como estilo de vida.

Autenticidade, Consideração Positiva e Empatia são as três atitudes

essenciais do terapeuta, porém não basta apenas possuí-las, “é necessário

ainda saber expressá-las de maneira eficiente” (ROGERS e KINGET, 1977,

p.9). Ambos autores consideram que o psicoterapeuta atua como ressonador e

amplificador da experiência do cliente a partir da “capacidade de repetição pura

e completa daquilo que o cliente exprime (...) [e da] capacidade de refletir a

comunicação do cliente de forma terapêutica” (ROGERS e KINGET, 1977,

p.13). Nestas condições, baseado nos conceitos da abordagem centrada na

pessoa, o terapeuta se torna apto a estruturar uma relação em que estejam

presente as atitudes básicas propostas por Rogers(1961) e, assim, contribuir

para a reorganização da Noção de Eu de pacientes anoftálmicos.

A primeira condição, denominada Autenticidade, se traduz na

congruência das relações do terapeuta com o paciente, proveniente de um

acordo interno entre a experiência e a simbolização do primeiro para, então,

conscientizar-se de seus sentimentos experienciados e tornar-se sujeito dos

seus atos. Segundo Rogers (1961), esta condição dificilmente será realizada

plenamente, mas à medida que “...o terapeuta souber ouvir e aceitar o que se

passa em si mesmo, [e] quanto mais souber ser a complexidade de seus

sentimentos, sem receio, maior será o seu grau de congruência”. (p.64). A

segunda condição, denominada Consideração Positiva Incondicional, se

resume na aceitação da experiência, sentimentos e verbalização do cliente

através de uma atitude calorosa, positiva e receptiva do terapeuta. “Trata-se de

um sentimento positivo [do terapeuta para o cliente] que se exterioriza sem

reservas e sem apreciações”. (ROGERS, 1961, p.64). Em seguida, a terceira

condição denominada Empatia se refere à capacidade do terapeuta em

compreender a experiência e o sentimento de seu cliente. Nas palavras de

Rogers, o terapeuta exerce sua compreensão empática quando “... é sensível

aos sentimentos e as reações pessoais que o paciente experimenta a cada

momento, quando pode apreendê-los de dentro tal como o paciente o vê, e

quando consegue comunicar com êxito algumas coisas dessa compreensão ao

paciente”. (ROGERS, 1961, p.64).

O terapeuta, assim, deve buscar dirigir-se ao cliente em suas atitudes e

palavras de maneira compreensiva, preocupando-se em “compreender

corretamente a significação vivida, o que o cliente lhe diz e a natureza do

sentimento que verdadeiramente experimenta”. (ROGERS e KINGET, 1997,

p.26). A tentativa de estimar, interpretar, tranqüilizar ou explorar aquilo que o

cliente diz faz com que o terapeuta se situe no campo da iniciativa, passando

assim a guiar o processo terapêutico. Para Rogers, o papel do terapeuta é

acompanhar o cliente, permanecendo no campo da acolhida e agindo de

maneira empática; compreensiva, inserido no ponto de referência do cliente.

Procura-se, então, oferecer ao cliente em situação de prótese ocular

uma estrutura relacional empática para que ele possa tornar-se capaz de ouvir

a si mesmo e assim reorganizar o seu “eu” frente ao impacto da mutilação.

Isso, pois a relação psicoterapêutica, segundo Rogers (1961), favorece a

modificação e reorganização da concepção que o cliente faz de si, desviando-

se de uma idéia que o torna inaceitável aos seus próprios olhos, propiciando-

lhe assim a “conquista[r] progressivamente uma concepção de si mesmo como

uma pessoa de valor, autônoma, capaz de fundamentar os próprios valores e

normas na sua própria experiência”. (ROGERS 1961, p.67).

3.3 - A psicoterapia infantil

Na perspectiva da Abordagem Centrada na Pessoa, a psicoterapia

infantil é conhecida como Ludoterapia Centrada na Criança já que apresenta

semelhança significativa no que diz respeito ao processo terapêutico realizado

com adultos, utilizando-se dos mesmos princípios para ambos. Bessa (1999)

considera, “a criança, assim como o adulto, um ser que sente, sofre, age,

reage, e ao mesmo tempo possui suas particularidades, pois está num mundo

em pleno processo de desenvolvimento biopsicosocial”. Acredita-se que a

criança apresenta, também, potencial para desenvolver-se em direção a sua

realização, satisfação e aperfeiçoamento do organismo, o que faz da tendência

atualizante o construto fundamental da Ludoterapia Centrada na Criança.

Os fundamentos da ACP apresentados anteriormente, assim como as

condições favoráveis e as atitudes essenciais do terapeuta, validam-se no

trabalho psicoterapêutico com criança, porém a interação verbal do terapeuta e

cliente se difere quando se trata de criança ou adulto. Freire e Silva afirmam

que “a linguagem da criança possui algumas características distintivas (maior

predominância da linguagem concreta, lúdica e simbólica e de comunicação

não-verbal)” (p.11), fazendo-se necessário viabilizar não só a comunicação

entre terapeuta e criança, como também o processo de psicoterapia em si.

Para que esse objetivo seja atingido, Axline (1972), propõe oito princípios que

caracterizam a Ludoterapia Centrada na Criança, baseados na empatia,

consideração positiva e autenticidade propostas anteriormente por Carl Rogers:

“1. O terapeuta deve desenvolver um amistoso e cálido relacionamento com a criança,

de forma que logo se estabeleça o “rapport”.

2. O terapeuta aceita a criança exatamente como ela é.

3. O terapeuta estabelece uma sensação de permissividade no relacionamento, de tal

modo que a criança se sinta completamente livre para expressar seus sentimentos.

4. O terapeuta está sempre alerta para identificar os sentimentos que a criança está

expressando e para refleti-los para ela, de tal forma que ela adquira conhecimento

sobre seu comportamento.

5. O terapeuta mantém profundo respeito pela capacidade da criança em resolver seus

próprios problemas, dando-lhe oportunidade para isto. A responsabilidade de escolher

e de fazer mudanças é deixada para a criança.

6. O terapeuta não tenta dirigir as ações ou conversas da criança de forma alguma. Ela

indica o caminho e o terapeuta o segue.

7. O terapeuta não deve abreviar a duração da terapia. O processo é gradativo e assim

deve ser reconhecido por ele.

8. O terapeuta estabelece somente as limitações necessárias para fundamentar a

terapia no mundo da realidade e fazer a criança consciente de sua responsabilidade

no relacionamento”.

(Axline, 1972, p.69).

Neste contexto, o papel do terapeuta situa-se em promover uma relação

empática de compreensão para que a criança se sinta aceita exatamente como

é, podendo expressar seus sentimentos na medida em que o terapeuta

demonstre confiança no potencial da criança para resolver suas questões e

descobrir o que é melhor para si. Segundo Freire e Silva “é a experiência de

ser aceita e valorizada incondicionalmente que promove a liberação das forças

de crescimento da criança e a mudança terapêutica”. A comunicação verbal

entre eles é considerada apenas um veículo para a vivência e a expressão

dessa aceitação incondicional.

A criança, segundo Gonçalves (1988), utiliza de sua imaginação para

lidar com o mundo que lhe é apresentado, tentando assimilá-lo e transformá-lo

através do brincar. O brinquedo, considerado por Axline (1972) como “o meio

natural de auto-expressão da criança ... [sendo] uma oportunidade dada a

criança de se libertar de seus sentimentos e problemas” (p.9), pode ser

utilizado como ferramenta do processo de psicoterapia, já que ao brincar

livremente, a criança expressa sua personalidade. O terapeuta deve, assim,

estar atento para não interpretar este comportamento simbólico, mas apenas

refletir os sentimentos da criança através da resposta reflexo propostas por

Rogers (1977), permanecendo no mesmo nível de comunicação do cliente.

Rogers (1977) considera a interpretação como algo ameaçador por

anular as tendências de independência e responsabilidade pessoal do cliente,

propondo, a partir do objetivo de participar da experiência imediata daquele que

está ali presente, uma resposta que “engloba o pensamento deste ao ponto de

retomá-lo e lhe dar uma forma equivalente ou, pelo menos, suscetível de ser

reconhecida como sua” (Rogers, 1997, p.53), funcionando como um reflexo na

medida em que o terapeuta percebe o cliente como este percebe a si mesmo e

compreende esta identidade de percepção.

Na Abordagem Centrada na Pessoa, a ludoterapia trabalha com a

criança de modo a considerar como ela está se revelando para si e para o

mundo, abrangendo sua história, sentimentos, conceitos, ações, enfim, a

criança como um todo.

4 - ASPECTOS REFERENTES À NOÇÃO DO EU DE PACIENTES EM

SITUAÇÃO DE PRÓTESE OCULAR.

4.1 - Metodologia.

Procura-se aqui, através da pesquisa exploratória e qualitativa,

identificar indicadores que explicitem a maneira como a criança simboliza em

sua Noção do Eu a experiência de ausência do globo ocular, a partir de seus

depoimentos. Pesquisa exploratória, pois objetiva investigar um fato ou um

fenômeno sobre o qual ainda se tem pouca informação, e também qualitativa

na medida em que se objetiva compreender a particularidade daquilo que se

estuda e não sua explicação.

A dimensão a ser explorada neste contexto refere-se à noção de

sentimento que, segundo Rogers (1977), “abrange tudo o que tende a revelar o

ângulo perceptual – pessoal, subjetivo – da experiência, bem particularmente

da experiência relativa à imagem do eu”. (P.34). Para Bicudo & Martins (1944)

citados por Coppe (2001), os sentimentos são fenômenos difíceis de serem

quantificados, podendo ser apenas estudados a partir de suas particularidades,

“esses fenômenos apresentam dimensões pessoais e podem ser mais

apropriadamente pesquisados na abordagem qualitativa. Os estudos assim

realizados apresentam significados mais relevantes tanto para os sujeitos

envolvidos como para o campo de pesquisa ao qual os estudos desses

fenômenos pertencem.” (Bicudo e Martins citados por Coppe, 2001, p.27).

Tem-se, como enfoque metodológico dessa pesquisa, a fenomenologia

por se “apresentar não como uma técnica, mas como um método, uma atitude,

cujo objetivo é descrever para compreender” (Coppe, 2001, p.40) a essência

do fenômeno tal como este se apresenta para nós. Nesta perspectiva, a

fenomenologia nos permite compreender a pessoa como ela significa a si e ao

mundo. Para Coppe, “a Psicologia se utiliza de procedimentos

fenomenológicos para a valorização da subjetividade individual, buscando a

significação imediata da consciência na experiência vivida pelo cliente,

ajudando-o a se perceber e aos demais, refletindo sobre si próprio e sobre

suas percepções”. (Coppe, 2004, p.41). Esta pesquisa classifica-se, então,

segundo Amatuzzi citado por Coppe, 2004, como fenomenológica empírica

uma vez que utiliza do enfoque fenomenológico aplicado à pesquisa científica

em psicologia que trabalha a partir de dados empíricos, neste caso,

depoimentos focais ou qualquer objetivação do vivido.

4.2 - Participantes.

Participaram desta pesquisa, quatro crianças entre 6 e 9 anos, que

apresentam anoftalmia ocular e hoje encontram-se reabilitadas esteticamente

através da prótese ocular pelo Laboratório Oculart – Confecção e Adaptação

de Prótese Ocular. Os participantes foram escolhidos dentre os pacientes do

Laboratório a partir da disponibilidade de horário, levando em consideração as

condições de fácil acesso ao laboratório. Respeitou-se, nesta pesquisa, o

critério da faixa etária correspondente à infância de acordo com o artigo

segundo do Estatuto da Crianças e Adolescente:

“Art. 2º: Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze

anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos

de idade.” (1990).

Devido a questões éticas e profissionais, as identidades dos

participantes serão preservadas, dando-lhes nomes fictícios.

4.3 - Instrumentos

“Sabe-se que para ter acesso ao sentido da vivência, ou seja, para

tornar-se passível de análise o fenômeno investigado, faz-se necessário um

instrumento que possibilite ao sujeito, um contato com a experiência vivida”

(Coppe, 2004, p.48). Nesta pesquisa, utiliza-se da entrevista gravada como

recurso para a coleta de depoimentos dos participantes, fazendo-se necessário

a assinatura de um termo de responsabilidade pelos pais permitindo a

gravação dos depoimentos de seus filhos.

4.4 - Procedimentos

As entrevistas foram realizadas individualmente no mês de abril de 2009,

por Marília Souza da Silveira, autora deste trabalho, com a supervisão do

Professor Antonio Coppe. Por serem pacientes do Laboratório Oculart, os

participantes já haviam preenchido a ficha de identificação pessoal com as

informações necessárias para o início das entrevistas. Sem um roteiro pré-

estabelecido, a entrevista realizou-se em todos os casos com a seguinte

pergunta disparadora: “Gostaria que me contasse como é para você usar

prótese ocular”. A partir daí, as perguntas seguintes se baseavam na direção

dada pelo cliente à entrevista.

As entrevistas realizadas com as crianças encontram-se em anexo neste

trabalho enquanto, no tópico seguinte, procura-se sintetizá-las identificando os

aspectos referentes à Noção de Eu de cada criança separadamente. Neste

caso, seria interessante a leitura das entrevistas e, em seqüência, a leitura das

sínteses para melhor compreendê-las.

4.5 - Identificação da Noção do Eu em depoimentos de crianças em

situação de prótese ocular.

4.5.1 – Ana, 6 anos.

A entrevista realizada com Ana é marcada, inicialmente, por respostas

objetivas que no decorrer da conversa se ampliam trazendo a possibilidade de

verificar experiências relacionadas à sua Noção de Eu.

Para Ana, o fato de usar prótese ocular é algo normal por considerá-la

confortável, já que “não machuca” (Sic). Lembra que ao colocar a primeira

prótese sentiu um pouco de medo, porém, ao perceber em Elizabeth, a

ocularista, um medo de traumatizar a criança ao colocar a prótese, podendo

ser traduzido como um cuidado para não machucar a criança, Ana passou a

sentir-se segura. Para ela: “hoje é normal, igual a um olho verdadeiro” (Sic).

Frente à resposta de Ana ao ser questionada sobre como se sente ao

olhar-se no espelho: “Eu penso que antes eu ficava feia quando estava usando

lente1 e agora eu já tô bonita” (Sic), é possível afirmar que ela apresentava, no

primeiro momento, uma Noção de Eu que incluía a aparência física como um

aspecto negativo na medida em que se considerava feia quando ainda não

usava prótese ocular. As experiências vividas por ela na relação com o outro a

fizeram construir uma imagem negativa de si mesma. Já ao colocar a prótese

ocular, as percepções relativas a si foram alteradas frente às experiências

vividas de modo a considerar-se, hoje, uma pessoa bonita.

No decorrer da entrevista, é possível perceber que Ana se sente

considerada por pessoas que preocupam com ela, protegendo-a quando

necessário. E, também, que considera sua mãe como uma pessoa significativa

por perceber nela as condições favoráveis para que possa simbolizar suas

experiências de tristeza através do choro, que pode ser verificada em sua fala

sobre um óculo que diz gostar muito: “Um dia quebrou um desse e eu chorei”

(Sic).

Em outro momento da entrevista, Ana relata: “um dia eu fui lá no médico

de olhar o meu olho sabe, e ele me dava anestesia, ai eu falei: tio Fábio, não

me dá anestesia mais que eu vou deixar colocar o negócio no olho, aquela

luzinha, e deixei” (Sic). Frente a uma experiência negativa que lhe causava dor,

Ana consegue reagir de forma positiva, escolhendo o que seria melhor para si,

sendo capaz de atualizar-se. Pode-se pensar que sua Noção de Eu se

encontra congruente com as experiências, atuando de forma positiva, uma vez

que ela exerce a sua tendência à atualização do Eu. Tudo isso é possível

devido à liberdade experiencial de Ana que lhe permite entrar em contato com

sua experiência sem sentir necessidade de negar seus sentimentos.

Baseado no seguinte trecho da entrevista:

“Ana: Quando, na minha sala, as crianças vão brincar eu sempre fico por

último com a Larissa, ninguém me escolhe.... e quando tem fonte do tororó

(cantarola a música), a Carol não me escolheu.

Terapeuta: Você ficou triste com a Carol.

Ana: Fiquei. Mas eu escolhi a Carol. O Rodrigo é esquisito tem hora, ele fica

querendo brigar mas eu fico do lado dele porque ele é meu namorado”.

1A lente na qual Ana se refere é denominada Lente Simbléfaro Escleral. É uma lente pós cirúrgica feita de acrílico transparente com alguns furos para que a medicação, como colírio, possa penetrar na cavidade anoftálmica.

é possível afirmar que em alguns momentos de sua vida Ana se sente

desconsiderada por pessoas significativas para ela, porém busca considerá-

las, como forma de defesa, por perceber uma inadequação entre a experiência

– não ser considerada - e o ideal de Eu – ser considerada pelos outros. Já em

outras situações, Ana se sente amada e desejada, o que pode ser percebido

quando diz de Rodrigo. “Um dia era pra ele escolher ou eu ou a Carol e ele me

escolheu” (Sic). Sendo assim, Ana está aberta para novas experiências,

conseguindo representá-las corretamente, o que indica uma tendência

atualizante positiva.

4.5.2 – Cristina, 7 anos.

Cristina relata ter vivido uma experiência anterior negativa com prótese

ocular. Diz ter uma outra prótese que dói assim que é colocada em sua

cavidade, apertando-a e machucando seu olho. Ao ser questionada se

lembrava de quando colocou esta prótese, Cristina diz lembrar-se, mas ao

perguntar como foi, ela afirma: “eu esqueci” (Sic).

As respostas de Cristina foram muito objetivas e durante a entrevista,

tampou a cavidade que no momento estava sem a prótese com uma das mãos,

abaixando a cabeça. Questionei como se sente ao olhar-se no espelho sem a

prótese ocular, e Cristina respondeu: “Me acho feia. Os meninos da minha rua

me chamam de cobra quando eu fico sem prótese” (Sic). A criança apresenta

aqui uma Noção do Eu que inclui a aparência física como um aspecto negativo

construído a partir de suas experiências na relações com o outro. Em seguida,

lhe perguntei como se sente ao olhar-se no espelho com a prótese ocular e ela

respondeu: “Nada.... não acho nada. (Pausa). Você acha que eu sou bonita?”

(Sic). Neste momento é possível perceber que Cristina não consegue atribuir

nenhuma qualidade, ou mesmo valor, ao seu respeito. Continuei, respondendo

que sim e perguntei se ela lhe achava bonita. Cristina diz: “Não” (Sic), e

encerra a entrevista me chamando para ver o desenho que tinha feito antes de

entrar para a sala, afirmando ter ficado feio.

Mesmo após a reabilitação com a prótese ocular, Crinstina simboliza em

sua Noção do Eu a aparência física como um aspecto negativo, não

exercendo, assim, sua tendência à atualização do Eu. Pode-se pensar que

Cristina não vivencia uma liberdade experiencial que lhe permite entrar em

contato com sua experiência, uma vez que ela apresenta a necessidade de

negar seus sentimentos.

Após o término da entrevista, o pai de Cristina lhe pediu para que

contasse o que a diretora da escola havia dito para ela. Cristina falou que tinha

esquecido e, também, que não sabia, até que seu pai disse que ela estava se

destacando na classe por ser muito caprichosa. Neste momento, Cristina

tentou impedir seu pai de falar, tampando sua boca. Frente a isso, pode-se

pensar que Cristina apresenta uma dificuldade em aceitar elogios ou

qualidades sobre si mesma.

4.5.3 – Bruno, 9 anos.

Aos dois anos de idade Bruno perdeu o seu globo ocular, reabilitando-se

com a prótese somente aos 7 anos. Em seu relato, diz sentir-se “diferente” das

outras pessoas antes de colocar a prótese ocular, na medida em que “as

pessoas que passavam perto de mim olhavam, passavam direto e não faziam

nada” (Sic), o que pode ser resumido em um sentimento de desconsideração

em relação aos outros. Bruno incluiu, assim, em sua Noção de Eu aspectos

negativos no que diz respeito ao comportamento, por considera-se diferente

das outras pessoas e, também, ao significado de si para o outro, trazendo-lhe

um sentimento de desconsideração.

Ao colocar a prótese ocular, diz sentir-se melhor, “As pessoas passam

perto de mim, ai contam coisas delas, olham pra mim, me pedem pra fazer as

coisas pra elas, algumas pessoas me chamam pra brincar com elas” (Sic),

sentindo-se, nestas condições, acolhido ou mesmo valorizado pelos outros.

Aqui, Bruno se permite vivenciar novas experiências, simbolizando-as de

maneira positiva em sua Noção do Eu na medida em que se considera hoje

uma pessoa valorizada frente as suas experiências e percepções de si.

“Os outros” a quem Bruno se refere, são pessoas de sua escola –

professora e alunos – já que, segundo ele, em sua família nunca houve este

problema. “Na minha casa eles ligavam pra mim do mesmo jeito” (Sic), antes

ou depois de reabilitar-se esteticamente. Bruno é o filho caçula e gosta de

ocupar este lugar pois considera que ganha mais atenção dos pais e, também,

da irmã. Ele se considera uma pessoa extrovertida, mas fica tímido ao receber

elogios.

Em seu relato, diz ter passado por um procedimento ruim na primeira

tentativa de colocar a prótese ocular: “Fui em outro lugar. Eles tentavam

colocar a prótese e não cabia, ai eles colocavam a força ... eu sentia dor”. (Sic).

A simbolização desta experiência pode ter influenciado a construção de

aspecto negativo em sua Noção do Eu referente à desconsideração. Pode-se

pensar que Bruno, mais uma vez, sentiu-se desconsiderado na medida em que

mesmo sentindo dor era submetido a um procedimento forçado. Ao perguntar

como aconteceu na Oculart, a primeira resposta de Bruno referiu-se a relação

estabelecida entre ele e o profissional em que se sentiu considerado por ser

escutado: “Ela [ocularista] fez um monte de pergunta de como que foi ... depois

conversou com meu pai” (Sic), diz ainda ter ficado nervoso e com medo de

acontecer a mesma coisa que aconteceu no procedimento anterior. Porém,

segundo ele, “ela foi colocando a prótese aos poucos pra ver se ia doer, se ia

apertar, ai começava tudo de novo e colocava uma menor. E não doeu”.

Hoje, Bruno diz sentir-se ótimo com a prótese ocular, tendo facilidade

em manuseá-la. “Me sinto como as outras pessoas” (Sic). Neste contexto,

Bruno apresenta uma Noção de Eu positiva por conseguir simbolizar

corretamente suas experiências.

4.5.4 - Daniele, 9 anos

Daniele inicia a entrevista relatando uma experiência negativa com a

prótese ocular, uma vez que, ao “ficar sempre reclamando” e dizendo ao

médico que sua cavidade estava doendo, ele “falava que era mania”. (sic). No

decorrer de seu relato a criança se lembra de vários momentos negativos

referentes à prótese ocular. Momentos estes em que a prótese lhe machucava,

chegando a ser insuportável usá-la em sua cavidade e o médico continuava

dizendo que era mania da criança. “Eu ficava sempre reclamando e o médico

falava que era mania minha, mas não era mania” (sic). Pode-se pensar que

apesar de sentir-se desconsiderada pelo médico, Daniele não deixou que este

sentimento influenciasse negativamente sua Noção do Eu por acreditar em

suas próprias experiências, orientando-se por elas.

A criança percebe uma mudança positiva ao trocar de profissional, “ai eu

vim pra cá e melhorei bastante, porque não está doendo como doía antes ...

até aprendi a colocar ela já” (sic). Daniele se considera capaz de cuidar de sua

prótese sozinha, sem a ajuda de ninguém, o que a faz sentir independente.

Porém, a criança sente-se, também, insegura ou “com medo” de que algo

aconteça com a prótese. Este medo pode estar vinculado à questão financeira

por considerar o custo da prótese “muito caro”, de modo a não sobrar dinheiro

para fazer o que realmente gosta: dançar balé. “Minha mãe ta pagando aula

particular, prótese, escola, um tanto de coisa. Ai eu pedi pro meu pai comprar

um porco pra juntar dinheiro e ai eu posso dançar balé” (sic). Se a prótese for

danificada, consequentemente terá que comprar outra gastando o dinheiro que

poderia ser investido em seu sonho de dançar balé.

Daniele se sente considerada pelo pai em relação ao seu desempenho

escolar. E tem o seu irmão Lucas como pessoa significativa para ela

considerando suas opiniões: “... ai eu fiquei com dó dele porque o Lucas me

contou isso e falou: você não ri não tá, porque ele tem problema, deve ter

nascido assim” (sic).

A criança construiu um Ideal de Eu como uma pessoa que, apesar de

não enxerga de um dos olhos, se considera normal. Frente a isso Daniele

relata “não gosto que a pessoa fique com dó de mim” (sic), para não vivenciar

uma incongruência entre o eu e a experiência. Daniele, assim, exerce a sua

tendência à atualização do Eu, uma vez que sua Noção de Eu encontra-se

congruente com as experiências.

4.6 Síntese geral

A Noção do Eu dos participantes, exceto em uma criança, apresentou-se

desorganizada no que diz respeito aos aspectos referentes à aparência física e

sentimento de desconsideração, influenciando o comportamento da criança no

sentido de retrair-se. Ana, Bruno e Cristina apresentaram uma Noção do Eu

que inclui a aparência física como um aspecto negativo, sendo que o segundo

incluiu ainda, em sua Noção do Eu, sentimentos de desconsideração e

aspectos negativos referentes ao seu comportamento ao encontrar-se em

situação de ausência do globo ocular. Posteriormente à colocação da prótese,

Ana e Bruno exerceram a sua tendência à atualização do Eu conseguindo,

assim, reorganizar sua Noção do Eu devido à simbolização correta das

experiências vivenciadas. Daniele não apresentou aspectos negativos em sua

Noção do Eu no que diz respeito à ausência do globo ocular, entretanto,

Cristina, mesmo após a reabilitação com a prótese não exerceu sua tendência

atualizante, encontrando-se fechada para novas experiências.

Considerando as limitações encontradas no decorrer do processo de

pesquisa como o número limitado de participantes, este trabalho aponta que a

experiência de anoftalmia ocular contribui, em muitos casos, para a inclusão de

aspectos negativos na Noção do Eu de crianças, no que diz respeito à

aparência física, diferença comportamental e sentimento de desconsideração.

Percebe-se, também, que a prótese ocular em si funciona, muitas vezes, como

um aliado para a reorganização da Noção do Eu de pacientes anoftálmicos.

5. CONCLUSÃO

Este trabalho visa incluir a prática da Psicologia Humanista, no contexto

dos pacientes anoftálmicos em situação de prótese ocular frente à demanda de

afeto e consideração apresentada por eles, paralelamente ao desejo de

reconstruir sua estética facial com a prótese. Inicia-se aqui uma parceria entre

a psicologia e o campo da prótese ocular para se trabalhar em prol do paciente

mutilado, buscando recuperar não só a estética perfeita, mas principalmente a

“pessoa” que se perde frente à situação de ausência do globo ocular.

A escolha de desenvolver um trabalho com criança pode ser pensada

como uma metáfora em relação a algo novo, que ainda tão imaturo, já

apresenta um potencial para crescer e construir o seu Eu através das vivências

experienciadas no decorrer de sua vida. Eis aqui um trabalho que representa o

primeiro passo de um longo caminho, como uma criança que está descobrindo

o seu mundo e buscando desenvolver-se nele.

Nesta primeira jornada, procurou-se verificar a maneira como a criança

representa em sua Noção de Eu a experiência de ausência do globo ocular.

Constatando-se que a maioria delas representa esta situação de maneira

incongruente, incluindo aspectos negativos em sua Noção do Eu devido à

ausência do globo ocular. A desorganização da Noção do Eu ocorre, no maior

número de casos, durante o processo de reabilitação estética, sendo que após

a colocação da prótese ocular, a criança vivencia novas experiências que a

permite reconstruir sua Noção do Eu de forma positiva.

Neste contexto, a atuação do psicólogo se faz pertinente no decorrer do

processo de colocação da prótese ocular, propiciando à criança um espaço

terapêutico para que possa expressar suas angústias, dificuldade, medos, ou

qualquer outro sentimento que ela esteja experienciando naquele momento. Ao

simbolizar corretamente suas experiências referentes à ausência do globo

ocular em sua Noção do Eu, a criança construirá uma maior autonomia,

passando a aceitar-se melhor e, também, acreditar em suas próprias

experiências, guiando-se por elas. Nesta perspectiva, as dificuldades

observadas no processo de reabilitação estética enfrentadas pelos pacientes

anoftálmicos poderiam, assim, amenizar-se ou mesmo tornarem-se

inexistentes.

Para além da contribuição teórica apresentada que este trabalho, a

experiência de escutar o depoimento dessas crianças me proporcionou

vivenciar que a compreensão empatia, consideração positiva e congruência

quando presentes no terapeuta e captadas pelo cliente, possibilitam

estabelecer uma relação de confiança e afeto, produzindo um efeito terapêutico

em apenas uma única entrevista. É esta capacidade de construir uma relação

de pessoa para pessoa que me fascina e motiva a trabalhar em prol do

desenvolvimento do outro.

6. REFERÊNCIAS ÁVILA, Alexandre. O que é Abordagem Centrada na Pessoa – ACP. Disponível em <http//www.cpp-online.com.br/acp_index.htm> Acesso em: 13 mar. 2009. AXLINE, Virginia. Ludoterapia. Belo Horizonte: Interlivros, 1972. BESSA, Gabriela. Quando a criança precisa de psicoterapia?. Disponível em <http://www.existencialismo.org.br/jornalexistencial/gabyludo2.htm> Acesso em: 21 abril 2009. COPPE, Antonio. A vivência em grupos de encontro: um estudo fenomenológico de depoimentos. Tese de mestrado apresentada à UFRJ/PUC Minas. Rio de Janeiro, 2001. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Disponível em <www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L8069.htm> Acesso em: 27 abril 2009. FONSECA, Edmundo. Prótese ocular. São Paulo: Panamed, 1987. FREIRE, Elizabeth e SILVA,Renata. Psicoterapia centrada na criança.

GONÇALVES. C. S. (Org). Psicodrama com crianças, uma terapia possível. Sao Paulo, Ágora, 1988. GRAZIANI, Mario. Prótese maxilo-facial. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982. GRUNSPUN, Hain. Criança e adolescente com transtorno psicológico do desenvolvimento. São Paulo: Ed. Atheneu, 1999. LOPES, Juliana. O atendimento a criança: Uma proposta humanista relacional. Disponível em <http//www.encontroacp.psc.br> Acesso em: 25 ago. 2008. MONTEIRO, Natacha. O (ser) terapeuta humanista-existencial e sua postura na psicoterapia infantil. < Disponível em http://www.sereexistir.com>. Acesso em: 03 out. 2008. MORONI, Plínio. Reabilitação buco-facial: cirurgia e prótese. São Paulo: Panamed, 1982. RESENDE, José. Fundamentos da prótese buco-maxilo-facial. São Paulo: Sarvier, 1997. ROGERS, Carl. Tornar-se pessoa. .Belo Horizonte: Martins Fontes, 1961. ROGERS, Carl. Psicoterapia e relações humanas: teoria e prática da terapia não-diretiva (v.1). Belo Horizonte: Interlivros, 1975. ROGERS, Carl. Psicoterapia e relações humanas: teoria e prática da terapia não-diretiva (v.2). Belo Horizonte: Interlivros, 1977. SHAKSPER, Rosemary. Psicologia do deficiente. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1977. VASH, Carolyn. Enfrentando a deficiência: a manifestação, a psicologia, a reabilitação. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1988. VINHAL, Marcos. Trauma ocular infantil: é possível prevenir os acidentes que envolvem os olhos das crianças?. Disponível em <http://www.revistavigor.com.br/2007/04/25/trauma-ocular-infantil-e-possivel-prevenir-os-acidentes-que-envolvem-os-olhos-das-criancas/> Acesso e m: 08 set. 2008.

7. ANEXO 7.1. Entrevista de Ana – 6 anos T: Gostaria que você me contasse como que é para você usar prótese.

A: Normal, não machuca.

T: Você lembra de quando colocou a prótese? Como foi?

A: Sim, para colocar a lente teve que ser a tia Beth por causa que, por causa que, ela tem

medo de colocar e a criança ficar com trauma.

T: Antes de vir aqui, você tinha colocado prótese em outro lugar?

A: Não, aqui foi o primeiro.

T: E você, estava com medo?

A: Minha mãe tinha me falado que tirar a lente era igual tirar a prótese, mas eu não sabia.

T: Ah é?! Mas você ficava com medo?

A: Ficava um pouco.

T: E hoje, como que é?

A: Hoje é normal, igual a um olho verdadeiro.

T: E quando você se olha no espelho?

A: Eu penso que antes eu ficava feia quando estava usando lente, e agora eu já tô bonita.

T: Então você mudou o jeito de pensar sobre você mesma. Antes se achava feia e hoje se

acha bonita.

A: Aham.

T: Você vai à escola?

A: Vô.

T: Como que é lá?

A: É legal, tem um parquinho, mas tem um menino que leva dinheiro pra ele e eles dá bala.

T: Você também ganha bala?

A: Eu não, não levo dinheiro.

T: Então a pessoa compra a bala.

A: É, eu vou fazer isso.

T: Você gosta de bala.

A: Adoro. Tinha um dia que tinha uns doces e umas balinhas e eu peguei os dois vidrinhos e

quase comi tudo. Sabe qual é a bala que eu mais gosto? Aquelas pastilhas que é igual a de

goma mas é durinha.

T: Você come muita bala?

A: Sou louca por bala.

T: (risos) E lá na sua escola você tem muitos amigos?

A: Só um pouco.

T: Como que é?

A: Um dia, tem vez que a professora, lá no parquinho, tinha uma menina né, que quando eu

tava correndo ela ficou com medo deu quebrar o meu óculos e me agarrou, ai quando ela me

soltou me machucou aqui (apontou para a barriga).

T: Você tem medo de quebrar seu óculos?

A: Aham. Um dia quebrou um desse e eu chorei. Ai consertou. Consertou não, deu outro lá do

Rio de Janeiro.

T: E você ficou triste.

A: ( Fez sim com a cabeça)

T: Porque você ficou triste?

A: Por que eu gosto desse óculos tanto. ( Pausa) Um dia eu fui lá no médico de olhar meu olho

sabe, que ele me dava anestesia, ai eu falei: tio Fábio, não me da anestesia mais não que eu

vou deixar colocar o negócio no olho, aquela luzinha, e deixei. Agora eu só to fazendo lá na

retina.

T: Você é corajosa.

A: (Diz sim com a cabeça).

T: Antes você não deixava. Por que passou a deixar?

A: Só por causa que eu não gosto de anestesia. Quando eu tomo anestesia eu durmo e não

posso comer nada. Já tomei anestesia muitas vezes. Uma dia quando eu era pequenininha, eu

tinha 3 anos, agora eu tenho 6, eu fui no tio Fábio e ele não tava lá, ele tava lá com a família

dele. Eu fiquei bem feliz.

T: Você ficou feliz porque ele não estava lá.

A: É, porque eu tomava anestesia na época.

T: Antes de chegar no médico você ficava triste porque sabia que ia tomar anestesia.

A: Aham. Ai eu to deixando agora.

T: Hoje você consegue deixar ele olhar seu olhinho.

A: Aham. O único problema é que eu fico sem enxergar nada porque a luz atrapalha.

T: Você fica incomodada.

A: (Diz sim com a cabeça).

T: Mas você prefere ficar assim do que tomar anestesia.

A: Aham. Anestesia a gente dorme e .... sabe que existe uma bala de dramim? Ai eu chupei

aquela bala e achei gostosa. E teve um dia que eu chupei um chiclete de cabeça de abóbora.

Minha mãe chupou o caldinho né, e cuspiu. A Carol gostou. A Carol é minha melhor amiga.

T: Carol. De onde você conhece ela?

A: Da minha escola. Ela já foi na minha casa, eu já fui na dela. Já fui no aniversário dela. Ela já

foi no meu.

T: Você gosta muito da Carol.

A: É. E um dia a gente foi tomar sorvete, eu, minha mãe, meu pai, ai, sabe oque que

aconteceu? A mãe da Carol ligou e perguntou se podia levar a Carol. Ai, minha mãe falou que

deixava. Ai nós foi lá e a Carol não tomou o sorvete todo. Eu deixei só um caldinho.

Eu tenho um namorado na minha escola, o Rodrigo. Um dia ele me seguiu até a clínica de

olho. Ai quando chegou lá a mãe dele falou pra eles irem embora, ai ele falou: ah! Ele queria

esperar. A gente pega na mão, eu fico do lado dele. Um dia era pra ele escolher ou Eu ou a

Carol, e ele me escolheu.

T: Ele gosta de você.

A: E eu gosto dele porque ele gosta de mim. Quando, na minha sala, as crianças vão brincar

eu sempre fico por último com a Larissa, ninguém me escolhe. Mas a professora deixa eu

passar o anel e adivinhar onde que ta. E quando tem fonte do toróró (cantarola a música), a

Carol não me escolheu.

T: Você ficou triste com a Carol.

A: Fiquei. Mas eu escolhi a Carol. O Rodrigo é esquisito tem hora, ele fica querendo brigar mas

eu fico do lado dele porque ele é meu namorado.

T: Você considera o Rodrigo especial pra você.

A: Aham.

7.2 Entrevista de Cristina – 07 anos T: Gostaria que você me contasse como é para você usar prótese.

C: Tem hora que dói.

T: O que que dói?

C: A outra, a outra dói. Assim que coloca ela dói.

T: Por que ela dói?

C: Porque ela fica apertada.

T: Você se sente incomodada.

C: (Balança a cabeça em sinal de sim. Cristina tampa o olho sem a prótese com uma das mãos

e abaixa a cabeça).

T: Você usa prótese desde quando?

C: Não sei.

T: Você lembra quando você colocou?

C: Lembro.

T: Como que foi quando você colocou a prótese?

C: (Pausa) Eu esqueci.

T: Você colocou a primeira prótese aqui mesmo ou em outro lugar?

C: Em outro lugar.

T: Como foi lá?

C: Não foi bom, porque eles machucavam meu olho todo.

T: Machucava para colocar a prótese?

C: (Diz sim com a cabeça)

T: Você sentia dor.

C: (Diz sim com a cabeça)

T: E aqui, como foi?

C: Bom.

T: Como você se ente com a prótese hoje?

C: Bom. Bem.

T: Você acha que tem alguma diferença de quando você não usava prótese para hoje?

C: Tem, porque antes doía e agora não dói mais.

(Pausa)

T: Você vai a escola?

C: Sim.

T: E como é lá?

C: Bom.

(Pausa)

T: Me conta o que você sente quando se olha no espelho sem a prótese.

C: Me acho feia. Os meninos da minha rua me chamam de cobra quando eu fico sem prótese.

T: E quando você esta com a prótese?

C: Ah, quando eu to com a prótese, nada.

T: Nada?

C: É. Não acho nada. (Pausa) Você acha que eu sou bonita?

T: Sim. E você se acha bonita?

C: Não. (Pausa) Vamos lá fora ver meu desenho? Ficou feio.

7.3 Entrevista de Bruno – 9 anos T: Gostaria que me contasse como é para você usar a prótese.

B: Eu me sinto ótimo com ela. Me sinto como as outras pessoas.

T: E antes de você colocar, você lembra como se sentia?

B: Eu tinha 2 anos quando perdi o olho e coloquei a prótese ano passado. Antes eu me sentia,

tipo assim, as pessoas que passavam perto de mim olhavam, passavam direto e não faziam

nada, só isso.

T: Então antes você se sentia...

B: Diferente.

T: E agora?

B: Me sinto melhor. As pessoas passam perto de mim, ai contam coisas delas, olham pra mim,

me pedem pra fazer as coisas pra elas, algumas pessoas me chamam pra brincar com elas.

T: E quem são essas pessoas?

B: Da minha escola. Às vezes a professora manda a gente ajudar outros colegas que não

sabem as respostas, ai eu ajudo.

T: E na sua casa, alguma coisa mudou depois que você colocou a prótese?

B: Na minha casa eles ligavam pra mim do mesmo jeito.

T: Então só na sua escola que você percebeu que teve alguma mudança.

B: É.

T: Você tem irmão?

B: Uma irmã. Ela tem 17 anos.

T: Você é o caçula da família. E você gosta?

B: Ah, gosto, porque eu ganho mais atenção.

T: Você gosta de ganhar atenção, e acha que você ganha mais atenção que sua irmã.

B: É.

T: E sua irmã te da atenção também?

B: Dá.

(Pausa).

T: Quando você olha no espelho, como você se sente?

B: Igual às outras pessoas. Fico tímido quando as pessoas me elogiam.

T: Por quê que isso acontece?

B: Ah, não sei.

T: Você se considera tímido?

B: Só às vezes. Eu sou extrovertido o tempo todo, na escola, em casa.

T: Então você fica tímido só quando recebe um elogio.

B: É.

Pausa

T: Aqui foi o primeiro lugar que você veio para colocar a prótese?

B: Não. Fui em outro lugar. Eles tentavam colocar a prótese e não cabia, ai eles colocavam a

força.

T: E como você se sentia.

B: Ah, muito ruim, eu sentia dor, ai eu vim pra cá e ficou muito melhor.

T: Como que foi quando voce veio aqui.

B: Ela fez um monte de pergunta de como que foi e como que foi, depois conversou com meu

pai.

T: E você já colocou a prótese no primeiro dia?

B: No segundo dia. Eu tava nervoso e com medo.

T: De que?

B: De que acontecesse a mesma coisa que aconteceu.

T: Você estava com medo de sentir muita dor de novo.

B: Aham.

T: E como que foi?

B: Ela foi colocando a prótese aos poucos pra ver se ia doer, se ia apertar, ai começava tudo

de novo e colocava uma menor. E não doeu.

T: E hoje, como que é pra você?

B: Eu consigo tirar e colocar a prótese. É tranquilo.

7.4 Entrevista de Daniele – 9 anos

T: Gostaria que me contasse como é para você usar a prótese.

D: Antes a gente tava no outro médico, o médico falou assim pra mim que era mania, por

causa que eu reclamava e ele falava que era mania. Ai minha mãe falou que eu tava sofrendo

e eu vim pra cá, porque eu ficava sempre reclamando e o médico falava que era mania minha,

mas não era mania. Ai eu vim pra cá e eu melhorei bastante, porque não ta doendo como doía

antes.

Porque, a outra, você nem mexia nela direito e ela já tava virada. Ai aqui melhorou bastante.

Até aprendi a colocar ela já.

T: É?

D: Eu tiro ela sozinha. Sou eu que faço a maioria das coisas tudo, ai eu acho aqui muito melhor

que o outro, porque... no dia que eu fui lá né, quando eu tentava colocar a prótese em mim eu

ficava tremendo, por causa que ficava doendo.

T: Você tinha medo.

D: Aham, e teve um dia né que a primeira vez que eu fui lá, eu não sei porque, mas ele colocou

uma prótese de adulto e ela tava azul. Eu nem conseguia abrir o olho direito. Ai depois ele fez

uma minha, só que ele perdeu ela, ai teve que fazer outra. Ai né, ele colocou uma prótese nova

em mim, ai eu voltei lá no mesmo dia. Não passou nem um dia e eu voltei. Eu fiquei com ela

metade de um dia, sabe, ai depois eu comecei a reclamar muito e minha mãe me levou lá de

novo. Ele colocou uma que já era de adulto, e eu não estava conseguindo. Quando eu coloquei

ela assim, eu não tava conseguindo, ficava só de olho fechado.

T: Porque doía?

D: Aham. Doía bastante. Ai né, minha mãe me levou pra passear achando que eu tava meio

enjoada, porque, era muito grande e ela me machucava bastante. Ela tipo apertava, parecia

que tinha alguma coisa tentando empurrar pra fora.

T: Tava grande pro seu olhinho.

D: Aham. Ai né, tem uma que eu tava usando antes que minha mãe mandou tirar, a prótese ta

horrível, cheia de manchas. Então, quando eu vou pra casa eu passeio, porque já aprendi tirar,

colocar a prótese, agora eu não preciso não, já sei fazer tudo já, ninguém precisa fazer nada

pra mim, então, eu acho que eu aprendi bastante aqui porque, quando eu tava lá, não tava

agüentando ficar com aquela prótese.

D: Eu fico com medo, tipo assim, primeira vez que a prótese tinha caído no chão, minha mãe

achou que tinha quebrado, ai minha mãe deixou ela cair no ralo, ai meu pai teve que tirar com

alicate, ai ele quase ligou a torneira e a prótese foi pro ralo abaixo, ai tinha que pagar outra

prótese de novo. Então eu acho que é bem melhor aqui, acho a tia Beth Legal. Tinha uma outra

lá que o tinha um filho com a mesma coisa, mas não era prótese não, ele tinha que usar

óculos, porque quando ele tira o óculos fica tudo embaçado. A professora até reclamou. E ele

fala na sala de aula que meu Deus do céu.

D: Que nem meus irmãos. Meu pai falou assim que tomara que eu não puxe meus irmãos,

porque se puxar a família toda vai ficar assim lá na escola, porque eu nunca tomei nada, a

professora nunca chamou meus pais na escola, só pra reunião. Na escola as vezes a prótese

vira, ai eu fico lá, tenho que ir embora, ai tiro ela, fico algumas horas ai depois eu tenho que

colocar ela de novo.

D: Quando eu viajei eu sempre colocava a prótese, só que era outra prótese, de um outro

médico, ai no momento que eu colocava assim doía, ai eu tinha que ficar deitada lá até ela

sarar, parar de doer. Demorava mais ou menos duas horas, uma hora e meia, nó, demorava

demais. Hoje minha mãe me pos na aula particular ai não dói muito não, só as vezes.

T: A prótese dói ate hoje?

D: uhm, essa aqui não ta doendo muito não. A outra doía mais, porque o médico colocava uma

grande e ai eu tinha que ir lá muitas vezes e cada vez tinha que pagar. Meu irmão falou assim

que deve ser por que ele queria dinheiro, porque é muito caro também. Minha mãe ta pagando

aula particular, prótese, escola, um tanto de coisa. Ai eu pedi pro meu pai pra comprar um

porco pra juntar dinheiro e ai eu posso dançar balé.

T: Seu sonho é dançar balé?

D: Aham. Eu gosto. Antes no prézinho eu dançava balé, ai quando foi na minha formatura eu

apresentei. E a saia comigo ta até hoje lá.

T: Você ficou feliz quando apresentou a dança.

D: Na verdade não, eu fiquei foi com aperto, porque tinha muita gente lá. Tinha uma parte que

a gente tinha que ir pulando pra cá e pra lá, meu Deus do céu.

Pausa

D: Na maioria das vezes eu consigo desvirar a prótese dentro do olho, eu descobri isso quando

eu tava viajando. Eu tava com medo por que eu tava tirando a prótese assim, e meu irmão me

colocando medo só porque eu ia dormir na casa da minha tia. Ele falou que viu uns alienígenas

na piscina.

T: E você ficou com medo dos alienígenas?

D: É, porque passou no radio que eu cara lá descobriu uma forma dos alienígenas, ai ele viu

alguma coisa verde passando assim, ai ele falou: alá o alienígena, só que era o filho da

empregada que tava com uma camisa verde assim, ai eu achei aquilo estranho. Ai a gente

ficou lá na piscina e eu quase tomei uma bolada no olho. Dói. Já aconteceu um monte de

coisas com o olho das pessoas na minha escola. Tinha uma menina que, sabe aqueles

negócios que colocam, tipo um tampão assim no olho, ai ela vai lá e usa óculos. Ai ela falou

assim que ninguém zoa ela não. Porque que vai zoar também? Só porque a menina é assim

ué. Isso não tem nada haver. A única coisa que eu não gosto é, sabe o que? É que tinha uma

menina na minha sala, a primeira menina que eu conheci quando eu entrei lá, né. Ai, meu Deus

do céu, ela batia em todo mundo. Teve uma lá que ela bateu só porque ela não quis emprestar

a sandália. (Pausa)

T: E com você?

D: Ela já me bateu. Aquela menina lá já bateu em todo mundo.

T: E lá na sua escola alguém já falou alguma coisa da sua prótese?

D: Sabe, alguns reparam. Teve um dia lá que ela tava doendo assim, ela tava virada, eu fui lá e

desvirei ela. Quase todo mundo já machucou o olho na minha sala.

T: E você, machucou o seu olho também? Como que foi?

D: Lá na escola não, nunca tomei bolada, nunca teve nada. Ai, só o meu irmão que já teve

problema. Cada dia que eu chego lá e vejo ele sentado na sala ele ta num lugar, ai foi no

mesmo dia ele já tinha mudado de lugar também. A sala dele é muito mal arrumada, vive

bagunçada. Ele não anda sem boné, só sai de boné, ai um dia ele passou a maior vergonha,

porque esqueceu o boné e o cabelo dele tava todo bagunçado. Os amigos dele já me zuaram

já.

T: É? E quando você se olha no espelho como você se sente?

D: Ah, não sinto nada, é como se eu tivesse com o outro olho, porque é normal. Eu quando to

usando prótese, como que fala, eu sinto normal porque, eu sei que eu não vejo mais, é, eu

sinto como uma pessoa normal. Um homem que eu vi na rua, que ele tomou um tombo, porque

ele tinha problema da perna, ai eu fiquei com dó dele porque, o Lucas (irmão) me contou isso e

falou: você não ri não ta, porque ele tem problema, deve ter nascido assim. Eu falei assim que

eu senti dó dele, porque se uma pessoa tem um problema, tipo, eu tenho um problema e não

gosto que a pessoa fica com dó de mim, porque eu quero que ela me ache uma pessoa

normal, porque eu sou uma pessoa normal. Só porque eu tenho um problema de olho, isso não

quer dizer que eu não sou uma pessoa normal, que eu sou uma pessoa estranha. Então eu

acho assim, eu sei que eu não to vendo, mas é normal, como se eu tivesse com o outro olho.

Eu acho que não tem nenhuma diferença, porque se a pessoa tem problema, isso não quer

dizer nada, a pessoa é a mesma coisa.

Tipo, aquela menina que tem problema lá na escola, ela não vai querer que ninguém

tem dó dela só porque ela tem esse problema. Então, quando você tem algum problema, a

pessoa ta sem braço ou ta sem perna, isso não quer dizer que ela não é normal, ela é como

todo mundo.

Igual a menina da minha escola, eu tenho uma tia que tem uma sobrinha dela usa tampão, ai a

sobrinha dela fica com vergonha porque ela odeia usar o tampão, porque todo mundo fica

zoando ela, mas isso é só não ligar, porque tem uma menina na minha escola, ela me

chamava de zoiuda, eu não ligava pra ela não porque, eu sou uma pessoa normal. Só por que

eu tenho problema isso não quer dizer que eu não seja normal como os outros. Pode zuar ela a

vontade, só que essa pessoa não tem que ficar magoada.

Meu irmão ele me zoa de pequena, de anão de jardim, ele me chama de gorda e eu

não ligo pra ele não. Teve um dia que eu comecei a ligar, comecei a chorar, gritar meu pai, ai

meu pai mandou ele parar, porque ele não sabe que isso magoa a pessoa. E então, não tem

nenhuma diferença. Ai eu fiz eu trato com ele e ele falou: eu paro de te chamar de pequena,

mas você também tem que parar de me encher o saco. Porque ele fala que eu encho o saco

dele, porque antes ele brincava e ele não gostava que eu vejo, ai eu ficava escondida pra ver o

que ele fazia né.

Então, eu acho que só porque a pessoa tem isso, isso não quer dizer nada. A minha

colega ela tem vergonha, porque teve um dia que ela tava com alergia e tava cheia de mancha,

ela não sabia, ai ela ficava coçando assim e todo mundo ficava zuando ela e ela ficava

chorando. Quando alguém parava de ser amiga dela, ela chorava. Era catapora, ela ficava

coçando e quase que a menina pegou dela. Eu falei pra ninguém abraçar ela por que isso

pega. Ela deve ter sofrido bastante com essa alergia porque mesmo ela tendo isso ela não

pode se achar uma coisa que não é, né, porque se ela é assim, todo mundo deve ser, porque

ela é humano e todo mundo é né. Então, se ela tem um problema, não deve ficar com

vergonha só de contar as coisas pra pessoa, porque alguém repara entendeu.